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1. Com dez, vinte, trinta anos de antecedência, os intelectuais esquerdistas de maior peso discutem e
elaboram os conceitos e a linguagem das novas idéias destinadas a revigorar e ampliar o movimento
revolucionário mundial.
2. Em seguida essas propostas passam à alçada das grandes fundações bilionárias e organismos
internacionais, onde o segundo escalão intelectual – técnicos, planejadores sociais, publicitários,
ativistas — lhes dá o formato operacional para transmutá-las em propostas concretas.
3. Essas propostas são então espalhadas pelo mundo por meio de uma infinidade de livros, artigos,
conferências, filmes, espetáculos de teatro, sempre subsidiados pelas mesmas fontes, mas apresentados
como iniciativas independentes, de modo a dar a impressão de que a mudança planejada provém de
uma fatalidade histórica impessoal e não de uma ação organizada. Ao mesmo tempo, desencadeia-se
um conjunto de operações preventivas destinadas a neutralizar, reprimir e, se necessário, criminalizar
toda resistência.
4. Só então as propostas chegam aos países do Terceiro Mundo, por meio de ONGs e agentes pagos que
as inoculam primeiro nos círculos de intelectuais mais ativos, que as retransmitem aos estudantes e à
mídia, não raro apresentando-as como suas criações pessoais e originalíssimas, de modo que a multidão
dos aderentes não tenha a mais mínima idéia da existência de um empreendimento internacional
organizado por trás dos efeitos políticos que se seguem inexoravelmente.
5. A última etapa é a produção desses efeitos, por meio dos agentes políticos – militância organizada,
agentes de influência, legisladores – que transformam as propostas em leis e instituições.
Na última etapa, as origens intelectuais das propostas, bem como sua base internacional de sustentação
financeira e organizacional, já se tornaram praticamente invisíveis para a população em geral, de modo
que toda a discussão a respeito, destinada a fazer com que a adoção das novas medidas pareça surgir do
fluxo normal e espontâneo da vida democrática, se atenha às definições nominais e aos aspectos mais
periféricos das questões respectivas, sem possibilidade de examinar seja o esquema de poder que
articulou a seu belprazer a situação de debate, seja as implicações históricas de longo prazo que advirão
das transformações pretendidas. Quando essas conseqüências se revelam catastróficas, a culpa pelo erro
que as produziu já está tão disseminada pela sociedade que toda tentativa de rastrear e responsabilizar
os autores das propostas iniciais, caso ainda ocorra a alguém a tentação de empreendê-la, começa a
parecer rebuscada e artificiosa como uma “teoria da conspiração”.
O próprio preconceito economicista que se apossou dessas forças, induzindo-as a esperar que a fraqueza
econômica do socialismo se transmute automaticamente em fracasso político-cultural do movimento
esquerdista, já mostra o quanto o imaginário liberal-conservador foi infectado e moldado pela
cosmovisão esquerdista, hoje “onipresente e invisível” como a desejava Antonio Gramsci.
Desse preconceito, em simbiose com o imediatismo político, nasce o profundo desinteresse que os
liberais e conservadores têm pelo debate interno de idéias na esquerda. Como o conteúdo desse debate
lhes parece falso e alucinatório e por isso supremamente tedioso, não percebem que por trás dessa
falsidade e alucinação há um método e uma estratégia. Nem muito menos que a falsidade louca de uma
idéia jamais foi obstáculo ao seu sucesso político. Enquanto os liberais e conservadores discutem
economia, criando esquemas saudáveis e racionais que jamais serão levados à prática, os esquerdistas, a
salvo de qualquer fiscalização crítica da parte de seus adversários, inventam as mentiras e alucinações
com que dominarão a consciência das multidões e conduzirão o processo histórico para onde bem
entendam, com a facilidade com que um menino-pastor puxa um búfalo de uma tonelada pela argola do
nariz.
Vou dar aqui um único exemplo de doutrina alucinatória que jamais vi despertar o interesse dos liberais
e conservadores brasileiros e que por isso mesmo consegue praticamente dominar o ambiente
universitário, cultural e midiático nacional, influenciando o curso dos acontecimentos e impondo
derrotas humilhantes à racionalidade econômica liberal-conservadora.
Refiro-me à escola “desconstrucionista” de Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Paul de Man, Gianni
Vattimo e outros, que torna inviável toda idéia de veracidade objetiva e instaura em seu lugar o primado
da ficção militante.
Como em artigos vindouros pretendo abordar aqui vários fenômenos da política brasileira que jamais
teriam podido produzir-se exceto num ambiente intelectual dominado por essa escola, a utilidade
essencial de conhecê-la se tornará mais evidente nas próximas semanas.
Usei o termo “escola”, mas os próprios desconstrucionistas o rejeitam. Também não aceitam que o
desconstrucionismo seja definido como uma filosofia, um método de interpretação, um projeto
acadêmico ou qualquer outra coisa. Não aceitam definição nenhuma, o que já coloca o recém-chegado
na obrigação de escolher entre embarcar às cegas na aventura sem nome ou, ficando de fora, não poder
criticá-la sem ser acusado de incompreensão leiga. À entrada do templo desconstrucionista, portanto,
um cartaz em letras de fogo já anuncia: “Ame-o ou deixe-o.” Mas deixá-lo significa excluir-se a si próprio
da comunidade acadêmica e ser considerado um ignorante ou reacionário, um escravo do universo
lingüístico pré-desconstrucionista e, portanto, um virtual objeto de desconstrução. Não há terceira
alternativa entre desconstruir e ser desconstruído – e esta última hipótese não significa apenas ser
objeto de análise corrosiva, mas de destruição social e profissional.
Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido nietzscheano, afirmando que, se o dircurso não é
representação da realidade, é expressão da “vontade de poder”. Mas isso não quer dizer que por trás do
discurso exista um “eu” manifestando sua vontade de poder. A idéia de um eu estável e autoconsciente é
ela própria uma representação da realidade. Como nenhuma representação da realidade pode
funcionar, o eu também não existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu”.
Se a língua estava totalmente separada da realidade por ser apenas um sistema de diferenças, o
desconstrucionista vai agora separá-la do próprio sujeito pensante, acrescentando à mera “différence” a
“différance”, com “a”, termo criado por Derrida para designar o intervalo de tempo entre o sujeito como
autor do discurso e o mesmo sujeito considerado enquanto assunto do discurso. Em português ele não
precisaria inventar esse trocadilho medonho, pois aí existe a palavra “diferição”, sinônima de
“adiamento”, que, por aquela mistura de pedantismo e ignorância, típica do meio acadêmico nacional,
os tradutores brasileiros se recusam a usar, preferindo o neologismo francês para dar a impressão de
que se trata de uma nuance sutilíssima. Qualquer que seja o caso, Derrida está falando simplesmente de
uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você fala não é nunca o eu que está falando. Mas, se
é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca presente a si mesmo. Separado do objeto pela
circularidade do sistema, o discurso está também separado do sujeito pela diferição, ou, se preferem,
“différance” (como diria Dirty Harry: Cazzo!). Diga você o que disser, ou pense o que pensar, será sempre
uma ausência falando de outra ausência.
Se o eu não existe e o objeto que ele pensa também não existe, só o que existe é o ato de poder que cria
uma ficção chamada “eu” e outra ficção chamada “objeto”. O motivo que produz a necessidade de criar
essa ficção é o desejo de escapar da morte, da aniquilação. Mas a morte é inescapável, é a “realidade”.
Portanto a função de todos os discursos é negar a realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso
consiste o poder, a genuína liberdade. O Evangelho (João, VIII:32) dizia que a liberdade nasce do
conhecimento da verdade. Para Derrida e os desconstrucionistas em geral, a liberdade consiste em negar
a verdade, afirmando, com isso, o próprio poder.
No início alguns marxistas ficaram alarmados com a nova filosofia, que, ao negar a realidade, punha em
xeque toda pretensão de conhecer as leis objetivas do processo histórico. Mas Derrida logo conseguiu
acalmá-los, mostrando que, se o desconstrucionismo era ruim para a teoria marxista, era bom para o
movimento revolucionário, dando-lhe não só os meios de corroer toda a cultura ocidental por meio da
negação do significado em geral, mas também de afirmar o seu próprio poder ilimitadamente: livre das
coerções da realidade objetiva, imune portanto a qualquer cobrança na esfera dos argumentos racionais,
ele poderia impor sua vontade por todos os meios ficcionais possíveis, enquanto seus adversários,
travados por escrúpulos de realidade e lógica, observariam inermes a sua ascensão irresistível.
Todo o empreendimento desconstrucionista é, de fato, uma resposta prática ao apelo formulado pelo
marxista húngaro Georg Lukacs, ao perceber que o grande obstáculo ao comunismo não era o poder
econômico da burguesia, mas dois milênios de civilização judaico-cristã. “Quem nos livrará da civilização
ocidental?”, perguntava angustiado Lukacs. Quem logo se apresentou como primeirão da fila foi o nazista
Martin Heidegger. Destruição – Destruktion – é a palavra-chave de tudo o que ele fez na vida: desde
escrever e depois desescrever Ser e Tempo até aplaudir a ascensão do Führer e recusar-se a esclarecer o
assunto depois da II Guerra, deixando seus fãs numa dúvida perturbadora que dava à sua filosofia ainda
mais sex appeal. A essência da filosofia de Martin Heidegger consiste em abolir o Logos, o verbo divino
que faz a ponte entre o pensamento humano e a realidade externa, e colocar em seu lugar a “vontade
de poder” do Führer. Heidegger foi o primeiro herói da guerra contra o “logocentrismo”. A convergência
entre seus esforços filosóficos e os objetivos de Georg Lukacs foi o pacto Ribbentropp-Molotov da
filosofia. Mas Heidegger, afinal, não criou como substitutivo para a civilização judaico-cristã nada além
da filosofia de Martin Heidegger, que só serve para quem a entende. Derrida et caterva transmutaram
essa filosofia num projeto acadêmico indefinidamente subsidiável e num movimento político do qual
milhões podem participar sem entender coisa nenhuma do que estão fazendo. Tinha de ser mesmo um
sucesso triunfal.
Ainda mais triunfal foi essa ascensão no Brasil, onde o temor reverencial à moda acadêmica francesa, o
prestígio sacral do discurso incompreensível e a síntese de pedantismo e ignorância que constitui a
forma mentis inconfundível da nossa classe universitária erigiram o desconstrucionismo num culto
fanático que não apenas repele contestações mas nem mesmo admite a existência delas.
Um traço peculiar do desconstrucionismo, que no Brasil foi acentuado até suas últimas conseqüências, é
que, ao negar a existência da verdade, ele não abdica de atacar a “mentira”. Quando ele o faz perante
um público que desconhece a nuance específica que o termo tem para um desconstrucionista, a platéia
acredita que ele está defendendo a “verdade”. Mas, no círculo interno, sabe-se que não existe verdade.
“Mentira”, pois, é apenas aquilo que se opõe à ficção preferida do grupo desconstrucionista, à sua
“vontade de poder”. Inversa e complementarmente, o termo “verdade”, ao ser usado pelo
desconstrucionista perante os leigos, significará para estes uma representação adequada da realidade
comprovável, mas, entre os iniciados, sabe-se que isto não existe e que o emprego do termo se destina
apenas a explorar as ilusões do público para induzi-lo a submeter-se às ilusões e desejos do grupo
ativista. Nesse sentido, pode-se e deve-se estigmatizar como “mentira” os fatos mais amplamente
comprovados e impor como “verdade” qualquer mentirinha boba conscientemente inventada para
vitaminar a “vontade de poder” do movimento.
Reparando em detalhes como esse, o próprio Jacques Derrida foi obrigado a moderar as pretensões do
seu método, reconhecendo a existência de “indesconstruíveis” e, no fim, admitindo que entre eles
estava – que raiva, pô! – o próprioLogos. Desconstrua você o que desconstruir, estará sempre, pelo
simples fato de pensar e falar, dentro de um quadro de referências balizado pelo Verbo Divino ou por
seus reflexos na tradição metafísica. No fim das contas, a Destruktion, como o projeto nazista, pode
destruir muitas coisas em torno, mas se destrói a si mesma – e àqueles que embarcaram na sua proposta
– em escala infinitamente maior. Proclamando que a liberdade consiste em negar a verdade, o
desconstrucionista só exerce sua liberdade de viver da ficção e sentir um gostinho de poder até o
momento em que a morte substitui todas as ficções por uma verdade “indesconstruível” e a vontade de
poder pela impotência definitiva dos cadáveres. Expressão modernizada da revolta gnóstica contra a
estrutura da realidade, o projeto desconstrucionista está destinado ao fracasso, mas o fracasso cognitivo
pode ser um sucesso político-social, na medida em que arraste na sua voragem milhões de idiotas
hipnotizados pela atração do abismo.