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Uma leitura entre a floresta e a escola: um livro, uma década

Leandro Belinaso Guimarães1

Há dez anos, em 1999, era lançado no Brasil o livro “A floresta e a escola: por
uma educação ambiental pós-moderna” de Marcos Reigota (2002). Os textos foram
escriturados pelo autor em meados dos anos 1990, década que a educação ambiental foi
paulatinamente se consolidando com maior força no país. Sua entrada em cena irrompe
um traço de diferença nos textos que até então estavam sendo produzidos sobre
educação ambiental no Brasil, ao configurar um lugar central à cultura 2 na tessitura de
uma proposta pedagógica3. Nesse cenário, a noção pós-estruturalista cunhada por
Jacques Derrida de desconstrução4 e a atenção às imagens que circulam cada vez mais
amplamente por inúmeras instâncias da cultura (pela televisão, pelo cinema, pelas
revistas, pelas publicidades, pelos jornais) ganharam relevo na prática pedagógica
delineada no livro. Nas palavras do autor:

O exercício da leitura e desconstrução dos discursos das imagens passa pelo


exercício do reconhecimento do indivíduo como cidadão, e não como mero
receptor passivo, sem voz, sem resposta a esses discursos e sentidos
produzidos em escala industrial e em grande parte comprometidos
ideologicamente com o conservadorismo (p. 116).

Tal acento ao caráter ativo do espectador frente aos artefatos midiáticos –


deixando este de ser enfocado como manipulado passivamente pela mídia – foi
amplamente teorizado por estudiosos/as dos estudos culturais na América Latina no
decorrer, sobretudo, dos anos 1990. Em 1997, é publicada no país uma tradução do livro
“Cenas da vida pós-moderna” da ensaísta argentina Beatriz Sarlo, que enfatizou não o

1
Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/Brasil). Coordenador do “Grupo Tecendo –
Educação Ambiental e Estudos Culturais” [www.grupotecendo.com.br]. Contato: lebelinaso@uol.com.br
2
“Com a pós-modernidade, a noção de cultura foi ampliada, não sendo mais entendida como resultado de
um longo processo de elaboração, sofisticação e erudição dos indivíduos, grupos sociais, ou instituições,
mas sim como um processo ágil de ‘deglutição’ cotidiana de inúmeras referências” (REIGOTA, 2003, p.
26 e 27).
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Interessante destacar que no ano de 1994 a Revista “Educação e Realidade”, do Programa de Pós-
Graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, publicou um dossiê sobre
educação ambiental, organizado por Alfredo Veiga-Neto, no qual as conexões dessa área com o
pensamento pós-moderno, com as viradas lingüística e cultural, foi enfatizado.
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Desconstruir “consiste em desfazer sem nunca destruir, um sistema de pensamento hegemônico ou
dominante” (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p.9). Nessa direção, o trabalho da desconstrução seria
manter vivo aquilo que nos constitui, porém deslocando-o e reinscrevendo-o de outras formas e, com isso,
permitindo ao sujeito imiscuído nesse processo se constituir como um sempre outro professor,
pesquisador, leitor.
que fazer com a mídia (como se tivéssemos que descartá-la por seu efeito
presumidamente alienante), “mas como armar uma perspectiva” para vê-la, atentando
para o caráter político da leitura das imagens midiáticas (perspectiva que também
encontramos ao longo do livro de Marcos Reigota).
Naquele mesmo ano, 1997, chegava ao país uma tradução da importante e
instigante obra “Dos meios às mediações” do pesquisador colombiano Jesús Martin-
Barbero, que provocou, entre outras questões, uma “reconceitualização da cultura que
nos confronta com (...) outra experiência cultural que é a popular, em sua existência
múltipla e ativa não apenas na memória do passado, mas também na conflitividade e na
criatividade atuais” (p. 297). Tal como acentuou Marcos Reigota (2002), “na escola
ecologizada, a chamada cultura popular tem fundamental importância, assim como as
chamadas culturas erudita e científica” (p. 80). Além de dotar os sujeitos como
politicamente potentes de leituras desconstrucionistas dos artefatos midiáticos, a
dissolução da dicotomia5 entre o erudito e o popular foi outra das contribuições que
estes diferentes pesquisadores da América Latina trouxeram para o exame das práticas
culturais.
Naquela mesma época, meados dos anos 1990, a publicação de um livro
organizado por Tomaz Tadeu da Silva (1995), intitulado “Alienígenas na sala de aula”,
pode ser considerada um marco da penetração dos estudos culturais no cenário das
pesquisas em educação no país. Tal entrada abriu um enorme leque potencial de
investigações que colocaram de forma ainda mais ampla as questões culturais de etnia,
de raça, de gênero, de sexualidade, de identidade, de consumo, de ambiente, entre outras
(e não mais, apenas, categorias como de classe social, de trabalho, de
produção/reprodução social), como centrais às práticas pedagógicas6.
Arrisco-me a dizer que os livros de Marcos Reigota e de Tomaz Tadeu da Silva,
aqui citados, o primeiro no âmbito da educação ambiental e o segundo abrangendo mais
amplamente o território da pesquisa em educação, tornaram ainda mais visíveis as
discussões relativas às articulações entre os estudos culturais [área não-disciplinar

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Outros binarismos foram contestados pelos estudos culturais. Marcos Reigota (2002) aponta em seu
livro, por exemplo, a necessidade de dissolução dos binômios natureza/sociedade, floresta/escola.
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Em 1995, Alfredo Veiga-Neto organizou o livro “Crítica pós-estruturalista e Educação”, que pode ser
considerado como um dos primeiros no país a enfocar de modo mais amplo o pensamento pós-
estruturalista e suas relações com a educação. Tais conexões foram importantes para o acento teórico que
os estudos culturais em educação assumem no Brasil, a partir, sobretudo, dos trabalhos desenvolvidos por
um grupo de professores (Alfredo Veiga-Neto, Marisa Vorraber Costa, Rosa Maria Hessel, Maria Lúcia
Wortmann, entre outros) do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
constituída na Inglaterra nos anos 1960, mas com emergências distintas por outros
territórios planetários, como na América Latina]7 e a educação (inclusive, ambiental) no
Brasil.
Além desses aspectos mais gerais, que buscaram circunscrever um pouco a
localização histórica do livro “A floresta e a escola” no cenário brasileiro e em suas
conexões com outros autores da América Latina, passo, a seguir, a destacar algumas
indagações específicas que produzo a partir de perguntas que eu mesmo me coloco
atualmente após reler o livro de Marcos Reigota. Faço isso porque não tenho a
pretensão de tecer um resumo da obra ou mesmo esgotá-la em todas as suas
potencialidades de leituras. São aspectos que chamam a atenção, hoje, de um
pesquisador (o autor desse breve texto) que participou, nos anos 1990, desses dois
movimentos colocados em articulação nesse texto: o início da disseminação da
educação ambiental no país e a entrada dos estudos culturais no terreno da educação
brasileira.

Deslizamentos
Nestes tempos atuais, seria interessante provocar deslizamentos no olhar? Não
seria interessante, quem sabe, deixar um pouco de ver o mundo, um ambiente, a partir
das representações, das significações, das identidades [enfoque central dos estudos
culturais em educação no Brasil], buscando [antropofagicamente?], agora, invenções de
mundos, de ambientes, de subjetividades que nos escapam?

Despropósitos
Uma proposta pedagógica não seria o traço de um único caminho, mas a
desconstrução das trilhas já dadas, catalogadas, cooptadas, definidas? Talvez não seja,
então, simplesmente, uma proposta, mas uma necessidade ética de se enredar nos
acontecimentos que atualizam e deixam vibrar as potencialidades de relações ambientais
construídas, reconstruídas, desconstruídas em encontros com o outro.

Desfigurações
Qual educação ambiental tecer com imagens que desaparecem (se deslocam)
porque não retratam simplesmente um instante, mas movimentos que não mais se

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Para saber mais sobre estudos culturais, veja Stuart Hall (2003). Especificamente sobre a emergência de
tais estudos na América Latina, leia o interessante artigo de Daniel Mato (2002).
repetem? Que pensamentos e sensações nos provocam as imagens criadas por Vik
Muniz8 configuradas por elementos cotidianos (material orgânico, por exemplo) que
apodrecem paulatinamente mudando pouco a pouco a feição de uma imagem que já não
é mais a mesma? Como desconstruir uma imagem que já está, desde o momento de sua
elaboração, em desconstrução?

Desobstruções
Como permitir, na educação ambiental, um silêncio, um fluxo, um alisamento,
um pensamento, um toque, uma carícia no embrutecimento empresarial da guerra
cotidiana?

Destinações
Quando se lê um livro, se quer apreendê-lo ou se deseja deixar tocar por ele?

“A educação em geral e a educação ambiental em particular, nesses tempos pós-


modernos, não têm a pretensão de dar respostas prontas, acabadas, definitivas, mas sim
instigar questionamento sobre as nossas relações com a alteridade, com a natureza, com
a sociedade em que vivemos, com o nosso presente e com o nosso eventual porvir”
(Marcos Reigota, 2002, p. 140).

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Para saber mais, visite a página do artista: http://www.vikmuniz.net/
Referências Bibliográficas

DERRIDA, Jacques. Escolher sua herança. In: DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO,


Elisabeth. De que amanhã... Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

HALL, Stuart. Estudos Culturais e seu legado teórico. In: SOVIK, Liv (Org.) Da
Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília:
Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e


hegemonia. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003.

MATO, Daniel. Estudios y otras prácticas intelectuales latinoamericanas en cultura y


poder. In: MATO, Daniel (Coord.). Estudios y otras prácticas intelectuales
latinoamericnas em cultura y poder. Caracas: Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales (CLACSO) y CEAP, FACES, Universidad Centra de Venezuela, p.21-46,
2002. Disponível em: http://www.globalcult.org.ve/pub/CYP.htm [Acesso em:
11/11/2004].

REIGOTA, Marcos. Ecologistas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1999.

REIGOTA, Marcos. A floresta e a escola: por uma educação ambiental pós-moderna.


2ª. Edição. São Paulo: Cortez, 2002.

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na


Argentina. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.

SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos
estudos culturais em educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

VEIGA-NETO, Alfredo (Org.). Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre:


Sulina, 1995.

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