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09/03/2020 A Construção de Significados Através da Montagem Cinematográfica

A Construção de Signi cados Através da Montagem


Cinematográ ca
Karam
Jul 12, 2016 · 8 min read

Sergei Eisenstein (1898–1948).

Em 1895, data do nascimento do cinema, os primeiros filmes se constituíam,


basicamente, de cenas do cotidiano registradas sob um único ponto de
vista, ou seja: a câmera dos cineastas do final do século XIX permanecia estática diante
da ação, se restringindo a acompanhar o desenrolar da cena, como uma pessoa que
anda por uma rua movimentada e para, estupefata, diante de algo que a fascina.

No entanto, com a possibilidade teórica de se criar narrativas mais complexas — como


as aventuras fantásticas de Georges Meliés, por exemplo –, a montagem começou a
tomar forma: The Great Train Robbery (1903), de Edwin S. Porter, é considerado como

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“o primeiro filme realmente cinematográfico pela fluidez e coerência da narrativa”


(CANELAS). E foi esse diferencial contido em tal obra (o da narrativa sendo fortalecida
através da justaposição de planos) um dos fatores responsáveis por levar o cinema a
ocupar a posição que detém hoje, de “arte de contar uma estória através de imagens
dispostas em uma sucessão de cenas precisamente organizadas”.

Enquanto Edwin S. Porter é o responsável pela concepção inicial da montagem, David


W. Griffith se tornou um inovador nessa área. Ele trouxe para o cinema as mais
diversas técnicas, como “a variação de planos para criar impacto emocional, incluindo o
grande plano geral, o close-up (grande plano), o insert (plano de pormenor de um
objetivo), câmera subjetiva (ponto de vista da personagem ou do ator) e o travelling
(deslocação da câmera de filmar no espaço), a montagem alternada, a montagem
paralela, os flashback (retrocessos temporais), as variações de ritmo, entre outras grandes
contribuições.” (CANELAS)

The Great Train Robbery (1903), de Edwin S. Porter

A escola soviética de montagem foi igualmente importante para o Cinema: nomes


como Sergei Eisenstein (o grande teórico, responsável por clássicos como O
Encouraçado Potemkin), Lev Kulechov (a contextualização como responsável por trazer
significado às imagens) e Vsevolod I. Pudovkin (a palavra como matéria-prima) se
inspiraram nas inovações de Griffith para elaborar uma estética particular e condizente
com a realidade de uma Rússia pós-Revolução de 1917. Como bem explicita o autor

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Carlos Canelas em “Os Fundamentos Históricos e Teóricos da Montagem


Cinematográfica: os contributos da escola norte-americana e da escola soviética”:

“Nessa altura, o cinema na União Soviética não era


considerado como simples entretenimento, ao
contrário do que acontecia nos Estados Unidos da
América, mas um meio usado para ensinar e fazer
propaganda política. Assim, os novos cineastas
soviéticos tinham uma dupla missão: por um lado,
instruir as massas na história e na teoria dos seus
movimentos políticos e, por outro lado, formar
uma geração de jovens realizadores
cinematográficos capazes de dar continuidade a este
processo”.

Frames de cena de Encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein

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Por fim, há de se deixar bem claro que ambas as escolas, a americana e a soviética,
encontraram na montagem a forma de expressão cinematográfica definitiva: para cada
um dos lados, havia diferentes interesses e vieses a serem explorados, mas, de qualquer
maneira, depois dessa revolução o cinema nunca mais foi o mesmo.

(…)

A montagem no cinema está diretamente relacionada com a construção de significados


a partir da junção de elementos díspares e não relacionados entre si. Explico: tanto
quando queremos contar uma estória que segue um determinado fluxo, quanto quando
almejamos produzir determinado efeito em uma cena específica de nosso filme,
utilizamos a montagem como ferramenta-chave.

É através da ordem dos planos e da velocidade dos cortes, por exemplo, que se
constituem a atmosfera e o fluxo narrativo do filme. A identidade, a estética da obra só
se faz conjunta e coerente a partir do momento em que estas questões de montagem
estão bem definidas.

Obviamente, precisamos que o som geral, a trilha sonora e a própria planificação do


diretor estejam em perfeita sintonia, caso contrário não há como atingir a coerência
estética pretendida. Ao mesmo tempo, existem algumas precauções que devem ser
tomadas em caráter de urgência para que os montadores do filme não se deparem com
surpresas desagradáveis em seu claustrofóbico ambiente de trabalho: tudo o que foi
filmado precisa ter sido planejado com cautela, de forma a dar suporte para a visão do
diretor. Se não houver esse esmero, essa busca por unidade, as coisas podem acabar
dando errado, isto é, há grande possibilidade d’o filme fugir do controle de seus
realizadores e se transformar em um Frankenstein.

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Charlie Chaplin em Tempos Modernos (1936)

Os técnicos de cinema mais experientes dizem que “é engano pensar que a montagem e
a pós-produção servem para que se consertem erros cometidos durante as filmagens”, e
eles estão cobertos de razão. Afinal, a estética é a grande responsável por definir a
peculiaridade de um filme, e se não há um direcionamento claro para ela, fica difícil
obter um produto final consistente e dotado da convicção necessária para que o
espectador se deixe levar por aquela loucura toda.

Cinema é enganação. E é por este motivo que a montagem deve ser tão valorizada: ela
é um dos principais artifícios que existem nos meandros cinematográficos, e atua para
que meros truques se convertam em magia diante dos olhos do espectador.
Personagens podem criar empatia com o público, mas se eles estiverem envoltos por
uma estética que desconsidere o poder da montagem, ao final da projeção apenas suas
faces serão lembradas, mas o filme em que suas vidas se fazem presentes perderá o
encanto no primeiro piscar de olhos do pós-sessão.

(…)

No que diz respeito a referências textuais, não há nenhuma que seja tão significativa
como este exemplo de “montagem feita fora do cinema”: Leonardo Da Vinci e as suas
evocativas (e cinematográficas) descrições para a composição de um quadro, nunca
finalizado, no qual ele representaria o dilúvio:

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Leonardo Da Vinci

“Que se veja o ar escuro, nebuloso, açoitado pelo ímpeto de ventos contrários entrelaçados
com a chuva incessante e o granizo, carregando para lá e para cá uma vasta rede de galhos
de árvores quebrados, misturados com um número infinito de folhas.

Que se vejam, em torno, árvores antigas desenraizadas e feitas em pedaços pela fúria dos
ventos. Deve-se mostrar como fragmentos de montanhas, arrancados pelas torrentes
impetuosas, precipitam-se nessas mesmas torrentes e obstruem os vales, até que os rios
bloqueados transbordam e cobrem as vastas planícies e seus habitantes.

Novamente devem ser vistos, amontoados nos topos de muitas das montanhas, muitas
espécies diferentes de animais em tropel, aterrorizados e reduzidos, finalmente, a um
estado de docilidade, em companhia de homens e mulheres que fugiram para lá com seus
filhos.

E, nos campos inundados, a superfície da água estava quase que totalmente coalhada de
mesas, camas, barcos e vários outros tipos de balsas improvisadas devido à necessidade e
ao medo da morte; nos quais havia homens e mulheres com seus filhos, amontoados,
gritando e chorando, apavorados com a fúria dos ventos, que encrespavam as ondas,
fazendo-as girar como um poderoso furacão, carregando com elas os corpos dos afogados; e
não havia objeto flutuando que não estivesse coberto de vários e diferentes animais, que
haviam feito uma trégua e se amontoavam aterrorizados, entre eles lobos, raposas, cobras
e criaturas de todo tipo, fugitivos da morte.

E todas as ondas que golpeavam sem cessar, com os corpos dos afogados, os golpes matando
aqueles nos quais ainda havia vida.

Serão vistos alguns grupos de homens, com armas nas mãos, defendendo os minúsculos
pedaços de terra que lhes restaram dos leões, lobos e bestas predadoras que neles
procuravam a segurança.

Ó tumulto aterrador se ouve ressoando pelo ar sombrio, rasgado pela fúria do trovão e dos
raios que ele cospe e que o atravessam céleres, levando destruição, derrubando tudo o que
se atravessa em seu caminho!

Ó, quantas pessoas podem ser vistas tampando os ouvidos com as mãos para calar o rugido
feroz lançado através do ar obscuro pela fúria dos ventos misturados com a chuva, pelo

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estrépito dos céus e pelo chispar dos relâmpagos!

Outras não se contentavam em fechar os olhos, mas, tapando-os com as mãos, uma em
cima da outra, os cobriam, ainda mais apertados, para não ver o massacre impiedoso da
raça humana pela ira de Deus. Ai de mim! Quantos lamentos!

Quantos em seu terror se jogavam das rochas! Podem-se ver galhos enormes dos
gigantescos carvalhos, repletos de homens, sendo carregados pelos ares com a fúria dos
ventos impetuosos.

Quantos barcos emborcados, alguns inteiros, outros em pedaços, em cima de homens que
lutam para escapar com atos e gestos de desespero que pressagiam uma terrível morte.
outros, com atos frenéticos, tiravam as próprias vidas, no desespero de não conseguirem
suportar tamanha angústia;alguns se atiravam das altas rochas;outros se estrangulavam
com as próprias mãos;alguns agarravam os próprios filhos;e com grande violência os
matavam de um só golpe; alguns viravam suas armas contra si mesmos, para ferir-se e
morrer; outros, caindo de joelhos, entregavam-se a Deus.

Ai! quantas mães choravam os filhos afogados, segurando-os sobre os joelhos, erguendo os
braços abertos para o céu e, com diversos gritos e guinchos, clamando contra a ira dos
deuses?

Outras, com as mãos fechadas e os dedos entrelaçados, mordem-nas até sangrar e as


devoram, curvando-se a ponto de os peitos tocarem os joelhos, em sua intensa e
insuportável agonia.

Manadas de animais, como cavalos, bois, cabras, ovelhas, devem ser vistos já cercados pela
água, isolados sobre os altos picos das montanhas, apertados contra os outros, e os que
estão no meio subindo até o topo e pulando em cima dos outros, e lutando
encarniçadamente, e muitos morrendo de fome.

E os pássaros já começavam a pousar nos homens e nos animais, por não mais
encontrarem nenhum pedaço de terra à flor d’água que já não estivesse coberto de seres
vivos.

A fome, o instrumento da morte, já privara de vida a maior parte dos animais, quando os
cadáveres, já mais leves, começaram a surgir do fundo das águas profundas, emergindo
para a superfície no torvelinho das ondas; e lá ficaram batendo uns nos outros e feito

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bexigas de vento, que ricocheteiam de volta ao lugar de onde foram lançadas, caem e se
espalham uns sobre os outros.

E, acima desses horrores, a atmosfera se via coberta de nuvens lúgubres rasgadas pela
chispa serpenteante dos terríveis raios do céu, que refulgiam, ora aqui, ora ali, em meio à
densa escuridão…” *

*Texto extraído da página 25 do livro “O Sentido do Filme”, de Sergei Eisenstein.

Isto é: Leonardo Da Vinci, muito antes do cinema, fazia cinema — com a imaginação.

A montagem é a organização, desorganização, construção ou desconstrução da


imaginação filmada. Ou tudo isso junto e mais um pouco! Já imaginou?

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