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Boletim Jurídico retirado do site do SINEPE RS- Texto indicado por Dr.

Jorge Müller

Inclusão de deficientes: questões jurídicas

Questão candente que tem sido posta às escolas privadas diz com a obrigatoriedade, ou
não, da matrícula do aluno portador de deficiência nas chamadas ‘classes comuns’ do
ensino regular.

Pais de alunos, alguns educadores e algumas autoridades públicas têm sustentado que a
Resolução nº 02/2001 do Conselho Nacional de Educação obriga a escola a aceitar todo
e qualquer aluno ‘especial’, devendo a escola estar preparada para isso. Aludem, ainda,
ao disposto no art. 8º da Lei nº 7.853/89, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras
de deficiência, onde foi estipulado ser “crime punível com reclusão” a recusa, “sem
justa causa”, de matrícula “por motivos derivados da deficiência do aluno interessado.”

A questão, contudo, é mais complexa. Demanda maior reflexão e requer, sobretudo,


visão sistêmica, ancorada no texto constitucional. Por partes.

A Constituição Federal de 1988 tem dispositivo específico para o tema: no inciso III de
seu artigo 208, diz, textualmente, que

“O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:


I - (...)

II - (...)

III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,


preferencialmente na rede regular de ensino;

(...)”
(sublinhamos)

Chama a atenção, desde logo, que o legislador constitucional não diz que este
atendimento também constitui dever da família e da sociedade, como se verifica no teor
do artigo 205 da CF/88 (que trata da educação lato sensu) e sim que tal atendimento
especializado constitui dever do Estado, i. é, do Poder Público.

Chama a atenção, também, que este atendimento, segundo o texto constitucional, não
constitui uma imposição de mão única e sim uma opção preferencial. Esta preferência,
por sua vez, poderá ser, em tese, interpretada de duas formas:

a) sendo possível, recomenda-se dar preferência à rede regular;

b) sendo possível, deve-se dar preferência à rede regular.


Seja na hipótese ‘a’, seja na hipótese ‘b’, há sempre um juízo prévio de possibilidade.
No caso da hipótese ‘a’, a escola teria a opção da recusa, porquanto se trata de uma
recomendação; no caso da hipótese ‘b’, desapareceria a opção, desde, é claro, que o
atendimento, ali, seja possível. O tema será retomado mais adiante.

Por último, chama a atenção que o destino preferencial do legislador constitucional é,


simplesmente, a ‘rede regular’ de ensino. Ora, as escolas especializadas integram a
‘rede regular’, por expressa determinação contida no art. 2º da referida Lei nº 7.853/89
(que trata do apoio aos deficientes). Logo, quando esse legislador refere ‘rede regular’
não está, necessariamente, remetendo às ‘classes comuns’ da rede regular. Em outras
palavras: o encaminhamento à ‘rede regular’, mesmo entendido como algo compulsório,
não implica encaminhamento às ‘classes comuns’ e sim às escolas de educação especial.
Não só porque elas integram a ‘rede regular’ e sim, também, porque, sendo
especializadas, presume-se que sejam mais adequadas para este atendimento.

E tanto é sólida a presunção que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDB


(Lei nº 9.394/96), em seu art. 60, destina apoio técnico e financeiro do Poder Público às
escolas especiais (sem fins lucrativos) “com atuação exclusiva em educação especial”.
Que, por óbvio, continuarão existindo. E com presumido amparo governamental. Logo,
se a inclusão fosse plena e totalmente direcionada às classes comuns, não haveria por
que mantê-las ou protegê-las.

Mas, como se observou acima, a questão é mais complexa. Exige compreensão


sistêmica do ordenamento jurídico. Isto porque a Constituição contém outras regras e,
sobretudo, outros princípios, destinados à sustentação de outros valores, de igual, senão
maior, relevo. Em seu artigo 206, proclama a ‘liberdade de aprender e de ensinar’
(inciso II), como também o ‘pluralismo pedagógico’ (inciso III). E até mesmo ao
prescrever “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (inciso I),
abre espaço para um enfoque alternativo do princípio da isonomia: o acesso e
permanência, nas classes comuns, do deficiente que não esteja apto a freqüentá-las de
forma proveitosa, representaria uma discriminação às avessas, em relação aos demais
alunos, que assim restariam prejudicados.

Se verdadeiramente há liberdade de ensino e pluralismo pedagógico, como suprimir a


opção de não se dedicar a portadores de deficiência ? Mormente quando se verifica que
o atendimento especializado é, basicamernte, um ‘dever do Estado’ (CF/88, art. 208) ?
Comando, este, reproduzido tanto na LDB (art. 4º), como também no Estatuto da
Criança e do Adolescente/ECA (art. 54, III) ?

Por outro lado, cabe relembrar que “o ensino é livre à iniciativa privada” (CF/88, art.
209), atendida, para o que ora interessa, a condição do “cumprimento das normas gerais
da educação nacional” (inciso I do mesmo art. 209). Pergunta-se, então: qual a ‘norma
geral da educação nacional’ que impõe a matrícula do deficiente nas classes comuns ?

Não há! A lei especial para o setor, que é a LDB, preconiza ser ‘preferível’, mas não
compulsório. Assim também o ECA, que, de resto, não é lei especial para o setor, como
o é a LDB. A lei que, aparentemente, diverge é a referida Lei nº 7.583/89, ao
criminalizar a recusa de matrícula ‘sem justa causa’. Mas a divergência é aparente,
porque o âmbito normativo ali aponta (art. 2º, inciso I, letra ‘f’) para os ‘cursos
regulares’ da ‘educação especial’ (preconizando, inclusive, a inserção da educação
especial no ensino regular), que não se confundem com as ‘classes comuns’. E, de resto,
a criminalização somente exsurge na falta de ‘justa causa’, sendo perfeitamente
plausível invocar como tal a não-instrumentação da escola para isso, como também a
inadaptação do deficiente, seja em relação às classes especiais, seja (mais ainda) em
relação às classes comuns.

A rigor, não há colisão de regras, nem de princípios, no plano da Constituição. Isto


porque a tese da obrigatoriedade da matrícula nas classes comuns não tem respaldo
constitucional. Assim também no plano da legislação ordinária, valendo observar, com
o perdão da obviedade, que uma resolução do Conselho Nacional de Educação, ainda
que represente exercício supletivo de função normativa, não se alça ao plano
hierárquico da legislação ordinária.

Colisão entre valores e/ou princípios

Mas, digamos que alguém queira, ainda assim, vislumbrar colisão entre valores e/ou
princípios, ou, ainda, entre regras. Como se procede, no sistema jurídico, para solvê-la ?

Cumpre, antes, fazer a distinção entre regras e princípios. Nas palavras de CELSO
RIBEIRO BASTOS (’Hermenêutica e Interpretação Constitucional, IBDC, 2ª ed. 1999),

“...existe um consenso entre os estudiosos do Direito de que em todo sistema jurídico


vigora um conjunto de idéias normativas que se caracteriza por serem as mais abstratas
do ordenamento. São suas idéias fundamentais informadoras... São, pois, os princípios
constitucionais, denominação tradicionalmente utilizada para designar essas
realidades...”
(pág. 132)

“Os princípios constitucionais são metas que podem e devem entrar a qualquer
momento no discurso legitimador do Direito. Aos princípios corresponde a missão de
orientar e coordenar os diferentes dados e fatores que concorrem na interpretação
constitucional.”

(pág. 136)

Já no tocante às regras, pode-se conceituá-las como sendo normas com conteúdo


específico, mais restrito ou limitado, que devem ser observadas tal como nelas se
dispõe, nem mais nem menos. Segundo expõe ALEXY (‘Theorie der Grundrechte’,
apud GILMAR FERREIRA MENDES, ‘Direitos Fundamentais e Controle de
Constitucionaliodade’m Ed. Saraiva, 3ª ed., 2004, pág. 26),

“Regras contêm, portanto, determinações no contexto do fático e juridicamente


possível. São postulados definitivos (definitive Gebote). A forma de aplicação das
regras não é a ponderação, mas a subsunção.”

Havendo, pois, conflito entre regras, há de se discernir qual delas é aplicável, com a
exclusão da(s) outra(s). Havendo, porém, conflito entre princípios ou entre valores, há
de se buscar a sua harmonização, para que se preserve a unidade da Constituição. Para
isso, pondera-se o peso relativo de cada norma e/ou princípio em relação ao caso
concreto sob exame.

Primado da Constituição

Antes de tudo, porém, é preciso insistir em que a interpretação se faça de cima para
baixo e não de baixo para cima. Vale dizer: interpretam-se as normas partindo da
Constituição, i. é, do ponto mais alto da hierarquia normativa. Não cabe interpretar a
Constituição com base no que dispõem as normas infraconstitucionais e sim cabe
dimensionar a validade e o alcance destas últimas com base nos vetores constitucionais.
Até mesmo quando o texto constitucional contém reserva legal, ou seja, remete a sua
regulação à lei ordinária, admitindo, pois, restrição ou limitação por lei ordinária, há de
se dar prevalência aos valores ou princípios contidos na Constituição, porquanto até
mesmo esta restrição ou limitação admitida pelo legislador constitucional há de ser
pautada por tais valores e princípios. Há, portanto, uma clara supremacia da
Constituição. Nas palavras de CELSO RIBEIRO BASTOS (op. cit., pág. 102):

“O postulado da supremacia da Constituição repele todo o tipo de interpretação que


venha de baixo, é dizer, repele toda a tentativa de interpretar a Constituição a partir da
lei. O que cumpre ser feito é sempre o contrário, vale dizer, procede-se à interpretação
do ordenamento jurídico a partir da Constituição.”

Seguindo esta linha de razonamento, não cabe interpretar o disposto no inciso III do
artigo 208 da CF/88 (atendimento ao deficiente preferencialmente na rede regular)
segundo os parâmetros da Resolução CNE/CEB nº 02/2001 ou segundo a equivocada
leitura da Lei nº 7.853/89, que nela vislumbra imposição de plena inclusão nas classes
comuns, e sim cabe extrair da Constituição o fundamento de validade/invalidade destas
normas infraconstitucionais. No caso, para dizer que a referida Resolução conflita com a
Constituição ― e também com a LDB e com o ECA ― e que a Lei nº 7.853/89, neste
particular, deverá ser interpretada em consonância com o texto constitucional, sob pena
de ficar igualmente despida de fundamento de validade.

Unidade da Constituição

Não somente se adota a premissa da supremacia da Constituição como também a da


unidade da Constituição. Como bem anota o insigne jurista português J.J.GOMES
CANOTILHO (apud CELSO RIBEIRO BASTOS, op. cit., pág. 102), este postulado

“obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar


harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a
concretizar”

É sabido que as constituições, geralmente, são produto de conciliações de interesses


sociais conflitantes, obtidas em momentos históricos de relativo ajuste desses interesses.
Não há, pois, como evitar, muitas vezes, a invocação de regras e/ou de princípios
colidentes, nela contidos e dela “extraíveis” por um viés particularista, fazendo-se, pois,
necessária uma visão de conjunto do texto constitucional, que busque harmonizar as
possíveis colisões. São esclarecedoras, a propósito, as colocações de CELSO RIBEIRO
BASTOS (op. cit., pág. 104):
“Pode-se dizer, pois, que a Constituição não é um conglomerado caótico e
desestruturado de normas. Pelo contrário, não obstante apresentarem o mesmo grau
hierárquico, é possível identificar certas normas que, na medida em que perdem o seu
caráter de precisão de conteúdo, ascendem para uma posição que lhes permite
sobrepairar uma área muito mais ampla. O que elas perdem, pois, em carga normativa,
ganham como força valorativa a espraiar-se por um sem-número de outras normas,
inclusive da própria Carta Magna, sem que com isso se possam considerar como de
escalão superior. No fundo, tanto são normas as que encerram princípios quanto as que
encerram preceitos, podendo-se dizer que é desse entrelaçamento que o todo
constitucional sai fortalecido (e nunca prejudicado, com o afastamento de qualquer de
suas regras). O reflexo mais imediato é o caráter de sistema que os princípios imprimem
ao corpo constitucional.

Cada norma subsume-se e complementa-se com princípios constitucionais, neles


procurando encontrar seu perfil último.”

A técnica da ponderação

Portanto, havendo conflito, há de se buscar uma técnica interpretativa, amparada nos


postulados da hermenêutica, que assegure esta unidade da Constituição. Ainda que se
queira considerar esta pretensa unidade como uma ficção operacional, é preciso buscar a
máxima efetividade possível de cada norma constitucional, sem com isso desfalecer ou
anular as outras normas constitucionais que se lhe possam contrapor. Busca-se,
portanto, harmonizar eventual colisão, para que dessa harmonização resulte preservada,
tanto quanto possível, a efetividade dos preceitos.

É preciso, contudo, distinguir se o conflito se estabelece entre valores e/ou princípios ou


entre estes e simples regras. Se o conflito é entre valores ou entre princípios, cumpre
harmonizá-los, ponderando a maior ou menor amplitude de incidência de um e outro, à
luz das circunstâncias concretas do caso em exame. Se o conflito é entre, de um lado,
valores ou princípios, e, de outro, regras, i. é, normas eminentemente preceptivas, faz-se
a chamada ‘subsunção’ das regras aos valores e/ou princípios que as enformam.

De assinalar, também, que os conflitos podem ser apenas aparentes, como bem observa
GILMAR FERREIRA MENDES (fazendo alusão a WOLFGANG RÜFNER), sempre
“...que as práticas controvertidas desbordam da proteção oferecida pelo direito
fundamental em que se pretende buscar abrigo” (op. cit., pág. 77). E leciona o mesmo
autor (ora Ministro do STF), que “A precisa identificação do âmbito de proteção do
direito indica se determinada conduta se acha protegida ou não” (idem).

O processo de ponderação é complexo. Envolve diversos procedimentos, a maioria dos


quais sintonizados com as regras clássicas de hermenêutica. Segundo se depreende das
cortes constitucionais e, no Brasil, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não
há um padrão geral de proeminência de determinados valores ou princípios e sim um
exame acurado das especificidades de cada caso, para que, em função delas, se
determinem os pesos relativos dos valores e/ou princípios colidentes. Segundo se colhe
da mesma obra de GILMAR FERREIRA MENDES (pág. 94),

“Para Alexy, a ponderação realiza-se em três planos. No primeiro, há de se definir a


intensidade da intervenção. No segundo, trata-se de saber a importância dos
fundamentos justificadores da intervenção. No terceiro plano, então se realiza a
ponderação em sentido específico e estrito. Alexy enfatiza que o postulado da
proporcionalidade em sentido estrito pode ser formulado como uma “lei de ponderação”
segundo a qual “quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito
fundamental, mais significativos ou relevantes hão de ser os fundamentos justificadores
dessa intervenção.”

A intervenção legiferante e judicial que visa a dar efetividade a uma norma


constitucional deverá ser dimensionada de forma tal que se possa se apresentar como
sendo: a) adequada para atingir o resultado desejado; b) a “mais suave” dentre os meios
disponíveis para que se chegue ao mesmo resultado; c) a mais vantajosa, no sentido de
promoção de certos valores com a menor desconsideração de outros valores igualmente
contemplados, explícita ou implicitamente, no texto constitucional. Este último aspecto,
assinalado sob a letra ‘c’, corresponde, na verdade, ao princípio da proporcionalidade
em sentido estrito.

Tendo presente as observações doutrinárias e os parâmetros de ponderação já aludidos,


cabe, então, indagar, para o que ora nos interessa quanto ao tema da obrigatoriedade ou
não da inclusão nas classes comuns do ensino regular:

1º) há colisão entre valores/princípios ?

2º) há discrepância entre valores/princípios e regras ?

3º) a CF/88 impõe inclusão plena ?

4º) a CF/88 estipula reserva legal ?

5º) a CF/88 estipula reserva legal específica ?

Novamente, por partes.

Qual o princípio ou valor que se pode extrair da norma do inciso III do artigo 208 da
Constituição ? Sem dúvida, o do atendimento educacional especializado, que pode ser
efetivado de mais de uma maneira, sendo “preferível” a da inclusão no ensino regular.
Nessa norma não está dito que a preferência é compulsória e, ainda que se quisesse
interpretá-la assim, haveria que admitir que a compulsão estaria direcionada, tão
somente, ao ensino regular, integrado pelas escolas de educação especial, e não,
necessariamente, às classes comuns do ensino regular. E sempre sob a condição da
possibilidade.

Não há, pois, conflito direto, seja com o princípio da liberdade de ensino (CF/88, art.
206, II), seja com o princípio do pluralismo pedagógico (CF/88, art. 208, III). E nem
mesmo conflito indireto, na medida em que a CF/88, como visto, não erige a inclusão
como obrigatória e sim como preferencial. E a “preferencialidade”, como também já se
viu, se destina ao ensino regular, não às classes comuns do ensino regular.

Poderia haver, sim, conflito entre os princípios acima aludidos com regra de legislação
ordinária que efetivamente determinasse tal inclusão, em plenitude, nas classes comuns
do ensino regular. Mas tal regra, de momento, não existe, o que leva a concluir que as
escolas que porventura recusem a matrícula de deficientes nas classes comuns não estão
infringindo nenhuma das ‘normais gerais da educação nacional’ a que alude o inciso I
do artigo 209 da CF/88.

Há, por enquanto, um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional, que se propõe a
ser o ‘Estatuto do Deficiente’, no qual, sim, há regra assegurando à família ou ao
representante legal do aluno com deficiência o direito potestativo (?) de opção pela
freqüência às classes comuns da rede comum de ensino. Se for aprovada e promulgada,
haverá, sim, conflito. Mas será um conflito de regra de lei ordinária com regra
constitucional e, mais do que isto, com princípios da Constituição. A solução, para isto,
é simples, porque não se trata da colisão entre direitos fundamentais
constitucionalmente assegurados (que, se porventura houvesse, conduziria à
harmonização por via de ponderação) e sim da colisão entre norma de hierarquia
inferior com normas de hierarquia superior, que se resolve pela declaração de
inconstitucionalidade ou, se possível, pela via da conformação da regra inferior ao texto
constitucional.

Quanto à existência de reserva legal (i. é, a remissão de eventuais restrições à regulação


por lei infraconstitucional) por parte do legislador constitucional, cabe notar que, a
rigor, não há reserva legal, nem simples nem qualificada. Há, isto sim, uma restrição
que se contém no próprio texto da norma constitucional, pois o inciso III do artigo 208,
ao preconizar atendimento educacional especializado, especifica que se trata de uma
preferência pela rede regular, no que já fornece, ela própria, a condição e o meio
(preferência e rede regular) de implementação da norma.

A inexistência de reserva permite sustentar que o legislador infraconstitucional não


pode inovar, introduzindo a inclusão compulsória plena.

A Ordem Econômica

Há um outro viés para a análise da questão: se as escolas privadas fossem obrigadas a


matricular os deficientes nas classes comuns, teriam de aparelhar-se para isto. Teriam de
fazer vultosos investimentos, talvez desnecessários (caso não houvesse matriculandos
deficientes ou se estes fossem em número muito reduzido) ou insuficientes (caso a
demanda fosse muito além de sua estimativa). Teriam enorme dificuldade para fixar
valores de anuidade ou semestralidade. Se tais valores ficassem muito altos, perderiam
alunos. Se ficassem muito baixos, restariam inviabilizadas. E em qualquer hipótese,
arcariam com expressivo sobrecusto, que poderia comprometer o seu equilíbrio
econômico-financeiro.

Este equilíbrio econômico-financeiro, conquanto tenha sido normatizado, de maneira


explícita, tão somente para o que concerne aos contratos atinentes à Administração
Pública, notadamente no caso das concessões, constitui, inegavelmente, um princípio
basilar do sistema econômico consagrado no texto constitucional, ou seja, o chamado
sistema capitalista, baseado na livre iniciativa e na sustentabilidade privada. Com o
perdão de assertiva tão acaciana, sem equilíbrio econômico-financeiro, as empresas vão
à breca, pondo em risco a ordem econômica.

Sendo possível extrair do texto constitucional a vigência abrangente deste princípio,


cumpre zelar para que o mesmo seja observado. Como fazê-lo ? Em tese, haveria três
possibilidades:

1ª) o Poder Público paga a conta; não só porque ele estaria deslocando para o setor
privado um ônus que é seu (“dever do Estado”, dizem a CF/88, a LDB e o ECA) mas
porque estaria protagonizando a ruptura do equilíbrio econômico-financeiro;

2ª) os pais ou responsáveis legais pelo deficiente (no caso do ensino superior, o próprio
deficiente, se for “sui juris”) pagam, individualizadamente ou não, o sobrecusto
representado pelo atendimento especial;

3ª) o sobrecusto é diluído no valor da anuidade/semestralidade, de forma a “socializar”


o sobrecusto entre os tomadores do serviço.

A primeira opção, na prática, é pouco exeqüível, não só porque o Poder Público, via de
regra, não tem dinheiro e é mau pagador, mas porque, no plano jurídico, há
impedimento, estribado na própria Constituição (art. 213), para a colocação de dinheiro
público em escolas privadas, salvo as não-lucrativas. A menos que o Poder Público
criasse um fundo compensatório do sobrecusto (quiçá até mesmo uma “CPMF da
educação”, que despertaria terríveis resistências), já que a preservação do referido
equilíbrio, sendo um vetor estrutural do sistema, poderia apresentar-se como algo do
maior interesse público.

A segunda opção seria juridicamente viável, mas iria, sem dúvida, gerar enorme
contencioso, porque, certamente, muitos iriam invocar o direito subjetivo público à
educação ou até mesmo o princípio da isonomia para pretender fosse implantada a
terceira opção, com as seqüelas de impontualidade e inadimplência facilmente
cogitáveis, inviabilizando, também, a execução do orçamento das escolas privadas.

A terceira opção, já se viu, seria intrinsecamente desiquilibradora, além de representar


um ônus, no mínimo, ilegítimo, para os pais/responsáveis de alunos não-deficientes.

A reserva do possível

Cabe aqui referir que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já consolidou o


critério de que os direitos fundamentais enquadrados como sendo de 2ª geração e, mais
ainda, os de 3ª geração, submetem-se à chamada ”reserva do possível”.

Relembrando: são considerados de 1ª geração os direitos que plasmaram as liberdades


civis e políticas, fruto das conquistas históricas que se condensaram a partir do
Renascimento, da Reforma Protestante, da ‘Revolução Inglesa’ do século XVII e das
revoluções ‘Americana’ e ‘Francesa’ do século XVIII.

São considerados de 2ª geração os chamados ‘direitos sociais’, que se plasmaram ao


longo do século XIX e desembocaram, com especial relevo histórico, na Constituição de
Weimar, na Alemanha pré-nazista, direitos, estes, que se generalizaram por todo o
mundo ocidentalizado. São direitos cujo foco já não é o resguardo do cidadão contra
eventuais abusos do poder do Estado e sim a proteção econômica e social do cidadão,
por parte do Estado.
Por fim, são considerados de 3ª geração os direitos mais modernos nucleados em torno
do tema da solidariedade, em cuja latitude se incluem, inclusive, os de perfil sócio-
ambiental, e que se desbordam pelas áreas da saúde, educação, assistência social, etc.

Pois bem: os de 1ª geração implicam, em princípio, exigibilidade concreta imediata. Já


os de 2ª geração e, sobretudo, os de 3ª geração, passam por um processo de ponderação,
para que se delimitem os âmbitos de concretização que as circunstâncias permitem
entrever. Vale trazer a lume as palavras do conceituado jurista ROBERT ALEXY,
proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em 1998, transcritas na
já citada obra de GILMAR MENDES FERREIRA (pág. 27):

“Para uma Constituição como a brasileira, que formulou tantos princípios sociais
generosos, surge, com base nesse fundamento, uma pressão forte para, desde logo, se
dizer que as normas que não possam ser aplicáveis sejam declaradas como não
vinculantes, isto é, como simples normas programáticas. A teoria dos princípios pode,
em contrapartida, levar a sério a constituição sem exigir o impossível. Ela pode declarar
que normas não executáveis são princípios que, em face de outros princípios, hão de
passar por um processo de ponderação. E assim, ‘sob a reserva do possível’, examinar
aquilo que razoavelmente se pode reclamar e pretender da sociedade.”

A reserva do possível será invocável como enfoque alternativo para eventual litígio
porventura surgido da aplicação de norma que estabeleça matrícula compulsória nas
classes comuns das escolas privadas. Alternativo porque, em primeiro lugar, será o caso
de sustentar a inconstitucionalidade de tal norma, por colisão com regras e princípios
constitucionais; em segundo lugar, caso não seja declarada tal inconstitucionalidade, ter-
se-á o caminho da limitação do alcance executório, por esta via da ‘reserva do possível’.

E para uso imediato, embora tecnicamente menos apropriado, tem-se o argumento da


‘reserva do possível’ também para a hipótese de invocação, por parte da escola, da
impossibilidade da matrícula por inadaptação do deficiente ou desaparelhamento
humano e material da escola.

Conclusões

À vista de todas estas considerações, pode-se concluir que:

I
A inclusão do portador de deficiência é um objetivo de largo espectro, como também o
é a inclusão dos demais destinatários da assistência social, nominados no artigo 203 da
CF/88; inclui-se no chamado processo de plena “cidadanização” de todos os
necessitandos (carentes ou não), para que se avance na implementação dos ‘objetivos
fundamentais’ da República (CF/88, art. 3º);

II
Tal inclusão, todavia, não pode ser feita de forma simplista e atrabiliária, razão pela
qual hão de ser devidamente sopesadas e ponderadas as implicações sistêmicas das
interpretações jurídicas, no escopo maior de assegurar o primado e a unidade da
Constituição;
III
À luz destes parâmetros, é de convir que a CF/88 não fundamenta a pretensa validade de
quaisquer regras jurídicas ou imposições judiciais no sentido da plena inclusão nas
classes comuns do ensino regular;

IV
A legislação infraconstitucional, exceção feita à Resolução CNE/CEB nº 02/2001 (que,
neste contexto, é uma regra menor, que, de resto, usurpa competência do Congresso
Nacional), não impõe tal inclusão ― nem poderia fazê-lo, face ao disposto na
Constituição ― devendo ser interpretada como norma eminentemente programática ou
de carga principial ou principiológica reduzida, sempre à luz da ‘reserva do possível’;

V
No caso da escola privada, cuja atividade, conforme já decidiu o STF, está inserida na
esfera da Ordem Econômica e Financeira (Título VII da CF/88), há de se preservar a
opção da recusa motivada e há de se condicionar qualquer eventual compulsoriedade
futura (que demandaria alteração do texto constitucional) à previsão de mecanismo
compensatório capaz de assegurar o equilíbrio econômico financeiro.

* Coordenador da Área Jurídica do SINEPE/RS

Retirado do site
http://www.sinepers.org.br/core.php?
snippet=juridico_boletim&registro_juridico=394&idPai=87&id=394&idMontaMenu=8
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