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DE JANEIRO
Sobre Tiranias
Não é o caso de entrar no mérito das convicções políticas desse autor. Afinal de
contas, não estamos falando propriamente de luta de classes, pelo menos no sentido
marxista. Nem de ideologia no sentido de uma superestrutura a serviço do
capital. Ideologia, neste artigo, vai corresponder ao alinhamento dos diferentes grupos
sociais em torno de interesses de vária ordem; de valores, crenças e costumes que esses
grupos compartilhariam. O que vai importar mesmo é o fato de os signos em geral, e em
especial os signos lingüísticos, terem sentido diverso segundo a identidade social de
quem os utiliza.
Eis por que Bakhtin considera importante distinguir entre “classe social” e
“comunidade semiótica”, de vez que diferentes classes sociais, pertencentes à mesma
comunidade semiótica, servem-se da mesma língua e, portanto, do mesmo “código
ideológico de comunicação”. O que vai variar são os “índices de valor” atribuídos aos
signos ideológicos por classes diferentes. Para os moradores de Ipanema e Leblon, o signo
BASTA, aparecido em cartazes e janelas dos seus apartamentos em protesto contra a
violência, tem um significado; para os moradores do Complexo de favelas da Maré ou do
Alemão, outro. Nas próprias palavras de Bakhtin:
“Em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna
a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico
é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de
valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. [...] A classe dominante tende a
conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a
fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava; a fim de
tornar o signo monovalente.”
Por coerência, empenhados em fazer com que signos e símbolos tenham valor
único, os grupos dominantes vão despender enormes quantidades de energia para impedir
a circulação das visões divergentes, usando alguns estratagemas com a finalidade de
selecionar não só os temas a serem colocados em foco como também os conteúdos a
serem inculcados na opinião pública, sempre evitando tocar nos aspectos que lhes
pareçam desfavoráveis. De tudo isso, restará aos que se posicionam contra esse estado de
coisas entrar decididamente na “arena” para mostrar a outra face de Jano. Não é
suficiente, portanto, denunciar, digamos, esse exercício de ilusionismo semiótico.
Cumprirá, ao mesmo tempo, participar do jogo de forma resoluta, tudo fazendo para
romper a blindagem das “agências discursivas” ou criando agências alternativas a fim de
pôr toda ênfase possível nos “índices de valor” dos descentrados.
Lutar na arena discursiva não é tarefa fácil, pois que exige apurar os sentidos e
deixá-los de prontidão para acompanhar os diferentes lances do jogo. Poderão ajudar
nesse empreendimento, ademais dos ensinamentos de Bakthin, os de Michel Foucault e
Roland Barthes. Foucault (1999:95), ao discorrer sobre as “regras da polivalência tática”
do discurso, chama a atenção para o fato de que, na análise de qualquer discurso, é preciso,
de saída, compreender que não apenas as coisas ditas contam, pois as não-ditas (o
“silêncio” é componente importante do discurso) são às vezes tão ou mais relevantes.
Importa ter em mente os efeitos diferenciados do discurso segundo a identidade e a
posição de poder de quem fala e de quem ouve. E levar em conta que, na produção
discursiva, fórmulas idênticas podem ser utilizadas para produzir efeito diverso, sendo
crucial descortinar o que se esconde sob o jogo complexo do poder de que o discurso é,
ao mesmo tempo, instrumento e efeito. Simplificando: não basta conhecer o conteúdo do
discurso. Há que saber quem é o seu emissor, por que fala o que fala, a quem se dirige e
que interesses recônditos defende.
É preciso, pois, tomar os discursos de poder nesse sentido lato. Saber por que um
mesmo fato social comporta interpretações diametralmente opostas, quase sempre em
função da inserção social dos analistas, tanto dos autorizados quanto dos intrometidos.
No caso do Brasil, há que localizar nas narrativas históricas os não-ditos e, em relação ao
que foi dito, entender as razões pelas quais a Nação foi narrada da forma fantasiosa e
arrumada como efetivamente foi. Pergunto-me: até que ponto a disparidade observada
nas interpretações dos fatos sociais do presente não decorre do afloramento dos não-ditos
e da renitência da realidade atual em conformar-se à imaginação? Segundo Barthes (p.
39-40):
“Parte da semiologia que melhor se desenvolveu, isto é, a análise das narrativas, pode
prestar serviços à História, à etnologia, à crítica dos textos, à exegese, à iconologia (toda
imagem é, de certo modo, uma narrativa). [...] Seus objetos de predileção são os textos
do Imaginário: as narrativas, as imagens, os retratos, as expressões, os idioletos, as
paixões, as estruturas que jogam ao mesmo tempo com uma aparência de
verossimilhança e com uma incerteza de verdade”.
Não se deve, portanto, perder de vista que, mesmo numa democracia consolidada,
o discurso de poder do establishment sofre o constrangimento de ter que aparentar
igualitarismo, sendo imprescindível, por conseguinte, desvendar o que esses discursos
encobrem. E uma das formas de fazê-lo é confrontar os objetivos declarados por eles com
os “resultados” observados. Tal é o caso das relações etnorraciais no Brasil. No discurso
dominante, raça/cor não conta (e se contar, conta positivamente); no discurso dos que se
consideram discriminados, conta, e conta muito (mas negativamente, em seu prejuízo).
No discurso dominante, uma identidade nacional referida à fusão de raças, ao amálgama,
à ausência de discriminação; na prática social, por todo lado, as evidências da separação
com base na raça/cor. No discurso da “mistura”, o signo pardo estará submetido
malabarismos retóricos. Dependendo da ocasião, alguém considerado pardo pode ora
dizer-se negro, ora apresentar-se (ou ser apresentado) como branco. Uma espécie de
coringa num jogo de cartas. Sem que se levem em conta essas sutilezas, tomar o que é
dito na sua literalidade só pode induzir a equívocos aqueles que desejem, sinceramente,
tratar dessas questões de forma minimamente isenta, se é que isso é possível.
Quem fala? Por que fala? Para quem fala? Que interesses defende?
Além do mais, raça/cor, gênero, classe, origem são apenas parte das identidades
individuais, não sendo possível falar em identidade, no singular, mas em identidades
múltiplas e mutantes. Ninguém é só brasileiro ou brasileira, e sim brasileiro(a) branco(a)
/ preto(a) / pardo(a) / indígena; brasileiro (a) jovem / idoso(a); gordo(a) / magro(a);
católico(a) / evangélico(a) / espírita / muçulmano (a); favelado / favelada etc. Decorre daí
que, ao modelar unilateralmente gostos e condutas em torno de um brasileiro padrão, o
discurso hegemônico só pode sustentar-se sendo intolerante. Em conseqüência, não se
enquadrando nos padrões de “boa aparência”, sofrerão as gordas e os gordos, os baixinhos
e as baixinhas, os portadores de deficiência, os narigudos; e as negras e negros, a não ser
que tenham “feições finas”, como muitos dizem sem qualquer pejo. Igualmente, não se
enquadrando nos padrões morais estabelecidos, sofrerão os / as homossexuais, os
“solteirões”, as mães solteiras e todos aqueles de conduta considerada não-convencional.
E então, os publicamente fora dos padrões serão impiedosamente execrados, inclusive
sofrendo violência física, como é o caso dos homossexuais, enquanto os “normais”
poderão dar vazão aos seus desejos às escondidas, desde que mantendo as aparências,
atitude típica dos falsos moralistas.
Nessa cidade evidencia-se que as expectativas dos moradores da classe A (para usar
a classificação dos institutos de pesquisa de opinião) costumam passar ao largo daquelas
dos moradores das favelas, e vice-versa. São, em muitos casos, antagônicas. Ocorre que
parte considerável da elite e da minguada “classe média alta” da cidade (classe A),
constituída predominantemente por pessoas com identidade social branca, se concentra
num espaço bem definido, o eixo Ipanema–Leblon–São Conrado–Barra da Tijuca, sendo
este fato de suma importância porque é nesse eixo restrito que reside a maioria dos que
ocupam as “agências discursivas”, principalmente a midiática, na condição de
apresentadores, comentaristas, produtores, autores, editores, diretores, colunistas,
editorialistas, escritores, acadêmicos, parlamentares, cineastas, artistas de renome,
falando em nome de toda a população com uma desenvoltura e uma desinibição
impressionantes. Tudo sem falar que, também em maioria, aí residem os proprietários e
os representantes dos patrocinadores e anunciantes. Não será coincidência, portanto, que
roubos acontecidos no Leblon e Ipanema, por exemplo, e ataques de menores a turistas
nas suas praias, tenham muito mais visibilidade do que as centenas de mortes de pessoas
pobres de Bonsucesso, Vigário Geral ou do Complexo do Alemão. E que as centenas e
centenas de assaltos aí ocorridos sejam invisibilizados.
Em face do afirmado acima, o problema que se coloca é fazer com que a opinião
pública em geral tenha acesso a outras visões, sem, contudo, adotar a mesma atitude
sectária dos que tentam monopolizar o discurso. Não é tarefa fácil, mas poderão ser-nos
úteis as ponderações de Homi K. Bhabha (BHABHA, 1998: 248-52) em O local da
cultura acerca dos problemas da crítica pós-colonial.
Bhabha, que tem como referência o colonialismo inglês, alerta-nos para o cuidado
que se deve ter a fim de evitar que a crítica pós-colonial acabe sendo a contrafação dos
discursos que questiona, colocando os antigos sujeitos coloniais (os europeus, os
colonizadores, os senhores, os brancos) na posição de meros objetos, sem levar em conta
que os dominados (e as dominadas...) também participaram da produção dos discursos de
poder com suas artimanhas e estratégias de sobrevivência; com seus gestos, sua música e
dança; com risos e lágrimas; com o silêncio; com a dissimulação e, sobretudo, com a
mímica dos colonizadores e senhores. No nosso caso, portanto, não cabe substituir uma
visão unilateral por outra, um discurso por outro, mas tão-somente fazer com que as
visões da periferia se somem, e eventualmente se contraponham, às do centro. Todas essas
visões reunidas constituem um discurso polifônico, com significado próprio, não
correspondendo nem à visão de um grupo nem à de outro.
Para que se tenha uma visão um pouco mais ampliada do quadro é preciso esforço
para dar voz e visibilidade aos tidos por “maus”, “perigosos” e “violentos”, ou seja, para
transformá-los em sujeitos do discurso, com o cuidado de não inverter a equação,
objetificando e retirando a voz dos “bons”. Nessa direção, um outro conceito de Bhabha
que também nos será útil é o de “lugar enunciativo”, segundo o qual a cultura de uma
sociedade não deve ser tomada tão somente como objeto (do que se fala), mas também
como uma espécie do que vou chamar de “lugar que discursa”. Assim, num mesmo
espaço, podem-se vislumbrar diferentes tempos de significação: retrospectivo,
simultâneo, prefigurativo.
Essa passagem da cultura como objeto do discurso para cultura como “lugar que
discursa” implica a necessidade de se abandonar a idéia de tempo linear, com os
acontecimentos enfileirados um após o outro, como se o presente nada mais fosse do que
um marco divisório, estático, sem duração, entre o passado e o futuro. É preciso
reconhecer que, visto dessa forma, o presente acaba sendo tomado como mero amontoado
de acontecimentos escolhidos aleatória e convenientemente e, ainda assim, dentro da
visão limitada do narrador. Ora, a linearidade limita e estreita a visão, como se usássemos
antolhos, não permitindo que fatos ocorridos no mesmo momento e no mesmo lugar (e
em outros) sejam apreendidos e vistos de diferentes ângulos, e por diferentes olhos.
Este dado é importante porque nos faz compreender a necessidade de se “alargarem”
o espaço e o tempo do presente, pois este tem, sim, duração e abarca múltiplos espaços.
O presente do Rio de Janeiro não pode estar limitado a momentos escolhidos
arbitrariamente, referidos a uns poucos espaços, olhado e narrado de uma única
perspectiva. A cidade há de ser tomada como um “lugar que discursa”, ou, na expressão
de Bhabha, um “lugar enunciativo”, dividido em múltiplos “microlugares enunciativos”.
Roma é um discurso, assim como as ruínas do Coliseu, a Praça Navona e a Praça de São
Pedro, no Vaticano. Em se tratando do Rio de Janeiro, no conjunto dos símbolos da
cidade, poderíamos nos perguntar: o que nos estão a dizer as fortificações à entrada da
Baía de Guanabara, como os Fortes de Copacabana e São João? O que nos dizem o palácio
e os jardins da Quinta da Boa Vista? E as gravuras de Debret, com imagens de negros no
pelourinho sendo açoitados por outros negros? E o que nos diz a imagem do Cristo no
alto do Corcovado? E a do Pão de Açúcar? O que nos evoca o signo ”Rocinha”, ou
“Maré”, ou “Jacarezinho”? Que metáfora nos comunica a visão panorâmica, de dentro de
um helicóptero, do imenso amontoado de barracos e vielas do Complexo do Alemão (ou
da Favela da Coréia, em Campo Grande, ou a do Rato Molhado, em Del Castilho) e do
conjunto de condomínios e residências da Barra da Tijuca ou do Leblon? E o fato de os
moradores de São Conrado e da Rocinha serem vizinhos? E os morros do Pavão-
Pavãozinho-Cantagalo, próximos e “distantes” de Ipanema e Copacabana? Que leitura se
pode fazer da síntese dos modos de viver e de sentir dos moradores de lugares tão
diferentes? Compartilhariam todos o sonhado orgulho patriótico, a mesma “cultura
brasileira” e os mesmos valores civilizatórios? Seriam os seus problemas, angústias,
sonhos e dramas da mesma natureza? Que metáfora nos comunica a alegria contagiante
de nossas praias num dia de sol, em contraste com a imagem de crianças tristes,
disputando restos de comida com animais no lixo de uma das cidades mais bonitas do
mundo? A toda evidência, o somatório de tudo isso se constitui num discurso, passível de
múltiplas leituras. Mas é preciso disposição para querer ler. O que não resolve o problema
é tentar tomar para leitura apenas os aspectos positivos, ou apenas os negativos dessa
realidade. Ou olhá-los de um único ângulo. Se somarmos o que é bom e o que é ruim em
nossa sociedade, é possível que o saldo seja positivo. Positivo ou negativo, é um convite
à ação e não à reação.
Notas
Referências Bibliográficas