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ESTRATÉGIAS DE

DESENVOLVIMENTO NO SUL GLOBAL

CAPITALISMO LIBERAL, CAPITALISMO DE ESTADO


OU SOCIALISMO DE MERCADO?

FERNANDO MARCELINO

2023
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO
NA PUBLICAÇÃO (CIP)

Marcelino, Fernando

Estratégias de desenvolvimento no Sul Global:


capitalismo liberal, capitalismo de Estado ou
socialismo de mercado? / Fernando Marcelino
Pereira. – Curitiba, 2023.

1. Desenvolvimento 2. Capitalismo 3. Socialismo

4
SUMÁRIO

1. Do Terceiro Mundo à emergência do Sul Global 06

2. Estratégias de desenvolvimento do Sul Global 14

2.1. Consenso de Washington 16

2.2. Capitalismo de Estado 19

2.2.1. O caso da Índia 22

2.2.2. O caso do Brasil 29

2.3.3. Análise comparativa 49

2.3. Socialismo de Mercado 52

2.3.1. O caso da China 56

2.3.2. O caso do Laos 81

2.3.3. Sinergia dos socialismos de mercado na indo-china 88

2.3.4. Outras experiências 91

2.3.5. Por que Socialismo de Mercado? 93

3. Para onde vai o Sul Global? 97

4. Referências 104

5. Sobre o autor 110

5
1. DO TERCEIRO MUNDO À EMERGENCIA DO SUL GLOBAL

O Sul Global foi o palco de lutas anticoloniais, revoluções nacionais e sociais no


século XX. Em 1914, Lênin denunciou a posição daqueles que fazem pouco caso das
condições dos países periféricos. No texto “Do direito das nações de disporem de si
mesmas”, defende que a formação dos impérios coloniais permitia melhorar a situação
dos operários europeus: o enriquecimento extra das potências coloniais com seus
impérios acabava por beneficiar a situação do conjunto das populações europeias e,
assim, servia para retardar a revolução social na Europa. Consequentemente, a luta
nacional nas colônias contra o imperialismo, deveria passar a ser um elemento
fundamental da luta do proletariado mundial.

Após a Segunda Guerra Mundial, ao constituir-se a ONU, a União Soviética


defendeu a tese de que a nova organização internacional se propusesse, como uma de
suas tarefas mais importantes, a contribuir para que todos os países e povos dependentes
conseguissem, no mais curto prazo, sua completa independência política. Apesar disso,
o ponto de vista soviético não foi apoiado pelas demais grandes potências, pois estavam
preocupadas em manobras para consolidar novas formas, mais maleáveis e habilmente
disfarçadas, de dominação nas colônias por meio de concessões parciais as
reivindicações nacionais dos países coloniais.

Mesmo assim, diversos países periféricos passam por revoluções e governos


populares. No contexto pós-Segunda Guerra, o nascimento do Movimento Não-
Alinhado tem raízes nos resultados oriundos das relações entre a Índia e a China, em
1954, as quais afirmaram os “cinco princípios da coexistência pacífica”, a saber: o
respeito mútuo à soberania e à integridade territorial, a não agressão mútua, a não
ingerência mútua, a igualdade e o benefício mútuo, a coexistência pacífica. Teve sua
primeira significativa expressão política com a realização da Conferência Afro-Asiática,
também conhecida como Conferência de Bandung, em 1955, na qual países africanos e
asiáticos se reuniram e advogaram pela adoção de uma postura comum de não-
alinhamento em relação ao conflito bipolar global que permeou a segunda metade do
século XX. Em 1961, como consequência da Conferência de Bandung, criou-se o
Movimento Não-Alinhado, em Belgrado, cujos critérios para admissão requeriam que o
país adotasse uma política independente baseada no não-alinhamento e na coexistência

6
entre diferentes Estados, apoiasse os movimentos por independência nacional, não
fizesse parte de coalizões militares bilaterais ou multilaterais criadas no âmbito do
conflito entre as superpotências e não fosse sede de bases militares de superpotências
cujo propósito servisse ao conflito entre elas.

Com 27 países na sua fundação, o Movimento Não-Alinhado priorizou pela


defesa de um caminho de independência que impedisse que os países do Terceiro
Mundo fossem peões na disputa de poder entre as superpotências, com base no direito a
um juízo independente, na luta contra o imperialismo e o neocolonialismo e no uso da
moderação nas relações com as grandes potências. Participaram representantes do
Afeganistão, Arábia Saudita, Camboja, Ceilão (atual Sri Lanka), China, Costa do Ouro
(atual Gana), Egito, Etiópia, Filipinas, Índia, Indonésia, Iraque, Irã, Japão, Jordânia,
Laos, Líbano, Libéria, Líbia, Nepal, Paquistão, Sião, Síria, Sudão, Tailândia, Turquia,
Vietnã do Norte, Vietnã do Sul e Iêmen.

Cinco anos depois, em 1966, realizou-se, em Havana, a Conferência de


Solidariedade aos Povos da África, Ásia e América Latina, que reuniu representantes de
movimentos anti-imperialistas e anti-coloniais, como guerrilheiros, movimentos de
libertação, governos nacionais. Com um teor político mais radical, a Conferência
Tricontinental bebeu da influência do Movimento Não-Alinhado e prezou pelo combate
ao imperialismo e ao colonialismo e pela solidariedade aos movimentos nacionais
antiimperialistas, como o que ocorria no Vietnã contra os EUA.

A noção de “Terceiro Mundo”, cunhado pelo francês Alfred Sauvy, em 1952, foi
feita em analogia ao Terceiro Estado da época anterior à Revolução Francesa, isto é, o
agrupamento de países pobres e colônias que não pertenciam ao topo da sociedade
internacional, mas continham um potencial de emergência. De então, criou-se a divisão
do Planeta em três seções: o Primeiro Mundo reunia os países capitalistas
industrializados, isto é, os Estados Unidos da América, seus aliados na Europa, o Japão,
a Austrália e a Nova Zelândia; o Segundo Mundo era formado pela União Soviética e
pelos países sob sua direta influência; o Terceiro Mundo era o agrupamento de países
semi-industrializados ou agrícolas, colônias ou ex-colônias.

Esse conceito ganhou vida política quando Mao Tsé-Tung desenvolveu a teoria
dos Três Mundos. Para Mao, o Terceiro Mundo significava mais do que

7
desenvolvimento econômico, sendo um termo relacional entre imperialismo e anti-
imperialismo, entre opressor e oprimido. Na época, com “cisma sino-soviético” na
década de 1960, os comunistas chineses queriam distinguir a China da União
Soviética. A chave foi afirmar que a realidade chinesa não é igual à da soviética, nem da
Europa ocidental. Que o mundo era dividido em três mundo, ou três lados, que são
mutuamente relacionados, bem como contraditórios. Os Estados Unidos e a União
Soviética pertencem ao primeiro mundo. Os países em desenvolvimento na Ásia,
África, América Latina e outras regiões pertencem ao terceiro mundo. E os países
desenvolvidos entre os dois pertencem ao segundo mundo.

Na década de 1970, o conceito de Terceiro Mundo começa a sofrer um


desmonte. Vijay Prashad aponta que, em vez de fornecer os meios para criar uma
sociedade inteiramente nova, muitos desses regimes protegiam as classes dominantes
entre as velhas classes sociais ao mesmo tempo que produziam elementos de bem-estar
social para o povo. Nas primeiras décadas de construção estatal, dos anos 1940 aos anos
1970, a consistente pressão dos trabalhadores, o prestígio dos partidos de libertação
nacional e o consenso mundial sobre o uso do Estado para criar demanda restringiu tais
classes dominantes, em certa medida. Eles ainda eram os principais encarregados dos
novos Estados, mas o desejo de lucro irrestrito era dificultado pelo patriotismo
persistente ou pelos tipos de regimes políticos e econômicos estabelecidos pela
libertação nacional (PRASHAD, 2022).

Esse projeto veio com uma falha de origem. A luta contra as forças coloniais e imperiais
impôs uma unidade entre vários partidos políticos e entre as classes sociais.
Movimentos sociais amplamente populares e as composições políticas conquistaram
liberdade para as novas nações, e então tomaram o poder. Uma vez no poder, a unidade
que havia sido preservada a todo custo tornou-se um fardo. A classe trabalhadora e o
campesinato em muitos desses movimentos haviam aderido a uma aliança com os
proprietários de terra e as emergentes elites industriais. Assim que a nova nação caísse
em suas mãos, o povo acreditava, o novo Estado promoveria um programa socialista. O
que eles obtiveram em vez disso foi uma ideologia de compromisso chamada
Socialismo Árabe, Socialismo Africano, Sarvodaya ou Nasakom, que combinava a
promessa de igualdade com a manutenção da hierarquia social.

Conforme Vijay Prashad

Já na década de 1970, as novas nações já não eram mais novas. Suas debilidades eram
numerosas. As demandas populares por terra, pão e paz foram ignoradas em nome das
necessidades das classes dominantes. Guerra interna, dificuldade em controlar os preços
dos produtos primários, incapacidade para superar a asfixia do capital financeiro, entre
outros fatores, levaram a uma crise nos orçamentos de grande parte do Terceiro Mundo.

8
Empréstimos de bancos comerciais só poderiam vir se os Estados concordassem com o
“ajuste estrutural” dos pacotes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco
Mundial. O assassinato do Terceiro Mundo levou à desidratação da capacidade do
Estado de agir em prol da população, um fim em defesa de uma nova ordem econômica
internacional, à recusa dos objetivos do socialismo. Classes dominantes que estiveram
anteriormente atadas à agenda do Terceiro Mundo já não encontravam mais freios. Elas
começaram a se ver como elites, e não como parte de um projeto – o patriotismo de base
superou a solidariedade social antes necessária. Um resultado dessa extinção da agenda
do Terceiro Mundo foi o crescimento de formas de nacionalismo cultural nas nações
mais escuras. Atavismos de todos os tipos surgiram para preencher o espaço
anteriormente assumido por várias formas de socialismo. Religião fundamentalista, raça
e formas não reconstruídas de poder de classe surgiram sob os destroços do projeto do
Terceiro Mundo (PRASHAD, 2022).

A grande heterogeneidade do grupo sempre foi um desafio na construção da


coesão necessária para uma atuação mais forte e eficaz e resultou no próprio
esvaziamento da ideia de Terceiro Mundo, apesar da continuidade das disparidades e do
aprofundamento da divisão do mundo em Norte e Sul. Era, pois, um movimento
fundamentado em uma identidade de negação, e não na criação de uma identidade
afirmativa comum, como a construção de um pensamento político e econômico
alternativo ao capitalismo e ao socialismo soviético.

O fim da Guerra Fria, retratado pela queda do Muro de Berlim em 1989,


evidenciou a incoerência em se manter uma divisão teórica do mundo em três partes,
uma vez que se extinguira o Segundo Mundo. Conforme Immanuel Wallerstein, sobre a
noção de Terceiro Mundo:

Seu mérito foi o de lembrar a existência de uma imensa zona do planeta para a qual a
questão primordial não era a do alinhamento em um ou outro campo, mas qual seria a
atitude dos Estados Unidos e da União Soviética em relação a ela. Em 1945, a metade
da Ásia, a quase totalidade da África, bem como o Caribe e a Oceania permaneciam
colônias. Sem falar dos países “semi-colonizados”. Para esse vasto mundo tutelado,
onde a pobreza ultrapassava — e muito — a dos países “industrializados”, a prioridade
era dirigida à “libertação nacional”. Ao englobar todos numa única expressão, “Terceiro
Mundo”, destacavam-se, ao mesmo tempo, as características comuns, próprias a todos
esses países, e também o fato de que eles não estavam necessariamente implicados na
guerra fria. A fórmula também dizia respeito ao esforço de certos intelectuais em criar
uma “terceira força” entre os partidos e os governos comunistas e anticomunistas1.

Com o surgimento da Teoria do Sistema Mundo, de Immanuel Wallerstein,


criou-se a terminologia de divisão do Planeta em regiões centrais, periféricas e
semiperiféricas. Outros termos foram criados, como “Mundo Pobre”, “Mundo

1
WALLERSTEIN, Immanuel. O que era mesmo o terceiro mundo? Le Monde Diplomatic, 2000.
Disponível em https://diplomatique.org.br/o-que-era-mesmo-oterceiro-mundo/

9
Subdesenvolvido”, “Mundo Menos Desenvolvido”, “Mundo Majoritário”, “Mundo
Não-Ocidental”, etc. Na América Latina, já se destacava a noção de “Dependência”,
formulada por Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, entre outros,
abordando a dominação imperialista pela superioridade tecnológica e produtiva das
empresas transnacionais, seu dreno dos lucros e das riquezas locais obrigando as
burguesias locais a superexplorarar para compensar a transferência de riquezas imposta
pelos países imperialistas. Porém, foram as narrativas elaboradas pelo Norte que
ganharam espaço, baseadas no “fim da história”, “choque de civilizações”,
“interdependência”, entre outras, todas pela universalização da democracia-liberal
capitalista.

É nesse contexto de desorganização do Terceiro Mundo que o surge o termo


“Sul Global” para denominar aquele conjunto de Estados localizados no Sul,
primeiramente desenhado pelo Relatório Brandt. Conforme Paulo Vizentini,

Mais do que criar um modismo teórico, a introdução do conceito de Sul Global


representou uma estratégia de despolitizar o significado do terceiro-mundismo. O Sul
Global não se define por uma agenda positiva, mas negativa, pois, afinal, o Norte
também não é Global? Assim, segundo o novo conceito não há sentido para a existência
do Grupo dos 77 ou do Movimento dos Não Alinhados. Todas os Estados do Sul se
diluiriam na globalização, sendo que as maiores nações gozariam do status de
“mercados emergentes”2.

Na literatura sobre o Sul Global, são recorrentes a incerteza e a falta de consenso


sobre a sua definição, com diversos autores criticando o seu uso e apontando para falhas
no termo. Claro que a intenção de agrupar uma miríade de países tão diversos carrega
consigo problemas metodológicos evidentes, dadas as distinções, de naturezas variadas,
entre os países que compõem o Sul Global. Porém, o que nos interessa não são
minúcias, mas a situação comum na composição do Sul Global, levando em conta que
existem países localizados no Hemisfério Sul os quais estão agrupados no Norte Global,
como a Austrália e a Nova Zelândia, assim como há regiões no Sul Global que
partilham as características do Norte Global, como as capitais e grandes cidades dos
países emergentes, assim como há periferias pobres de cidades do Norte Global,
destacadamente nos Estados Unidos e Europa Ocidental.

2
VIZENTINI, Paulo Fagundes. Terceiro Mundo ou Sul Global? Austral: Revista Brasileira de Estratégia
e Relações Internacionais v.4, n.8, Jul./Dez. 2015

10
Camila Jardim (2015) aponta seis características comuns encontradas no Sul
Global: 1) é um conceito não-geográfico, relativo ao empoderamento dos Estados do
Sul Global como sujeitos históricos e atores importantes no cenário internacional; 2) o
termo envolve identidades comuns forjadas por interações entre os atores que compõem
o Sul Global e respaldadas pelas suas similaridades históricas, como o passado colonial,
o anseio por reforma do sistema internacional e a sua inserção internacional político-
econômica periférica, e pelos seus desafios comuns, como o subdesenvolvimento e a
marginalização na construção da agenda internacional; 3) é um grupo bastante
heterogêneo, reunindo desde potências médias, como o Brasil e a Índia, até pequenos
Estados insulares; 4) “Sul Global” carrega consigo um peso político de empoderamento,
o que tem se demonstrado adequado, ante a emergência de atores do Sul na condução do
sistema internacional; 5) o Sul Global não é necessariamente anti-Norte, isto é, ainda
que demandem reformas nas instituições basilares do sistema internacional, como o
Conselho de Segurança e o FMI, a fim de representar a distribuição de poder atual, os
países de maior importância do Sul Global não advogam pela substituição da ordem
internacional vigente; 6) por fim, o Sul Global pode também ser denotado pela
emergência de atores não-estatais, mas de atuação transnacional, como grupos da
sociedade civil em temas relativos à mudança climática, ao combate à fome, etc3.

Pesquisas recentes apontam que os países ricos continuam a depender de uma


grande apropriação líquida do Sul global, incluindo dezenas de bilhões de toneladas de
matérias-primas e centenas de bilhões de horas de trabalho humano por ano –
incorporadas não apenas em commodities primárias, mas também em bens industriais
de alta tecnologia, como smartphones, laptops, chips de computador e carros, que nas
últimas décadas passaram a ser fabricados predominantemente no sul. Esse fluxo de
apropriação líquida ocorre porque os preços são sistematicamente mais baixos no Sul do
que no Norte. Por exemplo, os salários pagos aos trabalhadores do Sul são, em média,
um quinto do nível dos salários do Norte. Isso significa que, para cada unidade de
trabalho incorporado e recursos que o Sul importa do Norte, eles precisam exportar
muito mais unidades para pagar por isso.

Em um artigo publicado na revista New Political Economy, se quantifica a


escala de drenagem por meio de trocas desiguais na era pós-colonial. Se chega à

3
JARDIM, Amorim Camila. Understanding the concept of Global South: an initial framework. 2015.

11
conclusão que o dreno aumentou dramaticamente durante as décadas de 1980 e 1990,
quando os programas de ajuste estrutural neoliberal foram impostos em todo o Sul
global. Hoje, o Norte global drena do Sul commodities no valor de US$ 2,2 trilhões por
ano, a preços do Norte. Para se ter uma ideia, essa quantia de dinheiro seria suficiente
para acabar com a pobreza extrema, globalmente, quinze vezes. Durante todo o período
de 1960 até hoje, a fuga totalizou US$ 62 trilhões em termos reais. Se esse valor tivesse
sido retido pelo Sul e contribuído para o crescimento do Sul, acompanhando as taxas de
crescimento do Sul durante esse período, valeria US$ 152 trilhões hoje4.

Ainda neste século XXI, como modo de produção, o capitalismo serve para que
um pequeno grupo de países se desenvolvam ao custo da exclusão de todos demais. O
núcleo central – o Norte – se desenvolve sugando o excedente da periferia – o Sul. O
desenvolvimento de uns é feito às custas do subdesenvolvimento de muitos. O Norte é
puramente capitalista, com os países ditos mais desenvolvidos - explicitamente os
Estados Unidos, Alemanha, Japão, França e Inglaterra -, onde as forças produtivas e a
acumulação de capital alcançaram um grau em que dominam monopólios
transnacionais, com um processo intenso de inovação científica e tecnológica que
agrava a tendência de queda da taxa média de lucro. Diante disso, a saída vem sendo a
especulação financeira e a transferência de plantas industriais para países agrários, onde
podem debelar as forças do trabalho organizada em seus países e obter lucros pela
extração de mais-valia absoluta em países com força de trabalho barata. Estas medidas
intensificam a desindustrialização interna e o consequente desemprego, levando as
corporações transnacionais a se livrar das medidas econômicas e políticas que visavam
manter a coesão social dos Estados nacionais, bem como o padrão de vida das classes
médias, aumentando a ocorrência de crises financeiras, econômicas e políticas ainda
mais profundas.

O Sul Global é herdeiro da noção de Terceiro Mundo. Só que, hoje, o Primeiro


Mundo não é mais onde as forças produtivas podem se desenvolver melhor, entrando
numa estagnação crônica desde 1970, introduzindo diversos aspectos destrutivos para
conseguir se reproduzir. Ao mesmo tempo, nas últimas décadas, a China passou da

4
Hickel, Jason. Pilhagem na era pós-colonial: quantificando o escoamento do sul global por meio de
trocas desiguais, 1960–2018. Nova Economia Política. Volume 26, 2021. Disponível em
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13563467.2021.1899153?journalCode=cnpe20&journalCo
de=cnpe20

12
periferia para um dos centros do sistema econômico global deslocando o núcleo
geográfico do processo de acumulação. Diferentemente da URSS que não tinha
condições econômicas e políticas para superar o Império norte-americano na Guerra
Fria, a China avançou decisivamente na construção de uma verdadeira grande indústria
sob um regime de socialismo de mercado, que desenvolve as forças produtivas muito
melhor do que no Ocidente e capitalismos do centro e da periferia, superando diversas
travas do desenvolvimento. Um país que, em 1949, após décadas de guerras civis e
invasões estrangeiras, tinha 80% de analfabetos, chega em meados de 2023 como
segunda potência mundial, numa transformação tectônica da econômica política global.

Mesmo com as fragilidades econômicas enfrentadas por boa parte dos países do
Sul Global na década de 1980 e a hegemonia unipolar estadunidense da década de 1990,
fortalecendo a subordinação plena dos países às instituições, às normas, ao mercado e à
ordem liberais, o Sul Global também ganhou maior espaço no século XXI, sobretudo
pelo maior protagonismo de potências emergentes. As mudanças e realinhamentos na
geopolítica mundial criaram espaço para que potências emergentes como China, Índia e
Brasil expandissem suas áreas de influência e de cooperação para outros países não
industrializados, ao lado da re-emergência da Rússia, países com desenvolvimento
nacional na África e América Latina. Além disso, ao longo das décadas, surgiram
também diversas iniciativas e organismos regionais ou temáticos com o intuito de reunir
países do Sul Global, a fim de facilitar a cooperação e de coordenar posicionamentos,
como é o caso do G-77, da Liga dos Estados Árabes, da União Africana, da CELAC, da
OCI, da Unasul, do Fórum IBAS, da OPEP, entre tantos outros. Também se destacam
mudanças nos padrões comerciais e de investimento, havendo expansão de acordos e
realização de programas de investimentos entre países da América Latina, da África e
da Ásia.

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2. ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO NO SUL GLOBAL

Para Samir Amin, o imperialismo atual encontra suas bases econômicas na era
do “capitalismo monopolista generalizado”. Segundo Amin, essa fase se caracteriza
pelo avanço da integração mundial dos mercados monetários e financeiros, assim como
pela centralização do poder dos diretores dos monopólios e seus servidores assalariados.
O avanço da mundialização e liberalização do capital no advento do neoliberalismo se
contrasta com os limites nacionais e locais para a mobilidade da força de trabalho, a fim
de garantir maiores taxas de exploração. Existe hoje um imperialismo comandado por
uma tríade liderada pelos Estados Unidos, que tem como sócios minoritários a Europa e
o Japão, um capital monopolista que tem o controle quase total (e cada vez mais) de a
economia global, e que através do controle de diferentes setores pode dominar “por
cima” e “por baixo” os pequenos produtores e o grosso da população mundial. Exemplo
disso é a subordinação, extração de renda e eventual absorção dos pequenos agricultores
pelo grande capital através de multinacionais de sementes, de um lado, e multinacionais
de comércio e distribuição, de outro.

Amin destaca que o imperialismo contemporâneo se baseia na defesa de cinco


monopólios no mercado mundial: os fluxos financeiros e monetários, as fronteiras
tecnológicas, o acesso aos recursos naturais do planeta, os meios de comunicação e as
armas de destruição em massa. Qualquer medida que vise romper os monopólios e a
dependência tem uma resposta violenta por parte dos monopólios, oligopólios, agentes
que se beneficiam da financeirização e do Departamento de Estados dos EUA, incluindo
sanções criminosas, cooptação, golpes, terrorismo e ameaças de todo tipo para frustrar
qualquer iniciativa transformadora, desencadeando ferozes processo contra-
revolucionários.

Nas perspectivas formuladas no Norte Global, tende-se a apontar a questão da


desigualdade como fruto de uma incapacidade terceiro-mundista em se adequar a
padrões e modelos políticos, econômicos e institucionais notadamente ocidentais. Por
isso, sua dominação se faz por meio da intervenção econômica, política e cultural.

14
Amin considera que é um mito a possibilidade de os países do Sul atingirem os
ricos com políticas de desenvolvimento e é extremamente cético quanto à viabilidade de
projetos nacional-populares que não rompam com a lógica do capitalismo. É neste
contexto que Amin aponta a Grande Comunidade do “Sul Global” que representa 90%
da população mundial, apostando numa outra civilização. A luta por um mundo
multipolar com a China, a Rússia e a Índia como as grandes locomotivas, constitui o
caminho mais provável para fazer a transição para uma nova civilização que consiga
orientar-se para o Bem Comum Mundial. Conforme Amin, o Sul Global deve afirmar
suas próprias posições e distanciar-se da globalização sob o domínio do Norte que
monopoliza tecnologias, acesso a recursos naturais e domínio do sistema financeiro. O
Norte prescinde do Sul, mas o Sul pode prescindir do Norte, pois tem recursos naturais,
meios para desenvolver tecnologia e substituir as exportações com destino ao Norte para
fortalecer as trocas com outros países do Sul. O caminho para emancipação seria por
meio de maior estatismo e soberania, o que se choca com a dominação imperialista em
escala mundial (AMIN, 2014).

André Gunder Frank argumenta que os países do Terceiro Mundo não poderiam
– e não deveriam – reproduzir a trajetória de desenvolvimento econômico do Primeiro
Mundo, uma vez que esse desenvolvimento era produto das relações de exploração
colonial e imperialista. O produto dessas relações de subornação ao centro é o que
Gunder Frank chamou de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Ele questiona a
“importação” de modelos de modernização econômica etapistas/capitalistas como
solução para a desigualdade e pobreza nos países periféricos. A aplicação destes
modelos no Terceiro Mundo levaria apenas ao enriquecimento das classes dominantes
nacionais e internacionais pela superexploração da mão de obra periférica. Assim,
defende interpretações socio-históricas que gerem soluções coerentes com as
especificidades locais de cada um dos países terceiro-mundistas.

As nações que compõem o Sul Global mantêm algumas estratégias


predominantes. Seguimos o critério de Bresser Pereira:

O Estado define o modelo de capitalismo. O mercado é sempre o instrumento principal


de coordenação econômica – foi graças a isso que o capitalismo tornou-se dominante –
mas os mercados são sempre socialmente construídos e são regulados pelo Estado, não
havendo nenhuma razão para crer que, deixados inteiramente “livres”, serão mais

15
eficientes a não ser que acreditemos no conto de fadas de que os mercados reais se
aproximam do modelo da competição perfeita5.

No Norte – os países centrais - predomina um capitalismo de monopólios


transnacionais e financeiros, com Estados imperialistas relativamente parecidos entre si,
tendo em comum a unidade em torno da dominação do Sul. Compreendemos que o
Estado age de três diferentes formas no Sul Global. São três estratégias diferentes de
desenvolvimento – o capitalismo liberal, capitalismo de Estado e socialismo de
mercado. Os três estão presentes hoje no Sul Global. Países oscilam entre os modelos de
acordo com as condições de desenvolvimento nacional.

O esforço em compreender os elementos comuns e específicos das experiencias


de desenvolvimento no Sul Global nos levam a três vertentes estratégicas, por vezes
aplicadas de forma parcial e inconclusa, se misturando – que podem ser definidas como
liberal, keynesiana – com forte intervenção estatal capaz de sustentar políticas
econômicas e rumo uma base tecnológica própria - e marxista, esta última com o
socialismo de mercado como regime de transição de um capitalismo atrasado e
dependente para um novo modo de produção pós-capitalista. A primeira estratégia
formada pelo Consenso de Washington, a segunda pelo Capitalismo de Estado e a
terceira pelo Socialismo de Mercado.

2.1. CAPITALISMO LIBERAL - CONSENSO DE WASHINGTON

Uma das formas mais hábeis de dominação imperial acontece por meio da
difusão da teoria que os países coloniais atrasados em seu desenvolvimento devem
atravessar paulatinamente diversos estádios de dependência e associação às potências
mais desenvolvidas e avançadas.

As políticas de ajuste estrutural desenvolvidas em Washington pelo


Departamento do Tesouro dos EUA e instituições multilaterais como o Fundo
Monetário Internacional e o Banco Mundial — e entusiasticamente apoiadas por muitos
países ricos — contribuíram para "os colapsos do desenvolvimento que ocorreram nas

5
Bresser-Pereira, Luiz Carlos. Cinco Modelos de Capitalismo. Texto para discussão 280, Escola de
Economia de São Paulo/ FGV. Maio de 2011. Disponível em:
https://www.bresserpereira.org.br/papers/2011/11.32.Modelos_de_capitalismo-TD-280.pdf Não creio que
existam cinco capitalismo, mas uma no Norte com variações que possam a considerar apenas como uma
via de desenvolvimento, e três no Sul – uma liberal associada ao Norte, capitalismos de Estado e
Socialismo de Mercados.

16
décadas de 1980 e 1990 fora do leste e sul da Ásia. Os poderosos países do Norte
conseguiram "chutar a escada" do desenvolvimento, impedindo que o Sul adotasse
políticas intervencionistas estatais muito necessárias (CHANG, 2002).

O Norte criou uma cartilha para o Sul aplicar dizendo que, desta forma, o Sul
poderia se aproximar do Norte, sintetizada pelo que se chama de “Consenso de
Washington” - CW. Em resumo, o CW exige do Sul Global a aplicação de políticas de
“ajuste fiscal” leva a privatização de empresas estatais, a oligopolização da indústria e o
sucateamento de agências governamentais e a infra-estrutura logística, com a redução da
capacidade de intervenção do Estado no processo de desenvolvimento econômico e
social e maior dependência de produtos tecnológicos produzidos no exterior. Porém, os
que seguiram este receituário, desconsideraram que nenhum país criou condições para o
bem-estar populacional sem construir um sistema industrial sob a coordenação de um
Estado soberano. Se trata de um anti-desenvolvimento, realizado em prol de monopólios
e oligopólios que controlam a economia nacional. O Sul não pode se fundir com o
Norte, pois aí não haveria nem Norte e nem Sul. O Norte só existe pela diferença
duradoura com o Sul. Por isso talvez que no Norte não se pratique o que se prega ao Sul
Global.

Argumentamos que o CW é uma rede de poder inserida no bloco hegemônico


neoliberal. O CW ajuda a implementar o modelo neoliberal de ajuste e reforma que
incluiu a liberalização unilateral do comércio e das finanças, a privatização de empresas
estatais, o mais rápido possível - terapia de choque - a fim de adaptar e disciplinar esses
países no 'caminho certo' da modernidade rumo ao primeiro mundo e a re-
regulamentação de normas e instituições2. Assim, como afirmamos, o CW é antes um
padrão específico de interdependência assimétrica entre atores internacionais e
transnacionais historicamente definidos e mediados por um conjunto de instituições
internacionais. Essa rede de poder caracteriza-se como uma relação Norte-Sul permeada
pela ideologia econômica neoliberal, apresentada como um pacote de políticas para
países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. O caráter consensual desse padrão de
interdependência assimétrica tornou-se mais forte após a Guerra Fria com a retórica do
“fim da história”, o fracasso das experiências econômicas e políticas autoritárias do
“socialismo real” e a perda de confiança na política de planejamento estatal minada pelo
crise fiscal nos países menos desenvolvidos na década de 1980. Na América Latina e na
África, os governos implementaram o CW de acordo com as recomendações de
instituições financeiras internacionais como o FMI e o Banco Mundial. Essas
instituições concederam empréstimos e linhas de crédito a países em desenvolvimento
condicionados a políticas drásticas de ajuste econômico baseadas principalmente em: 1)
liberalização financeira; 2) liberalização comercial unilateral; 3) privatização de
empresas públicas; 4) re-regulamentação da economia e; 5) cortes de gastos e ajuste
orçamentário (VADELL, 2014).

17
Depois de um ciclo apoiando os piores ditadores de direita pelo Sul Global, os
EUA passaram a interferir em outros países dizendo que estão promovendo “a
democracia” e pelos “direitos humanos”, com coação das instituições financeiras
internacionais. O Norte busca assegurar sua supremacia por meios econômicos,
políticos, militares e culturais. Aqueles que agem para realizar seu potencial nacional
fora deste pequeno clube é perseguido por todos meios possíveis para que não realizem
uma transição social, econômica e política que superem efetivamente e de forma
duradoura a dependência e controle externo sobre seu território e instituições, muitas
ditas “democráticas”.

Esse modelo, também denominado de “liberal-dependente”, caracteriza-se pelo


caráter dependente e pela falta de uma estratégia nacional de desenvolvimento. Do
ponto de vista da estrutura social, este modelo se caracteriza pela aliança política entre
uma burguesia industrial nascente e uma burocracia pública e privada também nascente.
Em uma primeira fase, o Estado além de indutor do desenvolvimento econômico, é
produtor, porque se encarrega da poupança forçada e dos investimentos que exigem
grandes capitais e proporcionam retorno lento. Em uma segunda, depois de se formar
um sistema empresarial poderoso, o Estado reduz seus investimentos, mas continua a ter
um papel indutor importante. E, em alguns casos, como o do Brasil, caracterizado por
elevado grau de desigualdade, desenvolve compensatoriamente um sistema de proteção
social amplo.

Na melhor versão, elaborada pelo sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique


Cardoso, se defende a viabilidade de um processo de democratização no interior de um
capitalismo dependente. Haveria sobras do Norte para satisfazer parcialmente as
necessidades na periferia. Para FHC, seria possível amenizar as contradições da
dependência, por meio de políticas sociais, num contexto liberal e democrático. Não
seria necessário romper com a dependência para se ter ganhos como “sócio minoritário”
dos países centrais.

Esta linha é defendida pelos “economistas ortodoxos”, guiados pelas teorias do


“livre mercado”, com apoio de organizações internacionais, grupos de pressão, lobistas
de empresas transnacionais, mídia corporativa e forças políticas interessadas na
associação subalterna ao Norte. Essa ideologia econômica faz parte da guerra cultural
para que todos aceitem o capitalismo liberal como única alternativa, apesar de seus

18
efeitos nefastos sobre as maiorias populares. Além disso, “economistas” liberais
defendem a “especialização” dos países, que consideraram um efeito positivo de uma
economia aberta global. Isso é, países do Sul Global devem ser exportadores de
matérias-primas e alimentos para o Norte, pois esta seria sua vocação na divisão
internacional do trabalho. E o Norte, por sua vez, poderia inundar os mercados do Sul
Global com bens industriais que os fabricantes locais não deveriam produzir, frustrando
assim qualquer iniciativa de desenvolvimento industrial sustentado.

O receiturário de “abrir, privatizar e desnacionalizar” se mostrou ineficaz,


minando a legitimidade dos governos e das classes políticas. Esse tipo de ação do
Estado reduz os vínculos com suas comunidades de origem, enfraquecendo a autoridade
estatal, perdendo a capacidade de coesão social e criando novos problemas, como crime
organizado, grupos armados e terrorismo. Ao perder a substância e a capacidade de ação
na formulação de políticas públicas cotidianas de interesse de sua população, de
políticos se mostrarem incapazes de comprometer o Estado reformas estruturais,
acabando a ficar restrito a políticas públicas emergenciais, muitas vezes insuficientes
para solucionar as grandes questões do desenvolvimento nacional.

2.2. CAPITALISMO DE ESTADO

O conceito de “capitalismo de Estado” é vago, pois todo capitalismo é de Estado


– com seus exércitos, mercados e moedas. Assim, pode-se resumir que “capitalismo de
Estado” é o processo em que um poder político busca estratégias de desenvolvimento
nacional, se afastando das receitas liberais e buscando promover interesses das maiorias
nacionais. Pode-se dizer que, quando o Estado atinge algum nível de autonomia
estratégica e capacidade independente de planejamento, é que estão colocadas as
condições para realização do capitalismo de Estado.

No Sul Global existem diferentes experiências de capitalismo de Estado, mais ou


menos estruturados, dentre elas da Rússia, Índia, Brasil, Indonésia, Coréia do Sul, Irã,
Qatar, Egito, Quênia, Turquia, Argentina. Um estado desenvolvimentista é
caracterizado por ter forte intervenção do estado, bem como extensa regulamentação e
planejamento. A ideia de “Estado desenvolvimentista” (Developmental State)
fundamenta- -se na construção de processos de desenvolvimento alicerçados em

19
políticas setoriais, programas macroeconômicos e projetos de infraestrutura, com a
participação ativa do Estado.

Como demonstra Chang (2010), a definição de desenvolvimentismo está


associada à legitimidade social conferida ao Estado para interferir nas trajetórias de
desenvolvimento por meio de instrumentos vários de política pública. Ao longo da
história – ou, no mesmo momento, em distintos contextos sociais –, diversas
modalidades de Estado desenvolvimentista já foram testadas. Elas emergem em
diferentes condições políticas e se adéquam às instituições e aos valores que cada
sociedade estima serem legítimos no respectivo contexto histórico.

Geralmente, a caracterização de um Estado desenvolvimentista compreende,


segundo Bresser-Pereira (2010), (a) um certo nível de nacionalismo econômico; (b) a
proteção ou a sustentação da indústria doméstica; (c) o fortalecimento da burocracia
estatal; (d) o corporativismo fundado em uma aliança entre Estado, trabalho e setor
privado; (d) o incentivo à inovação e à transferência de tecnologia; e (e) a prioridade do
crescimento econômico sobre a estabilidade monetária. Em distintos contextos, porém,
cada uma dessas características se revela mais ou menos evidente.

Chalmers Johnson foi o primeiro a propor o conceito de "estado


desenvolvimentista", usando o termo para descrever fortes políticas intervencionistas
implementadas pelo Japão que levaram a uma industrialização rápida e sustentada e a
um desenvolvimento econômico de longo prazo. O termo tornou-se uma abreviação
para a ascensão bem-sucedida dos países recém-industrializados (NICs) do Leste
Asiático, ou os 'Tigres Asiáticos' – Japão, Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura. Este
paradigma afirma o Estado como chave para o processo de desenvolvimento, com
capacidade e intenção de resolver falhas de mercado, escassez de capital e falta de
coordenação entre governos e elites econômicas. Um dos princípios de um estado
desenvolvimentista envolve a elaboração de uma aliança estado-empresa mutuamente
benéfica, por meio da qual o estado implementa uma série de incentivos e recompensas
para persuadir os capitalistas domésticos a realizar investimentos em setores específicos
da economia. Essa relação sustenta parcialmente a justificativa para a propriedade
nacional. A propriedade nacional abre um espaço de desenvolvimento para empresas
domésticas competirem com empresas multinacionais por meio do protecionismo
estatal. Como as empresas estrangeiras podem expulsar as empresas de propriedade

20
nacional nas indústrias de média e alta tecnologia, as empresas nacionais só podem
alcançar o reconhecimento da marca e a sutileza tecnológica das empresas estrangeiras
por meio do protecionismo do mercado em um período de tempo
limitado. Crucialmente, as relações estado-empresas estão inseridas em uma estrutura
política, na qual a gestão centralizada de rendas permite que os estados imponham
estabilidade política, reduzam os custos de transação para atores privados para motivar
o empreendedorismo e criar mais oportunidades para rent-seeking impulsionado pela
produtividade.

O desenvolvimento liderado pelo Estado não é apenas gerar crescimento


econômico ou fornecer serviços sociais. Envolve muito mais do que simplesmente
gerenciar variáveis macroeconômicas como taxas de câmbio, volumes de oferta de
moeda e taxas de juros. Em suas versões mais avançadas, o estado também controla
empresas que vão desde a manufatura até o varejo e as indústrias de turismo. Os
investimentos são feitos por meio de agências governamentais, em vez de depender de
mercados de capitais privados, que são menos inclinados a correr riscos porque carecem
de informações completas. O setor público está no centro de muitas economias por meio
da propriedade pública de serviços públicos, como sistemas de transporte, serviços de
comunicação e instalações de produção de energia, entre outras coisas.

Na década de 1990, um grupo de países, entre os quais Índia, Indonésia,


Cingapura e Coréia do Sul, impressionaram o mundo com altas taxas de crescimento,
melhoria relativa das condições de vida da população e notórios progressos em termos
de infraestrutura e inovação tecnológica. Tudo isso foi obtido graças à vigorosa
intervenção do Estado, sem, no entanto, criar déficits orçamentários ou endividamento
público. Esses países negaram-se a aceitar as “boas instituições” promovidas pelos
países do Norte e continuaram com políticas industriais, comerciais e tecnológicas
fortemente protecionistas. Na prática, como demonstra Chang (2004), o que esses países
fizeram foi adotar o mesmo conjunto de políticas que, em diferentes momentos
históricos, tornaram ricos os países hoje desenvolvidos; depois, passaram a condenar
tais políticas, em uma clara estratégia de “chutar a escada” que lhes propiciou ascender
economicamente.

21
2.2.1. O caso da Índia
No ano de 1938 foi criado no Partido do Congresso o Comitê Nacional de
Planejamento, presidido por Jawaharlal Nehru. Em 1945, a tese do planejamento
econômico recebe apoio dos grandes empresários indianos através do documento que
ficou conhecido como Plano de Bombaim, onde apresentaram suas ideias, algumas
inclusive avançadas para a época, sobre a dimensão econômica do futuro Estado
Nacional. Após a Independência em 1948, o Governo introduz os Planos Qüinqüenais
de inspiração soviética, com o primeiro-ministro Nehru e a criação da Planning
Comission, em 1950, a responsável pela formulação, execução e acompanhamento dos
Planos. O sistema soviético de Planos Qüinqüenais foi desenvolvido, mas sem o
monopólio do Estado sobre os recursos - o capitalismo foi permitido, mas com grande
burocracia, grandes investimentos foram permitidos, mas vários setores ficaram
protegidos (BASU, 2003).

Visando modernizar a economia, o Estado indiano alçou barreiras tarifárias e


não-tarifárias para defender o produtor interno, estimulou o desenvolvimento de ramos
de atividade selecionados através de linhas especiais de crédito e concessão de
subsídios, investiu maciçamente em obras de infra-estrutura, implantou novos setores
industriais criando empresas públicas e buscou coordenar essas iniciativas como partes
de um grande projeto (CRUZ, 2007). Essas características são, comumente, presentes
nos Estados desenvolvimentistas e/ou de industrialização tardia. Mas segundo André
Nassif (2006) e Sebastião Velasco e Cruz (2007), na Índia o Estado fez muito mais, e de
maneira peculiar. Em uma carta de 1946 de Jawaharlal Nehru, um dos arquitetos do
Estado moderno indiano, pode-se perceber três características do projeto de
desenvolvimento indiano: 1) priorizar a indústria pesada; 2) defender a pequena
produção artesanal como forma de ampliar a oferta de empregos; 3) planejamento.
Além dessas podemos também destacar mais duas: 4) controle estatal de setores
estratégicos e; 5) restrição ao capital estrangeiro. Características essas que estavam
enraizadas na experiência indiana sob o jugo do Império Britânico e em sua luta pela
libertação do mesmo (CRUZ, 2007). Para Cruz (2007), até a reforma executada pelo
sucessor de Nehru por volta de 1964, a Comissão de Planejamento foi o núcleo duro do
aparelho econômico. A experiência indiana de planejamento econômico é uma das mais
longas e mais estudadas que se tem notícia. Outra peculiaridade do planejamento
econômico indiano é o fato de ter se desenvolvido em um regime político democrático-

22
liberal, com uma acirrada competição eleitoral (CRUZ, 2007; CINTRA, 2009). Os
investimentos em novas plantas ou expansão da capacidade produtiva existente sofriam
um forte controle, necessitando de licenças concedidas pelo Comitê de Licenciamento
Interministerial, subordinadas às diretivas estabelecidas pelos Planos Quinquenais de
Desenvolvimento. O Estado indiano, além de determinar os setores eleitos, também
determinava a localização, as tecnologias e dimensões das plantas industriais, seus
conteúdos importados e as formas de relacionamento das empresas nacionais com os
agentes externos. Apenas as pequenas e médias empresas estavam dispensadas do
regime de licenciamento. Exceção essa que fazia parte das características peculiares do
projeto de desenvolvimento indiano desde os primeiros momentos, continuando
presente até os dias atuais, isto é, a preservação da pequena indústria artesanal.

Nehru assumiu o controle do país e fez a opção pelo “padrão de sociedade


socialista”, porque acreditava que este sistema era a melhor alternativa para a
prosperidade coletiva. Os elementos-chave do modelo de desenvolvimento adotado
foram a substituição de importações e a forte intervenção estatal.

Como parte do planejamento estratégico de longo prazo, a Índia adotou políticas


industriais que visaram aumento da produtividade e rápido crescimento industrial do
país. Os dois alicerces da política industrial indiana neste período eram o licenciamento
industrial e o de importações. O primeiro objetivava direcionar os fluxos de
investimento para setores estratégicos, de acordo com as especificidades dos Planos
Qüinqüenais. Já o segundo procurava impor barreiras à entrada de concorrentes
externos. Esta se tornou a forma de o Estado conservar a sua participação na economia,
já que ele atuava diretamente sobre as escolhas de localização, tecnologia e escala,
autorizando ou não a criação de novas firmas e a expansão das existentes. Além disto, a
participação do Estado ganhou força através de múltiplos canais, que incluem a
nacionalização de atividades produtivas selecionadas e medidas legislativas para
controlar e dirigir tais atividades e os agentes econômicos (VIRMANI, 2004, p.16).
Com relação ao sistema de licenciamento de importações, o Estado acompanhava o
montante de importações, revelando mais uma medida protecionista clara de apoio às
indústrias nacionais.

A Índia entrou, então, num período de industrialização planificada, conduzida


pelo Governo, que assumiu sua importância sobre a atividade econômica, a sociedade e

23
a afirmação exterior do país, com destaque para os papéis de regulador, investidor e
financiador. A peça central desse regime foi a Lei das Indústrias (Regulação e
Desenvolvimento Industrial) de 1951, que moldava a política industrial e afirmava que a
União deve ter o controle de suas indústrias. Esta lei implantou um modelo de
licenciamento industrial para controlar o ritmo e o padrão do desenvolvimento industrial
no país, ficando conhecida como “Licence permit raj” (NUNES, 2006). O controle
estatal sobre o desenvolvimento das indústrias era justificado e objetivava acelerar a
industrialização e o crescimento econômico, bem como reduzir as disparidades
econômicas entre as camadas sociais. A forte aversão ao comércio, aos investimentos e
às tecnologias estrangeiros deveu-se a reações ao colonialismo.

A estratégia escolhida fora a da substituição de importações, com vistas à


autosuficiência. Ela enfatizava a produção interna, com o firme propósito de conter as
importações. Neste período, ela não pretendia superar crises econômicas – como na
América Latina – mas sim, fortalecer o setor de bens intermediários e de capital, tidos,
em teoria, como de grande contribuição para a obtenção de investimentos, e então, de
crescimento econômico. O argumento era de que o massivo investimento estatal daria
um verdadeiro ponta pé no desenvolvimento e na coordenação das atividades
econômicas, que, por sua vez, garantiria o crescimento rápido e sustentado das
indústrias domésticas. O objetivo da política deste período era deixar o
desenvolvimento industrial sob o controle do Governo. Também, havia a preocupação
de ajudar a pequena indústria nascente, conhecida como Small Scale Industries (SSIs).
O regime de licenciamento industrial e de importações foi introduzido no intuito de
proteger a indústria nacional e, com ele, fica clara a participação estatal na promoção do
desenvolvimento industrial indiano. Revisões da política inicial foram feitas em 1956,
1973, 1977 e 1980, e então, paulatinamente, alguns setores começaram a receber
investimento estrangeiro. Esta base de políticas deixou o legado para uma
competitividade crescente baseada em exportações e o encorajamento de investimento
estrangeiro em setores de alta tecnologia. No período que vai de 1958 a 1962 foram
construídas instituições públicas no intuito de suprir a falta de um mercado privado de
capitais. Foram elas o Banco de Desenvolvimento Industrial da Índia (IBDI), a
Corporação de Financiamento Industrial da Índia (IFCI) e a Corporação de Crédito e
Financiamento Industrial da Índia (ICICI), que constituíam também maneiras pelas
quais o governo podia controlar a atuação de empresas privadas no país.

24
Podemos assim resumir a estratégia de desenvolvimento indiana, para o período
que vai desde a Independência em 1947 até 1980, como segue:

1. Foco na auto-suficiência para evitar a dependência de importações e, então, uma


influência externa excessiva nos assuntos domésticos. Esta política traduziu-se em
ênfase na industrialização acelerada, especialmente na criação nas indústrias domésticas
pesadas, na crença de que as “máquinas que produziam máquinas” impulsionariam as
taxas de poupança, e então, o crescimento econômico. Este padrão de industrialização
se focava na redução da dependência do mercado externo através do modelo de
substituição de importações. Restrições comerciais foram conseqüências inevitáveis
destas práticas;
2. No intuito de garantir que os recursos investidos fossem canalizados para o “lugar
correto”, os planejadores indianos projetaram um sistema que combinava o peso
majoritário do setor público e o engajamento controlado do setor privado nas decisões
econômicas;
3. Diferentemente de muitos países emergentes, a Índia independente sempre permitiu a
atuação do setor privado. Contudo, para ser consistente com a estratégia de
planificação, teria que constituir meios para controlar as atividades privadas – e isto foi
feito através dos licenciamentos industriais e de importação, dos controles sobre as
operações cambiais, sobre o crédito e sobre os preços. Outra razão para o controle do
setor privado vinha do argumento de evitar a monopolização do poder. Os principais
mecanismos através dos quais esta estratégia foi posta em prática foram a Lei das
Práticas de Comércio Restritivas e de Monopólio (MRTP), que impunha barreiras à
expansão de grandes grupos, e a FERA, Lei de Regulação das Operações Cambiais.
Como resultado desta atuação do setor público, o setor de serviços foi praticamente
dominado pelo Governo, principalmente nas telecomunicações;
4. Para encorajar a manufatura trabalho-intensiva nos setores de pequena escala,
benefícios significativos eram dados a estas empresas, como benefícios fiscais, acesso
preferencial ao crédito, taxas de juros subsidiadas e tratamento preferencial pelo
Governo;
5. Ao mesmo tempo, para proteger o trabalhador, políticas protecionistas foram incluídas,
principalmente nas grandes firmas;
6. E, por último, a Índia investiu elevadas somas de recursos na educação superior, em
detrimento do ensino primário, padrão que ainda se mantém. Este grande investimento
no ensino superior, comparativamente a sua renda per capita, cujos melhores exemplos
são os Institutos Indianos de Tecnologia (IIT) e os Institutos Indianos de Administração
(IIM), resultou na disponibilidade de mão-de-obra qualificada e de baixo custo.
Nos anos 1980, ficou claro que o modelo adotado não seria sustentável no longo
prazo. Os primeiros sinais da ineficiência deste modelo surgiram ainda nesta década -
alto nível de degradação social, fragilidade da infra-estrutura e baixa inserção
internacional – de modo a fazer com que, a partir do início dos anos 1990, o governo
implementasse algumas reformas calcadas na liberalização comercial e na abertura aos
investimentos estrangeiros.

As reformas de políticas de 1985–1990 tinham como pilares a eliminação dos


licenciamentos industriais – cerca de um terço das indústrias em 1985 e cinqüenta por

25
cento delas em 1991 – e de importação, assim como a concessão de incentivos diversos
às exportações, a redução de direitos de monopólio do governo na importação de ativos
estratégicos e até uma mini-reforma tributária. É importante dizer, quando tratamos das
reformas, que uma característica muito importante do programa de reformas indiano,
quando comparado às reformas conduzidas em outros países, tem sido o gradualismo e
a transição evolucionária, ao invés de uma “terapia de choque”. Uma razão para este
gradualismo é que as reformas não foram introduzidas como respostas a uma crise
econômica prolongada ou um sistema econômico em colapso.

A Nova Política Econômica (New Economic Policy), introduzida em 1991 e


incorporada no Oitavo Plano Qüinqüenal, transformou a economia indiana e fez com
que o país superasse a chamada “taxa de crescimento hindu” de três e meio por cento e
passasse a crescer em torno de cinco ou seis por cento ao ano (EDMONDS et.al., 2007).
Em 1990, a posição externa enfraquecera-se e o déficit em conta corrente situavase em
3,1% do PIB, o que abaixava as reservas internacionais para níveis historicamente 35
baixos de cerca de 1,5 bilhões de dólares, suficientes apenas para garantir poucos dias
de importações. Internamente, os gastos do governo eram tão altos, de forma que o
déficit público dos governos central e estadual somavam 9% do PIB e a dívida de curto
prazo chegara a 146,5% das reservas internacionais. A taxa de inflação chegou aos dois
dígitos e a ameaça de uma desvalorização levou a uma fuga de capitais (GULATI et.al.,
2005, p.32). Apesar de ter sido uma crise econômica – causada por uma queda nas
reservas internacionais - o gatilho para as reformas de 1991, o governo indiano fez um
esforço para solucionar, conjuntamente, estes com outros problemas industriais. Assim,
a Índia adotou uma série de reformas macroeconômicas que afetava a indústria, as taxas
de câmbio, o comércio exterior, os investimentos e, em maior escala, a maioria das
atividades econômicas. Um empréstimo com o FMI, no intuito de solucionar a crise
macroeconômica, piorou a situação fiscal do país.

O projeto de montagem das zonas especiais por parte do governo indiano tem
inspiração nas zonas especiais chinesas que tiveram sucesso na década de 1980 e sua
gênese na década de 1990 Atualmente, algumas já estão estabelecidas, posto que o
governo eliminou uma série de restrições, como exigência de licenças e tarifas na Nova
Lei das Zonas Especiais de 2005 e mais de 150 propostas foram estão sendo pensadas
pelo governo.

26
As exportações (ligadas a TI) passam a se expandir a partir de 1993, facilitadas
pela modernização no sistema de telecomunicações indiano, como por exemplo, com a
interligação via satélite do monopólio estatal VSNL ao sistema Intelsat, com os parques
tecnológicos sendo difundidos para 13 cidades do país, cada um deles com suas próprias
estações por satélite, propiciando canais de comunicação internacional entre produtores
de software, fornecedores e clientes. O epicentro das indústrias de TI na Índia é a região
de Bangalore, mas cidades como Hyderabad, Chennai, Pune, Noida e Gurgaon [as duas
últimas no entorno da grande Délhi], concentram muitas empresas de TI – além de
indústrias promissoras das áreas farmacêutica (destaque para genéricos) e de
biotecnologia. A Índia possui cerca de 29 parques industriais de tecnologia, com infra-
estrutura completa e isenção de impostos para empresas que queiram ali se instalar. Nos
parques de Bangalore, Hyderabad, Gurgaon e Noida, existem mais de 6,5 mil empresas,
que respondem por 80% da produção indiana de softwares (MELLO, 2008).

Apesar da importância das políticas industriais nacionais, a Índia é marcada pelo


desenvolvimento do setor de serviços. A exportação de serviços tecnológicos faz da
Índia o maior exportador de softwares do mundo. Ao mesmo tempo, essa plataforma de
exportação de serviços terceirizados por grandes companhias estrangeiras do setor de
tecnologia, o célebre outsourcing, também tem se diversificado para outras áreas, os
chamados serviços habilitados pela tecnologia de informação, como os serviços
contábeis, as centrais de reservas, os serviços jurídico-legais, os diagnósticos médicos,
os processos administrativos corporativos, chamados serviços de back-office, como
tratamento de dados, ou ainda os call-centers (SRIVATASE & GELLAUT, 2003). Essa
delocalização para o território indiano de serviços efetuados diretamente por
subsidiárias de empresas multinacionais ou em formas de alianças com empresas
terceirizadas indianas emprega 40% dos profissionais do setor de tecnologia, ou seja,
um milhão empregos diretos (DATT & SUNDHARAM, 2009). Essa tendência faz que,
dos dez maiores exportadores indianos, cinco sejam companhias de TI: Infosys, TCS,
Wipro, Satyam e HCL.

Um dos elementos decisivos para a sustentabilidade do modelo atual de


crescimento indiano tem sido a elevada disponibilidade de poupança interna, que tem
sido canalizada para o financiamento de investimentos produtivos e de formação de
capital, especialmente para o setor manufatureiro, menos dependente do capital

27
estrangeiro que o polo dinâmico do setor de serviços. Com uma visão estratégica de
longo prazo, que mantém o planejamento e a presença do Estado em setores
economicamente pouco atrativos à livre iniciativa, no sentido de fomento da indústria,
do comércio, da tecnologia, da educação e da infra-estrutura, além da expansão do
déficit fiscal que impulsiona o crescimento econômico indiano ainda mais

A Índia não seguiu a estratégia clássica de desenvolvimento asiática baseada na


exportação de produtos de baixo valor para o Ocidente, com a exploração de mão de
obra barata. O crescimento indiano é alavancado por um forte mercado de consumo
interno e uma economia de serviços de alta tecnologia. Outra característica distinta do
projeto de desenvolvimento indiano é o espaço restrito ao capital estrangeiro. A Índia
tradicionalmente destinou espaço reduzido para capitais vindos do exterior, mesmo com
uma maior liberdade a tais investimentos com as reformas liberalizantes da década de
1990. Desde fins do século XIX a ideologia econômica do nacionalismo indiano possuía
uma forte crítica ao capital estrangeiro como um de seus elementos básicos. Os
primeiros nacionalistas declaravam que o desenvolvimento econômico autêntico só era
possível se o processo de industrialização fosse iniciado e desenvolvido pelo capital
indiano. Durante a década de 1960, contudo, ocorre uma expansão controlada do capital
estrangeiro no país. Mas entre o fim da mesma década e o início da seguinte, observa-se
um novo rumo, com a adoção de uma série de medidas legais que deixariam a Índia
com um dos regimes de investimentos externos mais restritivos do mundo fora do bloco
comunista (CRUZ, 2007)

O declínio do investimento público, incentivado pela dificuldade encontrada


pelo governo em aumentar impostos e suas receitas, têm se apresentado como um
elemento importante de restrição ao crescimento indiano. Isso porque os gastos
governamentais incluem investimentos em infra-estrutura e geração de demanda. Com a
redução dos gastos em infra-estrutura, o capital estrangeiro e os investidores privados
não encontram incentivos para ampliar ou iniciar plantas industriais. Esse ponto de
estrangulamento infra-estrutural que restringe o crescimento industrial se revela na
queda crescente da participação da indústria no PIB, em benefício do setor de serviços –
essa alta da participação no setor terciário, em detrimento do crescimento do setor
industrial leva alguns autores a falaram numa “nova desindustrialização indiana”, dessa
vez, advinda de motivos diferentes da ocorrida na época da dominação britânica.

28
2.2.2. O caso do Brasil

Na história do Brasil existiram três ciclos de “capitalismo de Estado”. Os três


foram derrubados com apoio dos Estados Unidos e setores da classe dominante
nacional. Cada uma tem características diferentes, situados em momentos históricos
distintos e enfrentando desafios diversos. Porém, apesar das diferenças, os três ciclos
mantem algumas similaridades, em especial a tentativa de construir um capitalismo
nacional. Foram três ondas, combinando transformações estruturais (industrialização,
modernização agrária, alterações na inserção externa, fortalecimento do capital
financeiro) com uma abordagem macrodinâmica vinculada à dialética da capacidade
ociosa e dos ciclos econômicos, com o Estado e o planejamento como facilitadores e
amplificadores de um processo histórico mais geral de desenvolvimento.

Pelo menos desde 1930, o Brasil vive movimentos cíclicos entre um capitalismo
nacional e o capitalismo associado, numa integração subordinada aos Estados Unidos. É
uma disputa entre uma importância absoluta ou relativa das grandes multinacionais e do
poder executivo na execução de projetos nacionais, entre o predomínio de tendência
nacionalista ou internacionalista. Governos mais nacionalistas enfrentam mais
instabilidade como resultado de avanços reformistas. Eles não conseguiram – até hoje –
romper este ciclo pendular, sendo encerrados por interesses exógenos. Quando se
avançar a um projeto nacional de longo prazo, que aponte para bases político-partidárias
e massas populares politicamente organizadas, vem um processo de desestabilização
que rompe o ciclo, atrasando o desenvolvimento por anos, senão décadas.

A primeira onda remonta a política promovida por Getúlio Vargas após a


revolução de 1930, incorporação da contabilidade no planejamento e a realização de
planos setoriais. Com o Estado Novo, em 1937, Getúlio aprofunda estas medidas com a
criação da indústria de base, nacionalização de fontes de energia, nacionalização dos
bancos estrangeiros e companhias de seguros, elaboração de um projeto de integração
para os transportes, diversificação das exportações e um plano de desenvolvimento para
a região do rio São Francisco. A partir de 1937, se iniciou um sistemático processo de
industrialização do Brasil, baseado na forte intervenção econômica do Estado na
economia e na substituição de importações. Durante o Estado Novo (1937-1945),
foram criados institutos de ramos econômicos, como o Instituto do Café, o Instituto do

29
Açúcar e do Álcool, entre outros, além de órgãos de coordenação como a Carteira de
Crédito Agrícola e Industrial (1937), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -
IBGE (1938), o Conselho Nacional do Petróleo (1938), a Comissão de Planejamento
Econômico (1944) etc., sistematizando com essas divisões a execução e planejamento
da política econômica. Para criar as condições gerais de produção do processo de
industrialização, o Estado Novo investiu grandes somas de capitais em empresas
estatais nos setores de siderurgia (Cia. Siderúrgica Nacional, Volta Redonda/RJ, 1940),
mineração (Cia. Vale do Rio Doce, MG, 1942); mecânica pesada (Fábrica Nacional de
Motores, RJ, 1943), química (Fábrica Nacional de Álcalis, Cabo Frio/RJ, 1943) e
hidrelétrica (Cia Hidrelétrica do Vale do Rio São Francisco, 1945). O objetivo, nesses
setores, era fazer os investimentos de capitais que a burguesia era incapaz de realizar,
mas que eram de suma importância para o processo de industrialização, por criar
condições de funcionamento a inúmeras empresas industriais, que necessitavam de
energia elétrica, transformação de metais, elementos químicos, entre outros, para a
continuação de suas atividades produtivas. A Carteira de Crédito Agrícola e Industrial
do Banco do Brasil, criada em 1937, responsável por prover empréstimos com juros
baixos para a compra de máquinas e equipamentos, cumpriu um papel de banco de
desenvolvimento enviesado para o setor industrial.

Em 1938, foi criado o Conselho Nacional do Petróleo, que realizava a política


petrolífera de estruturação e regulamentação da exploração do petróleo. No contexto de
disputa por essa commodity, esse passo foi crucial para a monopolização estatal do
setor, o que se relacionava com o controle sobre os preços dos combustíveis para obter
um controle indireto do nível de preços do transporte. Outra criação deste ano foi o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), instituição de importância para a
elaboração de censos, relatórios e pesquisas de cunho social, econômico, geográfico e
estatístico, que reforça a ideia de Vargas de fortalecimento dos recursos humanos e
pesquisa científica, visando maiores informações nacionais.

Em 1939, foram criados o Plano de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa


Nacional e o Conselho Nacional de Águas e Energia. O primeiro se comprometia com a
criação das indústrias básicas e obras públicas, além do aparelhamento da defesa
nacional O segundo buscava a exploração do uso de energia elétrica, um elemento
determinante para o desenvolvimento de infraestrutura para o país. Além destes, não
podemos deixar de mencionar o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o qual

30
era o mecanismo de propaganda dos ministérios e departamentos do governo, servindo
como instrumento de promoção do chefe do governo e das autoridades como um todo.
Também foi nesse ano que a implantação da Justiça do Trabalho, os benefícios de
salário mínimo e estabilidade adquirida foram consolidados, o que marcaria a legislação
trabalhista brasileira.

Em 1940, foram implantadas a Comissão de Defesa da Economia Nacional e a


Comissão Executiva do Plano Siderúrgico Nacional. O primeiro se relacionava com o
levantamento dos estoques, o fomento à exportação e acordos com empresas
estrangeiras sobre transporte. A segunda elaborava metas de produção e financiamento,
além de ter sido responsável pela concretização da Usina de Volta Redonda. Já em
1941, foram criadas companhias estatais e departamentos voltados intensamente para a
infraestrutura: Companhia Hidrelétrica de São Francisco, Companhia Siderúrgica
Nacional, Conselho Nacional de Ferrovias e Comissão de Combustíveis e Lubrificantes.
O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) serviu como aperfeiçoamento
técnico voltado para a indústria. Junto com a Comissão Vale do Rio Doce, foi originado
em 1942. Já a consolidação das leis trabalhistas, a Usina Siderúrgica de Volta Redonda,
o Plano de Obras e Equipamentos e a Coordenação de Mobilização Econômica foram
todos concebidos ao longo de 1943. Essa última tinha por incumbência o controle e
supervisão das empresas estatais e privadas, tentando sofisticar a economia brasileira
mediante a entrada do país na guerra. Era dividida em algumas repartições como
produção industrial, observatório de preços e licenciamento dos produtos importados,
mas também se debruçou sobre a produção agrícola, os cuidados com o mercado interno
e o combate à inflação. Em 1944 e 1945, foram criados o Conselho Nacional de Política
Industrial, a Comissão de Planejamento Econômico e a Superintendência da Moeda e do
Crédito (SUMOC). Diversos setores nascentes a partir desse contexto foram
consolidados e fizeram florescer novos setores que também evoluíram desde então, pois
os avanços produtivos iniciais impulsionaram novos avanços produtivos posteriores,
reverberando por toda era da industrialização (1937-1980).

Após o golpe que destituiu Getúlio por meio de setores militares e empresariais
ligados aos Estados Unidos em 1945, convencidos que a “defesa hemisférica” era mais
importante que o desenvolvimento nacional, veio o governo Café Filho realizando uma
agenda liberal, liquidando diversas conquistas do Estado Novo. Com a eleição de 1950,
Getúlio volta ao Catete e, por meio de sua Assessoria Econômica, impulsiona

31
novamente o planejamento estatal, com a formação de grandes estatais como Petrobrás,
Eletrobrás e Banco Nacional de Desenvolvimento. Após um cerco das classes
dominante, Getúlio se suicida em 1954, deixando a maior herança que um estadista
produziu na história do Brasil, com a construção das bases do Estado Nacional,
instrumentos de projetamento da economia, sem contar os direitos trabalhistas e os
avanços em termos de unidade e cultura nacional (MARCELINO, 2022).

Depois de conturbada transição política, assume Juscelino Kubitschek com seu


Programa de Metas, continuando uma política industrial que visa uma agressiva atração
de investimentos externos na área mecânica, entre outras, conformando estatais e
bancos públicos como instrumentos do planejamento. Mantendo marcos do getulismo,
JK integrou o território brasileiro com rodovias e estruturou uma cadeia produtiva com
duas mil empresas nacionais de autopeças, o que veio a transformar o Brasil na década
de 1980 no maior parque metal mecânico do mundo. O Programa de Metas se
concentrava em 31 metas, distribuídas em 6 grupos: energia, transportes, alimentação,
indústria de base, educação e construção de Brasília. A principal meta do Plano era a de
promover a industrialização do país, com crescente participação do Estado, das
empresas nacionais e internacionais e do capital estrangeiro, que passou a desfrutar de
uma posição privilegiada. Diferentemente da primeira parte do decênio, no governo
Getúlio, o governo JK avança no planejamento com objetivos setoriais e maior
intensidade do esforço desenvolvimentista.

Diante do ascenso de massas em torno das lutas do governo João Goulart, os


Estados Unidos em conjunto com setores da classe dominante local organizam o golpe
de 1964, implementando um projeto para executar ações em prol da burguesia,
perseguindo forças trabalhistas e populares. Ao assumir como presidente da República,
o Marechal Castelo Branco nomeia Roberto Campos como Ministro do Planejamento e
Octávio Gouveia de Bulhões, Ministro da Fazenda, ficando os dois responsáveis por
elaborar e executar um programa para o período de 1964 a 1967. O PAEG – Plano de
Ação Econômica do Governo – foi lançado em agosto de 1964 e tinha como meta
conter o processo inflacionário e preparar as bases para o crescimento econômico de
longo prazo. O Banco Central do Brasil (BC) é criado em dezembro de 1964, em 1965 é
reaberto o Ministério do Planejamento, criado em 1962 pelo governo de João Goulart, e
em 1964 é criado o Banco Nacional de Habitação (BNH), que após o fim da
estabilidade no emprego promovida pelos militares tem o reforço do aporte do Fundo de

32
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que será vinculado ao Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico (BNDE) para promover empréstimos de longo prazo. O
Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) passa a substituir o imposto sobre
consumo. Transfere-se o imposto de exportação da esfera estadual para a União e o
Imposto Sobre Operações Financeiras (ISOF/IOF) entra no lugar do imposto do selo.
Para diminuir o déficit público, o PAEG atuou com corte nos gastos públicos, aumento
da carga tributária aumentando a captação de recursos da União e contendo a demanda
por bens e serviços, visando combater a inflação em suas próprias raízes. O governo
federal promoveu, através da reforma tributária, consolidada em 1966, o aumento de seu
poder arrecadatório e a centralização das decisões em detrimento dos Estados, que
ficaram mais dependentes da esfera federal e de recursos externos.

Com o desenrolar do golpe, em 1968, se instaura o AI-5, num período aberto


emprego das técnicas de ditadura, incluindo censura, sequestros, tortura e
desaparecimentos. É o período chamado de “milagre econômico”, onde foi
desenvolvido o PND I (Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento), com foco no
fomento à produção de bens de consumo duráveis (eletrodomésticos, automóveis etc),
marcado por elevadas taxas de crescimento econômico, alavancadas por condições
econômicas internacionais favoráveis. Em 1971, o presidente dos Estados Unidos,
Richard Nixon, anunciou o fim do padrão ouro para o dólar e a moeda estadunidense
sofre uma desvalorização, causando uma crise monetária. Em 1973, com a crise do
petróleo e a quadruplicação de seu preço, se detona uma crise de grandes proporções
que afeta diretamente o Brasil.

Mantendo a ofensiva terrorista de Estado contra organizações populares, Ernesto


Geisel, encaminha a partir de 1974, o II PND foi uma resposta à crise mundial. O II
PND passou a salientar o incentivo à geração de energia e à produção de insumos
básicos (petróleo, alumínio, aço etc.), sendo um ambicioso programa de reformas e
metas de investimento, priorizando o aumento da capacidade energética e da produção
de insumos básicos e de bens de capital. A projeção do governo era a de que em 1977 o
PIB (Produto Interno Bruto) ultrapassasse a casa dos US$100 bilhões e que o Brasil se
transformasse na oitava maior economia mundial. O Plano tinha como meta resolver os
“gargalos” da economia brasileira, através de uma leitura de que a industrialização
brasileira durante o “milagre econômico” havia sido “desequilibrada” e se fazia
necessário completar o parque industrial brasileiro. No II PND não foram aplicadas

33
tantas medidas tópicas, conjunturais, como redução de impostos, corte de juros ou oferta
de crédito oficial subsidiado, mas, sim, um amplo conjunto de iniciativas, envolvendo o
governo, o setor privado e o capital externo. Se criaram inúmeras estatais para dar conta
dos investimentos em infraestrutura. Foi a maior intervenção do Estado na economia na
história do Brasil, somente comparada com o Estado Novo. O PND II foi o auge da
segunda onda de capitalismo de Estado brasileiro.

O plano garantiu taxas de crescimento expressivas, embora menores que no


período 1969-1973. Em 1975, o PIB se expandiu 5,1%; em 1976, 10,2%; em 1977,
4,9%; em 1978, também 4,9%; e em 1979, 6,8%. O II PND, com a proposta de
transformar o Brasil em um país potência, incentivou os investimentos industriais no
qual se beneficiaram principalmente as empresas transnacionais. Ele colocou o Estado,
através de financiamentos e fortalecimento das empresas estatais a reboque de tal
política e como subsidio às empresas transnacionais, com o fornecimento de bens e
serviços que essas empresas demandavam Construção da hidrelétrica de Itaipu. Além
disso, incentivou o endividamento externo, em uma situação de elevada oferta de
divisas no mercado internacional e taxa de juros baixa, porém flexível. Quando no final
da década de 1979 ocorre o segundo choque do petróleo e os Estados Unidos aumentam
significativamente a taxa de juros em dólar, vem a política econômica de ajustamento a
qualquer preço, para pagar a dívida externa e a economia brasileira capitula junto ao
FMI e passa a fazer oficialmente a política econômica estabelecida pelo Fundo,
perdendo ainda mais sua autonomia e socializando a dívida externa.

Geisel, Golbery e outros imaginavam que o Brasil teria um espaço natural entre
as potências ocidentais, por sua cultura e laços com os Estados Unidos, que tomar o
lado capitalista na Guerra Fria era suficiente para que suas políticas não fossem
boicotadas. Com o choque no petróleo, foram forçados a criar mais laços comerciais e
ter uma política externa mais autônoma, o que gerou um progressivo bloqueio dos
Estados Unidos. O setor automotivo brasileiro competia diretamente com o setor
automotivo dos Estados Unidos. E, por mais paradoxal que pareça, em 1964 os Estados
Unidos golpearam o desenvolvimento nacional brasileiro para impor seus interesses e
dez anos depois, com Geisel, passam a denunciar a ditadura e a tortura que ajudaram a
implementar, apoiam iniciativas de democratização que resultassem em eleições gerais
que levem a privatização, estrangulam o país por meio da dívida externa, passam a

34
defender a retirada dos militares do poder e reintrodução da agenda liberal para
favorecer seus capitais.

Após a década de 1980 ser marcada pela estagnação econômica, denominada de


“década perdida”, com a vitória de Fernando Collor nas eleições de 1989 se aceleram
reformas liberais para “abrir a economia” para os grandes monopólios estrangeiros, se
expropriando os instrumentos estatais e orientação econômica, desnacionalizando a
economia, intensificando a oligopolização, desmontando a capacidade de planejamento
do governo federal e dos estados. Com as privatizações iniciadas com Collor e
ampliadas com FHC, o governo brasileiro passou a não ter mais um forte grupo de
estatais, capaz de permitir ao Estado atuar diretamente no comando da política
econômica dos setores estratégicos. No plano dos estados também existe uma operação
de desmanche da estrutura estatal, em especial por meio da privatização de bancos
estaduais. A privatização do setor de telecomunicações, o sistema Telebras, o setor de
energia, das 63 distribuidoras do país, 45 foram privatizadas, como a Light, do Rio de
Janeiro, a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) e a Eletropaulo, de São Paulo.
Entre as 18 estatais, estão a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), a
Companhia Energética de Brasília (CEB) e a Companhia Estadual de Energia Elétrica
(CEEE), que atende consumidores do Rio Grande do Sul. A privatização do controle
das telecomunicações, transportes, eletricidade e outros sistemas através de agências
híbridas dificulta, senão impede, a realização de uma administração pública real desses
setores.

Com a eleição de Lula em 2002, o governo passou a recuperar parte da


experiência histórica de planejamento, que teve em grupos de trabalho, grupos
executivos e empresas estatais de planejamento e execução os principais instrumentos
de implantação das políticas de desenvolvimento industrial, nas quais a infraestrutura
foi parte essencial. O desmantelamento do planejamento estatal foi deixado de lado e se
iniciou um processo de retomada do planejamento macroeconômico e macro-social.
Quando assumiu o governo, os órgãos responsáveis pelo planejamento estavam
esvaziados e sem orçamento. A PITCE – Política Industrial, Tecnológica e de Comércio
Exterior – assume a retomada de políticas desenvolvimentistas, se inserindo nos
instrumentos de planejamento de médio prazo, os planos plurianuais (PPA 2004-2007 e
PPA 2008-2011), com um corpo articulado, programático, com metas e objetivos. Em

35
torno destas iniciativas articularam-se ministérios, empresas estatais, fundos de pensão e
órgãos técnicos.

De modo geral, o governo Lula I, inicia com uma política econômica bastante
ortodoxa, com juros altos e elevados superávits primários (média de 3,5% do PIB em
2003-2006) para enfrentar desequilíbrios externos e o aumento da inflação, cujos efeitos
contracionistas não foram tão sentidos em função do início do “boom de commodities”
que favoreceu as exportações brasileiras. Todavia, deve-se considerar que algumas
políticas domésticas cumpriram papel importante para aumentar a autonomia da política
econômica, em particular a conjugação de uma política de acumulação de reservas
internacionais a partir de 2005 (de US$ 28 bilhões em 2004 para 352 bilhões em 2011)
e de redução da dívida pública externa (de US$ 136 bilhões em 2003 para 86 bilhões em
2006), o que fez o governo brasileiro ter posição credora em dólares a partir de 2007. O
crescimento do mercado doméstico de massa foi estimulado tanto pela expansão do
emprego – grande maioria no setor de serviços - como pela melhoria da distribuição de
renda resultante de políticas governamentais e fomento ao crédito ao consumidor. A
partir de 2006 o governo passou a adotar um conjunto de políticas menos
convencionais, como acumulação de reservas cambiais, valorização do salário mínimo,
aumento dos desembolsos do BNDES, plano para acelerar o crescimento econômico
através de aumento do investimento público e privado em infraestrutura (PAC) em
2007, etc. Já a partir do contágio da crise financeira internacional desde setembro de
2008, um conjunto de políticas anticíclicas foram bem sucedidas em enfrentar seus
impactos sobre a economia brasileira: política de crédito via bancos públicos,
desonerações tributárias para consumo de bens duráveis, aumento no investimento
público, expansão do crédito direcionado via BNDES, criação de um programa de
moradia popular “Minha Casa, Minha Vida”, etc.

Dilma Rousseff toma posse em janeiro de 2011. No primeiro ano adota uma
política ortodoxa, mas entre 2012 e início de 2013, Dilma realiza uma inflexão da
política econômica com objetivo de transformar o tripé macroeconômico neoliberal.
Criou-se a "nova matriz econômica" baseada em cinco pilares: juros baixos, crédito
barato fornecido por bancos estatais, política fiscal expansionista,
câmbio desvalorizado e reindustrialização por meio dos investimentos públicos,
concessões e aumento das tarifas de importação para "estimular" a indústria
nacional. Em última instância, a nova matriz econômica teve como elemento central

36
tornar o setor público o principal protagonista no processo de desenvolvimento do país,
por isso seu caráter desenvolvimentista.

Depois de eleita, Dilma percebeu que a crise internacional continuava intensa e


que a desaceleração global se espalhava pelo mundo. A crise econômica, iniciada nos
Estados Unidos, se espalhou pela Europa, atingindo os países em desenvolvimento de
diferentes maneiras. E o Brasil seria atingido inevitavelmente. Diante disso, Dilma
resolveu agir fortemente, com uma série de medidas de grande impacto. Seu objetivo
era crescer 5% por ano, para não acirrar os conflitos distributivos. A perda de
velocidade eliminaria a margem necessária para combater a pobreza. Numa ação
coordenada, inexistente no período Lula, o Planalto realizou alterações que visavam a
estimular a elevação da taxa de investimento da economia brasileira, por meio da redução
do custo do capital (via redução da taxa de juros) e do aumento da competitividade da
produção nacional nos mercados estrangeiros (via desvalorização do câmbio). Supunha-se
também que a redução do retorno das aplicações financeiras pela redução da taxa de juros,
estimularia a transferência de recursos para atividades produtivas. O resultado seria
suplantar o tripé econômico neoliberal para dar um salto qualitativo na economia por
meio de industrialização e distribuição de renda. Conforme a síntese de Singer (2015), na
“nova matriz econômica” adotada entre 2011 e 2012 destacam-se as seguintes ações:
1. Redução dos juros. Apresentada como mudança “estrutural” e “fundamental” por
Mantega, “a colocação das taxas de juros em níveis normais para uma economia sólida
e com baixo risco” foi a principal batalha da nova matriz. O Banco Central minorou a
taxa básica de juros de 12,5% para 7,25% ao ano entre agosto de 2011 e abril de 2013,
tendo a taxa Selic alcançado o valor mais baixo desde a sua criação em 1986.
Considerando-se a inflação de 6,59%, acumulada em doze meses, o juro real chegou a
menos de 1% ao ano (0,619%, precisamente) no final do ciclo. De campeão mundial de
juros, o Brasil passou a ter “níveis considerados baixos”, compatíveis com os praticados
nos centros capitalistas avançados. Para “normalizar” o custo do crédito, o Executivo
pressionou os bancos privados a baixarem também os spreads. Em complemento à
operação “juros civilizados”, Dilma alterou as regras de remuneração da caderneta de
poupança em maio de 2012, de modo a permitir que o Banco Central seguisse na
redução da Selic.

2. Desvalorização do Real. O câmbio valorizado foi o segundo objeto principal da nova


matriz. A partir de fevereiro/março de 2012, o BC agiu para desvalorizar a moeda de,
aproximadamente, 1,65 real por dólar, patamar no qual se encontrava ao final do
segundo mandato de Lula, para 2,05 reais, alcançado em maio de 2012, numa queda de
19,52%.

3. Uso intensivo do BNDES. O BNDES estabeleceu robusta linha de crédito subsidiado


para o investimento das empresas por meio de repasses recebidos do Tesouro. O
primeiro aporte, de 100 bilhões de reais, havia ocorrido em 2009, mas teve expansão
significativa no primeiro mandato de Dilma, chegando a 400 bilhões de reais. Assim,

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foi potencializado o Programa de Sustentação do Investimento (PSI), dirigido à
“produção, aquisição e exportação de bens de capital e inovação tecnológica”.

4. Aposta na reindustrialização. Em agosto de 2011, Dilma lança o Plano Brasil Maior,


política industrial para “sustentar o crescimento econômico inclusivo num contexto
econômico adverso”. São medidas que vão da redução do IPI sobre bens de
investimento à ampliação do MEI (Microempreendedor individual). A proposta era que
o BNDES investisse quase 600 bilhões de reais na indústria até 2015.

5. Desonerações. Em abril de 2012, é anunciada a desoneração da folha de pagamentos


para quinze setores intensivos em mão de obra. No seu auge, em 2014, a desoneração
atingiria 42 setores e pouparia cerca de 25 bilhões de reais anuais aos empresários. A
“carga fiscal elevada” era vista como uma das “grandes distorções na economia”. Vale
lembrar, também, a desoneração do IPI e do PIS/Cofins sobre bens de investimento, o
Reintegra (Regime Especial de Reintegração dos Valores Tributários para as Empresas
Exportadoras) e o estabelecimento de novo regime tributário para a cadeia automotiva.

6. Plano para infraestrutura. Em agosto de 2012, é lançado o Programa de Investimentos


em Logística (PIL), pacote de concessões para estimular a inversão em rodovias e
ferrovias. A primeira fase do PIL previa aplicação de 133 bilhões de reais.

7. Reforma do setor elétrico. Em setembro de 2012, é editada a Medida Provisória 579,


com o objetivo de baratear em 20% o preço da eletricidade, reivindicação da indústria
para reduzir os custos e ganhar competitividade em relação aos importados. A MP
alterava as regras do jogo com respeito às companhias concessionárias de energia.
Contratos que venceriam em 2015 e 2017 foram antecipados para retirar das tarifas o
“repasse dos investimentos já amortizados”. Um dos efeitos da MP foi provocar a
diminuição do valor de mercado das empresas envolvidas, o que causou perdas aos
investidores.

8. Controle de capitais. Com o objetivo de impedir que a entrada de dólares valorizasse o


real, prejudicando a competitividade dos produtos brasileiros, foram tomadas
providências de controle sobre os fluxos de capital estrangeiro, com alterações das
alíquotas do IOF sobre os investimentos estrangeiros de portfólio, controle de capital
sobre as captações externas, inclusive sobre empréstimos intercompanhias.
Adicionalmente, acionaram dois novos instrumentos regulatórios: (a) a regulação
financeira prudencial, ao impor recolhimento compulsório sobre as posições vendidas
dos bancos no mercado de câmbio à vista; e (b) a regulação das operações com
derivativos cambiais, ao impor IOF de 1% sobre as posições líquidas vendidas nesses
derivativos acima de 10 milhões de dólares.

9. Proteção ao produto nacional. De modo a favorecer a produção interna, em setembro de


2011 elevou-se em 30 pontos percentuais o IPI sobre os veículos importados ou que
tivessem menos de 65% de conteúdo local. Em fevereiro de 2012, a Petrobras fechou
acordo para alugar 26 navios-sondas a serem construídos no Brasil, com 55% a 65% de
conteúdo nacional. Em junho de 2012, foi lançado o Programa de Compras
Governamentais, beneficiando o setor de máquinas e equipamentos, veículos e
medicamentos, também com regras favorecidas para a produção nacional. Em setembro
de 2012, foram aumentados os impostos de importação de cem produtos, entre eles
pneus, móveis e vidros.

Conforme Singer, estas medidas retomaram a iniciativa sistemática do Estado,


perspectiva suprimida desde os anos 1970 com Geisel. Atacou-se os pilares da

38
orientação neoliberal e tentou-se criar as condições para um forte investimento
produtivo, sobretudo na indústria e infraestrutura.
Dilma tentou liderar a coalizão desenvolvimentista contra a coalizão de
capitalistas rentistas e financistas, mas o resultado foi a reunificação de diferentes
frações da burguesia contra o governo, dado como “intervencionista”, “estatizante”,
“perigoso para a hegemonia burguesa”. Este trabalho da grande mídia, da oposição
política e outros setores sociais contrários ao governo contaminaram as expectativas do
empresariado que passou a realizar uma espécie de “greve geral de investimentos”, o
que travou o crescimento de vez. A partir do final de 2012, a burguesia começou a por o
pé no freio, percebendo que a gestão era temerária para seus interesses de classe e que o
governo ficaria muito forte. A partir de 2013 o governo recua, a taxa de juros volta a
subir, as intervenções no mercado de câmbio foram revistas e, para piorar, a nova matriz
econômica passou a ser vista como a causa da crise econômica.
Em termos de crescimento econômico e elevação da taxa de investimento, o ensaio
desenvolvimentista de Dilma não surtiu os efeitos esperados. Segundo o IBGE, a taxa de
investimento do país, após elevar-se de 17,3% para 20,6% do Produto Interno Bruto (PIB),
entre 2006 e 2010, ficou praticamente estagnada nos três anos seguintes e caiu quase um
ponto percentual no ano passado. As taxas efetivamente observadas no período foram:
20,6% em 2011, 20,2% em 2012, 20,5% em 2013 e 19,7% por cento do PIB em 2014. O
investimento não veio e os resultados, em matéria de crescimento, foram muito baixos.
O crescimento médio da economia brasileira no primeiro mandato de Dilma Rousseff,
de 2011 a 2014, foi de 2,2% ao ano.
O maior ativismo estatal de Dilma (que se mostrou em propostas como a
redução da taxa de juros “para nível internacional”, diminuição dos spreads bancários,
facilitação do crédito para o investimento, aumento do IOF sobre a entrada de capital
estrangeiro, desonerações tributárias, adoção do conteúdo nacional como “diretriz da
política industrial”, “preferência para produtos nacionais nas compras governamentais”,
entre outras) fez crescer a ideia de que se tratava de mandato “intervencionista”, que
inviabilizava os investimentos e não criava confiança. Conforme Singer, ao núcleo
rentista (interno e externo) se juntaram, sucessivamente, os importadores, descontentes
com a desvalorização do real e as barreiras aos produtos importados, as empreiteiras,
descontentes com a “modicidade tarifária”, as “elétricas”, insatisfeitas com a MP 579,
os grupos prejudicados com o aumento da competição no setor portuário, os produtores
de álcool, prejudicados pela baixa competitividade do etanol em virtude da opção por

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segurar o preço e retirar as Contribuições de Intervenção sobre o Direito Econômico
(Cide) da gasolina, o agronegócio em geral, desconfiado de que tenderia a ser mais
tributado, os setores da indústria automotiva descontentes com as dificuldades de
importação, as empresas aéreas insatisfeitas com as novas regras vigentes nos
aeroportos, as empresas de celular punidas por falta de investimento, a classe média
tradicional irritada com a alta do preço dos serviços, das viagens e dos importados e os
industriais afetados pelas políticas pró-trabalho. Cada setor que se sentia prejudicado
aderia à críticas do intervencionismo, adensando a oposição capitaneada pelos rentistas,
até que em certo momento a frente antidesenvolvimentista englobou o conjunto da
burguesia, contando com o suporte fervoroso da classe média tradicional (SINGER,
2015). Mesmo o setor da burguesia que parecia até a pouco parecia satisfeita com a
política de crescimento via consumo e com as concessões às grandes corporações,
passou a criticar o que chama de linha estatizante do governo. Conforme Wladimir
Pomar, essa reorganização é apoiada sem disfarces pelo FMI e por revistas estrangeiras
que expressam o pensamento das grandes corporações transnacionais, como The
Economist, Financial Times e Der Spiegel. E tem como alvos, além da linha estatizante,
várias suposições, com destaque para o fracasso e o descrédito nacional e internacional
da política econômica do PT, as tendências de inflação e recessão, o crescimento da
corrupção, e a ausência efetiva de políticas para superar o caos nos transportes, na saúde
e na educação6. No final de 2012, Delfim Netto afirmava:
O problema é que nem sequer a bem-sucedida política de queda da taxa de juros real,
nem o controle do movimento de capitais responsável por levar a uma recuperação da
taxa de câmbio, nem os incentivos fiscais, alguns da maior importância no longo prazo,
caso da desoneração da folha de salários, nem o excepcional esforço por meio do
BNDES, nem os estímulos à inclusão social que asseguram um aumento da demanda
foram capazes de mobilizar os investidores privados. A verdade é que a resposta ao
ativismo do governo, em geral na direção correta, foi infelizmente acompanhada de
ruídos de comunicação por parte dos agentes públicos em interação com o setor privado
no campo fundamental da infraestrutura. Frequentemente eles manifestam alguma
prepotência e muita idiossincrasia, a comprometer a relação de confiança desejável
entre o setor público e o privado. Obviamente, o primeiro pode e deve fixar as regras do
jogo com lógica aceitável em uma economia de mercado, mas o segundo tem todo o
direito de exigir a máxima clareza, transparência e respeito. Quem conhece a
inteligência da presidenta Dilma Rousseff, sua disposição de estudar cuidadosamente
cada problema e seu pragmatismo, tem dificuldade em entender como se chegou a tal
distância de confiança entre o governo e o setor privado de infraestrutura. Uma coisa é
certa: enquanto essa distância não for anulada, é pouco provável o “espírito animal” dos
empresários se manifestar e os investimentos crescerem7.

6
POMAR, Wladimir. Classes e luta de classes: desafios atuais. Jornal Correio da Cidadania, 03/07/2014.
7
NETTO, Delfim. A engrenagem da confiança. Carta Capital. 11/12/2012.

40
O desenvolvimentismo foi contido pelo aumento dos juros, a partir de abril de
2013. A estagnação do investimento abriu, assim, o caminho para a virada da política
econômica. Ao reduzir o crescimento da atividade econômica, desacelerou a arrecadação de
impostos, colocando pressão sobre as contas públicas. Ao mesmo tempo, a desvalorização
cambial pressionou a inflação e forçou o governo a recuar em relação ao afrouxamento da
política monetária. A partir de abril de 2013, o COPOM inicia um ciclo de elevação da taxa
de juros que tornava manca a perspectiva de retomada do desenvolvimento nacional e
paralisava o avanço progressista, exatamente em seu auge (SINGER, 2015). A grande
burguesia se dera conta que Dilma estava encabeçando um novo modelo de crescimento
que rompia com as regras neoliberais na economia e passa então a culpar
sistematicamente o intervencionismo do governo na economia pela “crise de confiança
do capital privado” e pela contração dos investimentos. A linha desenvolvimentista teve
pés de barro, não se estabeleceu com firme apoio político, social e popular e nem com o
apoio dos industriais, que foi sendo perdido para o bloco rentista. A partir daí Dilma foi
obrigada a recuar passo a passo até chegar aquém do ponto de partida. A substituição de
Guido Mantega por Joaquim Levy, anunciada no final de 2014, fez retroceder os
avanços do Estado em relação ao primeiro mandato de Lula (SINGER, 2015). Depois se
vencer a reeleição com discurso desenvolvimentista, Dilma propôs um ajuste “como
feito em 2003”, porém sem o superboom de commodities que ajudou então a reverter o
quadro de estagnação e projetar Lula como grande mediador das classes sociais em
disputa. O cerco a favor de reversão neoliberal completa ganhou cada vez maior adesão
do Norte e da burguesia nacional, na classe média tradicional e em setores da nova
classe trabalhadora. A crítica a “nova matriz econômica” passa a ser total. Praticamente
ninguém reivindica sequer sua existência. Dilma encampa o programa de “ajuste fiscal”
com o objetivo de colocar algum freio na recessão econômica e trazer novamente a
confiança dos empresários, consumidores e investidores externos, o que abriria as portas
para a retomada do crescimento econômico. Entretanto, nada disso ocorreu, a recessão
se aprofundou, a arrecadação caiu e sua aprovação popular foi para o chão,
impulsionando o processo de sua destituição.

Para Singer, Dilma não estava preparada para a ofensiva burguesa, o que
implicaria apoiar-se no subproletariado e, sobretudo, na classe trabalhadora organizada
para reagir. Tal como em 1964, as camadas populares não foram mobilizadas para
defender o governo quando a burguesia o abandonou (SINGER, 2015). O ensaio

41
desenvolvimentista não foi acompanhado de mobilização social, em 2011 e 2012,
consistindo em um conjunto de decisões tomadas sem amplo debate público e capilaridade
social. O povo não foi informado do que estava acontecendo. Pelo alto, Dilma e Mantega
realizavam ousado programa de redução de juros, desvalorização da moeda, controle do
fluxo de capitais, subsídios ao investimento produtivo e reordenação favorável ao
interesse público de concessões à iniciativa privada. Na sociedade, o vínculo entre
industriais e trabalhadores se dissolvia e os empresários se unificavam “contra o
intervencionismo”. Nesse contexto, os capitalistas podiam confiar que, com a pressão
advinda de uma greve de investimentos, ele não teria força para se manter. E a política
econômica convencional seria, cedo ou tarde, retomada (SINGER, 2015).

Países como o Brasil são muito expostos às mudanças nas condições externas,
vulneráveis aos ciclos de liquidez, sendo obrigado a ajustar suas políticas domésticas a
essas condições. O Governo Lula foi pressionado a adotar políticas ortodoxas no início
de sua gestão, e, conforme as condições internacionais (boom de commodities) foram
favorecendo o país, o governo foi implementando uma agenda mais intervencionista e
redistributiva embora mantendo a condução de uma política macroeconômica ortodoxa.
Indubitavelmente o governo Lula foi favorecido pelo contexto econômico internacional
benigno, em que pese o contágio da crise financeira internacional de 2008. Também
contou com o foco dos Estados Unidos em suas guerras no Oriente Médio. Já Dilma,
frente a um cenário internacional menos favorável, com acentuada piora nos termos de
troca do país, adotou políticas mais vigorosas que se afastaram do figurino mais
convencional, rompendo com o reformismo fraco lulista. Na transição do primeiro para
o segundo mandato, Dilma inverteu radicalmente a orientação das políticas, partindo
para um forte ajuste fiscal e a ortodoxia monetária, o que acabou minando os poucos
focos de sustentação política com os quais contava na sociedade. A conspiração política
que redunda no impeachment acaba ocorrendo com surpreendente facilidade,
alimentada pelos efeitos da Operação Lava Jato – organizada pelos interesses dos EUA
- e pela trajetória errática das políticas econômicas. O impeachment de Dilma
interrompe o projeto desenvolvimentista do PT, com seus erros e acertos, permitindo a
emergência de novos atores políticos.

Com o governo recuando em 2013, se restaura o terrorismo econômico


financeiro e a aceitação do “ajuste fiscal” como alternativa para atrair o empresariado

42
após a reeleição em outubro de 2014. Durante 2015, a reversão do ciclo econômico se
afirma e se aprofunda, instaurando acentuado caos político que se traduz no processo
em curso de afastamento da Presidente, alçando ao poder o vice-presidente Michel
Temer do PMDB sem qualquer tipo de consulta popular. Depois de manobras da
Operação Lava-Jato, Lula é preso e tirado da disputa eleitoral de 2018 que culmina na
vitória de Bolsonaro, radicalizando o desmonte do Estado, a desnacionalização e a
desindustrialização, aumentando a miséria e a pobreza, bem como privatizando o
patrimônio que se consegue.

Destaca-se nesse processo a cegueira generalizada sobre as guerras híbridas


realizadas pelos Estados Unidos contra o Brasil desde 2013, articulada com
financiamento a organizações sociais, apoio a investigações da Lava-Jato, articulação
política no Congresso e STF, além da grande mídia monopolista. Uma contra-revolução
reacionária que, sem a devida resistência e clareza das forças progressistas, levou ao
desmantelamento de quatro eixos produtivos essenciais (petróleo e energia, setor naval,
construção civil e setor nuclear) com a Operação Lava-Jato, levando ao impeachment de
Dilma em 2016, o retorno do ultra-liberalismo no governo Temer e depois Bolsonaro,
eleito em 2018, destruindo os mecanismos e capacidades do Estado de planejar e liderar
um processo de transformação econômica que leve em conta os interesses populares e
nacionais.

A verdade é que o Brasil começou a emergir como uma ameaça à hegemonia


dos Estados Unidos na América Latina. E com o Pré-Sal, tratava-se da possibilidade
real dos possíveis 300 bilhões de barris de petróleo viesse a aumentar a inserção
internacional do Brasil, se transformando numa potência na América do Sul. A
descoberta do Pré-Sal foi vista como uma ameaça aos interesses norte-americanos de tal
forma que rapidamente foi reativada a IV Frota de sua Marinha dos EUA, passando a ter
navios patrulhando o Oceano Atlântico.

Com os governos petistas, o Brasil passou a ameaçar cada vez mais os interesses
norte-americanos por seu maior protagonismo em nível global (ONU, BRICS, IBAS,
FAO, OMC, Banco dos BRICS, maior autonomia em torno dos interesses nacionais
com países da Europa, Oriente Médio, África e Ásia) e regional (Mercosul, CELAC,
UNASUL, entre outros). Também passou a destoar dos interesses norte-americanos a
política de conteúdo nacional e a reaparelhagem do setor de defesa nacional,

43
desmontada durante a década de 1990. No tabuleiro mundial, os golpes institucionais no
Brasil fazem parte de uma estratégia dos Estados Unidos para derrotar governos mais
desenvolvimentista da América Latina, saquear riquezas e repactuar toda a América
Latina para uma estratégia de contenção da China e da Rússia. O que estava em jogo ao
articular o golpe institucional era abortar uma possível transformação geopolítica
regional e global com a recente ascensão do Brasil, reverter as políticas de defesa das
empresas nacionais e promover a abertura aos bens e capitais estrangeiros, inclusive
para explorar o petróleo do pré-sal. Assim como os Estados Unidos sabotaram o
governo Vargas na década de 1950, o governo Geisel na década de 1970, o governo
Lula e Dilma também despertou a ira dos Estados Unidos ao encaminhar um projeto –
leve e incipiente – de soberania e desenvolvimento nacional no Brasil.

No início de 2013, ocorre o vazamento de informações da NSA (Agência de


Segurança Nacional) pelo seu ex-técnico Edward Snowden, comprovando que o
governo norte-americano espionava centenas de membros do governo federal, do
Itamaraty, da Petrobrás e até cidadãos comuns. Veio a tona que a NSA e a CIA
desenvolveram uma espionagem sistemática em Brasília por meio de uma pequena ilha
de colonização britânica chamada Ascensão, a cerca de 2,5 mil quilômetros de Recife
(PE). De lá os técnicos da NSA coletaram e roubaram informações consideradas
estratégicas, tendo capacidade de interceptar cerca de dois milhões de mensagens por
hora, inclusive conversas telefônicas, e-mails e posts em redes sociais. A ilha abriga
estações de interceptação de sinais (singint) do programa Echelon, um avançado sistema
de inteligência que monitora em tempo real as comunicações de Brasil (principal alvo),
Argentina, Uruguai, Colômbia e Venezuela.

Pouco meses depois, ainda em 2013, começa a Operação Lava Jato. Levantando
a bandeira “contra a corrupção sistêmica”, implantou-se o caos políticos que levou ao
afastamento da presidente Dilma, o desmonte da Petrobrás, das grandes empresas de
engenharia nacional e do projeto de modernização da defesa do país. Do nada aparece
Sérgio Moro, um juiz de primeira instância com um volume enorme de informações
sobre a Petrobrás, logo depois dele ter freqüentado cursos no Departamento de Estado
os Estados Unidos em 2007, ter realizado em 2008 um programa especial de
treinamento em Harvard na Escola de Direito e, em outubro de 2009, ter participado da
conferência regional sobre “Ilicit Financial Crimes”, promovida no Brasil pela

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Embaixada dos Estados Unidos. Por meio do Ministério Público, sob o comando do
Procurador-Geral Rodrigo Janot, a Lava-Jato firma diversas parcerias de cooperação
internacional com o governo dos Estados Unidos, ainda pouco elucidadas. Janot e seus
procuradores chegam a participar de eventos no mínimo controversos, levando
informações estratégicas da Petrobrás e da Eletronuclear ao Departamento de Justiça
dos EUA em diferentes ocasiões.

Para a realização de tal golpe, os Estados Unidos contaram com a colaboração


de diversos atores: o mercado financeiro que passou a promover desde 2013 um ataque
especulativo permanente ao Brasil, com medo de uma política de redução da taxa de
juros; associações de empresários como Fiesp, Febraban, CNI, CNA, Fiesp, entre
outras, que articularam uma greve de investimentos no país; partidos de oposição
derrotados em 2014 e políticos envolvidos em denúncias de corrupção para apresentar
pedido de impeachment; os meios de comunicação liderados pela Rede Globo em
conluio com procuradores e delegados da Lava-Jato para manipular informações e
mobilizar a classe média tradicional contra o governo Dilma e o PT; o Poder Judiciário
– do Juiz Sérgio Moro até o STF – utilizando-se de expedientes ilegais na Lava-Jato e
sempre procurando legitimar a “legalidade” de todo o golpe; o Ministério Público
comandado por Rodrigo Janot; membros do Tribunal de Contas da União; o próprio
vice-presidente Michel Temer; alguns setores militares, cujo maior expoente é o
General Sérgio Etchgoyen; ONG’s com presença territorial financiadas por diversos
fundos como a National Endowment for Democracy, USAID, Open Society Foundation
(OSF), do bilionário George Soros, Freedom House, International Republican Institute
(IRI), sob a direção do senador John McCain; entre outros.

Além de Petrobras, a Operação Lava Jato atacou outro pilar da soberania


brasileira ao investigar sumariamente suspeitas de corrupção no setor nuclear brasileiro.
Em 2 de abril de 2015, dois meses após visita do Procurador-Geral Rodrigo Janot aos
EUA, o almirante Othon Luiz Pereira da Silva foi denunciado e preso, num dos
episódios mais sinistros e mal explicados da Lava-Jato. Othon recebeu em 1978 a
incumbência de iniciar os primeiros estudos para um submarino nuclear brasileiro e
liderou o Programa Nuclear Paralelo entre 1979 e 1994. Executado sigilosamente pela
Marinha, o projeto resultou no desenvolvimento da tecnologia 100% nacional de
enriquecimento do urânio pelo método de ultracentrifugação. Sem dúvida este é um dos

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maiores feitos de inovação da história moderna brasileira. Quando o Almirante recebe a
maior pena na Lava Jato com 43 anos de prisão – na prática, prisão perpétua,
considerando sua idade – é difícil imaginar crime maior de lesa-pátria. Afinal de contas,
não se trata apenas de inviabilizar o submarino nuclear, mas da sabotagem de todo o
projeto nuclear brasileiro. O Brasil tem uma das maiores reservas de urânio do mundo,
sendo um dos poucos detentores da tecnologia do seu enriquecimento. No Rio de
Janeiro estão as mais modernas ultracentrífugas do mundo, principalmente pelo trabalho
da Marinha de Guerra do Brasil. A produção brasileira de urânio é essencial para o
funcionamento de Angra I, Angra II e Angra III, que está com a construção paralisada e
sem previsão de recomeço. Com Angra III, o Brasil passaria a dominar a produção em
escala industrial do combustível nuclear, o que apenas os países que têm bomba atômica
possuem, além de competir no mercado global. O governo dos EUA se especializou em
dificultar o desenvolvimento do programa nuclear brasileiro desde a década de 1950.
Agora não é diferente. O programa nuclear brasileiro passou a ser considerado uma
ameaça aos interesses geopolíticos norte-americanos, especialmente pelo domínio sobre
submarino nuclear, inclusive o casco que estava sendo desenvolvido junto aos
franceses, a produção em escala do combustível nuclear e a modernização de sistemas
de controle e informação.

O alvo dos Estados Unidos não é apenas o programa nuclear brasileiro e o


PROSUB, mas todos os projetos estratégicos de defesa nacional, dentre eles o Sistema
Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON) do Exército Brasileiro, o FX-2
correspondente à aquisição de aviões de combate Gripen NG para a Força Aérea
Brasileira, desenvolvimento do satélite geoestacionário em parceria com a França, a
produção de mísseis, sistema de radares, lançadores de foguetes e a produção de drones.
É certo que existe uma grande incerteza sobre a continuidade destes programas, seja
porque a economia está se esfacelando, seja pela orientação política anti-nacional do
governo E o objetivo geopolítico dos Estados Unidos com o golpe não se restringe a
minar a capacidade de projeção do Brasil com o petróleo e a defesa nacional. A Lava
Jato – sempre em parceria com o governo norte-maericano – também desestruturou todo
o setor de infra-estrutura, engenharia e construção civil do país. Com o avançar da
Lava-Jato diversas obras de grande porte foram interrompidas, inclusive obras em
estágio avançado de execução, como as obras do COMPERJ, a refinaria Abreu e Lima
no Nordeste, diversas ferrovias, e muitos outras. Estaleiros por toda a costa brasileira

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vendo sendo fechados, tirando a autonomia nacional na produção de navios e controle
marítimo, cortando milhares de empregos e levando cidades inteiras ao caos.

Sob o manto do combate à corrupção, os interesses geopolíticos dos Estados


Unidos por meio da Lava-Jato levaram ao cerco contra a Odebrecht, que é considerada a
maior construtora da América Latina, com receita de R$ 33 bilhões em 2014, destaque
pela diversificação geográfica, com mais de 70% de sua carteira provenientes de
contratos no fora do Brasil. Além disso, trata-se de uma empresa que detém tecnologia
sensível em várias áreas do país como na petroquímica, na área de defesa, no submarino
nuclear, nas telecomunicações, nas construções de hidrelétricas, construção do míssil da
Aeronáutica, entre outros projetos. Sua importância estratégica está ligada com diversos
projetos estratégicos de suprema importância para a projeção soberana do Brasil.

Com Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022) se retoma a linha


de submissão aos interesses financeiros e geopolíticos dos Estados Unidos, promovendo
o desmonte do Estado, com privatizações e incapacidade de articular projetos de
desenvolvimento econômico e social. As medidas são tão drásticas que colocam em
risco a unidade territorial nacional.

Logo após o afastamento de Dilma, uma das primeiras leis aprovadas no Senado
foi a reformulação da Lei da partilha do Pré-Sal, tirando poderes da Petrobrás. Com o
impeachment, o governo Temer indica o tucano Pedro Parente para assumir a Petrobrás
e realizar um amplo programa de desmonte, desinvestimento, privatização em fatias da
estatal. Em setembro de 2016 um consórcio liderado pela canadense Brookfield chegou
a um acordo com a Petrobrás para comprar 90% da unidade de gasodutos Nova
Transportadora Sudeste (NTS), em negócio de US$ 5,19 bilhões. O acordo para a venda
da NTS, que tem cerca de 2,5 mil quilômetros de gasodutos no Sudeste do Brasil. Em
novembro de 2016 a Petrobras aprovou a venda da Liquigás para a Ultragaz, subsidiária
da Ultrapar, em negócio de R$ 2,8 bilhões, o que eleva fortemente a concentração no
mercado de gás de cozinha do país. A Liquigás operava em quase todos os Estados do
país e conta com 23 centros operativos, 19 depósitos e uma rede de cerca de 4,8 mil
revendedores autorizados. Além disso, desde a aquisição pela Petrobrás da Liquigás em
2004 por US$ 450 milhões da Agip do Brasil, até então uma empresa da gigante italiana
Eni, a Liquigás investiu fortemente em melhorias e inovações, expandindo sua
cobertura para atendimento de 100% dos municípios dentro de sua área de atuação,

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além da aquisição de novos botijões e aplicação de novas tecnologias. Com um lucro
líquido de R$ 114,3 milhões em 2015 (116% superior ao lucro de 2014) e vendas de 1,7
milhão de toneladas de gás por ano, a Liquigás era a empresa que regulava o preço do
GLP no país, permitindo que este seja mais barato para o consumidor, em especial para
a população mais pobre que precisa do gás de cozinha no seu dia a dia. Com sua venda,
a Ultragaz eleva a fatia de mercado para 50% do mercado nacional.

Com Temer e Bolsonaro foram seis anos de governos liberais e conservadores,


resultando no máximo de poder à burguesia estrangeiras e as velhas classes dominantes
locais, destruindo capitais estatais, médios e pequenos, com aumento do desemprego e
da informalidade, do subemprego e da miséria, aumentando a fome e o desespero do
povo. Bolsonaro está realizando a destruição do Estado como indutor do
desenvolvimento, fomentando a liberação indiscriminada de dezenas de agrotóxicos;
profundos cortes para programas de pesquisas e bolsas na área de ciência e tecnologia;
desprezo pela cultura nacional; retrocesso total da política de reforma agrária;
criminalização dos movimentos sociais; “abertura” do setor financeiro aos megabancos
estrangeiros; a destruição dos bancos públicos; privatização acelerada e radical; abertura
comercial radical e unilateral; destruição gradual da Petrobrás e da Eletrobrás;
privatização e destruição da Previdência Pública; privatização do SUS e descontrole das
epidemias; forte redução de direitos trabalhistas; concessão de rodovias, ferrovias e
portos em larga escala; concessão de terrenos da Marinha; autonomia do Banco Central
e dos banqueiros em exercer a política monetária; tentativa de cessão de bases aos
Estados Unidos; a venda da Embraer e a fragilização dos projetos estratégicos;
alinhamento com os Estados Unidos; saída disfarçada dos BRICS e desarticulação do
Itamaraty. Bolsonaro segue alinhando aos interesses dos Estados Unidos que é
encaminhar o Brasil para uma situação de caos político, destruição das cadeias
produtivas mais relevantes, perda de capacidade em se projetar no cenário mundial e
fortalecimento de um modelo econômico baseado no dependentismo e no rentismo.

Os golpes articulados pelos Estados Unidos visam bloquear as iniciativas


próprias de planificação da economia brasileira, quando reformas apontam para maior
centralização dos recursos estratégicos sob o controle do Estado. A política varguista,
janguista, geisista e dilmista levou ao inevitável e involuntário enfrentamento com os
Estados Unidos. Qualquer iniciativa industrializante e soberana é considerada “inimiga
da democracia”, conforme os critérios do Pentágono e do Departamento de Estado. As

48
vias de desenvolvimento capitalista nacional passam a adquirir características socialistas
quando são realizadas por alguns anos. Medidas desenvolvimentistas ameaçam o pacto
de dominação burguês, por isso até mesmo a expansão do capitalismo é realizada sem
muita vontade, tendo que ser realizado apesar da burguesia. A burguesia se une pelo
medo de restrições a propriedade privada dos meios de produção, trabalhadores no
governo e socialismo. Mesmo que isso resulte em ser engolida pelos capitais
transnacionais, gerando monopolização, desemprego, violência e fome. Se o Estado
ameaça a incontrolabilidade do capital, ele passa a exigir que o Estado se retire da
economia, privatizando e destruindo cadeias produtivas, algumas essenciais para
qualquer desenvolvimento.

Três ciclos (1930-1959, 1968-1980 e 2003-2013) que avançaram com sucesso


no capitalismo de Estado à brasileira e foram boicotados pelos Estados Unidos e classes
dominantes locais. Agora, com a eleição de Lula em 2022, se trata de construir um
quarto ciclo que, desta vez, não sucumba diante da ofensiva das classes dominantes
estrangeiras e nacionais, tendo como foco a construção da força da organização e
mobilização popular.

2.2.3. ANÁLISE COMPARATIVA

- Brasil e Índia têm pouco em comum do ponto de vista das suas formações históricas e
culturais. Porém, Brasil e a Índia são países que poderão alcançar projeção
internacional, podem estreitar suas relações, estabelecer acordos comerciais compatíveis
de longo prazo para o desenvolvimento de suas economias. Existem diferenças em suas
estruturas produtivas, porém complementaridades. A infra-estrutura indiana é bastante
semelhante à brasileira em termos de portos, sistemas de transportes, energia e outros.

- Índia e Brasil mantém linhas variadas de capitalismo de Estado. Na Índia de forma


contínua e gradual, enquanto no Brasil é cíclica e caótica. Apenas nos últimos 33 anos,
o Brasil passou dos governos liberais de Collor e FHC na década de 1990, se aderiu a
uma gestão econômica através de privatizações de empresas estatais, abertura
econômica e financeira ao exterior, questionamento do papel do Estado, para governos
nacionalistas do PT, com Lula e Dilma, com adoção estratégia de construção de um
capitalismo de Estado, depois um novo ciclo ultra-liberal com a ofensiva contra Dilma,

49
Temer e Bolsonaro, destruindo o consumo de massa, cadeias produtivas estratégicas e a
capacidade estatal na condução econômica. Na Índia, mesmo os governos mais
“liberalizantes” mantiveram os planos econômicas orientados pelo Estado, com
estratégias mais avançadas de desenvolvimento numa planificação de longo prazo. O
diferencial entre os dois países reside no fato do governo indiano ter mantido seu
planejamento de forma mais consistente.

- No Brasil, mesmo nos governos desenvolvimentistas dos governos PT, não houve
neles uma estratégia unívoca, tendo diversos elementos diferentes, contraditórios entre
si. Um pouco liberal-dependente, um pouco capitalismo de Estado. Mas, de forma geral,
a estratégia adotada nesses governos buscou estimular, via política de aumento real no
salário mínimo, aumento das transferências sociais e expansão do crédito, o crescimento
baseado no consumo de massa. Se faz um programa emergencial, mas quando se tenta
avançar em reformas mais amplas, não havia se acumula força social capaz de realizar
tal transição, sendo obrigado a recuar a políticas ortodoxas e sendo facilmente golpeado.
No Brasil, o problema não é quando o capitalismo de Estado é aplicado, mas quando é
derrubado e atrasado por anos, senão décadas, dificultando qualquer iniciativa de longo
prazo. Já o modelo de desenvolvimento econômico adotado pela Índia foi
paradoxalmente a mesma causa do aumento da desigualdade. O país apostou em grande
parte nos setores de tecnologia da informação, serviços e telecomunicações, o que
aumentou a prosperidade da Índia urbana. Mas, em contrapartida, a Índia rural, onde
vive cerca de 60% da população do país, foi mantida amplamente à margem dessa
prosperidade - limitada a atividades agrícolas de baixa rentabilidade e por uma força de
trabalho sem qualificação. Já no setor de serviços, por exemplo, no Brasil é dominante
seu uso para o consumo final, com baixo valor agregado, enquanto na Índia há destaque
para os serviços de apoio à atividade produtiva, portanto mais comercializáveis. No
setor industrial, a Índia vem conseguindo manter sem grandes choques a sua política
industrial nacional, enquanto no Brasil se desindustrializa intensamente nas últimas
décadas.

- Na Índia, se firmou pela força militar, econômica e política os pilares dos interesses
nacionais, independente dos governos. O programa nuclear indiano, por exemplo,
elevou a maior capacidade nacional em defender seus interesses, enquanto o brasileiro
foi e segue bloqueado pelos Estados Unidos. A tragédia geopolítica do Brasil é a ser

50
potencial ameaça permanente aos Estados Unidos, seu rival natural no hemisfério. Por
isso, usam todo seu poderio para que os governos brasileiros sejam submissos e não
tenham planos de desenvolvimento soberano. O melhor cenário é o caos que dificulte a
realização de qualquer projeto nacional. A formação de capital e o soberano
desenvolvimento tecnológico-militar são vistos como ataques diretos a sua dominação
geopolítica e um obstáculo as empresas norte-americanas. Qualquer iniciativa que vise
romper os monopólios, a construção de um sistema de defesa moderno, política externa
autônoma, etc, faz com que se organizem ações coordenadas do império para
desarticular as forças políticas e sociais que levem a cabo processos de transformação
com vistas à emancipação nacional, usando meios legais e ilegais. Seu objetivo é
aprofundar a dependência externa para manter as velhas classes dominantes servis aos
interesses de Washington. Já a Índia passou a ser um país chave na contenção da
emergência de China e Rússia. Ao manter uma linha de capitalismo de Estado a Índia
não deve conseguir superar seus obstáculos ao desenvolvimento.

- As relações da Índia com os EUA são bem mais distensionadas do que com o Brasil.
A desconfiança entre EUA e Índia durante a Guerra Fria passou a ser transformado até
se tornarem parceiros prioritários, moldando novas relações econômicas e de segurança.
Para o Brasil, sua emergência significa intensificar a rivalidade regional com os Estados
Unidos. Para a Índia, significa intensificar as rivalidades regionais, especialmente com
China, Rússia, Irã e Paquistão. Isso faz com que, em relação ao Brasil, seja necessário
bloquear as tentativas de construção de um capitalismo que faça o mesmo que os
Estados Unidos fez para emergência como potencial regional e global. Em relação à
Índia, é possível ter maior “coexistência pacífica” com o projeto de desenvolvimento
nacional, agora como parte da estratégia de contenção da China.

- O “capitalismo de Estado” não busca a criação de novo modo de produção em


sua formação social, apresentando, assim, limites severos para romper a dependência do
Norte. Mesmo assim, o capitalismo de Estado pode abrir o caminho para avanços rumo
à socialização da economia e adoção de sistemas políticos que garantam a continuidade
de projetos nacionais de desenvolvimento.

51
2.3. SOCIALISMO DE MERCADO

A terceira estratégia de desenvolvimento no Sul Global é representada pelo


Socialismo de Mercado, pelos países que estão em transição para um modo de produção
misto, combinando o modo de produção camponês e o modo de produção socialista
com o modo de produção capitalista. China e Vietnã estão à frente desta vertente, mas
havendo variações dela nos países socialistas remanescentes e experiencias de governos
democráticos na África e América Latina, com resultados variados. O “milagre” da
economia chinesa é visto como uma ilustração de um modelo de desenvolvimento
alternativo à ortodoxia neoliberal promovida por Washington. Também se assume
muitas vezes que o envolvimento econômico e político da China nos países do sul
global, particularmente nos vizinhos asiáticos, está criando uma nova ordem geopolítica
que desafiaria a dominação norte-americana.

O socialismo de mercado não é nem capitalismo e nem socialismo soviético. Ele


remonta as propostas da Nova Política Econômica da Rússia na década de 1920, passa
pelo projeto de reformas socialistas na Hungria e outras Repúblicas do Leste Europeu
na década de 1960 e 1970, ganha dimensão histórica na China com as reformas a partir
de 1978, depois nas reformas de mercado no Vietnam e no Laos na década de 1980, em
medidas aplicadas por Cuba desde a década de 1990, mas especialmente a partir de
2013. Também passa por referência para diversos governos populares pelo mundo.

O economista polonês Oscar Lange dizia que é a vontade humana, na sociedade


organizada, em vez da livre espontaneidade das leis econômicas, que dirige, de modo
mais ou menos consciente, o desenvolvimento da economia. Na década de 1940, Lange
falava que a planificação econômica seria um “traço essencial do socialismo” (LANGE,
1974, p. 21-35). Ele ficou conhecido nos anos 1950, por defender que o
desenvolvimento da informática permitiria a existência de um supersistema central de
planejamento, que poderia evitar crises cíclicas e a anarquia capitalista. Talvez
influenciado pela NEP (Nova Política Econômica) na Rússia ou pelas formas
emergentes de planejamento econômico aplicado em diversos países, Lange acreditava
que, no período de transição socialista, seria possível a existência de formas não
socialistas de produção, ao lado do setor majoritário e dominante socialista. Lange
acreditava que uma grande centralização estatal na administração e no planejamento

52
seria uma característica do início do desenvolvimento socialista. Ele pensava que isso
seria necessário para a transformação revolucionária da sociedade, liquidando as
relações capitalistas de produção, estabilização de um novo poder nacional e
industrialização rápida. Porém, a partir do debate sobre cálculo econômico e tendência
de estagnação do socialismo soviético, surgiu a elaboração do modelo de socialismo de
mercado. Nesse modelo, combinou-se a influência do mercado, contribuindo para a
suposta alocação eficiente dos recursos, com a regulação emanada da planificação.

Segundo Lange (1969, p. 110-119), a economia socialista dispõe de duas


grandes vantagens, influenciando positivamente a alocação de recursos. A primeira
vantagem é a distribuição de renda com o objetivo de alcançar o máximo bem-estar
social. Em contraste, a economia capitalista tem uma distribuição de renda já
previamente condicionada pela propriedade privada dos meios de produção. A segunda
vantagem é a incorporação de todos os fatores econômicos no cálculo dos custos de
produção, considerando, por exemplo, a educação, segurança e saúde dos operários nos
processos produtivos. Em contraste, no capitalismo, o empresário só considera os seus
custos privados de produção. Lange propõe que, nas condições do modelo de socialismo
de mercado, conforme as diferentes circunstâncias históricas dos diversos países, ainda
existiriam diversas formas (nacionais, municipais, cooperativas etc.) de propriedade dos
meios de produção. E os bens produzidos tornam-se, na distribuição, propriedade
privada dos consumidores. Nesse contexto, se a produção é de mercadorias, em razão da
pluralidade de proprietários dos produtos, então se mantém a lei do valor na economia
socialista (LANGE, 1974, p. 12-13). Obviamente, a lei do valor é acompanhada das leis
da circulação monetária, porque a produção de mercadorias exige a troca por moeda.

Outra contribuição é de Alec Nove, professor de economia na Universidade de


Glasgow e uma notável autoridade na área de história econômica russa e soviética.
Publicou diversos livros, como Stalinismo e depois (1976), Economia Política e
Socialismo Soviético (1979), Glasnost em ação (1989) e Estudos em Economia e
Rússia (1990), História Econômica da URSS (1992) e Economia do Socialismo
Possível, publicado pela primeira vez em 1983 e talvez seu livro mais influente. Neste
último livro, Nove pretende elaborar “um tipo de socialismo viável, possível, alcançável
no período de vida de uma criança já concebida” que ele chama de modelo de
desenvolvimento socialista com mercado.

53
Alec Nove apresenta um modelo de socialismo muito influenciado pelas ideias
da NEP, de Oscar Lange, bem como pelas experiências reformistas do Leste Europeu,
com destaque para Polônia, Hungria e Iugoslávia. Nove aponta que a propriedade social
deveria predominar e o principal meio para atingir esse tipo de socialismo seria o
mercado, formando uma economia mista, onde opera a regulação mercantil, o controle
de preços atentaria contra o próprio sistema ao destruir o mercado.

Em sua proposta de modelo socialista de mercado, Nove (1989, p. 307-318)


apresentou a seguinte estrutura de empresas: 1. empresas estatais centralizadas; 2. setor
socializado: empresas estatais ou de propriedade social, com direção autônoma perante
o Estado, mas prestando contas aos trabalhadores; 3. cooperativas; 4. pequenas
empresas privadas; 5. atividades individuais, a exemplo de jornalistas free lance e
artistas. Os bancos e as grandes empresas, inclusive monopólios, por características
técnicas, economias de escala e necessidades organizacionais deveriam ser controlados
e administrados pelo Estado. Os serviços de eletricidade, telefones, correios, transportes
públicos, além de complexos petrolíferos e petroquímicos são exemplos de atividades
de empresas que deveriam ser estatais centralizadas. Nas empresas socializadas, a
administração prestaria contas aos trabalhadores, mas esses não seriam proprietários dos
meios de produção, enquanto, simultaneamente, o Estado assumiria algumas
responsabilidades restritas. Com a titularidade da propriedade, as cooperativas teriam
liberdade empresarial. Os negócios privados existiriam nas pequenas empresas, com
limites claros para o número de empregados, ou valor dos ativos, ou restrições conforme
o tipo de setor econômico. Esses pequenos proprietários não poderiam obter renda sem
o concurso do seu próprio trabalho.

A direção central, através da planificação, se ocuparia dos grandes


investimentos, além do monitoramento dos investimentos descentralizados para evitar
projetos duplicados ou equivocados. O centro ainda definiria as regras para os setores
livres, deteria algumas funções no comércio externo e deveria propor às assembleias
eleitas os planos de longo prazo para mudanças técnicas e condições de vida. A gestão
da política econômica e das políticas industriais e as ações regionais seriam funções do
centro dirigente. Deveria haver punição para os erros e fracassos, através de multas,
falências e até a própria destituição dos administradores.

54
Entre os requisitos mais importantes para estabelecer um sistema socialista
marxista estavam os dois que diziam respeito à abolição da propriedade privada e à
substituição do livre mercado capitalista pelo planejamento central. Na verdade, era um
requisito único, o primeiro levou ao segundo, pois quando todo bem é propriedade do
Estado, não há necessidade de mercado para compra e venda. Entretanto, um sistema
assim, apesar de ter alguns benefícios no curto prazo, não consegue criar um sistema
social superior ao capitalismo. A estagnação dos monopólios estatais apresenta o
mesmo problema dos monopólios capitalistas – falta de competição, estancamento das
forças produtivas, desequilíbrios entre os setores da economia, dentre outros. Em países
menos desenvolvidos, este não leva ao desenvolvimento das forças produtivas.

Em vez de uma única forma de propriedade estatal seria preciso combinar


propriedades municipais, regionais e nacional, além de um destacado papel para
cooperativas em alguns ramos de produção, sem excluir a propriedade privada. O
socialismo de mercado existe sob coordenação estatal uma coexistência de uma grande
variedade de escalas, técnicas, organizações e relações de produção. Vários tipos de
unidades de produção convivendo em competição e cooperação. A pior opção seria a
tentativa de socialismo sem mercado. A troca mercantil seria indispensável, impõe-se
como necessidade incontornável, apesar de alguns de seus efeitos serem deletérios à
causa socialista. Mas, é viável uma organização da economia que conta com o mercado
e, ao mesmo tempo, resiste aos malefícios mercantis, assegurando que as pessoas
tenham espírito público e solidariedade?

As contribuições de Lange e Nove encararam o balanço sobre a ineficiência e os


desequilíbrios do socialismo soviético, sendo entusiastas de reformas socialistas de
mercado. Em seu livro, Nove diz que fez palestras sobre as reformas de mercado no
Leste Europeu para o Partido Comunista da China no final da década de 1970, relatando
que o ambiente era tomado pelos debates em torno de alternativas inspiradas pela NEP.
Não seria exagerado dizer que estas ideias heterodoxas sobre socialismo com mercado
têm sido implementadas com muito sucesso na China desde 1978, no Vietnã e no Laos
desde 1985, bem como sendo referência para países que buscam o desenvolvimento
econômico e social.

55
2.3.1. O caso da China

Após a revolução em 1949, os comunistas chineses trataram de organizar o


Estado. Com o fim da guerra na Coréia, adotam o método de industrialização da URSS
na década de 1950. A tarefa principal era o desenvolvimento da indústria pesada. A
industrialização da China se realiza através da construção de empresas equipadas com a
técnica moderna e da reconstrução de uma série de grandes usinas. A República Popular
da China recebe da União Soviética e dos países europeus de democracia popular
diversos equipamentos e experiência técnica, da sua experiência de organização do
trabalho e da produção em grandes empresas socialistas. No decurso de alguns anos do
primeiro plano quinquenal de desenvolvimento da economia nacional da República
Popular da China (1953-1957), foi ampliada a base siderúrgica no Nordeste, iniciada a
construção de duas novas bases siderúrgicas na Mongólia Interior e na China central, a
construção de uma série de novas e a ampliação de velhas estações elétricas, minas de
carvão, campos petrolíferos, empresas de metalurgia não ferrosa, extração de metais não
ferrosos, indústria química e indústria de materiais de construção, bem como de uma
série de fábricas de construção de máquinas e empresas de indústria leve. No período do
primeiro plano quinquenal, foi criada a base inicial da industrialização socialista. A
produção industrial global, em 1957, tinha aumentado em 141% com relação a 1952 e
superava em 21% o nível prefixado pelo primeiro plano quinquenal. Os ritmos anuais
médios de crescimento da produção indústria representaram 19,2% ao invés de 14,7%,
como se previa no plano. Durante os anos do quinquênio, a produção dos meios de
produção aumentou em 3,2 vezes, a produção de máquinas em 4 vezes, a produção de
objetos de consumo em 1,9 vezes.

No decurso do plano quinquenal, foram postas em construção mais de 10 000


instalações industriais, incluindo 312 empresas de metalurgia ferrosa, 599 estações
elétricas, 600 minas de carvão, 22 empresas da indústria de petróleo e 637 da indústria
química, 1921 empresas de construção de máquinas e de elaboração de metais, 613
empresas têxteis e outras. Entre as empresas em construção, figuravam 921 grandes
instalações industriais, ou seja, 227 a mais do que fora traçado pelo plano. Ao término
de 1957, haviam sido entregues a exploração, integral ou parcialmente, 537 grandes
instalações industriais. Nos unos do primeiro plano quinquenal, construíam-se na China,
com a colaboração da União Soviética, 166 grandes empresas, das quais, ao término de

56
1957, 68 entravam integral ou parcialmente em ação. Durante os anos do quinquênio, a
potência produtiva aumentou nas seguintes quantidades: ferro gusa, em 3,39 milhões de
toneladas; aço, em 2,82 milhões de toneladas; laminados, em 1,65 milhões de toneladas;
carvão, em 63,76 milhões de toneladas; petróleo, em 1,3 milhões de toneladas; etc..

Neste período, a centralização dos meios de produção no Estado também


favoreceu a unidade nacional e a construção política do país. Como resultado do rápido
crescimento da produção industrial, mudou a estrutura da produção industrial na China:
a parte da indústria (incluindo a artesanal) na produção global da indústria e da
agricultura aumentou de 41,5% em 1952 para 56,5% em 1957. Durante o primeiro
plano quinquenal, na China, foram produzidas 16,6 milhões de toneladas de aço, ao
passo que, durante 49 anos (1900/1949), a produção de aço não totalizou mais do que
7,6 milhões de toneladas. A indústria chinesa assimilou a produção de uma série de
importantíssimos tipos de nova produção, como geradores, equipamento metalúrgico e
extrativo, novíssimos tipos de tornes, autoveículos, aviões a jato, que a China no
passado não podia produzir, foi iniciada parcialmente a produção de grandes laminados
de aço e de ligas de aço de alta qualidade.

Porém, este modelo de desenvolvimento passou a entrar em crise com o aumento


dos conflitos entre China e URSS, conhecido como Cisma Sino-Soviético que rachou o
Campo Socialista. Com a morte de Stálin em 1953 a relação entre URSS e China
começaram a degringolar. O novo governante soviético fez severas críticas ao
antecessor e promoveu o que se convencionou chamar de "desestalinização". Kruchev
idealizou e colocou em prática a "doutrina de coexistência pacífica", que preconizava o
caminho pacífico para se alcançar a revolução comunista pelo mundo. Ou seja, a
política externa soviética passou a defender estratégias de construção do socialismo sem
recorrer à violência revolucionária. As diferentes visões chinesa e soviética da
colaboração entre ambos provocariam um conflito crescente. Enquanto a União
Soviética pretendia tratar a China como mais um dos seus satélites, os dirigentes da
República Popular desejavam um tratamento em condições de igualdade.

Apesar dos conflitos crescentes com a URSS, no final de 1958 foram atingidos
na economia nacional grandes êxitos. O volume da produção industrial global aumentou
em 65%, a produção de aço em 66%, a produção de ferro gusa, carvão e tornos cresceu
em mais de duas vezes com relação ao período correspondente de 1958. A fim de criar

57
uma sólida base para a industrialização socialista do país, foi traçado no segundo plano
quinquenal continuar a construção de empresas metalúrgicas, assegurar o rápido
desenvolvimento da construção de máquinas, acelerar o desenvolvimento das indústrias
de energia elétrica, de carvão e de materiais de construção, bem como adiantar a
construção das indústrias petrolífera, química e de rádio, que são as menos
desenvolvidas.

Após a Segunda Crise do Estreito de Taiwan, Khruschov, temendo um confronto


armado com os Estados Unidos da América devido à questão de Taiwan, em junho de
1959, revogou a promessa de fornecer tecnologia necessária para a construção de
uma bomba atômica pela China e em 1960, ordenou a saída de todos os seus
especialistas estabelecidos na China e cancelou os projetos de cooperação técnica. Esses
fatores geraram muita desconfiança dentro da China e fez com que os dirigentes
chineses se afastassem da URSS. Em 1962, a ruptura se aprofundou quando a União
Soviética, com base no princípio da coexistência pacífica, adotou uma postura
de neutralidade em relação à Guerra sino-indiana. Estas disputas territoriais alcançariam
o seu momento de tensão máxima no incidente da ilha de Zhenbao ("Damanski"
em russo) no rio Ussuri, onde houve uma batalha entre tropas chinesas e soviéticas pelo
controlo do ilha. Este confronto armado iria ser o ponto mais baixo nas relações entre os
dois países, e chegou-se a temer a possibilidade de uma grande guerra entre as duas
potências comunistas.

Assim, a República Popular da China, num dos momentos mais difíceis da sua
história, via-se ainda mais isolada internacionalmente ao não contar nem com o apoio
do Ocidente nem com o do bloco soviético. Mao Tsé Tung acreditava que cada vez mais
o Partido Comunista da URSS enveredava pelo caminho errado e que essas mudanças
no caráter do Partido acarretariam transformações na política do campo socialista e no
futuro da luta do proletariado mundial.

Foi neste contexto que a China colocou em prática uma nova política de
desenvolvimento econômico e social, que foi oficialmente chamada de o Grande Salto
para Frente, iniciada em 1958. Foi colocado como tarefa mais importante prosseguir a
construção industrial com base na indústria pesada, fazer avançar a reconstrução técnica
da economia nacional, criar uma sólida base para a industrialização socialista do país.
Por um lado, o rápido crescimento da indústria (aço) e da agricultura (grãos), por outro

58
lado, a realização do comunismo o mais rápido possível. Estes são do ponto de vista
"um grande dois públicos" (um é em grande escala, o outro é propriedade pública), a
busca da elevação compulsória da propriedade por todo o povo. A comunidade popular
é considerada a organização ideal para este fim.

O Grande Salto tinha como premissa a mobilização de todos os recursos


humanos da China, enfatizar a "iniciativa subjetiva" do povo, em particular da massa
camponesa, que constituía cerca de 80% da população, a fim de acelerar o
desenvolvimento econômico e a igualdade entre todos num curto período de tempo. O
núcleo do projeto desenvolvimentista era a auto-suficiência e a auto-sobrevivência, ou
seja, cada vilarejo deveria produzir os alimentos e os bens necessários.

Apesar de ter alguns avanços na ampliação da industrialização em grandes


setores da economia, o Grande Salto Adiante criou desiquilíbrios insustentáveis. As
minas de carvão que se proliferaram por todo o país arruinaram os campos férteis.
Diversos casos de contaminação pela instalação de pequenas fábricas de aço construídas
no quintal de casas. O cultivo irregular de determinados grãos e alimentos ocasionaram
maior infertilidade das terras que, conjugado com a construção de represas sem o devido
planejamento e estudo técnico, se arruinou os solos, tornando-os imprestáveis para o
cultivo. Máquinas agrícolas careciam de peças de reposição, entre inúmeros outros
problemas.

Os desiquilíbrios econômicos do Grande Salto abriram caminho para uma


autocrítica por parte de Mao Tsé-Tung e o surgimento de uma dissidência dentro do
PCCh. Com apoio de partidários influentes, Liu Shaochi e Deng Xiaoping assumem a
condução dos assuntos internos. Mao Tsé-Tung tem seus poderes diminuídos. Em 1959,
Mao Tsé Tung deixou o cargo de presidente da República Popular da China e passou a
se dedicar ao trabalho de aperfeiçoamento dos quadros e das massas. O objetivo era
politizar ao máximo as massas para evitar que os integrantes do Partido estivessem
seguindo o caminho da rotina burocrática. Desse modo, em 1962 lançou-se o
Movimento de Educação Socialista, que foi uma campanha nacional de doutrinação
política e ideológica de “retificação” do partido visando afastá-lo da influência do
moderno “revisionismo kruchevista” e reavivar o socialismo no seio do Partido. Esse
movimento político foi a última tentativa de “retificação” dos quadros que seguiam a
“linha capitalista” antes da Revolução Cultural. Em 16 de maio de 1966, advertiu num

59
documento interno que o PCC estava repleto de revisionistas capazes de, a qualquer
momento, instaurar o capitalismo na China. Na Resolução dos 16 pontos - que foi o
documento que regeu a Revolução Cultural - a revolução tinha como objetivo identificar
e destituir os elementos que seguiam a “linha capitalista” e aqueles que difundissem a
ideologia burguesa na academia e na cultura.

Depois de conseguir o controle do Politburo, Mao lançou uma série de apelos às


bases do Partido, nomeadamente os Guardas Vermelhos e os jovens, no sentido de
expurgar a China do que considerava serem os restos do feudalismo e da burguesia. Por
trás do desencadeamento de um grande movimento de massa, visava-se a transformação
ideológica e cultural do país. Nos meses seguintes, foi elaborado um programa de
eliminação dos chamados 4 velhos de que padecia a China: as velhas ideias, a velha
cultura, os velhos costumes e os velhos hábitos. Para reger a Revolução Cultural foram
criadas várias organizações de massa, como comitês e grupos dentro das escolas,
instituições e fábricas. Esse processo contou com a participação dos guardas vermelhos,
os quais surgiram na cena política chinesa e passaram a exercer um papel de grande
importância no desencadeamento da Revolução Cultural. A Guarda Vermelha era
formada por estudantes secundaristas e universitários cuja origem era operária ou
camponesa, promovendo uma forte atividade de propagação da Revolução Cultural por
toda a China, incentivando o combate contra a reprodução de práticas ditas burguesas.
A ação cada vez mais radical destes grupos levou a multiplicação de disputas entre os
grupos. O caos traduziu-se no assalto e destruição do património cultural do país, com a
queima de livros, destruição de obras de arte, muitas sessões de auto-crítica. A
literatura, a filosofia e a arte tradicional chinesa foram declaradas decadentes e banidas
e substituídas por uma literatura e uma estética revolucionária, substancializada na épica
peça de balé Dong Fang Hong. Durante os anos da Revolução Cultural, a reeducação se
tornou uma prática largamente utilizada como instrumento de correção dos quadros do
Partido que haviam se burocratizado. Ex-funcionários do governo, escritores, médicos,
intelectuais, professores que “seguiam a via capitalista”, eram enviados para se
reeducarem através do trabalho produtivo e também receberem cursos de formação
política. Esses campos também receberam os guardiões da cultural – artistas, escritores,
intelectuais, atores e jornalistas. Os locais da reeducação se situavam no interior da
China, em aldeias onde não havia água encanada, sistema de esgoto e luz elétrica, ou
seja, os reeducados deveriam viver, comer e trabalhar como o povo. A dureza do

60
trabalho no campo e na fábrica estava ligada à idéia de aprendizado com as massas
através da “reeducação ideológica” pelo trabalho produtivo. A Revolução Cultural
impôs um novo ritmo de vida à população chinesa, onde a tentativa de construção do
socialismo estava diretamente associada à imagem de um “homem novo”, que serviria
ao povo e aprenderia com as massas para promover um verdadeiro processo de
transformação. Baseada nesta iniciativa de massas, a Revolução Cultural teve como
principal limitação a compreensão errônea da essência das relações de produção na
China. A consequência disso foi a não percepção de que as contradições dentro do
Partido e do aparato estatal eram oposições entre classes sociais, cuja existência está
ligada a não transformação das relações de produção capitalistas, e não relacionadas a
conflitos limitados a questões políticas. Como grande processo de retificação, a
Revolução Cultural Chinesa passou a ser lembrada como uma fase repleta de excessos e
marcada por sessões de autocrítica, expurgos partidários, humilhações em público,
espancamentos e pela reeducação, mas também teve papel na abertura de um novo
caminho, até pela negação de sua experiência singular de tentativa de construção do
socialismo na China. Porém, além de seus efeitos imediatos, é preciso compreender o
contexto geopolítico de então, com a Guerra dos Estados Unidos no vizinho Vietnam, o
acirramento dos conflitos fronteiriços com a URSS e a instabilidade da política regional.
Nesta situação, a Revolução Cultural inibiu qualquer iniciativa de invasão estrangeira,
pois a partir de 1966 até 1969 ela influenciou todo um movimento internacional (maio
de 1968 na Europa e Estados Unidos, panteras negras, lutas pela independência na
África, no Brasil com a Ação Popular (AP) com que que foi, provavelmente, a maior
mobilização de massas da história da humanidade.

No dia 27 de abril de 1969, seguindo as ordens de Mao, o Exército chinês


dissolveu as Guardas Vermelhas e sugeriu o fim da Revolução Cultural. No entanto, a
fase ativa da Revolução duraria pelo menos até 1971, quando Lin Biao, acusado de um
golpe fracassado contra Mao, fugiu e morreu em um acidente de avião. Já estava em
gestação uma nova estratégia. Em 15 de julho de 1971, o presidente Richard Nixon
tornou públicos os planos de uma viagem oficial à China, a convite do primeiro-
ministro Chu Enlai. Até então, nenhum presidente norte-americano viajara à China. A
viagem, com duração de uma semana, viria a se concretizar em 21 de fevereiro de 1972.
Mais tarde no mesmo ano, a Gangue dos Quatro (Chiang Ching, Zhang Chunqiao, Yao
Wenyuan e Wang Hongwen) volta ao poder e a Revolução Cultural continua. Com a

61
morte de Mao Tsé Tung, em setembro de 1976, o Bando dos Quatro foi destituído,
julgado e condenado pelos erros cometidos durante a Revolução Cultural. Começa o
período da reforma e abertura liderada por Deng Xiaoping. As condições internacionais
desfavoráveis se tornam favoráveis pela inusitada aliança com os EUA contra a URSS.
Enquanto se ganha tempo, se repensa o socialismo, entendido por meio do investimento
principal em indústria pesada. Se compreende que os processos de industrialização de
cada país no caminho do socialismo não podem ser uniformes, uma vez que dependem
de variadas condições internas e geopolíticas, dentre elas o grau de dependência
econômica, nível dado de desenvolvimento industrial, existência de recursos humanos e
naturais, relações de classe, nível cultural do população e condições históricas
específicas. Existem diversas formações sociais que podem produzir modos de
produção socialistas.

No final da década de 1970, a China vivia a fase final do período maoísta: a


planificação tornou-se rigidamente centralizada e a economia apresentou-se mais
complexa, havia excessiva concentração na indústria pesada, surgiram dificuldades no
transporte e insuficiência e má qualidade dos bens de consumo da população. A
organização industrial já apresentava queda da produtividade, emprego redundante,
salários congelados. Os trabalhadores e camponeses encontravam-se frustrados e
descontentes. Em 1981, o Partido Comunista da China declarou que a Revolução
Cultural foi "responsável pelo revés mais severo e pelas perdas mais pesadas sofridas
pelo Partido, pelo país e pelo povo desde a fundação da República Popular". Já estava
em marcha o programa "Boluan Fanzheng", que significa "eliminar o caos e voltar ao
normal" - que desmantelou gradualmente as políticas maoístas associadas à Revolução
Cultural e trouxe o país de volta à ordem.

Deng Xiaoping apresentou o conceito de construção do socialismo com


características chinesas, mas não perdia de vista a comparação com os países
desenvolvidos, sobretudo os Estados Unidos e o Japão. Para superar esse atraso relativo
da China, se fazia necessária a modernização econômica. Era preciso estabelecer um
sistema que opere com estabilidade, eficiência, competitividade e cooperação. Seria um
programa baseado nas condições nacionais reais.

Deng reviveu a máxima de Lênin para NEP: “Avançada tecnologia capitalista +


Estado da ditadura do proletariado”, defendendo fortemente a inovação, dizendo:

62
“Quanto ao desenvolvimento da ciência e das tecnologias, quanto mais altas e novas,
melhor e mais contentes ficaremos. Em nosso esforço para concretizar a modernização,
o ponto chave é elevar o nível de nossa ciência e tecnologia. Devemos exigir um estilo
de trabalho realista ou revolucionário. Isso nos ajudará a transformar ideais elevados em
realidade, passo a passo”. Em 1982, ele disse: “No domínio das tecnologias, seremos
bons em aprender; em particular, devemos ser bons em inovar”. As reformas propostas
por Deng consistem na adoção de novos e inexplorados rumos. O Estado deveria ser
reorientado para liderar o esforço de modernização econômica, no sentido específico de
favorecer, com incentivos e proteção, a atração de capitais privados estrangeiros e,
simultaneamente, preservar determinada presença estatal direta na esfera produtiva. A
aposta e a confiança nos efeitos estruturais e positivos da integração com o mercado
mundial levou à política de portas abertas e de estreitamento das relações com o Japão e
o Ocidente, sobretudos os Estados Unidos.

No início das mudanças, argumentava-se de que haveria um limite para as


mudanças. Assim, as reformas não poderiam subverter os quatro princípios da
revolução, a saber: socialismo, ditadura democrático-popular, direção do PCC e
marxismo-leninismo-maoísmo. Em 1980, Deng expôs as três principais tarefas
estratégicas para a década que se avizinhava: i) luta contra o hegemonismo das
superpotências; ii) reunificação nacional, sobretudo a volta de Taiwan à China; e iii)
aceleração da construção econômica. Os quatro trabalhos seriam: i) reforma estrutural
da administração e revolucionarização dos quadros, com maior preparação cultural e
profissional; ii) desenvolvimento do espírito socialista; iii) combate aos delitos,
sobretudo na economia; iv) retificação do estilo de trabalho e consolidação orgânica do
PCC, a partir dos novos Estatutos. Dez princípios orientariam a gestão da economia: i)
política de desenvolvimento da agricultura, inclusive contando com avanços científicos;
ii) fortalecimento da indústria leve e reajuste da indústria pesada; iii) consumo eficiente
da energia e fortalecimento das indústrias de energia e de transportes; iv) transformação
técnica nas empresas; v) organização econômica com base em grupos de empresas; vi)
elevação dos investimentos na construção; vii) política de portas abertas para a
economia internacional e reforço da auto-sustentação; viii) reforma da estrutura da
economia e maior iniciativa dos vários setores; ix) elevação cultural e científica dos
trabalhadores e maior progresso da ciência e da tecnologia; x) prevalência da orientação

63
geral de “tudo para o povo”, vinculando economia e condições de vida das massas
(POMAR, 1987, p. 168-169).

As reformas tiveram início do campo, dando aos 800 milhões de camponeses o


direito de escolher diferentes sistemas de responsabilidade pela produção agrícola, de
forma cooperada, familiar ou individual. O que se precisava para garantir insumos e
alimentos para 1 bilhão de pessoas era ampliar o incentivo aos camponeses com a rápida
expansão da indústria leve, bens de consumo e serviços. A nova linha passou a visar o
crescimento de formas diversificadas de direito de propriedade. Passou a se introduzir
reformas com o objetivo de fortalecer o mecanismo do mercado, sempre com o
pressuposto que a propriedade pública deve permanecer dominante. E o motor deste
processo foram as empresas estatais consideradas de segurança nacional (indústrias
estratégicas ou chaves), como energia, defesa, telecomunicações, máquinas e
equipamentos, automotiva, tecnologias da informação, siderurgia, química, construção
naval e aviação, pesquisa e desenvolvimento. Elas começaram a se implantar uma
autonomia para negociar no mercado, para que viessem a se transformar em grandes
conglomerados, que pudessem liderar o processo de modernização.

Os comunistas reformistas chineses liderados por Deng Xiaoping inovaram na


condução da industrialização socialista a partir de 1978. Partindo uma base industrial
sólida e mais ou menos moderna construída entre 1949 e 1977, os chineses passam a
trilhar outro caminho que o soviético em condições de estabilidade interna e externa. Os
chineses concordam que a industrialização socialista cria a base material para o
desenvolvimento das formas socialistas de economia e a liquidação dos elementos
capitalistas, dando as formas socialistas de economia a supremacia técnica necessária
para derrotar inteiramente a formação capitalista. Porém, diferentemente da URSS, os
chineses buscaram um desenvolvimento gradual, partindo consolidar de indústrias leves
para mais complexas. Como um processo gradual – cujas condições para execução
nunca existiram na URSS – as reformas econômicas visaram primordialmente atrair
novas tecnologias e criar divisas por meio do comércio exterior, com processos de
mobilização de meios para o desenvolvimento da indústria que eram vistos como
incompatíveis com os princípios de um regime socialista. Com uma condição interna e
externa mais estável que a URSS, os chineses passaram a se abrir para o mercado de
capitais excedentes das potências capitalistas para solucionar o problema da acumulação
de meios para construção da indústria à custa de fontes externas. Buscam investimentos

64
externos para financiar os projetos de desenvolvimento industrial com estatais,
cooperativas, empresas privadas e mistas.

Após 14 anos do início das reformas, a viagem de Deng Xiaoping ao Sudeste


chinês desenvolvido, em 1992, após o fim definitivo da União Soviética, exorta à
utilização do mercado e das ferramentas capitalistas na construção do “socialismo de
mercado com características chinesas”. Deng usava a metáfora “vadear o rio, pulando
de pedra em pedra, deslocando-se de uma margem à outra”, a fim de justificar o
gradualismo das reformas de mercado. O certo é que, no decorrer do tempo, as reformas
graduais constituíram um acúmulo de mudanças parciais suficientes para mudar o todo.
As mudanças, de passo em passo, já trilharam mais do que o tempo de uma geração. A
acumulação quantitativa e gradual de reformas regressivas criou, ao longo do tempo, as
condições para a emergência de um patamar qualitativo “novo” na formação
econômico-social da China, com a prevalência de tendências e formas socialistas,
cooperadas, capitalistas e mistas.

Desde a reforma e abertura, a China desenvolveu vigorosamente indústrias de


mão-de-obra intensiva, participou do mercado internacional com produtos industriais de
baixa tecnologia, entrou nos elos de baixo valor agregado da cadeia industrial
internacional e, assim, integrou-se ao ciclo econômico internacional A partir de 2010, a
China passou a liderar o mercado mundial em alguns segmentos da indústria, como
máquinas e equipamentos elétricos e na química, e se posicionou como um dos
principais produtores em quase todos os demais segmentos industriais. O desempenho
da China não se restringiu apenas aos setores de média ou baixa intensidade
tecnológica. Ao contrário, progressivamente a China ampliou sua fatia dos chamados
bens de alta intensidade tecnológica (informática, equipamento de telecomunicações,
instrumentos médicos e ótica, aeronáutica e a indústria farmacêutica).

Isso se deve, além do fator político ligado ao Partido Comunista, ao consistente


investimento em tecnologia. Desde o início da década de 1980, o governo chinês vem
elaborando programas nacionais de ciência e tecnologia (C&T) que tem sido executados
ao longo de sucessivos planos qüinqüenais. As áreas prioritárias, objetivos e metas
desses programas foram sendo revistos e reorientados às diretrizes e aos objetivos
estratégicos do plano em vigor. Chama atenção o fato destes programas serem muitas
vezes implementados ao longo de dois, três ou quatro planos qüinqüenais. Apesar da

65
importância dos programas iniciados ainda nos anos oitenta, os fatos mais marcantes da
nova estratégia chinesa vieram com o 11º Plano Qüinqüenal (2006-2010), quando a
China mudou o foco de sua estratégia de crescimento, priorizando atividades orientadas
à inovação tecnológica no lugar da indústria e agricultura tradicionais. O Programa
Nacional de Médio e Longo Prazo para Desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia
(MLP) de 2006, cujo horizonte vai até o ano de 2020, é o grande instrumento desta
mudança, com ênfase na inovação nativa, no salto tecnológico em áreas prioritárias e já
com ambição de alcançar um protagonismo global. Mais recentemente, com o novo
plano qüinqüenal chinês (2011-2015), a ênfase dada a esta dimensão da estratégia
chinesa foi reforçada. Este novo plano qüinqüenal faz a emblemática proposta de passar
do 'made in China' para o 'design in China'. A China já é o principal exportador de
produtos manufaturados do mundo e também é o segundo fabricante de bens de alta
tecnologia do mundo. Contudo, apesar dos gastos em P&D da indústria de alta
tecnologia terem triplicado entre 2003 e 2008, o diagnóstico deste novo plano
qüinqüenal é que o país ainda apresenta um atraso quando se trata dos esforços de P&D
das empresas desses setores. Sua meta é deixar de ser uma plataforma de exportação de
grandes empresas multinacionais estrangeiras e, também das empresas nacionais, para
dar um salto qualitativo passando da imitação para a inovação, buscando a liderança
mundial apoiada na inovação.

Vale destacar que durante todo o processo de reformas, de 1978 até nossos dias,
a China manteve a característica leninista-stalinista em torno da natureza sistemática e
continuada do planejamento chinês e a capacidade de fazer políticas efetivas de seu
Estado nacional. A sistemática chinesa de formulação e implementação de planos
qüinqüenais confere ao seu planejamento, quer em termos gerais ou setoriais, uma
eficácia muito maior que países capitalistas. Em primeiro lugar, porque a cultura de
planejamento de longo prazo já está estabelecida e é uma rotina para todos os órgãos de
governo. Em segundo lugar, porque há continuidade nas ações e os novos planos dão
seqüência aos anteriores, sem as rupturas que comumente ocorrem na democracia
liberal. Em terceiro lugar, porque a implementação dos programas é favorecida pelo
grau de comando e controle que o Estado chinês possui sobre muitos dos atores
envolvidos, que em grande parte depende diretamente do governo (empresas estatais,
institutos federais de pesquisa, etc.) ou estão sujeitos a regras bem rígidas.

66
Theotonio dos Santos, num artigo chamado “O conselho de Pequim” de 2005
apontou algumas destas estratégias chinesas que levou ao crescimento de mais de 9%
por mais de 20 anos.

ao contrário de produzir pressões inflacionárias, diminuiu drasticamente o preço dos


produtos industriais e de muitos serviços no mundo. E apesar de ter produzido uma
pressão no preço das commodities, ao aumentar a demanda, este fenômeno não
conseguiu produzir uma pressão inflacionária mundial. Pelo contrário, o mundo vive
nos últimos anos (desde a década de 90) uma forte deflação mundial. [...] O êxito chinês
coloca sua economia e sua sociedade em um novo nível. Por sua dimensão e por sua
importância demográfica e histórica, a China não é uma pequena “ameaça” de
competição na economia mundial. Sua experiência econômica é um novo modelo? Cada
país tem sua especificidade institucional, cultural e socioeconômica da qual deve partir
para propor o desenvolvimento. Mas não há dúvida de que mais igualdade social, mais
democracia e mais utilização do Estado como unificador de políticas de crescimento e
desenvolvimento de recursos humanos podem ser definidos como as bases deste novo
consenso. Uma macroeconomia do crescimento com juros baixos, moeda relativamente
desvalorizada para aproveitar a expansão do mercado mundial, políticas públicas
austeras em seus gastos administrativos, mas generosas em seus gastos produtivos,
devem servir de referência para este novo consenso. Uma economia política micro e
macro, fundada numa visão institucional e social da economia, será outro elemento-
chave deste consenso8.

O economista Antônio Barros de Castro considerava que o desenvolvimento do


país asiático alterou radicalmente a economia mundial. Ele dizia: “existe na China uma
lógica econômica que não se dá por acidente”. Segundo o professor, é ingênuo pensar
que as empresas chinesas são competitivas apenas porque pagam salários baixos. Pelo
contrário, há toda uma estratégia em torno do baixo custo. Segundo ele, os chineses não
se preocupam em usar estados da arte da tecnologia, buscam unir soluções que garantam
eficiência e competitividade. Castro sempre destacava o papel crucial dos
“dragõeszinhos” na economia chinesa, a nova geração de empresas chinesas que
combinam alta tecnologia com processos de produção tayloristas que seriam os
principais agentes de deflação mundial.

Estas empresas “dragões multinacionais” são estatais, cooperadas, privadas e


mistas. Por mais que na década de 1990 estas empresas eram conhecidas por vender
bens baratos que tomaram conta do mercado mundial, elas se desenvolveram
rapidamente ao se tornar mais competitivas e se voltar para novas tecnologias. O que
começou como a estratégia das grandes empresas chinesas com a compra de tecnologia,

8
Disponível em https://waltersorrentino.com.br/2011/09/08/consenso-de-pequim-theotonio-dos-santos/

67
fazendo joint ventures, adquirindo participações minoritárias no exterior, passou a
desenvolver empresas que inovam na forma de produzir e vão tirando espaço e até
comprando empresas do Hemisfério Norte.

Tome qualquer lista das principais companhias chinesas e, por mais que elas se
distribuam por setores diferentes e tenham estratégias distintas, será fácil encontrar um
fator comum a seu sucesso internacional. Essas empresas têm se destacado graças a um
diferencial competitivo devastador: a capacidade de vender por preços "chineses", ou
seja, incompreensivelmente reduzidos. Não raro, um terço ou um quarto do preço
universal de um produto. Há 20 anos, o fenômeno estava restrito a quinquilharias de
baixa qualidade. Na última década, passou a incluir de computadores a pianos; de bens
de capital a motocicletas. Agora, vale também para automóveis.

Existe um mistério por trás do preço chinês. A resposta está, de início, numa abordagem
diferente do uso da mão-de-obra barata. Empresas ocidentais que levaram suas linhas de
produção para a China, dispostas a replicar o milagre do baixo preço, só conseguiram
resultados parciais. Por quê? Porque, na maioria dos casos, utilizam a força de trabalho
de baixo custo apenas no chamado chão de fábrica. Enquanto a típica multinacional
chinesa se vale dela em todas as etapas, inclusive na engenharia.

Outro diferencial é tecnológico, mas não sentido trivial. A empresa chinesa usa a última
tecnologia disponível em seu setor, mas também a penúltima, a anti-penúltima e até a
primitiva, o que exige muita engenharia. Nenhuma empresa ocidental combina
tecnologias assim. O que explica porque os chineses conseguem dar sucessivos tombos
nos custos e aumentar a diversidade dos produtos oferecidos. Como, na maioria dos
casos, são parcialmente estatais, muitas das multinacionais chinesas usam o acervo dos
institutos públicos de tecnologia com a maior liberdade. O caso clássico é o da antiga
Legend, fabricante de computadores que nasceu dentro da Academia Chinesa de
Ciência, e deu origem à Lenovo. Os cientistas transitavam de um lado para o outro com
a maior desinibição. Muitas inovações de institutos estatais chineses - às vezes ligados
ao complexo militar, quase sempre engajados em trocas de experiência e tecnologia
com centros de pesquisa do Ocidente - são repassados às empresas por valores que nada
têm a ver com os custos de mercado.

Outra vantagem que as empresas chinesas têm é a conexão íntima que existe entre elas.
A lógica econômica dos distritos industriais ou "clusterização", na China, foi levada ao
limite. Os clusters se espalham ao longo do Delta do Rio das Pérolas, região que
engloba Hong Kong, Macau e parte da província de Guangdong. Para ficar em três
exemplos, há em Leilu o cluster de bicicletas; em Huizhou, o cluster de DVDs; e, mais
importante, em Dongguan o cluster de computadores. Toda a cadeia de fornecedores
dessas indústrias está reunida nesses pólos. São clusters com mais de mil empresas cada
um. E há forte intercâmbio entre elas. É um sistema radicalmente diferente do just in
time, com componentes chegando de todas as partes do mundo. Nos distritos chineses,
cada empresa faz um pedacinho do produto final, mas todos trabalham lado a lado,
pensando no produto final. Este fator, isoladamente, já garante bicicletas, computadores
e DVDs de 10% a 20% mais baratos. Hoje está claro que o grande diferencial chinês
provém não da criação de tecnologias, mas da capacidade de barateá-las drasticamente.
Quando um fabricante chinês consegue reduzir o preço de um aparelho de DVD de 300
para 30 dólares, ele passa a ser capaz de vendê-lo não só na China, mas também na
África, na América Latina e no restante da Ásia. Uma das características da

68
internacionalização chinesa foi transformar nichos em mercados de massa, vendendo
produtos supostamente para públicos segmentados por uma fração do preço universal.

Castro acreditava que, na medida em que o modelo chinês de produção tem


êxito, ele se propaga para o mundo. Estamos caminhando para um "sistema mundial
sinocêntrico" de onde derivam demandas e ofertas radicalmente diferentes. “A China
está criando soluções que vão se tornar universais. Está fazendo hoje o que os Estados
Unidos fizeram na virada do século 19 para o século 20".9

Elias Jabbour, um dos principais especialista em China no Brasil, vem


desenvolvendo uma importante contribuição no debate e nas formulações sobre a
economia política chinesa. Jabbour aponta que o modo de produção socialista
dominante na China possui uma “capacidade do Estado atuar na economia é
quantitativamente maior e qualitativamente superior do que o verificado no capitalismo.
O aumento da produtividade das estatais foi acompanhada pela maior coordenação
estatal. Elias aponta que a crise financeira asiática de 1997 acelerou a implantação de
novos marcos institucionais que se completariam com a formação, em 2002, da State-
Owned Assets Supervision and Administration Comission (SASAC).

Ao lado de um grande pacote fiscal transformado no Programa de Desenvolvimento do


Grande Oeste (1999), ocorreu um intenso processo de fusões e aquisições no setor
estatal da economia levando a formação de 149 conglomerados empresariais localizados
nos setores-chave da economia, tornando-se o chamado “núcleo duro” da economia
chinesa. Um novo e centralizado “grande capital estatizado” emerge desde então. As
empresas desse grupo – apesar de sua drástica redução – tornaram-se mais importantes,
mais intensivas em capital e tecnologia e mais lucrativas em relação ao setor privado.
Não é exagero afirmar que a combinação entre coordenação do investimento (SASAC)
e um sistema estatal de intermediação financeira levou a um patamar superior a atuação
estatal. A formação da SASAC como elemento fundamental de coordenação estatal
sobre o investimento remete a outra questão que se coloca na análise de experiências de
intervenção massiva do Estado sobre o ciclo econômico: trata-se da existência, ou não,
de “policy space” para políticas de socialização do investimento em um ambiente de
economia globalizada e financeirizada. Nesse sentido, sobre o caso da China, percebe-se
que a reorganização contínua de atividades entre os setores estatal e privado não
prescindiria do próprio controle do Estado não somente sobre o núcleo duro da finança e
do sistema produtivo, mas também sobre os mecanismos fundamentais do processo de
acumulação, como as taxas de juros e câmbio – além do necessário isolamento da
política monetária dos humores da economia internacional, via controle sobre o fluxo de
capitais.
A instalação das ZEE e a mudança das condicionantes macroeconômicas da economia
japonesa, a partir de 1985, beneficiaram sobremaneira a estratégia chinesa de
internalizar tecnologias via investimentos estrangeiros diretos (IED) ao lado de uma
política agressiva de exportações. A “socialização do investimento” e seus mecanismos

9
http://epocanegocios.globo.com/Revista/Epocanegocios/0,,EDR84198-8374,00.html

69
seriam a expressão máxima de um processo de construção de instituições capazes de
refletir, ao longo do tempo, a estratégia do país.
Elias aponta que esse diferencial de produtividade entre empresas estatais,
township and village enterprises (TVE), empresas de capital misto, etc. pode guardar
respostas no surgimento de um “novo modelo” na China mais voltado para o
desenvolvimento da fronteira tecnológica, com projetos como o Made in China e a mais
de centena de bilhões de dólares na chamada inteligência artificial, plataforma 5G e no
Big Data. Esses aparatos suportarão as novas e superiores formas de planificação.

Jabbour afirma que um novo modo de produção está surgindo na China, com
muitas similaridades da “Nova Economia do Projetamento” proposta por Ignácio
Rangel para designar o modo de produção que surgia da fusão entre a economia
monetária, o keynesianismo e a planificação soviética. Trata-se da plena integração
entre produção, distribuição circulação, oferta, demanda e dados financeiros. Afora a
rápida mudança na divisão social do trabalho com o encaminhamento planificado do
campo com a cidade10.

A China se encaixa como a primeira experiência de uma nova classe de formações


econômico-sociais — o “socialismo de mercado”. Na verdade, ao permitir o surgimento
e o florescimento de um nada pequeno setor privado e, de outro, reformas institucionais
aceleradas desde a segunda metade da década de 1990, levaram ao surgimento tanto de
um ambiente propício ao que Keynes chamou de “socialização do investimento” quanto
de cerca de 100 grandes conglomerados empresariais estatais e um robusto e
capilarizado sistema financeiro também estatal como o núcleo duro, ao lado do poder
político de novo tipo exercido pelo Partido Comunista da China, do “socialismo de
mercado”. A implicação política de todo esse processo é que o capitalismo ocidental se
vê diante de um concorrente estratégico nada modesto e pronto a se tornar o centro
dinâmico da economia internacional. Em grande medida a humanidade, nas próximas
décadas, terá à sua disposição a alternativa que vem da China e o caos em que
o Ocidente está envolvido.

Jabbour entende que umas principais características desta nova formação


econômico-social é a imensa capacidade de coordenação do Estado para colocar suas
dezenas de conglomerados e sistema financeiro a executar imensas obras de
infraestruturas, podendo ser caracterizada pela coexistência em uma mesma formação
econômico-social de modos de produção distintos.

Na China existe um setor estatal na economia que é o dominante e único capaz de


irradiar efeitos de encadeamento para toda a economia chinesa, inclusive ao setor
privado. A agricultura está em processo de transição de modo de produção em que a

10
https://portaldisparada.com.br/economia-e-subdesenvolvimento/nova-economia-do-projetamento/

70
“pequena produção mercantil” está dando lugar a formas superiores de propriedades não
capitalistas. O Partido Comunista, além de exercer o poder político, espalha seu poder
sobre toda a economia não somente através de empresas públicas, mas também com os
comitês de fábrica que se capilarizaram e passaram a ter voz, inclusive no setor privado
em um processo que se acelera desde 2012. É muito complicado falar na existência de
um “socialismo puro”, porém a China certamente é a forma de engenharia social mais
avançada que existe no mundo, mais distante de um capitalismo, seja liberal ou de
Estado e mais próximo de formas socializantes, o que não encerra as imensas
contradições existentes por lá, ao contrário: são as contradições o principal motor das
transformações do país. Interessante notar que o setor público na China detinha o
controle de 77% das forças produtivas no país em 1978 e hoje diminuiu para 30%.
Porém a capacidade de realização do Estado é muito maior.

Assim novas e superiores formas de planificação sendo gestadas e executadas


em larga escala na China:

A partir de 1978, a China fez sucessivas alterações em seu modo de produção,


conformando o que hoje é a economia socialista de mercado. Planejamento global
amplo, produção de mercadorias respeitando a lei do valor, propriedade estatal da terra,
controle da política monetária e da de investimentos, remuneração segundo o trabalho,
ter por objetivo central o desenvolvimento das forças produtivas, ampliar a democracia,
reforçar o sistema legal socialista, descentralizar e, finalmente, promover a coexistência
de diferentes formas de propriedade sob a égide da propriedade social, tais são, em
grandes linhas, algumas das características da economia socialista de mercado que se
desenvolve na China. Ditas características ultrapassaram a planificação
ultracentralizada, de inspiração soviética, a uniformidade distributiva que mirava o
“igualitarismo”, a estatização total dos meios de produção e a exacerbação da
burocracia.

Wladimir Pomar, autor de diversos livros sobre China, aponta que a experiência,
até agora exitosa na China e no Vietnã, demonstra que o socialismo de mercado é um
poderoso vetor de crescimento econômico e social, cujos paradigmas podem ser
utilizados por qualquer país para seu desenvolvimento. Na conjuntura da Guerra Fria e
da ascensão do neoliberalismo no Norte, China e Vietnã aproveitaram dos excedentes
de capitais dos países desenvolvidos e da decisão de relocalização de plantas industriais
das corporações empresariais. São experiências que aproveitaram da reestruturação do
capitalismo desenvolvido para intensificar a recepção de investimentos externos, com
Zonas Econômicas Especiais, onde os investidores estrangeiros podiam investir desde
que se associassem a empresas nacionais, inclusive estatais, e transferissem a elas novas
ou altas tecnologias. Com conhecimento das lacunas de suas cadeias produtivas, e sem
medo de enfrentar a concorrência e os problemas próprios do modo de produção
capitalista, estabeleceram programas específicos e controlados para atrair investimentos
diretos e plantas industriais, de modo a adensarem aquelas cadeias e introduzirem
tecnologias avançadas em suas empresas estatais. Como resultado, há um crescente e

71
rápido crescimento industrial e agrícola, acompanhado da transferência de grandes
massas da população dos trabalhos agrícolas para trabalhos de construção e produção
industriais, comerciais e de serviços. Ocorreu uma crescente geração de riqueza, que
permitiu uma redistribuição constante da renda, embora com desigualdade. A
participação da economia desses países no mercado mundial deu um salto. Em recente
artigo chamado “o caminho chinês”, Pomar aponta que:

a China, a partir do final dos anos 1970, fosse levada a ingressar no chamado socialismo
de mercado, combinando e confrontando a propriedade estatal e a propriedade privada,
orientação estatal e disputa de mercado, trabalho assalariado e trabalho cooperativo.
Para facilitar, e também para complicar, isso ocorreu paralelamente às reformas
estruturais no capitalismo desenvolvido, caracterizadas em grande medida por
investimentos externos em países com mão-de-obra mais barata, investimentos que
incluíam a transferência de plantas industriais, inteiras ou segmentadas, para tais países.
Tal processo deu surgimento ao que foi chamado de “globalização” capitalista.

Para aproveitar-se dessa reestruturação do capitalismo desenvolvido e intensificar a


recepção desse tipo de investimentos externos, após realizar uma reforma agrícola que
privilegiou as unidades familiares camponesas, a China criou inúmeras Zonas
Econômicas Especiais, onde os investidores estrangeiros podiam investir desde que se
associassem a empresas chinesas, inclusive estatais, e transferissem a elas novas ou altas
tecnologias.

Ao mesmo tempo, a China modificou seu antigo sistema de trabalho 3 por 1 (três
trabalhadores por posto de trabalho, como forma de reduzir o desemprego, mas de baixa
produtividade) e incentivou e financiou os trabalhadores dispostos a elaborar e a levar
adiante projetos industriais privados, financiados por bancos estatais. Com isso
reconstituiu a burguesia nacional para intensificar a disputa no mercado com as
empresas estrangeiras e as estatais. De qualquer modo, a concorrência e as contradições
entre a propriedade estatal e a propriedade privada fazem parte do cotidiano das
experiências e contradições que permeiam o socialismo de mercado11.

A questão de fundo é que, durante os anos do período de transição na China,


consolidou-se o mais progressista entre todos os modos de produção, que até então
existiram na história — o modo de produção socialista de mercado. A China promoveu
ativamente a reforma do sistema de economia de mercado socialista, que tornou o
desenvolvimento da China próspero, sua força nacional geral continuou a aumentar e
seu status no mundo tem melhorado continuamente. A produção socialista se
desenvolve de modo planificado e ininterrupto, a base de uma técnica avançada, sendo
que a firme elevação do bem-estar das massas constitui estímulo para a ampliação da
produção e garantia contra as crises de superprodução e o desemprego.

11
O caminho chinês. 2020. https://teoriaedebate.org.br/2020/04/21/o-caminho-chines/

72
Estas interpretações brasileiras do socialismo chinês apontam para o
desenvolvimento de um novo modo de produção na China, um sistema sócio-
econômico de novo tipo. A maior diferença entre eles é que dão mais pesos para um ou
outro aspecto da realidade chinesa. Destaca-se sua estratégia geral socializante com
aumento da competitividade, buscando solucionar problemas concretos para a
industrialização, explorando contradições do capitalismo para desenvolver forças
produtivas, como afirmava Theotonio dos Santos. O papel dos “dragõezinhos” na
dinamização da economia chinesa, liberando o Estado para reformar as estatais que
passaram a liderar o processo de desenvolvimento tecnológico, como destacava Barros
de Castro. Também a capacidade da China em coordenar planejamento e política
monetária, o importante papel das estatais na ponta do desenvolvimento tecnológico e
de gestão, das formas coletivas não-estatais e das estratégias de captação de capital
externo como vetores econômicos apontados por Jabbour e Pomar. São todas estratégias
do desenvolvimento do socialismo de mercado.

O ex-presidente Jiang Zemin conta que Margaret Thatcher, em sua visita à


China, falou energicamente que era impossível mesclar socialismo e mercado. Zemin
teria respondido: tarde demais, Sra. Thatcher, já estamos fazendo e está dando certo. O
que era uma falta de lógica para o pensamento liberal, para os chineses fazia todo
sentido. Não deveria haver qualquer problema em recriar o socialismo com mercado,
repensar as experiências reformistas, inspirar-se pelo espírito da NEP russa e outras
experiências no Leste Europeu, aproveitar o acúmulo histórico das Quatro
Modernizações propostas por Zhou Enlai. Por outro lado, até por influência do
socialismo soviético, no Ocidente foi se solidificando uma opinião de que planejamento
é socialismo e a economia de mercado é capitalismo. Deng Xiaoping refutava um
pensamento rígido sobre planejamento e economia de mercado. Defendia que era
preciso uma grande e perigosa retirada estratégica, vagarosa e complexa, no ritmo que
consiguisse manter desenvolvimento econômico e estabilidade política, um sistema de
transição socialista, partindo das condições nacionais, combinando regulação do
mercado com medidas globais de planificação, admitindo uma diversidade de formas
produtivas para equilibrar o desenvolvimento econômico e social.

Ao invés de adotar a cartilha liberal, a China modernizou e reforçou suas


empresas estatais. Manteve o monopólio sobre os ramos econômicos estratégicos

73
(financeiro, petróleo, energia, etc), mas com a novidade de colocar as diversas estatais
em concorrência, evitando a burocratização e promovendo o desenvolvimento
científico. As estatais também concorrem com as empresas privadas, obrigando-as a
elevar a produtividade, baixar custos e preços. Na China, a economia de mercado é
profundamente conectada com o sistema econômico socialista, cujo fundamento é a
propriedade pública como base da coexistência de uma variedade de propriedades. A
economia de mercado foi implantada sob sistemas capitalistas no ocidente. Na China foi
construída a partir de uma economia socialista. O atributo “socialismo” aponta o
objetivo e natureza da economia de mercado. Além disso, a economia de mercado
chinesa tem suas próprias características. Por isso, o socialismo chinês é muito diferente
das economias de mercado dos países capitalistas ocidentais.

Apesar da propaganda negativa, a China vem provendo, segundo alguns


estudiosos, a “maior transformação econômica dos últimos 250 anos” da história
mundial, com relativo sucesso a melhora das condições de vida da população. A
novidade deste modo de produção emergente é sua capacidade de contribuir para o
desenvolvimento das forças produtivas e se subordinar a um processo de constante
redistribuição de renda, de presença da sociedade e do Estado na economia através de
empresas de propriedade cooperativa, pública, estatal e mista.

Ainda durante a década de 1980, a China passou a ser reconhecida por estar se
integrando ao capitalismo, com maior inserção nas cadeias produtivas internacionais,
zonas industriais para exportação que passaram a beneficiar a acumulação de capital
estrangeiro excedente, obtendo altas e consistentes taxas de crescimento. A China
manteve firmemente seu processo de desenvolvimento ancorado no socialismo de
mercado, fazendo gradualmente reformas visando a melhor organização das forças
produtivas, modernizando as estatais, as cidades, o sistema financeiro e de defesa
nacional. Manteve seu crescimento em nível quantitativo e acelerado, vislumbrando as
metas definidas para o fim do século. Enquanto isso, muitos torciam para que as
reformas dessem errado (colapso iminente) ou que levassem a reconversão total ao
capitalismo.

Para se liberar as forças produtivas, se flexibilizou o controle dos meios de


produção de setores não-estratégicos, favorecendo a formação de empresas privadas e
cooperativas. O crescimento do setor privado se deu em conjunto com o aumento da

74
competitividade das estatais e cooperativas. O gasto público cresceu significativamente
com as empresas estatais sendo a espinha dorsal da economia, mantendo controle dos
principais meios de produção que atuam no mercado sozinhas e em grupos e servem de
base do planejamento macro-econômico, capaz de dirigir e regular o mercado. Os
chineses abriram sua economia de forma calculada e gradual, apresentando como
atração o baixo custo relativo de mão-de-obra, a boa infra-estrutura de energia,
transporte e comunicação, orientação no processo de investimentos e a estabilidade
social e política. Aproveitando o capital externo para criar e adensar suas cadeias
produtivas, condicionaram os investimentos à associação com empresas chinesas, a
transferência de novas e altas tecnologias e a participação no comércio internacional.
Criaram um sistema monetário soberano. Modernizaram as estatais e descentralizaram o
planejamento. Mantém uma política ativa de distribuição de renda por meio de
aumentos constantes de salários, aposentadorias e serviços públicos. E assim vem
superando a dependência, um caso singular na história.

No período em que Mao Tsé-Tung esteve no poder (1949-1976) destaca-se uma


industrialização pesada sem um processo de urbanização intenso. A indústria atinge
uma participação no PIB de 48% em 1978 (ante 21% em 1949) com a indústria pesada
representando 57% da mesma. Ao mesmo tempo, a grande maioria dos trabalhadores,
71% do total, ainda se encontrava empregada no setor agrícola. Foi no final da década
de 1970 e início da década de 1980 que a urbanização foi impulsionada sob o período de
reformas lideradas por Deng Xiaoping. Pela primeira vez na história, a China
experimentou uma urbanização rápida e sem precedentes a partir de 1978, sendo
considerado como o maior fluxo mundial de população de áreas rurais para urbanas na
história. Isso num processo em que o PIB chinês cresceu em média 9,7% entre 1978 e
2009, o PIB per capita cresceu a uma média anual de 8,5%, e a população em pobreza
absoluta decresceu de 75% em 1980 para 12,49% em 2001 (AGLIETTA & BAI, 2013).
E o dinamismo mais recente da economia chinesa esteve associado principalmente ao
processo de urbanização e ao conjunto de transformações relacionadas às modificações
de uma sociedade que, no início das reformas iniciadas em 1978, tinha uma taxa de
urbanização inferior a 20% (cerca de 171 milhões de cidadãos) e que chegou a 55% em
2015. Em 2022, já eram 910 milhões de pessoas vivendo em cidades, com taxa de
urbanização beirando 65% (HIRATUKA, 2018, p.3). São quase 740 milhões de novos
cidadãos urbanizados neste período (1978-2022), 100 cidades com mais de 1 milhão de

75
habitantes - o Brasil tem 17 - e 16 megacidades – no Brasil apenas São Paulo tem mais
de 10 milhões de habitantes. A título de exemplificação: Chongqing tem mais de 32
milhões, Xangai, quase 25, Pequim 22 e Chengdu 20. Somente seis países da União
Europeia tem população maior do que Chongqing.

As principais reformas promovidas para a urbanização no contexto do


socialismo de mercado chinês são: 1) descoletivização da agricultura; 2) a abertura do
país ao investimento estrangeiro e capital privado e 3) utilização das terras agrícolas
para urbanização.

Durante o período maoísta, toda a produção agrícola era adquirida pelo governo
a preços baixos, não existindo a possibilidade da venda dos excedentes. Em 1978, o
governo passou a estipular metas de produção que seriam adquiridos a preços fixados.
Todo excedente produtivo permaneceria com a comuna que poderia comercializá-lo a
preços de mercado. Dessa maneira, o setor agrícola foi estimulado a aumentar sua
produtividade. O conjunto de produção agrícola da China apresentou grande
crescimento e a pressão pela produção de alimentos foi reduzida fazendo com que
grande número de trabalhadores rurais pudesse ingressar em indústrias não agrícolas.

A política de abertura também incentivou um grande montante de investimento


governamental na região costeira para lançar novas Zonas de Desenvolvimento
Econômico e parques de alta tecnologia. As “áreas industrializadas” foram
desenvolvidas principalmente nas zonas costeiras, em Shenzhen, Zhuhai e Shantou na
província de Guangdong, Xiamen, na província de Fujian, em 1979, e 14 cidades
costeiras — Dalian, Qinhuangdao, Tianjin, Yantai, Qingdao, Lianyungang, Nantong,
Xangai, Ningbo, Wenzhou, Fuzhou, Guangzhou, Zhanjiang e Beihai – foram abertas ao
investimento estrangeiro em 1984. Em 1985, o governo central decidiu expandir as
zonas costeiras abertas, alargando as zonas económicas abertas ao Delta do Rio Yangtze
e ao Delta do Rio das Pérolas e toda a província de Hainan em 1988. A industrialização
liderada pela exportação foi fundamental, tornando a região costeira mais uma vez o
centro de crescimento do desenvolvimento urbano. Com a abertura econômica, abriram
sua economia de forma calculada e gradual, apresentando como atração o baixo custo
relativo de mão-de-obra, a boa infra-estrutura de energia, transporte e comunicação,
orientação no processo de investimentos e a estabilidade social e política. Aproveitando
o capital externo para criar e adensar suas cadeias produtivas, condicionaram os

76
investimentos à associação com empresas chinesas, a transferência de novas e altas
tecnologias e a participação no comércio internacional (MARCELINO, 2023).

Do ponto de vista institucional, um dos elementos mais importantes das


reformas na China foi a introdução de um sistema de terras e de um mercado de terras
(LIN; YI, 2011). Nela, o governo central permitiu que os municípios arrendassem as
propriedades rurais em contratos de longo prazo para fossem desenvolvidas. Para
promover o desenvolvimento urbano, o Estado realiza chamadas públicas, leilões e
concessões para a transmissão de posse dos terrenos, que podem durar entre 40 e 70
anos dependendo do seu uso. Os leilões de terra são essenciais para as finanças públicas
municipais, que somam cerca de 30% da receita dos governos municipais (KAMAL-
CHAOUI, LEEMAN e RUFEI, 2009). Isso deu origem a um sistema duplo desde os
anos 1980, no qual a terra urbana é propriedade do Estado e a terra rural é de
propriedade coletiva. A terra urbana permanece como propriedade do Estado ainda hoje,
mas os direitos de uso podem ser concedidos ou alugados para fins comerciais. A
propriedade da terra e os direitos de uso foram separados. As municipalidades e os
condados tornaram-se responsáveis pela alocação e a expropriação da terra em benefício
de diferentes usuários. Além disso, o arrendamento tornou-se uma grande fonte de
receita para os municípios para que houvesse a possibilidade de investimento na
infraestrutura local (KAMAL-CHAOUI, LEEMAN e RUFEI, 2009).

As motivações financeiras dos governos locais foram a força que dirigiu a


acumulação baseada na terra. Nesse conjunto de transformações, o papel que a terra
passa a cumprir na acumulação chinesa precisa ser particularmente ressaltado,
sobretudo seu processo de capitalização, o qual tem ocorrido em três sentidos: (i) taxas
de transferência da terra são coletadas pelos governos municipais para financiar o
desenvolvimento, o aperfeiçoamento e a manutenção do ambiente urbano construído de
modo a atrair investimento estrangeiro e aumentar a base de impostos; (ii) as terras
pertencentes ao Estado são alugadas pelos governos municipais para fins industriais,
comerciais, mercado imobiliário; (iii) a terra urbana tem sido empregada como forma de
obter empréstimos bancários e mobilizar o capital necessário para promover melhorias e
expandir o ambiente urbano construído. Portanto, a terra na China urbana
contemporânea é usada como um ativo crucial para servir ao incremento da urbanização
e à acumulação de capital local (LIN, 2011).

77
Nesse contexto, o governo central descentralizou os poderes e responsabilidades
sobre investimento e sobre o desenvolvimento econômico, favorecendo os governos
provinciais e municipais. Apesar do sistema centralizado de governo para uma série de
políticas, a gestão territorial segue um modelo em “pirâmide” onde, a partir da capital,
são determinados padrões gerais de planejamento que devem ser seguidos em todo país.
Regiões e municípios tem o dever de elaborar seus próprios planos, mais detalhados. No
entanto, diferente do Brasil, onde um município tem autonomia para aprovar o seu
Plano Diretor, na China os planos devem ser sempre aprovados pela instância superior:
o xiangxi guihua, ou Plano Detalhado, e o zongti guihua, ou Plano Geral, devem ser
aprovados pela instância regional, e os planos regionais devem ser atualizados quando
há mudanças nas recomendações em nível federal. O efeito em cascata também ocorre
para questões como, por exemplo, quanta área será urbanizada em cada ano, pois o
Ministério de Terra e Recursos Naturais define quanta área pode ser urbanizada em cada
província e, em seguida, a província aloca esta área entre as suas cidades. Além disso,
são os municípios que decidem sobre a venda das posses, sobre o desenvolvimento de
infraestrutura e a emissão de licenças de construção, e o governo central interfere no
mercado imobiliário através de condições de financiamento e no planejamento macro-
econômico (QIU, 2022). E a urbanização está diretamente ligada ao processo de
industrialização. Um dos diferenciais do desenvolvimento chinês é a vantagem que as
suas empresas têm por ter uma conexão íntima entre elas por meio da lógica econômica
dos distritos industriais ou “clusterização” da urbanização. Clusters se espalham ao
longo do Delta do Rio das Pérolas, região que engloba Hong Kong, Macau e a província
de Guangdong. Os clusters de cidades tornaram-se as áreas-chave estratégicas para
China para promover a urbanização e o desenvolvimento económico, chegando a uma
série de aglomerações urbanas que incluem cidades centrais e vários agrupamentos de
cidades dentro das províncias para promover o desenvolvimento de aglomerados de
cidades.

Com estas reformas, a China vem adotando a urbanização como um importante


ponto de partida para acelerar o processo de modernização das estruturas industriais,
sendo um poderoso motor para alavancar as demandas internas e manter um
desenvolvimento econômico sustentado e saudável (WANG, 2023). Entretanto, como se
prevê pela dimensão do processo, o aumento da urbanização não trouxe apenas aspectos
positivos. Dentre os efeitos negativos, destaca-se o aumento rápido na poluição, uso

78
intenso de energia, emissões de dióxido de carbono, escassez de água, dificuldade no
abastecimento alimentício, aumento na desigualdade de rendimentos, todas questões
que a China enfrenta hoje como resultado da urbanização. A estrutura da escala urbana
está desequilibrada entre as cidades pequenas, médias e grandes. A China está sofrendo
de “doenças urbanas” devido à rápida expansão da escala urbana causada pelo
carregamento de funções excessivas e indústrias altamente aglomeradas. Cidades de
médio porte e cidades pequenas carecem de potencial de desenvolvimento econômico e
social devido ao atraso no desenvolvimento de infra-estruturas e serviços públicos,
insuficiência de apoio industrial e menos empregos. Em junho de 2016, o número de
novas cidades e novos zonas de desenvolvimento eram mais de 3.500 em nível de
condado ou acima, levando ao uso homogeneizado da terra e crescentes “cidades
vazias”, “cidades adormecidas” e “fantasmas”. Entrementes, em linhas gerais, a
urbanização na China repercute em outras regiões não desenvolvidas e contribui para a
prosperidade econômica global. O argumento é que a urbanização acelerada na China
levou a um maior desenvolvimento econômico e diminuição da disparidade de renda
(XUEMEI, 2012).

Enquanto muitos países enfraqueciam as capacidades na regulação econômica, o


socialismo de mercado chinês está evoluindo e a capacidade de realização de planos e
projetos está se aperfeiçoando, ganhando novas conformações transnacionais – como no
projeto Novas Rotas da Seda - e se torna um assunto relevante para estabelecer
alternativas ao desenvolvimento destrutivo do capitalismo contemporâneo.

Conforme Sonny Lo, com a rápida ascensão da China desde o início dos anos
2000, e particularmente desde a ascendência de Xi Jinping ao poder político desde finais
de 2012, a liderança chinesa tem vindo a mostrar continuidades e mudanças
significativas na teoria dos três mundos de Mao Tse Tung. Em termos de continuidade,
primeiro, o anti-hegemonismo continua a ser uma continuidade da política externa de Xi
Jinping. A China tem vindo a crescer económica, militar e tecnologicamente e a adoptar
uma “grande diplomacia do poder” que enfatiza o multilateralismo e a participação ativa
de Pequim em organizações internacionais. Ao contrário da China de Mao, que estava
relativamente isolada e economicamente atrasada no início da década de 1970, e ao
contrário da China de Deng Xiaoping que passou pela fase inicial de modernização ao
longo da década de 1980, a recente ascensão da China significou que este país tem de
adoptar uma política externa muito mais inclusiva do que nunca. No meio da

79
continuidade do anti-hegemonismo na teoria dos três mundos de Mao, a China de Xi
Jinping acrescentou os novos elementos do multilateralismo, participação ativa em
organizações internacionais (LO, 2022). A segunda continuidade da teoria dos três
mundos de Mao e da política externa de Xi Jinping é o ingrediente de um extenso
trabalho de frente unida para conquistar os corações e as mentes dos países tanto do
segundo como do terceiro mundo. A Iniciativa de Cinturão e Estradas da China, que foi
oficialmente anunciada em 2015, tem os objetivos de alcançar o seu alcance
geoeconómico e geopolítico aos três mundos. Geoeconomicamente, a China tem vindo
a utilizar as suas empresas estatais para investir em países do terceiro mundo, ajudando-
os a modernizarem-se, construindo projetos de infra-estruturas, e ajudando os Estados
em desenvolvimento a alcançar um desenvolvimento sustentável sem lhes impor o
chamado “modelo de desenvolvimento da China”. O objetivo final é conquistar os seus
corações e mentes, ajudando a China a alcançar os objetivos da política externa de
apresentar uma imagem pacífica, e retratar a percepção de uma potência socialista que
assiste todos os outros Estados em desenvolvimento nos processos de modernização
económica e desenvolvimento sustentável (LO, 2022).

A importante mudança da política externa de Xi Jinping em comparação com a


prática dos três mundos de Mao é que Xi abandonou a diplomacia revolucionária de
Mao nas décadas de 1950 e 1960, quando a China apoiou muitos movimentos
comunistas em várias partes do mundo. No entanto, Xi Jinping construiu um exército
forte e crescente que está preparado para defender a sua soberania, integridade territorial
e interesses de desenvolvimento nacional. Outra mudança proeminente na versão de Xi
Jinping da teoria dos três mundos é que a China tem vindo a adoptar uma política
externa altamente assertiva (LO, 2022). Xi Jinping reviu, reavivou e atualizou
significativamente a teoria dos três mundos de Mao Tse Tung. Em termos de
continuidades, a China continua a opor-se ao hegemonismo e persiste na adopção de um
trabalho de frente unida, ao mesmo tempo que vê o mundo inteiro em três categorias. A
ascensão da China apontou para a sua necessidade de adoptar uma grande diplomacia de
poder para lidar com os EUA e a Rússia. As mudanças em relação à teoria dos três
mundos de Mao são muito proeminentes e significativas. A China sob Xi Jinping está
agora empenhada em manter o multilateralismo, alcançar a paz mundial, adotar uma
relativa neutralidade nos conflitos russo-ucranianos, moldar uma nova visão socialista
de alcançar a prosperidade comum não só na Ásia mas também no mundo, e ajudar os

80
países do terceiro mundo a ultrapassar o subdesenvolvimento e a desenvolver a
modernização sócio-económica para que seja criado o destino comum para a
humanidade. Se a revolução socialista foi um tema principal da política externa de Mao
durante as décadas de 1950 e 1960, a China sob Xi Jinping está a adoptar uma nova
ideologia de paz socialista permanente e de alcance socialista persistente (LO, 2022).

2.3.2. O caso do Laos

O Laos é conhecido como país mais pobre da Ásia, tem o título de país mais
bombardeado da Terra – os EUA lançaram 270 milhões de bombas na região. Apenas 7
milhões de habitantes. Sem litoral e infra-estrutura, numa área extremamente
montanhosa.

O Laos consistia em três reinos separados durante os séculos XIV ao XVIII. O


país foi colônia francesa entre 1893 e 1954. Ela uniu os reinos de Champasak, Luang
Prabang e Vientiane para formar o que hoje é conhecido como Laos. O Laos se tornou
de fato independente em 1953, com uma monarquia constitucional governada. Logo
após a independência, uma longa guerra civil no país surgiu no fim da monarquia,
quando o movimento comunista Pathet Lao chegou ao poder em 1975.

Após a conquista do poder pelo movimento comunista Pathet Lao em 1975,


começava a construção do socialismo num país com posição geográfica isolada, como
único país sem litoral no sudeste da Ásia, dependendo de um maior envolvimento com
os vizinhos, ao norte pela China, a leste pelo Vietnã, a sul pelo Camboja, a sul e oeste
pela Tailândia e a noroeste por Myanmar. O Laos teve papel importante na Guerra da
Resistência Vietnamita contra os EUA, permitindo que o Exército do Vietnã do Norte
enviasse soldados e suprimentos pelo lado leste do seu território ao longo do que se
tornou conhecido como “Trilha Ho Chi Minh”. Além de seu envolvimento direto na
expansão da Guerra Civil Laosiana, os norte-americanos travaram várias campanhas de
bombardeio contra o Trilha Ho Chi Minh, incluindo as operações Barrel Roll, Steel
Tiger e Commando Hunt. Entre 1964 e 1973, os EUA levaram 580 mil bombas e
jogaram 2 milhões de toneladas de bombas no Laos, isso é, mais do que mais bombas
que as que caíram durante toda a Segunda Guerra Mundial.

81
Quando os vietnamitas derrotaram os EUA em abril de 1975, forçaram os EUA a
sair de toda a região. O Pathet Lao assumiu o poder em dezembro de 1975, sete meses
depois de seus vizinhos vietnamitas. A União Soviética proporcionou a maior parte da
ajuda externa ao Laos e especialmente às suas forças armadas. O país foi renomeado
República Democrática Popular do Laos (RDP do Laos), e o Pathet Lao foi
reorganizado como o Partido Revolucionário Popular do Laos (PRPL). A formação das
relações de produção socialistas no país assumiu principalmente a forma de
nacionalização, coletivização da agricultura e monopólio estatal sobre o comércio
exterior.

O PRPL, definido pela constituição como “núcleo dirigente” do sistema político,


único partido legal, profundamente enraizado na sociedade do Laos, se manteve na
manutenção do poder desde 1975. Uma de suas singularidades da sua experiência é que,
na esfera cultural, o regime é protetor do budismo. Mais de 60% da população adere ao
budismo Theravada, enquanto o restaste é orientada para religiões étnicas locais. No
Laos, o marxismo sofreu diversas adaptações ao se fundir com o budismo, uma
experiência singular em que a liderança do partido assumiu o papel de protetora do
legado histórico do Laos (traçada desde o reino de Lan Xang, que existiu do século
XIV ao XVIII) com sua tradição budista. Usando o simbolismo e a sangha, o Partido
aumentou sua legitimidade, construindo novas estátuas de reis históricos. As crianças
aprendem sobre Sidartha. O partido mantém o centralismo democrático como princípio
de organização.

Como Mao Zedong, o pai do Partido Comunista da China e da Nova China, Ho


Chi Minn destacado líder do Vietnam, Kaishan Phungvihan é o líder do Partido
Revolucionário Popular do Laos e do país.

No caso do socialismo laociano, é necessário considerar o pensamento de


Kaysone Phomvihane como uma espécie de "marxismo-leninismo adaptado às
circunstâncias laocianas". Phomvihane propôs, após a independência do país e a saída
da monarquia em 1975, que o país deveria enfrentar cinco prioridades antes da
construção do socialismo: 1. "normalizar" a vida das pessoas (em termos de
alimentação, vestuário e abrigo); 2. consolidar o poder do Partido (enraizar-se nas
"zonas brancas" monarquistas); 3. estabelecer instituições estatais e abolir instituições
feudalistas e coloniais; 4. projetar a governança do pós-guerra; 5. “construir” a nação e

82
integrar as minorias (mais de sessenta diferentes comunidades étnicas vivem no Laos,
das quais o grupo 'Lao' é a maioria com cerca de 40% da população).

A força motriz fundamental do pensamento de construção partidária de Kaisan


Phonvihan é a necessidade objetiva do partido dirigente proletário - o Partido
Revolucionário Popular do Laos de melhorar sua capacidade de governar e manter seu
status de governante. Durante o período da revolução democrática nacional, o Partido
Revolucionário Popular do Laos, com Kaishan Fengweihan como núcleo, resolveu com
sucesso o problema de construir um país com amplo caráter de massa em um país onde
o proletariado era pequeno e os camponeses e outra pequena burguesia representavam
maioria da população, a árdua tarefa do partido marxista-leninista. Após o
estabelecimento da República Democrática Popular do Laos, o Partido Revolucionário
do Povo do Laos levou o povo de todos os grupos étnicos do Laos a iniciar a árdua
exploração do caminho da construção socialista, e a liderança do partido e a construção
do partido alcançaram certas conquistas. Nos primeiros dias de reforma e abertura, os
membros do Partido Revolucionário Popular do Laos, com Kaishan Fengweihan como
núcleo, focaram em "que tipo de partido o partido governante deveria ser, como o
partido governante deveria se construir e como o partido governante deveria levar as
pessoas de todos os grupos étnicos do país a realizar a reforma e a abertura, como o
partido no poder deve construir o socialismo de acordo com as condições nacionais do
Laos", respondeu cientificamente às principais questões teóricas e práticas de como
fortalecer a construção do partido sob as novas condições.

Considerando a ideia central do desenvolvimento regional, o governo se baseou


no conceito de desenvolvimento rural pela extensão da cidade, melhorando a rede de
transporte da cidade para o campo. Com base na ideia de Social Estratégia de
Desenvolvimento Econômico da seguinte forma: 4 etapas de desenvolvimento regional:
1) Melhoria da infraestrutura como ponta de lança; 2) Foco na construção e
desenvolvimento de vilas e 3) A melhoria dos meios de subsistência está no centro do
desenvolvimento.
Em 1976, os militares mais uma vez tomaram o poder na Tailândia, fechando a
fronteira, mas também intensificaram o apoio tailandês às forças terroristas no Laos que
atacaram fazendas coletivizadas, sabotando a produção e assassinando funcionários
comunistas. Ao mesmo tempo, a deterioração das relações entre o Vietnã e o Camboja
afetou o Laos. O governo socialista do Vietnã ocupou o Camboja contra o Khmer

83
Vermelho que teve apoio da China e Hanói. A ruptura das relações internacionais
deixou o Laos isolado. Em 1977, o Vietnã e o Laos assinaram um tratado de amizade de
25 anos, e os assessores vietnamitas forneceram conhecimentos necessários nas
políticas governamentais e econômicas. O Laos tornou-se mais próximo do Vietnã
como principal parceiro comercial e principal rota ao mar.

Depois de se tornar independente em 1975, o então Laos estabeleceu os


controles sobre a economia por meio do governo fiscal e socialista centralizado até
1985. Foi feito um esforço para estabelecer comunas agrícolas, entretanto, as medidas
tiveram que ser abandonadas pelo alto grau de impopularidade. Em 1981, o Primeiro
Plano Quinquenal visava a autossuficiência, mas o crescimento econômico lento de
aproximadamente 5% ao ano foi julgado insuficiente. Durante esse período, o governo
viu que o desempenho da economia era incapaz de atingir os objetivos esperados A
gestão econômica era fraca devido à falta de mão de obra qualificada, e houve alguma
ajuda externa, mas muitos projetos não foram concluídos num nível satisfatório.

Foi então que o Segundo Plano Quinquenal de 1986-1990 implementou o Novo


Mecanismo Econômico (NME), estratégia que visava integrar lentamente partes da
economia laosiana com a economia mundial sem sacrificar a sua autossuficiência
alimentar. Assim o Laos deu início ao “socialismo de mercado com características
laosianas”, com a transição de uma economia de planejamento centralizado para uma
“economia multissetorial” ou híbrida, definida como uma “economia de mercado
regulada pelo governo”. As restrições ao comércio interno foram removidas e um
mercado livre foi introduzido para os produtos agrícolas. O governo também liberalizou
o comércio internacional e buscou investimentos estrangeiros de seus vizinhos. Como
na adoção de reformas na China e no Vietnã, essa transição ocorreu sem nenhuma
liberalização política correspondente, mantendo o partido leninista no poder. No final
do segundo plano quinquenal, a produção de arroz duplicou e a produção de açúcar
aumentou 40%. Em agosto de 1991, a Assembleia Suprema do Povo (SPA) aprovou
uma nova constituição - a primeira, desde que a constituição anterior fora abolida em
1975. Entre suas disposições é a afirmação do direito à propriedade privada, e a
expressão "democracia e prosperidade" substituiu "socialismo" no lema nacional, e em
maio de 2003 uma nova constituição foi aprovada salientado que a economia opera de
acordo com o princípio da economia de mercado.

84
Em 1989, as relações sino-laotianas voltaram ao normal. Durante a década de
1990 e 2000, uma série de medidas à moda chinesa foram introduzidas: eliminação de
restrições microeconômicas que limitam a produção privada, legislação para encorajar o
investimento estrangeiro direto (IED), leis comercias, maior atenção à estabilidade
macroeconômica com melhoria da política orçamentária e monetária, privatização e
fusão da maioria das empresas estatais, com exceção das vinte empresas que foram
designadas como “estratégicas para o desenvolvimento”.

Desta forma o Laos busca usar o capital estrangeiro para desenvolver indústrias
estratégicas, como mineração e hidrelétricas, além de prover necessidades da população.
Graças às barragens de seus rios, o Laos hoje produz muito mais energia do que
precisa. Dessa forma, Tailândia, Vietnã e China são os maiores consumidores dessa
energia. Investiram em tecnologias para plantação e processo de borracha, para a
indústria automobilística.

Em 1998 e 1999, a crise econômica asiática atingiu o Laos, resultando em


aumento dos gastos do governo, inflação repentina e desaceleração do crescimento que
chocou a liderança do partido, o que levou neste breve período as reformas em direção a
uma economia de mercado serem suspensas ou concordadas com relutância. Porém, a
partir de 2000, com a retomada gradual das reformas houve um aumento constante do
investimento, especialmente em energia hidrelétrica, mineração, agricultura comercial e
turismo, o crescimento econômico aumentou em média 8% ao ano desde 2005.

Desde o início das reformas, o Laos fez progressos consideráveis. Na boa e


velha fórmula de Lênin (Socialismo = soviets + eletricidade), o Laos fez um bem
sucedido programa de eletrificação. Em 1990, o acesso à eletricidade era de apenas 15%
para 99% em 2020. Nas áreas rurais, as famílias possuem direitos ao uso da terra
agrícola, que são transferíveis e herdáveis. Desde 1990, o Laos reduziu o número de
pessoas que vivem na pobreza ao meio, enquanto a população quase dobrou para quase
7 milhões de habitantes hoje. Os preços passaram a ser fixados pelo mercado. O Lao
Kip é conversível e os lucros de investimentos estrangeiros podem ser transferidos para
o exterior. O Laos se tornou amplamente integrado aos mercados regionais, inclusive
desenvolvendo um mercado de capitais. O sistema bancário é relativamente forte e bem
capitalizado, porém ainda é altamente dolarizado e, portanto, vulnerável em caso de
crises financeiras.

85
A crise financeira global de 2008 reduziu a quantidade de IED originado do
Ocidente, mas foi logo substituído por um maior investimento de nações asiáticas,
especialmente Tailândia, China e Vietnam. O Laos também passou a desenvolver zonas
econômicas especiais. A SEZ Savan-Seno foi criada pelo governo do Laos em 2003.
Situada a apenas três quilômetros do Mekong, que atua como fronteira nacional com a
Tailândia, a SEZ de 234 hectares está conectada ao “Corredor Econômico Leste-Oeste”
- uma iniciativa que liga Mianmar, Laos, Tailândia e Vietnã e inclui um parque de 1.450
estrada de km, projetada para criar uma nova rota comercial pela região do
Mekong. Atualmente, uma grande proporção do comércio, incluindo três quartos das
importações de petróleo da China, depende de um único ponto de estrangulamento
marítimo, o Estreito de Malaca, patrulhado pela marinha dos Estados Unidos. Desde
2006, o governo faz referência explícita à ideia de “ transformar a terra em capital ”. Os
arrendamentos e concessões de terras tornaram-se uma estratégia governamental
importante para criar uma economia de mercado e estimular o crescimento econômico.

Existem dois tipos de zonas econômicas no Laos: Zonas Econômicas Especiais e


Zonas Econômicas Específicas. Entre as Zonas Econômicas Especiais (SEZs) do país,
há duas: a Zona Savan-Seno SEZ localizada na província de Savannakhet, no centro do
Laos - um ponto central do Corredor Econômico Leste-Oeste; e o Triângulo Dourado
SEZ localizado na região sub-Mekong perto das fronteiras do país com Mianmar,
Tailândia e China. O resto das regiões econômicas são designadas como Zonas
Econômicas Específicas, com a maioria delas localizadas perto da capital, Vientiane. O
investimento em SEZ pode ser feito de duas maneiras: investimento geral e
investimento promocional. Um investimento geral permite que o desenvolvedor ou
investidor invista em todos os setores dentro do SEZ, exceto aqueles proibidos pelo
governo, como comércio de armas, drogas, produtos químicos tóxicos, etc. Investimento
promocional, entretanto envolve indústrias que são fortemente apoiadas dentro do SEZ
e reguladas pelo Comitê Administrativo da SEZ, essas atividades incluem investimentos
em indústrias eletrônicas, pesquisa científica e de novas tecnologias, infraestrutura
turística, produtos orgânicos, etc. Alguns dos benefícios oferecidos para
desenvolvedores e investidores para a criação de uma empresa nas zonas econômicas
especiais incluem isenções fiscais para a importação de equipamentos e matérias-primas
para construção de infraestrutura e reduções no imposto de renda e imposto de valor
agregado (dependendo do tipo de negócio). Além disso, os investidores estrangeiros têm

86
o direito de residir no Laos com sua família durante o período do investimento, entre
alguns outros privilégios indicados pelas leis e regulamentos.

O Laos seguiu seu vizinho chinês na criação de Zonas Econômicas Especiais


(SEZs) como parte do novo motor econômico que permite políticas econômicas
especiais e medidas governamentais flexíveis que conduzem a negócios que não
existem em outras partes do país. Desde 2000, as SEZs se tornaram a principal
estratégia empregada pelo governo do Laos para direcionar a economia do país para
sistemas econômicos baseados no mercado e um atalho para a urbanização e o
desenvolvimento de infraestrutura por meio de investimento estrangeiro. Atualmente,
doze SEZs foram concedidos a investidores estrangeiros, quatro dos quais são operados
por empresas chinesas. 19.499 hectares já foram alocados para o desenvolvimento de
SEZ. A Zona Econômica Especial (SEZ) de Boten, no norte do Laos, na fronteira com a
China, prevê investimentos de pelo menos US $ 10 bilhões para desenvolver totalmente
o local. A zona fica a cerca de 390 km ao norte de Vientiane, capital do Laos, faz
fronteira com Mohan, na província de Yunnan, na China, e faz parte da cooperação
econômica em rápido crescimento entre o Laos e a China. Na zona que cobre mais de
700 hectares, uma gama completa de serviços públicos está sendo instalada junto com
uma rodovia de seis pistas e outras infra-estruturas. O trabalho na SEZ começou em
2016 sob um contrato de arrendamento de 90 anos. Até agora foram investidos mais de
um bilhão de dólares e espera-se que sejam necessários mais de 10 bilhões de dólares
para completar a construção.

Na última década, a China tornou-se um dos maiores investidores nos países do


Sudeste Asiático, sendo, em 2018, a fonte de quase 80% do investimento estrangeiro
direto no Laos. As doze zonas econômicas especiais (SEZs) estabelecidas em todo o
país já atraíram investimentos de quase US $ 5,7 bilhões e criaram milhares de
empregos para a população local. Os desenvolvedores das zonas investiram US $ 4,28
bilhões, as empresas individuais investiram US $ 1,36 bilhão e o governo do Laos
subscreveu os restantes mais de US $ 52 milhões. Cerca de 806 empresas investiram nas
zonas compreendendo 26,34 por cento no setor industrial, 25 por cento no comércio e
48,4 por cento no setor de serviços. Os bens manufaturados exportados das zonas
valiam US $ 1,75 bilhão em 2018. Além disso, as zonas contribuíram com mais de 349
bilhões de kip na forma de vários impostos e taxas para o orçamento do estado. E o
governo está planejando até 40 SEZs nos próximos 10 anos. As autoridades estão

87
atualmente estudando o estabelecimento de outra zona econômica especial chamada
“Smart & Eco-City” abrangendo as províncias de Luang Namtha e Oudomxay.

O socialismo de mercado está sendo praticado no Laos, apresentando


alternativas para países que não são polos regionais e profundamente agrários. O Laos
deve conquistar seus objetivos de longo prazo, pois continua preservando o atual
sistema político e desenvolvendo a econômica, realizando seu potencial nacional,
elevando os padrões de vida, reduzindo drasticamente a pobreza, se industrializando de
acordo com os interesses nacionais, com a meta de se tornar um país de renda média até
2030.

A violência imperialista mergulhou o Laos num baixíssimo desenvolvimento das


forças produtivas, podendo ser considerado um estado socialista que está construindo as
bases para o socialismo por meio de um período de desenvolvimento do capitalismo
nacional, articulando a propriedade pública e dos camponeses no processo. A
experiência do Laos mostra que é possível – não fácil - iniciar transições socialistas de
mercado mesmo num país geograficamente e demograficamente pequeno no meio de
uma região densamente povoada. Por isso, existe valor em compreender as
complexidades em construir o socialismo em condições muito difíceis.

2.3.3. SINERGIA DO SOCIALISMO DE MERCADO NA INDO-CHINA

Tanto a China, Vietnam e o Laos são países socialistas liderados pelo Partido
Comunista, com ideais e crenças semelhantes e caminhos de desenvolvimento
semelhantes Os três países afirmam ter encontrado seu próprio modelo de
desenvolvimento combinando uma economia de mercado com o socialismo – “a
economia socialista de mercado”. Os três têm um desempenho melhor do que países
com nível semelhante de renda per capita em uma ampla gama de indicadores de
desenvolvimento social e material. Pode-se afirmar que se trata de modelo de
desenvolvimento distinto, no sentido de que representa regimes comunistas
introduzindo reformas de mercado. China, Vietnã e Laos compartilham um legado
comunista de planejamento econômico, coletivização da agricultura e empresas estatais
dominantes. Todos os três países introduziram reformas de mercado na década de 1980,
com Gaige kaifang ('Reforma e abertura', 1978/79), Doi moi ('Renovação', 1986) e Chin
Thanakaan Mai ('Novo Pensamento' ou 'Novo Mecanismo Econômico' , 1986)

88
representando o início oficial das transformações econômicas, respectivamente, na
China, Vietnã e Laos.

A China atraiu grandes investimentos estrangeiros, especialmente em seu setor


de exportação, mas também conseguiu desenvolver um forte setor de indústria
doméstica e está se movendo em direção à alta tecnologia. O Vietnã enfrentou uma
“transição estagnada” e conseguiu desenvolver principalmente um setor industrial de
mão-de-obra intensiva liderado pelo IDE, que depende em grande parte da tecnologia
estrangeira. Laos é, a este respeito, parte de uma situação mais desfavorável, com uma
economia em grande parte agrária e exportadora de recursos, porém com redução de
vulnerabilidades externas e internas. De qualquer forma, a teoria e a prática da
economia de mercado de orientação socialista na China, Vietnam e Lado têm
semelhanças e diferenças e podem aprender umas com as outras. Os partidos
comunistas da China, do Vietnã e Laos têm um “destino comum” e há um grande
potencial para a cooperação econômica e política.

As diversas iniciativas do Corredor Econômico da Península China-Indochina, um


dos seis pilares na Nova Rota da Seda, ou Belt and Road Iniciative (BRI), pode estar
gerando uma nova sinergia entre os socialismos de mercado de China, Vietnam e Laos.
São diversas artérias terrestres com diversas camadas de transporte, telecomunicações,
infraestrutura, indústrias, energias, finanças, comércio e projetos econômicos
conectando os três países socialistas.

A ferrovia de alta velocidade que conecta Kumming, na província de Yunnan na


China, até Vientiane no Laos, tem 420km e valor de 6 bilhões de dólares. Ela foi
iniciada em 2016 e concluída em 2021, possui 72 túneis, 170 pontes e trens que
circulam a 160km por hora. Em seguida, ela vai unir o sudeste da Ásia Continental até
Cingapura

A China aumentou os investimentos na fronteira com o Laos, com Zonas


Econômicas Especiais que têm investido bilhões de dólares no desenvolvimento
produtivos de obras, barragens, minas, plantações de borracha, hotéis e shoppings. Em
sua reunião de abril de 2014 com o Primeiro Ministro do Laos Thongsing
Thammavong, o presidente chinês Xi Jinping destacou a necessidade de a China e o
Laos intensificarem sua parceria estratégica abrangente para atingir seus objetivos de
desenvolvimento nacional. Em particular, o presidente Xi observou que a cooperação

89
sino-laosiana deve se concentrar em indústrias estratégicas, como energia e extração de
recursos, turismo verde e construção de infraestrutura. Em troca, o primeiro-ministro
Thammavong confirmou o compromisso do Laos de participar dos megaprojetos “Belt
and Road” da China. O ativo estratégico do Laos é sua posição geográfica como uma
ponte de terra entre a China e os estados do sudeste asiático de Mianmar, Tailândia,
Camboja e Vietnã. A China vê as nações do Mekong - Mianmar, Laos, Tailândia,
Camboja e Vietnã - como a chave para o sucesso do “Belt and Road”. Economicamente,
esta região oferece um enorme potencial de crescimento, visto que essas nações
representam um mercado de mais de 320 milhões de pessoas, e cujo comércio regional
com a China totalizou mais de 150 bilhões de dólares em 2013. Essas nações estarão
envolvidas na proposta da Ferrovia Pan-Asiática que é um dos principais megaprojetos
de infraestrutura do Cinturão Econômico da Rota da Seda. Esta ferrovia conectará a
cidade de Kunming, no sul da China, a Cingapura. De Cingapura, a ferrovia percorrerá a
Península Malaia pela Malásia e entrará na Tailândia. Em Bangkok, a ferrovia se
dividirá em três linhas que terminarão separadamente em Kunming. Uma linha passará
pelo Laos; outro por Mianmar; e a terceira pelo Camboja e Vietnã. O projeto vai custar
cerca de 7 bilhões de dólares, que serão pagos pelo governo do Laos com empréstimos
concessionários da China, com a riqueza mineral do Laos como garantia. Para facilitar a
implementação dos projetos da China no Laos, vários instrumentos financeiros foram
estabelecidos, incluindo uma joint venture Sino-Lao entre o Yunnan's Fudian Bank e o
Laos 'Foreign Trade Bank. O Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB)
da China, do qual o Laos é membro fundador, deverá oferecer linhas adicionais de
financiamento para projetos de “Belt and Road” assim que iniciar suas operações no
final de 2015. No caso de Kunming-Vientiane linha ferroviária de alta velocidade, os
governos do Laos e da China criaram uma empresa conjunta que implementará o
megaprojeto. O China Railway Group expressou confiança de que vai ganhar o contrato
de construção, dado o pesado financiamento chinês

No setor de energia, estima-se que o Laos tenha potencial para gerar 26.500 MW
de energia hidrelétrica, dos quais 18.000 MW são tecnicamente exploráveis. Para
desbloquear esse potencial hidrelétrico e transformar o Laos na “bateria do Sudeste
Asiático”, o governo do Laos tem planos ambiciosos de construir 70 barragens ao longo
dos afluentes do rio Mekong. Muitos deles estão sendo ou serão construídos por
empresas hidrelétricas chinesas.

90
2.3.4. OUTRAS EXPERIÊNCIAS

Até agora, o socialismo de mercado só pode se desenvolver de forma consistente


e permanente onde houve uma relativa trégua das potencias estrangeiras dominantes. Os
acordos pós-guerra do Vietnam e a aproximação EUA e China nos anos 1970 criaram
condições para modernização socialistas na região. Para implementar as reformas de
mercado e flexibilização das formas de propriedade é preciso um sistema político sólido
e estável, isso é, que não seja jogado correntemente em guerras militares, econômicas e
políticas.

Agregam-se a experiências de socialismo de mercado, em maior ou menor grau,


as experiências em Cuba, Coréia, Angola, em um estágio inicial, as jovens experiências
da Namíbia, Bolívia e Venezuela que proclamaram a determinação de realizar a
transição do capitalismo ao socialismo. Na Coreia, Angola e Cuba vigoram regimes
mais parecidos com o modelo soviético, especialmente por sofrerem o cerco de
potências estrangeiras para derrubar seu governo permanentemente. Apesar de ambas
buscarem reformas, são experiencias mais ou menos sitiadas, que empurram os Estados
para terem mais controle do processo político e econômico para salvaguardar sua
soberania.
Cuba seguiu de 1959 a 1989, em grande medida, o modelo soviético de
estatização completa da propriedade, inclusive agrícola e comercial, mas vem aderindo
gradualmente ao socialismo de mercado. Para reverter o processo de estagnação da
economia na ilha, entre 1990 e 1994 foram feitas uma série de medidas governamentais
iniciou a liberalização da economia cubana. A reforma constitucional de 1992 retirou o
“caráter irreversível” da “propriedade estatal socialista”, admitindo outras formas de
propriedade em detrimento da quase total estatização existente, legalizando a
propriedade privada, mista e cooperativa. Por diversos fatos, como o bloqueio dos
Estados Unidos à ilha, as reformas foram insuficientes, não atacaram o problema da
concentração e centralização das funções estatais, e, por conseguinte, não foram capazes
de apontar para uma superação de um “modelo socialista estatal”.

Em 2011, durante o VI Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), foi


amplamente discutido as mudanças econômicas e políticas no país, com o objetivo de
“atualizar” o modelo cubano. Nesta atualização uma parte da propriedade social
deixaria de ficar nas mãos do Estado com a expansão do setor empresarial não estatal.

91
Este setor não se refere apenas a formas de propriedade privada, mas também àquelas
formas de propriedade coletivas, como as cooperativas. As grandes estatais ganham
mais autonomia, inclusive para levar em conta as forças do mercado, o que atesta que o
socialismo identificado com a estatização total dos meios de produção passou a ser
encarado como um fracasso histórico frente às modificações na dinâmica econômica
global, fadado à estagnação, à ineficiência e obsolescência produtiva. Em Cuba,
reformas de mercado foram tentadas desde o fim da URSS, podendo ser melhor
implementadas apenas sob o breve armistício de Obama contra a ilha. Com uma nova
ofensiva de sanções e bloqueio do governo Trump e Biden, diversas reformas tiveram
reveses e tiveram que voltar atrás, mas o ímpeto reformista continua apesar das
dificuldades do cerco imperial.

Na Namíbia, fronteira oriental do Brasil, o fim da URSS convergiu para o início


do socialismo. Com o fim do apartheid da África do Sul, a independência da Namíbia
levou ao SWAPO (Organização Popular do Sudoeste da África) como partido político
que se mantem no poder desde 1990. Mesmo com o país devastado pela guerra civil,
com poucos recursos humanos e econômicos, o SWAPO vem adotando desde 1990 um
modelo de desenvolvimento econômico mais flexível, que veio convergir na concepção
do “socialismo de mercado com características da Namíbia” desde 2017.

Na Venezuela, o governo não defende um modelo inspirado nas experiências


soviética, marcadas pela estatização de praticamente todos os meios de produção e
distribuição. Eles entendem a transição socialista pela combinação de quatro tipos de
economia. A primeira de controle estatal, orientada para os pilares do desenvolvimento
nacional. Outro, de caráter privado e concorrencial, destinado a se concentrar nos nichos
que não afetam o funcionamento estratégico do país. Um terceiro, de capital misto,
representando a associação do Estado com empresas privadas nacionais ou companhias
estrangeiras. E um quarto tipo que abriga a economia cooperativa e comunal, de
propriedade dos conselhos comunais e baseada na autogestão. Num contexto de cerco
imperial, a experiencia da Venezuela demonstrou as dificuldades de transição para o
socialismo de mercado mesmo com apoio das forças armadas, incluindo sanções
econômicas e terrorismo político para desestabilizar o regime. Para as potências
dominantes é estratégico que não existam mais países menos desenvolvidos que
pretendam seguir o socialismo de mercado, podendo gerar uma nova correlação de força
diante da ascensão da China.

92
2.3.5. POR QUE O SOCIALISMO DE MERCADO?

No capitalismo, o foco do Estado é o capital. Interfere para implantar infra-


estrutura para o capital, para apoiar setores do capital e salvar o capital quando entra em
crise. O capital é incapaz de uma perspectiva de longo prazo. E qualquer compensação
para as classes populares é feita à contragosto. No socialismo de mercado, o Estado
planeja e explicita seus projetos, combinando ações de curto, médio e longo prazo. O
papel do Estado é diferente das outras economias de mercado. O Estado mantém o
controle dos principais meios de produção, a maioria do sistema financeiro, o
desenvolvimento tecnológico e os ramos estratégicos da indústria e infra-estrutura. O
Estado interfere no mercado com seus bancos, indústrias, fazendas e órgãos de governo,
evitando desiquilíbrios do mercado em relação a preços e propriedades. O Estado
promove a distribuição de renda de modo a evitar polarização social.

Em um artigo de David Lane intitulado “Porque o socialismo de mercado é uma


alternativa viável ao neoliberalismo?”, debate-se a atualidade da perspectiva socialista
de mercado. Considerada uma alternativa viável ao capitalismo, a ideia-chave, de
acordo com cientistas políticos britânicos como Julian Le Grand e David Miller, é que o
socialismo de mercado retém o mecanismo de mercado enquanto socializa a
propriedade do capital. A “propriedade social” pode assumir muitas formas. A
propriedade cooperativa é altamente favorecida. Os empregados não possuem suas
máquinas ou empresas, o que seria considerado uma forma de capitalismo empregado.
Em muitas versões, as empresas têm o direito de usar e obter receita de seus ativos,
enquanto as agências de investimento possuem o capital e tomam decisões de gestão
estratégica. Mas cada empresa tem uma forma democrática e o controle dos
funcionários é uma delas (LANE, 2013). Conforme Lane,

Uma consequência de uma política socialista de mercado é que as empresas que falham
ao público e claramente carecem de responsabilidade pública seriam socializadas.
Atualmente, os setores bancário, de energia e de transporte ferroviário seriam os
principais candidatos. As políticas econômicas poderiam ser realizadas dentro da
estrutura capitalista para restaurar o crescimento e o emprego. Isso permitiria a
introdução de formas de planejamento indicativo que aumentariam ainda mais o
controle público (LANE, 2013).
Lane enfatiza que a maximização do lucro continuaria a ser a motivação do
empresário. A competição de mercado continuaria gerando lucros ou incorrendo em

93
falência. O objetivo seria alcançar um maior grau de igualdade na distribuição da
propriedade de capital. A renda da propriedade de capital não é obtida e sua distribuição
altamente desigual representa uma “responsabilidade moral”. Essa propriedade seria
“entregue” à propriedade pública. No entanto, os lucros do verdadeiro
empreendedorismo e inovação continuam e atuam como incentivos. E a renda
continuaria sendo usada como as pessoas desejassem – estilos de vida luxuosos e
conspícuos poderiam continuar (LANE, 2013). Nesta transição socialista de mercado:

Os valores capitalistas de competição e incentivo ao lucro ainda existem e


podem derrotar os elementos socialistas introduzidos pela propriedade social. Essas
políticas, pode-se admitir, são formas de capitalismo democrático com características
socialistas. Os níveis de desigualdade, mesmo refletindo uma contribuição positiva para
a economia, não seriam aceitos por muitos na esquerda. Lane aponta que o socialismo
de mercado tem a vantagem não apenas de fortalecer a democracia, mas também de se
mover na direção do socialismo dentro das sociedades capitalistas de mercado. A
socialização da economia, tal como o controle público, poderia ser introduzida de forma
fragmentada, formando um sistema híbrido. E a manutenção de muitos aspectos do
capitalismo, concomitante à introdução da propriedade e do planejamento socializados,
é considerada como tendo mais apelo para o público.

Haveria conquistas positivas em termos de alocação de capital e distribuição de


renda. Tem algum apelo até mesmo para os céticos em relação ao planejamento e à
gestão do Estado. Como um programa mínimo, ele reverteria a financeirização e
instalaria a propriedade pública sobre as empresas em falência. Finalmente, estenderia o
muito valorizado bem social da democracia na forma de cooperativas e controle dos
empregados. Lane enfatiza que os socialistas de mercado podem ser culpados por
simplificar demais suas propostas para um sistema econômico híbrido. Empresas
autônomas que buscam eficiência de mercado exigem incentivos e seu sucesso é medido
em termos de lucratividade. Isso, por sua vez, não apenas gera desigualdade, mas mina
os valores socialistas. As forças de mercado, mesmo no contexto de propriedade
pública, acarretariam um nível de anarquia econômica e incerteza. Lane pondera que a
divisão da economia em setores privados, coletivos e estatais e a orientação do
planejamento central e do mercado não tem sido fácil e operacionalmente sem
problemas, nem sempre combinando o melhor dos dois sistemas, ou seja, o mercado
livre e o socialismo planejado centralmente (LANE, 2013). Lane impressiona as mentes

94
mais utópicas que acreditam num socialismo sem conflitos, erros e contradições. Trata-
se de um sistema de transição essencialmente contraditório, com diversos riscos de
sabotagem e cheio de percalços.

Em um mundo com extrema necessidade de novos modelos, as “economias de


mercado socialistas” asiáticas podem oferecer uma alternativa realista para outros países
em desenvolvimento? O modelo contém importantes lições para outros estados, mas
devido às suas características distintas, bem como às variações locais entre China,
Vietnã e Laos, a economia socialista de mercado não representa um modelo facilmente
transferido e copiado para outros estados. Além disso, a economia de mercado socialista
é produto de um período único, representando estados comunistas moldados pela
Guerra Fria, adaptando-se às forças da globalização e à liberalização do comércio e dos
fluxos de capital. Porém, considerando as dificuldades de transição, todos os modelos
de socialismo de mercado são variações adaptadas às condições nacionais. E
representam um modelo que tem melhor desempenho do que os sistemas econômicos de
países com um nível semelhante de renda per capita em uma ampla gama de indicadores
de desenvolvimento12.

Nessa etapa de estágio de desenvolvimento das forças produtivas, o caminho


socialista terá que conviver com uma proporção de ações capitalistas que contribuam
para completar aquele desenvolvimento, conjugando diversas formas de propriedade:
estatal, privada, pública não-estatal, empresas mistas, associações público-privadas,
público-público, público-cooperativas, cooperativo-privadas, empreendimentos de
economia solidária. No socialismo a economia de propriedade pública não se limita às
economias estatais e coletivas, abrangendo em si ainda os componentes de propriedade
estatal e de propriedade coletiva dentro das economias de propriedades mistas.

O socialismo em países atrasados provavelmente deve combinar e promover


diversas formas de propriedade social, desde empresas cooperativas até empresas
estatais e associações destas com capitais privados, passando por um amplo leque de
formas intermediárias nas quais trabalhadores, consumidores e técnicos estatais se
combinem de diversas formas para engendrar novas relações de propriedade sujeitas ao
controle popular. Propriedade estatal, privada, pública não-estatal, empresas mistas,

12
Hansen, Arve (org.) A economia socialista de mercado na Ásia. Desenvolvimento na China, Vietnã e
Laos

95
associações público-privadas, público-público, público-cooperativas, cooperativo-
privadas, empreendimentos de economia solidária Um socialismo que potencialize a
descentralização e a autonomia das empresas e unidades produtivas e, ao mesmo tempo,
faça possível a efetiva coordenação das grandes orientações da política econômica. Um
socialismo com um ordenamento econômico mais flexível e diferenciado, no qual a
propriedade estatal dos recursos estratégicos e dos principais meios de produção –
questão esta não negociável – conviva com outras formas de propriedade pública não
estatal, ou com empresas mistas nas quais alguns setores do capital privado se associem
com corporações públicas ou estatais, ou com companhias controladas por seus
funcionários em associação com os consumidores, ou com cooperativas ou formas de
“propriedade social” fora da lógica da acumulação capitalista.
O setor público deve apoiar e desenvolver a área socialista da economia,
industrialização sobre a base de relações de produção socialistas, introdução de
elementos de planificação econômica e gestão socialista. As formas de propriedade
social, tais como autogestão, comunal e a propriedade estatal devem passar a jogar um
papel crescente no sistema econômico. A formação de novas estatais também pode
contribuir para o aceleramento de setores de ponta e a transformação de todas as estatais
em indutoras de industrialização. Consórcios estatais-privados também deveriam atuar
para o desenvolvimento das micros, pequenas e médias empresas capitalistas,
industriais e agrícolas, na perspectiva de romper os oligopólios das grandes burguesias,
estrangeiros e nacionais, reforçar a pequena e a média burguesia e, portanto, incentivar a
competição entre elas. O mesmo em relação às cooperativas e empresas solidárias. O
desenvolvimento das economias não-estatais sob as condições de predominação da
economia de propriedade pública é a exigência objetiva do desenvolvimento da força
produtiva na fase inicial do socialismo, e desempenha importante papel para satisfazer
as necessidades diversificadas da população para a vida material e cultural, ampliar os
empregos e promover a expansão de toda a economia nacional.

Nessa etapa de estágio de desenvolvimento das forças produtivas, o caminho


socialista terá que conviver com uma proporção de ações capitalistas que contribuam
para completar aquele desenvolvimento, conjugando diversas formas de propriedade:
estatal, privada, pública não-estatal, empresas mistas, associações público-privadas,
público-público, público-cooperativas, cooperativo-privadas, empreendimentos de
economia solidária. No socialismo a economia de propriedade pública não se limita às

96
economias estatais e coletivas, abrangendo em si ainda os componentes de propriedade
estatal e de propriedade coletiva dentro das economias de propriedades mistas.

Tensões e contradições num processo de construção deste modo de produção


socialista de mercado, guardada as características nacionais, são geradas
inevitavelmente. É evidente que o socialismo não é a erradicação da discórdia, a criação
de unanimidades em torno do “bem comum” ou a geração espontânea e permanente de
consensos. Se o socialismo fosse sem conflitos, defeitos e contradições, se está no reino
na utopia, no pior sentido do termo. Por isso, o socialismo de mercado, apesar das
contradições, supera a perda do escopo e a pureza da agenda socialista, colocando mais
concreto onde reinam boas intenções. Diante do capitalismo senil, o socialismo de
mercado oferece uma saída. Quanto mais povos e países iniciarem transições socialistas
fortalecendo este modo de produção emergente, podendo desafiar o capitalismo
financeiro e transnacional, inibir suas tendências mais destrutivas, como guerras, fome,
miséria, desemprego, crise climática, colonialismo, etc, mais rápido poderá uma
ofensiva socialista conter as inerentes tendências destrutivas do capital. Não se sabe se o
socialismo de mercado será a formação social de transição em todos os países do Sul
Global, para ter soberania, realizar o crescimento econômico, técnico e científico, tendo
a indústria como principal instrumento, que os levará a uma sociedade superior ao
capitalismo. Apesar disso, a experiência até agora exitosa demonstra que o socialismo
de mercado é uma poderosa estratégia cujos paradigmas podem ser utilizados por
qualquer país para seu desenvolvimento.

97
3. PARA ONDE VAI O SUL GLOBAL?

Olhando para os últimas 40 anos de dominância liberal, a taxa de crescimento


econômico geral foi menor do que o keynesianismo da Segunda Guerra Mundial
período. Nem os principais países capitalistas centrais e nem os menos
desenvolvidos (também conhecidos como o Quarto Mundo) ficaram ricos e fortes com a
globalização econômica neoliberal. Alguns até ficaram mais pobres. Com pandemia de
COVID-19, se escancarou as mazelas do capitalismo, como falta de coordenação
estatal, privatização e controle político em favor dos mais ricos, polarização e aumento
da desigualdade social, crescimento e produtividade em declínio, farra nos mercados
financeiros, insegurança alimentar e até casos de piratagem, como no caso do governo
Trump confiscando produtos médicos. Nesta situação, paralelamente, o mundo avança
para a fase de dominação socialista da globalização econômica liderada pela China com
o “socialismo de mercado” como alternativa realista ao Consenso de Washington e Wall
Street.

Enquanto a estratégia do Consenso de Washington leva ao anti-desenvolvimento


das nações do Sul, tanto o Capitalismo de Estado como o Socialismo de Mercado visam
o desenvolvimento socioeconômico como uma dinâmica de diversificação da estrutura
produtiva, inovação e controle nacional sobre a economia e maior posição mais central
no sistema mundial. Ambos levam que conta que o desenvolvimento envolve
simultaneamente processos internos e alterações do poder relativo dos países na esfera
internacional. Nesse sentido, desenvolvimento se refere tanto aos aspectos qualitativos
do processo de acumulação de capital e crescimento econômico quanto ao aumento do
poder nacional para se proteger do Norte. Se os países do Sul Global seguirem a linha
associada ao Norte, pouco deve-se esperar de resultados consistentes quanto ao
desenvolvimento nacional com a instauração de reformas voltadas a “aprofundar” a
ideia de transnacionalização desnacionalizadora das economias de estado.

O (sub)desenvolvimento do Sul Global também é em grande parte moldado,


controlado, monitorado, penalizado e incentivado por entidades do Norte. Ao se adotar
as linhas do Norte, é comum que, no Sul Global, se enfrente uma ausência de
ferramentas e estruturas de conhecimento, com formuladores de políticas que não
podem elaborar políticas relevantes sem assistência técnica externa projetada para
salvaguardar os interesses hegemônicos.

98
É verdade que, muitas ex-colônias permanecem limitadas pelo domínio colonial
em suas formas de conhecer, ver e visualizar o mundo. Foram bestializadas pela
repressão terrorista das classes dominantes locais em conluio com o Norte. Na academia
e na mídia, baseiam o desenvolvimento em indicadores, índices e teorias pré-fabricados
a estadistas que equiparam o progresso com assistência exógena e reconhecimento.

Apesar de existir uma falta de alternativas disponíveis ao capitalismo


monopolista no Ocidente, estamos vendo (com diferentes reações) a ascensão global da
China e outras experiências socialistas remanescentes sob um novo paradigma que se
pode denominar de forma ampla como “socialismo de mercado”, um sistema que
engloba diferentes cadeias produtivas e territórios e já apresenta uma superioridade ao
capitalismo em diversos quesitos. O socialismo tornou-se (novamente) possível e
factível com este novo modo de produção híbrido construído na China e alguns outros
países, em maior ou menor grau, como Vietnã, Laos, Cuba, Angola e Namíbia. Aqueles
que dizem que socialismo com mercado é impossível, um paradoxo, um oximoro ou
simplesmente indesejável, adotam uma posição negacionista da realidade histórica
construída nas últimas décadas na China e outros países socialistas.

É evidente que o capitalismo e as grandes potências fazem de tudo para não dar
espaço para que outro modo de produção se consolide, coexista e compita com ele. Com
o fim da URSS, muito se alardeou sobre a superioridade do capitalismo, porém hoje a
situação é substancialmente diferente, com o socialismo de mercado colocando novos
paradigmas ao Sul Global. Tensões e contradições num processo de construção deste
modo de produção socialista de mercado, guardadas as características nacionais, são
geradas inevitavelmente. Diante do capitalismo senil, o socialismo de mercado oferece
uma saída. Quanto mais povos e países iniciarem transições socialistas fortalecendo este
modo de produção emergente, podendo desafiar o capitalismo financeiro e
transnacional, inibir suas tendências mais destrutivas, como guerras, fome, miséria,
desemprego, crise climática, colonialismo, etc., mais rápido poderá uma ofensiva
socialista conter as inerentes tendências destrutivas do capital.

De forma geral, o socialismo de mercado é um sistema de transição socialista,


partindo das condições nacionais, combinando regulação do mercado com medidas
globais de planificação, admitindo uma diversidade de formas produtivas para equilibrar
o desenvolvimento econômico e social. Ainda existe um longo caminho para o processo

99
de desenvolvimento socialista com mercado nestes países, porém, pode ser que um
socialismo que conjugue desenvolvimento nacional, com estabilidade política e
crescimento econômico – como o socialismo de mercado – venha a despontar durante o
século XXI como um sistema social mais dinâmico, eficaz e justo que o capitalismo.

Poderia ser dito que, estrategicamente, o que está em jogo hoje é a transição de
países do Sul Global que estão na linha liberal-associada para um capitalismo de Estado
ou formas nacionais de socialismo de mercado. Um primeiro passo para a transição da
linha liberal para um capitalismo de Estado é garantir que os países tenham o direito de
usar tarifas, subsídios e outras políticas industriais para construir capacidade econômica
soberana. Com isso, uma institucionalidade política que submeta os interesses
monopolistas e se submeta ao planejamento dos recursos ociosos e ao plano de
desenvolvimento nacional delineado. Está transição hoje é boicotada e atacada em
diversos países pela capacidade de ação do Norte em criar golpes e rupturas de
processos de desenvolvimento nacional. Para o socialismo de mercado, é preciso
implantar enclaves estatais e socialistas na economia, competindo com o capitalismo.

O Sul Global é o único realmente interessado na superação do capitalismo


liberal. Por isso, uma nova ordem mundial liderada pelo Sul Global só é benéfica se for
feita com base na cooperação mútua, na consulta e respeito a forma com que cada nação
encontra para melhor se desenvolver.

O BRICS é um fórum multilateral transcontinental único que reúne cinco


grandes países — dois da Ásia (China e Índia), um da Eurásia (Rússia), um da África
(África do Sul) e um da América Latina (Brasil). Responde por quase 42% da
população mundial, 26% da superfície terrestre e 25% do PIB.

O que o distingue de outros fóruns multilaterais é que (a) serve como um contra-
ataque aos países ocidentais liderados pelos Estados Unidos que têm dominado a
economia, a política e o desenvolvimento globais até agora; e (b) fornece uma
plataforma para expressar as preocupações e aspirações dos países do Sul Global, que
superam o Ocidente em termos de população, recursos e, cada vez mais, em sua
contribuição para o desenvolvimento global. Assim, o BRICS, juntamente com outros
fóruns, como a Organização de Cooperação de Xangai (SCO), é um esforço inovador
para democratizar a ordem global no século XXI.

100
O desempenho do mecanismo BRICS até agora, desde sua criação em 2006, tem
sido um tanto instável. Do lado positivo, proporcionou um fórum para os líderes dos
cinco países membros se encontrarem regularmente e trocarem pontos de vista de
interesse comum para eles próprios e para o mundo em geral. Do lado negativo, não tem
havido cooperação intra-BRICS tangível e orientada para resultados, seja no campo
econômico ou político. Isso se deve principalmente às relações bilaterais fracas ou
tensas entre os países membros - especialmente entre a Índia e a China. Além disso,
alguns países (Índia e Brasil) têm laços estreitos com os EUA, que seguem uma política
agressiva anti-China e anti-Rússia. Como resultado, o BRICS permaneceu um tanto
amorfo. Diversas ações prejudicaram os BRICS – o golpe no Brasil, a guerra da OTAN
contra a Rússia, a decisão da Índia de ingressar no Quadrilátero de quatro nações
liderado pelos Estados Unidos, juntamente com o Japão e a Austrália para “conter a
China”, podendo se desdobrar para uma “OTAN asiática”, afetando a paz, a estabilidade
e a cooperação na Ásia.

Uma das singularidades dos BRICS é que cada membro também é uma
economia líder em seu continente ou sub-região dentro de um acordo de integração
regional: Rússia na União Econômica da Eurásia (UEE), Brasil no Mercosul, África do
Sul no a Comunidade de Desenvolvimento da África do Sul (SADC), a Índia na
Associação de Cooperação Regional do Sul da Ásia (SAARC) e a China na
Organização de Cooperação de Xangai (SCO), na Área de Livre Comércio China-
ASEAN e na futura Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP). Todos os países
que são parceiros dos BRICS nesses acordos de integração regional podem formar o que
pode ser denominado como o “círculo BRICS+” que se torna aberto a modos flexíveis e
múltiplos de cooperação (não exclusivamente via liberalização comercial) em bases
bilaterais ou regionais.

Em julho de 2023, foi oficializada a entrada de Argentina, Irá, Arábia Saudita,


Emirados Árabes Unidos, Egito e Etiópia, reunindo 46% da população mundial e um
PIB equivalente a 36% da economia global.

Os BRICS e os países sancionados começaram a construir novas instituições que


poderiam contornar sua dependência do dólar. Até agora, bancos e governos têm
confiado na rede da Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunications
(SWIFT), que é administrada pelos Serviços de Pagamento Interbancário da Câmara de

101
Compensação da Reserva Federal dos EUA e seu Serviço de Fundos Fedwire [sistema
de transferência de fundos de liquidação bruta em tempo real operado pelo Federal
Reserve Bank dos Estados Unidos]. Países sob sanções unilaterais dos EUA – como o
Irã e a Rússia – foram cortados do sistema SWIFT, que conecta 11 mil instituições
financeiras em todo o mundo. Após as sanções estadunidenses de 2014, a Rússia criou o
Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras (SPFS), que foi projetado
principalmente para usuários domésticos, mas atraiu bancos centrais da Ásia Central,
China, Índia e Irã. Em 2015, a China criou o Sistema de Pagamento Interbancário
Transfronteiriço (CIPS), administrado pelo Banco Popular da China, que está sendo
gradualmente utilizado por outros bancos centrais.

Os BRICS podem promover ideias sobre futuras moedas comerciais baseadas


em commodities, à medida que o dólar se torna mais armado por meio de sanções contra
a Rússia. A expansão dos BRICS parece lenta, mas seguramente se aproxima de uma
realidade. As sanções dos EUA contra a Rússia levaram alguns países a confiar mais em
suas moedas nacionais no comércio exterior. Também se fala cada vez mais em esforços
para integrar sistemas de pagamento e criar uma alternativa à plataforma de mensagens
de pagamento SWIFT. Os bancos centrais dos países do BRICS concordaram em
conduzir o quinto teste de um mecanismo bancário que poderia permitir reservas
conjuntas de "moeda alternativa" para proteger suas economias de choques externos.

O BRICS+ pode contribuir para a emergência de um mundo multipolar, com


prioridade na integração física, com ação política coordenada de países do Sul Global.
Pode ser, assim, uma “frente do Sul”, capaz de apoiar iniciativas independentes e
desenvolvendo a industrialização do Sul. O foco em eliminar as vulnerabilidades
externas e a construção do potencial nacional cria condições para uma estratégia de
desenvolvimento no Sul Global. E a realização do potencial do Sul Global alteraria a
correlação de forças em nível regional e mundial em detrimento do Norte.

O processo de emancipação do Sul Global começou no século XX e ainda está


longe da sua conclusão. Podem ser atrasados pelo controle financeiro e ideológico, por
guerras e guerras, mas não se consegue acabar com toda capacidade de resistência. As
transições de países liberal-dependente para capitalismo de estado ou socialismos de
mercado podem ser derrotadas, com a intensificação da luta de classes e do cerco
imperialista. Estes regimes para a ser “ditaduras corruptas”, “fracassos econômicos”,

102
“populismos”, etc, e tem que resistir as tentativas de desestabilização, penúncia
induzida, sanções e isolamento do sistema financeiro dominado pelo Norte. O Norte se
dá ao direito privilegiado e exclusivo de apontar quais são as civilizações a serem
defendidas e atacadas, com eterno primado moral e político sobre o resto, isso é, o Sul
Global. Todos os movimentos estratégicos do Norte visam impedir a emergência de
atores competitivos e independentes, inclusive minando alianças Sul-Norte, como entre
China e Japão, Rússia e Alemanha, China e Austrália, Brasil e União Europeia. O Sul
Global está em contradição com os interesses das potencias do Norte. Atua-se para
bloquear a ascensão de Estados que possam competir com a estrutura de poder
dominante. A estratégia do Norte é a contenção de potencias emergentes e bloqueio de
projetos nacionais com política externa e segurança autônoma. A estratégia dos Estados
Unidos para conter a China e considerar ameaças Rússia e Irã, entre outros, representa
uma estratégia de contenção do Sul Global. Essa estratégia de contenção do Sul pode
ser bem sucedida e inviabilizar no século XXI a formação de uma nova ordem mundial,
resultando na recolonização conduzida pelo Norte.

Os pilares da dominação do Norte – poder militar, político, econômico e


ideológico – são desafios pelo Sul Global que passa a reinvidicar um papel mais
significativo no sistema internacional, o que inclui a não-intervenção política-militar,
diversificação comercial, transferência de tecnologia e competição em indústrias
monopolizadas pelos Norte. O que está em jogo, neste contexto, é se os países do Sul
Global conseguirão adotar políticas mais apropriadas para sua emancipação e
desenvolvimento.

103
4. REFERÊNCIAS

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5. SOBRE O AUTOR

Fernando Marcelino Pereira nasceu em Curitiba (1987), graduado em Relações


Internacionais pela UNICURITIBA, Mestre em Ciência Política e Doutor em
Sociologia pela UFPR. Especializado em China, tendo atuado no Escritório Paraná-
China junto ao IPARDES. Membro do Núcleo de Estudos Paranaenses (NEP),
produzindo diversas pesquisas sobre genealogias de famílias ligadas ao poder
econômico, político, judiciário, midiático e do tribunal de contas no Paraná e no Brasil.
Militante do Movimento Popular por Moradia (MPM). Membro do Mimesis Conexões
Artísticas e Samba da Resistência. Autor de: Desencontros e seus golpes (2016, poesia),
Classes Dominantes no Paraná Contemporâneo (2019), COVID e a nova geopolítica
global (2020, relações internacionais), Revolta Paraná (2022, conto), Vivendo no Fim
dos Tempos (2022, teatro), 93 Haikais (2022, poesia), Oito Breves Amorosidades
(2022, poesia), Última Hora (2022, poesia), Em Defesa do Projetamento: Ignácio
Rangel e os desafios do desenvolvimento brasileiro (2023, planejamento), China: novos
ensaios (2023, ensaios), Marx no século XXI: valor, crise e capitalismo financeiro
(2023, análise), Guerra Civil Brasileira – 1891-1894 (2023, história), Dialética do
Planejamento Urbano em Curitiba (2003, planejamento), Geopolítica Hídrica Global
(2023, relações internacionais), entre outros textos e artigos políticos.

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