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NELSON ASCHER

O jeans da intelectualidade
Categorias como "esquerda" e "direita" seriam usadas num mundo ideal somente enquanto
ajudassem a identificar e distinguir maneiras concretas de pensar e agir. Em nosso universo
imperfeito, porém, elas desempenham outras funções, como a terapêutica ou tranqüilizante
(há pessoas que se sentiriam órfãs sem a garantia de que estão do lado "certo") e a de
lançar anátemas (elas precisam caracterizar facilmente quem se encontra do lado "errado").
Vale dizer: ambos os termos têm menos a ver com sua acepção tradicional do que com a
necessidade de simplificar um quadro complexo, tornando-o digerível para gente que tem
mais o que fazer do que raciocinar por conta própria. Se, antes, lançar mão deles sinalizava
o começo do debate, evocá-los corresponde agora a seu encerramento. Tendo em vista que
a maioria dos "direitistas" foi assim rotulada pelos que se consideram esquerdistas (pois a
direita passou a ser toda a não-esquerda), a compreensão do binômio pressupõe entender
como estes se definem.
Surge aqui um labirinto de espelhos no qual não é difícil se perder porque, cada vez mais, a
esquerda se atribui, em qualquer situação, um papel de oposição perpétua e se define
menos por aquilo a que aspira do que pelo que declara combater. Caso se pergunte a um
partidário dela quais são suas causas, ele arrolará expressões prefixadas pelo "anti":
antiamericanismo, antiimperialismo, anti-sionismo, anti-racismo, anticapitalismo etc. Em
resumo, malgrado a esquerda atual prescindir de uma teologia e mesmo de uma teleologia,
seu âmago se compõe de uma demonologia. E o vínculo mais importante que mantém com
a antecessora clássica consiste na divisão da espécie inteira em dois campos: o do bem e o
do mal, o dos mocinhos e o dos bandidos. Militantes raivosos, aliás, a converteram numa
autêntica máquina de fabricar inimigos.
A esquerda clássica ainda ambicionava um mínimo de coerência, algo de que seus
herdeiros não podem ser acusados, e muitas opiniões destes (a respeito de ciência e
tecnologia, progresso material, paz e guerra, questões étnicas e religiosas) seriam
classificadas como reacionárias duas ou três gerações atrás. Ser de esquerda se reduz hoje
em dia a participar de uma massa amorfa que recorre a um amálgama mutável de opiniões
desconexas para erguer um Muro de Berlim metafórico que se interponha entre "nós" e
"eles".
Trata-se, portanto, não de adotar um programa político, enunciar metas desejáveis ou
aplicar um método cognitivo à realidade, mas, sim, de ingressar numa "tribo", seguir uma
moda, sentir-se bem, não ficar sozinho. Seus membros ou simpatizantes, desejando
participar de um grupo que lhes parece interessante, adotam as opiniões correntes de seus
integrantes. O que distingue a esquerda de agremiações semelhantes (um partido político
normal, uma torcida organizada, uma escola de samba, os punks, os GLS) é a crença
arraigada de que ela e o resto (em última instância homogêneo) do planeta estão
envolvidos num conflito nebuloso, mas nem por isso menos cósmico e apocalíptico.
Incidentalmente, quanto havia de futurista, de ficção científica, na utopia da esquerda deu
lugar, desde a contracultura dos anos 60, à nostalgia confusa e romântica de uma Idade de
Ouro perdida.
Ao fim e ao cabo, contudo, se, para minorias empenhadas e organizadas, o esquerdismo
serve de atalho rumo ao poder não democrático, ele, para o grosso dos seguidores e
"companheiros de viagem", desempenha sobretudo a função daquilo que Elias Canetti
batizou de "cristais de massa", permitindo a coalescência de agrupamentos que se
autodefinem por tais ou quais afinidades, estilos de vida, comportamentos, preconceitos.
Acatar-lhe os rótulos denota uma vontade de pertencer a seu círculo mágico de eleitos ou,
se nada, equivale a levá-los demasiado a sério.
Em determinadas rodas sociais, faixas etárias e profissões, pertencer à esquerda (o que se
traduz em papagaiar, sem discordância, as opiniões grupais) é obrigatório. Quase todos os
professores universitários e seus alunos, jornalistas, atores de cinema e TV, diretores
hollywoodianos, roqueiros que cantem em qualquer língua, astros pop em geral, nove entre
dez poetas, dramaturgos, romancistas, roteiristas e assim por diante chegaram (ou
aderiram) a consensos indiscutíveis sobre temas variados como a Guerra do Iraque, o
aquecimento global, a educação das crianças, a justiça penal e a social, sobre quem é vilão
e quem é herói no país e no mundo, sobre o consumo, a economia de mercado, a indústria
farmacêutica...
Tal consenso é, no seio da intelectualidade ocidental, tão amplo geral e irrestrito que pode
decorrer apenas de uma entre duas causas: ou Deus interveio pessoalmente e iluminou esse
pessoal com sua verdade, ou estamos perante uma moda que, de tão enraizada e difundida,
tornou-se uma segunda natureza, um reflexo incondicional. Não se sabe quão
profundamente esta "pegou" ou "pegará" no restante (99%) não-intelectual da humanidade.
Entre os membros das categorias acima, todavia, esse conjunto bastante improvável de
opiniões recebidas é hegemônico.
Quando não estamos dispostos a escolher roupas nem queremos ter de tomar decisões
similares, o que é que pegamos no armário? Qual traje liberta melhor seu usuário das
dúvidas e dilemas, exime-o da obrigação de optar e, ao mesmo tempo, lhe dá a sensação de
naturalidade informal, descontraída? A resposta é: uma calça velha, azul e desbotada. Se a
religião foi outrora apelidada de "o ópio do povo", o esquerdismo se transformou hoje em
dia no jeans da intelectualidade.

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