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FERNANDO MARCELINO
2023
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO
NA PUBLICAÇÃO (CIP)
Marcelino, Fernando
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SUMÁRIO
4. Referências 104
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1. DO TERCEIRO MUNDO À EMERGENCIA DO SUL GLOBAL
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entre diferentes Estados, apoiasse os movimentos por independência nacional, não
fizesse parte de coalizões militares bilaterais ou multilaterais criadas no âmbito do
conflito entre as superpotências e não fosse sede de bases militares de superpotências
cujo propósito servisse ao conflito entre elas.
A noção de “Terceiro Mundo”, cunhado pelo francês Alfred Sauvy, em 1952, foi
feita em analogia ao Terceiro Estado da época anterior à Revolução Francesa, isto é, o
agrupamento de países pobres e colônias que não pertenciam ao topo da sociedade
internacional, mas continham um potencial de emergência. De então, criou-se a divisão
do Planeta em três seções: o Primeiro Mundo reunia os países capitalistas
industrializados, isto é, os Estados Unidos da América, seus aliados na Europa, o Japão,
a Austrália e a Nova Zelândia; o Segundo Mundo era formado pela União Soviética e
pelos países sob sua direta influência; o Terceiro Mundo era o agrupamento de países
semi-industrializados ou agrícolas, colônias ou ex-colônias.
Esse conceito ganhou vida política quando Mao Tsé-Tung desenvolveu a teoria
dos Três Mundos. Para Mao, o Terceiro Mundo significava mais do que
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desenvolvimento econômico, sendo um termo relacional entre imperialismo e anti-
imperialismo, entre opressor e oprimido. Na época, com “cisma sino-soviético” na
década de 1960, os comunistas chineses queriam distinguir a China da União
Soviética. A chave foi afirmar que a realidade chinesa não é igual à da soviética, nem da
Europa ocidental. Que o mundo era dividido em três mundo, ou três lados, que são
mutuamente relacionados, bem como contraditórios. Os Estados Unidos e a União
Soviética pertencem ao primeiro mundo. Os países em desenvolvimento na Ásia,
África, América Latina e outras regiões pertencem ao terceiro mundo. E os países
desenvolvidos entre os dois pertencem ao segundo mundo.
Esse projeto veio com uma falha de origem. A luta contra as forças coloniais e imperiais
impôs uma unidade entre vários partidos políticos e entre as classes sociais.
Movimentos sociais amplamente populares e as composições políticas conquistaram
liberdade para as novas nações, e então tomaram o poder. Uma vez no poder, a unidade
que havia sido preservada a todo custo tornou-se um fardo. A classe trabalhadora e o
campesinato em muitos desses movimentos haviam aderido a uma aliança com os
proprietários de terra e as emergentes elites industriais. Assim que a nova nação caísse
em suas mãos, o povo acreditava, o novo Estado promoveria um programa socialista. O
que eles obtiveram em vez disso foi uma ideologia de compromisso chamada
Socialismo Árabe, Socialismo Africano, Sarvodaya ou Nasakom, que combinava a
promessa de igualdade com a manutenção da hierarquia social.
Já na década de 1970, as novas nações já não eram mais novas. Suas debilidades eram
numerosas. As demandas populares por terra, pão e paz foram ignoradas em nome das
necessidades das classes dominantes. Guerra interna, dificuldade em controlar os preços
dos produtos primários, incapacidade para superar a asfixia do capital financeiro, entre
outros fatores, levaram a uma crise nos orçamentos de grande parte do Terceiro Mundo.
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Empréstimos de bancos comerciais só poderiam vir se os Estados concordassem com o
“ajuste estrutural” dos pacotes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco
Mundial. O assassinato do Terceiro Mundo levou à desidratação da capacidade do
Estado de agir em prol da população, um fim em defesa de uma nova ordem econômica
internacional, à recusa dos objetivos do socialismo. Classes dominantes que estiveram
anteriormente atadas à agenda do Terceiro Mundo já não encontravam mais freios. Elas
começaram a se ver como elites, e não como parte de um projeto – o patriotismo de base
superou a solidariedade social antes necessária. Um resultado dessa extinção da agenda
do Terceiro Mundo foi o crescimento de formas de nacionalismo cultural nas nações
mais escuras. Atavismos de todos os tipos surgiram para preencher o espaço
anteriormente assumido por várias formas de socialismo. Religião fundamentalista, raça
e formas não reconstruídas de poder de classe surgiram sob os destroços do projeto do
Terceiro Mundo (PRASHAD, 2022).
Seu mérito foi o de lembrar a existência de uma imensa zona do planeta para a qual a
questão primordial não era a do alinhamento em um ou outro campo, mas qual seria a
atitude dos Estados Unidos e da União Soviética em relação a ela. Em 1945, a metade
da Ásia, a quase totalidade da África, bem como o Caribe e a Oceania permaneciam
colônias. Sem falar dos países “semi-colonizados”. Para esse vasto mundo tutelado,
onde a pobreza ultrapassava — e muito — a dos países “industrializados”, a prioridade
era dirigida à “libertação nacional”. Ao englobar todos numa única expressão, “Terceiro
Mundo”, destacavam-se, ao mesmo tempo, as características comuns, próprias a todos
esses países, e também o fato de que eles não estavam necessariamente implicados na
guerra fria. A fórmula também dizia respeito ao esforço de certos intelectuais em criar
uma “terceira força” entre os partidos e os governos comunistas e anticomunistas1.
1
WALLERSTEIN, Immanuel. O que era mesmo o terceiro mundo? Le Monde Diplomatic, 2000.
Disponível em https://diplomatique.org.br/o-que-era-mesmo-oterceiro-mundo/
9
Subdesenvolvido”, “Mundo Menos Desenvolvido”, “Mundo Majoritário”, “Mundo
Não-Ocidental”, etc. Na América Latina, já se destacava a noção de “Dependência”,
formulada por Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, entre outros,
abordando a dominação imperialista pela superioridade tecnológica e produtiva das
empresas transnacionais, seu dreno dos lucros e das riquezas locais obrigando as
burguesias locais a superexplorarar para compensar a transferência de riquezas imposta
pelos países imperialistas. Porém, foram as narrativas elaboradas pelo Norte que
ganharam espaço, baseadas no “fim da história”, “choque de civilizações”,
“interdependência”, entre outras, todas pela universalização da democracia-liberal
capitalista.
2
VIZENTINI, Paulo Fagundes. Terceiro Mundo ou Sul Global? Austral: Revista Brasileira de Estratégia
e Relações Internacionais v.4, n.8, Jul./Dez. 2015
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Camila Jardim (2015) aponta seis características comuns encontradas no Sul
Global: 1) é um conceito não-geográfico, relativo ao empoderamento dos Estados do
Sul Global como sujeitos históricos e atores importantes no cenário internacional; 2) o
termo envolve identidades comuns forjadas por interações entre os atores que compõem
o Sul Global e respaldadas pelas suas similaridades históricas, como o passado colonial,
o anseio por reforma do sistema internacional e a sua inserção internacional político-
econômica periférica, e pelos seus desafios comuns, como o subdesenvolvimento e a
marginalização na construção da agenda internacional; 3) é um grupo bastante
heterogêneo, reunindo desde potências médias, como o Brasil e a Índia, até pequenos
Estados insulares; 4) “Sul Global” carrega consigo um peso político de empoderamento,
o que tem se demonstrado adequado, ante a emergência de atores do Sul na condução do
sistema internacional; 5) o Sul Global não é necessariamente anti-Norte, isto é, ainda
que demandem reformas nas instituições basilares do sistema internacional, como o
Conselho de Segurança e o FMI, a fim de representar a distribuição de poder atual, os
países de maior importância do Sul Global não advogam pela substituição da ordem
internacional vigente; 6) por fim, o Sul Global pode também ser denotado pela
emergência de atores não-estatais, mas de atuação transnacional, como grupos da
sociedade civil em temas relativos à mudança climática, ao combate à fome, etc3.
3
JARDIM, Amorim Camila. Understanding the concept of Global South: an initial framework. 2015.
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conclusão que o dreno aumentou dramaticamente durante as décadas de 1980 e 1990,
quando os programas de ajuste estrutural neoliberal foram impostos em todo o Sul
global. Hoje, o Norte global drena do Sul commodities no valor de US$ 2,2 trilhões por
ano, a preços do Norte. Para se ter uma ideia, essa quantia de dinheiro seria suficiente
para acabar com a pobreza extrema, globalmente, quinze vezes. Durante todo o período
de 1960 até hoje, a fuga totalizou US$ 62 trilhões em termos reais. Se esse valor tivesse
sido retido pelo Sul e contribuído para o crescimento do Sul, acompanhando as taxas de
crescimento do Sul durante esse período, valeria US$ 152 trilhões hoje4.
Ainda neste século XXI, como modo de produção, o capitalismo serve para que
um pequeno grupo de países se desenvolvam ao custo da exclusão de todos demais. O
núcleo central – o Norte – se desenvolve sugando o excedente da periferia – o Sul. O
desenvolvimento de uns é feito às custas do subdesenvolvimento de muitos. O Norte é
puramente capitalista, com os países ditos mais desenvolvidos - explicitamente os
Estados Unidos, Alemanha, Japão, França e Inglaterra -, onde as forças produtivas e a
acumulação de capital alcançaram um grau em que dominam monopólios
transnacionais, com um processo intenso de inovação científica e tecnológica que
agrava a tendência de queda da taxa média de lucro. Diante disso, a saída vem sendo a
especulação financeira e a transferência de plantas industriais para países agrários, onde
podem debelar as forças do trabalho organizada em seus países e obter lucros pela
extração de mais-valia absoluta em países com força de trabalho barata. Estas medidas
intensificam a desindustrialização interna e o consequente desemprego, levando as
corporações transnacionais a se livrar das medidas econômicas e políticas que visavam
manter a coesão social dos Estados nacionais, bem como o padrão de vida das classes
médias, aumentando a ocorrência de crises financeiras, econômicas e políticas ainda
mais profundas.
4
Hickel, Jason. Pilhagem na era pós-colonial: quantificando o escoamento do sul global por meio de
trocas desiguais, 1960–2018. Nova Economia Política. Volume 26, 2021. Disponível em
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13563467.2021.1899153?journalCode=cnpe20&journalCo
de=cnpe20
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periferia para um dos centros do sistema econômico global deslocando o núcleo
geográfico do processo de acumulação. Diferentemente da URSS que não tinha
condições econômicas e políticas para superar o Império norte-americano na Guerra
Fria, a China avançou decisivamente na construção de uma verdadeira grande indústria
sob um regime de socialismo de mercado, que desenvolve as forças produtivas muito
melhor do que no Ocidente e capitalismos do centro e da periferia, superando diversas
travas do desenvolvimento. Um país que, em 1949, após décadas de guerras civis e
invasões estrangeiras, tinha 80% de analfabetos, chega em meados de 2023 como
segunda potência mundial, numa transformação tectônica da econômica política global.
Mesmo com as fragilidades econômicas enfrentadas por boa parte dos países do
Sul Global na década de 1980 e a hegemonia unipolar estadunidense da década de 1990,
fortalecendo a subordinação plena dos países às instituições, às normas, ao mercado e à
ordem liberais, o Sul Global também ganhou maior espaço no século XXI, sobretudo
pelo maior protagonismo de potências emergentes. As mudanças e realinhamentos na
geopolítica mundial criaram espaço para que potências emergentes como China, Índia e
Brasil expandissem suas áreas de influência e de cooperação para outros países não
industrializados, ao lado da re-emergência da Rússia, países com desenvolvimento
nacional na África e América Latina. Além disso, ao longo das décadas, surgiram
também diversas iniciativas e organismos regionais ou temáticos com o intuito de reunir
países do Sul Global, a fim de facilitar a cooperação e de coordenar posicionamentos,
como é o caso do G-77, da Liga dos Estados Árabes, da União Africana, da CELAC, da
OCI, da Unasul, do Fórum IBAS, da OPEP, entre tantos outros. Também se destacam
mudanças nos padrões comerciais e de investimento, havendo expansão de acordos e
realização de programas de investimentos entre países da América Latina, da África e
da Ásia.
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2. ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO NO SUL GLOBAL
Para Samir Amin, o imperialismo atual encontra suas bases econômicas na era
do “capitalismo monopolista generalizado”. Segundo Amin, essa fase se caracteriza
pelo avanço da integração mundial dos mercados monetários e financeiros, assim como
pela centralização do poder dos diretores dos monopólios e seus servidores assalariados.
O avanço da mundialização e liberalização do capital no advento do neoliberalismo se
contrasta com os limites nacionais e locais para a mobilidade da força de trabalho, a fim
de garantir maiores taxas de exploração. Existe hoje um imperialismo comandado por
uma tríade liderada pelos Estados Unidos, que tem como sócios minoritários a Europa e
o Japão, um capital monopolista que tem o controle quase total (e cada vez mais) de a
economia global, e que através do controle de diferentes setores pode dominar “por
cima” e “por baixo” os pequenos produtores e o grosso da população mundial. Exemplo
disso é a subordinação, extração de renda e eventual absorção dos pequenos agricultores
pelo grande capital através de multinacionais de sementes, de um lado, e multinacionais
de comércio e distribuição, de outro.
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Amin considera que é um mito a possibilidade de os países do Sul atingirem os
ricos com políticas de desenvolvimento e é extremamente cético quanto à viabilidade de
projetos nacional-populares que não rompam com a lógica do capitalismo. É neste
contexto que Amin aponta a Grande Comunidade do “Sul Global” que representa 90%
da população mundial, apostando numa outra civilização. A luta por um mundo
multipolar com a China, a Rússia e a Índia como as grandes locomotivas, constitui o
caminho mais provável para fazer a transição para uma nova civilização que consiga
orientar-se para o Bem Comum Mundial. Conforme Amin, o Sul Global deve afirmar
suas próprias posições e distanciar-se da globalização sob o domínio do Norte que
monopoliza tecnologias, acesso a recursos naturais e domínio do sistema financeiro. O
Norte prescinde do Sul, mas o Sul pode prescindir do Norte, pois tem recursos naturais,
meios para desenvolver tecnologia e substituir as exportações com destino ao Norte para
fortalecer as trocas com outros países do Sul. O caminho para emancipação seria por
meio de maior estatismo e soberania, o que se choca com a dominação imperialista em
escala mundial (AMIN, 2014).
André Gunder Frank argumenta que os países do Terceiro Mundo não poderiam
– e não deveriam – reproduzir a trajetória de desenvolvimento econômico do Primeiro
Mundo, uma vez que esse desenvolvimento era produto das relações de exploração
colonial e imperialista. O produto dessas relações de subornação ao centro é o que
Gunder Frank chamou de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Ele questiona a
“importação” de modelos de modernização econômica etapistas/capitalistas como
solução para a desigualdade e pobreza nos países periféricos. A aplicação destes
modelos no Terceiro Mundo levaria apenas ao enriquecimento das classes dominantes
nacionais e internacionais pela superexploração da mão de obra periférica. Assim,
defende interpretações socio-históricas que gerem soluções coerentes com as
especificidades locais de cada um dos países terceiro-mundistas.
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eficientes a não ser que acreditemos no conto de fadas de que os mercados reais se
aproximam do modelo da competição perfeita5.
Uma das formas mais hábeis de dominação imperial acontece por meio da
difusão da teoria que os países coloniais atrasados em seu desenvolvimento devem
atravessar paulatinamente diversos estádios de dependência e associação às potências
mais desenvolvidas e avançadas.
5
Bresser-Pereira, Luiz Carlos. Cinco Modelos de Capitalismo. Texto para discussão 280, Escola de
Economia de São Paulo/ FGV. Maio de 2011. Disponível em:
https://www.bresserpereira.org.br/papers/2011/11.32.Modelos_de_capitalismo-TD-280.pdf Não creio que
existam cinco capitalismo, mas uma no Norte com variações que possam a considerar apenas como uma
via de desenvolvimento, e três no Sul – uma liberal associada ao Norte, capitalismos de Estado e
Socialismo de Mercados.
16
décadas de 1980 e 1990 fora do leste e sul da Ásia. Os poderosos países do Norte
conseguiram "chutar a escada" do desenvolvimento, impedindo que o Sul adotasse
políticas intervencionistas estatais muito necessárias (CHANG, 2002).
O Norte criou uma cartilha para o Sul aplicar dizendo que, desta forma, o Sul
poderia se aproximar do Norte, sintetizada pelo que se chama de “Consenso de
Washington” - CW. Em resumo, o CW exige do Sul Global a aplicação de políticas de
“ajuste fiscal” leva a privatização de empresas estatais, a oligopolização da indústria e o
sucateamento de agências governamentais e a infra-estrutura logística, com a redução da
capacidade de intervenção do Estado no processo de desenvolvimento econômico e
social e maior dependência de produtos tecnológicos produzidos no exterior. Porém, os
que seguiram este receituário, desconsideraram que nenhum país criou condições para o
bem-estar populacional sem construir um sistema industrial sob a coordenação de um
Estado soberano. Se trata de um anti-desenvolvimento, realizado em prol de monopólios
e oligopólios que controlam a economia nacional. O Sul não pode se fundir com o
Norte, pois aí não haveria nem Norte e nem Sul. O Norte só existe pela diferença
duradoura com o Sul. Por isso talvez que no Norte não se pratique o que se prega ao Sul
Global.
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Depois de um ciclo apoiando os piores ditadores de direita pelo Sul Global, os
EUA passaram a interferir em outros países dizendo que estão promovendo “a
democracia” e pelos “direitos humanos”, com coação das instituições financeiras
internacionais. O Norte busca assegurar sua supremacia por meios econômicos,
políticos, militares e culturais. Aqueles que agem para realizar seu potencial nacional
fora deste pequeno clube é perseguido por todos meios possíveis para que não realizem
uma transição social, econômica e política que superem efetivamente e de forma
duradoura a dependência e controle externo sobre seu território e instituições, muitas
ditas “democráticas”.
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efeitos nefastos sobre as maiorias populares. Além disso, “economistas” liberais
defendem a “especialização” dos países, que consideraram um efeito positivo de uma
economia aberta global. Isso é, países do Sul Global devem ser exportadores de
matérias-primas e alimentos para o Norte, pois esta seria sua vocação na divisão
internacional do trabalho. E o Norte, por sua vez, poderia inundar os mercados do Sul
Global com bens industriais que os fabricantes locais não deveriam produzir, frustrando
assim qualquer iniciativa de desenvolvimento industrial sustentado.
19
políticas setoriais, programas macroeconômicos e projetos de infraestrutura, com a
participação ativa do Estado.
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nacional nas indústrias de média e alta tecnologia, as empresas nacionais só podem
alcançar o reconhecimento da marca e a sutileza tecnológica das empresas estrangeiras
por meio do protecionismo do mercado em um período de tempo
limitado. Crucialmente, as relações estado-empresas estão inseridas em uma estrutura
política, na qual a gestão centralizada de rendas permite que os estados imponham
estabilidade política, reduzam os custos de transação para atores privados para motivar
o empreendedorismo e criar mais oportunidades para rent-seeking impulsionado pela
produtividade.
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2.2.1. O caso da Índia
No ano de 1938 foi criado no Partido do Congresso o Comitê Nacional de
Planejamento, presidido por Jawaharlal Nehru. Em 1945, a tese do planejamento
econômico recebe apoio dos grandes empresários indianos através do documento que
ficou conhecido como Plano de Bombaim, onde apresentaram suas ideias, algumas
inclusive avançadas para a época, sobre a dimensão econômica do futuro Estado
Nacional. Após a Independência em 1948, o Governo introduz os Planos Qüinqüenais
de inspiração soviética, com o primeiro-ministro Nehru e a criação da Planning
Comission, em 1950, a responsável pela formulação, execução e acompanhamento dos
Planos. O sistema soviético de Planos Qüinqüenais foi desenvolvido, mas sem o
monopólio do Estado sobre os recursos - o capitalismo foi permitido, mas com grande
burocracia, grandes investimentos foram permitidos, mas vários setores ficaram
protegidos (BASU, 2003).
22
liberal, com uma acirrada competição eleitoral (CRUZ, 2007; CINTRA, 2009). Os
investimentos em novas plantas ou expansão da capacidade produtiva existente sofriam
um forte controle, necessitando de licenças concedidas pelo Comitê de Licenciamento
Interministerial, subordinadas às diretivas estabelecidas pelos Planos Quinquenais de
Desenvolvimento. O Estado indiano, além de determinar os setores eleitos, também
determinava a localização, as tecnologias e dimensões das plantas industriais, seus
conteúdos importados e as formas de relacionamento das empresas nacionais com os
agentes externos. Apenas as pequenas e médias empresas estavam dispensadas do
regime de licenciamento. Exceção essa que fazia parte das características peculiares do
projeto de desenvolvimento indiano desde os primeiros momentos, continuando
presente até os dias atuais, isto é, a preservação da pequena indústria artesanal.
23
a afirmação exterior do país, com destaque para os papéis de regulador, investidor e
financiador. A peça central desse regime foi a Lei das Indústrias (Regulação e
Desenvolvimento Industrial) de 1951, que moldava a política industrial e afirmava que a
União deve ter o controle de suas indústrias. Esta lei implantou um modelo de
licenciamento industrial para controlar o ritmo e o padrão do desenvolvimento industrial
no país, ficando conhecida como “Licence permit raj” (NUNES, 2006). O controle
estatal sobre o desenvolvimento das indústrias era justificado e objetivava acelerar a
industrialização e o crescimento econômico, bem como reduzir as disparidades
econômicas entre as camadas sociais. A forte aversão ao comércio, aos investimentos e
às tecnologias estrangeiros deveu-se a reações ao colonialismo.
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Podemos assim resumir a estratégia de desenvolvimento indiana, para o período
que vai desde a Independência em 1947 até 1980, como segue:
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cento delas em 1991 – e de importação, assim como a concessão de incentivos diversos
às exportações, a redução de direitos de monopólio do governo na importação de ativos
estratégicos e até uma mini-reforma tributária. É importante dizer, quando tratamos das
reformas, que uma característica muito importante do programa de reformas indiano,
quando comparado às reformas conduzidas em outros países, tem sido o gradualismo e
a transição evolucionária, ao invés de uma “terapia de choque”. Uma razão para este
gradualismo é que as reformas não foram introduzidas como respostas a uma crise
econômica prolongada ou um sistema econômico em colapso.
O projeto de montagem das zonas especiais por parte do governo indiano tem
inspiração nas zonas especiais chinesas que tiveram sucesso na década de 1980 e sua
gênese na década de 1990 Atualmente, algumas já estão estabelecidas, posto que o
governo eliminou uma série de restrições, como exigência de licenças e tarifas na Nova
Lei das Zonas Especiais de 2005 e mais de 150 propostas foram estão sendo pensadas
pelo governo.
26
As exportações (ligadas a TI) passam a se expandir a partir de 1993, facilitadas
pela modernização no sistema de telecomunicações indiano, como por exemplo, com a
interligação via satélite do monopólio estatal VSNL ao sistema Intelsat, com os parques
tecnológicos sendo difundidos para 13 cidades do país, cada um deles com suas próprias
estações por satélite, propiciando canais de comunicação internacional entre produtores
de software, fornecedores e clientes. O epicentro das indústrias de TI na Índia é a região
de Bangalore, mas cidades como Hyderabad, Chennai, Pune, Noida e Gurgaon [as duas
últimas no entorno da grande Délhi], concentram muitas empresas de TI – além de
indústrias promissoras das áreas farmacêutica (destaque para genéricos) e de
biotecnologia. A Índia possui cerca de 29 parques industriais de tecnologia, com infra-
estrutura completa e isenção de impostos para empresas que queiram ali se instalar. Nos
parques de Bangalore, Hyderabad, Gurgaon e Noida, existem mais de 6,5 mil empresas,
que respondem por 80% da produção indiana de softwares (MELLO, 2008).
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estrangeiro que o polo dinâmico do setor de serviços. Com uma visão estratégica de
longo prazo, que mantém o planejamento e a presença do Estado em setores
economicamente pouco atrativos à livre iniciativa, no sentido de fomento da indústria,
do comércio, da tecnologia, da educação e da infra-estrutura, além da expansão do
déficit fiscal que impulsiona o crescimento econômico indiano ainda mais
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2.2.2. O caso do Brasil
Pelo menos desde 1930, o Brasil vive movimentos cíclicos entre um capitalismo
nacional e o capitalismo associado, numa integração subordinada aos Estados Unidos. É
uma disputa entre uma importância absoluta ou relativa das grandes multinacionais e do
poder executivo na execução de projetos nacionais, entre o predomínio de tendência
nacionalista ou internacionalista. Governos mais nacionalistas enfrentam mais
instabilidade como resultado de avanços reformistas. Eles não conseguiram – até hoje –
romper este ciclo pendular, sendo encerrados por interesses exógenos. Quando se
avançar a um projeto nacional de longo prazo, que aponte para bases político-partidárias
e massas populares politicamente organizadas, vem um processo de desestabilização
que rompe o ciclo, atrasando o desenvolvimento por anos, senão décadas.
29
Açúcar e do Álcool, entre outros, além de órgãos de coordenação como a Carteira de
Crédito Agrícola e Industrial (1937), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -
IBGE (1938), o Conselho Nacional do Petróleo (1938), a Comissão de Planejamento
Econômico (1944) etc., sistematizando com essas divisões a execução e planejamento
da política econômica. Para criar as condições gerais de produção do processo de
industrialização, o Estado Novo investiu grandes somas de capitais em empresas
estatais nos setores de siderurgia (Cia. Siderúrgica Nacional, Volta Redonda/RJ, 1940),
mineração (Cia. Vale do Rio Doce, MG, 1942); mecânica pesada (Fábrica Nacional de
Motores, RJ, 1943), química (Fábrica Nacional de Álcalis, Cabo Frio/RJ, 1943) e
hidrelétrica (Cia Hidrelétrica do Vale do Rio São Francisco, 1945). O objetivo, nesses
setores, era fazer os investimentos de capitais que a burguesia era incapaz de realizar,
mas que eram de suma importância para o processo de industrialização, por criar
condições de funcionamento a inúmeras empresas industriais, que necessitavam de
energia elétrica, transformação de metais, elementos químicos, entre outros, para a
continuação de suas atividades produtivas. A Carteira de Crédito Agrícola e Industrial
do Banco do Brasil, criada em 1937, responsável por prover empréstimos com juros
baixos para a compra de máquinas e equipamentos, cumpriu um papel de banco de
desenvolvimento enviesado para o setor industrial.
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era o mecanismo de propaganda dos ministérios e departamentos do governo, servindo
como instrumento de promoção do chefe do governo e das autoridades como um todo.
Também foi nesse ano que a implantação da Justiça do Trabalho, os benefícios de
salário mínimo e estabilidade adquirida foram consolidados, o que marcaria a legislação
trabalhista brasileira.
Após o golpe que destituiu Getúlio por meio de setores militares e empresariais
ligados aos Estados Unidos em 1945, convencidos que a “defesa hemisférica” era mais
importante que o desenvolvimento nacional, veio o governo Café Filho realizando uma
agenda liberal, liquidando diversas conquistas do Estado Novo. Com a eleição de 1950,
Getúlio volta ao Catete e, por meio de sua Assessoria Econômica, impulsiona
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novamente o planejamento estatal, com a formação de grandes estatais como Petrobrás,
Eletrobrás e Banco Nacional de Desenvolvimento. Após um cerco das classes
dominante, Getúlio se suicida em 1954, deixando a maior herança que um estadista
produziu na história do Brasil, com a construção das bases do Estado Nacional,
instrumentos de projetamento da economia, sem contar os direitos trabalhistas e os
avanços em termos de unidade e cultura nacional (MARCELINO, 2022).
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Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que será vinculado ao Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico (BNDE) para promover empréstimos de longo prazo. O
Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) passa a substituir o imposto sobre
consumo. Transfere-se o imposto de exportação da esfera estadual para a União e o
Imposto Sobre Operações Financeiras (ISOF/IOF) entra no lugar do imposto do selo.
Para diminuir o déficit público, o PAEG atuou com corte nos gastos públicos, aumento
da carga tributária aumentando a captação de recursos da União e contendo a demanda
por bens e serviços, visando combater a inflação em suas próprias raízes. O governo
federal promoveu, através da reforma tributária, consolidada em 1966, o aumento de seu
poder arrecadatório e a centralização das decisões em detrimento dos Estados, que
ficaram mais dependentes da esfera federal e de recursos externos.
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tantas medidas tópicas, conjunturais, como redução de impostos, corte de juros ou oferta
de crédito oficial subsidiado, mas, sim, um amplo conjunto de iniciativas, envolvendo o
governo, o setor privado e o capital externo. Se criaram inúmeras estatais para dar conta
dos investimentos em infraestrutura. Foi a maior intervenção do Estado na economia na
história do Brasil, somente comparada com o Estado Novo. O PND II foi o auge da
segunda onda de capitalismo de Estado brasileiro.
Geisel, Golbery e outros imaginavam que o Brasil teria um espaço natural entre
as potências ocidentais, por sua cultura e laços com os Estados Unidos, que tomar o
lado capitalista na Guerra Fria era suficiente para que suas políticas não fossem
boicotadas. Com o choque no petróleo, foram forçados a criar mais laços comerciais e
ter uma política externa mais autônoma, o que gerou um progressivo bloqueio dos
Estados Unidos. O setor automotivo brasileiro competia diretamente com o setor
automotivo dos Estados Unidos. E, por mais paradoxal que pareça, em 1964 os Estados
Unidos golpearam o desenvolvimento nacional brasileiro para impor seus interesses e
dez anos depois, com Geisel, passam a denunciar a ditadura e a tortura que ajudaram a
implementar, apoiam iniciativas de democratização que resultassem em eleições gerais
que levem a privatização, estrangulam o país por meio da dívida externa, passam a
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defender a retirada dos militares do poder e reintrodução da agenda liberal para
favorecer seus capitais.
35
torno destas iniciativas articularam-se ministérios, empresas estatais, fundos de pensão e
órgãos técnicos.
De modo geral, o governo Lula I, inicia com uma política econômica bastante
ortodoxa, com juros altos e elevados superávits primários (média de 3,5% do PIB em
2003-2006) para enfrentar desequilíbrios externos e o aumento da inflação, cujos efeitos
contracionistas não foram tão sentidos em função do início do “boom de commodities”
que favoreceu as exportações brasileiras. Todavia, deve-se considerar que algumas
políticas domésticas cumpriram papel importante para aumentar a autonomia da política
econômica, em particular a conjugação de uma política de acumulação de reservas
internacionais a partir de 2005 (de US$ 28 bilhões em 2004 para 352 bilhões em 2011)
e de redução da dívida pública externa (de US$ 136 bilhões em 2003 para 86 bilhões em
2006), o que fez o governo brasileiro ter posição credora em dólares a partir de 2007. O
crescimento do mercado doméstico de massa foi estimulado tanto pela expansão do
emprego – grande maioria no setor de serviços - como pela melhoria da distribuição de
renda resultante de políticas governamentais e fomento ao crédito ao consumidor. A
partir de 2006 o governo passou a adotar um conjunto de políticas menos
convencionais, como acumulação de reservas cambiais, valorização do salário mínimo,
aumento dos desembolsos do BNDES, plano para acelerar o crescimento econômico
através de aumento do investimento público e privado em infraestrutura (PAC) em
2007, etc. Já a partir do contágio da crise financeira internacional desde setembro de
2008, um conjunto de políticas anticíclicas foram bem sucedidas em enfrentar seus
impactos sobre a economia brasileira: política de crédito via bancos públicos,
desonerações tributárias para consumo de bens duráveis, aumento no investimento
público, expansão do crédito direcionado via BNDES, criação de um programa de
moradia popular “Minha Casa, Minha Vida”, etc.
Dilma Rousseff toma posse em janeiro de 2011. No primeiro ano adota uma
política ortodoxa, mas entre 2012 e início de 2013, Dilma realiza uma inflexão da
política econômica com objetivo de transformar o tripé macroeconômico neoliberal.
Criou-se a "nova matriz econômica" baseada em cinco pilares: juros baixos, crédito
barato fornecido por bancos estatais, política fiscal expansionista,
câmbio desvalorizado e reindustrialização por meio dos investimentos públicos,
concessões e aumento das tarifas de importação para "estimular" a indústria
nacional. Em última instância, a nova matriz econômica teve como elemento central
36
tornar o setor público o principal protagonista no processo de desenvolvimento do país,
por isso seu caráter desenvolvimentista.
37
foi potencializado o Programa de Sustentação do Investimento (PSI), dirigido à
“produção, aquisição e exportação de bens de capital e inovação tecnológica”.
38
orientação neoliberal e tentou-se criar as condições para um forte investimento
produtivo, sobretudo na indústria e infraestrutura.
Dilma tentou liderar a coalizão desenvolvimentista contra a coalizão de
capitalistas rentistas e financistas, mas o resultado foi a reunificação de diferentes
frações da burguesia contra o governo, dado como “intervencionista”, “estatizante”,
“perigoso para a hegemonia burguesa”. Este trabalho da grande mídia, da oposição
política e outros setores sociais contrários ao governo contaminaram as expectativas do
empresariado que passou a realizar uma espécie de “greve geral de investimentos”, o
que travou o crescimento de vez. A partir do final de 2012, a burguesia começou a por o
pé no freio, percebendo que a gestão era temerária para seus interesses de classe e que o
governo ficaria muito forte. A partir de 2013 o governo recua, a taxa de juros volta a
subir, as intervenções no mercado de câmbio foram revistas e, para piorar, a nova matriz
econômica passou a ser vista como a causa da crise econômica.
Em termos de crescimento econômico e elevação da taxa de investimento, o ensaio
desenvolvimentista de Dilma não surtiu os efeitos esperados. Segundo o IBGE, a taxa de
investimento do país, após elevar-se de 17,3% para 20,6% do Produto Interno Bruto (PIB),
entre 2006 e 2010, ficou praticamente estagnada nos três anos seguintes e caiu quase um
ponto percentual no ano passado. As taxas efetivamente observadas no período foram:
20,6% em 2011, 20,2% em 2012, 20,5% em 2013 e 19,7% por cento do PIB em 2014. O
investimento não veio e os resultados, em matéria de crescimento, foram muito baixos.
O crescimento médio da economia brasileira no primeiro mandato de Dilma Rousseff,
de 2011 a 2014, foi de 2,2% ao ano.
O maior ativismo estatal de Dilma (que se mostrou em propostas como a
redução da taxa de juros “para nível internacional”, diminuição dos spreads bancários,
facilitação do crédito para o investimento, aumento do IOF sobre a entrada de capital
estrangeiro, desonerações tributárias, adoção do conteúdo nacional como “diretriz da
política industrial”, “preferência para produtos nacionais nas compras governamentais”,
entre outras) fez crescer a ideia de que se tratava de mandato “intervencionista”, que
inviabilizava os investimentos e não criava confiança. Conforme Singer, ao núcleo
rentista (interno e externo) se juntaram, sucessivamente, os importadores, descontentes
com a desvalorização do real e as barreiras aos produtos importados, as empreiteiras,
descontentes com a “modicidade tarifária”, as “elétricas”, insatisfeitas com a MP 579,
os grupos prejudicados com o aumento da competição no setor portuário, os produtores
de álcool, prejudicados pela baixa competitividade do etanol em virtude da opção por
39
segurar o preço e retirar as Contribuições de Intervenção sobre o Direito Econômico
(Cide) da gasolina, o agronegócio em geral, desconfiado de que tenderia a ser mais
tributado, os setores da indústria automotiva descontentes com as dificuldades de
importação, as empresas aéreas insatisfeitas com as novas regras vigentes nos
aeroportos, as empresas de celular punidas por falta de investimento, a classe média
tradicional irritada com a alta do preço dos serviços, das viagens e dos importados e os
industriais afetados pelas políticas pró-trabalho. Cada setor que se sentia prejudicado
aderia à críticas do intervencionismo, adensando a oposição capitaneada pelos rentistas,
até que em certo momento a frente antidesenvolvimentista englobou o conjunto da
burguesia, contando com o suporte fervoroso da classe média tradicional (SINGER,
2015). Mesmo o setor da burguesia que parecia até a pouco parecia satisfeita com a
política de crescimento via consumo e com as concessões às grandes corporações,
passou a criticar o que chama de linha estatizante do governo. Conforme Wladimir
Pomar, essa reorganização é apoiada sem disfarces pelo FMI e por revistas estrangeiras
que expressam o pensamento das grandes corporações transnacionais, como The
Economist, Financial Times e Der Spiegel. E tem como alvos, além da linha estatizante,
várias suposições, com destaque para o fracasso e o descrédito nacional e internacional
da política econômica do PT, as tendências de inflação e recessão, o crescimento da
corrupção, e a ausência efetiva de políticas para superar o caos nos transportes, na saúde
e na educação6. No final de 2012, Delfim Netto afirmava:
O problema é que nem sequer a bem-sucedida política de queda da taxa de juros real,
nem o controle do movimento de capitais responsável por levar a uma recuperação da
taxa de câmbio, nem os incentivos fiscais, alguns da maior importância no longo prazo,
caso da desoneração da folha de salários, nem o excepcional esforço por meio do
BNDES, nem os estímulos à inclusão social que asseguram um aumento da demanda
foram capazes de mobilizar os investidores privados. A verdade é que a resposta ao
ativismo do governo, em geral na direção correta, foi infelizmente acompanhada de
ruídos de comunicação por parte dos agentes públicos em interação com o setor privado
no campo fundamental da infraestrutura. Frequentemente eles manifestam alguma
prepotência e muita idiossincrasia, a comprometer a relação de confiança desejável
entre o setor público e o privado. Obviamente, o primeiro pode e deve fixar as regras do
jogo com lógica aceitável em uma economia de mercado, mas o segundo tem todo o
direito de exigir a máxima clareza, transparência e respeito. Quem conhece a
inteligência da presidenta Dilma Rousseff, sua disposição de estudar cuidadosamente
cada problema e seu pragmatismo, tem dificuldade em entender como se chegou a tal
distância de confiança entre o governo e o setor privado de infraestrutura. Uma coisa é
certa: enquanto essa distância não for anulada, é pouco provável o “espírito animal” dos
empresários se manifestar e os investimentos crescerem7.
6
POMAR, Wladimir. Classes e luta de classes: desafios atuais. Jornal Correio da Cidadania, 03/07/2014.
7
NETTO, Delfim. A engrenagem da confiança. Carta Capital. 11/12/2012.
40
O desenvolvimentismo foi contido pelo aumento dos juros, a partir de abril de
2013. A estagnação do investimento abriu, assim, o caminho para a virada da política
econômica. Ao reduzir o crescimento da atividade econômica, desacelerou a arrecadação de
impostos, colocando pressão sobre as contas públicas. Ao mesmo tempo, a desvalorização
cambial pressionou a inflação e forçou o governo a recuar em relação ao afrouxamento da
política monetária. A partir de abril de 2013, o COPOM inicia um ciclo de elevação da taxa
de juros que tornava manca a perspectiva de retomada do desenvolvimento nacional e
paralisava o avanço progressista, exatamente em seu auge (SINGER, 2015). A grande
burguesia se dera conta que Dilma estava encabeçando um novo modelo de crescimento
que rompia com as regras neoliberais na economia e passa então a culpar
sistematicamente o intervencionismo do governo na economia pela “crise de confiança
do capital privado” e pela contração dos investimentos. A linha desenvolvimentista teve
pés de barro, não se estabeleceu com firme apoio político, social e popular e nem com o
apoio dos industriais, que foi sendo perdido para o bloco rentista. A partir daí Dilma foi
obrigada a recuar passo a passo até chegar aquém do ponto de partida. A substituição de
Guido Mantega por Joaquim Levy, anunciada no final de 2014, fez retroceder os
avanços do Estado em relação ao primeiro mandato de Lula (SINGER, 2015). Depois se
vencer a reeleição com discurso desenvolvimentista, Dilma propôs um ajuste “como
feito em 2003”, porém sem o superboom de commodities que ajudou então a reverter o
quadro de estagnação e projetar Lula como grande mediador das classes sociais em
disputa. O cerco a favor de reversão neoliberal completa ganhou cada vez maior adesão
do Norte e da burguesia nacional, na classe média tradicional e em setores da nova
classe trabalhadora. A crítica a “nova matriz econômica” passa a ser total. Praticamente
ninguém reivindica sequer sua existência. Dilma encampa o programa de “ajuste fiscal”
com o objetivo de colocar algum freio na recessão econômica e trazer novamente a
confiança dos empresários, consumidores e investidores externos, o que abriria as portas
para a retomada do crescimento econômico. Entretanto, nada disso ocorreu, a recessão
se aprofundou, a arrecadação caiu e sua aprovação popular foi para o chão,
impulsionando o processo de sua destituição.
Para Singer, Dilma não estava preparada para a ofensiva burguesa, o que
implicaria apoiar-se no subproletariado e, sobretudo, na classe trabalhadora organizada
para reagir. Tal como em 1964, as camadas populares não foram mobilizadas para
defender o governo quando a burguesia o abandonou (SINGER, 2015). O ensaio
41
desenvolvimentista não foi acompanhado de mobilização social, em 2011 e 2012,
consistindo em um conjunto de decisões tomadas sem amplo debate público e capilaridade
social. O povo não foi informado do que estava acontecendo. Pelo alto, Dilma e Mantega
realizavam ousado programa de redução de juros, desvalorização da moeda, controle do
fluxo de capitais, subsídios ao investimento produtivo e reordenação favorável ao
interesse público de concessões à iniciativa privada. Na sociedade, o vínculo entre
industriais e trabalhadores se dissolvia e os empresários se unificavam “contra o
intervencionismo”. Nesse contexto, os capitalistas podiam confiar que, com a pressão
advinda de uma greve de investimentos, ele não teria força para se manter. E a política
econômica convencional seria, cedo ou tarde, retomada (SINGER, 2015).
Países como o Brasil são muito expostos às mudanças nas condições externas,
vulneráveis aos ciclos de liquidez, sendo obrigado a ajustar suas políticas domésticas a
essas condições. O Governo Lula foi pressionado a adotar políticas ortodoxas no início
de sua gestão, e, conforme as condições internacionais (boom de commodities) foram
favorecendo o país, o governo foi implementando uma agenda mais intervencionista e
redistributiva embora mantendo a condução de uma política macroeconômica ortodoxa.
Indubitavelmente o governo Lula foi favorecido pelo contexto econômico internacional
benigno, em que pese o contágio da crise financeira internacional de 2008. Também
contou com o foco dos Estados Unidos em suas guerras no Oriente Médio. Já Dilma,
frente a um cenário internacional menos favorável, com acentuada piora nos termos de
troca do país, adotou políticas mais vigorosas que se afastaram do figurino mais
convencional, rompendo com o reformismo fraco lulista. Na transição do primeiro para
o segundo mandato, Dilma inverteu radicalmente a orientação das políticas, partindo
para um forte ajuste fiscal e a ortodoxia monetária, o que acabou minando os poucos
focos de sustentação política com os quais contava na sociedade. A conspiração política
que redunda no impeachment acaba ocorrendo com surpreendente facilidade,
alimentada pelos efeitos da Operação Lava Jato – organizada pelos interesses dos EUA
- e pela trajetória errática das políticas econômicas. O impeachment de Dilma
interrompe o projeto desenvolvimentista do PT, com seus erros e acertos, permitindo a
emergência de novos atores políticos.
42
após a reeleição em outubro de 2014. Durante 2015, a reversão do ciclo econômico se
afirma e se aprofunda, instaurando acentuado caos político que se traduz no processo
em curso de afastamento da Presidente, alçando ao poder o vice-presidente Michel
Temer do PMDB sem qualquer tipo de consulta popular. Depois de manobras da
Operação Lava-Jato, Lula é preso e tirado da disputa eleitoral de 2018 que culmina na
vitória de Bolsonaro, radicalizando o desmonte do Estado, a desnacionalização e a
desindustrialização, aumentando a miséria e a pobreza, bem como privatizando o
patrimônio que se consegue.
Com os governos petistas, o Brasil passou a ameaçar cada vez mais os interesses
norte-americanos por seu maior protagonismo em nível global (ONU, BRICS, IBAS,
FAO, OMC, Banco dos BRICS, maior autonomia em torno dos interesses nacionais
com países da Europa, Oriente Médio, África e Ásia) e regional (Mercosul, CELAC,
UNASUL, entre outros). Também passou a destoar dos interesses norte-americanos a
política de conteúdo nacional e a reaparelhagem do setor de defesa nacional,
43
desmontada durante a década de 1990. No tabuleiro mundial, os golpes institucionais no
Brasil fazem parte de uma estratégia dos Estados Unidos para derrotar governos mais
desenvolvimentista da América Latina, saquear riquezas e repactuar toda a América
Latina para uma estratégia de contenção da China e da Rússia. O que estava em jogo ao
articular o golpe institucional era abortar uma possível transformação geopolítica
regional e global com a recente ascensão do Brasil, reverter as políticas de defesa das
empresas nacionais e promover a abertura aos bens e capitais estrangeiros, inclusive
para explorar o petróleo do pré-sal. Assim como os Estados Unidos sabotaram o
governo Vargas na década de 1950, o governo Geisel na década de 1970, o governo
Lula e Dilma também despertou a ira dos Estados Unidos ao encaminhar um projeto –
leve e incipiente – de soberania e desenvolvimento nacional no Brasil.
Pouco meses depois, ainda em 2013, começa a Operação Lava Jato. Levantando
a bandeira “contra a corrupção sistêmica”, implantou-se o caos políticos que levou ao
afastamento da presidente Dilma, o desmonte da Petrobrás, das grandes empresas de
engenharia nacional e do projeto de modernização da defesa do país. Do nada aparece
Sérgio Moro, um juiz de primeira instância com um volume enorme de informações
sobre a Petrobrás, logo depois dele ter freqüentado cursos no Departamento de Estado
os Estados Unidos em 2007, ter realizado em 2008 um programa especial de
treinamento em Harvard na Escola de Direito e, em outubro de 2009, ter participado da
conferência regional sobre “Ilicit Financial Crimes”, promovida no Brasil pela
44
Embaixada dos Estados Unidos. Por meio do Ministério Público, sob o comando do
Procurador-Geral Rodrigo Janot, a Lava-Jato firma diversas parcerias de cooperação
internacional com o governo dos Estados Unidos, ainda pouco elucidadas. Janot e seus
procuradores chegam a participar de eventos no mínimo controversos, levando
informações estratégicas da Petrobrás e da Eletronuclear ao Departamento de Justiça
dos EUA em diferentes ocasiões.
45
maiores feitos de inovação da história moderna brasileira. Quando o Almirante recebe a
maior pena na Lava Jato com 43 anos de prisão – na prática, prisão perpétua,
considerando sua idade – é difícil imaginar crime maior de lesa-pátria. Afinal de contas,
não se trata apenas de inviabilizar o submarino nuclear, mas da sabotagem de todo o
projeto nuclear brasileiro. O Brasil tem uma das maiores reservas de urânio do mundo,
sendo um dos poucos detentores da tecnologia do seu enriquecimento. No Rio de
Janeiro estão as mais modernas ultracentrífugas do mundo, principalmente pelo trabalho
da Marinha de Guerra do Brasil. A produção brasileira de urânio é essencial para o
funcionamento de Angra I, Angra II e Angra III, que está com a construção paralisada e
sem previsão de recomeço. Com Angra III, o Brasil passaria a dominar a produção em
escala industrial do combustível nuclear, o que apenas os países que têm bomba atômica
possuem, além de competir no mercado global. O governo dos EUA se especializou em
dificultar o desenvolvimento do programa nuclear brasileiro desde a década de 1950.
Agora não é diferente. O programa nuclear brasileiro passou a ser considerado uma
ameaça aos interesses geopolíticos norte-americanos, especialmente pelo domínio sobre
submarino nuclear, inclusive o casco que estava sendo desenvolvido junto aos
franceses, a produção em escala do combustível nuclear e a modernização de sistemas
de controle e informação.
46
vendo sendo fechados, tirando a autonomia nacional na produção de navios e controle
marítimo, cortando milhares de empregos e levando cidades inteiras ao caos.
Logo após o afastamento de Dilma, uma das primeiras leis aprovadas no Senado
foi a reformulação da Lei da partilha do Pré-Sal, tirando poderes da Petrobrás. Com o
impeachment, o governo Temer indica o tucano Pedro Parente para assumir a Petrobrás
e realizar um amplo programa de desmonte, desinvestimento, privatização em fatias da
estatal. Em setembro de 2016 um consórcio liderado pela canadense Brookfield chegou
a um acordo com a Petrobrás para comprar 90% da unidade de gasodutos Nova
Transportadora Sudeste (NTS), em negócio de US$ 5,19 bilhões. O acordo para a venda
da NTS, que tem cerca de 2,5 mil quilômetros de gasodutos no Sudeste do Brasil. Em
novembro de 2016 a Petrobras aprovou a venda da Liquigás para a Ultragaz, subsidiária
da Ultrapar, em negócio de R$ 2,8 bilhões, o que eleva fortemente a concentração no
mercado de gás de cozinha do país. A Liquigás operava em quase todos os Estados do
país e conta com 23 centros operativos, 19 depósitos e uma rede de cerca de 4,8 mil
revendedores autorizados. Além disso, desde a aquisição pela Petrobrás da Liquigás em
2004 por US$ 450 milhões da Agip do Brasil, até então uma empresa da gigante italiana
Eni, a Liquigás investiu fortemente em melhorias e inovações, expandindo sua
cobertura para atendimento de 100% dos municípios dentro de sua área de atuação,
47
além da aquisição de novos botijões e aplicação de novas tecnologias. Com um lucro
líquido de R$ 114,3 milhões em 2015 (116% superior ao lucro de 2014) e vendas de 1,7
milhão de toneladas de gás por ano, a Liquigás era a empresa que regulava o preço do
GLP no país, permitindo que este seja mais barato para o consumidor, em especial para
a população mais pobre que precisa do gás de cozinha no seu dia a dia. Com sua venda,
a Ultragaz eleva a fatia de mercado para 50% do mercado nacional.
48
vias de desenvolvimento capitalista nacional passam a adquirir características socialistas
quando são realizadas por alguns anos. Medidas desenvolvimentistas ameaçam o pacto
de dominação burguês, por isso até mesmo a expansão do capitalismo é realizada sem
muita vontade, tendo que ser realizado apesar da burguesia. A burguesia se une pelo
medo de restrições a propriedade privada dos meios de produção, trabalhadores no
governo e socialismo. Mesmo que isso resulte em ser engolida pelos capitais
transnacionais, gerando monopolização, desemprego, violência e fome. Se o Estado
ameaça a incontrolabilidade do capital, ele passa a exigir que o Estado se retire da
economia, privatizando e destruindo cadeias produtivas, algumas essenciais para
qualquer desenvolvimento.
- Brasil e Índia têm pouco em comum do ponto de vista das suas formações históricas e
culturais. Porém, Brasil e a Índia são países que poderão alcançar projeção
internacional, podem estreitar suas relações, estabelecer acordos comerciais compatíveis
de longo prazo para o desenvolvimento de suas economias. Existem diferenças em suas
estruturas produtivas, porém complementaridades. A infra-estrutura indiana é bastante
semelhante à brasileira em termos de portos, sistemas de transportes, energia e outros.
49
Temer e Bolsonaro, destruindo o consumo de massa, cadeias produtivas estratégicas e a
capacidade estatal na condução econômica. Na Índia, mesmo os governos mais
“liberalizantes” mantiveram os planos econômicas orientados pelo Estado, com
estratégias mais avançadas de desenvolvimento numa planificação de longo prazo. O
diferencial entre os dois países reside no fato do governo indiano ter mantido seu
planejamento de forma mais consistente.
- No Brasil, mesmo nos governos desenvolvimentistas dos governos PT, não houve
neles uma estratégia unívoca, tendo diversos elementos diferentes, contraditórios entre
si. Um pouco liberal-dependente, um pouco capitalismo de Estado. Mas, de forma geral,
a estratégia adotada nesses governos buscou estimular, via política de aumento real no
salário mínimo, aumento das transferências sociais e expansão do crédito, o crescimento
baseado no consumo de massa. Se faz um programa emergencial, mas quando se tenta
avançar em reformas mais amplas, não havia se acumula força social capaz de realizar
tal transição, sendo obrigado a recuar a políticas ortodoxas e sendo facilmente golpeado.
No Brasil, o problema não é quando o capitalismo de Estado é aplicado, mas quando é
derrubado e atrasado por anos, senão décadas, dificultando qualquer iniciativa de longo
prazo. Já o modelo de desenvolvimento econômico adotado pela Índia foi
paradoxalmente a mesma causa do aumento da desigualdade. O país apostou em grande
parte nos setores de tecnologia da informação, serviços e telecomunicações, o que
aumentou a prosperidade da Índia urbana. Mas, em contrapartida, a Índia rural, onde
vive cerca de 60% da população do país, foi mantida amplamente à margem dessa
prosperidade - limitada a atividades agrícolas de baixa rentabilidade e por uma força de
trabalho sem qualificação. Já no setor de serviços, por exemplo, no Brasil é dominante
seu uso para o consumo final, com baixo valor agregado, enquanto na Índia há destaque
para os serviços de apoio à atividade produtiva, portanto mais comercializáveis. No
setor industrial, a Índia vem conseguindo manter sem grandes choques a sua política
industrial nacional, enquanto no Brasil se desindustrializa intensamente nas últimas
décadas.
- Na Índia, se firmou pela força militar, econômica e política os pilares dos interesses
nacionais, independente dos governos. O programa nuclear indiano, por exemplo,
elevou a maior capacidade nacional em defender seus interesses, enquanto o brasileiro
foi e segue bloqueado pelos Estados Unidos. A tragédia geopolítica do Brasil é a ser
50
potencial ameaça permanente aos Estados Unidos, seu rival natural no hemisfério. Por
isso, usam todo seu poderio para que os governos brasileiros sejam submissos e não
tenham planos de desenvolvimento soberano. O melhor cenário é o caos que dificulte a
realização de qualquer projeto nacional. A formação de capital e o soberano
desenvolvimento tecnológico-militar são vistos como ataques diretos a sua dominação
geopolítica e um obstáculo as empresas norte-americanas. Qualquer iniciativa que vise
romper os monopólios, a construção de um sistema de defesa moderno, política externa
autônoma, etc, faz com que se organizem ações coordenadas do império para
desarticular as forças políticas e sociais que levem a cabo processos de transformação
com vistas à emancipação nacional, usando meios legais e ilegais. Seu objetivo é
aprofundar a dependência externa para manter as velhas classes dominantes servis aos
interesses de Washington. Já a Índia passou a ser um país chave na contenção da
emergência de China e Rússia. Ao manter uma linha de capitalismo de Estado a Índia
não deve conseguir superar seus obstáculos ao desenvolvimento.
- As relações da Índia com os EUA são bem mais distensionadas do que com o Brasil.
A desconfiança entre EUA e Índia durante a Guerra Fria passou a ser transformado até
se tornarem parceiros prioritários, moldando novas relações econômicas e de segurança.
Para o Brasil, sua emergência significa intensificar a rivalidade regional com os Estados
Unidos. Para a Índia, significa intensificar as rivalidades regionais, especialmente com
China, Rússia, Irã e Paquistão. Isso faz com que, em relação ao Brasil, seja necessário
bloquear as tentativas de construção de um capitalismo que faça o mesmo que os
Estados Unidos fez para emergência como potencial regional e global. Em relação à
Índia, é possível ter maior “coexistência pacífica” com o projeto de desenvolvimento
nacional, agora como parte da estratégia de contenção da China.
51
2.3. SOCIALISMO DE MERCADO
52
seria uma característica do início do desenvolvimento socialista. Ele pensava que isso
seria necessário para a transformação revolucionária da sociedade, liquidando as
relações capitalistas de produção, estabilização de um novo poder nacional e
industrialização rápida. Porém, a partir do debate sobre cálculo econômico e tendência
de estagnação do socialismo soviético, surgiu a elaboração do modelo de socialismo de
mercado. Nesse modelo, combinou-se a influência do mercado, contribuindo para a
suposta alocação eficiente dos recursos, com a regulação emanada da planificação.
53
Alec Nove apresenta um modelo de socialismo muito influenciado pelas ideias
da NEP, de Oscar Lange, bem como pelas experiências reformistas do Leste Europeu,
com destaque para Polônia, Hungria e Iugoslávia. Nove aponta que a propriedade social
deveria predominar e o principal meio para atingir esse tipo de socialismo seria o
mercado, formando uma economia mista, onde opera a regulação mercantil, o controle
de preços atentaria contra o próprio sistema ao destruir o mercado.
54
Entre os requisitos mais importantes para estabelecer um sistema socialista
marxista estavam os dois que diziam respeito à abolição da propriedade privada e à
substituição do livre mercado capitalista pelo planejamento central. Na verdade, era um
requisito único, o primeiro levou ao segundo, pois quando todo bem é propriedade do
Estado, não há necessidade de mercado para compra e venda. Entretanto, um sistema
assim, apesar de ter alguns benefícios no curto prazo, não consegue criar um sistema
social superior ao capitalismo. A estagnação dos monopólios estatais apresenta o
mesmo problema dos monopólios capitalistas – falta de competição, estancamento das
forças produtivas, desequilíbrios entre os setores da economia, dentre outros. Em países
menos desenvolvidos, este não leva ao desenvolvimento das forças produtivas.
55
2.3.1. O caso da China
56
1957, 68 entravam integral ou parcialmente em ação. Durante os anos do quinquênio, a
potência produtiva aumentou nas seguintes quantidades: ferro gusa, em 3,39 milhões de
toneladas; aço, em 2,82 milhões de toneladas; laminados, em 1,65 milhões de toneladas;
carvão, em 63,76 milhões de toneladas; petróleo, em 1,3 milhões de toneladas; etc..
Apesar dos conflitos crescentes com a URSS, no final de 1958 foram atingidos
na economia nacional grandes êxitos. O volume da produção industrial global aumentou
em 65%, a produção de aço em 66%, a produção de ferro gusa, carvão e tornos cresceu
em mais de duas vezes com relação ao período correspondente de 1958. A fim de criar
57
uma sólida base para a industrialização socialista do país, foi traçado no segundo plano
quinquenal continuar a construção de empresas metalúrgicas, assegurar o rápido
desenvolvimento da construção de máquinas, acelerar o desenvolvimento das indústrias
de energia elétrica, de carvão e de materiais de construção, bem como adiantar a
construção das indústrias petrolífera, química e de rádio, que são as menos
desenvolvidas.
Assim, a República Popular da China, num dos momentos mais difíceis da sua
história, via-se ainda mais isolada internacionalmente ao não contar nem com o apoio
do Ocidente nem com o do bloco soviético. Mao Tsé Tung acreditava que cada vez mais
o Partido Comunista da URSS enveredava pelo caminho errado e que essas mudanças
no caráter do Partido acarretariam transformações na política do campo socialista e no
futuro da luta do proletariado mundial.
Foi neste contexto que a China colocou em prática uma nova política de
desenvolvimento econômico e social, que foi oficialmente chamada de o Grande Salto
para Frente, iniciada em 1958. Foi colocado como tarefa mais importante prosseguir a
construção industrial com base na indústria pesada, fazer avançar a reconstrução técnica
da economia nacional, criar uma sólida base para a industrialização socialista do país.
Por um lado, o rápido crescimento da indústria (aço) e da agricultura (grãos), por outro
58
lado, a realização do comunismo o mais rápido possível. Estes são do ponto de vista
"um grande dois públicos" (um é em grande escala, o outro é propriedade pública), a
busca da elevação compulsória da propriedade por todo o povo. A comunidade popular
é considerada a organização ideal para este fim.
59
documento interno que o PCC estava repleto de revisionistas capazes de, a qualquer
momento, instaurar o capitalismo na China. Na Resolução dos 16 pontos - que foi o
documento que regeu a Revolução Cultural - a revolução tinha como objetivo identificar
e destituir os elementos que seguiam a “linha capitalista” e aqueles que difundissem a
ideologia burguesa na academia e na cultura.
60
trabalho no campo e na fábrica estava ligada à idéia de aprendizado com as massas
através da “reeducação ideológica” pelo trabalho produtivo. A Revolução Cultural
impôs um novo ritmo de vida à população chinesa, onde a tentativa de construção do
socialismo estava diretamente associada à imagem de um “homem novo”, que serviria
ao povo e aprenderia com as massas para promover um verdadeiro processo de
transformação. Baseada nesta iniciativa de massas, a Revolução Cultural teve como
principal limitação a compreensão errônea da essência das relações de produção na
China. A consequência disso foi a não percepção de que as contradições dentro do
Partido e do aparato estatal eram oposições entre classes sociais, cuja existência está
ligada a não transformação das relações de produção capitalistas, e não relacionadas a
conflitos limitados a questões políticas. Como grande processo de retificação, a
Revolução Cultural Chinesa passou a ser lembrada como uma fase repleta de excessos e
marcada por sessões de autocrítica, expurgos partidários, humilhações em público,
espancamentos e pela reeducação, mas também teve papel na abertura de um novo
caminho, até pela negação de sua experiência singular de tentativa de construção do
socialismo na China. Porém, além de seus efeitos imediatos, é preciso compreender o
contexto geopolítico de então, com a Guerra dos Estados Unidos no vizinho Vietnam, o
acirramento dos conflitos fronteiriços com a URSS e a instabilidade da política regional.
Nesta situação, a Revolução Cultural inibiu qualquer iniciativa de invasão estrangeira,
pois a partir de 1966 até 1969 ela influenciou todo um movimento internacional (maio
de 1968 na Europa e Estados Unidos, panteras negras, lutas pela independência na
África, no Brasil com a Ação Popular (AP) com que que foi, provavelmente, a maior
mobilização de massas da história da humanidade.
61
morte de Mao Tsé Tung, em setembro de 1976, o Bando dos Quatro foi destituído,
julgado e condenado pelos erros cometidos durante a Revolução Cultural. Começa o
período da reforma e abertura liderada por Deng Xiaoping. As condições internacionais
desfavoráveis se tornam favoráveis pela inusitada aliança com os EUA contra a URSS.
Enquanto se ganha tempo, se repensa o socialismo, entendido por meio do investimento
principal em indústria pesada. Se compreende que os processos de industrialização de
cada país no caminho do socialismo não podem ser uniformes, uma vez que dependem
de variadas condições internas e geopolíticas, dentre elas o grau de dependência
econômica, nível dado de desenvolvimento industrial, existência de recursos humanos e
naturais, relações de classe, nível cultural do população e condições históricas
específicas. Existem diversas formações sociais que podem produzir modos de
produção socialistas.
62
“Quanto ao desenvolvimento da ciência e das tecnologias, quanto mais altas e novas,
melhor e mais contentes ficaremos. Em nosso esforço para concretizar a modernização,
o ponto chave é elevar o nível de nossa ciência e tecnologia. Devemos exigir um estilo
de trabalho realista ou revolucionário. Isso nos ajudará a transformar ideais elevados em
realidade, passo a passo”. Em 1982, ele disse: “No domínio das tecnologias, seremos
bons em aprender; em particular, devemos ser bons em inovar”. As reformas propostas
por Deng consistem na adoção de novos e inexplorados rumos. O Estado deveria ser
reorientado para liderar o esforço de modernização econômica, no sentido específico de
favorecer, com incentivos e proteção, a atração de capitais privados estrangeiros e,
simultaneamente, preservar determinada presença estatal direta na esfera produtiva. A
aposta e a confiança nos efeitos estruturais e positivos da integração com o mercado
mundial levou à política de portas abertas e de estreitamento das relações com o Japão e
o Ocidente, sobretudos os Estados Unidos.
63
geral de “tudo para o povo”, vinculando economia e condições de vida das massas
(POMAR, 1987, p. 168-169).
64
externos para financiar os projetos de desenvolvimento industrial com estatais,
cooperativas, empresas privadas e mistas.
65
importância dos programas iniciados ainda nos anos oitenta, os fatos mais marcantes da
nova estratégia chinesa vieram com o 11º Plano Qüinqüenal (2006-2010), quando a
China mudou o foco de sua estratégia de crescimento, priorizando atividades orientadas
à inovação tecnológica no lugar da indústria e agricultura tradicionais. O Programa
Nacional de Médio e Longo Prazo para Desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia
(MLP) de 2006, cujo horizonte vai até o ano de 2020, é o grande instrumento desta
mudança, com ênfase na inovação nativa, no salto tecnológico em áreas prioritárias e já
com ambição de alcançar um protagonismo global. Mais recentemente, com o novo
plano qüinqüenal chinês (2011-2015), a ênfase dada a esta dimensão da estratégia
chinesa foi reforçada. Este novo plano qüinqüenal faz a emblemática proposta de passar
do 'made in China' para o 'design in China'. A China já é o principal exportador de
produtos manufaturados do mundo e também é o segundo fabricante de bens de alta
tecnologia do mundo. Contudo, apesar dos gastos em P&D da indústria de alta
tecnologia terem triplicado entre 2003 e 2008, o diagnóstico deste novo plano
qüinqüenal é que o país ainda apresenta um atraso quando se trata dos esforços de P&D
das empresas desses setores. Sua meta é deixar de ser uma plataforma de exportação de
grandes empresas multinacionais estrangeiras e, também das empresas nacionais, para
dar um salto qualitativo passando da imitação para a inovação, buscando a liderança
mundial apoiada na inovação.
Vale destacar que durante todo o processo de reformas, de 1978 até nossos dias,
a China manteve a característica leninista-stalinista em torno da natureza sistemática e
continuada do planejamento chinês e a capacidade de fazer políticas efetivas de seu
Estado nacional. A sistemática chinesa de formulação e implementação de planos
qüinqüenais confere ao seu planejamento, quer em termos gerais ou setoriais, uma
eficácia muito maior que países capitalistas. Em primeiro lugar, porque a cultura de
planejamento de longo prazo já está estabelecida e é uma rotina para todos os órgãos de
governo. Em segundo lugar, porque há continuidade nas ações e os novos planos dão
seqüência aos anteriores, sem as rupturas que comumente ocorrem na democracia
liberal. Em terceiro lugar, porque a implementação dos programas é favorecida pelo
grau de comando e controle que o Estado chinês possui sobre muitos dos atores
envolvidos, que em grande parte depende diretamente do governo (empresas estatais,
institutos federais de pesquisa, etc.) ou estão sujeitos a regras bem rígidas.
66
Theotonio dos Santos, num artigo chamado “O conselho de Pequim” de 2005
apontou algumas destas estratégias chinesas que levou ao crescimento de mais de 9%
por mais de 20 anos.
8
Disponível em https://waltersorrentino.com.br/2011/09/08/consenso-de-pequim-theotonio-dos-santos/
67
fazendo joint ventures, adquirindo participações minoritárias no exterior, passou a
desenvolver empresas que inovam na forma de produzir e vão tirando espaço e até
comprando empresas do Hemisfério Norte.
Tome qualquer lista das principais companhias chinesas e, por mais que elas se
distribuam por setores diferentes e tenham estratégias distintas, será fácil encontrar um
fator comum a seu sucesso internacional. Essas empresas têm se destacado graças a um
diferencial competitivo devastador: a capacidade de vender por preços "chineses", ou
seja, incompreensivelmente reduzidos. Não raro, um terço ou um quarto do preço
universal de um produto. Há 20 anos, o fenômeno estava restrito a quinquilharias de
baixa qualidade. Na última década, passou a incluir de computadores a pianos; de bens
de capital a motocicletas. Agora, vale também para automóveis.
Existe um mistério por trás do preço chinês. A resposta está, de início, numa abordagem
diferente do uso da mão-de-obra barata. Empresas ocidentais que levaram suas linhas de
produção para a China, dispostas a replicar o milagre do baixo preço, só conseguiram
resultados parciais. Por quê? Porque, na maioria dos casos, utilizam a força de trabalho
de baixo custo apenas no chamado chão de fábrica. Enquanto a típica multinacional
chinesa se vale dela em todas as etapas, inclusive na engenharia.
Outro diferencial é tecnológico, mas não sentido trivial. A empresa chinesa usa a última
tecnologia disponível em seu setor, mas também a penúltima, a anti-penúltima e até a
primitiva, o que exige muita engenharia. Nenhuma empresa ocidental combina
tecnologias assim. O que explica porque os chineses conseguem dar sucessivos tombos
nos custos e aumentar a diversidade dos produtos oferecidos. Como, na maioria dos
casos, são parcialmente estatais, muitas das multinacionais chinesas usam o acervo dos
institutos públicos de tecnologia com a maior liberdade. O caso clássico é o da antiga
Legend, fabricante de computadores que nasceu dentro da Academia Chinesa de
Ciência, e deu origem à Lenovo. Os cientistas transitavam de um lado para o outro com
a maior desinibição. Muitas inovações de institutos estatais chineses - às vezes ligados
ao complexo militar, quase sempre engajados em trocas de experiência e tecnologia
com centros de pesquisa do Ocidente - são repassados às empresas por valores que nada
têm a ver com os custos de mercado.
Outra vantagem que as empresas chinesas têm é a conexão íntima que existe entre elas.
A lógica econômica dos distritos industriais ou "clusterização", na China, foi levada ao
limite. Os clusters se espalham ao longo do Delta do Rio das Pérolas, região que
engloba Hong Kong, Macau e parte da província de Guangdong. Para ficar em três
exemplos, há em Leilu o cluster de bicicletas; em Huizhou, o cluster de DVDs; e, mais
importante, em Dongguan o cluster de computadores. Toda a cadeia de fornecedores
dessas indústrias está reunida nesses pólos. São clusters com mais de mil empresas cada
um. E há forte intercâmbio entre elas. É um sistema radicalmente diferente do just in
time, com componentes chegando de todas as partes do mundo. Nos distritos chineses,
cada empresa faz um pedacinho do produto final, mas todos trabalham lado a lado,
pensando no produto final. Este fator, isoladamente, já garante bicicletas, computadores
e DVDs de 10% a 20% mais baratos. Hoje está claro que o grande diferencial chinês
provém não da criação de tecnologias, mas da capacidade de barateá-las drasticamente.
Quando um fabricante chinês consegue reduzir o preço de um aparelho de DVD de 300
para 30 dólares, ele passa a ser capaz de vendê-lo não só na China, mas também na
África, na América Latina e no restante da Ásia. Uma das características da
68
internacionalização chinesa foi transformar nichos em mercados de massa, vendendo
produtos supostamente para públicos segmentados por uma fração do preço universal.
9
http://epocanegocios.globo.com/Revista/Epocanegocios/0,,EDR84198-8374,00.html
69
seriam a expressão máxima de um processo de construção de instituições capazes de
refletir, ao longo do tempo, a estratégia do país.
Elias aponta que esse diferencial de produtividade entre empresas estatais,
township and village enterprises (TVE), empresas de capital misto, etc. pode guardar
respostas no surgimento de um “novo modelo” na China mais voltado para o
desenvolvimento da fronteira tecnológica, com projetos como o Made in China e a mais
de centena de bilhões de dólares na chamada inteligência artificial, plataforma 5G e no
Big Data. Esses aparatos suportarão as novas e superiores formas de planificação.
Jabbour afirma que um novo modo de produção está surgindo na China, com
muitas similaridades da “Nova Economia do Projetamento” proposta por Ignácio
Rangel para designar o modo de produção que surgia da fusão entre a economia
monetária, o keynesianismo e a planificação soviética. Trata-se da plena integração
entre produção, distribuição circulação, oferta, demanda e dados financeiros. Afora a
rápida mudança na divisão social do trabalho com o encaminhamento planificado do
campo com a cidade10.
10
https://portaldisparada.com.br/economia-e-subdesenvolvimento/nova-economia-do-projetamento/
70
“pequena produção mercantil” está dando lugar a formas superiores de propriedades não
capitalistas. O Partido Comunista, além de exercer o poder político, espalha seu poder
sobre toda a economia não somente através de empresas públicas, mas também com os
comitês de fábrica que se capilarizaram e passaram a ter voz, inclusive no setor privado
em um processo que se acelera desde 2012. É muito complicado falar na existência de
um “socialismo puro”, porém a China certamente é a forma de engenharia social mais
avançada que existe no mundo, mais distante de um capitalismo, seja liberal ou de
Estado e mais próximo de formas socializantes, o que não encerra as imensas
contradições existentes por lá, ao contrário: são as contradições o principal motor das
transformações do país. Interessante notar que o setor público na China detinha o
controle de 77% das forças produtivas no país em 1978 e hoje diminuiu para 30%.
Porém a capacidade de realização do Estado é muito maior.
Wladimir Pomar, autor de diversos livros sobre China, aponta que a experiência,
até agora exitosa na China e no Vietnã, demonstra que o socialismo de mercado é um
poderoso vetor de crescimento econômico e social, cujos paradigmas podem ser
utilizados por qualquer país para seu desenvolvimento. Na conjuntura da Guerra Fria e
da ascensão do neoliberalismo no Norte, China e Vietnã aproveitaram dos excedentes
de capitais dos países desenvolvidos e da decisão de relocalização de plantas industriais
das corporações empresariais. São experiências que aproveitaram da reestruturação do
capitalismo desenvolvido para intensificar a recepção de investimentos externos, com
Zonas Econômicas Especiais, onde os investidores estrangeiros podiam investir desde
que se associassem a empresas nacionais, inclusive estatais, e transferissem a elas novas
ou altas tecnologias. Com conhecimento das lacunas de suas cadeias produtivas, e sem
medo de enfrentar a concorrência e os problemas próprios do modo de produção
capitalista, estabeleceram programas específicos e controlados para atrair investimentos
diretos e plantas industriais, de modo a adensarem aquelas cadeias e introduzirem
tecnologias avançadas em suas empresas estatais. Como resultado, há um crescente e
71
rápido crescimento industrial e agrícola, acompanhado da transferência de grandes
massas da população dos trabalhos agrícolas para trabalhos de construção e produção
industriais, comerciais e de serviços. Ocorreu uma crescente geração de riqueza, que
permitiu uma redistribuição constante da renda, embora com desigualdade. A
participação da economia desses países no mercado mundial deu um salto. Em recente
artigo chamado “o caminho chinês”, Pomar aponta que:
a China, a partir do final dos anos 1970, fosse levada a ingressar no chamado socialismo
de mercado, combinando e confrontando a propriedade estatal e a propriedade privada,
orientação estatal e disputa de mercado, trabalho assalariado e trabalho cooperativo.
Para facilitar, e também para complicar, isso ocorreu paralelamente às reformas
estruturais no capitalismo desenvolvido, caracterizadas em grande medida por
investimentos externos em países com mão-de-obra mais barata, investimentos que
incluíam a transferência de plantas industriais, inteiras ou segmentadas, para tais países.
Tal processo deu surgimento ao que foi chamado de “globalização” capitalista.
Ao mesmo tempo, a China modificou seu antigo sistema de trabalho 3 por 1 (três
trabalhadores por posto de trabalho, como forma de reduzir o desemprego, mas de baixa
produtividade) e incentivou e financiou os trabalhadores dispostos a elaborar e a levar
adiante projetos industriais privados, financiados por bancos estatais. Com isso
reconstituiu a burguesia nacional para intensificar a disputa no mercado com as
empresas estrangeiras e as estatais. De qualquer modo, a concorrência e as contradições
entre a propriedade estatal e a propriedade privada fazem parte do cotidiano das
experiências e contradições que permeiam o socialismo de mercado11.
11
O caminho chinês. 2020. https://teoriaedebate.org.br/2020/04/21/o-caminho-chines/
72
Estas interpretações brasileiras do socialismo chinês apontam para o
desenvolvimento de um novo modo de produção na China, um sistema sócio-
econômico de novo tipo. A maior diferença entre eles é que dão mais pesos para um ou
outro aspecto da realidade chinesa. Destaca-se sua estratégia geral socializante com
aumento da competitividade, buscando solucionar problemas concretos para a
industrialização, explorando contradições do capitalismo para desenvolver forças
produtivas, como afirmava Theotonio dos Santos. O papel dos “dragõezinhos” na
dinamização da economia chinesa, liberando o Estado para reformar as estatais que
passaram a liderar o processo de desenvolvimento tecnológico, como destacava Barros
de Castro. Também a capacidade da China em coordenar planejamento e política
monetária, o importante papel das estatais na ponta do desenvolvimento tecnológico e
de gestão, das formas coletivas não-estatais e das estratégias de captação de capital
externo como vetores econômicos apontados por Jabbour e Pomar. São todas estratégias
do desenvolvimento do socialismo de mercado.
73
(financeiro, petróleo, energia, etc), mas com a novidade de colocar as diversas estatais
em concorrência, evitando a burocratização e promovendo o desenvolvimento
científico. As estatais também concorrem com as empresas privadas, obrigando-as a
elevar a produtividade, baixar custos e preços. Na China, a economia de mercado é
profundamente conectada com o sistema econômico socialista, cujo fundamento é a
propriedade pública como base da coexistência de uma variedade de propriedades. A
economia de mercado foi implantada sob sistemas capitalistas no ocidente. Na China foi
construída a partir de uma economia socialista. O atributo “socialismo” aponta o
objetivo e natureza da economia de mercado. Além disso, a economia de mercado
chinesa tem suas próprias características. Por isso, o socialismo chinês é muito diferente
das economias de mercado dos países capitalistas ocidentais.
Ainda durante a década de 1980, a China passou a ser reconhecida por estar se
integrando ao capitalismo, com maior inserção nas cadeias produtivas internacionais,
zonas industriais para exportação que passaram a beneficiar a acumulação de capital
estrangeiro excedente, obtendo altas e consistentes taxas de crescimento. A China
manteve firmemente seu processo de desenvolvimento ancorado no socialismo de
mercado, fazendo gradualmente reformas visando a melhor organização das forças
produtivas, modernizando as estatais, as cidades, o sistema financeiro e de defesa
nacional. Manteve seu crescimento em nível quantitativo e acelerado, vislumbrando as
metas definidas para o fim do século. Enquanto isso, muitos torciam para que as
reformas dessem errado (colapso iminente) ou que levassem a reconversão total ao
capitalismo.
74
competitividade das estatais e cooperativas. O gasto público cresceu significativamente
com as empresas estatais sendo a espinha dorsal da economia, mantendo controle dos
principais meios de produção que atuam no mercado sozinhas e em grupos e servem de
base do planejamento macro-econômico, capaz de dirigir e regular o mercado. Os
chineses abriram sua economia de forma calculada e gradual, apresentando como
atração o baixo custo relativo de mão-de-obra, a boa infra-estrutura de energia,
transporte e comunicação, orientação no processo de investimentos e a estabilidade
social e política. Aproveitando o capital externo para criar e adensar suas cadeias
produtivas, condicionaram os investimentos à associação com empresas chinesas, a
transferência de novas e altas tecnologias e a participação no comércio internacional.
Criaram um sistema monetário soberano. Modernizaram as estatais e descentralizaram o
planejamento. Mantém uma política ativa de distribuição de renda por meio de
aumentos constantes de salários, aposentadorias e serviços públicos. E assim vem
superando a dependência, um caso singular na história.
75
habitantes - o Brasil tem 17 - e 16 megacidades – no Brasil apenas São Paulo tem mais
de 10 milhões de habitantes. A título de exemplificação: Chongqing tem mais de 32
milhões, Xangai, quase 25, Pequim 22 e Chengdu 20. Somente seis países da União
Europeia tem população maior do que Chongqing.
Durante o período maoísta, toda a produção agrícola era adquirida pelo governo
a preços baixos, não existindo a possibilidade da venda dos excedentes. Em 1978, o
governo passou a estipular metas de produção que seriam adquiridos a preços fixados.
Todo excedente produtivo permaneceria com a comuna que poderia comercializá-lo a
preços de mercado. Dessa maneira, o setor agrícola foi estimulado a aumentar sua
produtividade. O conjunto de produção agrícola da China apresentou grande
crescimento e a pressão pela produção de alimentos foi reduzida fazendo com que
grande número de trabalhadores rurais pudesse ingressar em indústrias não agrícolas.
76
investimentos à associação com empresas chinesas, a transferência de novas e altas
tecnologias e a participação no comércio internacional (MARCELINO, 2023).
77
Nesse contexto, o governo central descentralizou os poderes e responsabilidades
sobre investimento e sobre o desenvolvimento econômico, favorecendo os governos
provinciais e municipais. Apesar do sistema centralizado de governo para uma série de
políticas, a gestão territorial segue um modelo em “pirâmide” onde, a partir da capital,
são determinados padrões gerais de planejamento que devem ser seguidos em todo país.
Regiões e municípios tem o dever de elaborar seus próprios planos, mais detalhados. No
entanto, diferente do Brasil, onde um município tem autonomia para aprovar o seu
Plano Diretor, na China os planos devem ser sempre aprovados pela instância superior:
o xiangxi guihua, ou Plano Detalhado, e o zongti guihua, ou Plano Geral, devem ser
aprovados pela instância regional, e os planos regionais devem ser atualizados quando
há mudanças nas recomendações em nível federal. O efeito em cascata também ocorre
para questões como, por exemplo, quanta área será urbanizada em cada ano, pois o
Ministério de Terra e Recursos Naturais define quanta área pode ser urbanizada em cada
província e, em seguida, a província aloca esta área entre as suas cidades. Além disso,
são os municípios que decidem sobre a venda das posses, sobre o desenvolvimento de
infraestrutura e a emissão de licenças de construção, e o governo central interfere no
mercado imobiliário através de condições de financiamento e no planejamento macro-
econômico (QIU, 2022). E a urbanização está diretamente ligada ao processo de
industrialização. Um dos diferenciais do desenvolvimento chinês é a vantagem que as
suas empresas têm por ter uma conexão íntima entre elas por meio da lógica econômica
dos distritos industriais ou “clusterização” da urbanização. Clusters se espalham ao
longo do Delta do Rio das Pérolas, região que engloba Hong Kong, Macau e a província
de Guangdong. Os clusters de cidades tornaram-se as áreas-chave estratégicas para
China para promover a urbanização e o desenvolvimento económico, chegando a uma
série de aglomerações urbanas que incluem cidades centrais e vários agrupamentos de
cidades dentro das províncias para promover o desenvolvimento de aglomerados de
cidades.
78
intenso de energia, emissões de dióxido de carbono, escassez de água, dificuldade no
abastecimento alimentício, aumento na desigualdade de rendimentos, todas questões
que a China enfrenta hoje como resultado da urbanização. A estrutura da escala urbana
está desequilibrada entre as cidades pequenas, médias e grandes. A China está sofrendo
de “doenças urbanas” devido à rápida expansão da escala urbana causada pelo
carregamento de funções excessivas e indústrias altamente aglomeradas. Cidades de
médio porte e cidades pequenas carecem de potencial de desenvolvimento econômico e
social devido ao atraso no desenvolvimento de infra-estruturas e serviços públicos,
insuficiência de apoio industrial e menos empregos. Em junho de 2016, o número de
novas cidades e novos zonas de desenvolvimento eram mais de 3.500 em nível de
condado ou acima, levando ao uso homogeneizado da terra e crescentes “cidades
vazias”, “cidades adormecidas” e “fantasmas”. Entrementes, em linhas gerais, a
urbanização na China repercute em outras regiões não desenvolvidas e contribui para a
prosperidade econômica global. O argumento é que a urbanização acelerada na China
levou a um maior desenvolvimento econômico e diminuição da disparidade de renda
(XUEMEI, 2012).
Conforme Sonny Lo, com a rápida ascensão da China desde o início dos anos
2000, e particularmente desde a ascendência de Xi Jinping ao poder político desde finais
de 2012, a liderança chinesa tem vindo a mostrar continuidades e mudanças
significativas na teoria dos três mundos de Mao Tse Tung. Em termos de continuidade,
primeiro, o anti-hegemonismo continua a ser uma continuidade da política externa de Xi
Jinping. A China tem vindo a crescer económica, militar e tecnologicamente e a adoptar
uma “grande diplomacia do poder” que enfatiza o multilateralismo e a participação ativa
de Pequim em organizações internacionais. Ao contrário da China de Mao, que estava
relativamente isolada e economicamente atrasada no início da década de 1970, e ao
contrário da China de Deng Xiaoping que passou pela fase inicial de modernização ao
longo da década de 1980, a recente ascensão da China significou que este país tem de
adoptar uma política externa muito mais inclusiva do que nunca. No meio da
79
continuidade do anti-hegemonismo na teoria dos três mundos de Mao, a China de Xi
Jinping acrescentou os novos elementos do multilateralismo, participação ativa em
organizações internacionais (LO, 2022). A segunda continuidade da teoria dos três
mundos de Mao e da política externa de Xi Jinping é o ingrediente de um extenso
trabalho de frente unida para conquistar os corações e as mentes dos países tanto do
segundo como do terceiro mundo. A Iniciativa de Cinturão e Estradas da China, que foi
oficialmente anunciada em 2015, tem os objetivos de alcançar o seu alcance
geoeconómico e geopolítico aos três mundos. Geoeconomicamente, a China tem vindo
a utilizar as suas empresas estatais para investir em países do terceiro mundo, ajudando-
os a modernizarem-se, construindo projetos de infra-estruturas, e ajudando os Estados
em desenvolvimento a alcançar um desenvolvimento sustentável sem lhes impor o
chamado “modelo de desenvolvimento da China”. O objetivo final é conquistar os seus
corações e mentes, ajudando a China a alcançar os objetivos da política externa de
apresentar uma imagem pacífica, e retratar a percepção de uma potência socialista que
assiste todos os outros Estados em desenvolvimento nos processos de modernização
económica e desenvolvimento sustentável (LO, 2022).
80
países do terceiro mundo a ultrapassar o subdesenvolvimento e a desenvolver a
modernização sócio-económica para que seja criado o destino comum para a
humanidade. Se a revolução socialista foi um tema principal da política externa de Mao
durante as décadas de 1950 e 1960, a China sob Xi Jinping está a adoptar uma nova
ideologia de paz socialista permanente e de alcance socialista persistente (LO, 2022).
O Laos é conhecido como país mais pobre da Ásia, tem o título de país mais
bombardeado da Terra – os EUA lançaram 270 milhões de bombas na região. Apenas 7
milhões de habitantes. Sem litoral e infra-estrutura, numa área extremamente
montanhosa.
81
Quando os vietnamitas derrotaram os EUA em abril de 1975, forçaram os EUA a
sair de toda a região. O Pathet Lao assumiu o poder em dezembro de 1975, sete meses
depois de seus vizinhos vietnamitas. A União Soviética proporcionou a maior parte da
ajuda externa ao Laos e especialmente às suas forças armadas. O país foi renomeado
República Democrática Popular do Laos (RDP do Laos), e o Pathet Lao foi
reorganizado como o Partido Revolucionário Popular do Laos (PRPL). A formação das
relações de produção socialistas no país assumiu principalmente a forma de
nacionalização, coletivização da agricultura e monopólio estatal sobre o comércio
exterior.
82
integrar as minorias (mais de sessenta diferentes comunidades étnicas vivem no Laos,
das quais o grupo 'Lao' é a maioria com cerca de 40% da população).
83
Vermelho que teve apoio da China e Hanói. A ruptura das relações internacionais
deixou o Laos isolado. Em 1977, o Vietnã e o Laos assinaram um tratado de amizade de
25 anos, e os assessores vietnamitas forneceram conhecimentos necessários nas
políticas governamentais e econômicas. O Laos tornou-se mais próximo do Vietnã
como principal parceiro comercial e principal rota ao mar.
84
Em 1989, as relações sino-laotianas voltaram ao normal. Durante a década de
1990 e 2000, uma série de medidas à moda chinesa foram introduzidas: eliminação de
restrições microeconômicas que limitam a produção privada, legislação para encorajar o
investimento estrangeiro direto (IED), leis comercias, maior atenção à estabilidade
macroeconômica com melhoria da política orçamentária e monetária, privatização e
fusão da maioria das empresas estatais, com exceção das vinte empresas que foram
designadas como “estratégicas para o desenvolvimento”.
Desta forma o Laos busca usar o capital estrangeiro para desenvolver indústrias
estratégicas, como mineração e hidrelétricas, além de prover necessidades da população.
Graças às barragens de seus rios, o Laos hoje produz muito mais energia do que
precisa. Dessa forma, Tailândia, Vietnã e China são os maiores consumidores dessa
energia. Investiram em tecnologias para plantação e processo de borracha, para a
indústria automobilística.
85
A crise financeira global de 2008 reduziu a quantidade de IED originado do
Ocidente, mas foi logo substituído por um maior investimento de nações asiáticas,
especialmente Tailândia, China e Vietnam. O Laos também passou a desenvolver zonas
econômicas especiais. A SEZ Savan-Seno foi criada pelo governo do Laos em 2003.
Situada a apenas três quilômetros do Mekong, que atua como fronteira nacional com a
Tailândia, a SEZ de 234 hectares está conectada ao “Corredor Econômico Leste-Oeste”
- uma iniciativa que liga Mianmar, Laos, Tailândia e Vietnã e inclui um parque de 1.450
estrada de km, projetada para criar uma nova rota comercial pela região do
Mekong. Atualmente, uma grande proporção do comércio, incluindo três quartos das
importações de petróleo da China, depende de um único ponto de estrangulamento
marítimo, o Estreito de Malaca, patrulhado pela marinha dos Estados Unidos. Desde
2006, o governo faz referência explícita à ideia de “ transformar a terra em capital ”. Os
arrendamentos e concessões de terras tornaram-se uma estratégia governamental
importante para criar uma economia de mercado e estimular o crescimento econômico.
86
o direito de residir no Laos com sua família durante o período do investimento, entre
alguns outros privilégios indicados pelas leis e regulamentos.
87
atualmente estudando o estabelecimento de outra zona econômica especial chamada
“Smart & Eco-City” abrangendo as províncias de Luang Namtha e Oudomxay.
Tanto a China, Vietnam e o Laos são países socialistas liderados pelo Partido
Comunista, com ideais e crenças semelhantes e caminhos de desenvolvimento
semelhantes Os três países afirmam ter encontrado seu próprio modelo de
desenvolvimento combinando uma economia de mercado com o socialismo – “a
economia socialista de mercado”. Os três têm um desempenho melhor do que países
com nível semelhante de renda per capita em uma ampla gama de indicadores de
desenvolvimento social e material. Pode-se afirmar que se trata de modelo de
desenvolvimento distinto, no sentido de que representa regimes comunistas
introduzindo reformas de mercado. China, Vietnã e Laos compartilham um legado
comunista de planejamento econômico, coletivização da agricultura e empresas estatais
dominantes. Todos os três países introduziram reformas de mercado na década de 1980,
com Gaige kaifang ('Reforma e abertura', 1978/79), Doi moi ('Renovação', 1986) e Chin
Thanakaan Mai ('Novo Pensamento' ou 'Novo Mecanismo Econômico' , 1986)
88
representando o início oficial das transformações econômicas, respectivamente, na
China, Vietnã e Laos.
89
sino-laosiana deve se concentrar em indústrias estratégicas, como energia e extração de
recursos, turismo verde e construção de infraestrutura. Em troca, o primeiro-ministro
Thammavong confirmou o compromisso do Laos de participar dos megaprojetos “Belt
and Road” da China. O ativo estratégico do Laos é sua posição geográfica como uma
ponte de terra entre a China e os estados do sudeste asiático de Mianmar, Tailândia,
Camboja e Vietnã. A China vê as nações do Mekong - Mianmar, Laos, Tailândia,
Camboja e Vietnã - como a chave para o sucesso do “Belt and Road”. Economicamente,
esta região oferece um enorme potencial de crescimento, visto que essas nações
representam um mercado de mais de 320 milhões de pessoas, e cujo comércio regional
com a China totalizou mais de 150 bilhões de dólares em 2013. Essas nações estarão
envolvidas na proposta da Ferrovia Pan-Asiática que é um dos principais megaprojetos
de infraestrutura do Cinturão Econômico da Rota da Seda. Esta ferrovia conectará a
cidade de Kunming, no sul da China, a Cingapura. De Cingapura, a ferrovia percorrerá a
Península Malaia pela Malásia e entrará na Tailândia. Em Bangkok, a ferrovia se
dividirá em três linhas que terminarão separadamente em Kunming. Uma linha passará
pelo Laos; outro por Mianmar; e a terceira pelo Camboja e Vietnã. O projeto vai custar
cerca de 7 bilhões de dólares, que serão pagos pelo governo do Laos com empréstimos
concessionários da China, com a riqueza mineral do Laos como garantia. Para facilitar a
implementação dos projetos da China no Laos, vários instrumentos financeiros foram
estabelecidos, incluindo uma joint venture Sino-Lao entre o Yunnan's Fudian Bank e o
Laos 'Foreign Trade Bank. O Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB)
da China, do qual o Laos é membro fundador, deverá oferecer linhas adicionais de
financiamento para projetos de “Belt and Road” assim que iniciar suas operações no
final de 2015. No caso de Kunming-Vientiane linha ferroviária de alta velocidade, os
governos do Laos e da China criaram uma empresa conjunta que implementará o
megaprojeto. O China Railway Group expressou confiança de que vai ganhar o contrato
de construção, dado o pesado financiamento chinês
No setor de energia, estima-se que o Laos tenha potencial para gerar 26.500 MW
de energia hidrelétrica, dos quais 18.000 MW são tecnicamente exploráveis. Para
desbloquear esse potencial hidrelétrico e transformar o Laos na “bateria do Sudeste
Asiático”, o governo do Laos tem planos ambiciosos de construir 70 barragens ao longo
dos afluentes do rio Mekong. Muitos deles estão sendo ou serão construídos por
empresas hidrelétricas chinesas.
90
2.3.4. OUTRAS EXPERIÊNCIAS
91
Este setor não se refere apenas a formas de propriedade privada, mas também àquelas
formas de propriedade coletivas, como as cooperativas. As grandes estatais ganham
mais autonomia, inclusive para levar em conta as forças do mercado, o que atesta que o
socialismo identificado com a estatização total dos meios de produção passou a ser
encarado como um fracasso histórico frente às modificações na dinâmica econômica
global, fadado à estagnação, à ineficiência e obsolescência produtiva. Em Cuba,
reformas de mercado foram tentadas desde o fim da URSS, podendo ser melhor
implementadas apenas sob o breve armistício de Obama contra a ilha. Com uma nova
ofensiva de sanções e bloqueio do governo Trump e Biden, diversas reformas tiveram
reveses e tiveram que voltar atrás, mas o ímpeto reformista continua apesar das
dificuldades do cerco imperial.
92
2.3.5. POR QUE O SOCIALISMO DE MERCADO?
Uma consequência de uma política socialista de mercado é que as empresas que falham
ao público e claramente carecem de responsabilidade pública seriam socializadas.
Atualmente, os setores bancário, de energia e de transporte ferroviário seriam os
principais candidatos. As políticas econômicas poderiam ser realizadas dentro da
estrutura capitalista para restaurar o crescimento e o emprego. Isso permitiria a
introdução de formas de planejamento indicativo que aumentariam ainda mais o
controle público (LANE, 2013).
Lane enfatiza que a maximização do lucro continuaria a ser a motivação do
empresário. A competição de mercado continuaria gerando lucros ou incorrendo em
93
falência. O objetivo seria alcançar um maior grau de igualdade na distribuição da
propriedade de capital. A renda da propriedade de capital não é obtida e sua distribuição
altamente desigual representa uma “responsabilidade moral”. Essa propriedade seria
“entregue” à propriedade pública. No entanto, os lucros do verdadeiro
empreendedorismo e inovação continuam e atuam como incentivos. E a renda
continuaria sendo usada como as pessoas desejassem – estilos de vida luxuosos e
conspícuos poderiam continuar (LANE, 2013). Nesta transição socialista de mercado:
94
mais utópicas que acreditam num socialismo sem conflitos, erros e contradições. Trata-
se de um sistema de transição essencialmente contraditório, com diversos riscos de
sabotagem e cheio de percalços.
12
Hansen, Arve (org.) A economia socialista de mercado na Ásia. Desenvolvimento na China, Vietnã e
Laos
95
associações público-privadas, público-público, público-cooperativas, cooperativo-
privadas, empreendimentos de economia solidária Um socialismo que potencialize a
descentralização e a autonomia das empresas e unidades produtivas e, ao mesmo tempo,
faça possível a efetiva coordenação das grandes orientações da política econômica. Um
socialismo com um ordenamento econômico mais flexível e diferenciado, no qual a
propriedade estatal dos recursos estratégicos e dos principais meios de produção –
questão esta não negociável – conviva com outras formas de propriedade pública não
estatal, ou com empresas mistas nas quais alguns setores do capital privado se associem
com corporações públicas ou estatais, ou com companhias controladas por seus
funcionários em associação com os consumidores, ou com cooperativas ou formas de
“propriedade social” fora da lógica da acumulação capitalista.
O setor público deve apoiar e desenvolver a área socialista da economia,
industrialização sobre a base de relações de produção socialistas, introdução de
elementos de planificação econômica e gestão socialista. As formas de propriedade
social, tais como autogestão, comunal e a propriedade estatal devem passar a jogar um
papel crescente no sistema econômico. A formação de novas estatais também pode
contribuir para o aceleramento de setores de ponta e a transformação de todas as estatais
em indutoras de industrialização. Consórcios estatais-privados também deveriam atuar
para o desenvolvimento das micros, pequenas e médias empresas capitalistas,
industriais e agrícolas, na perspectiva de romper os oligopólios das grandes burguesias,
estrangeiros e nacionais, reforçar a pequena e a média burguesia e, portanto, incentivar a
competição entre elas. O mesmo em relação às cooperativas e empresas solidárias. O
desenvolvimento das economias não-estatais sob as condições de predominação da
economia de propriedade pública é a exigência objetiva do desenvolvimento da força
produtiva na fase inicial do socialismo, e desempenha importante papel para satisfazer
as necessidades diversificadas da população para a vida material e cultural, ampliar os
empregos e promover a expansão de toda a economia nacional.
96
economias estatais e coletivas, abrangendo em si ainda os componentes de propriedade
estatal e de propriedade coletiva dentro das economias de propriedades mistas.
97
3. PARA ONDE VAI O SUL GLOBAL?
98
É verdade que, muitas ex-colônias permanecem limitadas pelo domínio colonial
em suas formas de conhecer, ver e visualizar o mundo. Foram bestializadas pela
repressão terrorista das classes dominantes locais em conluio com o Norte. Na academia
e na mídia, baseiam o desenvolvimento em indicadores, índices e teorias pré-fabricados
a estadistas que equiparam o progresso com assistência exógena e reconhecimento.
É evidente que o capitalismo e as grandes potências fazem de tudo para não dar
espaço para que outro modo de produção se consolide, coexista e compita com ele. Com
o fim da URSS, muito se alardeou sobre a superioridade do capitalismo, porém hoje a
situação é substancialmente diferente, com o socialismo de mercado colocando novos
paradigmas ao Sul Global. Tensões e contradições num processo de construção deste
modo de produção socialista de mercado, guardadas as características nacionais, são
geradas inevitavelmente. Diante do capitalismo senil, o socialismo de mercado oferece
uma saída. Quanto mais povos e países iniciarem transições socialistas fortalecendo este
modo de produção emergente, podendo desafiar o capitalismo financeiro e
transnacional, inibir suas tendências mais destrutivas, como guerras, fome, miséria,
desemprego, crise climática, colonialismo, etc., mais rápido poderá uma ofensiva
socialista conter as inerentes tendências destrutivas do capital.
99
de desenvolvimento socialista com mercado nestes países, porém, pode ser que um
socialismo que conjugue desenvolvimento nacional, com estabilidade política e
crescimento econômico – como o socialismo de mercado – venha a despontar durante o
século XXI como um sistema social mais dinâmico, eficaz e justo que o capitalismo.
Poderia ser dito que, estrategicamente, o que está em jogo hoje é a transição de
países do Sul Global que estão na linha liberal-associada para um capitalismo de Estado
ou formas nacionais de socialismo de mercado. Um primeiro passo para a transição da
linha liberal para um capitalismo de Estado é garantir que os países tenham o direito de
usar tarifas, subsídios e outras políticas industriais para construir capacidade econômica
soberana. Com isso, uma institucionalidade política que submeta os interesses
monopolistas e se submeta ao planejamento dos recursos ociosos e ao plano de
desenvolvimento nacional delineado. Está transição hoje é boicotada e atacada em
diversos países pela capacidade de ação do Norte em criar golpes e rupturas de
processos de desenvolvimento nacional. Para o socialismo de mercado, é preciso
implantar enclaves estatais e socialistas na economia, competindo com o capitalismo.
O que o distingue de outros fóruns multilaterais é que (a) serve como um contra-
ataque aos países ocidentais liderados pelos Estados Unidos que têm dominado a
economia, a política e o desenvolvimento globais até agora; e (b) fornece uma
plataforma para expressar as preocupações e aspirações dos países do Sul Global, que
superam o Ocidente em termos de população, recursos e, cada vez mais, em sua
contribuição para o desenvolvimento global. Assim, o BRICS, juntamente com outros
fóruns, como a Organização de Cooperação de Xangai (SCO), é um esforço inovador
para democratizar a ordem global no século XXI.
100
O desempenho do mecanismo BRICS até agora, desde sua criação em 2006, tem
sido um tanto instável. Do lado positivo, proporcionou um fórum para os líderes dos
cinco países membros se encontrarem regularmente e trocarem pontos de vista de
interesse comum para eles próprios e para o mundo em geral. Do lado negativo, não tem
havido cooperação intra-BRICS tangível e orientada para resultados, seja no campo
econômico ou político. Isso se deve principalmente às relações bilaterais fracas ou
tensas entre os países membros - especialmente entre a Índia e a China. Além disso,
alguns países (Índia e Brasil) têm laços estreitos com os EUA, que seguem uma política
agressiva anti-China e anti-Rússia. Como resultado, o BRICS permaneceu um tanto
amorfo. Diversas ações prejudicaram os BRICS – o golpe no Brasil, a guerra da OTAN
contra a Rússia, a decisão da Índia de ingressar no Quadrilátero de quatro nações
liderado pelos Estados Unidos, juntamente com o Japão e a Austrália para “conter a
China”, podendo se desdobrar para uma “OTAN asiática”, afetando a paz, a estabilidade
e a cooperação na Ásia.
Uma das singularidades dos BRICS é que cada membro também é uma
economia líder em seu continente ou sub-região dentro de um acordo de integração
regional: Rússia na União Econômica da Eurásia (UEE), Brasil no Mercosul, África do
Sul no a Comunidade de Desenvolvimento da África do Sul (SADC), a Índia na
Associação de Cooperação Regional do Sul da Ásia (SAARC) e a China na
Organização de Cooperação de Xangai (SCO), na Área de Livre Comércio China-
ASEAN e na futura Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP). Todos os países
que são parceiros dos BRICS nesses acordos de integração regional podem formar o que
pode ser denominado como o “círculo BRICS+” que se torna aberto a modos flexíveis e
múltiplos de cooperação (não exclusivamente via liberalização comercial) em bases
bilaterais ou regionais.
101
Compensação da Reserva Federal dos EUA e seu Serviço de Fundos Fedwire [sistema
de transferência de fundos de liquidação bruta em tempo real operado pelo Federal
Reserve Bank dos Estados Unidos]. Países sob sanções unilaterais dos EUA – como o
Irã e a Rússia – foram cortados do sistema SWIFT, que conecta 11 mil instituições
financeiras em todo o mundo. Após as sanções estadunidenses de 2014, a Rússia criou o
Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras (SPFS), que foi projetado
principalmente para usuários domésticos, mas atraiu bancos centrais da Ásia Central,
China, Índia e Irã. Em 2015, a China criou o Sistema de Pagamento Interbancário
Transfronteiriço (CIPS), administrado pelo Banco Popular da China, que está sendo
gradualmente utilizado por outros bancos centrais.
102
“populismos”, etc, e tem que resistir as tentativas de desestabilização, penúncia
induzida, sanções e isolamento do sistema financeiro dominado pelo Norte. O Norte se
dá ao direito privilegiado e exclusivo de apontar quais são as civilizações a serem
defendidas e atacadas, com eterno primado moral e político sobre o resto, isso é, o Sul
Global. Todos os movimentos estratégicos do Norte visam impedir a emergência de
atores competitivos e independentes, inclusive minando alianças Sul-Norte, como entre
China e Japão, Rússia e Alemanha, China e Austrália, Brasil e União Europeia. O Sul
Global está em contradição com os interesses das potencias do Norte. Atua-se para
bloquear a ascensão de Estados que possam competir com a estrutura de poder
dominante. A estratégia do Norte é a contenção de potencias emergentes e bloqueio de
projetos nacionais com política externa e segurança autônoma. A estratégia dos Estados
Unidos para conter a China e considerar ameaças Rússia e Irã, entre outros, representa
uma estratégia de contenção do Sul Global. Essa estratégia de contenção do Sul pode
ser bem sucedida e inviabilizar no século XXI a formação de uma nova ordem mundial,
resultando na recolonização conduzida pelo Norte.
103
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