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Jorge Müller
Questão candente que tem sido posta às escolas privadas diz com a obrigatoriedade, ou
não, da matrícula do aluno portador de deficiência nas chamadas ‘classes comuns’ do
ensino regular.
Pais de alunos, alguns educadores e algumas autoridades públicas têm sustentado que a
Resolução nº 02/2001 do Conselho Nacional de Educação obriga a escola a aceitar todo
e qualquer aluno ‘especial’, devendo a escola estar preparada para isso. Aludem, ainda,
ao disposto no art. 8º da Lei nº 7.853/89, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras
de deficiência, onde foi estipulado ser “crime punível com reclusão” a recusa, “sem
justa causa”, de matrícula “por motivos derivados da deficiência do aluno interessado.”
A Constituição Federal de 1988 tem dispositivo específico para o tema: no inciso III de
seu artigo 208, diz, textualmente, que
II - (...)
(...)”
(sublinhamos)
Chama a atenção, desde logo, que o legislador constitucional não diz que este
atendimento também constitui dever da família e da sociedade, como se verifica no teor
do artigo 205 da CF/88 (que trata da educação lato sensu) e sim que tal atendimento
especializado constitui dever do Estado, i. é, do Poder Público.
Chama a atenção, também, que este atendimento, segundo o texto constitucional, não
constitui uma imposição de mão única e sim uma opção preferencial. Esta preferência,
por sua vez, poderá ser, em tese, interpretada de duas formas:
Por outro lado, cabe relembrar que “o ensino é livre à iniciativa privada” (CF/88, art.
209), atendida, para o que ora interessa, a condição do “cumprimento das normas gerais
da educação nacional” (inciso I do mesmo art. 209). Pergunta-se, então: qual a ‘norma
geral da educação nacional’ que impõe a matrícula do deficiente nas classes comuns ?
Não há! A lei especial para o setor, que é a LDB, preconiza ser ‘preferível’, mas não
compulsório. Assim também o ECA, que, de resto, não é lei especial para o setor, como
o é a LDB. A lei que, aparentemente, diverge é a referida Lei nº 7.583/89, ao
criminalizar a recusa de matrícula ‘sem justa causa’. Mas a divergência é aparente,
porque o âmbito normativo ali aponta (art. 2º, inciso I, letra ‘f’) para os ‘cursos
regulares’ da ‘educação especial’ (preconizando, inclusive, a inserção da educação
especial no ensino regular), que não se confundem com as ‘classes comuns’. E, de resto,
a criminalização somente exsurge na falta de ‘justa causa’, sendo perfeitamente
plausível invocar como tal a não-instrumentação da escola para isso, como também a
inadaptação do deficiente, seja em relação às classes especiais, seja (mais ainda) em
relação às classes comuns.
Mas, digamos que alguém queira, ainda assim, vislumbrar colisão entre valores e/ou
princípios, ou, ainda, entre regras. Como se procede, no sistema jurídico, para solvê-la ?
Cumpre, antes, fazer a distinção entre regras e princípios. Nas palavras de CELSO
RIBEIRO BASTOS (’Hermenêutica e Interpretação Constitucional, IBDC, 2ª ed. 1999),
“Os princípios constitucionais são metas que podem e devem entrar a qualquer
momento no discurso legitimador do Direito. Aos princípios corresponde a missão de
orientar e coordenar os diferentes dados e fatores que concorrem na interpretação
constitucional.”
(pág. 136)
Havendo, pois, conflito entre regras, há de se discernir qual delas é aplicável, com a
exclusão da(s) outra(s). Havendo, porém, conflito entre princípios ou entre valores, há
de se buscar a sua harmonização, para que se preserve a unidade da Constituição. Para
isso, pondera-se o peso relativo de cada norma e/ou princípio em relação ao caso
concreto sob exame.
Primado da Constituição
Antes de tudo, porém, é preciso insistir em que a interpretação se faça de cima para
baixo e não de baixo para cima. Vale dizer: interpretam-se as normas partindo da
Constituição, i. é, do ponto mais alto da hierarquia normativa. Não cabe interpretar a
Constituição com base no que dispõem as normas infraconstitucionais e sim cabe
dimensionar a validade e o alcance destas últimas com base nos vetores constitucionais.
Até mesmo quando o texto constitucional contém reserva legal, ou seja, remete a sua
regulação à lei ordinária, admitindo, pois, restrição ou limitação por lei ordinária, há de
se dar prevalência aos valores ou princípios contidos na Constituição, porquanto até
mesmo esta restrição ou limitação admitida pelo legislador constitucional há de ser
pautada por tais valores e princípios. Há, portanto, uma clara supremacia da
Constituição. Nas palavras de CELSO RIBEIRO BASTOS (op. cit., pág. 102):
Seguindo esta linha de razonamento, não cabe interpretar o disposto no inciso III do
artigo 208 da CF/88 (atendimento ao deficiente preferencialmente na rede regular)
segundo os parâmetros da Resolução CNE/CEB nº 02/2001 ou segundo a equivocada
leitura da Lei nº 7.853/89, que nela vislumbra imposição de plena inclusão nas classes
comuns, e sim cabe extrair da Constituição o fundamento de validade/invalidade destas
normas infraconstitucionais. No caso, para dizer que a referida Resolução conflita com a
Constituição ― e também com a LDB e com o ECA ― e que a Lei nº 7.853/89, neste
particular, deverá ser interpretada em consonância com o texto constitucional, sob pena
de ficar igualmente despida de fundamento de validade.
Unidade da Constituição
A técnica da ponderação
De assinalar, também, que os conflitos podem ser apenas aparentes, como bem observa
GILMAR FERREIRA MENDES (fazendo alusão a WOLFGANG RÜFNER), sempre
“...que as práticas controvertidas desbordam da proteção oferecida pelo direito
fundamental em que se pretende buscar abrigo” (op. cit., pág. 77). E leciona o mesmo
autor (ora Ministro do STF), que “A precisa identificação do âmbito de proteção do
direito indica se determinada conduta se acha protegida ou não” (idem).
Qual o princípio ou valor que se pode extrair da norma do inciso III do artigo 208 da
Constituição ? Sem dúvida, o do atendimento educacional especializado, que pode ser
efetivado de mais de uma maneira, sendo “preferível” a da inclusão no ensino regular.
Nessa norma não está dito que a preferência é compulsória e, ainda que se quisesse
interpretá-la assim, haveria que admitir que a compulsão estaria direcionada, tão
somente, ao ensino regular, integrado pelas escolas de educação especial, e não,
necessariamente, às classes comuns do ensino regular. E sempre sob a condição da
possibilidade.
Não há, pois, conflito direto, seja com o princípio da liberdade de ensino (CF/88, art.
206, II), seja com o princípio do pluralismo pedagógico (CF/88, art. 208, III). E nem
mesmo conflito indireto, na medida em que a CF/88, como visto, não erige a inclusão
como obrigatória e sim como preferencial. E a “preferencialidade”, como também já se
viu, se destina ao ensino regular, não às classes comuns do ensino regular.
Poderia haver, sim, conflito entre os princípios acima aludidos com regra de legislação
ordinária que efetivamente determinasse tal inclusão, em plenitude, nas classes comuns
do ensino regular. Mas tal regra, de momento, não existe, o que leva a concluir que as
escolas que porventura recusem a matrícula de deficientes nas classes comuns não estão
infringindo nenhuma das ‘normais gerais da educação nacional’ a que alude o inciso I
do artigo 209 da CF/88.
Há, por enquanto, um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional, que se propõe a
ser o ‘Estatuto do Deficiente’, no qual, sim, há regra assegurando à família ou ao
representante legal do aluno com deficiência o direito potestativo (?) de opção pela
freqüência às classes comuns da rede comum de ensino. Se for aprovada e promulgada,
haverá, sim, conflito. Mas será um conflito de regra de lei ordinária com regra
constitucional e, mais do que isto, com princípios da Constituição. A solução, para isto,
é simples, porque não se trata da colisão entre direitos fundamentais
constitucionalmente assegurados (que, se porventura houvesse, conduziria à
harmonização por via de ponderação) e sim da colisão entre norma de hierarquia
inferior com normas de hierarquia superior, que se resolve pela declaração de
inconstitucionalidade ou, se possível, pela via da conformação da regra inferior ao texto
constitucional.
A Ordem Econômica
1ª) o Poder Público paga a conta; não só porque ele estaria deslocando para o setor
privado um ônus que é seu (“dever do Estado”, dizem a CF/88, a LDB e o ECA) mas
porque estaria protagonizando a ruptura do equilíbrio econômico-financeiro;
2ª) os pais ou responsáveis legais pelo deficiente (no caso do ensino superior, o próprio
deficiente, se for “sui juris”) pagam, individualizadamente ou não, o sobrecusto
representado pelo atendimento especial;
A primeira opção, na prática, é pouco exeqüível, não só porque o Poder Público, via de
regra, não tem dinheiro e é mau pagador, mas porque, no plano jurídico, há
impedimento, estribado na própria Constituição (art. 213), para a colocação de dinheiro
público em escolas privadas, salvo as não-lucrativas. A menos que o Poder Público
criasse um fundo compensatório do sobrecusto (quiçá até mesmo uma “CPMF da
educação”, que despertaria terríveis resistências), já que a preservação do referido
equilíbrio, sendo um vetor estrutural do sistema, poderia apresentar-se como algo do
maior interesse público.
A segunda opção seria juridicamente viável, mas iria, sem dúvida, gerar enorme
contencioso, porque, certamente, muitos iriam invocar o direito subjetivo público à
educação ou até mesmo o princípio da isonomia para pretender fosse implantada a
terceira opção, com as seqüelas de impontualidade e inadimplência facilmente
cogitáveis, inviabilizando, também, a execução do orçamento das escolas privadas.
A reserva do possível
“Para uma Constituição como a brasileira, que formulou tantos princípios sociais
generosos, surge, com base nesse fundamento, uma pressão forte para, desde logo, se
dizer que as normas que não possam ser aplicáveis sejam declaradas como não
vinculantes, isto é, como simples normas programáticas. A teoria dos princípios pode,
em contrapartida, levar a sério a constituição sem exigir o impossível. Ela pode declarar
que normas não executáveis são princípios que, em face de outros princípios, hão de
passar por um processo de ponderação. E assim, ‘sob a reserva do possível’, examinar
aquilo que razoavelmente se pode reclamar e pretender da sociedade.”
A reserva do possível será invocável como enfoque alternativo para eventual litígio
porventura surgido da aplicação de norma que estabeleça matrícula compulsória nas
classes comuns das escolas privadas. Alternativo porque, em primeiro lugar, será o caso
de sustentar a inconstitucionalidade de tal norma, por colisão com regras e princípios
constitucionais; em segundo lugar, caso não seja declarada tal inconstitucionalidade, ter-
se-á o caminho da limitação do alcance executório, por esta via da ‘reserva do possível’.
Conclusões
I
A inclusão do portador de deficiência é um objetivo de largo espectro, como também o
é a inclusão dos demais destinatários da assistência social, nominados no artigo 203 da
CF/88; inclui-se no chamado processo de plena “cidadanização” de todos os
necessitandos (carentes ou não), para que se avance na implementação dos ‘objetivos
fundamentais’ da República (CF/88, art. 3º);
II
Tal inclusão, todavia, não pode ser feita de forma simplista e atrabiliária, razão pela
qual hão de ser devidamente sopesadas e ponderadas as implicações sistêmicas das
interpretações jurídicas, no escopo maior de assegurar o primado e a unidade da
Constituição;
III
À luz destes parâmetros, é de convir que a CF/88 não fundamenta a pretensa validade de
quaisquer regras jurídicas ou imposições judiciais no sentido da plena inclusão nas
classes comuns do ensino regular;
IV
A legislação infraconstitucional, exceção feita à Resolução CNE/CEB nº 02/2001 (que,
neste contexto, é uma regra menor, que, de resto, usurpa competência do Congresso
Nacional), não impõe tal inclusão ― nem poderia fazê-lo, face ao disposto na
Constituição ― devendo ser interpretada como norma eminentemente programática ou
de carga principial ou principiológica reduzida, sempre à luz da ‘reserva do possível’;
V
No caso da escola privada, cuja atividade, conforme já decidiu o STF, está inserida na
esfera da Ordem Econômica e Financeira (Título VII da CF/88), há de se preservar a
opção da recusa motivada e há de se condicionar qualquer eventual compulsoriedade
futura (que demandaria alteração do texto constitucional) à previsão de mecanismo
compensatório capaz de assegurar o equilíbrio econômico financeiro.
Retirado do site
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