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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - O papel do desentendimento na arena política - 9/6/1996

São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996

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O papel do desentendimento na arena


política
JACQUES RANCIÈRE

A transformação da cena democrática em cena humanitária pode ser


ilustrada pela impossibilidade de um modo de enunciação. No início
do movimento de maio de 1968 na França, os manifestantes haviam
definido uma forma de subjetivação resumida numa frase: "somos
todos judeus alemães". Essa frase ilustra bem o modo heterológico da
subjetivação política: tomando ao pé da letra a frase estigmatizantes
do adversário, preocupado em despistar o intruso sobre o palco em
que se contavam as classes e seus partidos, ela a invertia para
convertê-la numa subjetivação aberta dos incontados, um nome sem
confusão possível com qualquer grupo social real, com qualquer
cômputo de identidade.
É evidente que uma frase desse tipo seria hoje impronunciável, por
duas razões. A primeira é que não é exata. Os que a pronunciavam
não eram alemães e não eram, na sua maioria, judeus. Ora, tanto os
partidários do progresso como os da ordem admitiram desde então
que só são legítimas as reivindicações de grupos reais que tomam
pessoalmente a palavra para dizerem eles mesmos sua própria
identidade.
Ninguém doravante tem o direito de se dizer proletário, negro, judeu
ou mulher se não o for, se não tiver essa qualidade nativa e sua
experiência social. A única exceção a essa regra de autenticidade, é
claro, é a "humanidade" cuja autenticidade consiste em ser sem
palavras e cujos direitos estão nas mãos da polícia da comunidade
internacional. E aí aparece a segunda razão: a frase é doravante
impronunciável porque é evidentemente indecente. A identidade
"judeu alemão" hoje significa imediatamente a identidade da vítima
do crime contra a humanidade, que ninguém poderia reivindicar sem
profanação. Ela não é mais um nome disponível para a subjetivação
política, mas o nome da vítima absoluta que suspende essa
subjetivação.
O sujeito do desentendimento tornou-se o nome do interdito. A era
humanitária é aquela em que a idéia da vítima absoluta proíbe os
jogos polêmicos da subjetivação do dano. O episódio que se chamou
"nova filosofia" resume-se inteiramente nessa prescrição: o
pensamento do massacre é o que marca de indignidade o pensamento
e proíbe a política.
O pensamento do irresgatável vem então servir de duplo ao realismo
consensual: o litígio político é impossível por duas razões: porque
suas violências são um entrave para o acordo racional das partes; e
porque as facécias de suas encarnações polêmicas ultrajam as vítimas
do dano absoluto. A política deve então ceder diante do massacre, o
pensamento inclinar-se diante do impensável.
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Só que a duplicação da lógica consensual de submissão à pura


contagem das partes pela lógica ética/humanitária de submissão ao
impensável dos genocídios assume o aspecto de um "duplo vínculo".
A distribuição dos papéis, é verdade, pode permitir que as duas
lógicas se exerçam separadamente.
Ainda assim é preciso que nenhum provocador atinja o ponto em que
se encontram, o ponto que designam com evidência ao mesmo tempo
em que se esforçam para não vê-lo. Esse ponto é o da pensabilidade
do crime contra a humanidade como integralidade do extermínio. É a
esse ponto que chega a provocação negacionista. Esta devolve sua
lógica aos gestores do possível e aos pensadores do impensável,
manejando o duplo argumento da impossibilidade de um cálculo
exaustivo do extermínio e da impensabilidade de seu pensamento,
afirmando a impossibilidade de presentificar a vítima do crime contra
a humanidade e de dar uma razão suficiente pela qual o carrasco o
teria perpetrado.
Tal é na verdade o duplo motor da argumentação negacionista, para
negar a realidade do extermínio dos judeus nos campos nazistas. De
um lado, ela lança mão dos clássicos paradoxos sofistas da
enumeração interminável e da divisão ao infinito. Já em 1950, Paul
Rassinier havia fixado seu conjunto de argumentos sob a forma de
uma série de pergunta cujas respostas deixavam aparecer a cada vez
que, mesmo que todos os elementos do processo fossem
reconhecidamente certos, seu encadeamento não podia nunca ser
inteiramente refeito, e menos ainda a sua ligação às consequências de
um projeto de pensamento integralmente programado e imanente a
cada uma de suas sequências.
Realmente, dizia ele, houve declarações nazistas que pregavam o
extermínio de todos os judeus. Mas declarações nunca mataram
ninguém por si sós. Realmente, houve planos de câmaras de gás. Mas
um plano de câmara de gás e uma câmara de gás em funcionamento
são duas coisas tão diferentes quanto cem táleres possíveis e cem
táleres reais. Realmente, houve câmaras de gás instaladas de fato num
certo número de campos. Mas uma câmara de gás é apenas uma
fábrica de gás com que se pode fazer todas as espécies de coisas
diversas e acerca da qual não há prova de que tivesse a função
específica do extermínio em massa.
Realmente ainda, havia, em todos os campos, seleções regulares ao
cabo das quais desapareciam prisioneiros que nunca mais foram
encontrados. Mas há mil maneiras de matar pessoas ou simplesmente
deixá-las morrer e as que desapareceram nunca nos dirão como
desapareceram.
Realmente enfim, houve nos campos prisioneiros mortos de fato pelo
gás. Mas nada prova que tenham sido vítimas de um sistemático
plano de conjunto e não de simples torturadores.
É preciso determo-nos um instante o duplo motor dessa
argumentação: faltam documentos, dizia Rassinier em 1950, para
estabelecer a conexão de todos esses fatos a um único acontecimento.
Mas também acrescentava ele, é muito duvidoso que sejam um dia
encontrados. Ora, desde então, foram encontrados documentos em
abundância suficiente. Nem por isso a provocação revisionista cedeu.
Ao contrário, soube encontrar novos adeptos ou novas tolerâncias.
Quanto mais seus argumentos se mostraram inconsistentes no plano
dos fatos, mais sua verdadeira força se afirmou. Essa força provém de
ter tocado o próprio regime da crença segunda a qual uma série de
fatos é constatada como um acontecimento singular, e um
acontecimento subsumido sob a categoria do possível.
Provém de ter tocado no ponto em que duas possibilidades devem ser
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ajustadas uma à outra: a possibilidade material do crime como


encadeamento total de suas sequências, e sua possibilidade intelectual
segundo sua qualificação de crime absoluto contra a humanidade.
A provocação negacionista não se sustenta pelas provas que opõe ao
acúmulo das provas adversas. Ela se sustenta porque traz cada uma
das lógicas que ali se enfrentam a um ponto crítico em que a
impossibilidade se encontra comprovada sob tal ou qual de suas
figuras: falta na cadeia, ou impossibilidade de pensar o
encadeamento. Ela obriga então essas lógicas a executar uma corrida
em que o possível é sempre alcançado pelo impossível, e a
verificação do acontecimento pelo pensamento de seu impensável.
Tradução de Ângela Leite Lopes.

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