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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores: Prisioneiros do infinito - 31/03/2002

São Paulo, domingo, 31 de março de 2002

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+ autores

Prisioneiros do infinito
Jacques Rancière

Justiça Infinita": esse era o nome inicial da ofensiva norte-


americana contra esse inimigo de contornos difusos
designado pelo nome de terrorismo. O nome, como sabemos,
foi rapidamente corrigido. Tinha sido, como explicaram, um
excesso de linguagem da parte de um presidente ainda
inexperiente na arte das nuanças. E, se ele pedia Bin Laden
"dead or alive", era sem dúvida porque tinha visto filmes de
faroeste demais na juventude.
A explicação não é nada convincente. Pois o princípio do
"morto ou vivo" não é o do faroeste. Ao contrário, é comum
um xerife arriscar a pele para salvar assassinos dos
linchadores e enviá-los à Justiça. "Justiça infinita", ao
contrário de toda a moral do Velho Oeste, quer dizer justiça
sem limites, ou seja, uma justiça que ignora todas as
categorias pelas quais o exercício da justiça é
tradicionalmente circunscrito: diferenciação entre a punição
da lei e a vingança dos indivíduos; separação entre o jurídico
e o político, o poético e o religioso; separação entre as
formas policiais e o processo de um crime, entre as formas
militares e a luta entre exércitos.
Sob esse ponto de vista não houve nenhum excesso de
linguagem. As "nuanças" seriam efetivamente inadequadas.
Pois são exatamente esses traços que caracterizam a
operação de retaliação empreendida pelos EUA.
Isso implica a eliminação das diferenças que separam a
guerra da polícia e de todas as formas jurídicas por meio das
quais se pretendeu precisar e limitar a ação de uma e de
outra. Não se fala mais em "morto ou vivo" a não ser para
dizer que não se sabe se o interessado está vivo ou morto.
Mas ninguém sabe exatamente a que título o Exército
americano detém e pretende julgar prisioneiros que não
gozam nem do estatuto de prisioneiros de guerra nem das
garantias comuns dos detidos processados no âmbito de um
caso criminal.
O termo "justiça infinita" diz exatamente o que está em
questão: a afirmação de um direito idêntico à onipotência
outrora reservada ao Deus vingador. Todas as distinções
tradicionais se encontram de fato abolidas com a eliminação
das formas do direito internacional.
Certamente essa eliminação já é o princípio da ação
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terrorista, para a qual as

A confusão dos limites entre o fato e


o direito assumiu outra figura,
inversa e complementar à harmonia
consensual: a figura da "ingerência
humanitária"

formas da política e as normas do direito são igualmente


indiferentes. Mas "justiça infinita" não é somente a resposta
à provocação do adversário, obrigado a se situar no mesmo
terreno que ele. Também traduz o estranho estatuto que a
eliminação do político confere hoje ao direito, no interior das
nações e entre as nações. A reflexão sobre a situação atual do
direito nos revela de fato uma singular inversão das coisas. O
desmoronamento do império soviético e o enfraquecimento
dos movimentos sociais nos grandes países ocidentais foram
de modo geral saudados nos anos 90 como a liquidação das
utopias da democracia real e da democracia social em
benefício das regras do Estado de Direito. O
desencadeamento dos conflitos étnicos e dos
fundamentalismos religiosos contradisse imediatamente essa
simples filosofia da história.

Registro dos modos de ver


Mas também a identificação do triunfo ocidental com o
triunfo do Estado de Direito mostrou-se problemática em si.
No seio das potências ocidentais e em seus modos de
intervenção externa, a relação entre o direito e o fato seguiu
uma evolução que tendeu cada vez mais a eliminar as
fronteiras do direito. Nesses países vimos acentuar-se dois
fenômenos: de um lado, uma interpretação do direito em
termos de direitos atribuídos a uma série de grupos enquanto
tais. De outro, práticas legislativas que visam harmonizar em
toda parte a letra do direito com os novos modos de vida, as
novas formas de trabalho, as técnicas, a família ou as
relações sociais.
Assim se viu reduzido o espaço da política que se constituía
no intervalo entre a literalidade abstrata do direito e a
polêmica sobre suas interpretações. O direito assim
celebrado tendeu cada vez mais a ser o registro das maneiras
de viver de uma comunidade. A simbolização política da
potência, dos limites e ambivalências do direito foi
substituída por uma simbolização ética: uma relação de
interexpressão consensual entre o fato de uma situação da
sociedade e a norma do direito.
Essa adequação imediata entre o direito e o fato na vida de
uma comunidade é o que afirma a reação americana. Mas é
também o que simboliza a representação dominante da
Constituição americana: a identidade ética entre um
determinado modo de vida e um sistema de valores
universal. Etos, como sabemos, quer dizer duração e modo
de vida, antes de significar sistema de valores morais.

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O recente manifesto dos intelectuais americanos apoiando a


política de George W. Bush deixou claro esse ponto: os
Estados Unidos são em primeiro lugar uma comunidade
unida por valores morais e religiosos comuns, uma
comunidade ética, mais que jurídico-política. O Bem que
fundamenta a comunidade é a identidade entre o direito e o
fato. E o crime perpetrado contra milhares de vidas
americanas pode ser imediatamente considerado um crime
perpetrado contra o próprio "império do Bem".
Mas já faz algum tempo que essa ascensão do ético em
detrimento do jurídico também caracteriza as formas de
intervenção externa das grandes potências. A confusão dos
limites entre o fato e o direito assumiu outra figura, inversa e
complementar à harmonia consensual: a figura do
humanitário e da "ingerência humanitária". O "direito de
ingerência humanitária" permitiu proteger algumas
populações da ex-Iugoslávia de uma empreitada de
liquidação étnica. Mas o fez ao preço de confundir as
fronteiras simbólicas, ao mesmo tempo em que confundia as
fronteiras dos países.
O ato não somente consagrou o abandono definitivo de um
princípio estrutural do direito internacional -o princípio da
não-ingerência, cujas virtudes eram certamente equívocas-
mas também introduziu um princípio de ilimitação destruidor
da própria idéia de separação entre o direito e o fato -que dá
ao direito seu estatuto.
No tempo da Guerra do Vietnã ou dos golpes de Estado que a
potência americana provocou mais ou menos diretamente em
várias regiões do mundo, existia uma oposição
razoavelmente explícita ou latente entre os grandes
princípios afirmados pelas potências ocidentais e as práticas
que subordinavam os princípios aos interesses vitais dessas
potências. A mobilização antiimperialista dos anos 60/70
denunciou essa separação entre princípios fundamentais e
práticas efetivas. Hoje a polêmica sobre meios e fins parece
ter desaparecido.
O princípio desse desaparecimento é a representação da
vítima absoluta, vítima de um mal infinito que obriga à
reparação infinita. Esse direito "absoluto" da vítima se
desenvolveu no contexto da guerra "humanitária". Ele foi
secundado pelo grande movimento intelectual de teorização
do crime infinito, elaborada no último quarto de século.
Sem dúvida não prestamos atenção suficiente à
especificidade do que poderíamos chamar de segunda
denúncia dos crimes soviéticos e do genocídio nazista. A
primeira denúncia visara estabelecer a realidade dos fatos e,
ao mesmo tempo, reforçar a determinação das democracias
ocidentais no combate a um totalitarismo sempre presente ou
ainda ameaçador. A segunda, que se desenvolveu nos anos
70 como balanço do comunismo ou nos anos 80 pela revisão
do processo de extermínio dos judeus, assumiu um
significado totalmente diferente.
Ela fez desses crimes não mais consequências monstruosas
de regimes a serem combatidos, mas formas de manifestação
de um crime infinito, impensável e irreparável, obra de uma
potência do Mal que excedia toda medida jurídica e política.
O ético tornou-se o pensamento desse mal infinito, criando
uma cisão irremediável na história.
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Esse excesso do ético sobre o jurídico e o político tem por


consequência última a constituição paradoxal de um direito
absoluto da pessoa cujos direitos foram absolutamente
negados. Esta surge na verdade como a vítima de um Mal
infinito contra o qual o combate é também infinito. É então o
defensor do direito da vítima que herda esse direito absoluto.
O ilimitado do erro irreparável feito à vítima justifica a
ilimitação do direito de seu defensor. A reparação americana
do crime absoluto exercido contra vidas americanas leva o
processo à sua execução. A obrigação de assistir as vítimas
do Mal absoluto tornou-se idêntica ao combate sem limites
contra esse mal. E esta se identifica com a aplicação de uma
potência militar sem limites, que funciona como força
policial encarregada de restituir a ordem em todas as partes
do mundo onde o Mal possa se abrigar. Mas essa potência
militar também é uma potência judiciária, exercendo contra
todos os supostos cúmplices do Mal infinito o poder mítico
da vingança perseguindo o crime.
O direito ilimitado, segundo o adágio, é idêntico ao não-
direito. Vítimas e culpados caem igualmente nesse círculo da
"justiça infinita" que hoje traduz a indeterminação jurídica
total que envolve o estatuto dos prisioneiros do Exército
americano e a qualificação dos fatos levantados contra eles.
Hegel já zombava da noite do Absoluto, onde todas as vacas
são cinzentas. A indistinção ética onde hoje se afogam o
político e o jurídico transforma os prisioneiros de
Guantánamo em cativos de um infinito do mesmo tipo, que
simplesmente trocou o cinza pelo amarelo.
A simbolização jurídico-política foi lentamente substituída
por uma simbolização ético-policial da vida das
comunidades ditas democráticas e de suas relações com um
outro mundo, identificado apenas com o reino dos poderes
étnicos e fundamentalistas. De um lado, o mundo do Bem: o
do consenso que suprime o litígio político na feliz
harmonização entre o direito e o fato, entre a maneira de ser
e o valor. Do outro, o mundo do Mal, aquele onde o erro é,
ao contrário, tornado infinito -e onde só pode ocorrer a
guerra mortal.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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