Você está na página 1de 4

05/09/2020 Folha de S.

Paulo - As ambiguidades de um bicentenário - 18/08/2002

São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

As ambiguidades de um bicentenário

Comemorações em torno dos 200


anos de nascimento de Victor Hugo,
celebrado por conservadores e pela
ex-esquerda, ensejam a volta do
moralismo burguês e dão novo
fôlego às retóricas universalistas

Jacques Rancière

Então faz 200 anos que Victor Hugo nasceu. Os aniversários


não dependem da vontade dos homens. Mas o mesmo não
acontece com as comemorações. Por exemplo, não havia
uma razão decisiva, dois anos atrás, para se fazer um
acontecimento do 20º aniversário da morte de Sartre. Mas
havia a vontade de indicar, através de sua "reabilitação", que
uma certa página fora virada. Como o marxismo e a
revolução aos quais ele associou sua palavra e sua ação, para
escândalo das pessoas cultas e de muitos de seus colegas,
não causavam mais medo, era possível dissociá-lo,
salientando, ao contrário, a independência do artista e a
exigência do moralista que sempre o distinguiram das forças
do mal, mesmo quando ele pareceu mais próximo delas. Foi
possível integrá-lo à tradição nacional do escritor culto,
amante da arte, mas também preocupado com a justiça e o
bem comuns, oposta à cegueira dos clérigos seduzidos pelas
sereias da teoria e da prática totalitárias.
Para Victor Hugo (1802-1885), a operação é aparentemente
mais simples. A celebração do autor de "Os Miseráveis"
parece enquadrar-se naturalmente numa atualidade política
em que o novo governo francês assumiu como palavra de
ordem a solicitude para a França "de baixo": fórmula
suficientemente elástica para incluir o habitante das
periferias vítima da delinquência, o padeiro artesão que
fabrica pão à moda antiga, o pequeno empresário e o notável
local. Jean Valjean foi um ladrão de pão, mais que padeiro,
mas também, ao sair dos trabalhos forçados, patrão e prefeito
de uma cidade industrial. Mas a comemoração de Victor
Hugo se inscreve sobretudo na grande operação conduzida
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1808200210.htm 1/4
05/09/2020 Folha de S.Paulo - As ambiguidades de um bicentenário - 18/08/2002

desde a queda do império soviético e o recuo do movimento


social para contrapor uma boa tradição do intelectual
moralista de anteontem, amante da justiça, do progresso
social e da instrução pública, à má tradição do intelectual de
ontem, adorador imoral das necessidades da dialética e das
artimanhas da história.
Durante muito tempo esses republicanos do século 19,
amantes da fraternidade humana e do progresso do povo
através da instrução, foram objeto de homenagens ambíguas,
em que a suspeita e a zombaria se misturavam à vontade.
Não foram somente os marxistas que zombaram desses
republicanos ou socialistas sentimentais que dissimulavam
por trás de grandes palavras as realidades nuas da luta de
classes e acreditavam curar os males sociais por meio de
sentimentos generosos e da instrução pública. Da mesma
forma, os antimarxistas os censuravam: a ênfase com a qual
eles denunciaram a miséria não havia criado essa atmosfera
de compaixão pelos humildes que abriu a porta às ilusões
igualitárias assassinas e favoreceu a complacência dos
intelectuais para com os totalitarismos? Seus apelos à
fraternidade universal não contribuíram também para
desarmar a vontade das democracias diante de seus
adversários? Em suma, enquanto o espectro do comunismo
causou medo, esses fantasmas da grande fé fraternal e
humanitária também foram suspeitos. A moral dos idealistas
passava por cúmplice da brutalidade dos revolucionários
realistas. Isso já era ironizado em "Os Miseráveis", na canção
de Gavroche:

"Eu caí por terra,


A culpa é de Voltaire.
Com o nariz na sarjeta,
É culpa de Rousseau!"

Agora que o medo do comunismo está afastado, podemos


reescrever e reavaliar a história. A moral, durante muito
tempo associada à fuga cômoda diante dos compromissos da
realidade e às complacências duvidosas para com as ilusões
revolucionárias, hoje é reivindicada praticamente por todos
os governantes, chefes militares e ideólogos como princípio
de toda a sua ação. Da mesma forma, Voltaire e Rousseau,
Hugo e Zola, hoje, podem ser o exemplo dos bons
intelectuais, que denunciaram os abusos reais de seu tempo e
defenderam os valores essenciais da civilização e da
comunidade. Uma parte da classe intelectual francesa hoje
canta louvores a esses heróis nacionais do pensamento
universal, que ela opõe aos miseráveis pequenos intelectuais
do século 20, assalariados ou subvencionados por governos
democráticos e empenhados em negar a liberdade que estes
lhes permitiram gozar e em cantar louvores ao totalitarismo.
A esses triunfos "post-mortem" soma-se, é verdade, uma
inquietação meio fingida, meio séria. Aqueles que dez anos
atrás comemoraram a vitória final da democracia liberal, dos
direitos do homem e do indivíduo sobre as restrições ou os
horrores do coletivismo, hoje mudam de tom. Segundo eles,
hoje há direitos demais e deveres de menos, livre escolha
individual demais e disciplina coletiva e união social de
menos. O individualismo democrático, portanto, hoje
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1808200210.htm 2/4
05/09/2020 Folha de S.Paulo - As ambiguidades de um bicentenário - 18/08/2002

colocaria a democracia em perigo. O remédio contra isso


seria revitalizar a grande tradição da república educadora,
ensinando a todos e a cada um a colocar suas reivindicações
privadas atrás dos grandes valores universalistas e do sentido
do elo comum a se preservar.
Esta é a hora do retorno aos pais fundadores da vida cívica,
quer eles se chamem Thomas Jefferson ou Victor Hugo. Os
nostálgicos do movimento social certamente têm uma
interpretação mais cáustica desse retorno às grandes figuras
do idealismo republicano. Se "Os Miseráveis" está
novamente na ordem do dia é porque a miséria também está,
porque a destruição neoliberal das formas de proteção e de
solidariedade sociais faz novamente dela um assunto
individual, objeto da solicitude dos pesquisadores sociais,
das associações filantrópicas e dos homens de letras de
coração largo.
Talvez pudéssemos contrapor a ambos que esse próprio
coração largo não está livre de certas ambiguidades -e que
são estas que fazem a atualidade do poeta. Victor Hugo pôde
apresentar pessoalmente "Os Miseráveis" como um grande
grito lançado contra a "degradação do homem pelo
proletariado". Mas esse grito está longe de ser unívoco. Não
somente porque ele divide a miséria em dois: um problema a
ser resolvido pelos governos dos homens e um mistério
confiado à providência divina. É sobretudo porque à
compaixão pelas vítimas da ordem social se mistura um
singular fascínio pelos subterrâneos obscuros dessa ordem.
Por mais lírica que seja a descrição da morte heróica dos
republicanos nas barricadas, sentimos o poeta mais
interessado pelo episódio seguinte: Jean Valjean carregando
o corpo de Marius ferido, mergulhando no "intestino de
Leviatã", isto é, no grande esgoto parisiense.
O subsolo obscuro da cidade brilhante é para os políticos o
mundo da miséria que denuncia a ordem social ou o reino da
subversão que mina suas bases. Para o romancista, a "descida
aos infernos" da sociedade é outra coisa: o mergulho nesse
mundo subterrâneo que é a verdade secreta do outro, no
universo da grande igualdade que sustenta a superfície das
diferenças sociais e recebe seus farrapos. O esgoto, diz ele, é
"a consciência da cidade", o "grande cínico" que diz tudo: a
toga do juiz se arrasta perto de algo podre que foi a saia da
empregada, a moeda de ouro ao lado do prego do suicida, ou
esse fino lençol de marquesa que se tornou a mortalha de um
revolucionário.
Essa grande desordem é diferente de uma curiosidade de
esteta. É o emblema de outra igualdade, diferente daquela
pela qual se combate nas barricadas. É também o emblema
de uma nova idéia da arte. Esta por muito tempo decorou os
palácios e serviu às festas dos grandes deste mundo. No
tempo de Hugo, ela se dedica então a uma nova beleza: não a
das conquistas do povo, mas a do esplendor inédito que
nasce da própria decadência das antigas grandezas. Não é
apenas porque agora, como disse Flaubert, não há mais
distinção entre os sujeitos nobres e os sujeitos vis, e que uma
pequena cidade da província normanda equivale a
Constantinopla. É que, no próprio momento em que alguns
anunciam a morte da arte anestesiada pela racionalidade
cinzenta da ordem burguesa, esta descobre para si um novo
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1808200210.htm 3/4
05/09/2020 Folha de S.Paulo - As ambiguidades de um bicentenário - 18/08/2002

território, infinitamente renovável: o território de todas essas


vestimentas da grandeza ou opulências da mercadoria
desprovidas de sua utilidade social e por isso dotadas de uma
beleza inédita, feita de elementos contraditórios. Elas são ao
mesmo tempo signos escritos onde se lê uma história,
emblemas da melancolia das coisas inutilizadas e
testemunhos do esplendor matizado, daquilo que existe sem
porquê, como a rosa do místico.
É verdade que Hugo só se permite ir parcialmente ao encanto
dessa beleza. Os capítulos dos "Miseráveis" sobre o
subterrâneo às vezes beiram a esquizofrenia. O poeta
descreve suntuosamente as paisagens fantásticas do esgoto, o
reformador o interrompe para reclamar que se fertilizem os
campos com esses excrementos desperdiçados na água dos
rios. O primeiro se deixa fascinar pelas criações monstruosas
dessa "língua de sapo" que é a gíria. O segundo o detém para
pedir que os governantes distribuam com largueza as luzes
da instrução, que dissiparão as trevas do crime e de sua
língua. A posteridade seguiu mais francamente o caminho
dessa descida ao inconsciente da sociedade e explorou o filão
dessa nova beleza das coisas inutilizadas.
A poética surrealista dela se alimentou: passeios do
"camponês de Paris" de Aragon por essas passagens
parisienses abandonadas que são como a abertura dos
infernos no coração da grande cidade moderna; fotografias
de Brassaï dos grafites nos muros, que são as novas pinturas
rupestres, ou dessas esculturas involuntárias constituídas por
exemplo de um bilhete de ônibus enrolado; imagens feitas
por Eli Lotar nos abatedouros; teorização por Walter
Benjamin do "trabalho da dialética" na arquitetura antiquada
dos templos desativados da mercadoria do século 19.
Recentemente um historiador da arte, Georges Didi-
Huberman, tentou, em seu livro "Ninfa Moderna",
acompanhar a passagem dos drapeados da escultura antiga às
prateleiras de roupas de Christian Boltanski ou às fotografias
feitas por Steve McQueen dos panos de chão enrolados nas
sarjetas parisienses. E ele inscreveu naturalmente o esgoto de
Hugo e seus panos atirados na lama como um momento forte
nessa evolução, na transferência da antiga beleza das linhas
puras e das atitudes nobres para essa beleza contemporânea
suscetível de se manifestar em um monte de trapos
inutilizados. Podemos discutir a tese, mas é razoável pensar
que essa herança do autor de "Os Miseráveis" é mais atual e
mais profunda que a outra.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Texto Anterior: + autores: O mecanismo da corrosão


Próximo Texto: + livros: As cores e os riscos da alma
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1808200210.htm 4/4

Você também pode gostar