Você está na página 1de 3

05/09/2020 Folha de S.

Paulo - À cata de bodes expiatórios - 30/6/1996

São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

À cata de bodes expiatórios


JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

No âmago do Ocidente liberal e supranacional, em marcha rumo a


racionalização absoluta dos comportamentos sociais e a supressão dos
arcaísmos ideológicos, o racismo está de volta. Poderíamos nos
surpreender com tal evolução intempestiva. Ora, a ciência política
não é filosofia. Se esta última, segundo Aristóteles, tem sua origem
no espanto, aquela tem por axioma que nada é espantoso. E um de
seus exercícios favoritos é mostrar o quanto era previsível o quê, de
resto, ela foi incapaz de prever.
No tocante ao racismo e à xenofobia, a justificativa sempre está
pronta de antemão. Estes, explicam-nos, são fenômenos de
retardamento. E os fenômenos de retardamento são consequência
inevitável da marcha adiante. Não há modernização econômica sem o
enfraquecimento dos setores de atividade tradicionais e a fragilização
das camadas sociais ligadas a tal processo. As populações
apreensivas, ameaçadas em seu futuro, desenvolvem então
comportamentos regressivos e arcaicos. Elas saem à cata de bodes
expiatórios e os encontram nos "outros": os estrangeiros que lhes
tomam os empregos, que proliferam e se espraiam pela cidade sob os
auspícios da classe política.
Reconhecemos facilmente a fonte de tais preceitos, que se tomam de
empréstimo ao velho arcabouço marxista: quando as sociedades
sofrem transformações, as camadas pequeno-burguesas ameaçadas se
aferram ao passado e se alistam na reação. Sabemos, aliás, que tal
marxismo tornou-se, por força da expressão, a ideologia oficial dos
Estados liberais e de suas "intelligentsias". A razão deste aparente
paradoxo é simples. Há um tema que o otimismo liberal é
congenialmente incapaz de compreender: o motivo pelo qual a
marcha adiante pode deflagrar a marcha para trás. Se há uma questão,
porém, que a literatura marxista levou a um ponto de perfeição
insuperável é exatamente este -a análise das razões histórico-
econômico-sociológicas que fazem com que a história sempre tenha
como resultado algo diverso daquilo em que deveria resultar.
A vantagem destas justificativas com respaldo nas condições
econômicas e sociológicas é que elas sempre funcionam, quaisquer
que sejam as condições. E funcionam sempre por uma razão bem
simples. Elas enunciam, em última instância, uma tautologia, a saber,
que os atrasados são atrasados. Essa tautologia tem sobretudo o
mérito de assegurar, sem nem sequer precisar explicitá-la, sua
incontestável recíproca, isto é, que os avançados são mesmo
avançados.
Há dois pontos que os avançados parecem ter singular dificuldade em
perceber. Primeiro, que não é necessário estar socialmente ameaçado
ou culturalmente "desfavorecido" para ressentir o outro como um
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/6/30/mais!/21.html À 1/3
05/09/2020 Folha de S.Paulo - À cata de bodes expiatórios - 30/6/1996

obstáculo ao gozo e uma ameaça à identidade. À falta de especialistas


em ciência política, foi um psicanalista, Jacques Lacan, que anunciou
há 20 anos o novo racismo em forma embrionária no ventre de toda
uma sociedade atarefada com o gozo ilimitado.
E segundo, de modo inverso, que o prazer de falar e o de raciocinar
são igualmente partilhados pelas classes ditas descamisadas. Se os
enunciados racistas sempre andaram de mãos dadas com as
promessas de desempenhos sexuais inauditos, tanto nos cediços
banheiros públicos como na moderna Internet, é que eles propiciam
igual prazer. E não há que se suspeitar aqui da conjugação de uma
miséria econômico-social e uma miséria sexual. Há um prazer
positivo em brincar com as formulações que identificam os traços do
outro com o ridículo, o detestável ou o simplesmente inferior. De fato,
há sobretudo um prazer em brincar com as palavras.
A teoria dos avançados reza que os atrasados utilizam as palavras
torcendo-lhes o sentido conforme suas necessidades, paixões, medos
ou frustrações. No enunciado racista, de acordo com sua tese, haveria
forçosamente o peso de paixões populistas ou populares. Em suma,
seria preciso aboná-lo e enumerar boas razões de afiançá-lo para que
ele tenha sucesso.
Os avançados parecem não perceber que os "atrasados" também são
os destinatários de mensagens -políticas ou publicitárias- que figuram
neste ou naquele registro dominante da comunicação: a pilhéria ou a
explicação letrada. E os "atrasados" aprendem com rapidez. De um
lado, os racistas falam como os letrados, na mesma linguagem: eles
dizem cada vez menos que os negros são sujos ou preguiçosos, mas
explicam cada vez mais que há dificuldades econômicas, problemas
de compatibilidade entre as culturas, limites de tolerância e que, feitas
as contas, é melhor dar caça aos estrangeiros, pois se não os
perseguirmos, corre-se o risco de criar o racismo.
O racismo que se desenvolve hoje em dia, portanto, não é resultado
dos "atrasados com o progresso". Ele é perfeitamente sincrônico às
formas de legitimação de governos esclarecidos e do pensamento
avançado. A intolerância de raças reproduz as formas dominantes de
descrição social e o modo reinante da opinião, ou seja, o da crença
incrédula, da crença que não necessita gozar de credulidade para
surtir efeitos.
A sociologia pós-modernista -à maneira do marxismo tradicional e do
discurso de Estado- acredita que a deflação de crenças dificulta as
paixões coletivas e assegura a paz social. A dedução, porém, é falsa.
A incredulidade e a suspeita podem simplesmente suscitar paixões
mais intelectuais, mais lúdicas, mais individualizadas e,
consequentemente, mais eficazes, mais adaptadas ao reino da adesão
desconfiada e da crença incrédula.
Um bom exemplo disso nos é fornecido pelo crescente sucesso de
teses negacionistas. Tais teses contribuem ao anti-semitismo com um
influxo puramente "intelectual". Foram os universitários que
forjaram, sem qualquer necessidade objetiva ou paixão aparente, as
armas do negacionismo. Eles as forjaram valendo-se de temas caros
ao pensamento avançado: a dúvida sobre os termos abrangentes que
convém serem "esvaziados", o repúdio das interpretações
globalizantes e de explicações "maniqueístas".
Tais eruditos declararam que a ciência não conhecia tabus, que
"extermínio" era uma expressão ligeiramente exagerada e que cabia
investigar a matéria em seus detalhes para averiguar se estes se
confirmavam e compunham uma série concatenada de causas e
efeitos.
E a razão do sucesso de suas teses é simples: elas não fazem mais do
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/6/30/mais!/21.html 2/3
05/09/2020 Folha de S.Paulo - À cata de bodes expiatórios - 30/6/1996

que conferir uma forma provocativa aos modos de pensamento e às


formas de crença que pertencem ao regime dominante de opinião. Se
diversos parlamentos tiveram de votar leis para proibir que se negasse
o extermínio, isso é por que o trâmite legal foi a única solução para
coibir a conversão exemplar dos modos de pensamento reinantes em
provocação anti-semita. O trivial do pensamento avançado é capaz a
todo momento de ser traduzido em versão "retardada".
"Classes esclarecidas, esclarecei-vos!", dizia Flaubert. Este é o
mandamento mais difícil de ser cumprido. Quem sai em busca do que
lhe está assegurado possuir? E por que submeter a exame as teorias
que avançam de vento em popa? Talvez, simplesmente, para não ter
mais necessidade de as fazer avançar.

Texto Anterior: MAIS VENDIDOS


Próximo Texto: Vida dos Mamonas estréia no ranking
Índice

Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/6/30/mais!/21.html 3/3

Você também pode gostar