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"TIRANIA DA OPINIÃO", VIOLÊNCIA E RELAÇÕES ETNORRACIAIS NO RIO

DE JANEIRO

Sobre Tiranias

Há mais de duas décadas que os temas da violência urbana e das relações


etnorraciais não saem da pauta, sem que os analistas, em maioria, vejam qualquer relação
entre ambos. No caso da violência, observa-se certa polarização. De um lado, os que
parecem apostar na repressão; de outro, os que parecem eleger a prevenção como
panacéia. Há os que investem concretamente no que fazem, mas dizem o contrário; ou
que investem no que dizem, mas fazem o oposto. Já no que tange às relações etnorraciais,
uns afirmam que se trata de um falso problema; outros, que é um problema importante.
Em suma, em qualquer hipótese, mais vale o discurso do que as práticas sociais. Acontece
que, tão ou mais maléfica do que a tirania dos ditadores é a “tirania da opinião”, como
afirmaria John Stuart Mill (MILL, 1963). Ou melhor, a tirania dos “ditadores” da opinião.

Esse tipo de tirania é praticado, em maior ou menor grau, pelo establishment de


qualquer sociedade, sobretudo quando estão em jogo questões consideradas vitais para os
seus interesses. Os setores que defendem a ordem estabelecida, alinhados ou não aos
eventuais governantes, tudo fazem para que a produção discursiva seja controlada em seu
proveito, desiderato quase sempre conseguido, quer se trate de uma democracia
consolidada, como a francesa, a norte-americana ou a inglesa, quer se trate de uma
ditadura qualquer, quando o controle é radical e explícito, na base da censura e da força.
No entanto, a ninguém deve escapar o fato de que, entre um regime de força e uma
democracia consolidada, existem arranjos institucionais intermediários, em que a tradição
autoritária teima em não ceder lugar aos cânones do igualitarismo. São as sociedades em
processo de democratização, saídas do colonialismo ou de ditaduras ferrenhas, ou de
simulacros de democracia, como, lamentavelmente, ainda é o caso do Brasil. Nessas
democracias emergentes, o controle da produção discursiva não se exerce por meio da
censura ou da repressão estatal, e sim pelo empenho do establishment em monopolizar o
que se poderia chamar de “agências discursivas” (BHABHA, 1990) [1]: meios de
comunicação, meio acadêmico, empresarial, artístico, indústria cinematográfica etc. para
veicular a visão de sua conveniência sobre as diferentes questões.
Hollywood especializou-se em satanizar os índios, os negros, os mexicanos, os
asiáticos, as mulheres, incapazes de pensar e de só intuir. A África continua a ser
apresentada como uma imensa selva, não sendo muito diferente do que acontece quando
se focalizam países da periferia, inclusive o Brasil. Se, entretanto, os países periféricos
são assim representados por Hollywood, as coisas não se passam dessa forma na auto-
representação dos produtores brasileiros e mexicanos, por exemplo. Ironia. Nas novelas
produzidas no Brasil e no México, tem-se a impressão de que esses países se situam na
Escandinávia, tal a brancura dos atores e atrizes. Para os produtores de Hollywood, os
mexicanos têm cara de índio e usam “sombrero”; para os produtores mexicanos das
novelas mexicanas, os mexicanos são brancos-de-olhos-azuis. Aguinaldo Silva, na novela
Tenda dos Milagres, levada ao ar em 1985 pela TV Globo, conseguiu colocar atores e
atrizes brancos para desempenhar papéis de personagens negros e negras de Salvador. A
isso os especialistas do discurso chamariam “violência simbólica”; mas os produtores,
“licença poética”... Em suma, disputa em torno de signos e símbolos.

O processo de monopolização do discurso pelos representantes da ordem


estabelecida não seria exceção na emergente democracia brasileira, principalmente se
considerarmos que a passagem da ordem anterior (e da anterior à anterior) para a atual
deu-se sem a substituição das elites do poder. Diferentemente, portanto, do que ocorre
nas democracias que emergem de processos revolucionários ou de grandes mobilizações
populares, quando um discurso novo tende a contrapor-se ao anterior. Entre nós,
inobstante este fato, acresce uma complicação para os conservadores. O tema das
relações etnorraciais vem perdendo o consenso em torno da sua suposta benignidade, a
qual vinha sendo afirmada sem contestação pelos seus porta-vozes. Aparecem em cena
estudiosos dissidentes, notadamente negros e indígenas, a afirmar o contrário. Daí, não
há como fugir à conclusão de que se trata de uma disputa política, dando azo a que se
instaure uma peleja discursiva, em que os achados dos estudiosos do discurso podem ser
utilizados contra ou a favor.

Comunidade Semiótica e Índices de valor do Discurso


Bakhtin (2004) afirma que a ideologia não é uma manifestação da consciência
individual, e sim o reflexo da realidade objetiva dos signos, particularmente dos signos
lingüísticos, criados na interação social e com funções especificas. Mostra, por exemplo,
que a foice e o martelo não passam de dois objetos cujo significado se esgota na função
utilitária de cada um; porém, ligados um ao outro e referidos ao contexto soviético e ao
ideal socialista, funcionavam como poderoso signo ideológico. Idem o pão e o vinho,
meros alimentos, mas que, na visão de mundo católica, representam o corpo e o sangue
de Cristo. Em outros termos: nas relações do cotidiano, os grupos humanos transformam
objetos, animais, imagens, figurações etc. e, sobretudo, palavras em signos e símbolos.
Estes vão constituir sistemas ideológicos, correspondentes, para Bakhtin e o marxismo, a
superestruturas situadas acima da realidade sócio-econômica, que seria a infra-estrutura.
Assim, num processo dialético, a realidade social, em suas múltiplas manifestações,
guardaria relação simbiótica com uma outra realidade, a ideológica (a superestrutura), e
esta seria rebatimento daquela. Decorre daí que, na visão marxista, não haveria
possibilidade de mudança na superestrutura sem que, antes ou em paralelo, houvesse
mudança na realidade sócio-econômica.

Não é o caso de entrar no mérito das convicções políticas desse autor. Afinal de
contas, não estamos falando propriamente de luta de classes, pelo menos no sentido
marxista. Nem de ideologia no sentido de uma superestrutura a serviço do
capital. Ideologia, neste artigo, vai corresponder ao alinhamento dos diferentes grupos
sociais em torno de interesses de vária ordem; de valores, crenças e costumes que esses
grupos compartilhariam. O que vai importar mesmo é o fato de os signos em geral, e em
especial os signos lingüísticos, terem sentido diverso segundo a identidade social de
quem os utiliza.

Eis por que Bakhtin considera importante distinguir entre “classe social” e
“comunidade semiótica”, de vez que diferentes classes sociais, pertencentes à mesma
comunidade semiótica, servem-se da mesma língua e, portanto, do mesmo “código
ideológico de comunicação”. O que vai variar são os “índices de valor” atribuídos aos
signos ideológicos por classes diferentes. Para os moradores de Ipanema e Leblon, o signo
BASTA, aparecido em cartazes e janelas dos seus apartamentos em protesto contra a
violência, tem um significado; para os moradores do Complexo de favelas da Maré ou do
Alemão, outro. Nas próprias palavras de Bakhtin:

“Em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna
a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico
é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de
valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. [...] A classe dominante tende a
conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a
fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava; a fim de
tornar o signo monovalente.”

Por coerência, empenhados em fazer com que signos e símbolos tenham valor
único, os grupos dominantes vão despender enormes quantidades de energia para impedir
a circulação das visões divergentes, usando alguns estratagemas com a finalidade de
selecionar não só os temas a serem colocados em foco como também os conteúdos a
serem inculcados na opinião pública, sempre evitando tocar nos aspectos que lhes
pareçam desfavoráveis. De tudo isso, restará aos que se posicionam contra esse estado de
coisas entrar decididamente na “arena” para mostrar a outra face de Jano. Não é
suficiente, portanto, denunciar, digamos, esse exercício de ilusionismo semiótico.
Cumprirá, ao mesmo tempo, participar do jogo de forma resoluta, tudo fazendo para
romper a blindagem das “agências discursivas” ou criando agências alternativas a fim de
pôr toda ênfase possível nos “índices de valor” dos descentrados.

Polivalência Tática do Discurso

Lutar na arena discursiva não é tarefa fácil, pois que exige apurar os sentidos e
deixá-los de prontidão para acompanhar os diferentes lances do jogo. Poderão ajudar
nesse empreendimento, ademais dos ensinamentos de Bakthin, os de Michel Foucault e
Roland Barthes. Foucault (1999:95), ao discorrer sobre as “regras da polivalência tática”
do discurso, chama a atenção para o fato de que, na análise de qualquer discurso, é preciso,
de saída, compreender que não apenas as coisas ditas contam, pois as não-ditas (o
“silêncio” é componente importante do discurso) são às vezes tão ou mais relevantes.
Importa ter em mente os efeitos diferenciados do discurso segundo a identidade e a
posição de poder de quem fala e de quem ouve. E levar em conta que, na produção
discursiva, fórmulas idênticas podem ser utilizadas para produzir efeito diverso, sendo
crucial descortinar o que se esconde sob o jogo complexo do poder de que o discurso é,
ao mesmo tempo, instrumento e efeito. Simplificando: não basta conhecer o conteúdo do
discurso. Há que saber quem é o seu emissor, por que fala o que fala, a quem se dirige e
que interesses recônditos defende.

Em sua aula inaugural da cadeira de Semiologia no Colégio de França em 1978,


Barthes (1980) escolhe como tema o Poder, advertindo que não se deve tomá-lo como se
fosse uno; como se de um lado estivessem os que o detêm e de outro os que dele são
despidos, pois o poder se manifesta não somente no Estado, mas por toda parte: nas
relações privadas e familiares, no ensino, na moda, nas opiniões etc. Considerando que
nem todo discurso tem a ver com o poder, define “discurso de poder” como sendo todo
discurso que “engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o
recebe”. Depreende-se daí que, se são vários os poderes, ou melhor, se os poderes têm
natureza diversa, e se não são sempre os mesmos os que o detêm e aqueles sobre os quais
se exercem, basta distinguir entre esses poderes, conhecer-lhes a natureza e tentar
identificar em quem os discursos de poder pretendem despertar o sentimento de culpa.
Óbvio que a culpa jamais estará com quem articula o discurso de poder.

É preciso, pois, tomar os discursos de poder nesse sentido lato. Saber por que um
mesmo fato social comporta interpretações diametralmente opostas, quase sempre em
função da inserção social dos analistas, tanto dos autorizados quanto dos intrometidos.
No caso do Brasil, há que localizar nas narrativas históricas os não-ditos e, em relação ao
que foi dito, entender as razões pelas quais a Nação foi narrada da forma fantasiosa e
arrumada como efetivamente foi. Pergunto-me: até que ponto a disparidade observada
nas interpretações dos fatos sociais do presente não decorre do afloramento dos não-ditos
e da renitência da realidade atual em conformar-se à imaginação? Segundo Barthes (p.
39-40):

“Parte da semiologia que melhor se desenvolveu, isto é, a análise das narrativas, pode
prestar serviços à História, à etnologia, à crítica dos textos, à exegese, à iconologia (toda
imagem é, de certo modo, uma narrativa). [...] Seus objetos de predileção são os textos
do Imaginário: as narrativas, as imagens, os retratos, as expressões, os idioletos, as
paixões, as estruturas que jogam ao mesmo tempo com uma aparência de
verossimilhança e com uma incerteza de verdade”.
Não se deve, portanto, perder de vista que, mesmo numa democracia consolidada,
o discurso de poder do establishment sofre o constrangimento de ter que aparentar
igualitarismo, sendo imprescindível, por conseguinte, desvendar o que esses discursos
encobrem. E uma das formas de fazê-lo é confrontar os objetivos declarados por eles com
os “resultados” observados. Tal é o caso das relações etnorraciais no Brasil. No discurso
dominante, raça/cor não conta (e se contar, conta positivamente); no discurso dos que se
consideram discriminados, conta, e conta muito (mas negativamente, em seu prejuízo).
No discurso dominante, uma identidade nacional referida à fusão de raças, ao amálgama,
à ausência de discriminação; na prática social, por todo lado, as evidências da separação
com base na raça/cor. No discurso da “mistura”, o signo pardo estará submetido
malabarismos retóricos. Dependendo da ocasião, alguém considerado pardo pode ora
dizer-se negro, ora apresentar-se (ou ser apresentado) como branco. Uma espécie de
coringa num jogo de cartas. Sem que se levem em conta essas sutilezas, tomar o que é
dito na sua literalidade só pode induzir a equívocos aqueles que desejem, sinceramente,
tratar dessas questões de forma minimamente isenta, se é que isso é possível.

Quem fala? Por que fala? Para quem fala? Que interesses defende?

O conteúdo do discurso não tem valor em si mesmo, sendo pouco produtivo


confrontar conteúdos na pugna discursiva, como, por exemplo, confrontar os argumentos
dos que são contra as chamadas cotas com os dos que são a favor, pois o discurso é sempre
produzido em consonância com a identidade social, a visão particular, os valores e os
interesses de quem o emite, seja o emissor um individuo, seja um grupo étnico, uma classe
social, uma categoria, uma corporação etc. Além disso, não se deve perder de vista o fato
de que o mesmo emissor pode bradar contra a discriminação enquanto a pratica; pode ser
o pregador da moral em público enquanto se perde na devassidão às escondidas. Pode,
para impressionar os destinatários, assumir o papel de pobre coitado aqui, e, ali, esbanjar
poder e dinheiro. Perante as câmeras, fingir condoer-se com o drama dos despossuídos,
ao mesmo tempo em que se aplica na exploração de “trabalho escravo”, como acontece
com muitos dos incluídos na “Lista Suja” do Ministério do Trabalho e Emprego. No
período de 2003 a 2008, foram libertados 26.890 trabalhadores[2].
É imprescindível, portanto, que envidemos esforços para incorporar, em qualquer
análise que façamos, não só as visões dos “outros” como também os dados que não
corroborem as nossas suposições, teste recomendado pelo filósofo Karl Popper, para
quem um argumento tem possibilidade de ser validado se quem o sustenta não consegue,
ele próprio, derrubá-lo. Caso contrário, só a visão e os interesses dos grupos hegemônicos
terão eco e merecerão atenção dos poderes públicos, como se fossem a visão e os
interesses de toda a população. Tal ocorre no Rio de Janeiro, na comparação entre o que
dizem os integrantes das camadas mais altas (ocupantes privilegiados das “agências
discursivas”, como vimos) e o que dizem os moradores das favelas, os quais, apesar de
numerosos, estão praticamente ausentes dessas agências. Apelam para as rádios
comunitárias, em que as comunidades falam para elas próprias. Assim, os representantes
do poder dissertam em nome de todos e para todos; os das comunidades, apenas em seu
nome, para eles próprios.

No que diz respeito à violência e às relações etnorraciais, por conseguinte, políticas


governamentais que se queiram “públicas”, vale dizer, comprometidas com os direitos e
interesses dos diferentes segmentos da sociedade, não podem ser orientadas por uma
visão unilateral, tendo como referência apenas os interesses e os valores do grupo
dominante. Ora, só as mulheres têm a verdadeira dimensão da discriminação que sofrem,
e só as mulheres negras sabem a diferença entre ser mulher branca e ser mulher negra
entre nós. Quando representantes do grupo social dominante insistem em afirmar que isto
ou aquilo é bom ou ruim para favelados, negros e negras, e indígenas, é possível que, no
fundo, estejam pensando apenas no que é bom ou ruim para eles.

Além do mais, raça/cor, gênero, classe, origem são apenas parte das identidades
individuais, não sendo possível falar em identidade, no singular, mas em identidades
múltiplas e mutantes. Ninguém é só brasileiro ou brasileira, e sim brasileiro(a) branco(a)
/ preto(a) / pardo(a) / indígena; brasileiro (a) jovem / idoso(a); gordo(a) / magro(a);
católico(a) / evangélico(a) / espírita / muçulmano (a); favelado / favelada etc. Decorre daí
que, ao modelar unilateralmente gostos e condutas em torno de um brasileiro padrão, o
discurso hegemônico só pode sustentar-se sendo intolerante. Em conseqüência, não se
enquadrando nos padrões de “boa aparência”, sofrerão as gordas e os gordos, os baixinhos
e as baixinhas, os portadores de deficiência, os narigudos; e as negras e negros, a não ser
que tenham “feições finas”, como muitos dizem sem qualquer pejo. Igualmente, não se
enquadrando nos padrões morais estabelecidos, sofrerão os / as homossexuais, os
“solteirões”, as mães solteiras e todos aqueles de conduta considerada não-convencional.
E então, os publicamente fora dos padrões serão impiedosamente execrados, inclusive
sofrendo violência física, como é o caso dos homossexuais, enquanto os “normais”
poderão dar vazão aos seus desejos às escondidas, desde que mantendo as aparências,
atitude típica dos falsos moralistas.

Faço esses comentários aparentemente exabundantes para reafirmar que a


neutralidade discursiva é uma quimera. Além do mais, os atores sociais são indivíduos
atados a identidades muitas vezes conflitantes. O trabalhador explorado pode bradar
contra a presença de mulheres e homossexuais no sindicato. Então, na discussão de
questões que envolvem essas subjetividades, não é suficiente analisar o conteúdo do
discurso, sendo mais produtivo, repito, procurar saber a identidade de quem fala e que
interesses defende. No caso da violência criminal do Rio de Janeiro, por exemplo, nota-
se claramente que as demandas ao poder público têm tido cunho particularista, e não
público no sentido de atender os interesses da população em geral, fato que se constitui
num problema em si mesmo num contexto marcado pela hierarquia social e pelo
preconceito. Se, mesmo em sociedades mais integradas, as expectativas costumam diferir
segundo a inserção social dos interessados, o que não dizer de uma cidade com a história
do Rio de Janeiro?

Nessa cidade evidencia-se que as expectativas dos moradores da classe A (para usar
a classificação dos institutos de pesquisa de opinião) costumam passar ao largo daquelas
dos moradores das favelas, e vice-versa. São, em muitos casos, antagônicas. Ocorre que
parte considerável da elite e da minguada “classe média alta” da cidade (classe A),
constituída predominantemente por pessoas com identidade social branca, se concentra
num espaço bem definido, o eixo Ipanema–Leblon–São Conrado–Barra da Tijuca, sendo
este fato de suma importância porque é nesse eixo restrito que reside a maioria dos que
ocupam as “agências discursivas”, principalmente a midiática, na condição de
apresentadores, comentaristas, produtores, autores, editores, diretores, colunistas,
editorialistas, escritores, acadêmicos, parlamentares, cineastas, artistas de renome,
falando em nome de toda a população com uma desenvoltura e uma desinibição
impressionantes. Tudo sem falar que, também em maioria, aí residem os proprietários e
os representantes dos patrocinadores e anunciantes. Não será coincidência, portanto, que
roubos acontecidos no Leblon e Ipanema, por exemplo, e ataques de menores a turistas
nas suas praias, tenham muito mais visibilidade do que as centenas de mortes de pessoas
pobres de Bonsucesso, Vigário Geral ou do Complexo do Alemão. E que as centenas e
centenas de assaltos aí ocorridos sejam invisibilizados.

A propósito do eixo acima mencionado, e para que se tenha idéia de que,


definitivamente, não é mais possível resolver o problema de forma pontual e
particularizada, jogo luz num outro eixo, muito mais problemático (e que não é
problemático somente para os seus moradores). Trata-se do eixo conhecido por “Faixa de
Gaza Carioca” (alusão ao conflito entre palestinos e israelenses), que compreende uma
área “que vai de São Cristóvão a Acari, incluindo a Avenida Brasil e as linhas Vermelha
e Amarela (as três principais vias de acesso ao Rio), além das favelas do Complexo da
Maré e do Alemão”[3]. O somatório desses dois eixos constituem um discurso em si
mesmos.

Rio de Janeiro como “Lugar Enunciativo”

Em face do afirmado acima, o problema que se coloca é fazer com que a opinião
pública em geral tenha acesso a outras visões, sem, contudo, adotar a mesma atitude
sectária dos que tentam monopolizar o discurso. Não é tarefa fácil, mas poderão ser-nos
úteis as ponderações de Homi K. Bhabha (BHABHA, 1998: 248-52) em O local da
cultura acerca dos problemas da crítica pós-colonial.

Bhabha, que tem como referência o colonialismo inglês, alerta-nos para o cuidado
que se deve ter a fim de evitar que a crítica pós-colonial acabe sendo a contrafação dos
discursos que questiona, colocando os antigos sujeitos coloniais (os europeus, os
colonizadores, os senhores, os brancos) na posição de meros objetos, sem levar em conta
que os dominados (e as dominadas...) também participaram da produção dos discursos de
poder com suas artimanhas e estratégias de sobrevivência; com seus gestos, sua música e
dança; com risos e lágrimas; com o silêncio; com a dissimulação e, sobretudo, com a
mímica dos colonizadores e senhores. No nosso caso, portanto, não cabe substituir uma
visão unilateral por outra, um discurso por outro, mas tão-somente fazer com que as
visões da periferia se somem, e eventualmente se contraponham, às do centro. Todas essas
visões reunidas constituem um discurso polifônico, com significado próprio, não
correspondendo nem à visão de um grupo nem à de outro.

A análise de Bhabha acrescenta um elemento importante à discussão da violência,


pois entre nós, desde o final do século XIX, o discurso hegemônico sobre esse fenômeno
tem dividido a sociedade de forma maniqueísta: bons e maus, perigosos e não-perigosos,
violentos e não-violentos, sempre do ponto de vista dos que se consideram “bons”, “não-
perigosos” e “não-violentos”. Assim, no Rio de Janeiro, espera-se que todos saibam quem
são e onde estão uns e outros.

Para que se tenha uma visão um pouco mais ampliada do quadro é preciso esforço
para dar voz e visibilidade aos tidos por “maus”, “perigosos” e “violentos”, ou seja, para
transformá-los em sujeitos do discurso, com o cuidado de não inverter a equação,
objetificando e retirando a voz dos “bons”. Nessa direção, um outro conceito de Bhabha
que também nos será útil é o de “lugar enunciativo”, segundo o qual a cultura de uma
sociedade não deve ser tomada tão somente como objeto (do que se fala), mas também
como uma espécie do que vou chamar de “lugar que discursa”. Assim, num mesmo
espaço, podem-se vislumbrar diferentes tempos de significação: retrospectivo,
simultâneo, prefigurativo.

Essa passagem da cultura como objeto do discurso para cultura como “lugar que
discursa” implica a necessidade de se abandonar a idéia de tempo linear, com os
acontecimentos enfileirados um após o outro, como se o presente nada mais fosse do que
um marco divisório, estático, sem duração, entre o passado e o futuro. É preciso
reconhecer que, visto dessa forma, o presente acaba sendo tomado como mero amontoado
de acontecimentos escolhidos aleatória e convenientemente e, ainda assim, dentro da
visão limitada do narrador. Ora, a linearidade limita e estreita a visão, como se usássemos
antolhos, não permitindo que fatos ocorridos no mesmo momento e no mesmo lugar (e
em outros) sejam apreendidos e vistos de diferentes ângulos, e por diferentes olhos.
Este dado é importante porque nos faz compreender a necessidade de se “alargarem”
o espaço e o tempo do presente, pois este tem, sim, duração e abarca múltiplos espaços.
O presente do Rio de Janeiro não pode estar limitado a momentos escolhidos
arbitrariamente, referidos a uns poucos espaços, olhado e narrado de uma única
perspectiva. A cidade há de ser tomada como um “lugar que discursa”, ou, na expressão
de Bhabha, um “lugar enunciativo”, dividido em múltiplos “microlugares enunciativos”.
Roma é um discurso, assim como as ruínas do Coliseu, a Praça Navona e a Praça de São
Pedro, no Vaticano. Em se tratando do Rio de Janeiro, no conjunto dos símbolos da
cidade, poderíamos nos perguntar: o que nos estão a dizer as fortificações à entrada da
Baía de Guanabara, como os Fortes de Copacabana e São João? O que nos dizem o palácio
e os jardins da Quinta da Boa Vista? E as gravuras de Debret, com imagens de negros no
pelourinho sendo açoitados por outros negros? E o que nos diz a imagem do Cristo no
alto do Corcovado? E a do Pão de Açúcar? O que nos evoca o signo ”Rocinha”, ou
“Maré”, ou “Jacarezinho”? Que metáfora nos comunica a visão panorâmica, de dentro de
um helicóptero, do imenso amontoado de barracos e vielas do Complexo do Alemão (ou
da Favela da Coréia, em Campo Grande, ou a do Rato Molhado, em Del Castilho) e do
conjunto de condomínios e residências da Barra da Tijuca ou do Leblon? E o fato de os
moradores de São Conrado e da Rocinha serem vizinhos? E os morros do Pavão-
Pavãozinho-Cantagalo, próximos e “distantes” de Ipanema e Copacabana? Que leitura se
pode fazer da síntese dos modos de viver e de sentir dos moradores de lugares tão
diferentes? Compartilhariam todos o sonhado orgulho patriótico, a mesma “cultura
brasileira” e os mesmos valores civilizatórios? Seriam os seus problemas, angústias,
sonhos e dramas da mesma natureza? Que metáfora nos comunica a alegria contagiante
de nossas praias num dia de sol, em contraste com a imagem de crianças tristes,
disputando restos de comida com animais no lixo de uma das cidades mais bonitas do
mundo? A toda evidência, o somatório de tudo isso se constitui num discurso, passível de
múltiplas leituras. Mas é preciso disposição para querer ler. O que não resolve o problema
é tentar tomar para leitura apenas os aspectos positivos, ou apenas os negativos dessa
realidade. Ou olhá-los de um único ângulo. Se somarmos o que é bom e o que é ruim em
nossa sociedade, é possível que o saldo seja positivo. Positivo ou negativo, é um convite
à ação e não à reação.

Por uma “Abertura Democrática” da Opinião


Além da dificuldade que a maioria de nós tem de tomar o Rio de Janeiro como um
“lugar que discursa”, e, pior, os seus incontáveis espaços como “microlugares que
discursam”, há o problema já mencionado de as “agências discursivas” tradicionais serem
ocupadas quase que exclusivamente por representantes de setores certos e determinados.
Uma saída para o problema seria que tais “agências” fossem um pouco mais abertas, a
fim de possibilitar a entrada e a vocalização de diferentes visões sobre os acontecimentos,
reconhecendo-se nos “diferentes” o direito à discordância. Enfim: como se fosse preciso
estender à sociedade mais ampla o sentido da expressão “abertura democrática”, tão em
voga quando se queria sair da ditadura militar. Ora, pior que o autoritarismo do Estado é
o praticado por fingidos democratas da sociedade civil, os quais sempre conseguem a
proeza de elogiar a linda roupa do rei nu. Se, mesmo numa democracia consolidada, a
“tirania da opinião” tem na mídia o seu principal instrumento de ação, o que não dizer de
uma democracia emergente como a brasileira? Em se tratando da violência e das relações
etnorraciais, portanto, há que tomar o cuidado para que os seus veículos não sejam
utilizados como trincheiras reacionárias; em aparelhos ideológicos a serviço dos grupos
dominantes. Idem com relação às demais agências discursivas, particularmente a
“agência” acadêmica. Quanto a esta, um comentário especial se impõe.

Enquanto na área das ciências exatas, como na Matemática e na Física, os


especialistas há muito abandonaram a pretensão da neutralidade, com o reconhecimento
da sua função política (vide bomba atômica, manipulação genética etc.), observa-se o
inverso entre não poucos especialistas da área das ciências sociais. Nenhum problema em
uma acadêmica, do seu ponto de vista, apresentar um estudo, dissertação ou tese sobre a
opressão machista. Todos os encômios a ela, de homens e de mulheres. Nenhum problema
em um (uma) acadêmico(a) homossexual, do seu ponto de vista, apresentar um estudo,
dissertação ou tese sobre a discriminação que os(as) homossexuais sofrem da parte dos
héteros. Mas vai o estudioso negro, ou negra, falar, do seu ponto de vista, da
discriminação que, como grupo étnico, as negras e negros sofrem no Brasil, e pronto: o
mundo desaba. “A academia não é lugar de militância!”, algum representante
do establishment dirá. Esse verdadeiro patrulhamento leva-nos a uma só conclusão:
em se tratando de relações etnorraciais, a única militância admitida na academia é do
seu grupo, à qual os negros e negras são estimulados a aderir. Se não aderirem...
A violência do Rio de Janeiro (refiro-me ao Município como um todo, e não apenas
ao eixo nobre acima mencionado) não vai ser resolvida com discurso nem com a
manipulação da opinião. Esta pode ter outros fins... Nem com apartação, o que se revelou
caminho materialmente inviável. Nem com aparato repressivo, posto que, se isso fosse
possível, a Cidade já seria um paraíso de tranqüilidade há mais de 15 anos, tantos foram
e têm sido os meios policiais e militares empregados, e tantas têm sido as mortes.

Se quisermos encarar o problema com objetividade, no interesse de toda a


população, é preciso, de saída, reconhecer que, no Rio de Janeiro, os temas da violência
e das relações etnorraciais se imbricam; segundo, que as políticas governamentais
adotadas até aqui possuem caráter particularista, em atendimento quase que exclusivo aos
discursos do grupo dominante, com notório efeito bumerangue; e terceiro, que a solução
é investir na construção de uma nova forma de convivência, para o que é preciso tomar o
Rio de Janeiro como um “lugar que discursa”, e os seus diferentes espaços como
“microlugares que discursam”. Estes, os mais importantes.

Notas

[1] Um dos conceitos-chave de Homi Bhabha (BHABHA, 1990) é o de “agência”, no sentido de


intervenção dos indivíduos no processo social como sujeitos da ação e do discurso, ou seja, como
atores políticos. Com a expressão “agência discursiva” quero me referir aos lugares onde os
diferentes atores sociais podem produzir discursos e de onde podem difundi-los na defesa de suas
posições ou para protestar contra as injustiças, constituindo-se os meios de comunicação de massa
na principal “agência discursiva” nos dias que correm.
[2] Cf. www.mte.gov.br. Em pleno século XXI, no Brasil, constata-se que o trabalho escravo não
desapareceu em 1888. Este fato levou o Ministério do Trabalho a baixar a Portaria Nº 540, de 15 out 04, criando
o “Cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo”.

[3] Cf. jornal O Globo de 04 de maio de 2004, Editoria Rio, p. 13.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.


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