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20/01/2021 A quem interessa ser profeta do caos?

Reflexões sobre manifestações antifascistas

A quem interessa ser profeta do caos?


Reflexões sobre manifestações antifascistas
Publicado por Diario do Centro do Mundo - 5 de junho de 2020

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Publicado na Rede Brasil Atual

Protesto pró-democracia na Avenida Paulista. Foto: NELSON ALMEIDA / AFP

* Nesta semana, uma texto do antropólogo e escritor Luiz Eduardo Soares circulou nas redes
sociais ao chamar atenção para uma suposta “armadilha de Bolsonaro” contra os manifestantes
antifascistas. Publicado em sua página no Facebook, Soares apela para que não ocorram os
atos previstos para este domingo (7) sob risco de que o presidente aproveite do fato para
decretar um golpe.

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20/01/2021 A quem interessa ser profeta do caos? Reflexões sobre manifestações antifascistas

Neste artigo reproduzido pela RBA, antropólogas e pesquisadoras respondem ao texto. Confira
abaixo.

A advertência de não realização de manifestações políticas, fundada no medo e na promoção do


pânico social, é um atentado à democracia, uma forma de extorsão de poderes, de dirigismo
monopolista das pautas plurais e das reivindicações divergentes de sujeitos que são diversos
em cor, classe, renda, gênero, orientação sexual, instrução etc. A advertência sob a forma de
ameaça produz paralisia decisória de lideranças, imobilismo social e lugares resignados de fala,
que seguem aprisionados nas redes sociais, na política emoticon do “estamos juntos” até o
próximo bloqueio, diante da comunhão de princípios com diferença de opiniões: “você deve ir
ao shopping, mas não à passeata”.

A fabricação de conjecturas apocalípticas e suposições catastróficas com roupagem analítica é


um recurso de persuasão de via única, impositiva, que aponta para um sentido hierárquico e,
até mesmo autoritário, de quem se acha portador de uma verdade ‘revelada’ sobre os atos
políticos e de uma razão superior sobre os fatos da política. A fala profética é uma fala
moralista, ilusionista, que, por meio do uso da fé e do afeto, inocula nas pessoas uma culpa
antecipada por suas escolhas para desqualificar seus arbítrios e fazê-las rebanho dependente de
um guia despachante do juízo final. Este projeto de poder necessita fazer crer que o
pessimismo visionário e proselitista é mais real que a própria realidade vivida e que deve fazer
parte do cálculo das ovelhas boas e más, dos aliados e opositores de ocasião. A fala profética
serve aos senhores da paz, da guerra e do mercado, sem distinção. É um jogo ardiloso do
ganha ou ganha em qualquer circunstância ou resultado obtido.

Ameaça não serve como advertência

A quem interessa ser o profeta do caos? Ao próprio profeta que, inventor do jogo do quanto pior
melhor, sacrifica seus seguidores feito gado, gasta a tinta das representações com seu próprio
manifesto e promove a tensão entre espadas para se manter como o grande conselheiro
conciliador.

Os profetas do caos são como uma fênix que ressurge da crise que criam. Eles se apresentam
como proprietários das representações políticas, à direita ou à esquerda, em cima e embaixo.
Eles se oferecem como mediadores dos conflitos que provocaram, como tradutores intérpretes
na Torre de Babel que criaram entre nós. A ameaça (do caos, da morte e do cerceamento da
liberdade) não serve como advertência. Os profetas do caos produzem o medo, moeda de troca

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fundamental para a construção de milícias, para vender os seus remédios (previsíveis, amargos
e inócuos). Para eles, não importa se os doentes morrem ou vivem, o que importa é que,
doentes ou não, consumam suas previsões do passado.

É notório que as polícias no Brasil têm tradição em policiar eficazmente o entretenimento


lucrativo dos blocos de carnaval, shows e aglomerações em campeonatos de futebol. Nesses
casos, sua atuação se dá na manutenção do status quo dos públicos, constituída a partir das
atividades de contenção e dispersão das multidões. Já para o controle de pessoas que ocupam o
espaço público sob a forma de protestos de todos os matizes políticos, apesar de ser um
fenômeno relativamente recente e não haver protocolos policiais escritos e validados, sabemos
que esses eventos se tornam encenações, nas quais janelas são abertas para oportunistas de
todas as ordens, para acertos de contas da polícia dos bens com a polícia do bem, incluindo os
‘caroneiros’ de manifestação que comparecem por motivos completamente alheios às pautas
dos protestos.

Como lidar com infiltrados

Nesses espetáculos públicos que encenam os jogos da política aprendemos coisas muito
básicas, sejamos nós manifestantes ou espectadores: sempre haverá a presença de agentes
infiltrados (que ajudam na contenção) e de provocadores, para providenciar a dispersão. A
infiltração de agentes de inteligência por dentro dos movimentos sociais remonta a uma antiga
estratégia estadunidense da década de 1960. Ou seja, muito antes do surgimento dos Black
Bloc. Nos últimos 60 anos, acumulou-se um aprendizado sobre o uso do espaço público relativo
ao círculo do protesto (aglomeração, deslocamento, ato de encerramento e dispersão) que
permite que os movimentos saibam lidar com esses elementos internos.

Neste mesmo período aprendemos, também, que o que torna legítimo um protesto não é a
quantidade de indivíduos reunidos em um território específico por um período de tempo
determinado, mas os modos de ocupação do espaço público e a construção coletiva de uma
agenda política que os mobilize e tenha impacto na sociedade. A produção de dossiês
intimidatórios, com a participação de agentes públicos, também não é novidade. Os
constrangimentos da exposição de dados acabam por jogar na lama do “tribunal digital” os
adversários, fortalecendo a promoção de linchamentos virtuais, de direita ou de esquerda.

O governo Bolsonaro não é o único que tem disseminado o medo para sabotar os mecanismos
de cooperação e mobilização sociais, substituindo práticas de coesão por coerções e cruzadas
moralistas vindas de cima, de baixo e ao redor.

Bicho papão

Discursos do medo contra ou a favor de Bolsonaro são péssimos conselheiros porque dão a
#Elenão um tamanho e uma agilidade política irreal, retirando-o do isolamento político em que

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se encontra para nos fazer acreditar que, quando chegarmos às ruas, imediatamente um cabo e
um soldado fecharão o Congresso, o STF e tirarão as emissoras e os portais de internet do ar.

O medo transforma Bolsonaro num bicho papão, num monstro mítico incontrolável que atira
hordas de zumbis (com cabelos tingidos de acaju) contra todos nós. O medo disseminado faz
com que as pessoas vejam gigantes onde há sombras e abram mão de seus direitos e garantias
em favor de um ‘libertário do agora’ que prometa proteção. Mas o profeta-liberador de hoje
será o seu tirano de amanhã!

O rigor científico não permite que nós, pesquisadores, determinemos como os movimentos
sociais devem se comportar, nem que sejam pautados por oráculos que anunciam profecias que
se autorrealizam. A contemporaneidade produziu os ativismos acadêmicos, mas eles não devem
substituir jamais a liberdade dos sujeitos de decidir suas agendas, nem servir de chofer dos
movimentos sociais em direção à “Terra sem Males”, um mundo idílico sem conflitos e, por sua
vez, sem a política. A ciência pode contribuir com diagnósticos da realidade e oferecer
alternativas que considerem, inclusive, que a negação dos conflitos monopoliza o debate e as
representações, obscurecendo as negociações dos interesses em disputa. Quando a decisão
científica está acima da pactuação social ela deixa de ser ciência e passa a ser doutrina, retira
da sociedade a responsabilidade pelas escolhas que faz, para o bem e para o mal.

Ao olharmos a história vemos que os discursos de “lei e ordem” são utilizados sempre a serviço
dos interesses do Estado e seus grupos de poder. Viver sob o jugo da espada não é novidade
para as pessoas para quem o isolamento social é uma prisão histórica dos direitos de cidadania,
e não um privilégio de classes. A juventude, principalmente a negra, conhece de perto a
violência policial, e sabe que nem em casa está protegida.

(*) Jacqueline Muniz e Ana Paula Miranda são antropólogas e professoras da Universidade
Federal Fluminense. Rosiane Rodrigues é pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em
Administração de Conflitos (Ineac/UFF), da mesma universidade.

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