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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - Um profeta equívoco - 31/07/2005

São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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UM PROFETA EQUÍVOCO
JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA

O bicentenário do nascimento de Tocqueville assume ares de


consagração. O autor de "A Democracia na América" parece
ter-se tornado a referência absoluta da opinião dominante. E
o lugar que ele ocupa traduz bem as mudanças ocorridas nos
últimos 30 ou 40 anos no seio dessa opinião.
Outrora, elogiava-se nele um eminente representante da
filosofia política liberal, por ter trazido de sua investigação
americana o conceito de uma democracia moderna, em
harmonia com as condições da sociedade industrial. O que
celebramos hoje não é mais o pensador da democracia
liberal; é o sociólogo genial, que profetizou com 150 anos de
antecedência as formas de despotismo inerentes à "igualdade
de condições" própria da democracia, isto é, da sociedade
individualista de massa.
Tocqueville teria descrito antecipadamente todos os males
que passaram da América para a França: o consumo em
massa, submetendo os indivíduos, pelas próprias vias da
satisfação narcisística de seus desejos, a um modelo de vida
padronizado; a exacerbação das exigências egoístas que
negam o interesse comum; a tirania da opinião democrática;
as devastações do "comunitarismo", que exige que todas as
diferenças sejam respeitadas e tratadas igualmente; a
extensão da igualdade a todos os campos, incluindo os do
saber e de sua transmissão, tornando o aluno igual a seu
mestre e um usuário que trata a escola como um cliente trata
seus fornecedores etc.

O sucesso de Tocqueville é ao
mesmo tempo o de um anti-Marx e o
de um substituto da crítica marxista

Simbolicamente, um grande colóquio recente que celebrou


Tocqueville em sua terra natal, a Normandia, foi aberto por
uma conferência de Alain Finkielkraut, representante típico
dessa intelligentsia midiática francesa que se desdobra em
imprecações contra a igualdade destruidora de condições e
opiniões, que leva a civilização humana à ruína.
Tocqueville é realmente esse sociólogo profético da
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sociedade de consumo? Pode-se duvidar. A igualdade de


condições de que ele fala não é a igualdade dos
consumidores de Nike e Coca-Cola denunciada pelos
ideólogos atuais. É o desaparecimento das rígidas divisões
em ordens que estruturavam as sociedades feudais.

Depois da revolução
O que Tocqueville foi estudar nos Estados Unidos era a
especificidade do governo democrático em uma nova
sociedade, formada por colonos que o exílio havia situado
em condições de fortuna iniciais mais ou menos iguais, num
país onde a democracia não precisou lutar contra o
feudalismo territorial. Ele fez isso para responder a uma
preocupação comum a seus contemporâneos, conservadores,
liberais ou socialistas: como pensar o governo e a sociedade
que deveriam suceder à grande convulsão da Revolução
Francesa? Como conceber, além das nostalgias feudais e das
impaciências republicanas, a ordem social e estatal adequada
a uma sociedade moderna?
A Revolução Americana parecia então fornecer o antídoto
para a Revolução Francesa. Esta havia naufragado no terror
porque desejou impor pela força do Estado os costumes de
uma república em um país feudal. Aquela dava o exemplo de
uma transição harmoniosa: uma Constituição para equilibrar
os poderes do povo e das elites; instituições alimentadas por
um estilo de vida social homogêneo.
Ao contrário da França, onde a violência republicana
desejara impor uma sociedade artificial, os Estados Unidos
ofereciam esse sábio equilíbrio entre as instituições
democráticas e as instituições aristocráticas que era o
segredo do bom governo. Mas eles também ofereciam a
figura positiva dessa harmonia dos costumes e das leis em
que a teoria de Montesquieu aprendera a buscar o segredo
dos governos estáveis. Esse era particularmente o caso na
década de 1830, quando os Estados Unidos eram
essencialmente um país de pequenos proprietários de terra
que a política democrática de Andrew Jackson tentava
proteger do apetite das companhias financeiras.
Compreende-se que Tocqueville tenha visto aí uma
sociedade sem classes tendendo para uma crescente
igualdade material, e tenha baseado nisso uma previsão que o
futuro, diga-se o que se disser de seu profetismo, não
confirmou.
Mas sabemos também que a democracia "social" à
americana, que trazia solução para os perigos da democracia
demasiado política dos republicanos franceses, lhe pareceu
rapidamente comportar outro tipo de perigo: esses costumes
brandos e tranqüilos da democracia americana, esse
casamento natural da liberdade de empreendimento com a
liberdade política, podiam ser concebidos de duas maneiras
opostas.
Certamente, os indivíduos da sociedade democrática
extraíam de seus empreendimentos privados o apreço pela
liberdade política. Mas também obtinham aí essa sede de
interesses e prazeres privados que provoca o amolecimento
do caráter e a perda das grandes virtudes políticas. De um
lado, se poderia dizer que a liberdade estava mais garantida
pelo acúmulo de pequenas virtudes do que por alguns
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heroísmos grandiosos. De outro, se poderia temer que essa


dispersão das energias favorecesse o surgimento de um
despotismo insensível, impondo-se suavemente a homens
dos quais confiscaria a liberdade política, deixando-lhes a de
cuidar de seus negócios privados e seus prazeres domésticos.
Esse dilema não solucionado permeia o segundo livro de "A
Democracia na América", publicado cinco anos após o
primeiro e que não teve repercussão na época.
Deve-se dizer que, à diferença do primeiro, ele não se baseia
na observação do viajante. Que a "boa" democracia seja a
democracia dos pequenos proprietários de terra que não têm
muito tempo para tratar dos assuntos de Estado; mas que essa
sábia democracia favoreça uma forma de tirania que confisca
o poder, deixando os cidadãos cuidarem em paz de suas
propriedades, essa dialética não necessitava das viagens
transatlânticas modernas para ser concebida. Já estava
prefigurada nos textos de Aristóteles: em sua análise da boa
democracia agrícola, onde os camponeses, presos em seus
campos, deixam os homens competentes governarem em
paz, e em sua descrição da tirania de Pisístrato, exercida sem
violência sobre homens ocupados com seus assuntos
privados.
E quanto às grandes virtudes aristocráticas, cuja perda
Tocqueville deplorava, não parece que ele tenha encontrado
exemplo entre os aristocratas rurais que eram seus colegas na
Câmara de Deputados nem entre os cortesãos da monarquia
absoluta. É sobretudo de Plutarco e dos grandes feitos das
repúblicas ateniense e romana que ele extrai sua nostalgia.
Em suma, é uma "sociologia" estranha que Tocqueville põe a
serviço de um liberalismo estranho. Tanto quanto suas notas
de viagem, sua doutrina inspira-se na leitura dos filósofos e
historiadores da Antigüidade. Ela refuta assim a oposição
simplista da liberdade individual dos modernos à liberdade
coletiva dos antigos, que é o coração da doutrina liberal.
Como compreender então que sua análise pudesse valer
alternadamente como exemplo do pensamento liberal e como
a antecipação genial das sociologias pós-modernas de uma
democracia idêntica ao reinado igualitário e indiferente do
consumo?

Marx
Raymond Aron, um dos grandes artesãos do "retorno a
Tocqueville", nos dá uma chave para compreendê-lo,
intitulando o primeiro capítulo de seu "Ensaio Sobre as
Liberdades - Alexis de Tocqueville e Karl Marx". O sucesso
de Tocqueville é ao mesmo tempo o de um anti-Marx e o de
um substituto da crítica marxista. De um lado, o "profeta"
Tocqueville é quem responde à profecia revolucionária
marxista. Lá onde Marx via a lei da exploração capitalista e a
violência da luta de classes denunciar as ilusões da
democracia formal, Tocqueville declarou, ao contrário, o fim
das sociedades de classe e a coincidência cada vez mais
exata entre a igualdade inscrita nas instituições do Estado e a
realidade da aproximação das condições e das fortunas. Esse
Tocqueville era adequado a tornar-se o herói da democracia
liberal, oposta ao totalitarismo marxista.
O desmoronamento do sistema soviético evidentemente
mudou a situação. Não havia mais totalitarismo para se opor
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à democracia. Mas também não havia mais uma alternativa


de envergadura para o capitalismo. A denúncia marxista das
relações de produção se reciclou então no Ocidente na
denúncia da "sociedade de consumo", identificada com o
"individualismo democrático".
Foi aí que o profeta Tocqueville mudou de emprego. Em vez
de ser a testemunha da coexistência harmoniosa entre o
capitalismo e a democracia, tornou-se o analista sombrio da
perversão democrática que conduz ao "totalitarismo brando"
da sociedade de consumo. Os dois grossos tomos de "A
Democracia na América" foram assim reduzidos às duas ou
três páginas do capítulo do segundo que evocam o risco de
um poder tutelar exercido sobre homens absortos por seus
"prazeres pequenos e vulgares".
Essas páginas tiveram, aliás, um estranho destino. Elas
haviam sido valorizadas, na França dos anos 20, por um
comentarista católico reacionário, Antoine Rédier, que
desejava colocar Tocqueville em contradição com sua
própria fé nas virtudes da democracia. Este inspiraria Jacob
Paul Mayer, autor em 1939 do livro de referência sobre
Tocqueville intitulado "Prophet of the Mass Age" [Profeta da
Era de Massas] e prefaciador, 30 anos depois, de "A
Sociedade de Consumo", de Jean Baudrillard.
Apesar desse patrocínio, a análise de Baudrillard continuou
fortemente ancorada na teoria marxista do fetichismo das
mercadorias. Mas em 30 anos pudemos ver a crítica da falsa
democracia da mercadoria inverter-se, tornar-se a simples
crítica da democracia "como reinado da mercadoria". O
segredo dessa crítica é simples: consiste em fazer das novas
formas da dominação capitalista mundial a conseqüência
funesta da "igualdade de condições", o fato de um indivíduo
democrático de massa, ávido de prazeres sempre novos e
destruidor do bem comum. Damos glória então a Tocqueville
por ter previsto esse reinado totalitário do "indivíduo
democrático".
Repetimos à vontade outrora a boutade de Marx dizendo que
não era marxista. Também seria justo dizer que Tocqueville
não era o que hoje chamamos de tocquevilliano.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" e "A Partilha do Sensível" (ambos pela ed. 34).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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