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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - O império do mal - 23/11/2003

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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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FILMES DE CLINT EASTWOOD, LARS VON TRIER


E GUS VAN SANT FICCIONALIZAM AS FORMAS DA
VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE NORTE-AMERICANA
E RETRATAM UMA ÉTICA DE QUE A LEI ESTÁ
AUSENTE

O IMPÉRIO DO MAL

Divulgação

Cena de
"Elefante", de Gus
van Sant, ainda
sem previsão de
lançamento no
Brasil

por Jacques Rancière

O mal comporta-se bem. À sombra da grande encenação


bushista da luta contra o eixo do mesmo nome, numerosas
ficções se dedicam hoje a mostrar o avesso da cruzada: a
maneira pela qual essa América, que persegue os
fomentadores da morte em toda a superfície do globo, os
reencontra a domicílio, nas largas avenidas plantadas de
bordos e nos colégios modernos e conviviais da América
profunda, sob a figura de cidadãos honrados ou de
adolescentes iguais a quaisquer outros.
O mal não é a violência. Esta se deixa domesticar de diversas
maneiras. De um lado, pode ser tratada como pura
intensidade: estrondos de deflagrações, riachos de sangue,
prédios que desabam em chamas são então, como o dilúvio de
decibéis ou os movimentos de câmera espetaculares, puras
intensidades que compõem o gozo do espetáculo do qual se
sai tal como se entrou. Desse lado, portanto, a violência não
tem consequências. De outro, ao contrário, ela se presta ao
jogo das diferenças e das causas. Existem a boa e a má
violência.
Até pouco tempo atrás, policiais, xerifes ou justiceiros free-
lancers exerciam sem complexo, no cinema, a violência da lei
comum ou da moral contra a violência dos que seguiam

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apenas a lei de sua avidez. Na cena do mundo, via-se, de uma


forma divergente, uma oposição do mesmo tipo: há a
violência que oprime e a violência que liberta, dizia-se no
tempo de Sartre e de Frantz Fanon [1925-61, escritor
martinicano]. Se era possível marcar a diferença, é porque se
podiam atribuir causas à violência, remetê-la a uma violência
mais oculta, a violência da ordem e da propriedade. A partir
daí se estabeleciam os roteiros políticos da dureza necessária
à justiça ou os roteiros estéticos do confronto das violências.
Não resta dúvida de que esses roteiros se prestam hoje à
suspeita. "Tiros em Columbine", de Michael Moore, o
testemunha a seu modo. O argumento de que "há crimes
porque há armas que qualquer um pode comprar" oscila entre
duas lógicas. Para completar o esquema causal, próprio da
lógica antiga, seria preciso questionar não simplesmente o
encontro dos interesses de um lobby e do ideal viril norte-
americano, mas o fato mesmo de uma sociedade em que tudo
se compra.
A interrupção na cadeia das causas corresponde, é claro, às
formas contemporâneas de uma consciência de esquerda mais
ligada à regulamentação dos produtos perigosos do que à
crítica da propriedade como tal. Mas ela também deixa livre o
lugar a uma outra forma de causalidade, a que remete o fato
finito desse ou daquele ato assassino ao fato infinito do mal.
Com efeito, a característica do mal é não ter conserto senão
ao preço de um outro mal que permanece irredutível. Há um
traço comum a três filmes recentes que nos falam do mal em
geral e do mal norte-americano em particular: "Dogville",
"Sobre Meninos e Lobos" ("Mystic River") e "Elefante"
("Elephant"). Nesses filmes, a lei está ou radicalmente
ausente ("Elefante") ou é cúmplice do mal: ela designa a
vítima que deve sofrer e reserva aos bandidos o cuidado de
punir os torturadores ("Dogville"); ela deixa impune o crime
do honesto pai de família-bandido-justiceiro ("Sobre Meninos
e Lobos"). Certamente, "Dogville" é o filme que mostra
melhor a divergência entre duas lógicas -que é também uma
divergência entre duas gerações.
A encenação abstrata que aproxima o espaço fictício do
cinema do espaço real do teatro, a composição em pequenas
cenas que são espécies de contos morais e o papel
distanciador da voz em "off" lembram a origem teatral da
parábola que Lars von Trier nos propõe. Esses princípios de
mise-en-scène são herdados do "teatro épico" de Brecht. E a
história das desilusões da moça de olhos azuis que quer, mas
não consegue, praticar o bem faz pensar irresistivelmente em
"Santa Joana dos Matadouros". A mesma conclusão se
produz, a saber: a impossibilidade de fazer o bem num mundo
mau e a necessidade da violência. Mas a analogia se detém aí.
Em vez de Chicago, da especulação capitalista e da miséria
ou da revolta operária, trata-se de um buraco perdido
qualquer da América profunda, dos serviços de vizinhança e
da banalidade do mal entre pessoas de bem.

Figura crística
A nova Joana d'Arc não é mais, então, uma paródia do Cristo
que oferece sua vida pela redenção dos homens e descobre as
realidades terrestres da luta de classes. Grace (a graça) torna-
se uma figura crística à maneira de Dostoiévski, uma enviada
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do além que depara com o gosto da exploração e da


humilhação infligidas ao outro nas mais ínfimas e tranquilas
células do corpo social. O mal encarnado particularmente na
perversidade do pequeno Jason, que pede como prova de
amor umas palmadas nas nádegas, que servirão a seguir para
acusar Grace, não pode ser remediado por nenhuma luta. É o
que mostram, em sua ambiguidade, as fotos que compõem os
créditos no final do filme: fotografias de Walker Evans, de
Dorothea Lange e outros fotógrafos testemunhas dos tempos
da Grande Depressão e do engajamento social dos artistas.
Não se sabe muito bem se essas fotos estão aí para lembrar
uma injustiça social doravante sem justiceiros ou para dar a
entender que os "great men" de Walker Evans e James Agee
se transformaram nesses pequenos monstros da América
profunda. Mas uma coisa é certa: a luta social não é mais uma
resposta ao mal com que Grace depara. A vontade de fazer o
bem não é mais uma ingenuidade a esclarecer. É uma
arrogância a castigar. O Senhor, pai de Grace, que se reserva
a vingança, é idêntico ao rei dos bandidos que faz justiça à
humanidade sob a forma do extermínio radical. Essa visão do
mal e da justiça provocou indignações -e não só norte-
americanas. O presidente do Festival de Cannes disse
claramente que não era possível premiar um filme tão
afastado dos sentimentos humanistas. "Sobre Meninos e
Lobos", em troca, corresponde certamente aos critérios do
humanismo tal como o júri de Cannes devia concebê-lo. Mas
ele nos mostra que também o "humanismo" mudou. Este era,
no passado, a fé na capacidade humana de organizar um
mundo tão justo quanto a fraqueza igualmente humana o
permitisse. Hoje, é antes o testemunho da impossibilidade de
semelhante justiça. Somos culpados demais para nos darmos
o luxo de sermos justos: tal é o sentido dos gestos mudos que
trocam, no final do filme, o assassino impune e o policial que
guarda seu segredo.

Justiça sumária
Sean e Jimmy são culpados de ter, no passado, em suas
brincadeiras de rua, arrastado o tímido Dave e de tê-lo feito
entrar na viatura dos falsos policiais e verdadeiros pedófilos
que o sequestraram e violentaram. O trauma sofrido é
irreparável. E é dentro da lógica desse irreparável que o Dave
adulto verá cair sobre si todas as suposições de culpabilidade
no assassinato da filha de Jimmy e será vítima da justiça
sumária deste último.
Toda a estrutura do filme parece ser o desenvolvimento de um
pequeno episódio de um dos filmes iniciadores do estilo
norte-americano dos últimos 30 anos: "Era uma Vez no
Oeste" [1968]. A câmera de Sergio Leone [1929-89] nos fazia
ler no olhar de uma criança impotente a decisão do homem
que ia matá-la. Ela nos introduzia numa confusa
cumplicidade com o gozo do assassino e a espera da criança
pelo inevitável. "Sobre Meninos e Lobos" é, do mesmo modo,
a longa crônica de uma morte anunciada. A atmosfera
noturna em que Dave circula -e a câmera a seu redor-, como
num aquário, as gesticulações e urros selvagens de Jimmy e
seus dois acólitos, as vibrações da música de órgão compõem
a paisagem mental e sensível dessa preparação para a morte
que transforma o roteiro clássico do falso culpado em roteiro
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da vítima prometida.

Se o "freudismo" de Eastwood
corresponde à demonstração do
trauma irreparável, o de "Elefante"
nos propõe uma explicação em
termos de psicose: o mundo dos
adolescente é um mundo "inocente"

Não-maniqueísmo
Todos nós matamos uma criança, então vamos até o fim: eis
como se poderia resumir a moral do filme, a moral que ele
põe em cena e a de sua mise-en-scène. Clint Eastwood
chegou a ser elogiado por ter evitado o "maniqueísmo" de
Michael Moore ou de Lars von Trier. Examinado mais de
perto, esse "não-maniqueísmo", essa aceitação da injustiça
em nome do mal, é homogêneo em relação ao discurso
reinante contra o eixo do mal. Já que somos todos selvagens,
todos potenciais assassinos, devemos aceitar a obra da justiça.
Mas, pela mesma razão, não devemos exigir da justiça que
ela seja demasiado justa. A luta contra o mal infinito tem
necessariamente suas falhas, necessariamente suas vítimas,
tanto na periferia das cidades árabes como na de Boston.
Quanto a "Elefante", ele se coloca fora de toda consideração
de justiça e de toda perspectiva causal. Se o "freudismo" de
Clint Eastwood corresponde à demonstração do trauma
irreparável, o de "Elefante" nos proporia antes uma
explicação em termos de psicose: o mundo dos adolescentes é
um mundo "inocente", mundo de que o pecado, a lei e a
autoridade estão radicalmente ausentes. O pai depressivo que
bebe, e que seus filhos tratam como criança, é o único
representante da instância parental. Mas nenhuma causalidade
psicológica se induz disso. John, o filho do pai indigno, não
será nem culpado nem vítima. Sua presença ao longo de todo
o filme é apenas a da testemunha que assegura a continuidade
da narração interrompida. E os dois assassinos parecem
perfeitamente cândidos, comparados ao pequeno Jason.
Nenhuma psicologia da filiação e de seus distúrbios,
nenhuma teologia do mal vêm substituir o horizonte político-
social desaparecido. Todo o princípio do filme está aí. À
espessura do trauma em que Clint Eastwood nos instala, Gus
van Sant, como Lars von Trier, opõe um partido assumido de
abstração conceitual que faz da mise-en-scène a
demonstração rigorosa de um ponto de vista. E esse ponto de
vista é o seguinte: não há razão para o crime, a não ser o
vazio mesmo das razões. A mise-en-scène é a longa
manifestação desse vazio. O colégio é estranhamente
inabitado. O laboratório de línguas onde os matadores
acumulam seu material é deserto como o colégio que o
adolescente "de mal com o mundo" atravessa. As salas
apresentam antecipadamente esse vazio que o rapaz assassino
contemplará no final como sua obra. A câmera segue
longamente o percurso e as voltas que fazem, em corredores
quase desertos, corpos filmados de costas.

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Matadouros de Eisenstein
Esse espaço sem consistência e geralmente vaporoso já se
assemelha ao da tela de computador em que os dois
adolescentes encomendaram suas armas e em que um deles se
exercita num jogo de massacre, enquanto o outro se contenta
em massacrar Beethoven ao piano. E é como uma criatura de
videogame numa tela que Alex aparecerá, no final, sob o
olhar do casal de adolescentes prometidos à morte. Morte
prometida, mas que o final do filme deixará em suspenso.
Esse final suspenso é emblemático do método do filme
inteiro. Alex na câmara frigorífica, enquadrado por peças de
carne, goza para a eternidade do prazo concedido/imposto aos
dois adolescentes, dos quais ouvimos apenas a voz suplicante.
Pensamos ainda, é claro, em Sergio Leone. Mas esses
pedaços de carne que enquadram o matador adolescente nos
fazem remontar mais longe na história do cinema. Eles
lembram os matadouros que Sergei Eisenstein [1898-1948]
introduziu simbolicamente em "A Greve" [1924] e aos quais
tantos cineastas prestaram homenagens visuais mais ou
menos discretas. Mas aqui a significação simbólica
(carne/sangue/violência) é absorvida.
Resta a câmara frigorífica, que condensa tanto a frieza dos
corredores e das salas vazias como a da tela de computador
ou a do "luar" beethoveniano. E resta, por fim, a designação
do próprio cinema, o partido assumido do diretor construtor
dessa câmara fria em que normalidade e monstruosidade,
razão e ausência de razão se mostram equivalentes. Isso tudo
é só um filme, nos diz o plano final.
A mise-en-scène dos matadores e a do cineasta se refletem
então uma na outra. Ambas fazem funcionar um princípio de
interrupção. Tanto na câmara frigorífica quanto na tela de
computador dos dois matadores, a deambulação infinita nos
corredores e a circulação interminável de falas vazias -as dos
três periquitos ou da associação homo-heterossexual- se vêem
bloqueadas, enquadradas, submetidas a um princípio de
fechamento. A moral do filme estaria portanto aí. Ela seria a
boa interrupção que responde à má. "Faça amor, não a
guerra", dizia-se no tempo da violência. "Faça filmes, não
massacres": tal seria, para Gus van Sant, a fórmula de uma
ética adaptada ao tempo do mal. Infelizmente, nem todos
podem fazer cinema.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" (ed. 34). Acaba de publicar na França "Le Destin des Images"
(La Fabrique). Escreve na seção "Autores".
Tradução de Paulo Neves.

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