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O IMPÉRIO DO MAL
Divulgação
Cena de
"Elefante", de Gus
van Sant, ainda
sem previsão de
lançamento no
Brasil
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Figura crística
A nova Joana d'Arc não é mais, então, uma paródia do Cristo
que oferece sua vida pela redenção dos homens e descobre as
realidades terrestres da luta de classes. Grace (a graça) torna-
se uma figura crística à maneira de Dostoiévski, uma enviada
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Justiça sumária
Sean e Jimmy são culpados de ter, no passado, em suas
brincadeiras de rua, arrastado o tímido Dave e de tê-lo feito
entrar na viatura dos falsos policiais e verdadeiros pedófilos
que o sequestraram e violentaram. O trauma sofrido é
irreparável. E é dentro da lógica desse irreparável que o Dave
adulto verá cair sobre si todas as suposições de culpabilidade
no assassinato da filha de Jimmy e será vítima da justiça
sumária deste último.
Toda a estrutura do filme parece ser o desenvolvimento de um
pequeno episódio de um dos filmes iniciadores do estilo
norte-americano dos últimos 30 anos: "Era uma Vez no
Oeste" [1968]. A câmera de Sergio Leone [1929-89] nos fazia
ler no olhar de uma criança impotente a decisão do homem
que ia matá-la. Ela nos introduzia numa confusa
cumplicidade com o gozo do assassino e a espera da criança
pelo inevitável. "Sobre Meninos e Lobos" é, do mesmo modo,
a longa crônica de uma morte anunciada. A atmosfera
noturna em que Dave circula -e a câmera a seu redor-, como
num aquário, as gesticulações e urros selvagens de Jimmy e
seus dois acólitos, as vibrações da música de órgão compõem
a paisagem mental e sensível dessa preparação para a morte
que transforma o roteiro clássico do falso culpado em roteiro
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da vítima prometida.
Se o "freudismo" de Eastwood
corresponde à demonstração do
trauma irreparável, o de "Elefante"
nos propõe uma explicação em
termos de psicose: o mundo dos
adolescente é um mundo "inocente"
Não-maniqueísmo
Todos nós matamos uma criança, então vamos até o fim: eis
como se poderia resumir a moral do filme, a moral que ele
põe em cena e a de sua mise-en-scène. Clint Eastwood
chegou a ser elogiado por ter evitado o "maniqueísmo" de
Michael Moore ou de Lars von Trier. Examinado mais de
perto, esse "não-maniqueísmo", essa aceitação da injustiça
em nome do mal, é homogêneo em relação ao discurso
reinante contra o eixo do mal. Já que somos todos selvagens,
todos potenciais assassinos, devemos aceitar a obra da justiça.
Mas, pela mesma razão, não devemos exigir da justiça que
ela seja demasiado justa. A luta contra o mal infinito tem
necessariamente suas falhas, necessariamente suas vítimas,
tanto na periferia das cidades árabes como na de Boston.
Quanto a "Elefante", ele se coloca fora de toda consideração
de justiça e de toda perspectiva causal. Se o "freudismo" de
Clint Eastwood corresponde à demonstração do trauma
irreparável, o de "Elefante" nos proporia antes uma
explicação em termos de psicose: o mundo dos adolescentes é
um mundo "inocente", mundo de que o pecado, a lei e a
autoridade estão radicalmente ausentes. O pai depressivo que
bebe, e que seus filhos tratam como criança, é o único
representante da instância parental. Mas nenhuma causalidade
psicológica se induz disso. John, o filho do pai indigno, não
será nem culpado nem vítima. Sua presença ao longo de todo
o filme é apenas a da testemunha que assegura a continuidade
da narração interrompida. E os dois assassinos parecem
perfeitamente cândidos, comparados ao pequeno Jason.
Nenhuma psicologia da filiação e de seus distúrbios,
nenhuma teologia do mal vêm substituir o horizonte político-
social desaparecido. Todo o princípio do filme está aí. À
espessura do trauma em que Clint Eastwood nos instala, Gus
van Sant, como Lars von Trier, opõe um partido assumido de
abstração conceitual que faz da mise-en-scène a
demonstração rigorosa de um ponto de vista. E esse ponto de
vista é o seguinte: não há razão para o crime, a não ser o
vazio mesmo das razões. A mise-en-scène é a longa
manifestação desse vazio. O colégio é estranhamente
inabitado. O laboratório de línguas onde os matadores
acumulam seu material é deserto como o colégio que o
adolescente "de mal com o mundo" atravessa. As salas
apresentam antecipadamente esse vazio que o rapaz assassino
contemplará no final como sua obra. A câmera segue
longamente o percurso e as voltas que fazem, em corredores
quase desertos, corpos filmados de costas.
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Matadouros de Eisenstein
Esse espaço sem consistência e geralmente vaporoso já se
assemelha ao da tela de computador em que os dois
adolescentes encomendaram suas armas e em que um deles se
exercita num jogo de massacre, enquanto o outro se contenta
em massacrar Beethoven ao piano. E é como uma criatura de
videogame numa tela que Alex aparecerá, no final, sob o
olhar do casal de adolescentes prometidos à morte. Morte
prometida, mas que o final do filme deixará em suspenso.
Esse final suspenso é emblemático do método do filme
inteiro. Alex na câmara frigorífica, enquadrado por peças de
carne, goza para a eternidade do prazo concedido/imposto aos
dois adolescentes, dos quais ouvimos apenas a voz suplicante.
Pensamos ainda, é claro, em Sergio Leone. Mas esses
pedaços de carne que enquadram o matador adolescente nos
fazem remontar mais longe na história do cinema. Eles
lembram os matadouros que Sergei Eisenstein [1898-1948]
introduziu simbolicamente em "A Greve" [1924] e aos quais
tantos cineastas prestaram homenagens visuais mais ou
menos discretas. Mas aqui a significação simbólica
(carne/sangue/violência) é absorvida.
Resta a câmara frigorífica, que condensa tanto a frieza dos
corredores e das salas vazias como a da tela de computador
ou a do "luar" beethoveniano. E resta, por fim, a designação
do próprio cinema, o partido assumido do diretor construtor
dessa câmara fria em que normalidade e monstruosidade,
razão e ausência de razão se mostram equivalentes. Isso tudo
é só um filme, nos diz o plano final.
A mise-en-scène dos matadores e a do cineasta se refletem
então uma na outra. Ambas fazem funcionar um princípio de
interrupção. Tanto na câmara frigorífica quanto na tela de
computador dos dois matadores, a deambulação infinita nos
corredores e a circulação interminável de falas vazias -as dos
três periquitos ou da associação homo-heterossexual- se vêem
bloqueadas, enquadradas, submetidas a um princípio de
fechamento. A moral do filme estaria portanto aí. Ela seria a
boa interrupção que responde à má. "Faça amor, não a
guerra", dizia-se no tempo da violência. "Faça filmes, não
massacres": tal seria, para Gus van Sant, a fórmula de uma
ética adaptada ao tempo do mal. Infelizmente, nem todos
podem fazer cinema.
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