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Educação e Inclusão social:

desafios para as práticas pedagógicas1


Vera Maria Candau
PUC-Rio
2006

Introdução

Estamos iniciando as atividades do XIII ENDIPE- Encontro Nacional de Didática e Prática


de Ensino. São vinte e quatro anos de uma trajetória de progressiva afirmação e desenvolvimento.
Hoje o ENDIPE se constitui em um dos principais espaços acadêmicos e sociais da área de
educação. Não pode ser reduzido unicamente a um evento que se realiza a cada dois anos. É
possível afirmar que apresenta elementos que permitem que possa ser reconhecido, pelo menos em
caráter germinal, como um movimento educativo amplo que congrega diferentes profissionais da
educação e pesquisadores, vinculados aos diferentes níveis e modalidades da educação brasileira.
Um movimento plural e democrático que considero poder ser situado na perspectiva em que
Maria da Glória Gohn (2005) caracteriza os novos movimentos sociais:
O movimento social é expressão máxima do sujeito coletivo em ação. Este sujeito só se
realiza no coletivo, interagindo com o outro, trocando e confrontando subjetividades,
num processo de intersubjetividade. Os sujeitos individuais têm seus pertencimentos,
suas experiências vivenciadas e seus projetos - que não são de ordem pessoal no
sentido intimista de sua personalidade. São requerimentos de sua existência como ser
humano - gênero, raça, língua, nação, religião, valores e tradições herdadas e
adquiridas, etc. Quando confrontados uns com os outros, quando relacionados por
redes solidárias ou de pertencimento cultural, estes sujeitos individuais constroem o
sujeito coletivo. Os movimentos sociais são um dos principais sujeitos coletivos porque
eles são fonte de inovação e de matrizes geradoras de saberes. (p.13)

Certamente alguns dirão que esta é mais uma proposta, um horizonte a ser construído, do
que uma realidade. No entanto, gostaria de afirmar que realidade e projeto se interpenetram e que
considero que a experiência acumulada dos ENDIPEs permite apontar nesta direção.
É a partir desta tomada de posição inicial que situo a minha comunicação, que tem por
principal objetivo oferecer alguns elementos para o nosso debate destes dias, a partir da temática
que nos congrega, “Educação, questões pedagógicas e processos formativos: compromisso com a
inclusão social”. Está estruturada a partir de três eixos temáticos:
1- Os ENDIPEs: um espaço de crítica, autocrítica e construção de alternativas
2- Inclusão-Exclusão: pólos contrapostos?
3- Práticas Pedagógicas e Inclusão Social

1
Texto apresentado na sessão de abertura do XIII ENDIPE. (Recife, 23 de abril de 2006)

1
1 - Os ENDIPEs: um espaço de crítica, autocrítica e construção de alternativas

Começarei oferecendo alguns elementos para a construção da memória deste movimento


gerado pelos ENDIPEs.
Quando foi realizado o seminário “A Didática em questão”, no início dos anos 80, o
fazíamos em um contexto de forte compromisso com a construção dos caminhos de
redemocratização da sociedade brasileira. Para todos nós, esta era uma exigência ineludível:
articular os processos educacionais com as dinâmicas de transformação e resgate do estado de
direito no país. A área de educação passava por um momento de grande mobilização e ampla
produção acadêmica. Conscientes de que a educação tinha um papel, limitado mas significativo, no
processo sócio-político e cultural de afirmação da democracia, colocamos nossos melhores esforços
na construção de uma pedagogia e uma didática em consonância com esta perspectiva. O nosso
horizonte utópico era claro e um referente fundamental para as plurais reflexões e práticas
desenvolvidas.
Certamente a década dos 80 constituiu uma etapa fecunda e mobilizadora de um
pensamento pedagógico e didático original e diversificado, assim como de diferentes propostas,
tanto no nível de sistemas educativos como de escolas e salas de aula.
Na realização deste primeiro encontro, cuja iniciativa contou com a co-responsabilidade de
um grupo de professores/as do Departamento de Educação da PUC-Rio, o que nos movia era uma
clara consciência coletiva de que a reflexão pedagógica estava presa na trama das diferentes versões
das abordagens tecnicistas, modernizadoras e reprodutivistas. Era necessário um questionamento
radical da constituição desse conhecimento, do seu ensino e da pesquisa que vinha sendo
desenvolvida. Certamente esta consciência se apresentava ainda de modo difuso e pouco preciso.
Traduzia um sentimento de mal estar, inconformidade e desejo de mudança.
As inquietudes próprias do momento de redemocratização vividos no país e os
fortes questionamentos de profissionais das áreas de filosofia e ciências sociais foram mobilizadores
fundamentais deste processo de ressignificação do campo da didática e da pedagogia provocado por
este, podemos chamá-lo assim, primeiro ENDIPE.
Considero também importante destacar aqui que, desde este momento inicial, o que hoje
expressamos como compromisso com a inclusão social estava presente e se pode afirmar que
constitui uma das marcas características do movimento suscitado pelos ENDIPEs até hoje. O que se
pretendia neste seminário de 1982? Assim foi explicitado um dos seus objetivos:
Estimular a busca de propostas alternativas que visem, de fato a ampliação
quantitativa e a melhoria qualitativa das oportunidades educacionais para a maioria
da população brasileira”. (Candau, 2005:9).

2
Em recente pesquisa2 que coordenei e acaba de ser concluída, ao entrevistar um
grupo de vinte profissionais atores fundamentais na construção dos ENDIPEs, a afirmação da
relevância deste momento inicial foi salientada por praticamente todos os/as entrevistados/as. Estes
são alguns dos depoimentos:
Acho que o nosso movimento da didática acompanhou esse processo [dos movimentos
políticos, sociais e culturais do final da década dos 70 e início dos 80], foi sujeito e
objeto. Acho que ele não foi assim um fenômeno isolado, ele veio junto do que se
discutia, se misturaram um pouco a nossa didática com a questão da CBE e depois
mais tarde a ANPED e aquilo vinha num processo, assim, acho que foi um momento
intelectual muito rico que a gente viveu no país com todas as suas tensões.

No campo da didática nos anos 80 eu tive a oportunidade de estar participando por


dentro um pouco (...) num movimento muito forte, muito intenso que nós tivemos na
década de 80, sensacional, porque eu acho que a produção foi extremamente rica e
nós tivemos várias elaborações e vários trabalhos, embora tivéssemos objetivos
comuns todos voltados para o desenvolvimento de uma proposta mais progressista de
trabalho, essa busca de articulação de teoria e prática que era uma questão muito
forte, e essa prática focalizando mesmo a prática social do sujeito. Eu acho que a
produção nessa época foi muito fecunda, ela se ampliou bastante, nós tivemos grupos
significativos que trabalharam essas questões.

Oliveira (2000), membro da mesa redonda que no X ENDIPE, realizado no Rio de Janeiro,
foi dedicada à análise dos 20 anos de produção dos ENDIPEs, na mesma perspectiva, afirma em
relação à década dos 80:
“Pode-se constatar, então, o fato de que, para além das diferentes posições sobre o
objeto de estudo das áreas, o que existe é um grande consenso. Ele se refere à luta em
defesa da legitimidade do saber didático-pedagógico, enquanto constituindo um campo
de conhecimento e enquanto conteúdo do currículo da formação do educador, no
contexto da luta pela especificidade e importância do papel dos processos da educação
e do ensino, no movimento de recuperação e democratização da escola pública e na
transformação social” (p.164-165).

Quanto aos anos 90, os depoimentos analisados pela mesma pesquisa acima referida
identificam uma menor convergência de idéias e, embora possamos dizer que há uma continuidade
das reflexões em torno da perspectiva crítica, naquele momento esta abordagem se faz presente de
modo mais frágil. Sobre essa década, os/as entrevistados/as parecem concordar com o fato de que
existe uma incorporação de novos temas, a partir de outros enfoques teórico-metodológicos. Por
exemplo, temas como professor reflexivo, professor pesquisador, identidade docente, questões
relativas ao cotidiano escolar ganham força. Para alguns/mas entrevistados/as começa a aparecer
aqui o tema do multiculturalismo, mas ainda de modo bastante tangencial.

2
Trata-se da pesquisa Ressignificando a Didática numa perspectiva multi/intercultural,
desenvolvida no período 2003-2006, com o apoio do CNPq.

3
No que diz respeito ao momento atual, os depoimentos dos entrevistados e entrevistadas nos
possibilitam afirmar que, em geral, é percebido como uma fase em que a confluência de olhares e
perspectivas se fragilizou ainda mais, e se acentua a diversificação de temas e abordagens. Alguns
chegam mesmo a caracterizá-lo como um momento de “risco de dispersão”. Neste cenário, outros
também detectam a presença de uma nova versão da perspectiva tecnicista e produtivista.
Não pretendo aqui analisar a trajetória histórica dos ENDIPEs. Diversos profissionais têm
realizado com muita competência sistematizações periódicas do seu desenvolvimento. Inúmeras
teses e dissertações também têm focalizado diferentes dimensões da sua trajetória.
Gostaria simplesmente de salientar temas que têm estado presentes ao longo de toda a
trajetória dos ENDIPEs, alguns de modo mais intenso em determinados momentos, como: a análise
das políticas educacionais e dos projetos político-sociais que as informam, a compreensão da
educação como uma prática social e política, o compromisso com a afirmação dos processos
democráticos na sociedade e nos diferentes âmbitos educativos, com a construção de uma escola de
qualidade para todos e todas, com a superação do fracasso escolar, com a socialização dos
conhecimentos socialmente produzidos, a reflexão sobre a especificidade dos saberes escolares, as
relações entre os saberes escolares e os saberes sociais, a construção de novos referentes
curriculares, os processos de construção do conhecimento na escola, a valorização dos profissionais
da educação, as identidades e os saberes docentes, a afirmação do papel da escola pública, entre
outros.
O movimento suscitado pelos ENDIPEs, como já afirmamos, tem se ampliado e
diversificado de modo muito significativo. Não somente do ponto de vista quantitativo. Suas
preocupações, temáticas e abordagens se pluralizaram. No entanto, considero pertinente afirmar que
entre elementos aglutinadores que permitem dar uma certa organicidade a este movimento plural
está a referência ao papel social e político da educação e, nesta perspectiva, o compromisso com a
inclusão social. Mas esta problemática exige ser contextualizada no momento atual.

2- Inclusão-Exclusão: pólos contrapostos?

Estamos acostumados a contrapor exclusão à inclusão. O universo semântico da exclusão


está associado a verbos como eliminar, expulsar, abandonar, negar, silenciar, recusar, privar,
enquanto inclusão se relaciona com envolver, implicar, inserir, pertencer, participar.
Neste sentido, diante de sociedades marcadas por processos de exclusão, que se
multiplicam e agravam com as políticas neoliberais, tendo presente esta lógica dualista, promover
processos de inclusão, em suas diferentes dimensões se torna uma conseqüência óbvia. Para todos

4
aqueles cidadãos e cidadãs comprometidos com processos de democratização num horizonte de
justiça social e afirmação dos direitos de igualdade na sociedade em que vivemos se transforma
numa exigência ineludível.
No entanto, é importante problematizar esta lógica. Que significa incluir? Seu horizonte é
simplesmente integrar na sociedade vigente? Supõe assimilação dos referentes ideológicos e
culturais dominantes na sociedade em que vivemos? Trata-se exclusivamente de promover o acesso
a determinados bens e serviços sem questioná-los? Pode ser realizada numa perspectiva alternativa
e crítica ao modelo sócio-político vigente? Como? A que inclusão social nos estamos referindo?
Exclusão e inclusão estão contrapostas ou são processos que podem estar articulados?
Não pretendo, nesta breve comunicação, aprofundar nesta problemática. Simplesmente
oferecerei alguns elementos que nos permitam problematizar a relação entre exclusão e inclusão, do
ponto de vista social e educacional.
Uma primeira afirmação que considero fundamental é a de que o binômio exclusão-
inclusão está vinculado à problemática da desigualdade social, característica estrutural das
sociedades capitalistas em que vivemos, e reforçada pelas políticas neoliberais. É neste contexto
que a questão deve ser colocada. Se não for assim, corremos o risco de, mais uma vez, legitimar um
discurso que está a serviço da afirmação do modelo político e sócio-econômico vigente. No entanto,
a questão da desigualdade-igualdade, na perspectiva que gostaria de afirmar, não dá conta das
diferentes dimensões da problemática da inclusão-exclusão presentes na nossa sociedade. As
questões relativas à diferença, ao reconhecimento e às políticas de identidade também estão a elas
articuladas.
O sociólogo francês Robert Castel (2004) 3, em seu instigante texto sobre “As armadilhas da
exclusão”, partindo da constatação de que, particularmente a partir da década dos 90, a “exclusão
vem se impondo pouco a pouco como um mot-valise para definir todas as modalidades de miséria
do mundo: o desempregado de longa duração, o jovem da periferia, o sem domicílio fixo, etc, são
excluídos”. (p.17), manifesta e justifica sua desconfiança em relação a um uso indiscriminado deste
termo, tanto do ponto de vista analítico quanto político-social. Identifica, fundamentalmente, três
formas diferenciadas de exclusão.
A primeira diz respeito à supressão completa de uma comunidade, seja sob a forma de
expulsão ou extermínio. O genocídio constitui a forma mais radical desta política de exclusão. Uma
segunda modalidade de exclusão consiste em construir espaços fechados e isolados no seio da
própria comunidade. Asilos, prisões e outras instituições semelhantes exemplificam esta forma de
exclusão. Considero que hoje, especialmente nas grandes cidades, existem outras manifestações
3
A versão original do texto foi publicada em 1995, com o título Y a-t-il dês exclus? L’exclusion em
débat, na revista Lien Social et Politiques, RIAC,34, Paris-Montreal.

5
desta categoria como formas de isolamento de determinados grupos sociais, quer de caráter popular,
consideradas comunidades “perigosas” e de “risco”, quer de elevado poder aquisitivo, através de
condomínios fechados e auto-suficientes. Mas existe um terceiro tipo de exclusão, segundo Castel,
que nos interessa de modo especial. Consiste em que “certas categorias da população se vêm
obrigadas a um status especial que lhes permita coexistir na comunidade, mas com a privação de
certos direitos e da participação em certas atividades.“ (p.39). Trata-se, portanto de incluir,
excluindo, subalternizando, inferiorizando.
Nenhuma das três formas de exclusão apresentadas podemos afirmar que tenham
desaparecido do planeta e da nossa sociedade. No entanto, segundo o mesmo autor, é a terceira
modalidade que vem crescendo e assumindo diferentes concretizações. Trata-se de, sob a aparente
inclusão, excluir, invisibilizando assim os processos da própria exclusão. Considero que é possível
afirmar que esta perspectiva está hoje especialmente presente nos processos educacionais e se vem
afirmando. Como se reveste do discurso da inclusão, muitas vezes, nos passa desapercebida. Está
presente com particular força quando a inclusão, isto é, a presença dos "outros”, dos diferentes, em
sua pluralidade de identidades, nos contextos educativos se dá sem que nenhuma outra mudança
seja introduzida, pelo contrário, tudo permanece “o mesmo”. É esta a inclusão que queremos
afirmar?
Alfredo Veiga Neto (2001), partindo de outro ponto de vista e baseado na perspectiva
foucaultiana, tendo por referência fundamental o binômio normais-anormais 4, que me atrevo a
aplicar a incluídos-excluídos, também reconhece diferentes formas de exclusão: a negação dos
anormais/excluídos no plano epistemológico e as práticas concretas de exclusão delas decorrentes
que têm como característica básica a rejeição e a obsessão pela diferença como aquilo que
contamina a pureza, a ordem e a suposta perfeição do mundo; o recurso à proteção lingüística dada
por algumas figuras de retórica, tais como perífrases do tipo ‘portadores de necessidades especiais’;
a naturalização da relação normais/incluídos - anormais/excluídos, “isso é, pensar a norma em
termos naturais, como algo que aí está, à espera de ser entendida e administrada pelos especialistas”
(p.108); e, uma quarta alternativa, que propõe problematizar estas questões de modo radical e sem
medo, enfrentando as dificuldades que esta posição apresenta, tanto no plano conceitual e teórico,
quanto no plano prático.
Referindo-se às políticas de inclusão afirma:

4
O próprio autor afirma: “De início quero deixar claro que, na esteira das contribuições de Michel
Foucault, estou usando a palavra anormais para designar estes cada vez mais variados e
numerosos grupos que a Modernidade vem, incansável e incessantemente, inventando e
multiplicando: os sindrômicos, deficientes, monstros e psicopatas (em todas as suas variadas
tipologias), os surdos, os cegos, os aleijados, os rebeldes, os poucos inteligentes, os estranhos, os
GLS, os “outros”, os miseráveis, o refugo, enfim” (p.105).

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Como bem sabemos, tais políticas de inclusão – uma bandeira que tem atraído boa
parte dos pedagogos progressistas – têm enfrentado várias dificuldades. De um lado,
estas políticas têm esbarrado na resistência de muitos educadores conservadores. De
outro lado, elas têm enfrentado dificuldades de ordem epistemológica ou mesmo
prática, seja quando pretendem tratar de modo generalizante e indiferenciado as
inúmeras identidades que “povoam” aquilo que se costuma denominar de “todo
social”, seja quando não levam em consideração que tais identidades culturais têm
suas raízes em camadas muito mais profundas do que fazem crer aqueles discursos
progressistas mais simplificadores, que costumam ver o mundo sempre a partir da
famosa dicotomia dominadores-dominados, exploradores-explorados (p.109)

Através das diferentes questões aqui apresentadas, fica evidente a complexidade das
relações entre inclusão e exclusão social e a importância de que nos perguntemos sobre o que
queremos dizer quando afirmamos como educadores e educadoras o nosso compromisso com a
inclusão social.

3- Práticas Pedagógicas e Inclusão Social

É importante que tenhamos presente que as políticas de inclusão, em sentido amplo, têm
sido fortemente enfatizadas entre nós a partir da década dos 90. Não por acaso este período se
caracteriza pela afirmação de um cenário muito diferente do da década anterior: afirmação da
hegemonia neoliberal, a ideologia do “fim da história” e do pensamento único, a deterioração dos
processos democráticos, o desenvolvimento de novas formas de desigualdade e exclusão, a política
do Estado mínimo, a crescente violência urbana, a transformação dos processos produtivos, o
desemprego, a afirmação da sociedade da informação, entre outros elementos configuradores deste
novo cenário. Diante dele, de suas contradições e ambigüidades, a perplexidade é grande, os
caminhos incertos e de falta de clareza em relação aos possíveis horizontes de futuro está cada vez
mais presente no tecido social, junto com um descrédito crescente das mediações disponíveis para a
construção do Estado, da esfera pública e da democracia.
Certamente os anos noventa também estão marcados por uma forte valorização da
educação, por mais contraditórios que sejam os discursos configuradores das políticas educacionais,
e por um esforço sistemático de reformas, de modo especial de reformas curriculares, nos diferentes
países latino-americanos. É importante assinalar que, junto com a matriz oficial das reformas
educativas que, com pequenas variantes, segue o mesmo esquema das orientações dos organismos
internacionais nos diferentes países do continente latino-americano, desenvolveram-se também no
período reformas baseadas em outras matrizes político-pedagógicas, não se podendo portanto ter
uma visão reducionista, uniforme e padronizada das experiências realizadas. No entanto, é
necessário destacar que emerge nesta década, de novo, uma perspectiva “salvacionista”,

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“messiânica”, que encara a educação e a escola como a grande responsável pela superação das
contradições da sociedade e do sistema vigente. Referindo-se ao tema que nos ocupa, diante da
permanência e diversificação das formas de exclusão, a proposta é formular algumas políticas
sociais de caráter emergencial e focalizado, e, principalmente, promover um amplo processo de
inclusão educacional.

De acordo com Elianda Tiballi (2003):

...não podemos afirmar que a idéia de inclusão seja recente entre os educadores deste
país. Recente é a versão atualizada do termo e o desencadear de um movimento
educacional que, assim como os anteriores, propõe o novo como condição necessária
de adequação da escola às exigências mais recentes e sempre renovadas do mundo
globalizado. Como sabemos, sempre que a sociedade capitalista entra em crise, a
escola é chamada em seu socorro. (p.206)

Volto a salientar a perspectiva em que aposto: as questões relativas ao binômio inclusão-


exclusão estão relacionadas à problemática da igualdade-desigualdade social nas sociedades em que
vivemos. No entanto, esta não pode ser dissociada das tensões entre igualdade e diferença também
fortemente presentes no mundo atual. E estas tensões fazem parte do cotidiano dos processos
educacionais, provocando desafios complexos que estamos chamados, como educadores e
educadoras, a enfrentar.
Na linha de pesquisa que vimos desenvolvendo desde 1996, intitulada Cotidiano, Educação
e Cultura(s), esta temática tem sido central. Reconhecer estas tensões na sociedade e nos processos
educacionais e estimular a construção de relações mais igualitárias, tendo presente as assimetrias de
poder entre pessoas e grupos, muitas vezes, parece negar as diferenças ou silenciá-las. Por outro
lado, reconhecer as diferenças, em muitas situações, é visto como legitimar desigualdades ou
enfraquecer a luta por superá-las.
Uma expressão desta problemática pode ser evidenciada pela natureza do recentemente
publicado Relatório do Desenvolvimento Humano 2004, do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento – PNUD –, Liberdade Cultural num Mundo Diversificado, que associa
explicitamente, pela primeira vez nos relatórios anuais publicados, as questões relativas à igualdade
e à justiça às relacionadas com as identidades culturais:
O que é novo, hoje, é a ascensão de políticas de identidade. Em contextos muito
diferentes e de modos muito diversos – desde os povos indígenas da América Latina às
minorias religiosas na Ásia do Sul e às minorias étnicas nos Bálcãs e em África, até
aos imigrantes na Europa Ocidental – as pessoas estão se mobilizando de novo em
torno de velhas injustiças segundo linhas étnicas, religiosas, raciais e culturais,
exigindo que sua identidade seja reconhecida, apreciada e aceite pela sociedade mais
ampla. Sofrendo de discriminação e marginalização em relação a oportunidades
sociais, econômicas e políticas, também exigem justiça social. (p.1)

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Em todo o mundo as pessoas são mais afirmativas para exigir respeito pela sua
identidade cultural. Muitas vezes, o que exigem é justiça social e mais voz política.
Mas não é tudo. Também exigem reconhecimento e respeito... E importam-se em saber
se eles e os filhos viverão em uma sociedade diversificada, ou numa sociedade em que
se espera que todas as pessoas se conformem com uma única cultura dominante.
(p.22)

A relação entre questões relativas à justiça, superação das desigualdades sociais e


democratização de oportunidades, e as referidas ao reconhecimento de diferentes grupos culturais se
faz cada vez mais tensa e, por outro lado, se torna urgente trabalhá-la.
Antonio Flavio Perucci, na apresentação do seu livro Ciladas da Diferença (1999) assim se
posiciona:
Somos todos iguais ou somos todos diferentes? Queremos ser iguais ou queremos ser
diferentes? Houve um tempo que a resposta se abrigava, segura de si, no primeiro
termo da disjuntiva. Já faz um quarto de século, porém, que a resposta se deslocou. A
começar da segunda metade dos anos 70, passamos a nos ver envoltos numa
atmosfera cultural e ideológica inteiramente nova, na qual parece generalizar-se em
ritmo acelerado e perturbador a consciência de que nós, os humanos, somos diferentes
de fato, porquanto temos cores diferentes na pele e nos olhos, temos sexo e gênero
diferentes além de preferências sexuais diferentes, somos diferentes de origem familiar
e regional, nas tradições e nas lealdades, temos deuses diferentes, diferentes hábitos e
gostos, diferentes estilos ou falta de estilo; em suma, somos portadores de pertenças
culturais diferentes. Mas somos também diferentes de direito. É o chamado ‘direito à
diferença’, o direito à diferença cultural, o direito de ser, sendo diferente. The right to
be different!, é como se diz em inglês o direito à diferença. Não queremos mais a
igualdade, parece. Ou a queremos menos. Motiva-nos muito mais, em nossa conduta,
em nossas expectativas de futuro e projetos de vida compartilhada, o direito de sermos
pessoal e coletivamente diferentes uns dos outros. (p. 7)

Segundo este autor, houve nas últimas décadas uma mudança de sensibilidade, de clima
social e cultural em torno da articulação entre igualdade e diferença. Da ênfase na igualdade, muitas
vezes silenciadora e/ou negadora das diferenças, estas passam a primeiro plano, podendo
comprometer ou eclipsar a afirmação da igualdade. Como articular estes pólos sem que um anule o
outro, ou o deixe na penumbra, relativizando sua importância? Como estas questões podem ser
trabalhadas nos processos sociais e na educação?
No que diz respeito à educação Gimeno Sacristán5 (2001) afirma:

5
Neste texto, Gimeno Sacristán, utiliza os termos diversidade e diferença como praticamente
sinônimos. Muitos autores e profissionais de educação também assumem esta posição. No
entanto, no âmbito do multiculturalismo e dos estudos culturais se discute esta questão. Vários
autores assumem, com Silva (2000) a diferenciação entre eles. Nesta perspectiva, diversidade se
emprega mais para constatar uma realidade, por exemplo, a diversidade cultural presente na nossa
sociedade. Quanto ao termo diferença, considera-se que enfatiza “o processo social de produção
da diferença e da identidade, em suas conexões, sobretudo, com relações de poder e autoridade”.
(p. 44-45)

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A diversidade na educação é ambivalência, porque é desafio a satisfazer, realidade
com a qual devemos contar e problema para o qual há respostas contrapostas. É uma
chamada a respeitar a condição da realidade humana e da cultura, forma parte de um
programa defendido pela perspectiva democrática, é uma pretensão das políticas de
inclusão social e se opõe ao domínio das totalidades únicas do pensamento moderno.
Uma das aspirações básicas do programa pro-diversidade nasce da rebelião ou da
resistência às tendências homogeneizadoras provocadas pelas instituições modernas
regidas pela pulsão de estender um projeto com fins de universalidade que, ao mesmo
tempo, tende a provocar a submissão do que é diverso e contínuo “normalizando-o” e
distribuindo-o em categorias próprias de algum tipo de classificação. Ordem e caos,
unidade e diferença, inclusão e exclusão em educação são condições contraditórias da
orientação moderna... E, se a ordem é o que mais nos ocupa, a ambivalência é o que
mais nos preocupa. A modernidade abordou a diversidade de duas formas básicas:
assimilando tudo que é diferente a padrões unitários ou “segregando-o” em
categorias fora da “normalidade” dominante. (p. 123-124).

É possível superar estas tendências, homogeneização/ assimilação ou segregação/exclusão?


Afirmar uma cultura escolar não assentada no ideal da homogeneização? A inclusão social e
educacional está intrinsecamente comprometida com a afirmação de uma cultura comum que
silencia ou nega os diferentes saberes sociais e as diversas identidades culturais presentes no tecido
social e na escola, terminando por reforçar a “normalidade” dominante? Como promover, no
cotidiano de nossas escolas e outros contextos educativos, práticas que articulem igualdade e
diferença? Práticas que não se esgotem no intra-escolar e estejam relacionadas a movimentos mais
amplos orientados à construção de sociedades diferentes, justas e democráticas?

Estas são questões para as quais certamente não temos respostas, mas que estão chamadas a
instigar nossa capacidade crítica, reflexiva, criativa e propositiva. Somente enfrentando estes
desafios acredito que possamos colaborar no desenvolvimento de processos de autêntica inclusão
social.

Concluindo....
Iniciei esta comunicação afirmando que os ENDIPEs podem ser considerados hoje como
um movimento educativo amplo, plural e diversificado. Que este movimento nasceu de um desejo
coletivo profundo de colaborar na construção de práticas educativas comprometidas com uma
sociedade democrática em que todos e todas tenham direito a uma vida digna.
Certamente este horizonte parece mais longínquo no momento atual, pouco claro e
ambíguo. Para muitos e muitas talvez já não tenha sentido. Vivemos em outros tempos de crise de
utopias em que as chamadas “meta-narrativas” se esvanecem. Certamente temos menos certezas,

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caminhamos tateando, somos mais conscientes de nossas fragilidades e limites, teóricos e práticos.
Nossos “sonhos” se fazem mais imediatos e pragmáticos. Podem ainda ser considerados “sonhos”?
No entanto, confesso, estou entre aqueles e aquelas que ainda acreditam que “Outro Mundo
é Possível”. Que não renunciam a ter “sonhos” de “longa duração”. Que acreditam ser importante
reinventar a escola, a perspectiva crítica e a emancipação social. Que afirmam que esta reinvenção
passa pela articulação de nossas micro-práticas cotidianas, no nosso caso, as educativas, com outras,
tanto educacionais, quanto sociais, políticas, culturais, no plano local, nacional e internacional,
capazes de constituir redes, alianças, vínculos que fortalecem perspectivas alternativas para a
construção de sociedades verdadeiramente democráticas, em que políticas de igualdade e de
identidade se articulem. Somente assim acredito que é possível sociedades e processos educacionais
verdadeiramente inclusivos.

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