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Organizadores:
Luis Felipe Kojima Hirano
Maurício Acuña
Bernardo Fonseca Machado
IU - Imprensa Universitária
Prefácio 8
Marcadores
sociais das
Lilia Katri Moritz Schwarcz
diferenças:
(USP/Princeton) fluxos, trânsitos
e intersecções
Lilia Katri
A publicação dessa oportuna coletânea de ensaios, intitulada Fluxo, Moritz
trânsitos e intersecções, coincide com os 10 anos do Núcleo de Estudos dos Schwarcz
Marcadores Sociais da Diferença (Numas), criado nos idos de 2008 por qua-
tro pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP): Júlio Assis Simões,
Heloisa Buarque de Almeida, Laura Moutinho e Lilia Moritz Schwarcz; to-
dos professores do Departamento de Antropologia.
A ideia de criar uma linha de pesquisa sobre “marcadores sociais” re-
presentava, de alguma maneira, uma resposta às necessidades institucionais
do Departamento de Antropologia da USP, que precisava, por um lado, re-
novar a área denominada “relações raciais”, que, naquele contexto, passava
por um processo de mudança (de seus componentes e também de argumen-
to). O termo raça andava sob “litígio”, digamos assim, uma vez que carre-
gava consigo uma conotação biologizante, a despeito das críticas internas
dos membros da área. De alguma maneira, sobrava o ranço do darwinismo
racial, que buscou essencializar o conceito, e mesmo o viés culturalista não
lograra desmontar totalmente os pressupostos deterministas. Por outro lado,
era finalmente necessário introduzir as temáticas de gênero e sexualidade,
muito demandadas naquele momento, mas sem qualquer impacto no grupo
da USP. Além do mais, tratar os conceitos de forma relacional de alguma
maneira respondia a inquietações intelectuais que justificavam a criação de
uma nova linha, a qual, a princípio, limitou-se à intersecção de marcadores
sociais como raça e gênero.
O tema da “relação” que se estabelecia entre marcadores sociais como
raça e gênero, mas também geração, região, classe, geração, também estava
presente em obras que líamos na época como os textos de Bhabha (1998),
Crapanzano (2002), Pina Cabral (2005) e, mais adiante, de Anne MacClin-
tock (2010), que nos ajudavam a conectar temas que pareciam, até então,
pouco dados ao debate e sobretudo à intersecção. Ou seja, a compreensão
era de que, se esses temas eram potentes em si mesmos, ganhavam novos 9
significados quando entendidos conjuntamente e em tensão. Além do mais,
Marcadores
ao invés de criar áreas em separado, esses intelectuais nos ensinavam a in- sociais das
terconectar tais diferenças sociais e assim problematizar a definição em se- diferenças:
fluxos, trânsitos
parado, que não poucas vezes passava por um processo de “normatização”. e intersecções
Em 2009, por exemplo, procurei definir o conceito, partindo sobretu-
Lilia Katri
do do marcador raça, tema com o qual vinha trabalhando desde a Iniciação
Moritz
Científica, ainda na graduação. Dizia eu, naquela ocasião: Trata-se de um Schwarcz
repertório de
categorias ambivalentes e, como bem concluiu Homi Bhaha [(1998),
para outro contexto], se a fixidez é um signo da diferença cultural his-
tórica e racial no discurso do colonialismo, estamos, no caso brasileiro,
diante de múltiplos significados em uma combinatória de termos que
apontam para novas formas de construção de alteridades. (Schwarcz,
2012, p. 50).
Tal como mostrado por Pina Cabral (2005) para o caso de Macau,
“eles funcionam como dinâmicas relacionais, ‘identidades continuadas’.
São marcas de relações e sinalizadores emocionais.” (Schwarcz, 2012, p.
54). Claro está que cor não é nome, mas é uma forma de nominação, que, 10
no caso de nosso jogo, é externa, mas também autoatribuída. “Como diz
Marcadores
Geertz, ‘as sociedades, tal como as vidas, contêm as suas próprias interpre- sociais das
tações’ e quem sabe a cor seja uma maneira de nomear a nossa.” (Schwarcz, diferenças:
fluxos, trânsitos
2012, p. 54). Isso, se não cairmos no engano de pensar que a cultura se fe- e intersecções
cha em si e é imune à mudança. “Cor surge, assim, a um só tempo, como
[regra] de integração, mas também como forma de distinção.” (Schwarcz, Lilia Katri
Moritz
2012, p. 54). Por outro lado, não é por mera coincidência que, nesses tem- Schwarcz
pos recentes, e tomados pelo debate das cotas, a “raça” tenha voltado como
categoria política no Brasil e o ambiente acalorado ganhado um tom cada
vez mais emocional. Estava claro, portanto, como raça e etnia comporta-
vam-se como categorias emocionais, políticas e diacríticas só ganhando
forma sob relação; não em absoluto.
Como se vê, autores como os acima discriminados permitiam também
conectar o tema racial àquele da “descolonização” e verificar como esse
marcador social foi amplamente acionado, em geral com conotação nega-
tiva, quando se pretendia desmerecer as populações nativas. Pensar raça
como uma categoria eurocêntrica, colonial, permitia explorar politicamente
o tema e assim tirar dele o verniz da mera “objetividade acadêmica”.
Mas o debate do grupo de pesquisadores da USP, com certeza, não foi
apenas inspirado pela bibliografia que girava em torno da questão racial.
A esse conjunto de autores se juntavam intérpretes feministas de várias
vertentes como Gayle Rubin (2017), Judith Butler (2003), Donna Haraway
(1991), Avtar Brah (2006), que revigoravam os debates sobre gênero/sexo
justamente os intersecionando com outros elementos com os quais, regu-
larmente, estabeleciam relação, quando não conflito. Assim, juntando dois
mais dois, era possível resumir a área a partir da famosa frase retirada do
prefácio de MacClintock (2010, p. 19): “raça, gênero, classe... existem em
relação entre si e através dessa relação – ainda que de modos contraditó-
rios e em conflito”.
Outro local de inspiração era o Departamento de Antropologia da Uni-
versidade Estadual de Campinas (Unicamp), mais especialmente o Pagu. So-
bretudo Mariza Corrêa (1995), em seu famoso ensaio sobre a “mulata”, propu-
nha uma aproximação entre “etnia”, tal qual tratada nos estudos de etnicidade,
e “gênero”, na concepção desenvolvida pelos estudos feministas. Em ambos
os casos, a provocação implicava abandonar categorias “essenciais” e mostrar
como esses marcadores eram quase que noções “polares”, no sentido que se 11
definiam sempre em “relação” uns aos outros. Marcadores eram pensados,
Marcadores
portanto, como “categorias em articulação” (Moutinho, 2004), conceitos que sociais das
conviviam, se tencionavam e alteravam na inter-relação que estabeleciam. diferenças:
fluxos, trânsitos
A expressão “marcadores sociais da diferença” transformou-se, assim, e intersecções
numa maneira de denominar essas diferenças socialmente construídas e
Lilia Katri
cuja realidade acaba por criar, com frequência, derivações sociais, no que
Moritz
se refere à desigualdade e à hierarquia. O suposto do grupo era, também, de Schwarcz
que “os marcadores” diziam respeito a uma agenda da antropologia, que tra-
dicionalmente lidava com conceitos como “relatividade” e diferença”, não
como características inerentes e inatas aos seres humanos, mas como rela-
ções sociais que produzem grande impacto no mundo das representações. O
conceito dialogava ainda com outra concepção dileta da antropologia: a no-
ção de “alteridade” na versão que Rousseau deu ao termo. Isto é, até mesmo
em nosso trabalho cotidiano, antropólogos estudam “outros” para repensar
a “si próprios”. Assim, também etnógrafos produzem “em relação”, abrindo
a guarda das fronteiras canônicas e heurísticas entre o “eu” produtor de co-
nhecimento e o “outro”, aquele que é estudado.
O que importava mostrar era como diferentes sociedades criam suas
próprias classificações, cuja eficácia é tal que elas acabam naturalizadas, fa-
zendo desaparecer circunstâncias ou contextos históricos. Conforme mos-
trava Fry, já em 2012, a despeito dessas diferenças não serem necessaria-
mente negativas, elas, frequentemente, constroem assimetrias e exclusão
social. Com efeito, corriqueiramente, utiliza-se a “diferença” para desqua-
lificar, não o contrário. Por outro lado, na medida em que circulam, esses
marcadores de diferença se interseccionam, produzindo e deslocando sig-
nificados a partir das relações que estabelecem.
Em termos da bibliografia nacional, talvez a primeira pesquisadora a
usar o conceito de “marcador social”, com o sentido de uma diferença so-
cialmente construída, tenha sido Verena Stolcke, em 1993, na versão que
publicou em inglês de seu conhecido artigo “Is sex to gender as race is to
ethnicity” (Stolcke, 1993, p. 28). Tanto nesse ensaio como em outros (Stol-
cke, 1995, 2002, 2006), a pesquisadora preocupava-se justamente com in-
tersecções entre raça, gênero e nacionalidade. Para Verena, tanto raça como
gênero tinham uma relação estrita com os discursos de nacionalidade, cons-
tituindo-se em fermentos dos mais operantes – e nada mais próximo do 12
nosso contexto atual.
Marcadores
Outro nome pioneiro, e já citado nesse texto, foi o de Mariza Corrêa, sociais das
diferenças:
que, na introdução de seu ensaio “Sobre a invenção da mulata”, publica-
fluxos, trânsitos
do nos Cadernos Pagu em 1996, também inclui o conceito de “marcadores e intersecções
sociais de diferenças”, ao tratar de categorias como raça e gênero (Corrêa,
Lilia Katri
1996, p. 38). Adriana Piscitelli, outra autora brasileira muito influente nessa
Moritz
área, destacou como estes seriam sistemas de dominação que acabavam por Schwarcz
produzir claros “efeitos de subordinação social” (Piscitelli, 2008, p. 267).
Aliás, derivou desse contexto intelectual a ideia de Júlio Assis Simões
de denominar o núcleo valendo-se da noção de “marcadores sociais da di-
ferença”, articulando, assim, diferentes investigações já existentes no De-
partamento de Antropologia da USP em torno dos conceitos de etnia, raça,
gênero, sexo, geração.
Se os estudos feministas, de uma forma geral, tiveram grande impor-
tância na formação do conceito, foram autoras norte-americanas, do fe-
minismo negro e do feminismo lésbico dos anos 1980 (Davis, 1981; Hooks,
1981; Moraga, Anzaldúa, 1982), que deram um pontapé forte na temática. Já
o conceito de “interseccionalidade”, como mostram os organizadores des-
sa coletânea, foi muito impulsionado pelas análises de Kimberlé Crenshaw
(1989), a qual incluiu os ativismos políticos dos movimentos feministas e
antirracistas, implicando o conceito com a necessária criação de mecanis-
mos legais de luta contra a exclusão social.
Eu seria injusta, e me parece aqui desnecessário, destacar todas as vá-
rias colaborações de colegas de área na construção dessa linha.1 De toda
maneira, não pretendo fazer uma arqueologia do conceito, apenas histori-
cizá-lo, mostrando como há uma espécie de história do pensamento social
em torno da expressão. Meu intuito é, também, e até aqui, mostrar como o
1 Vide, nesse sentido, bibliografia ao final do ensaio.
diálogo em torno dessas categorias tem uma espécie de arqueologia interna
(tanto nacional como internacional) e com grande impacto na produção das
jovens gerações de pesquisadores.
Retomando o começo dessa introdução, não me parece, pois, coinci-
dência que essa coletânea saia junto com a celebração dos 10 anos do Nu-
mas, e seja organizada e amplamente contemplada por antigos e atuais dis-
centes do Núcleo da Antropologia da USP, muitos deles, hoje, professores e 13
investigadores formados de reconhecida qualidade. Marcadores
O conceito também viajou com os autores dessa coletânea, sendo sociais das
diferenças:
apresentado em diferentes congressos e fazendo-o multiplicar-se a partir fluxos, trânsitos
de seus diferentes objetos de pesquisa. Essa foi talvez uma atitude “de au- e intersecções