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UM PROFETA EQUÍVOCO
JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA
O sucesso de Tocqueville é ao
mesmo tempo o de um anti-Marx e o
de um substituto da crítica marxista
Depois da revolução
O que Tocqueville foi estudar nos Estados Unidos era a
especificidade do governo democrático em uma nova
sociedade, formada por colonos que o exílio havia situado
em condições de fortuna iniciais mais ou menos iguais, num
país onde a democracia não precisou lutar contra o
feudalismo territorial. Ele fez isso para responder a uma
preocupação comum a seus contemporâneos, conservadores,
liberais ou socialistas: como pensar o governo e a sociedade
que deveriam suceder à grande convulsão da Revolução
Francesa? Como conceber, além das nostalgias feudais e das
impaciências republicanas, a ordem social e estatal adequada
a uma sociedade moderna?
A Revolução Americana parecia então fornecer o antídoto
para a Revolução Francesa. Esta havia naufragado no terror
porque desejou impor pela força do Estado os costumes de
uma república em um país feudal. Aquela dava o exemplo de
uma transição harmoniosa: uma Constituição para equilibrar
os poderes do povo e das elites; instituições alimentadas por
um estilo de vida social homogêneo.
Ao contrário da França, onde a violência republicana
desejara impor uma sociedade artificial, os Estados Unidos
ofereciam esse sábio equilíbrio entre as instituições
democráticas e as instituições aristocráticas que era o
segredo do bom governo. Mas eles também ofereciam a
figura positiva dessa harmonia dos costumes e das leis em
que a teoria de Montesquieu aprendera a buscar o segredo
dos governos estáveis. Esse era particularmente o caso na
década de 1830, quando os Estados Unidos eram
essencialmente um país de pequenos proprietários de terra
que a política democrática de Andrew Jackson tentava
proteger do apetite das companhias financeiras.
Compreende-se que Tocqueville tenha visto aí uma
sociedade sem classes tendendo para uma crescente
igualdade material, e tenha baseado nisso uma previsão que o
futuro, diga-se o que se disser de seu profetismo, não
confirmou.
Mas sabemos também que a democracia "social" à
americana, que trazia solução para os perigos da democracia
demasiado política dos republicanos franceses, lhe pareceu
rapidamente comportar outro tipo de perigo: esses costumes
brandos e tranqüilos da democracia americana, esse
casamento natural da liberdade de empreendimento com a
liberdade política, podiam ser concebidos de duas maneiras
opostas.
Certamente, os indivíduos da sociedade democrática
extraíam de seus empreendimentos privados o apreço pela
liberdade política. Mas também obtinham aí essa sede de
interesses e prazeres privados que provoca o amolecimento
do caráter e a perda das grandes virtudes políticas. De um
lado, se poderia dizer que a liberdade estava mais garantida
pelo acúmulo de pequenas virtudes do que por alguns
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05/09/2020 Folha de S.Paulo - Um profeta equívoco - 31/07/2005
Marx
Raymond Aron, um dos grandes artesãos do "retorno a
Tocqueville", nos dá uma chave para compreendê-lo,
intitulando o primeiro capítulo de seu "Ensaio Sobre as
Liberdades - Alexis de Tocqueville e Karl Marx". O sucesso
de Tocqueville é ao mesmo tempo o de um anti-Marx e o de
um substituto da crítica marxista. De um lado, o "profeta"
Tocqueville é quem responde à profecia revolucionária
marxista. Lá onde Marx via a lei da exploração capitalista e a
violência da luta de classes denunciar as ilusões da
democracia formal, Tocqueville declarou, ao contrário, o fim
das sociedades de classe e a coincidência cada vez mais
exata entre a igualdade inscrita nas instituições do Estado e a
realidade da aproximação das condições e das fortunas. Esse
Tocqueville era adequado a tornar-se o herói da democracia
liberal, oposta ao totalitarismo marxista.
O desmoronamento do sistema soviético evidentemente
mudou a situação. Não havia mais totalitarismo para se opor
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