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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - Autores - Jacques Rancière: A loucura Eisenstein - 22/03/98

São Paulo, domingo, 22 de março de 1998

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AUTORES
A loucura Eisenstein

Em "A Linha Geral", o cineasta


letão alia o conceito puro à
alucinação

JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

Assisti pela primeira vez ao filme "A Linha Geral" por volta
de 1960, na Cinemateca de Paris. O público estudante,
inclusive eu, dividia-se entre suspiros e risos irônicos diante
daqueles sonhos de estábulos modelos e chafarizes de leite.
Ao revê-lo hoje, pergunto-me por quê. Os que riam ou
suspiravam tinham tendências esquerdistas, vibravam com a
epopéia do "Potemkin" e, sem dúvida, teriam sido os
primeiros a defender as virtudes da coletivização agrícola. E
aqueles a quem a estética cinematográfica interessava mais
do que a produção leiteira soviética podiam ser insensíveis
ao esplendor das sombras e luzes que se refletiam nos rostos
ao redor da desnatadeira, do delírio visual das núpcias do
touro ou da competição entre ceifadores, da extraordinária
mescla de humor e aflição que empresta sua tonalidade à
demonstração fracassada do tratorista?
O problema, afinal de contas, não vinha nem da política
subjacente nem da qualidade das imagens. Vinha da sua
junção. Prendia-se, aliás, à nossa idéia do que poderia ser
uma política de imagem e uma ficção da política. Para que o
filme suscitasse nossa adesão, deveria escolher entre dois
modos de encarnação da idéia comunista: ou um
documentário sobre as ações concretas da coletivização
agrária, ou uma ficção com personagens. E, no segundo caso,
seria preciso que os bovinos cedessem mais lugar aos
humanos, que Marfa experimentasse sentimentos
apaixonados por outra coisa que não a sua desnatadeira, o
seu touro ou o seu trator -por exemplo, pelo jovem
kolkoziano com cabelos cor de trigo-, que os personagens
fossem dotados de sentimentos mais "complexos", que os
gulags fossem um pouco menos negros e os burocratas um
pouco menos caricaturais. Em suma, um filme "comunista",
para ser amado, devia encarnar o comunismo em
personagens suscetíveis de amar outra coisa que não eles
próprios.
Alguém dirá que se tratava de uma reação de pequenos-
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burgueses progressistas e estetas. Mas esse não é o paradoxo


essencial. O que censurávamos no filme de Eisenstein ao
tachá-lo de "filme de propaganda" era, no fundo, a mesma
coisa que os propagandistas soviéticos lhe haviam censurado
em sua época, ao tachá-lo de "cinema formalista",
contrapondo-lhe a representação do "homem vivo". As
acusações de formalismo e de propagandismo opõem-se
apenas em aparência. Uma e outra referiam-se à mesma
coisa: ao modo como o filme plasmava o conteúdo
comunista diretamente em forma e imagens, contrariando
simultanemente as regras do real e da ficção.
Esta era, de fato, a proposta do "cinema intelectual" de
Eisenstein, esse cinema de que "A Linha Geral" é a única
realização verdadeira. Pois todos os outros filmes
efetivamente conduzidos a termo por Eisenstein põem os
métodos da montagem cinematográfica a serviço de um dado
já constituído. "A Greve", sem dúvida, põe em cena um
conceito de greve que não corresponde a nenhuma greve
histórica particular. O fuzilamento nas escadarias de Odessa
é, sem dúvida, uma invenção nascida do autor do
"Encouraçado Potemkin", da sensação de fuga material
transmitida pelas escadas. E outra inovação é aquele cavalo
apanhado, em "Outubro", pelas pontes levadiças de
Petrogrado.
O tema desses filmes contém em si mesmo, porém, uma
intriga já constituída, cenas propostas ao reconhecimento,
afetos ou emblemas partilhados. O mesmo não ocorre em "A
Linha Geral". Este é um filme concebido a partir de uma
palavra de ordem. É a estrita aplicação de uma poética da
tradução de um conceito num discurso cinematográfico. A
montagem constitui a própria intriga. E é nessa mesma época
que Eisenstein reelabora esse conceito. Retomando seu
antigo interesse pela língua e teatro japoneses, ele identifica
o princípio da montagem ao da língua ideogramática, na qual
um conceito intelectual é o produto de duas imagens
sensíveis.
E, no entanto, não é essa lógica da composição imagética de
significados que compõe o pano de fundo de "A Linha
Geral". Apesar das análises consagradas por Eisenstein ao
recensear as "linhas" entrelaçadas e os "conflitos" visuais de
seu filme, o ponto decisivo está em outra parte. Algo que
nem os oficiais soviéticos nem os amadores ocidentais
puderam admitir: a identificação imediata entre a afirmação
de um puro conceito e o desdobramento de uma imagem
alucinatória. O filme começa à maneira construtivista e
dialética, segundo o princípio indicado pelo subtítulo: "O
Antigo e o Novo". E a cena da desnatadeira, sucedendo à
fraude da procissão religiosa, é, no início, construída
segundo esse modelo. Mas, quando a gota de leite em
formação aparece no bico da desnatadeira, quando Marfa
respinga o rosto com o líquido que esguicha e as colunas
líquidas explodem na tela como fogos de artifício, tem início
um filme inteiramente diverso. Ele nasce do primeiro como
aquele touro gigantesco e fantasmagórico, cuja imagem
cobre os rebanhos reais e invadem a tela.
Essas cascatas brancas sobre um fundo negro serão
assimiladas pela cineasta tanto às orgias de uma festa
dionisíaca quanto à abstração do quadrado branco sobre
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fundo negro de Malevitch. Uma coisa é certa: por excesso ou


por falta, elas arruínam igualmente toda incarnação humana
razoável da idéia. Marfa deixa definitivamente de
corresponder a uma figura política identificada (a
"camponesa pobre avançada"). Ela não é mais do que esse
puro afeto, essa loucura de leite a jorrar, de rebanhos a perder
de vista, de dentes de aço arrancando oceanos de gramíneas
em flor -loucura por meio da qual o vaivém mecânico das
máquinas de escrever e as caligrafias ridículas da burocracia
só poderão ser aniquilados. O suspense das "núpcias", na
qual a noiva se revela uma vaca que se unirá ao touro, faz
girar todo o sistema de relações entre o significado e a
sensação. Depois dele, a competição dos ceifadores também
assumirá a figura de uma irrupção bárbara de afetos, de uma
pura cena de mitologia.
Eisenstein conseguirá racionalizar essa loucura na
complementaridade do "orgânico" e do "patético", na qual o
"patético" identifica-se sabiamente à lei dialética do "salto
qualitativo". Mas o "patético" é coisa bem diversa: é o curto-
circuito de um pensamento que excede todas as formas
normais de sua configuração sensível e identifica-se a um
abalo de todos os dados sensoriais. O frenesi de Marfa
aspergida de leite ou do jovem kolkoziano devorando o
campo com sua foice, as núpcias mitológicas do touro ou a
marcha gloriosa da máquina. Mais tarde, Eisenstein
reivindicará o caráter "extático".
Ele o assimilará à subversão de todos os dados da
perspectiva e de todas as relações normais de proporção na
pintura de El Greco -e, para arrematar, ao frenesi cósmico
que anima as descrições de um pintor alucinado da
fecundidade, Émile Zola: esboço de mercadorias em
exposição ou de botequins populares, incêndios da Comuna
de Paris ou alucinação do abade Mouret, que vê a natureza
impetuosa invadir e destruir sua igreja.
Tal é a lógica que Eisenstein opõe aos amadores de
documentos ou de ficções comunistas. Um filme
autenticamente comunista é aquele capaz de identificar a
inteligência conceitual das relações materiais, desencadeadas
pelas potências sensoriais em liberdade. Este é o paradoxo
que ele lança com igual altivez e ironia no rosto daqueles
que, no Congresso de 1935, pretendem arrancá-lo de sua
"intelectualidade" e reconduzi-lo aos valores da calorosa
humanidade: a estética comunista só pode ser a união das
formas mais altas do pensamento intelectual com as camadas
mais profundas do pensamento sensorial.
E o pretenso "formalismo" é o próprio mergulho nessas
profundezas. Mais tarde, quando se importar menos em
justificar-se diante de censores do que em compor sua
imagem para a posteridade, ele radicalizará de bom grado a
proposta. O princípio da montagem, que ele explicará em
suas "Memórias", prende-se totalmente à percepção do
supersticioso, para quem o gato não é apenas um "mamífero
lanoso", mas uma combinação de linhas associada, desde
tempos imemoriais, à obscuridade e às trevas. O poder
político da obra intelectual prende-se, assim, ao modo como
o trabalho radica na noite dos tempos, quando o humano não
se separa do não-humano.
É inútil tentar decidir entre as centenas de interpretações que
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ele nos legou malignamente de sua obra de cineasta. Já basta


que, entre os filmes joviais da epopéia revolucionária e os
filmes joviais da época patriótica, ele nos tenha deixado
diante deste objeto, capaz de provocar um mal-estar que não
tem nada a ver com a consciência política pesada -o mal-
estar físico diante desse objeto sempre problemático: um
filme comunista.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e um


dos nomes centrais da filosofia francesa atual. É autor de "O
Desentendimento" (Ed. 34), "A Noite dos Proletários" (Companhia das
Letras), entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.

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