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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - Jacques Rancière: O cineasta, o povo e o governo - 26/08/2001

São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2001

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O CINEASTA, O POVO E O
GOVERNO
Quem quer fazer de Rohmer o porta-bandeira artístico de
uma França desembaraçada de seus fantasmas
revolucionários pretende apenas apresentar a visão
dominante das coisas como se fosse um ponto de vista
minoritário

por Jacques Rancière

Entre os filmes-vedete do festival de Veneza figura


"L'Anglaise et le Duc", filme histórico de Eric Rohmer,
inspirado nas memórias de uma aristocrata inglesa sob a
Revolução Francesa. Quer o rumor que o festival italiano
rende assim homenagem a um filme que os responsáveis
franceses do festival de Cannes teriam afastado por razões de
"political correctness". Um perfume de escândalo e de
repressão nunca faz mal a um filme, mas este convida à
reflexão. Em que, ao certo, seria comprometedor filmar a
revolução em geral, e a Revolução Francesa em particular,
do ponto de vista dos aristocratas?
Durante décadas, crianças francesas devoraram, sem grande
danos aos valores republicanos e revolucionários, as histórias
do "Mouron Rouge", heróico aristocrata inglês que salvava
gentis aristocratas das garras de ferozes bestas populares. E
desde os anos 80 as teses de François Furet, largamente
inspiradas pela tradição contra-revolucionária, dominam na
França a historiografia revolucionária e a opinião intelectual.
Não vemos bem, pois, que "political correctness" impediria
hoje mostrar um revolucionário sedento de sangue. E é de
supor que quem quer fazer de Rohmer o porta-bandeira
artístico de uma França enfim desembaraçada de seus
fantasmas revolucionários se vale simplesmente do lance
clássico que consiste em apresentar a visão dominante das
coisas como ponto de vista minoritário, vítima das
perseguições de um horrível "complô de intelectuais".
Mas, se há uma política nesse filme, ela se desenrola talvez
em plano diverso ao dessas batalhas de estandartes. Rohmer
jamais se fez passar por um homem de esquerda. E se
defende de ter desejado fazer um filme militante. De fato, a
história de aventuras de Grace Elliott na tormenta
revolucionária não está nada preocupada em julgar as causas
e os efeitos da revolução, mas transforma em obra, em fato
de doutrina política, dois lugares-comuns da ficção histórica
e política. O primeiro opõe a fidelidade afetiva e moral aos
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tortuosos cálculos da política. Assim a inglesa encarna a


virtude feminina e irrefletida da fidelidade para com a
família real perseguida, diante do vício masculino do
interesse calculista, representado pelo duque d'Orléans,
primo do rei disposto a todos os compromissos com os
revolucionários, a ponto de votar a morte de seu primo para
servir a seus próprios interesses dinásticos. O segundo opõe
as boas maneiras de pessoas evoluídas à eterna grosseria do
populacho bestial.

Sadismo brutal À imagem daqueles que antes opunham a


correção dos oficiais ao sadismo brutal dos SS, Grace Elliott
não se cansa de ser arrancada das mãos de hordas ébrias e
concupiscentes por oficiais ou comissários e até pelo
representante do povo, Robespierre, os quais lembram ao
populacho o sentido das leis e a civilidade do mundo
"comme il faut". Se há, pois, uma "mensagem" política nesse
filme, ela não diz respeito à legitimidade ou ilegitimidade
das revoluções. Ela remonta à idéia dupla, bastante
difundida, de que a política é uma coisa suja e que essa coisa
suja deve ser reservada a quem tenha hábitos limpos e
maneiras civis, longe do alcance da plebe das ruas.
Claro, Rohmer não é um ideólogo. É um cineasta. Mas é
justamente aqui que as coisas ficam interessantes. A relação
entre o limpo e o sujo, entre pessoas "comme il faut" e a
multidão das ruas, se torna em seu filme um problema de
ocupação da imagem, formulado e resolvido em termos
técnicos e estéticos que possuem um valor emblemático.
O filme, com efeito, tem uma tela de fundo pitoresca,
desenhada a partir de aquarelas que representam a Paris de
final do século 18, cenário da "douceur de vivre"
aristocrática que a revolução vem perturbar. Todas as cenas
externas, e em particular as cenas de multidão, rodadas em
estúdio diante de um fundo neutro, são a seguir inseridas
nesse cenário de tela pintada. Esse processo não é apenas
uma alternativa econômica à custosa reconstituição de
cenários de época. É também uma maneira de pôr em cena o
povo e recolocá-lo em seu lugar. Nesse cenário feito para a
passagem de carruagens, o gênero de povo que convém são
os dois ou três personagens pitorescos que tradicionalmente
dão a escala dos monumentos e fornecem a animação do
entorno. Ora, eis que a tela se abre de algum modo, deixando
afluir, no lugar desses gentis figurantes, uma multidão
compacta que, visivelmente, se acha aí deslocada. Assim, o
dispositivo visual da encenação apresenta a alegoria da "má"
política: aquela na qual as ruas normalmente destinadas à
circulação entre os edifícios públicos e as residências
privadas se tornam o teatro em que a multidão dos figurantes
anônimos se declara abusivamente como povo político. Mas
também esse dispositivo corrige por si próprio o excesso que
manifesta. Essas multidões de homens do povo de rostos
patibulares que invadem o palácio dos reis e as mansões dos
nobres, o cineasta as reúne em estúdio, entre cordas que
devem evitar que suas imagens digitais retornem
desastradamente ao cenário pintado. Assim, a imagem
pintada, o estúdio e a câmera digital combinam seus poderes
para resolver esteticamente um problema político -ou antes o
próprio problema da política: o fato de se ocuparem, esses
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homens de rua, de assuntos comuns que a eles visivelmente


não se destinam.
Manifestamente a solução não é assim tão fácil para aqueles
que se intitulam a si próprios políticos. E talvez os jurados de
Veneza tenham, diante das multidões bem enquadradas e
digitalizadas de Rohmer, um pensamento compassivo com
relação a esses homens de Estado do G-8 que se reuniram
dois meses antes em Gênova. Para aqueles que querem
governar o mundo exclusivamente com interlocutores
"responsáveis" -sejam eles ditadores ou antigos espiões
como Putin-, ainda não há meio de canalizar em estúdio e
dissolver por digitalização essas multidões de manifestantes
que insistem em imaginar que também fazem parte do
mundo e têm vocação para se ocupar de seus assuntos.
Mostrar manifestantes de cogulas, equivalente moderno dos
rostos bestiais dos assassinos de outrora, também não basta
para recolocar esse povo em seu lugar. É portanto à polícia
que cabe confiar a tarefa "estética" de limpar as ruas,
transformando as cidades históricas em "bunkers", atacando
os manifestantes e invadindo seus quartéis-generais de um
modo bem menos civilizado que os sectários parisienses
invadindo, em Rohmer, a residência da bela inglesa.
Segundo a conhecida piada, sem poder construir as cidades
no campo, os grandes deste mundo decidiram então se reunir
da próxima vez nas montanhas canadenses para poder, longe
de todo o ruído da multidão importuna, realizar seu próprio
sonho, o sonho atual dos governantes: a direção entre
homens responsáveis de um mundo sem povo.
Se o filme de Rohmer suscita embaraço, não é por ferir o
espírito do tempo. É talvez, ao contrário, porque lhe seja
conforme demais, porque, sob sua aparência
ideologicamente e visualmente retrô, ele põe em imagens, de
modo bastante direto, o sonho contemporâneo do governo
mundial de pessoas "competentes", livres de toda a
perturbação da rua. Mais uma vez, Rohmer pouco se
preocupa em ostentar os porta-bandeiras para o enterro
definitivo das revoluções. Sua política é antes de tudo
estética. Sua "contra-revolução" se circunscreve ao campo
do cinema. Se ele nunca bancou o esquerdista, Rohmer foi,
nos anos 50, um dos primeiros campeões da revolução
rosselliniana que abriria caminho à nouvelle vague em nome
de alguns princípios: o adeus aos estúdios, a câmera na rua
partindo em descoberta dos habitantes contemporâneos do
mundo e capaz de seguir os acasos de seus itinerários
materiais, sentimentais e eventualmente políticos. Na esteira
da câmera móvel dos cineastas da nouvelle vague, foram os
estudantes dos anos 60 que partiram em descoberta do
mundo social de seu tempo e invadiram as ruas de Paris e de
algumas outras metrópoles.
É ainda esse liame entre uma estética de cinema e um modo
de praticar a política que evoca o último filme de Godard,
"Eloge de l'Amour" (Elogio do Amor), quando a câmera
percorre as ruas de Paris, vai visitar os funcionários da
limpeza noturna dos trens, à maneira dos difusores de
panfletos esquerdistas, ou se instala meditativa diante do
edifício hoje deserto da antiga "fortaleza operária" das
indústrias Renault. Já Rohmer cedo se desviou dos acasos da
rua para se consagrar às contingências do sentimento nos
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microcosmos socialmente protegidos, mas sem negar por


isso o realismo rosselliniano. O flagrante artificialismo que
corresponde, em "L'Anglaise et le Duc", à ampliação
histórica do cenário rohmeriano assume então o valor de um
manifesto estético que encerra simbolicamente uma era do
cinema.
É nisso, mais que em alguma mensagem ideológica, que ele
se une à vontade de dar fim a uma era que quis retornar às
ruas e franquear a política a todos.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor


de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.

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