Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Fernando Marcelino
2023
2
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO
NA PUBLICAÇÃO (CIP)
Marcelino, Fernando
Marx no século XXI: valor, crise e capitalismo
financeiro. / Fernando Marcelino Pereira. –
Curitiba, 2023.
3
SUMÁRIO
Referências p. 119
4
Introdução: por que este livro hoje?
5
“modernidades alternativas”, “modernidade líquida”, “pós-marxismo”,
“sociedade pós-ideológica”, “hipermodernidade” e tantos “novos” conceitos
inventivos para tentar explicar a “novidade” da situação. Porém, parafraseando
Machado de Assis: “e você leitor, onde ficou nisto tudo”? Enquanto tantas
“novas” teorias e análises se mostravam ao mundo, a partir de um pressuposto
novo e diferente, dentro do seu dia-a-dia, dentro da sua luta no mercado de
trabalho, dentro do sustento da família em meio à questão salarial, dentro do
seu convívio diário com a questão de classes, dentro da sua relação de moradia e
empregatícia, seja com “o chefe”, com “a empresa” ou com a “burocracia”,
dentro de tudo isto, porque lhe parece que nada mudou para melhor e talvez as
coisas até pioraram? Pois é... eis uma questão relevante.
Talvez o problema desta dicotomia entre o dia-a-dia sentido e vivido pela
maioria das pessoas e estas “novas” teorias esteja “ainda” formulada por Marx
quando afirma que, dentro do capitalismo, o fetiche, a mais-valia, o
individualismo e a ideologia são elementos básicos e essenciais para a
sobrevivência do sistema e, não importando quem somos ou onde estamos,
dentro do capitalismo seremos inevitavelmente atingidos por estes elementos e,
uma das questões básicas para se “livrar” destes e conseguir pensar e/ou realizar
uma nova proposta e realidade, é conseguir superar as contradições dos
elementos constitutivos do capitalismo. Assim, caro leitor, não lhe parece óbvio
que o fetiche que nos é imposto se reflita também no pensar, na filosofia, e que,
filósofos e pensadores transformem o pensar, teorias, possibilidades e soluções
no seu próprio fetiche? Você é aloprado pelo sistema, abre um livro e vê que
estão todos dizendo que “tudo mudou” e que precisamos de “novas teorias”,
novas análises, pois nada é mais como era antes...
Este livro tem como objetivo problematizar, polemizar e contestar as
teses que defendem que Marx é anacrônico na contemporaneidade porque
viveríamos na era do fim da grande indústria no mundo. Afinal, ao se afirmar o
fim do papel da grande indústria na sociedade do capital se desdobra diversas
conseqüências analíticas e políticas relacionadas à forma mistificada com que se
passa a entender o mundo do trabalho como espaço sem subordinação e
sujeição das classes trabalhadoras aos processos de valorização do capital, as
lutas coletivas contra os novos patrões, contra o desemprego, contra a
maquinaria de uso capitalista, contra o Estado, contra as novas formas de
6
trabalho precário e desumanizador. Tudo se passa como se estivéssemos num
universo totalmente avesso a visão marxista acerca do processo de trabalho no
capitalismo.
Qual é a importância real da discussão se vivemos a “grande indústria” ou
não? “Praticamente” talvez nenhuma. Se a “grande indústria” existe, no sentido
que Marx a colocou e como este livro tenta mostrar a pertinência hoje em dia,
então, apesar das aparências, existe “chefe”, “empregado”, “assalariado”,
“capitalista”, “classes” e tantas outras coisas que Marx tão bem expôs. Se não
existe, então “tudo mudou” e vivemos em um “pós-tudo” extremamente
fetichista (que por “coincidência” é uma visão capitalista) e que tudo tem que
ser novamente repensado (que ironia os “gurus filosóficos de plantão” se
tornarem “famosos” com suas novas “teorias”). Além do que, para podermos
entender e escolher melhor quais as políticas e soluções necessárias para hoje e
o amanhã, é preciso discernir entre o que é real hoje e o que é puramente
imaginário. Se vivemos na “grande indústria” hoje, mas achamos que não, se
achamos que estamos em um outro lugar da história, então nossas lutas,
escolhas e decisões estarão sendo feitas contra um fantasma imaginário de uma
realidade inexistente.
Nossa intenção é saber até que ponto as categorias marxianas resistem às
“críticas” dos teóricos do trabalho imaterial e da “pós-grande indústria”
oferecendo uma apresentação à Marx para incitar o debate sobre a
contemporaneidade de seu pensamento para o século XXI. Aí talvez você se
pergunte: mas todos os vestígios marxistas do passado não haviam sido
superados? O capitalismo não triunfou? A concorrência não foi substituída pela
parceria, o conflito pela colaboração, a política pela técnica, o trabalhador pelo
operador, o chefe pelo cliente? Afinal, não vivemos finalmente num mundo
“pós-ideológico” já que todos os grandes projetos sócipolíticos do passado que
visavam ao comunismo fracassaram miseravelmente fazendo com que qualquer
tentativa de até imaginar uma sociedade para além do capital seria o sintoma de
insanidade?
Mas e se estes entendimentos estivessem profundamente contaminadas
por um “vírus”, não um que domine nossos computadores e a internet, mas um
que domine nossa forma de pensar e agir, um “virus” chamado ideologia?
7
O próprio Marx já nos alerta que a ilusão, o fetiche e a ideologia não estão
em primeira linha ligados ao “saber” dos processos, mas sim ao “fazer”, na ação,
pois são das práticas sociais que eles nascem. Em O Capital, explicando o
fetichismo da mercadoria, Marx salienta que:
É apenas a própria relação social das pessoas, elas mesmas, que toma aqui uma
forma fantasmagórica de relação entre coisas. (…) A isto eu chamo de fetichismo
que se cola ao produto do trabalho tão logo [este produto] é produzido como
mercadoria e por isso é inseparável da produção de mercadorias. Este carácter
fetichista do mundo de mercadorias aparece, como a análise anterior deixa claro,
da singularidade do caráter do trabalho social que produz mercadorias. (Marx,
Capital I)
8
Chegou-se por fim a um ponto crítico. O
fundamento do velho método, a simplista
exploração brutal do material humano, mais ou
menos acompanhada por uma divisão do
trabalho sistematicamente desenvolvida, não
era suficiente para atender aos mercados
crescentes e para fazer face à competição dos
capitalistas, cada vez maior. Soou a hora da
maquinaria.
Marx em O Capital
9
Capítulo 1
Qual é a atualidade de Karl Marx neste século XXI? O mundo hoje seria
radicalmente diferente daquele capitalismo trabalhado por Marx em O Capital e
nos Grundrisse? Seus conceitos fundamentais ainda são válidos ou fazem parte
de um passado remoto? Sua herança teórica é um estorvo para as lutas sociais
hoje? A rejeição dos fundamentos da teoria de Marx é a melhor forma de
“atualizar” seu pensamento para os movimentos anticapitalistas, como
acreditam os “pós-marxistas”?
Uma história nos é contada todos os dias. Marx teria sido um pensador
que anteviu o século XX. Esse mundo que Marx previu haveria surgido com a
Revolução Industrial e teve seu desenvolvimento máximo com o Fordismo até
meados de 1970. Entretanto, como conseqüência da crise do Fordismo, o
capitalismo teria entrado numa fase de profundas transformações na divisão do
trabalho e na modalidade de valorização do capital. Agora os processos de
trabalho se libertaram das agruras do “capitalismo industrial” já que existem
métodos de organização muito mais envolventes, flexíveis e dinâmicos que, ao
priorizar a subjetividade do trabalhador, acabariam por colocar em jogo todo o
estatuto teórico de Marx, em especial aquilo que foi escrito sobre como a grande
indústria ocupa o ponto máximo do desenvolvimento do capital. Uma nova
forma social estaria se desenvolvendo, os chefes não seriam mais chefes e a
tecnologia passaria ser a força produtiva essencial para a sociedade pós-
industrial. Seria o fim da grande indústria e o surgimento de uma nova forma de
produção/consumo para além da grande indústria que teria características
inerentemente pós-capitalistas apontando para um mundo novo sem
contradições de classes sociais, sem revoluções, sem exploração, sem
proletariado, sem alienação, sem ideologia, sem política, etc... É para
desmistificar esta visão da história e de Marx que escrevemos este livro.
Qual seria uma das grandes atualidades de Marx? Sem dúvida, é cada vez
mais claro que uma das principais contribuições de Marx é sua teoria do
10
Intelecto Geral (“General Intelect”). Infelizmente não seria exagero dizer quase
todos os marxistas do século XX deixaram esta questão de lado. Alguns diriam
que algo como um “Intelecto Geral” seria apenas mais um dos “resquícios
hegelianos” da teoria de Marx. Outros falariam “tudo isso é legal, mas o que
importa é a produção de mais-valia”. Para além destas baboseiras, o que Marx
dizia do Intelecto Coletivo? Qual é o seu papel do capitalismo? E na superação
do capital?
O que Marx fala sobre o Intelecto Coletivo está enquadrado num debate
mais geral sobre os desdobramentos do capital fixo e da mais-valia relativa na
sociedade do capital. O capital fixo é normalmente um “produto-maquinário”
qualquer usado para “trabalhar” algo e assim produzir mais-valia ele mesmo. É
diferente do capital circulante. Um exemplo típico seria o maquinário de uma
fábrica que, enquanto máquina a ser comprada, faz parte do capital circulante,
mas quando passa a produzir produtos e, no seu funcionamento, produzir mais-
valia, passa a ser capital fixo. É “fixo” porque não está circulando no mercado,
mas mesmo assim, e por isso mesmo, está produzindo mais-valia.
Se pegarmos o minério de ferro quando extraído, ele é capital circulante
pois é comercializado, comprado e vendido no mercado mundial. Depois passa a
ser aço que também é capital circulante, comprado e vendido no mercado.
Depois passa a ser, por exemplo, parte de um robô para fábricas de construção
de carros e, ainda aí, é comercializado, comprado e vendido para as fábricas.
Entretanto, quando este robô passa a ser usado para construir carros e, por este
motivo, transformar matéria para acumular valor a ela, neste momento este
minério-de-ferro-aço-robô passa a ser capital fixo. E o carro será capital
circulante, comercializado entre fábrica, revendedor e comprador final, até que
este comprador o use para transportar pessoas e “ganhar dinheiro” (mais-valia)
com isto, aí ele também será capital fixo. O desenvolvimento máximo do capital
fixo no capitalismo seria aquele capaz de produzir a auto-reprodução de capital
fixo estendendo assim sua lógica a amplos processos da vida social até então não
manipulados pelo capital. É um momento que propicia a luta de classes pelo
Intelecto Geral.
O “General Intellect”, traduzido para o português como “Intelecto
Coletivo” ou “Intelecto Geral”, nada mais é do que o acúmulo de conhecimento
produzido pela humanidade, ou seja, tudo que “a humanidade” sabe, todo o
11
conhecimento que é, de alguma forma, passada de uma pessoa a outra e, neste
passar conhecimento, se torna “público”, seja para poucas ou muitas pessoas.
Para Marx é óbvio que quando alguém inventa uma máquina, um computador,
por exemplo, esta pessoa nada mais fez do que reorganizar um conhecimento
acumulado durante milênios e inventar realmente, a partir daí, algo mínimo que
aparece como “novo”. Quem inventa um computador hoje (ou qualquer coisa!),
não inventa os números, não inventa a matemática, não inventa a física, não
inventa os milhares de avanços tecnológicos, científicos, sociais e humanos que
existiram no passado e possibilitam a “invenção” hoje de um computador. Todo
este conhecimento acumulado já existe e é isso que Marx chama de “Intelecto
Coletivo”. É a partir deste conhecimento acumulado que somos capazes de
“inventar” coisas e idéias novas que vão por sua vez também fazer parte do
Intelecto Coletivo. O Intelecto Coletivo não as são faculdades esparsas de cada
um – linguagem, disposição para aprender, memória, capacidade de abstração
– mas a possibilidade de auto-reflexão coletiva a partir do conhecimento
acumulado, uma abstração real cuja materialidade operacional organiza o
processo de vida no mundo. Para o capital controlar este Intelecto Coletivo é
necessário existir o que Marx chama de “subsunção real” do trabalho social.
Quando o trabalhador utiliza o maquinário, mas ainda é o que ele é e
trabalha com o que sabe e é capaz de fazer, com as suas aptidões, etc., e desta
forma é submetido ao processo capitalista de produção, Marx chama isso de
“subsunção formal” do trabalho ao capital. Quando é o maquinário que exige do
trabalhador como ele tem que ser, o que ele tem que fazer, quais aptidões ele
tem que ter, quando é o maquinário que dita as regras de conduta ao
trabalhador, então a isto Marx chama de “subsunção real” do trabalho ao
capital.
Na manufatura, a maior parte do trabalho é feito pelo homem e o
maquinário, no caso as ferramentas, são auxílios para o homem fazer seu
trabalho (subsunção formal). Com o passar do tempo, o sujeito em seu “tempo
livre” do trabalho vai pensando formas de trabalhar cada vez mais práticas, mais
eficientes e que o façam trabalhar menos. Juntando este “pensar” com o General
Intellect que já existe, o homem vai inventando máquinas para melhorar e
aumentar sua produção e, aos poucos, através da história, as máquinas vão
fazendo uma parte integrante da produção cada vez maior e o tempo de trabalho
12
que dependente do homem vai ficando cada vez menor. Esta transição entre “o
homem fazer a maior parte do trabalho e usar o maquinário como ajuda”
(subsunção formal) para “o homem fazer a menor parte do trabalho e usar o
maquinário como força produtiva majoritária” (subsunção real) é para Marx a
transição entre manufatura e Grande Indústria.
No gráfico abaixo tentamos colocar esta divisão histórica entre
manufatura, Grande Indústria, trabalho humano e maquinário, sendo que, por
ser uma simplificação, colocamos o General Intellect que alimenta o invento do
maquinário como uma diagonal reta, sendo que, se tomássemos os dados
históricos detalhadamente, esta “linha” seria provavelmente uma hipérbole.
14
parcelar em que o capital não conseguia expropriar amplamente o saber-fazer
do trabalhador coletivo para acumular mais capital e banir estratégias de luta
coletiva dos trabalhadores pela socialização e expropriação dos meios de
produção. Para Marx seria desta base produtiva contraditória que erigiria uma
sociedade que superasse o capital. Neste “ponto zero” que seria viável orientar o
horizonte comunista para a superação da “subsunção real do trabalho social
pelo capital total”. Isso, claro, só poderia ser compreendido retroativamente na
história ao se observar o desenvolvimento das forças produtivas e das relações
de produção.
Muita tinta já foi gasta nas últimas décadas procurando demonstrar que
já vivemos numa era “pós-qualquer forma de subsunção” do trabalho ao capital.
Toda esta conversa de subsunção do trabalho estaria esgotada historicamente. O
fim do Fordismo num sentido amplo, agitado pela geração de 1968,
representaria o fim deste esquema marxista tradicional. Algo novo estaria
surgindo e necessitava teorização urgente. Para isso era preciso que os conceitos
anacrônicos de Marx fossem deixados de lado. Um dos principais conceitos
jogados pelo precipício neste movimento foi o de Grande Indústria, a forma de
produção por excelência do capitalismo analisado por Marx.
A partir do fim dos anos 1960, o processo de reestruturação produtiva
impulsionou no centro capitalista uma relativa diminuição dos empregos no
setor industrial fabril por meio do desenvolvimento crescente da produtividade
e da intensificação do trabalho diminuindo, cada vez mais, a participação dos
operários manuais no processo de produção de mercadorias. Paralelamente
ocorre uma ampla deslocalização do trabalho para países cuja força de trabalho
era mais barata além da ampliação de mecanismos de reorganização fabril e
terceirização das cadeias produtivas. Ocorre também, como enfatiza Ricardo
Antunes (2005), um aumento das atividades dotadas de maior dimensão
intelectual, quer nas atividades industriais mais informatizadas, quer nas
esferas compreendidas pelo setor de serviços ou nas comunicações, entre tantas
outras.
Esses fenômenos trouxeram diferentes apreensões sobre o papel do
trabalho, da ciência, da política e da indústria na sociedade contemporânea.
Muitos marxistas e não-marxistas chegaram a proclamar a “extinção do valor-
trabalho” encenando a ascensão de uma “sociedade pós-industrial” baseada
15
somente no “trabalho imaterial”. A aceleração da tendência do capital de retirar
do processo de produção um grande número de trabalhadores foi vista por
alguns como uma forma de “libertação” do trabalhador do processo de trabalho
(escola do trabalho imaterial) ou como uma nova etapa do desenvolvimento do
capitalismo (teoria da pós-grande indústria). De forma mais ampla, é lugar-
comum, entre marxistas e não-marxistas, dizer que a teoria do valor trabalho
está diretamente ligada à fase industrial do capitalismo e que na atual fase “pós-
industrial” ela não tem mais condições de explicar a produção e a distribuição
do valor. Com o surgimento das novas tecnologias da informação, das redes
telemáticas, da microeletrônica, etc. as fronteiras entre o trabalho manual e
intelectual desapareceriam deixando a “subsunção real do trabalho” num
passado remoto. Vários sugeriram o advento de uma sociedade pós-industrial,
pós-lei do valor-trabalho, pós-grande indústria, pós-subsunção real do trabalho,
pós-sei lá o que. A chamada “sociedade pós-industrial” seria o sinônimo dessas
mutações que apontariam em direção à hegemonia do trabalho imaterial e do
“capitalismo cognitivo”. Nesta nova situação, a atividade cognitiva torna-se o
fator essencial de criação do valor (e não o tempo de trabalho produtivo), o
trabalhador não necessitaria mais de instrumentos de trabalho já que o capital
fixo se encontraria agora no cérebro dos seres que trabalham. Estaríamos
entrando num novo modo de produção pós-capitalista onde as contradições
próprias do capitalismo industrial teriam sido superadas pelo próprio capital.
Estaria se concretizando, diante de nossos olhos, uma era para além do valor em
plena vigência global do capital e a categoria de grande indústria seria
absolutamente insuficiente para dar conta de um processo de centralidade de
um trabalho vivo mais intelectualizado. Será mesmo? O que há de errado com
essa formulação?
Autores da “escola do trabalho imaterial” como Toni Negri, Michael
Hardt, Maurício Lazzarato, Enzo Rullani, Carlo Vercellone, André Gorz e
Giuseppe Cocco apresentam como problemática central a crescente dificuldade
do capital medir as gigantes forças produtivas sociais conforme a quantidade de
tempo de trabalho. Estaríamos vivendo sob a perda total de substância da lei do
valor devido à necessidade de gastar menos força de trabalho para produzir
mercadorias. Ao mesmo tempo, como a valorização das mercadorias depende
cada vez mais da “informação” contida nelas, a produção capitalista estaria
16
passando por uma mudança de qualidade, construindo a base técnica e formal
para a sociedade comunista. Ou seja, a revolução social seria supérflua diante da
força da revolução tecnológica em curso. O próprio capitalismo digital iria nos
levar a uma sociedade do “tempo livre” onde a produção pareceria cada vez mais
com a ciência e a arte. Como o conhecimento seria produzido fora do espaço
fabril, o “tempo de trabalho socialmente necessário” estaria emancipado. Os
conhecimentos, desincorporados de qualquer suporte material,
desequilibrariam toda a antiga “teoria do valor”. Em virtude de sua
desincorporação, os conhecimentos poderiam ser reproduzidos, trocados,
utilizados separadamente do capital e do trabalho. A economia cognitiva e o
capitalismo seriam inconciliáveis, pois a principal força produtiva – o saber ou o
conhecimento – não é quantificável pela medida de hora de trabalho.
Para Gorz, o conhecimento recobre uma grande diversidade de capacidades
heterogêneas. Não se trata de ter um trabalho cujo valor é uma medida de um
tempo homogêneo, que é medido em horas. Esse é um trabalho que não tem uma
medida comum. Ele é “julgamento, intuição, senso estético, nível de formação e
informação, a faculdade de aprender e de se adaptar a situações imprevistas”
(2005, p.29). São heterogeneidades de atividades ditas cognitivas, que formam o
capital imaterial do trabalho. Tendencialmente, o valor torna-se impossível de ser
medido apenas com o tempo do trabalho. Segundo Toni Negri,
Se antes, para produzir uma mercadoria, era necessário um certo número maior
de horas de trabalho simples (...) ou, de qualquer maneira, se para produzir um
número maior de mercadorias era necessário um aumento da massa de
trabalho, hoje, observamos, ao contrário, que cada aumento de produção nasce
da expressão de atividades intelectuais, da força produtiva da descoberta
científica e sobretudo da estreita aplicação da ciência e da tecnologia à
elaboração da atividade de transformação da matéria (Negri, 2003, p. 92-3).
17
qualidades e essas faculdades são habitualmente próprias dos prestadores de
serviços pessoais, dos fornecedores de um trabalho imaterial impossível de
quantificar, estocar, homologar, formalizar e até mesmo de objetivar (GORZ,
2005, p. 17).
18
O trabalho imaterial que produz “relações sociais” tem como matéria-
prima a subjetividade e o “ambiente ideológico” no qual esta subjetividade vive
e se reproduz (idem, p. 46). A produção de subjetividade deixa de ser somente
um instrumento de controle social e passa a ser diretamente produtiva no
processo de valorização. Nesse processo o trabalho imaterial tornaria impossível
a distinção entre tempo de trabalho e tempo livre, tempo produtivo e tempo de
lazer. A independência progressiva da força de trabalho intelectual e trabalho
imaterial em face do domínio capitalista fariam com que o tempo de trabalho
fosse uma base miserável de medida do valor que depende cada vez mais do
tempo de não-trabalho. O trabalho que produz produtos imateriais, como a
informação, o conhecimento, idéias, imagens, relacionamentos e afetos estariam
desestabilizando a unidade do valor fazendo explodir sua medida clássica. As
formas de criação do valor e do conteúdo do valor se modificaram não é mais
possível determinar a quantidade direta de trabalho necessária para sua
produção. Com isso a teoria marxiana foi declarada defasada em muitos de seus
elementos fulcrais (como por exemplo, a teoria do valor, a revolução social e a
ditadura do proletariado), pois o trabalho fabril estaria sendo substituído por
outras formas de produção comandada pelo trabalho dito “imaterial”.
Mesmo que por outros caminhos, Ruy Fausto e Eleutério Prado –
precursores da “escola da pós-grande indústria” – chegam a conclusões
parecidas com os companheiros da “escola do trabalho imaterial”. Aponta-se
que estaria havendo uma mudança na substância do valor, que antes era o
tempo de trabalho e agora, cada vez mais, seria baseado no avanço do
conhecimento, cognição ou informação que se dá no tempo de não-trabalho.
Esta tese vem da análise de Fausto (1989) sobre as conseqüências da pós-grande
indústria para a teoria marxiana do valor. Para ele, enquanto na “passada
grande indústria” a fonte do valor era o tempo de trabalho abstrato, na pós-
grande indústria a criação do valor depende cada vez menos do tempo de
trabalho e está cada vez mais assentada no conhecimento científico e
tecnológico, ou naquilo que Marx chamou, nos Grundrisse, de General Intellect
[intelecto coletivo].
Por mais que existam diferenças substanciais nas abordagens, ambas as
“escolas” têm em comum uma idéia muito propagada: o século XX teria
ilustrado perfeitamente as observações de Marx sobre o processo de trabalho
19
ajustado ao capital. Todos têm uma ingênua certeza que, no século XX, o
pensamento de Marx foi imbatível. Ele, mais do que ninguém, conseguiu
antecipar as principais tendências dos processos produtivos, em especial dos
pilares da “Grande Indústria Fordista-Taylorista”. O fio condutor desta mágica
ligação seria o binômio fordismo/taylorismo que representaria a base técnica
adequada à (re)produção de capital, a grande indústria. Marx seria um
antecipador do fordismo/taylorismo, a essência do processo de trabalho
capitalista. É daí que com a explosão do paradigma fordista/taylorista haveria
um esgotamento teórico da análise de Marx e seria necessário fazer uma crítica
derradeira à sua análise. Afinal, as mudanças decorrentes da produção flexível
teriam propiciado a ultrapassagem daquilo que Marx havia escrito sobre a
grande indústria, que havia ocupado o ponto máximo da produção de
mercadorias no sistema do capital. Começou assim a longa procissão que
proclama que teria surgido uma nova forma de produção, que era o fim da
grande indústria e do valor trabalho. Tornou-se quase uma regra encontrar nas
recentes transformações do trabalho e da sociedade algo para além da grande
indústria.
A conseqüência pré-marxista dessas teorias “pós-grande indústria” é que
dualizam a teoria de Marx entre “grande indústria = subordinação corporal e
manual” e “pós-grande indústria = atividade intelectual”. É como se o “novo” da
grande indústria não fosse a subsunção material + formal, isso é, real na
dimensão contraditória da dimensão manual e intelectual do trabalho vivo. Na
linha historicamente linear implícita de todos os teóricos da “pós-grande
indústria” existiria o predomínio da manufatura de meados do século XVI até o
último terço do século XVII. Depois começa o predomínio da grande indústria
até o final dos anos 1960. A partir de então o capitalismo teria entrado num
período “pós-grande indústria” em que a força produtiva do modo de produção
é a “inteligência coletiva”. É como se o capital analisado por Marx tivesse parado
no tempo, em específico numa etapa anterior de desenvolvimento real do
capital. A resposta e este “problema” é a criação constante de novos termos que
fossem capazes de compreender o que acontece hoje, entre eles “sociedade pós-
industrial”, “sociedade pós-moderna”, “sociedade do conhecimento”, “sociedade
pós-valor”, etc. Infelizmente esta nova terminologia deixa de ver os contornos
20
do que é realmente novo da Grande Indústria em Marx. No final de contas, esta
não é a verdadeira doxa dos marxistas hoje?
No que tange as soluções dadas por Ruy Fausto e seus impactos numa
formulação política de esquerda temos mais vergonha de evocar seu nome do
que reconhecimento da “importância” de seu trabalho. Entretanto, vamos expor
as teses gerais da “pós-grande indústria” de Fausto por apontar o extremo de
um entendimento falso e reacionário sobre Marx (e Hegel)1.
É sabido que o capital, enquanto valor que se valoriza infinitamente,
conforme sua reprodução ampliada, sempre tem como objetivo a auto-
valorização. O valor percorre diferentes formas, diferentes movimentos, nos
quais se mantém e, ao mesmo tempo, se valoriza, aumenta. A (re)produção do
capital depende do avanço histórico específico de sua composição orgânica que
se manifesta pela forma singular adotada de subordinação do trabalho ao
capital. Marx distingue a subsunção meramente formal e a subsunção real do
trabalho ao capital. Em O Capital, ele também distingue três modos de
cooperação: simples, manufatureira e grande industrial. Apenas as duas últimas
corresponderiam ao desenvolvimento do capitalismo. Segundo Ruy Fausto,
entretanto, diante do fim da grande indústria com a crise do Fordismo no final
dos anos 1960, deveríamos deixar de lado este esquema de O Capital e
vislumbrar algo que só teria sido esboçado nos Grundrisse onde Marx parece
indicar a possibilidade um quarto modo de cooperação no processo de trabalho
que poderia ser denominado de “pós-grande indústria”.
A tese de Ruy Fausto é que no Grundrisse, diferentemente d’O Capital,
Marx desenvolveria uma abordagem que apontariam rupturas qualitativas no
processo de trabalho baseado na grande indústria. Seria a emergência de um
novo estágio histórico e lógico do capital para além da manufatura e da grande
indústria onde a substância do valor deixaria de ser quantidade de trabalho
socialmente necessária. Nas suas palavras, na pós-grande indústria, “o trabalho
deixou de ser a fonte da riqueza e o processo material de produção deixou de ser
o lugar da necessidade” (idem, 2002). Buscando responder se “haveria uma
teoria marxiana sobre um capitalismo pós-grande indústria?”, Fausto indica
1
Definimos como “escola da pós-grande indústria” os teóricos que apontam, de diferentes formas,
a diluição do valor-trabalho no capitalismo contemporâneo, seja pelo avanço da tecnologia, pela perda de
centralidade do trabalho ou por mudanças qualitativas no capitalismo que apontam, dentro dele, forma de
produção positivamente pós-capitalistas.
21
essa terceira forma de industrialização que, em conjunto com a manufatura e a
grande indústria, fecharia a seqüência lógica de desenvolvimento da sociedade
capitalista e abriria as portas de uma nova sociedade. Essa necessidade lógica
faz Fausto defender em sua argumentação que
Até certo ponto, poder-se-ia dizer que esses três momentos têm algo a
ver com os três momentos lógicos que se pode reconhecer na estrutura
do modo de produção capitalista. O princípio da “produção simples” é
subjetivo, como é também subjetivo o princípio da manufatura. O
segundo momento lógico é o da essência do sistema, o da produção
capitalista enquanto produção capitalista. Seu princípio é objetivo, como
é objetivo o princípio da grande indústria. Finalmente, o terceiro
22
momento lógico é o da intervenção das relações de apropriação, o qual
revela o ‘fundo’ (Hintergrund) do sistema” (idem, p. 133).
23
em geral. O processo de trabalho é agora essencialmente processo de
produção (FAUSTO, 2002, p.130).
24
finalidade posta é criar valor e apropriar trabalho excedente, com isso ele
contribui a reduzir tempo de trabalho a um mínimo e a tornar livre o tempo de
todos. Mas essa criação do tempo de não-trabalho aparece do ponto de vista do
capital como não-tempo de trabalho, tempo livre para alguns. Por isso,
2
Concordamos plenamente com Henrique Amorim: “revendo a ousada interpretação de Fausto
dos Grundrisse percebemos que, de certa forma, ela está presa a uma lógica formalista do processo
25
capital e humanidade, o fim da história da luta de classes. Na pós-grande
indústria esta identidade é possível e, ao que tudo parece, conforme Fausto deve
ser garantida porque desequilibraria o capital. Haveria uma oposição entre
forma e matéria do capital onde “a adequação material do capital é posta em
xeque como por excesso de adequação” (2002, p. 131). Deste modo,
histórico. A ordem histórica está presa à ordem lógica, isto é, a um conjunto de abstrações conceituais que
seriam construídos antes mesmo da própria história. Essa interpretação, por sua vez, está ligada ao fato de
que nos Grundrisse a “pós-grande indústria” não teria sido elaborada por Marx e que sua análise neste
livro seria otimista, pois apresentaria, com base na redução do tempo de trabalho, uma ruptura qualitativa
com a produção capitalista. Os Grundrisse sondariam modificações na estrutura da produção que podem
gerar uma ruptura qualitativa. No entanto, essas rupturas não são apreendidas como rupturas de fato, mas
sim como negações dentro da forma específica da produção. Acrescente-se que tais negações não são
apresentadas como uma terceira forma — coisa que o próprio Fausto propõe (Amorim, 2006, 60).
26
reino do trabalho manual, repetitivo, parcial e univalente do capitalismo
keynesiano.
As teorias “pós-grande indústria” e do “trabalho imaterial” partem do
pressuposto completamente falso que considera o fordismo como a grande
indústria por excelência. Afinal, de onde vem o entendimento de que o binômio
fordista/taylorista representa a grande indústria descrita por Marx? É preciso
analisar em que se diferencia a forma de produção da grande indústria em
relação a esta chamada “pós-grande indústria”. Nosso objetivo é contestar as
teses defendidas pelos teóricos da pós-grande indústria que acreditam na
hegemonia de um “trabalho intelectual” que superou a subordinação do
trabalho ao capital. Viveríamos numa era baseada onde “as peculiaridades
pessoais são valorizadas” e que um processo de trabalho criativo e cheio de
sentido social passariam a fazer parte do desenvolvimento do capital. Os antigos
antagonismos de classe ficaram no passado e agora a “empresa” seria o local
para o desenvolvimento das individualidades. Não podermos mais crer na
erradicação do capital já que ele passa a representar uma modalidade de
impulsionar as atividades “cognitivas”, os comportamentos e as motivações dos
indivíduos de forma “positiva”. A luta agora seria contra a estabilização do
trabalho diante da constante mutação do conteúdo produtivo.
De forma paradoxal é exatamente neste momento de questionamento
generalizado do significado da categoria Grande Indústria que a forma
contemporânea do trabalho se apresenta de maneira cada vez mais complexa,
intensa, combinada, coletiva e flexível numa constante interação com máquinas
virtuais que se apropriam do saber coletivo, características fundamentais da
análise de Marx sobre a própria Grande Indústria e o Intelecto Coletivo. Mas
como viemos parar aqui?
Mesmo com a falta de explicações sobre esses paradoxos, os autores
destas “escolas” sempre procuram enfatizar que a manufatura foi superada pelo
fordismo/taylorismo, que o trabalho não é mais a medida de reprodução do
valor, que a grande indústria se fora da história junto com o esgotamento do
padrão fordista, que a ciência seria a única força produtiva no capitalismo
contemporâneo, que já vivemos no comunismo - mas apenas “em-si”. O que fica
claro é estas teorias da “pós-grande indústria” sob a hegemonia do “trabalho
imaterial” pressupõem, ao menos parte considerável, um entendimento
27
histórico e lógico essencialmente falso sobre a própria grande indústria. Sem
dúvida a crença que a grande indústria foi uma forma de produção de um
passado remoto é uma das operações ideológicas mais correntes hoje.
Para o senso comum teórico, seja marxista ou não, se costuma dizer que
o novo “paradigma tecnológico de produção”, conhecido como pós-fordismo ou
toyotismo, escapa às possibilidades de análise pela teoria de Marx pela suposta
extinção da grande indústria com o esgotamento do fordismo/taylorismo.
Infelizmente postular que encontrar uma teoria “pós-grande indústria” em
Marx seria a solução diante da bancarrota da grande indústria perpassa uma
visão mecanicista e positivista da grande indústria e da história. Nos Grundrisse
Marx é claro ao enfatizar que
28
conceituada por Marx já envolve uma subsunção intelectual do trabalhador
coletivo ao capital, pois depende da aplicação tecnológica da ciência na
maquinaria. Fausto liga a “subsunção real” com o trabalho manual fordista,
desconsiderando que a maquinaria da grande indústria depende da
expropriação intensiva da atividade intelectual do trabalhador coletivo.
Inclusive, sem esta forma de expropriação do “intelecto coletivo” a reprodução
das máquinas e suas rupturas tecnológicas seriam impensáveis. Sem a
maquinaria da grande indústria, o capital ficaria a mercê do desenvolvimento
técno-físico do trabalhador e não poderia explorar os potenciais
“informacionais” do valor de uso do trabalhador coletivo.
Afinal, se partirmos da análise que considera a grande indústria como o
padrão de acumulação baseado no binômio fordismo/taylorismo que se
estabelece no final do século XIX, teve seu auge no início do século XX e
esgotamento em meados de 1970, é natural retirar a conclusão que nas últimas
décadas emergiu no mundo do trabalho algo “para além da grande indústria”.
Entretanto, quando nos encontramos com o conceito de Grande Indústria
desenvolvido por Marx, é muito estranho considerar que grande indústria tem
como seu paradigma final o fordismo já que, em princípio, a aplicação da ciência
na produção é característica fundamental da grande indústria e o
fordismo/taylorismo está muito mais ligado a métodos e organização do
trabalho, representando assim apenas o início e a transição para um
desenvolvimento tecnológico propriamente dito. Mais estranho ainda é
identificar a maquinaria intelectualizada capaz de reprodução analisada por
Marx com a mediocridade maquinaria tecnológica do fordismo/taylorismo que,
consensualmente, transformava o trabalho vivo num instrumento de produção
desumanizador. Por isso que, nas palavras de Antunes, “quem lê com cuidado os
capítulos d’O Capital, quando Marx se refere à transição da manufatura para
grande indústria, vai ver que o taylorismo e o fordismo têm muito mais
elementos de continuidade do que de descontinuidade em relação à grande
indústria do século XIX” (2009, p. 28). Conforme Benedito Moraes Neto,
importante estudiosos desta problemática, o fordismo eleva a produtividade
social do trabalho pela via do parcelamento de tarefas e se funda sobre o
trabalho manual, características da manufatura. No fordismo as máquinas
exercem não o papel de intervenção direta no processo produtivo, mas a
29
diminuição dos tempos improdutivos da produção. Assim o fordismo é um
desenvolvimento da manufatura e não da maquinaria como conceitualizada por
Marx.
30
entendeu o socialismo como um “taylorismo com características soviéticas”
onde as técnicas científicas de trabalho se juntariam com a consciência
proletária coletiva. Lênin encarou o fordismo/taylorismo como a etapa mais
desenvolvida da produção capitalista enxergando-a como o melhor exemplo da
grande indústria, o estágio mais avançado das forças produtivas no capitalismo,
seu limite como base técnica. Não seria exagero dizer que uma das razões do
fracasso da primeira tentativa de superar o regime capitalista na Rússia esteve
profundamente relacionado com as limitações de uma tentativa de passar
imediatamente da manufatura taylorismo/fordista à “grande indústria
socialista”. A NEP (New Economic Policy) na Rússia começou essa tentativa de
expansão e generalização da “grande indústria taylorista” com atividades
fortemente mecanizadas. Segundo Lênin, com a NEP, “o Poder Soviético reforça
a grande produção contra a pequena, a avançada contra a atrasada, a
mecanizada contra a manual, aumenta a quantidade de produtos da grande
indústria nas suas mãos..., reforça as relações econômicas reguladas pelo Estado
como contrapeso às relações pequeno-burguesas anárquicas” (Lenin,1980, p.
505). O socialismo seria inconcebível sem a técnica capitalista do sistema Taylor
que implicaria num progresso enorme à ciência já que “analisa
sistematicamente o processo de produção e abre a via para um grande aumento
da produtividade do trabalho humano” (Lenin, 1986, p. 146). A grande tarefa da
República Soviética seria implantar em toda a Rússia o sistema Taylor e suas
riquíssimas elevações científicas da produtividade do trabalho. A possibilidade
de realizar o socialismo seria determinada pelos
32
“Der wirkliche Reichtum manifestiert sich vielmehr – und dies enthüllt die
groβe Industrie – im ungeheuren Miβverhältnis zwischen der angewandten
Arbeitszeit und ihren Produkt, wie ebenso im qualitativen Miβverhältnis
zwischen der auf eine reine Abstraktion reduzierten Arbeit und der Gewalt des
Produktionsprozesses, den sie bewacht“.
33
Assim já nas suas citações da Ideologia Alemã podemos observar a
incapacidade de Fausto em compreender a língua alemã e, ao mesmo tempo, a
distorção tendenciosa que faz desta quando lê Marx.
“Die soziale Macht, d.h. die vervielfachte Produktionskraft, die durch das in der
Teilung der Arbeit bedingte Zusammenwirken der verschiedenen Individuen
entsteht, erscheint diesen Individuen, weil das Zusammenwirken selbst nicht
freiwillig, sondern naturwüchsig ist, nicht als ihre eigne, vereinte Macht,
sondern als eine fremde, außer ihnen stehende Gewalt, von der sie nicht
wissen woher und wohin, die sie also nicht mehr beherrschen können, die im
Gegenteil nun eine eigentümliche, vom Wollen und Laufen der Menschen
unabhängige, ja dies Wollen und Laufen erst dirigierende Reihenfolge von
Phasen und Entwicklungsstufen durchläuft.” (Marx-Engels, Werke, Berlin, Dietz
Verlag. 3 Pag.34)
34
Marx deixa bem claro neste texto que “é apenas quando a cooperação
não é voluntária (nicht freiwilig), [imposta e não de livre e espontânea
vontade] (uma parte do texto de Marx que Fausto “esqueceu” de traduzir!) é que
a potência social aparece aos indivíduos que fazem parte desta cooperação
como uma “estranha [a eles] violência que se encontra fora deles” (eine
fremde, außer ihnen stehende Gewalt). Por isso é extremamente descabida
a afirmação de Fausto que “o dado fundamental é menos a subordinação de certos
indivíduos a outros indivíduos, do que a de todos a uma potência autonomizada”,
pois somente a subordinação de indivíduos a outros indivíduos, detentores estes
do poder e da capacidade violenta de o exercer, que pode criar uma “cooperação
não voluntária”.
A incapacidade de Fausto traduzir este parágrafo nos leva a crêr, lendo
sua “tradução”, que logo que exista uma “força de produção multiplicada, que
aparece através do esforço combinado (Zusammenwirken) de diferentes
indivíduos” nasce automaticamente um “força estranha fora deles” que
“percorre agora uma série de fases e graus de desenvolvimento sucessivos,
independente do querer e do agir (laufen) dos homens, dirigindo, agora,
mesmo este querer e agir”. O que Marx escreve porém é bem diferente, pois na
frase há mais um sujeito implícito e a um momento histórico anterior que
Fausto deixa fora da sua “tradução”. O sujeito implícito é por conta do “não
voluntário” (nicht freiwilig) que Fausto não traduz e que é essencial para a frase
já que aniquila esta “naturalidade ahistórica” do processo que Fausto quer
descrever mas que não existe no texto de Marx: há, no texto de Marx um
“alguém” que exerce uma violência e que impõe uma cooperação não
voluntária, e este “alguém” é o processo de produção capitalista que não possui
nada de “natural” ou inevitável. O momento histórico e a condição humana
anterior que existe no texto de Marx e que Fausto distorce quando traduz que
“independente do querer e do agir (laufen) dos homens, dirigindo, agora,
mesmo este querer e agir”, fica claro pois o “dirigindo agora” de Fausto apenas
pressupõe um passado mas não deixa claro qual, enquanto Marx, no texto
original deixa mais do que claro que não é “dirigindo agora” e sim que é apenas
à partir do momento no qual a “cooperação” é imposta pela “violência”
(Gewalt) do processo capitalista de produção é que o “poder unido” (“vereinte
Macht”) desta cooperação “não aparece como próprio (nicht als ihre eigne) [do
35
idivíduo] mas permeia o querer e andar [próprio] que primeiramente
(erst) dirigia o desenrolar das fases e das etapas de desenvolvimento”. Eis a
tradução correta para este fim de parágrafo. Não é “dirigindo agora”, como
coloca Fausto (pois “agora” seria “jetzt” em alemão, que não aparece na frase),
que dá a entender que de qualquer cooperação nasce automaticamente uma
“força estranha” que a dirige, e sim, como escreve Marx que “o querer e andar
[próprio] que primeiramente (erst) dirigia o desenrolar das fases e das
etapas de desenvolvimento”... “não pode ser mais controlado pelos
trabalhadores”, como era antes pois há uma imposição violenta das formas de
produção capitalista que transformam este “poder unido” da cooperação em
uma “força estranha” que “os trabalhadores já não conseguem mais dominar”.
Mais uma vez Fausto distorce Marx para tentar inventar momentos autômatos e
uma história aonde o ser social é apenas passivo da história. Continuando,
Fausto cita Marx:
"(...) O roubo de tempo de trabalho alheio sobre o qual repousa a riqueza atual11
aparece como base miserável diante dessa [base] que se desenvolve pela
primeira vez (neuentwickelri) criada pela própria grande indústria12. Logo que o
trabalho em forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de
trabalho deixa e deve deixar (muss aufhören) de ser a sua medida e por isso o
valor de troca [deve deixar de ser a medida] do valor de uso. O sobretrabalho da
massa12 deixou de ser condição para o desenvolvimento da riqueza universal,
assim como o não trabalho de poucos 13 para o desenvolvimento da força
universal do cérebro (Kopf) humano. Com isto, cai a produção fundada no valor
de troca e o próprio processo de produção imediato se despoja (erhält...
abgeslreift) da forma do carecimento (Notdürftigkeit) e da posição
(Gegensäztlichkeit).
E Fausto adiciona:
Como pode ele citar Marx que, no texto original em alemão, diz que “O
roubo do tempo de trabalho alheio sobre o qual repousa a riqueza atual
aparece como base miserável diante desta nova base desenvolvida pela
própria grande indústria” (Marx, Grunrisse, p. 593), e, logo após dizer “a pós-
grande indústria revela a base primeira”? Da onde ele tirou o “pós-grande
indústria” se Marx estava claramente dizendo que estas são especificidades da
grande-indústria? O texto de Marx, pelo menos no original em alemão, é mais
36
do que claro que ele está descrevendo a grande indústria e não algo que poderia
vir após ela.
Marx é bem claro ao descrever os por ele chamados, “estágios mais
avançados da grande indústria” e aqui não há dúvidas dos tremendos
equívocos de Ruy Fausto pois os textos originais deixam mais do que claro que
todos os “argumentos” de Fausto para uma “pós-grande indústria” são, para
Marx, a própria grande indústria:
Wie mit der Entwiklung der grossen Industrie die Basis, auf der sie ruht,
Aneignung fremder Arbeitszeit, aufhört den Reichturm auszumachen oder zu
schaffen, so hört mit ihr die unmittelbare Arbeit auf als solche Basis de
Produktion zu seien, indem sie nach der einen Seite hin in mehr überwachende
und regulierende Tätigkeit verwandelt wird; dann aber auch, weil das Produkt
aufhört Produkt der vereinzelten unmittlebaren Arbeit zu seien und vielmehr die
Kombination der gesellschaftlichen Tätigkeit als der Produzent
erscheint.(Grundrisse, 596-597)
Assim como com o desenvolvimento da grande indústria a base na qual ela está
fundamentada, ou seja, a apropriação do trabalho alheio, deixa de representar
ou produzir a riqueza, assim também com ela [a grande indústria] o trabalho
direto deixa de ser a base da produção e vai se transformando mais para o lado
de atividade de vigilância e regulação, porque também, o produto deixa de ser o
produto do trabalho direto individual e a combinação das atividades sociais
aparece muito mais como produtora. (Grundrisse, p. 596-597).
Marx diz que “nos estágios mais avançados da grande indústria todas
as ciências estarão presas a serviço do capital” e que “as invenções serão então
[apenas] um negócio e a utilização da ciência diretamente para a produção
será o único ponto de vista que a definirá e a solicitará” (Grundrisse, p. 591).
Por isso que, sinceramente, não precisamos nem de “pós-grande indústrias”
nem de Faustos. Mesmo assim achamos importante debater minunciosamente
aqui com estes teóricos do “trabalho imaterial” e da “pós-grande indústria” para
tentar esclarecer de uma vez por todas o que consideramos seus equívocos
básicos.
Nos próximos capítulos abordaremos alguns aspectos importantes da
nossa atualidade que divergem do ponto de vista dos teóricos do “trabalho
imaterial” e da “pós-grande indústria”, debatendo com Marx e alguns marxistas
conceitos como “grande indústria”, a relação entre maquinaria, valor, ciência e
capital, o significado real do não-trabalho na economia de tempo de trabalho do
capital e o novo papel do capitalista industrial no processo de financeirização da
grande indústria “cooperativa” e “não-hierárquica” e assim por diante.
37
Capítulo 2
A Real Grande Indústria
38
repugnante, como meio sistemática de explorar a força de trabalho” (idem, p.
482). Em suma, a entrada da maquinaria no processo de trabalho não significa
imediatamente uma transformação na base social e cultural necessária para a
grande indústria.
Segundo Marx um dos principais costumes tradicionais herdados da
manufatura é o modo vertical de organização do trabalho, característica típica
da rigidez fordista. Nesse período de transição da manufatura à grande
indústria, a técnica entra em conflito com a base herdada da manufatura e do
artesanato. Essa transição é importante, pois a manufatura se constitui como a
base técnica imediata da grande indústria que “se erguia, naturalmente, sobre
uma base material que lhe era inadequada. Atingindo certo estágio de
desenvolvimento, tinha de remover essa base, que encontrou pronta e
aperfeiçoou em sua forma antiga, para estabelecer nova base adequada a seu
modo de produção” (idem, p.438). Com a emancipação da máquina em relação
aos “limites pessoais da força humana”, a base técnica que fundamentava a
divisão manufatureira do trabalho desaparece. Assim, “a hierarquia dos
trabalhadores especializados que a caracteriza é substituída, na fábrica
automática, pela tendência de igualar ou nivelar os trabalhos que os auxiliares
das máquinas têm de executar; as diferenças artificiais entre os trabalhadores
parciais são predominantemente substituídas pelas diferenças naturais de
idades e de sexo” (idem, p. 480). Se a tendência rumo a horizontalização da
organização do trabalho é típica da grande indústria, porque ocorre uma ligação
quase automática entre grande indústria e a estrutura vertical da empresa
fordista? Na verdade, o processo de trabalho na grande indústria tem
características muito parecidas com empresa flexível pós-fordista, uma espécie
de burocratismo coletivista high-tech, com uma base técnica de matriz
informacional microeletrônica, com redes informáticas e telemáticas de
comunicação, equipes competitivas baseadas no envolvimento cooptado dos
trabalhadores sociais, assim como na expropriação do intelecto coletivo.
Podemos perceber a diferença entre a linha de montagem fordista e uma
produção maquinal da grande indústria na passagem de Marx em O Capital:
39
para outra fase de produção. Assim como na manufatura a cooperação direta
dos trabalhadores parciais estabelece determinadas proporções entre os grupos
particulares de trabalhadores, também no sistema articulado das máquinas a
contínua utilização das máquinas parciais umas pelas outras estabelece uma
relação determinada entre seu número, seu tamanho e sua velocidade. A
máquina de trabalho combinada, agora um sistema articulado de máquinas de
trabalho individuais de diferentes espécies e de grupos das mesmas, é tanto
mais perfeita quanto mais contínuo for seu processo global, isto é, com quanto
menos interrupções a matéria-prima passa de sua primeira à sua última fase,
quanto mais, portanto, em vez da mão humana, o próprio mecanismo a leva de
uma para outra fase da produção. Se na manufatura o isolamento dos processos
particulares é um princípio dado pela própria divisão de trabalho, na fábrica
desenvolvida domina, pelo contrário, a continuidade dos processos particulares
(Marx, 1999, p.437-8).
40
2.2. Maquinaria, medida e autodissolução do capital
41
Além disso, transforma-se radicalmente a composição do trabalhador coletivo,
das pessoas qe trabalham em combinação (idem. p, 524).
42
uma elevação do valor por unidade de tempo. Diante do crescente potencial de
produção da riqueza material das forças produtivas, o valor se apresenta cada
vez mais como anacrônico em sua forma determinante de riqueza encontrando
crescentes dificuldades para se valorizar. Paradoxalmente o incremento
tecnológico na produção generaliza mais riqueza material produzindo mais
coisas com uma mesma quantidade de tempo necessário de trabalho. Portanto,
a grande indústria tem no seu interior a contradição entre a expansão da
capacidade de produção de riqueza material pelo desenvolvimento da
maquinaria e os meios de apropriação da mais-valia pelo tempo de trabalho
abstrato para valorizar o valor.
Para Marx o desenvolvimento das forças produtivas chega ao ponto de
que as forças de trabalho tornam-se, em si, meios de produção pelo papel que
cumprem no sistema de máquinas. Estes meios de produção corporificados na
força de trabalho são, em sentido amplo, expropriados pelo capital por sua
finalidade de auto-valorização mediada pela necessidade do “toque do valor de
uso” na produção e circulação de mercadorias. Como a atividade do trabalhador
coletivo é determinada pelo movimento da maquinaria na grande indústria, seu
saber-fazer é expropriado para conseguir valorizar o valor o máximo possível
reproduzindo a condição de “autômato” do proletariado para o capital. Assim, o
tempo de reprodução das máquinas passa a ser determinante do valor na
grande indústria. Com isso a capacidade da maquinaria de “objetivação” das
funções mais abstratas do intelecto humano torna possível a transformações
profundas nas atividades intersubjetivas. Além disso, a maquinaria da grande
indústria tardia tem a capacidade de corrigir-se e adaptar-se a demandas
variáveis. O capital fixo da maquinaria, com o avanço da grande indústria, é
extremamente flexível na sua capacidade de apropriar a informação como
matéria-prima (inclusive informação sobre o interior dos corpos e mecanismos
digitais). Esta não seria então a “subsunção real do trabalho” em sua forma mais
radical, quando os trabalhadores vivos são, nos termos de Marx, “subsumidos
sob o processo completo da própria maquinaria”?
A tendência central do capital é a transformação dos meios de produção
em maquinaria. A contradição material em jogo não é somente entre
trabalhadores assalariados e capitalistas industriais, mas entre o “trabalho
objetificado” e o trabalho vivo. A transformação qualitativa do capital fixo
43
ocorre quando ele existe enquanto maquinaria. Na realidade, apenas na grande
indústria o capital fixo se torna a forma adequada ao capital em geral. O valor
de uso da força de trabalho coletivo atrelada ao capital fixo faz com que o
trabalho social geral se apresente não mais no trabalhador, mas no capital. Ao
contrário da força de trabalho como meio de produção, o capital fixo
revoluciona todos os outros meios de produção sendo capaz de apropriar-se de
uma crescente porção da dimensão intelectual do trabalho vivo para reproduzir
a si mesma. Nas palavras de Marx,
44
vivo: na maquinaria, o trabalho objetivado se confronta materialmente com o
trabalho vivo como sendo um poder que o domina e como subordinação ativa do
segundo ao primeiro, não só através da apropriação do trabalho vivo, como
também no próprio processo real de produção (MARX, 1973, p. 220). O
aperfeiçoamento das máquinas, enquanto aplicação consciente da ciência, “só
ocorre quando a grande indústria já alcançou um nível superior e o capital
capturou e colocou ao seu serviço todas as ciências; por outro lado, a própria
maquinaria existente já garante grandes recursos” (MARX, 1973, p. 227). Nesse
estágio de desenvolvimento, a atividade inventiva torna-se objeto de um ramo
particular da economia: “as invenções se convertem, então, em um ramo da
atividade econômica e a aplicação da ciência à própria produção imediata se
torna um critério que determina e incita a esta.” (idem, p. 227,). O próprio Marx
reconhece que este “não é o caminho pelo qual surgiu em geral a maquinaria e
menos ainda o caminho pelo qual ela prosseguiu em detalhes.” (MARX, 1973, p.
227). Ele descreve esse curso assim:
45
para se avaliar em que proporção a ciência se objetivou em meios de trabalho e
se tornou uma força produtiva imediata, isto é, uma força produtiva objetivada.
Entretanto, a ciência que obriga aos membros inanimados da máquina a operar
como autômatos também existe na consciência do trabalhador funcionando
como um poder alheio sobre ele. É uma subordinação REAL – manual e
intelectual – do trabalho coletivo pela maquinaria utilizada pelo capital.
Paradoxalmente, Marx aponta nestas condições contraditórias a possibilidade
de “auto-emancipação do trabalho” já que o desenvolvimento do capital fixo
assinala tanto o grau de progresso do modo de produção como a dissolução
dessa forma de produção:
46
de mais-valia. A crise da medida do valor põe em crise a definição da essência
do valor. Ela põe em crise as regras das transações mercantis. No sentido
econômico, o “valor” designa hoje o valor de troca de uma mercadoria contra
outras mercadorias (Gorz, 2003, p. 34-35).
O que foi caracterizado por Marx como uma relação de proporcionalidade entre
horas necessárias à produção e quantidades de mercadorias produzidas acabou
por ser reduzida a uma operação matemática que pleiteava um resultado
numérico, pressupondo que a força de trabalho explorada (frise-se, intelectual e
fisicamente), em horas de trabalho, poderia ser transformada em “fatores de
produção” de uma equação matemática. Pressupõe-se, dessa forma, que haveria
no interior da teoria do valor de Marx a possibilidade do cálculo “contabilístico”
do valor do trabalho em si e que esse cálculo não seria mais possível hoje devido
a uma suposta predominância de trabalhos não-manuais como agentes da
geração de mais-valia (idem, p. 27).
47
relação matemática de horas despendidas no trabalho como base da extração de
mais-trabalho ao capital. Portanto, é necessário ser mais preciso que os teóricos
do trabalho imaterial: a questão não é que o valor não pode mais ser medido
aritmeticamente pela quantidade de horas de trabalho com a produção dita
“imaterial”, na realidade o valor como tal nunca pode ser medido desta forma.
Como diz Marx em uma famosa passagem:
48
do trabalho. A própria grande indústria é este processo em que o “trabalho
intelectual” passa de improdutivo para produtivo e criador de valor, produzindo
mais-valia e tornando rentável o capital. Com a grande indústria pós-fordista se
cria uma ruptura no desenvolvimento da maquinaria até então, agora incluindo
a auto-reprodução das máquinas, manipulação biogenética, informação em
rede, cibernética, telemática, entre outros processos, construindo um espaço de
sociabilidade não-material apropriado pelo capital. É este espaço que constitui a
grande indústria pós-fordista que expropria o intelecto coletivo de milhões e
milhões de trabalhadores por todo mundo.
Para Slavoj Zizek, diferentemente do que Marx parecia esperar, a
autodissolução do capitalismo não pode ocorrer devido ao processo corrente de
privatização do próprio “intelecto coletivo”. Para entender o que seria a nova
forma de privatização do “intelecto coletivo” precisaríamos transformar
criticamente o aparelho conceitual de Marx. Quando as formas de riqueza se
tornam cada vez “mais desproporcionais ao tempo de trabalho direto gasto em
sua produção”, em razão do papel crucial do “intelecto coletivo” (conhecimento
e cooperação social), não estaríamos presenciando a autodissolução do
capitalismo (como Marx postularia), mas sim “uma transformação relativa
gradual do lucro gerado pela exploração da força de trabalho em renda
apropriada pela privatização desse mesmo “intelecto coletivo” (ZIZEK, 2011, p.
122). Zizek alega que o que Marx deixou de notar na sua tentativa de liberar
toda a tendência descontrolada para a produtividade que estava impedida pelo
capitalismo é que o modo de “obstáculo” ou “antagonismo” no qual o
capitalismo se constitui é não apenas a “condição da impossibilidade” deste
sistema econômico mas a sua própria “condição de possibilidade”. Se
tivéssemos de remover este impedimento característico do capitalismo,
perderíamos a própria produtividade que é gerada por ele; se tirarmos o
obstáculo, o próprio potencial obstruído pelo obstáculo é dissipado. Estas
contradições do desenvolvimento do capital chegam a novas determinações da
tecnologia digital quando, como escreve Simone Wolff, a grande novidade é a
possibilidade de se manipular informações tal como outrora se fazia com
matérias-primas de dimensão material, o que permite ao capitalismo de hoje
transformar e explorar mercadorias não só no plano material, mas também no
imaterial (WOLFF, p. 90). O trabalho vivo, ao se converter em mais um fator de
49
produção, empregado somente para amplificar as potencialidades postas pela
maquinaria, instaura novas formas de subsunção real do trabalho ao capital
(idem, p. 91). Com a máquina assumindo funções que até então eram reservadas
ao trabalho vivo, “o conhecimento empírico, fruto da experiência advinda da
relação entre trabalho humano e natureza, desprende-se do homem e torna-se
ciência” (idem, p. 96). A incorporação da ciência na maquinaria promove um
avanço qualitativo naquilo que Marx chama de subsunção real do trabalho ao
capital por “otimizar de forma inédita, isto é, automática, o controle sobre os
processos de trabalho” (idem, p. 97).
Este processo está profundamente ligado com o papel central com nas
últimas quatro décadas a evolução tecnocientífica passou a ter na dinâmica do
capital. Como aponta Laymert Garcia dos Santos,
Este etapa do capitalismo parece muito com a advertência feita por Marx
nos Grundrisse sobre o desdobramento da grande indústria: “nos estágios mais
avançados da grande indústria todas as ciências estarão presas a serviço do capital”
e que “as invenções serão então [apenas] um negócio e a utilização da ciência
diretamente para a produção será o único ponto de vista que a definirá e a solicitará”
(Grundrisse, p. 591). O que teóricos da sociedade pós-industrial, do ciclo do trabalho
imaterial, do capitalismo cognitivo, da pós-grande indústria e tantos outros não
entendem é que suas críticas a Marx perdem totalmente o foco quando apontam uma
corrente transformação do próprio modo de produção num período que universalização
das contradições próprias da grande indústria, da lei do valor, da alienação, do exército
industrial de reserva, dos capitais fictícios, etc. Além disso, estes teóricos não enxergam
que a centralidade do intelecto coletivo é própria da grande indústria do capitalismo,
que é crucial que na grande indústria se produza uma inteligência coletiva que se
espalha por toda parte e que o capital depende cada vez mais das formas de
expropriação privada – por mais difícil que seja – deste conteúdo abstrato. É por esta
50
razão que a mundialização do capital contemporânea corresponde à emergência
das contradições mais avançadas da grande indústria. Hoje o capital procura o
controle e a colonização do espaço “virtual” das máquinas e corpos promovendo
a privatização do “intelecto coletivo” e do campo eletromagnético e virtual
existente e compartilhado por bilhões de pessoas. Para que isso ocorre é
necessária a ideologia baseada na fusão da racionalidade econômica com a
racionalidade tecnocientífica tornando um mesmo movimento que busca
destruir qualquer tipo de limitação ao seu desenvolvimento incontrolável. Neste
estágio do capitalismo, cheios de fetichismos nos mais diferentes graus, a ampla
utilização das tecnociências no processo de produção e circulação leva a crença
que considera como “neutro” e natural este caminha do desenvolvimento das
forças produtivas encarando este processo como inevitável.
Giovanni Alves (2011) propõe uma nova periodização das revoluções
tecnológicas engendradas pelo capital desde a revolução industrial “original” de
fins do século XVIII e primórdios do século XIX: a Primeira Idade da Máquina
seria aquela ligada à produção de motores a vapor a partir de 1848; a Segunda
Idade da Máquina, ligada à produção de motores elétricos e de combustão a
partir da década de 1890; a Terceira Idade da Máquina se daria com a
produção de motores eletrônicos e nucleares a partir dos anos 40 do século XX;
e por fim, a Quarta Idade da Máquina estaria ligada à produção de máquinas
microeletrônicas e sua integração em rede interativa ou controlativa
(ciberespaço) a partir da década de 1980. A relação com a máquina e sua
representação altera-se dialeticamente em cada um desses estágios
qualitativamente diferentes de desenvolvimento tecnológico. Com a IV
Revolução Tecnológica, entretanto, é instaurada uma ruptura fundamental (ou
“salto quântico” nos termos de Fredric Jameson) no desenvolvimento
tecnológico do maquinário no capitalismo, propiciando as condições materiais
para o desenvolvimento pleno (e tensionado) do capitalismo global. Conforme
Alves, a materialidade de máquina trazida pela IV Revolução Tecnológica,
entretanto, seria inadequada para as estratégias reprodutivas do capital, o que
não significa que ela não possa ser apropriada ou até desenvolvida pelo sistema
social do capital, mas que seu desenvolvimento concreto expõe de forma
flagrante, os limites estruturais da forma social estranhada do capital.
51
No processo de trabalho, com o implemento tecnológico-informacional, as
“máquinas inteligentes” passam a utilizar-se do trabalho intelectual do operário
que, ao interagir com a máquina informatizada, acaba também por transferir
parte dos seus novos atributos intelectuais à nova máquina que resulta desse
processo. Estabelece-se, então, um complexo processo interativo entre trabalho
e ciência, que não leva à extinção do trabalho, mas a um processo de
retroalimentação que gera a necessidade de encontrar uma força de trabalho
que deve ser explorada de maneira mais intensa e sofisticada, ao menos nos
ramos produtivos dotados de maior incremento tecnológico. Entretanto, apesar
do papel crescente da ciência no processo de trabalho, ela permanece
aprisionada por restrições estruturais, restringida em seu desenvolvimento pela
base material das relações entre capital e trabalho a qual não pode superar, não
permitindo, desta maneira, que ela se converta em principal força produtiva.
Em conseqüência, dada a relativa irrelevância do tempo de trabalho e a
proeminência da qualidade desse tempo, a ciência e a tecnologia tornam-se
produtoras de “valor” por meio do trabalho. Assim, mesmo se o tempo de
trabalho socialmente necessário é suprimido como medida da riqueza
capitalista, esta tem ainda de ser medida (ANTUNES, 1999, p.161). Portanto, a
“crise da medição do valor” e seus “padrões clássicos de medida” não é uma
novidade exclusiva do capitalismo contemporâneo já que existem truncamentos
inerentes à valorização do valor, de expropriação do valor de uso do trabalho
coletivo. Não é a toa que, como escreve Alves, o principal eixo dos dispositivos
organizacionais do processo de trabalho hoje é a “captura” da subjetividade do
trabalho coletivo pela lógica do capital.
52
Estabelece-se uma interação entre a universalização do modelo
organizativo “toyotista” e a privatização do intelecto coletivo. A significativa
expansão de um trabalho coletivo dotado de maior dimensão intelectual que
perpassa toda a grande indústria, em especial com os avanços da informática e
telemática incorporando também o setor de serviços, comunicações, gerencia e
finanças é dependente de novas formas de expropriação da dimensão virtual do
trabalho coletivo. Para Alves, na Quarta Idade da Máquina a constituição de
redes informacionais altera, de forma qualitativamente nova, a relação entre
matéria técnica (objetos de trabalho) e forma organizacional (gestão do trabalho
vivo):
Para André Gorz, esta nova socialibilidade é vista como uma ampla
liberdade ao trabalhador. Com o computador a separação entre os trabalhadores
e o trabalho reificado seria “virtualmente abolida” e os “meios de produção se
tornam apropriáveis e suscetíveis de serem partilhados”. Ele escreve que “o
computador aparece como instrumento universal, universalmente acessível, por
meio do qual todos os saberes e todas as atividades podem, em princípio, ser
partilhados” (GORZ, 2005, p. 21).
53
Mas esta “negação prática” é feita porque a base técnica dos programas de
computador é inerentemente “livre” e imediatamente socializador dos meios de
produção? Esta seria uma atividade propriamente comunista nos interstícios
digitais do capitalismo (que não poderia mais avançar sem essa atividade)? É
tão certo assim que o espaço digital não se encontra amarrado aos imperativos
de expropriação virtual do capital? Esta idéia não nos leva a crer que o
ciberespaço é neutro em relação a luta de classes e que, assim, é um espaço nas
“nuvens” que não lida com as contradições capitalistas reais e as relações de
poder existentes?
Ao contrário deste raciocínio ligeiramente ingênuo, na realidade, com a
imbricação das redes informáticas e telemáticas na internet nasce o que parece
ser o processo mais amplo de privatização do “intelecto coletivo” hoje: o
ciberespaço com seu fomento generalizado de regras de conduta que não violem
a “propriedade intelectual” além do controle de dados, nomes, relações,
interesses, conhecimento, fotos, músicas, e-mails, hábitos de navegação,
conversas, imagens, plataforma de uso e toda forma de criação. O ciberespaço
capitalista funciona como um gigantesco Shopping Center: uma nova forma de
apropriação do espaço com novos hábitos para fugir dos aspectos “negativos” da
realidade. Cria-se então um espaço virtual ideal que concentra inúmeras opções
de consumo para os mais variados gostos e necessidades acabando por se tornar
uma unidade simbólica de reprodução do capital. Seu formato constituído em
redes “rizomáticas” e “desterritorializadas” em expansão ilimitada com
processos de trabalho amplamente fragmentados não deve nos enganar: o
ciberespaço não é um espaço público e aberto, mas privado com o objetivo de
capturar, manipular e privatizar o substrato subjetivo da interatividade
virtual e o intelecto coletivo. A materialidade do ciberespaço gera a ilusão
abstrata de ser um espaço livre, sem as mediações capitalistas reais
disseminando a idéia de que haja espaços puramente tecnológicos, sem
envolvimento com os processos produtivos. Este é o espaço fundamental para o
processo corrente que Arakin Monteiro chama de ciberespoliação:
54
modelos dos empreendimentos. A ciberespoliação surge como a forma
contraditória encontrada para dar escoadouros lucrativos aos excedentes de
capital investidos no setor. Ela permitiu ao capital expandir suas formas de
dominação e controle sobre a reprodução social, ao transformar a própria
interatividade da rede em um ativo capaz de dar-lhe sustentação e lucratividade,
ou seja, transformando-a em uma força produtiva do capital.
A virtualização radical da vida social “real” no World Wide Web tem como
suposto a idéia que a rede é um organismo “natural” que se desenvolve por si
mesmo fora da censura estatal da internet. O ciberespaço seria aparentemente
dotado de uma lógica própria com a suspensão do conjunto das relações de
poder e de classe. Mas o que esconde esta naturalização do ciberespaço é que
sua “substância” advém de uma massa acumulada de trabalho morto sob a
forma de capital fixo virtual. Na realidade, o próprio ciberespaço poderia ser
considerado, assim como o capital fixo, “produto do trabalho, um certo
quantum de trabalho em uma forma objetificada”. Ao invés de um espaço de
entretenimento social externo aos mecanismos privados do mercado, o
ciberespaço está profundamente conectado com a grande indústria como um
todo. Sobre esse processo de privatização progressiva do ciberespaço global,
como salienta Zizek, “não existe nada de “natural” no fato de que duas ou três
empresas, em posição quase monopolista, possam determinar os preços a seu
bel-prazer, além de filtrar os programas que fornecem, dando a essa
“universalidade” nuances específicas que dependem de interesses comerciais e
ideológicos (2011, p. 10). Naturalmente o espaço “virtual” do cyberespaço não é
completamente virtual. Ele depende diretamente de um enorme maquinário
que o constitui. A internet não apenas depende de computadores, servidores,
redes e maquinários diversos para funcionar, como também cada mínima
imformação nela contida existe fisicamente registrada em uma “máquina”, em
um disco rígido usado como banco de dados armazenado em algum lugar do
mundo. O “nas nuvens” existe “na terra”, físico, maquinário, real. É a partir
destes meandros que capitalismo contemporâneo depende cada vez mais da
capacidade de monopolizar a expropriação do intelecto coletivo em torno da
“propriedade intelectual” pelo controle das “propriedades individuais” de cada
sujeito social. Esse processo também coloca em revelo recentes as
transformações relacionadas ao imperialismo. Rosa Luxemburgo dizia que o
capitalismo só pode avançar enquanto existirem “áreas virgens” abertas à
55
expansão e acumulação de capital. Toda vez que são “capitalizadas” essas
economias “não-capitalistas” as contradições do capital se potencializam já que
se torna necessário procurar novas áreas de colonização do capital. Ao invés de
resolver suas contradições definitivamente, cada momento expansivo do capital
rumo às “áreas virgens” intensifica suas contradições. Por mais que se possa
prosperar por certo período, sua tendência expansiva esgota (cada vez mais
rápido) as fontes de sua própria alimentação que já não são suficientes. Aí
emerge a crise. As crises do capitalismo moderno se manifestariam tanto pelo
esgotamento das areas como pela necessidade de colonizar novas áreas virgens
para manter seu movimento expansivo e incontrolável. E está nova área de
colonização imperialista não é hoje exatamente o ciberespaço? Não é por meio
do espaço virtual que está ocorrendo uma desmaterialização do imperialismo?
Como ficou claro na recente “Nova Estratégia Internacional para o
Ciberespaço” encabeçado pelos Estados Unidos de Obama, a partir de agora
serão usados “todos os meios necessários – diplomáticos, informativos,
militares e econômicos – que sejam apropriados e consistentes com a legislação
internacional” contra aqueles que ameaçarem o ciberespaço global com “atos
agressivos”. Conforme o documento, “certos atos hostis conduzidos no
ciberespaço pode obrigar a tomar ações pelos compromissos que temos com
nossos sócios de tratados militares. Quando seja justificado, os Estados Unidos
responderão aos atos hostis no ciberespaço como responderíamos a qualquer
outra ameaça a nosso país”. Assim, os Estados Unidos não se limitam a garantir
a segurança de seu próprio território, mas de todo o ciberespaço global diante
das ameaças dos “terroristas cibernéticos” que podem se encontrar em qualquer
lugar do mundo. Com isso, “os Estados Unidos assegurará que os riscos
associados a atacar e explorar nossas redes pese mais que os potenciais
benefícios”. O Pentágono considera a partir de agora que qualquer “ciber-
ataque” de outro país pode ser considerado como um ato de guerra, uma
agressão virtual que pode desencadear um ataque militar “tradicional”. Não
seria esta estratégia uma espécie de “doutrina Bush no ciberespaço”? Esta não
seria a tentativa do governo Obama de dar um passo a mais no controle
progressivo da rede, uma espécie de militarização da segurança global sobre a
propriedade intelectual e a organização coletiva? Estamos presenciando uma
espécie de Imperialismo Virtual, etapa superior do capitalismo global. Agora o
56
imperialismo procura a dominação de quatro dimensões: mar, terra, ar o
ciberespaço.
Sem dúvida uma das grandes lutas sociais hoje é em torno da organização
do cyberespaço. O paradoxo é que quanto mais comunal é o espaço virtual
maior o perigo de este espaço ser privatizado. O processo de privatização deste
espaço coletivo está a todo vapor ao mesmo tempo em que se torna cada vez
mais necessário subordinar o Estado e o Capital ao Intelecto Coletivo e o
cyberespaço das “nuvens” seria uma das manifestações que Marx chamou de
Intelecto Coletivo.
Portanto, ao contrário das teses que afirmam que a expansão do “intelecto
coletivo” põe fim a lógica da grande indústria e estaria nos levando a um mundo
pós-subsunção real do trabalho ao capital, o “intelecto coletivo” só pode ser
controlado pelo capital na grande indústria, por mais que seja essa mesma
grande indústria que torna miserável a base de valorização do capital: o tempo
de trabalho coletivo cada vez mais superexplorado. As formas contemporâneas
de vigência do valor-trabalho, especialmente o Intelecto Coletivo, estão
relacionadas com mecanismos de subsunção de todas as atividades da produção
ao capital e que tem como seu avesso, como vamos abordar no próximo
capítulo, a expansão de um gigantesco contingente de seres sociais ao mundo do
desemprego.
57
Capítulo 3
Da Grande Indústria ao exército industrial de reserva
Toni Negri e Michel Hardt no livro Multidão dizem que não existe mais
algo como um “exército industrial de reserva”. Com a chamada hegemonia do
“trabalho imaterial” as condições de trabalho tenderiam a ter divisões cada vez
mais indefinidas entre horário de trabalho e tempo de lazer. Com essa nova
hegemonia os antigos empregos estáveis de longo prazo (fordismo) dão lugar a
relações de trabalho flexíveis, móveis e precárias (pós-fordismo). A produção
pós-industrial pós-fordista pós-moderna está sendo informatizada com a
integração de tecnologias de comunicação nos processos industriais existentes.
A organização da produção acompanha esse processo e passa de relações
lineares da linha de montagem às inúmeras e indeterminadas relações das redes
disseminadas com a cooperação dos sujeitos que trabalham. Esse tipo de
trabalho tem como principal característica produzir comunicação, relações
sociais e cooperação. Por isso, o trabalho imaterial pode ser chamado de
“biopolítico”, pois não cria apenas bens materiais, mas também relações e vida
social. Ele constituiria uma minoria do trabalho global que se tornou
hegemônico em termos qualitativos nas últimas décadas. Sob o “paradigma
imaterial” trabalho passa a funcionar em múltiplas redes tornando muito
nebulosa a divisão entre empregados e desempregados. Hoje o emprego não
seria mais garantia de nada devido à enorme flexibilidade do mercado de
trabalho. Os antigos empregos fabris são exceções diante do aumento dos
empregos que envolvem um “trabalho imaterial”.
Como não poderia deixar de ser, para estes “novos teóricos” o novo ciclo
do “trabalho imaterial” deixaria no passado inclusive o “exército industrial de
reserva”. Afinal, num mundo pós-industrial, como poderia haver um exército
“industrial” de reserva? Provavelmente Negri e Hardt já pensaram em criar o
conceito “exército pós-industrial de reserva” para dizer que hoje “nenhuma
força de trabalho está fora dos processos da produção social. Os pobres, os
desempregados e os subempregados de nossas sociedades estão na realidade
ativos na produção social, mesmo quando não ocupam uma posição assalariada”
(2005, p. 178). Entretanto, o que eles desconsideram é que aumento das
atividades intelectuais na produção de capital tem uma relação direta com a
58
expansão do “exército industrial de reserva”, que a cooperação da empresa pós-
moderna tem como avesso a barbárie social do desemprego generalizado.
Assim como muito foi dito sobre a morte de Marx com o suposto fim da
grande indústria, o mesmo ocorre com o conceito jurássico de “exército
industrial de reserva” no meio do “capitalismo digital pós-moderno”. Por mais
que haja “maquinários” (e aqui podemos incluir computadores, robôs e até a
internet), por mais que grande parte da população não seja aparentemente
significativa para o acúmulo do capital, por mais que as aparências nos levem a
crer que o ser social, na sua maioria, vai sendo “subtraído” da sua própria
história, Marx nos mostra que, na grande indústria estas “aparências” fazem
parte da realidade contraditória da dialética entre capital e trabalho. Para Marx
aquilo que é aparentemente supérfluo e “negativo” à história, é, na verdade,
uma das bases do capital e continua como positividade dentro da história: o
gigantesco contingente de desempregados deste mundo que sofrem as agruras
do tempo de não-trabalho.
3
Os neoclássicos, por exemplo, tentaram mostrar diferentes abordagens acerca do fenômeno do
desemprego, mas esbarraram em seus limites explícitos de classe. Existiria desemprego quando os
trabalhadores exigem salários maiores do que a produtividade do trabalho e como o mercado só aceita
aqueles que estão dispostos a serem contratados sob uma “taxa natural de salário”, conseqüentemente, o
desemprego teria características voluntárias daqueles que não aderem à realidade existente. Por mais que
existam desenvolvimentos mais recentes que tragam a possibilidade de um desemprego involuntário
(especialmente no caso do seguro-desemprego) ou que uma de suas razões seja as falhas de informação
sobre as vagas no mercado de trabalho, a concepção neoclássica além de naturalizar a divisão estrutural
entre capital e trabalho considera o mercado de trabalho uma grande lei de Say onde a oferta cria a sua
própria demanda. Talvez possa trazer alguma contribuição para o campo de pesquisa acerca do
desemprego friccional, aquele que se debruça sobre a mobilidade e a inserção ocupacional. Keynes, por
outro lado, pode trazer alguma contribuição acerca do desemprego conjuntural, aquele decorrente da
ociosidade da mão-de-obra em determinado nível ou sazonalidade da atividade produtiva. Entretanto,
nada pode nos dizer sobre o desemprego de cunho estrutural que está ligado ao processo de
desenvolvimento da estrutura social de expansão e acumulação de capital sob um necessário
enxugamento da mão-de-obra demandada. Não é a toa que, com a emergência dessa forma explosiva de
desemprego desde meados de 1970, as políticas keynesianas de “pleno emprego” não passam hoje de uma
grande ilusão diante das transformações ocorridas produtivas com o desdobramento da crise estrutural do
59
As categorias “superpopulação relativa” e “exército industrial de reserva”
de Karl Marx têm sido objeto de diversas discussões, interpretações e debates.
Segundo Marx, em diferentes modos de produção, diferentes leis regem o
aumento da população e a existência de uma “superpopulação relativa”. Essas
leis estão diretamente ligadas com as formas com que os indivíduos se
relacionam com as condições de produção. Marx assinala que a quantidade de
força de trabalho disponível fornecida pelo incremento natural da população
não é suficiente a produção capitalista. Assim, “para funcionar à sua vontade,
precisa ela de um exército industrial de reserva que não dependa desse limite
natural”4 (MARX, 2009, p. 738). O aumento da mão-de-obra excedente não
depende dos valores absolutos da população e sim dos movimentos da lógica da
acumulação do capital.
É no capítulo XXIII d’O Capital (Livro I, vol. II) que Marx desenvolve
com maior sistematicidade sua concepção de exército industrial de reserva. Seu
objetivo principal neste capítulo intitulado “A lei geral da acumulação
capitalista” é examinar “a influência que o aumento do capital tem sobre a sorte
da classe trabalhadora” a partir do estudo da “composição orgânica do capital e
as modificações que ele experimenta no curso do processo de acumulação”
(idem, p. 715). No subcapítulo 3, chamado “Produção progressiva de uma
superpopulação relativa ou de um exército industrial de reserva”, Marx
observa que para existir acumulação e expansão de capital é necessária uma
mudança qualitativa contínua de sua composição orgânica, num processo de
aumento de sua parte constante à custa da parte variável5. Sem essa constante
capital. Marx, ao “desnaturalizar” a divisão social do trabalho na sociedade capitalista, pôde se debruçar
sobre as causas sociais e históricas do desemprego. Portanto, ao tratar a estrutura social que cria
necessariamente desempregados como natural e eterna, os neoclássicos e Keynes poderiam ser chamados
por Marx de românticos em que “o conteúdo consiste em preconceitos correntes, oriundos da aparência
mais superficial das coisas” (2008, p. 526).
4
Segundo Nun (1969) é necessário fazer a distinção entre “superpopulação relativa” e “exército
industrial de reserva”. Nas palavras do autor, “enquanto o conceito de exército industrial de reserva
corresponde à teoria particular do modo de produção capitalista, os conceitos complementares de
população adequada e superpopulação relativa pertencem à teoria geral do materialismo histórico”. O
exército industrial de reserva é específico do capitalismo e por isso o uso deste conceito tem sua validade
histórica apenas nesse modo de produção particular, enquanto isso, superpopulação relativa existe em
outros modos de produção e sua validade histórica é mais ampla e ultrapassa os limites da sociedade
capitalista.
5
Segundo Marx, a parte constante do capital é aquela que se converte em meios de produção, isto
é, em matéria-prima, matérias auxiliares e meios de trabalho. Não modifica a sua magnitude de valor no
processo de produção. A parte variável, por outro lado, é convertida em força de trabalho que modifica o
seu valor no processo de produção. Reproduz o seu próprio equivalente e um excesso acima disso, a mais-
valia, que pode, ela própria mudar, ser maior ou menor. De uma magnitude constante, esta parte do
60
revolução nos meios de produção, a própria produção capitalista estancaria.
Assim é crucial que a magnitude variável do capital caia progressivamente com
o aumento do capital global.
Com o aumento do capital global, cresce também sua parte variável, ou a força
de trabalho que nele se incorpora, mas em proporção cada vez menor.
Reduzem-se os intervalos em que a acumulação resulta da ampliação da
produção sem alterar-se a base técnica. É necessário que a acumulação do
capital global seja acelerada em progressão crescente para absorver número
adicional determinado de trabalhadores ou mesmo, em virtude da constante
metamorfose do capital velho, para continuar ocupando os trabalhadores que
se encontram empregados. Demais, essa acumulação crescente e a própria
centralização causam novas mudanças na composição do capital ou nova
redução acelerada de sua parte variável em relação à constante. Essa redução
relativa da parte variável do capital, acelerada com o aumento do capital
global, e que é mais rápida do que este aumento, assume, por outro lado, a
aparência de um crescimento absoluto da população muito mais rápido que o
do capital variável ou dos meios de ocupação dessa população. Mas a verdade
é que a acumulação capitalista sempre produz, e na proporção de sua energia e
de sua extensão, uma população trabalhadora supérflua relativamente, isto é,
que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, tornando-se,
desse modo, redundante (idem, p. 732, 33).
capital transforma-se continuamente numa porção variável. Marx aponta duas tendências que são
operantes simultaneamente e de forma contraditória na produção capitalista. Na primeira, existe a luta do
capital para extrair a quantidade máxima de trabalho vivo com o ímpeto de aumentar a massa potencial de
mais-valia. Na segunda, o capital possui um impulso em direção à mais-valia relativa que se manifesta
pelo aumento no capital constante, em detrimento do capital variável, induzindo o capital a colocar como
supérfluos muitos trabalhadores periodicamente.
6
Segundo Marx, “graças ao progresso da produtividade do trabalho social, quantidade sempre
crescente de meios de produção pode ser mobilizada com um dispêndio progressivamente menor de força
humana” (2009, p. 748). Com isso, a redução da quantidade de trabalho material e o aumento de
produtividade garantem a acumulação de capital que “atrai, relativamente à sua grandeza, cada vez menos
trabalhadores. E o velho capital periodicamente reproduzido com nova composição repele, cada vez mais,
trabalhadores que antes empregava (idem, p. 731). A “superpopulação relativa” compensa e neutraliza os
efeitos da lei geral da acumulação e expansão de capital, isso é, a expansão do exército industrial de
reserva é uma resposta diante da tendência de queda da taxa geral de lucro tornando-a menor e menos
rápida. Para Marx, além do aumento do exército industrial de reserva, as contra-tendências diante de uma
crise da acumulação de capital também são efetuadas por um aumento no grau de exploração do trabalho,
pela redução do salário abaixo de seu valor, barateamento dos elementos que formam o capital constante,
a expansão do comércio exterior e um aumento do capital acionário.
61
não é determinada pela magnitude do capital global e sim pela magnitude sua
parte variável, “ao acréscimo e ao decréscimo do capital variável correspondem
exatamente o acréscimo ou o decréscimo do número de trabalhadores
empregados” (idem, p. 738). Portanto, a progressiva expansão do exército
industrial de reserva não é uma falha no mercado de trabalho e sim um
fenômeno estrutural da dinâmica do capital7.
7
Segundo Braveman, o desemprego não é uma aberração, mas uma parte necessária do
mecanismo de trabalho do modo capitalista de produção. Fazem parte deste excesso não apenas pela
massa de desempregados, mas também aqueles que estão temporariamente empregados, os empregados
em tempo parcial, a massa das mulheres que, como donas-de-casa ou domésticas constituem uma reserva
para as “ocupações femininas” e as reservas (i)migrantes de trabalho (1981, p. 326).
8
Como escreve Rosa Luxemburgo, “a economia capitalista é, na história da humanidade, a
primeira forma de economia em que a ausência de ocupação e de meios de uma camada importante e
crescente da população e a pobreza em outra camada, igualmente crescente, não são apenas a
conseqüência, mas também uma necessidade, uma condição de existência da economia, [onde] a
insegurança da existência de toda a massa de trabalhadores e a miséria crônica ou a pobreza de largas
camadas determinadas foram, pela primeira vez, um fenômeno normal da sociedade” (LUXEMBURGO,
s/d, p. 324)
62
Sendo a “condição de existência” e, ao mesmo tempo, a “alavanca” da
acumulação capitalista, o exército industrial de reserva é o principal regulador
social da exploração da totalidade da força de trabalho. É o elo mais forte do
capital para assegurar suas “condições de existência” na constante pressão sobre
os salários e no aumento da competição entre os trabalhadores. É um excedente
populacional inscrito na própria estrutura contraditória de reprodução do
capital e seu processo de valorização. Assim, essa população “redundante” não é
descartável para a lei de acumulação. Ela se apresenta, para Marx, como a “lei
absoluta” da regulação dos salários. O capital não poderia realizar seus
imperativos de acumulação e auto-expansão sem a segurança dada pelo exército
industrial de reserva que se encontra pronto para “seguir o capital às suas
custas”. Como diz Marx,
9
Nas palavras de Marx, “a magnitude relativa do exército industrial de reserva cresce, portanto,
com as potências da riqueza, mas quanto maior esse exército de reserva em relação ao exército ativo,
tanto maior a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do suplício de seu
trabalho” (MARX, 2009, p. 748).
63
excessivo e a sujeitar-se às exigências do capital. A condenação de uma parte da
classe trabalhadora à ociosidade forçada, em virtude do trabalho excessivo da
outra parte, torna-se fonte de enriquecimento individual dos capitalistas e
acelera ao mesmo tempo a produção do exército industrial de reserva, numa
escala correspondente ao progresso da acumulação social (idem, p. 740).
10
Marx escreve numa nota da 3º edição d’O Capital que o avanço rumo ao mercado mundial
estabelece como nível geral de salários o “nível chinês”, dada a concorrência na qual são jogados todos os
trabalhadores do mundo pelo desenvolvimento da produção capitalista internacional: “Hoje, avançamos
bastante nessa direção, graças à concorrência que se estabeleceu, desde então, no mercado mundial. “Se a
China”, declara o parlamentar Stapleton a seus eleitores, “se tornar um grande país industrial, não vejo
como os trabalhadores europeus poderão sustentar a luta, sem descer ao nível dos seus concorrentes.”
(Times, 3 de setembro de 1873). O objetivo almejado agora pelo capital inglês não é mais o nível dos
salários do Continente, mas o chinês” (2006, p. 699, nota 53).
11
Segundo Dejours, sob a influência da ameaça da demissão, a maioria que trabalha se mostra
capaz de acionar todo um cabedal de inventividade para melhorar sua produção (em quantidade e
qualidade), bem como constranger seus colegas para ficar numa posição mais vantajosa no processo de
seleção para as dispensas. Esse medo é permanente e gera condutas de obediência e até submissão.
Quebra a reciprocidade entre os trabalhadores, desliga inteiramente os que sofrem a dominação no
trabalho daqueles que estão desempregados. Assim, “o medo produz uma separação subjetiva crescente
entre os que trabalham e os que não trabalham” (2007, p. 52). A consciência do sofrimento dos
desempregados depende inevitavelmente da relação do sujeito para com o próprio sofrimento. Segundo o
autor, “a impossibilidade de exprimir e elaborar o sofrimento no trabalho constitui importante obstáculo
ao reconhecimento do sofrimento dos que estão sem emprego (idem, p. 46).
64
taxa geral de lucro tornando-a menor e menos rápida12. O crescimento da
“superpopulação relativa” esta ligada, portanto, com o processo de
superprodução de capital que, ao elevar a capacidade produtiva do trabalho,
entre outros também com o “maquinário”, cria trabalho supérfluo – algo bem
diferente de “libertar os trabalhadores”. Dessa forma, superprodução de capital
e aumento da superpopulação “existem um ao lado do outro e se condicionam
mutuamente”. Ideologicamente, o “fim da grande indústria” corresponde ao
“esquecimento” do exército industrial de reserva no capitalismo
contemporâneo.
Na concorrência entre os capitais, a substituição do trabalho vivo pelo
trabalho morto torna-se inevitável à medida que a grande indústria aumenta a
produtividade do trabalho e a capacidade de extração de mais-valia relativa e
diminui os custos de produção das mercadorias. A tendência de queda da taxa
de lucro só pode ser compensada ao longo deste processo à medida que a oferta
excedente de força de trabalho pressiona para baixo seu valor, tornando mais
favoráveis as condições para a extração de mais-valia e moderando a queda da
taxa de lucro pelo incremento constante do grau de exploração do trabalho. Se
por um lado o aumento da produtividade produz a diminuição do tempo de
trabalho necessário e o aumento do tempo de trabalho excedente cujo valor
pode ser apropriado pelo capital, gerando aumento imediato da taxa de mais-
valia e da taxa de lucro para os capitalistas individuais, por outro, na medida em
que leva ao incremento sistemático do capital constante na composição orgânica
do processo global de produção do capital, ele acaba produzindo, no longo
prazo, a tendência de queda da taxa de lucro para o sistema como um todo. Os
meios utilizados para a valorização do capital entram assim em contradição com
os próprios fins da valorização do capital. Por isso que quanto mais se
desenvolve a produtividade das forças produtivas maiores são as dificuldades de
valorização do valor13.
12
Para Marx, além do aumento do desemprego, as contra-tendências diante de uma crise da
acumulação de capital também são efetuadas por um aumento no grau de exploração do trabalho, pela
redução do salário abaixo de seu valor, barateamento dos elementos que formam o capital constante, a
expansão do comércio exterior e um aumento do capital acionário.
13
Nas palavras de Marx, “aumentando e acelerando os efeitos da acumulação, a centralização
amplia e acelera ao mesmo tempo as transformações na composição técnica do capital, as quais
aumentam a parte constante à custa da parte variável, reduzindo assim a procura relativa de trabalho [...].
A redução absoluta da procura de trabalho que necessariamente daí decorre será, evidentemente, tanto
65
3.2. Formas do exército industrial de reserva
Marx liga o decréscimo relativo da parte variável do capital com o
progresso da acumulação e concentração de capital que a acompanha. Para
ampliar o horizonte de valorização o capital precisa explorar o trabalho vivo e,
ao mesmo tempo, introduzir inovações técnicas que aumentem a produtividade
e reduzam o valor da força de trabalho com a pressão regulatória da
“superpopulação relativa”. Neste movimento contraditório Marx identifica
quatro de existência da “superpopulação relativa” da qual “todo trabalhador
dela faz parte durante o tempo em que está desempregado ou parcialmente
desempregado” (2009, p. 744). Suas formas são: flutuante, latente, estagnada e
o pauperismo.
A superpopulação flutuante representa aqueles trabalhadores que “são ora
repelidos, ora extraídos em quantidade maior, de modo que, no seu conjunto,
aumenta o número de empregados, embora em proporção que decresce com o
aumento da escala da produção” (idem, 744). Acompanhando o ciclo da
economia capitalista, estes trabalhadores oscilam no emprego tendendo a serem
despedidos numa crise e esperar por uma época de prosperidade para serem
incorporados ao exército ativo de trabalhadores. Eles flutuam no circuito
empregatício de acordo com o estágio do ciclo econômico. Nas palavras de
Marx, esses que são despedidos tornam-se elementos da superpopulação
flutuante que aumenta ao crescer a indústria. Parte deles emigra e, na realidade,
apenas segue o capital em sua emigração (idem, p. 745). Em síntese a
superpopulação flutuante é constituída pelos trabalhadores que, por certo
tempo, perdem seus empregos em conseqüência da queda na produção, no
avanço de produtividade, no emprego de novas máquinas ou fechamento de
empresas. Uma parte desses desempregados volta a se empregar numa
potencial prosperidade industrial.
A superpopulação latente surge “quando a produção capitalista se apodera
da agricultura, ou nela vai penetrando, diminui, à medida que se acumula o
capital que nela funciona, a procura absoluta da população trabalhadora rural”
(idem, p. 746). Marx argumenta que no espaço agrícola, a movimentação da
população se dá entre o campo e a cidade. Geralmente, os operários agrícolas
maior quanto mais tenha o movimento de centralização combinado os capitais que percorrem esse
processo de renovação” (2009, p. 731).
66
estão fadados a enxertar as fileiras das indústrias nos grandes centros urbanos,
pois
67
exploração do capital” baseados na “duração maxima de trabalho e mínimo de
salário”.
Marx aponta também outra dimensão da superpopulação relativa: o
pauperismo. Nas suas palavras, “o mais profundo sedimento [que] vegeta no
inferno da indigência (idem, p. 747). Além dos vagabundos, criminosos,
prostitutas – o “rebotalho do proletariado”, Marx aponta nessa camada social
três categorias: os “aptos para o trabalho”, os órfãos e filhos de indigentes e os
“degradados, desmoralizados, incapazes de trabalhar. São, notadamente, os
indivíduos que sucumbem em virtude de sua incapacidade de adaptação,
decorrentes da divisão do trabalho (idem, p. 747)
68
capital e seu defensor, o economista político, contra a violação da “eterna” e, por
assim dizer, “sacrossanta” lei da oferta e da procura. Todo entendimento entre
empregados e desempregados perturba o funcionamento puro dessa lei (idem, p.
744).
69
Outro ponto crucial levantado por Marx, típico de nosso era, é a apreensão
exposta nos Grundrisse onde ele respondia a Lauderdales que entendia que o
capital fixo era dissociado (unabhängig) do tempo de trabalho, que, “o
maquinário mesmo para a sua utilização necessita historicamente de mãos
supérfluas. Apenas aonde um excedente da força de trabalho está à disposição
é que o maquinário se insere para tomar o lugar do trabalho.” (Grundrisse,
pág 589). Para Marx, não é o maquinário, seja ele aqui compreendido como
“máquina” na indústria de produção de bens de consumo materiais ou
computadores e até a internet, que causa o desemprego. O “maquinário” “não
entra em cena”, com diz Marx, “para substituir a falta de força de trabalho e
sim para reduzir ao mínimo necessário a força de trabalho em massa que se
encontra à disposição”. Para Marx, somente o “não-trabalho” é capaz de criar,
justificar e validar o maquinário dentro da lógica do capital. Sem a “força de
trabalho supérflua”, não há razão nem justificativa para o maquinário. Assim,
não só o “exército industrial de reserva” é uma necessidade intrínseca do capital
para “regular” a exploração do trabalho empregado, como também, é a única
forma de validação do próprio “maquinário” que o capital utiliza para descartar
este mesmo trabalhador.
70
O que é chamado de perda da centralidade do trabalho (Claus Offe) ou extinção
do valor-trabalho (Dominique Medá) é apenas a metamorfose do “emprego” em
novas formas baseadas na subalternidade salarial para além do vínculo
empregatício e a expansão sem precedentes do exército industrial de reserva.
Depois de um período de acumulação de capitais durante o apogeu do
fordismo e da fase keynesiana, o capitalismo do centro, a partir da década de
1970, começou a apresentar profundos sinais de crise. Diante da queda da taxa
de lucro da manufatura mundial existente, do esgotamento do padrão de
acumulação taylorista/fordista de produção, do aumento da concorrência
internacional, da hipertrofia financeira que começará a ganhar relativa
autonomia frente aos capitais produtivos, da maior concentração de capitais, da
crise do Estado de bem-estar social, da generalização das privatizações e
desregulamentação do trabalho também foi colocada em prática pelo capital e o
Estado uma reestruturação nos processos de trabalho com o ímpeto de criar
novos modos de extração de ganhos para a empresa capitalista (Antunes, 2005,
p. 30). Além das derrotas das forças do trabalho em diversas frentes também
houveram incrementos tecno-científicos na cadeia produtiva, redução dos
custos de produção com maciços enxugamentos de trabalhadores,
reorganização do processo produtivo, uma ofensiva contra os sindicatos
combativos e, não menos importante, um novo papel para o trabalhador
baseado num engajamento, parceria e colaboração ativa com a empresa.
Este processo diz respeito a tendência imperiosa que o capital tem
historicamente de rever os níveis aceitáveis de desemprego. Como salienta
Francisco Teixeira, na década de 1950 a taxa de desemprego normal era
considerada de 2.5%, na década de 1960 esse índice passou para 3 e 4%, na
década de 1970 e 1980 o normal passou para uma taxa de 5%. Na década de
1990 o nível normal subiu novamente para 6 e 7% de desemprego que,
traduzido em números absolutos, significa mais de 800 milhões de pessoas
desempregadas em todo o mundo14 (TEIXEIRA, 2000, p. 221). Conforme
14
Como escreve Tavares, com a decorrência desse grande volume de desempregados, proliferam
cooperativas, empresas familiares, trabalho domiciliar, micro e pequenas empresas. Essas formas de
trabalho, comumente identificadas com a independência, a autonomia e a ação espontânea promovem, ao
contrário, mecanismos pelos quais os trabalhadores exploram a sua própria força de trabalho para o
capital e se deixam lesados nos seus direitos fundamentais (2008, p. 18). Entretanto, “essa suposta
autonomia, além de mascarar as reais dimensões do desemprego, fragmenta a classe trabalhadora, opera o
71
Marcio Pochmann, desde 1975 a quantidade de trabalhadores que faz parte do
excedente mundial de mão-de-obra vem apresentando uma tendência de
crescimento. A taxa de desemprego aberto em 1975 foi estimada em 2,3% da
PEA mundial passando para 5,5% vinte e quatro anos depois – ou seja, 2,4 vezes
maior. Entretanto, a elevação da taxa de desemprego mundial ocorre de forma
mais concentrada nas nações menos desenvolvidas do que nas mais
desenvolvidas.
72
342). Como salienta marxista húngaro, a ameaça de um amplo desemprego era
apenas latente no modo de reprodução social do capital ao longo dos séculos de
desenvolvimento histórico. Enquanto o sistema mantivesse sua dinâmica de
expansão e de acumulação lucrativa, o “exercito industrial de reserva” não
apresentava uma ameaça fundamental. Na realidade era um elemento bem-
vindo e necessário para sua boa saúde. Enquanto os antagonismos internos do
sistema puderam ser geridos por “deslocamentos expansionistas”, os níveis de
desemprego podiam ser considerados temporários e serem superados em seu
devido momento. Entretanto, a situação se transforma radicalmente quando a
dinâmica do deslocamento expansionista e a acumulação tranqüila sofrem uma
interrupção que traz consigo, com o passar do tempo, uma crise estrutural
potencialmente devastadora. Ativa-se assim a “explosão populacional”, sob a
forma de desemprego crônico, como um limite absoluto do capital. Essa é, para
Mészáros, a tendência mais explosiva do sistema do capital hoje. Segundo a
argumentação do húngaro, estamos testemunhando hoje um ataque em duas
frentes à classe operária, não apenas nas partes “subdesenvolvidas” do mundo,
mas também, nos países capitalistas avançados: 1) um desemprego que cresce
cronicamente em todos os campos de atividade, mesmo quando é disfarçado
como “práticas trabalhistas flexíveis” – um eufemismo cínico para a política
deliberada de fragmentação e precarização da força de trabalho e para a máxima
exploração administrável do trabalho em tempo parcial; 2) uma redução
significativa do padrão de vida até mesmo daquela parte da população
trabalhadora que é necessária aos requisitos operacionais do sistema produtivo
em ocupações em tempo integral. Essa tendência não se restringe a difícil
situação dos trabalhadores não-qualificados, mas atinge também um número
enorme de trabalhadores altamente qualificados, que agora disputam os
escassos empregos disponíveis (2006, p. 1005)15. Portanto, “quem sofre todas as
15
Uma das dimensões dessa escala do capital contra os subproletáriaros e desempregados é o
desenvolvimento, principalmente desde 1970, de um Estado capitalista direcionado para a “penalização
da pobreza”, principalmente com o incremento privado das prisões e, por conseguinte, no aumento da
população carcerária. Nos Estados Unidos, pioneiro na privatização dos presídios, já existem hoje mais de
cinco milhões de presos – um quarto de toda a população carcerário do mundo. Esses “supérfluos”
sociais, enquanto não tinham função econômica por não serem consumidores, empregadores e nem gerar
impostos estavam fadados à exclusão, normalmente sem volta, do circuito econômico. Agora esse
processo está se modificando: para as prisões privadas a presença massiva de pobres e marginalizados
gera a produção de mais presídios dando mais renda para seus proprietários. Finalmente a geração
sistêmica de excluídos está trazendo dinheiro para os donos privados das prisões. Dessa forma, o Estado
depende cada vez mais da polícia e das instituições penais para conter a desordem produzida pelo
73
conseqüências dessa situação não é mais a multidão socialmente impotente,
apática e fragmentada de pessoas “desprivilegiadas”, mas todas as categorias de
trabalhadores qualificados e não-qualificados: ou seja, obviamente, a totalidade
da força de trabalho da sociedade” (idem, p. 1005). Assim a questão do
desemprego não se limita mais apenas à existência de um "exército de reserva",
com a possibilidade de ser ativado nos momentos de ascensão econômica do
sistema. Agora o desemprego assumiu um caráter crônico e global. Nas palavras
do autor,
desemprego, o emprego precário e o encolhimento da proteção social como uma “maquina institucional
de administração da pobreza” com os objetivos de disciplinar as frações da classe operária que surgem
nos precários empregos de serviços, neutralizar e armazenar os elementos mais disruptivos ou
considerados supérfluos tendo em vista as transformações na oferta de trabalho e, não menos importante,
reafirmar a autoridade do Estado. Um exemplo desse processo é que, até mesmo nas áreas mais
desenvolvidas do mundo passando dos Estados Unidos a Europa, desde 1975, a curva do desemprego e
dos efetivos penitenciários segue uma evolução rigorosamente paralela.
74
“desemprego estrutural” como traço permanente e normal da única estrutura
concebível como se a ascensão de “população excedente” fosse devida a
desenvolvimentos tecnológicos e às descobertas cientificas, e, portanto como se
fosse devida à “aparência de leis naturais”16.
Na esteira de Mészáros, Giovanni Alves escreve que com a emergência da
crise estrutural do capital desde meados dos anos de 1970 altera-se a morfologia
social da superpopulação relativa. Seu aumento quantitativo promoveu
alterações qualitativas novas em sua forma de ser. Como escreve o autor, o
sentido e a natureza do fenômeno do desemprego se transformam no decorrer
do tempo da produção de valor. Se num primeiro momento o desemprego era,
de certo modo, um tempo de parada para imensos contingentes da população
trabalhadora, na medida em que se altera a composição orgânica do capital
através do incremento da produtividade do trabalho e as empresas absorvendo
menos trabalhadores, a incorporação relativa dos desempregados tendeu a
diminuir nos períodos de crescimento da economia capitalista. No século XX o
contingente da superpopulação proletária flutuante tendeu a crescer com o
crescimento da indústria e a conquistar direitos sociais e políticos, por conta de
sua organização de classe. Na época de crise estrutural do capital, entretanto,
não existem mais ciclos de negócios capazes de absorver o imenso contingente
de desempregados crescendo assim os proletários sobrantes e redundantes na
sociedade do capital (ALVES, 2007, p. 102). Segundo Alves,
16
Como sustenta Maria Augusta Tavares, o argumento de que a máquina é responsável pela
liberalização do trabalho não serve para justificar o desemprego. Concretamente, o que o justifica é a
relação entre capital constante e capital variável, ou, mais especificamente, o aumento da composição
orgânica do capital enquanto tendência imanente à produção capitalista, o que, para o trabalhador, é uma
desgraça, porque sua força de trabalho só lhe serve se é vendida (2008, p. 69).
75
29,3% para 38,2%. Por outro lado, na Europa, de 1970 a 1990, o PNB decresceu
um pouco, de 26,2% para 25,3%. Nesse período, o índice de emprego industrial
caiu ainda mais – de 28,5% para 22,7% (ALVES, 1993, p. 68, 69).
Nas últimas décadas do século XX, para uma parcela crescente da força
de trabalho não-ocupada, o “tempo de parada” se transformou na “parada do
tempo”. Nesse processo a parte estagnada do exército industrial de reserva
tendeu a aumentar nas últimas décadas do século XX impulsionando a condição
de precariedade mesmo entre categorias de trabalhadores assalariados que
possuem certo grau de organização de classe17. Para Alves, entretanto, o
crescimento dos componentes estagnados nos grandes centros urbanos
contribui menos para a dinâmica da acumulação de valor e mais para a
dinâmica sócio-reprodutiva do consentimento simbólico da ordem do capital. A
massa de proletários inempregáveis possui uma função simbólica na medida
em que constitui o imaginário da barbárie social, matriz do medo que
“sedimenta na alma humana os consentimentos espúrios dos proletários
empregados no loci de produção de valor” (idem, 104)18. A contradição posta
encontra-se enquanto o lema do trabalho em equipe no toyotismo afirma que
“somos todos chefes”, ao mesmo tempo, observa-se no mundo do trabalho a
generalização do medo do desemprego, forçando o “consentimento empresarial”
mesmo que sob um maior nível de exploração da força de trabalho e a renuncia
da pelo por direitos sociais e trabalhistas.
Em suma, essas contribuições deixam claro a idéia de que em nossos dias
o exército industrial de reserva se apresenta, como enfatizado por Marx, algo
estruturalmente inscrito na forma de reprodução da classe trabalhadora em sua
totalidade. No seu contingente encontram-se os proletários despossuídos dos
meios de produção, qualificados e não-qualificados, jovens e idosos, homens e
17
Para Alves o crescimento de trabalhadores “autonomos”, trabalhadores “independentes” ou por
conta própria aparece como expressão ampliada da superpopulação relativa estagnada. O que não se diz é
que “o contingente imenso da força de trabalho disponível, jamais poderá ser absorvido hoje pela
produção de capital. De fato, o sistema produtor de mercadorias tornou-se incapaz de absorvê-los como
produtores de valor. Eles pertencem ao limbo do não-trabalho da sociedade do trabalho” (ALVES, 2007,
p. 102).
18
Não podemos deixar de notar que os desempregados que sofrem do desalento tem, muitas vezes,
sintomas depressivos – o sintoma social do capitalismo contemporâneo. Até 2020, segundo a OMC, a
depressão terá se tornado a segundo principal causa de morbidade no mundo, atrás apenas de doenças
cardiovasculares. Jacques Lacan, ironicamente, sem ligar a depressão com o desemprego, chamou a
depressão no sujeito como “demissão subjetiva”. O desemprego trás a vergonha, o sentimento de
inutilidade, a desorientação temporal que, por fim, se torna uma invisibilidade social. São os mortos-vivos
do capital globalizado.
76
mulheres que estão (temporariamente ou não) presos do lado de fora da
produção capitalista e que, em sua dimensão estagnada, só conseguem vender
sua mão-de-obra como mercadoria em troca de salários ínfimos e desagregação
subjetiva intensa. Fazem parte dessa porção do proletariado os “desempregados
ativos” que estão numa lacuna entre o trabalho atípico, parcial,
desregulamentado, informal ou temporário e as agruras do não-trabalho. Como
descreve Mike Davis em Planeta Favela, a partir de 1980, os trabalhadores
informais constituem cerca de dois quintos da população economicamente ativa
do Terceiro Mundo. Na América Latina, a economia informal emprega
atualmente 57% da força de trabalho e oferece quatro de cada cinco novos
“empregos”. Em 2007, 50% da população economicamente ativa no Brasil
encontrava-se em situação de informalidade. Em diversas partes da África
subsaariana, a criação de empregos formais praticamente deixou de existir.
Num estudo da OIT sobre o mercado de trabalho urbano do Zimbábue no início
dos anos 1990, por exemplo, enquanto o setor formal criava apenas 10 mil
empregos por ano, a força de trabalho crescia em mais de 300 mil indivíduos
anualmente. Na África ocidental se prevê que o setor formal em processo de
encolhimento empregará um quarto ou menos da força de trabalho em 2020 e
que o emprego informal terá que absorver, sabe-se lá como, 90% dos novos
trabalhadores urbanos da África na próxima década. Em termos gerais, a classe
trabalhadora informal global tem quase 1 bilhão de pessoas, e constitui a classe
social de crescimento mais rápido e mais sem precedentes da Terra (DAVIS,
2006, p. 177, 178)19. A conclusão de Davis é incisiva: tem havido muita
resistência à conclusão óbvia de que o crescimento da informalidade é uma
explosão do desemprego “ativo” caracterizado por uma substituição do
desemprego aberto pelo subemprego ou pelo desemprego disfarçado.
19
Segundo Alain Bihr, a imagem do proletariado atual se divide em três grandes porções: os
proletários estáveis e com garantias sociais que, com o prolongamento e aprofundamento da crise, tende a
estreitar e restringir esse núcleo de trabalhadores estáveis no sentido de uma maior flexibilidade; os
desempregados excluídos do trabalho e, entre esses dois pólos, uma “massa flutuante de trabalhadores
instáveis” que, com a crise do período fordista baseado na “estratégia de integração”, cresce em ritmo
acelerado diante da fragmentação crescente do proletariado. Essa “massa flutuante” é composta pelos
proletários que operam por subcontratação, terceirização, por encomenda, em domicílio, em tempo
parcial, temporários, estagiários e, enfim, no cúmulo da instabilidade, os “trabalhadores da economia
subterrânea” que buscam escapar do desemprego trabalhando “clandestinamente” ou entregando-se à
pequena produção mercantil, principalmente no setor de serviços prestados a particulares. (BIHR, 1999,
p. 85).
77
Como vimos, para Marx na grande indústria o exército industrial de
reserva não é um excedente supérfluo, mas algo estruturalmente inscrito na
forma de reprodução da classe trabalhadora em sua totalidade. As crescentes
dificuldades de valorização do trabalho social na grande indústria trazem ao
capital a necessidade de expansão de capitais fictícios que fingem uma auto-
valorização sem trabalho social (como trataremos no próximo capítulo) e um
aumento progressivo do exército industrial de reserva. Slavoj Zizek está certo ao
caracterizar a figura da pessoa desempregada como aquela que melhor
represente o “puro proletário” hoje:
78
Capítulo 4
Crise, capital fictício e o desvanecimento do capitalista
industrial na era pós-fordista
80
Unidos. O keynesianismo era considerado uma via alternativa tanto ao modelo
soviético de centralização da economia quanto às políticas econômicas
tradicionais de livre-mercado. Como escreve Beverly Silver, esse grande pacote
keynesiano pressupunha uma trégua no conflito trabalho-capital, baseada num
intercâmbio tripartite entre governos, sindicatos e empresas:
81
definitivamente controlado, regulado e fundado num compromisso entre capital
e trabalho mediado pelo Estado (Antunes, 2005, p. 38). O elemento “arbitral”
do Estado, zelando pelo interesses gerais do capital, criou mecanismos de
integração do movimento operário que acabaram por se converter numa
engrenagem do poder capitalista, canalizando a conflituosidade do proletariado
com propostas compatíveis com os termos do “compromisso”, combatendo
violentamente toda tentativa de transbordamento desse compromisso (idem, p.
39).
Como a expansão produtiva do pós-guerra possibilitou uma estabilidade
nos contratos salariais sem prejudicar a lucratividade do capital e o Estado se
tornou o mediador consensual dos conflitos além do “capacitador” de suas
possíveis resoluções, os antagonismos sociais se recalcaram ainda mais,
reduzindo o objetivo de superar a divisão estrutural entre capital e trabalho
numa crescente representatividade geral sob um compromisso de estabilidade
econômica, política e social. Neste período, entretanto, como conclui Sergio
Lessa
82
No início dos anos 1970 esse arranjo social e internacional sobre a base
do compromisso fordista keynesiano, que envolvia setores expressivos das
direções políticas do proletariado e baseado na capacidade de direção da
burguesia, começou a ser questionado radicalmente com a crise de acumulação
de capital que começava a se desdobrar. O esgotamento do “padrão keynesiano”
se deve a impossibilidade objetiva de criação de uma base material saudável
onde havia se sustentado suas práticas das quais, hoje, ainda não foram
resolvidas. Portanto, do pós-guerra até o fim da década de 1960, o sistema pôde
gerar, por meio do compromisso fordista que assegurava uma crescente
produtividade, um nível de emprego assalariado alto e suficientemente bem
pago nos países do capitalismo avançado, as condições de estabilidade social
mesmo sob a inerente conflituosidade entre trabalho e capital. Como o
keynesianismo não foi e nem poderia ter contido ou superado as contradições
do capitalismo, a crise do Estado de Bem-Estar se confunde com o início do que
se costuma chamar de “crise estrutural do capital”.
Como escreve François Chesnais, diferentemente do período keynesiano
“atualmente, em primeiro lugar, o modo de produção dominante mostra a luz
do dia, de forma cotidiana, sua incapacidade de gerir a existência do trabalho
assalariado como forma predominante de inserção social e de acesso à renda.
Depois de ter destruído o campesinato e boa parte dos artesões urbanos,
desertificando regiões inteiras, apelando para o exercito industrial de reserva
dos trabalhadores imigrantes, criando concentrações urbanas e desumanas, ele
condena milhões de assalariados e jovens ao desemprego estrutural, passando
facilmente a decadência social” (Chesnais, 1996, p. 300, 301). Para Robert
Brenner, nos Estados Unidos, desde o fim da década de 1960, o crescimento
econômico vem se desacelerando pelo excesso de capacidade no setor
manufatureiro internacional apresentando, como conseqüência, uma queda
acentuada na lucratividade corporativa manufatureira trazendo uma persistente
estagnação salarial, desemprego e uma sucessão de crises que não se viam desde
1930. Os investimentos produtivos caíram vertiginosamente e a demanda
apresenta correntemente um estado crítico. Diante da recuperação econômica,
primeiramente da Alemanha e do Japão na segunda metade da década de 1960
e suas produções com custos menores, o mercado mundial ficou cada vez mais
comprimido numa supressão crescente da demanda internacional incitando,
83
dessa forma, o excesso de produção e capacidade sem um escoadouro segura e
estável. Esses países, ao combinar técnicas relativamente avançadas com
salários relativamente baixos para reduzir os mesmo bens produzidos na
economia norte-americana, conseguiram impor seus preços relativamente
baixos no mercado mundial e inchar de modo dramático suas cotas desse
mercado mantendo suas antigas taxas de lucro. Os produtores norte-americanos
se viram confrontados com preços concorrentes menores que os impunham um
crescimento econômico mais lento e pouco vigoroso reduzindo as fatias do
mercado. Essa queda de lucratividade pelo excesso de capacidade e de produção
fabril no centro acabou sendo responsável pela redução das taxas de
acumulação de capital, a raiz da estagnação econômica de longa duração desde o
último quartel do século XX acarretando níveis reduzidos de crescimento da
produção e da produtividade, baixo aumento salarial e crescente desemprego
(Brenner, 2003). Para Jorge Beinstein, a dinâmica geral da crise que se
desdobra desde meados de 1970 está na imbricação profunda entre a
desaceleração do crescimento econômico global presente, desde o último
quartel do século XX, o crescimento da dívida pública dos países mais
avançados do capitalismo global com a conseqüência de déficits fiscais
exorbitantes, a crescente financeirização das grandes empresas, a transformação
da periferia em área de ganhos rápidos em benefício dos grandes grupos
transnacionais, a hipertrofia financeira dominando a economia mundial e a
expansão de um amplo leque de “negócios ilegais” (drogas, trafico de armas etc.)
estreitamente vinculados aos negócios financeiros, mas também ligado a
empresas produtivas legais e a Estados centrais e periféricos (2001, p. 103).
Sobre o primeiro tópico, ele salienta que a prosperidade do pós-guerra terminou
no início da década de 1970. Desde então o crescimento da economia mundial
foi se desacelerando década após década. A taxa de variação anual Produto
Mundial Bruto alcançou uma média de 4,5% entre 1970 e 1979, desceu para
3,2% entre 1980 e 1989 e para 2,9% entre 1990 e 1999 numa clara tendência
descendente. A baixa iniciada em 1970 pôde ser suavizada nos anos 80 pelo
dinamismo do Japão e seus seguidores, os tigres asiáticos, cujo primeiro pelotão
era formado por Taiwan, Coréia do Sul, Cingapura e Hong Kong. Esse processo
se apoiou nas estratégias de exportação beneficiadas pela perda de
competitividade dos EUA. De qualquer forma, na década de 1990 a economia
84
japonesa foi se estagnando. Mesmo assim, na Ásia Oriental países como
Filipinas, Indonésia, Malásia e a China aproveitaram o ciclo expansivo na
esteira na melhora do crescimento dos EUA, ainda que com um déficit
comercial e um aumento do endividamento público. Portanto, a “solução”
encontrada pela desaceleração econômica foi o crescente endividamento, numa
crescente simbiose entre os interesses financeiros e o Estado que estimula o
progressivo quadro de “estado de emergência fiscal” em diversos países. Essa
desaceleração econômica trouxe pesados fardos fiscais nos países centrais que,
golpeados pela combinação de inflação e estagflação perceberam a
“necessidade” de impulsionar a demanda, frear os preços e escorar os lucros
empresariais induzindo-os a desenvolver fortes intervenções públicas que
tendiam aos seguintes objetivos: 1) expansão do gasto público com o fim de
apoiar a atividade industrial, em especial de grupos selecionados de grandes
empresas, e reduções fiscais que melhoraram sua rentabilidade; 2) freio aos
aumentos dos salários, aumentando assim os lucros das empresas; 3) rigor
monetário e liberalização financeira que, somados à demanda estatal de fundos
(motivada pelo déficit orçamentário), fez subir as taxas de juros (idem, p. 115).
Mesmo este processo não trouxe uma resposta satisfatória para estimular o
quadro da acumulação de capital: as taxas agregadas de crescimento global
ficaram em mais ou menos 3,5% nos anos 1960 caindo para 2,4% no curso da
década de 1970. A desaceleração do crescimento mundial ainda se mostra num
processo acelerado na década de 1980 com o crescimento de 1,4% e 1990 com
1,1% caindo desde lá (Harvey, 2008, p. 166). Ao mesmo tempo essa tendência
acompanha um processo em que o retorno do capital não pode mais ser
marcado apenas no final do mês – considerando os custos com salários,
equipamentos e organização da produção. Hoje a reprodução do dinheiro
também deve ser feita em milissegundos pelos últimos desenvolvimentos
técnicos das Bolsas em nível mundial num rito que passa dia e noite, verão e
inverno, chuva e sol. Não é à toa que estamos presenciando um aumento
progressivo das chamas transações de “alta freqüência”. Elas têm como objetivo
extrair lucros negociando pequenos números de ações de diferentes empresas,
entre diferentes plataformas de transação, sob velocidades muito elevadas. Essa
“latência” requer a atualização constante dos índices micro-econômicos dos
computadores que, segundo Stephen Ehrlich, presidente-executivo da
85
Lightspeed Financial, “são na prática os formadores do mercado agora”.
Segundo estimações, as operações de alta freqüência respondem por até 73% do
volume diário de transações com ações nos Estados Unido em 2009, ante 30%
em 2005. Esse tipo de operação que é executada na ordem de milissegundos é
conseqüência direta do avanço técnico na transação de ações: plataformas
eletrônicas operadas nas bolsas Nasdaq OMX e NYSE Euronext; redes de
comunicação eletrônica, aumento dos foros anônimos de negociação (os
famosos “dark pools” que operam fora do mercado convencional).
A partir desse mapeamento geral, podemos dizer que existe um relativo
consenso sobre o surgimento da crise estrutural do capital desde meados de
1970. Essa crise é comumente relacionada com o declínio do Estado de Bem-
Estar Social e com o fim da experiência soviética do “socialismo real” sendo esta
mais uma manifestação da crise global que se universaliza no final do século
XX. As diversas crises que desembocaram no final do século como a mexicana,
argentina, brasileira e a asiática estão também estreitamente ligadas com essa
crise estrutural cuja causalidade unifica tais manifestações particulares e seu
impacto global.
A “Grande Crise Econômica” de 1929-33 estava longe de ser uma crise
estrutural ao deixar ainda diversas opções abertas para a sobrevivência
continuada do capital, bem para uma recuperação e sua reconstrução mais
ampla e forte do que nunca em uma base economicamente mais saudável e mais
ampla. Para o filósofo István Mészáros (2006, p. 796), a crise que vivemos hoje
é fundamentalmente uma crise estrutural que se manifesta em quatro aspectos
principais:
1) Seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular
(por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo
particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho
com sua gama específica de habilidade e graus de produtividade etc.);
86
3) Sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em
lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crise anteriores do
capital;
87
de parte da humanidade para garantir a sobrevivência do capital enquanto
metabolismo social global, seja pelo imperialismo, pela destruição da natureza,
pela fome, por novas formas de apartheid social, pela depreciação progressiva
das condições socioeconômicas dos trabalhadores, pela estagnação salarial, pelo
desemprego crônico. Em outras palavras, com o esgotamento da capacidade de
acumulação e expansão do capital, ainda mais pelos pobres incrementos
constantes de produtividade do trabalho, se aceleram a superprodução de
mercadorias em nível global que necessitam ser consumidas para realizar o
valor auto-expansivo do capital. Como resultados desse processo, se finalizam
progressivamente as possibilidades de crescimento com desenvolvimento na
sociedade capitalista, fazendo com que a sobrevivência continuada do capital
dependa da depressão contínua das condições de vida dos trabalhadores (num
nível ainda mais radical nos países menos desenvolvidos passando dos formais
assalariados aos informais, terceirizados e dos desempregados); um desperdício
institucionalizado sob o encurtamento da aceleração da vida útil das
mercadorias, serviços, instalações, maquinarias; um acirramento da competição
internacional; posturas cada vez mais ofensivas do imperialismo para assegurar
a perpetuação das contradições globais do capital; uma apropriação do
desenvolvimento tecnológico para controle social e, não menos sintomático, a
introdução progressiva de medidas excessivas do Estado nas democracias
liberais como medidas normais de governo.
Nesse sentido amplo, diferentemente de grande parte de consenso da
esquerda, a ascensão do capital financeiro é um efeito e não a causa da crise
economia mundial. A crise tem suas raízes num declínio progressivo da
lucratividade que teve como resultado um excesso constante de capacidade e
produção no setor produtivo internacional. Pela incapacidade do campo
produtivo proporcionar a taxa de lucro necessária, o deslocamento para o canal
financeiro foi uma conseqüência necessária da compressão da lucratividade
diante de uma acirrada competição internacional. Nesse sentido, o processo de
financeirização trouxe um desvio crescente de fundos da produção e emprego
fazendo com que, progressivamente, a economia global dependesse cada vez
mais da financeirização para o crescimento. Entre 1980 e 1992, por exemplo, a
formação de capital fixo cresceu numa taxa anual de 2,3% enquanto os ativos
88
financeiros cresceram 6%. O volume diário total de transições financeiras
globais em 1983 era de 2,3 bilhões passando, em 2001, para 130 bilhões.
A ascensão devastadora da especulação no terreno das finanças está
ligada, principalmente, com a incapacidade de acumulação de capital no terreno
produtivo e não por novas modalidades de “ganhar dinheiro mais fácil” como
dizem alguns. As transformações do capital na esfera financeira geraram
negócios com títulos de dívidas públicas, bônus, câmbio, ações e derivativos que
se multiplicaram numa velocidade crescente em relação ao comércio e a
produção mundial. Em 1979 as transações financeiras diárias era de US$ 75
bilhões, em 1990 de US$ 500 bilhões e, em 1998, chegou a US$ 1,8 trilhão
(Toussaint, 2001, p. 90). Essa mudança fez com que as “empresas produtivas”
passassem a gerar um valor crescente na esfera financeira deslocando seus
recursos básicos de investimento. Essa passagem para a financeirização da
riqueza foi uma possibilidade para resultados positivos mais abrangentes e
rápidos do que poderiam ser feitos na esfera produtiva. Como nota Chesnais, a
financeirização confere um duplo caráter entre a dimensão produtiva e
financeira da mundialização do capital. Por um lado, as empresas se identificam
cada vez mais com os interesses das instituições estritamente financeiras e, por
outro lado, continuam sendo locais de valorização do capital produtivo, sob a
forma industrial (Chesnais, 1996, p. 275). Ocorre a partir daí uma convergência
das decisões estratégicas entre produção e finanças que impossibilita uma
distinção vulgar entre a economia produtiva e financeira já que muitas
empresas transnacionais fundiram a função produtiva com a financeira. O
capitalismo global funciona pela relação dialética e profundamente co-
dependente entre ambas já que a própria orientação dos investimentos de
diversos grupos transnacionais é baseada na atitude “financeira-rentista”. A
distinção entre um campo produtivo que cria riqueza social e um campo
financeiro baseado em especulações destrutivas não faz sentido com o
desenvolvimento capitalista principalmente após os anos 1980. Na verdade,
essas duas esferas reconstroem uma a outra sendo uma irredutível a outra.
Como conseqüência, é um grande erro as proposições para extinguir
progressivamente a esfera financeira para que a esfera produtiva possa
novamente criar riqueza social abrangente, pois não captam que, sob a crise
estrutural do capital, a resposta para a incapacidade de acumulação de capital
89
necessária no campo produtivo foi o deslocamento crescentemente para o
campo financeiro consolidando e aprofundando nas últimas décadas uma
dialética em que ambas as dimensões são os dois lados de uma mesma moeda.
Como escreve o japonês Kojin Karatani, “hoje a maioria dos economistas avisa
que a especulação do capital financeiro global está descolada da economia
“real”. Entretanto, o que deixam de ver é que a economia real com tal é também
impulsionada pela ilusão e que essa é a natureza da economia capitalista” (241).
Em outras palavras, o processo de financeirização aberto pelas transformações
neoliberais como canal de acumulação veloz e “diversificação de riscos” para
proporcionar altos lucros aos capitalistas foi à forma de acumulação de capital
que possibilitou e possibilita uma redistribuição de riqueza num cenário de
competição global onde a produção é lenta demais para trazer os níveis de
lucratividade necessários para o capital atender sua demanda de auto-expansão.
Esse processo trás a tona uma relação incestuosa em busca de objetivos
correlatos na produção e nas finanças.
Marx costuma lembrar que não existe luta de classes entre os capitalistas
financeiros e industriais. Eles fazem parte de uma mesma classe e, mesmo que
tomem formas de decisão diferentes e com ímpetos até mesmo contrários,
atuam para a reprodução ampliada do capital. Enquanto o capitalista industrial
busca uma taxa de lucro pela mais-valia produzida pela totalidade do capital,
pela relação entre essa mais-valia e valor do capital todo e pela concorrência
pelo movimento que possibilita os capitais extrai a mais-valia diferentemente, o
capitalista financeiro se reproduz a partir de sua relação com a mercadoria
universal: o dinheiro.
90
mercado, é cada vez menos representado pelo capitalista isolado, pelo dono
desta ou daquela fração do capital existente no mercado, e cada vez mais
constitui massa concentrada, organizada, que, distinguindo-se totalmente da
produção real, encontra-se sob controle dos banqueiros que representam o
capital social (idem, p. 488, 489).
E continua Marx,
O capital agora é coisa, mas como coisa, capital. O dinheiro é agora um corpo
vivo que quer multiplicar-se. Desde que emprestado, ou mesmo aplicado no
processo de reprodução (rendendo ao dono, o capitalista ativo, juros que se
distinguem do lucro do empresário), cresce para ele o juro, esteja dormindo ou
acordado, em casa ou em viagem, de dia ou de noite. Assim, o desejo quimérico
do entesourador materializa-se no capital-dinheiro produtor de juros (e todo
capital expresso em valor é capital-dinheiro ou passa por capital capital-
dinheiro)... Na qualidade de capital produtor de juros pertence ao capital toda
91
riqueza que pode ser produzida, e tudo o que recebeu até agora não é mais que
pagamento por conta de seu apetite insaciável. Segundo suas leis inatas,
pertencem-lhe todo o trabalho excedente que a humanidade pode fornecer...No
capital produtor de juros esta perfeita e acabada a representação fetichista do
capital, a idéia que atribui ao produto acumulado do trabalho e por cima
configurado em dinheiro, a força de produzir automaticamente mais-valia em
progressão geométrica em virtude de qualidade inata e oculta (p. 522, 525,
528).
O capital fictício se reproduz como uma coisa e não como uma relação
social. Na forma de capital mercantil existe uma dialética na unidade de suas
fases opostas, movimento irredutível que se decompõe em suas ocorrências
contrárias: a compra e a venda de mercadorias. No capital fictício essa relação
desaparece tomando a forma dinheiro que gera mais dinheiro, “valor que se
valoriza a si mesmo sem o processo intermediário que liga dois extremos”
(idem, p. 519). A generalização desse processo pressupõe a criação das
condições econômicas e políticas para a consolidação de um verdadeiro
mercado mundial do dinheiro, que abriu uma nova fase de financeirização da
economia global – expressa dominantemente a partir da metade da década de
1960. Como escreve Francisco Teixeira, essa fase é expressa por: (1) no declínio
da moeda e dos depósitos bancários enquanto fontes de financiamento do
processo de acumulação; (2) na desintermediação financeira, por conta da
expansão das técnicas mediante a emissão de títulos, que passaram a substituir
os empréstimos bancários convencionais; (3) na ampliação das funções
financeiras no interior das corporações produtivas; (4) na transnacionalização
de bancos e empresas; (5) na interdependência de taxas de juros e de cambio;
(6) no déficit público endogeneizado, isto é, financiado mediante a emissão de
títulos públicos renegociáveis do mercado de capitais; (7) na compra e venda de
corporações como um negócio específico das empresas produtivas; (8) nas
fusões como modalidade mais importante de investimento; (9) na natureza
multifuncional, multissetorial e multifuncional das grandes corporações que
operam no mercado mundial; e (10) na permanência do dólar como moeda
estratégica mundial (2008, p. 40). Em conseqüência de todas essas
transformações, as empresas não se configuram mais como unidades
particulares de capital perdendo sua independência relativa. Como escreve
François Chesnais, a companhia transnacional está assumindo, cada vez mais, o
papel de regente da orquestra em relação a diversas atividades de produção e
92
transações tanto interna quanto externa às companhias que, mesmo que
incluindo ou não um investimento de capital, o objetivo consiste em promover
seus interesses globais (Chesnais, 1996, p. 69). Ou ainda como aponta Teixeira,
essas companhias apagam as fronteiras setoriais da economia uma vez que sua
estratégia de atuação abstrai as formas concretas em que investe seu capital.
Elas deixam de ser cada vez mais uma empresa predominantemente industrial
ou de serviços, bem como companhia bancária ou financeira adquirindo, dessa
forma, uma extrema mobilidade de modo a permitir à direção do centro (grupo
congregando várias filiais sob o controle de um centro de decisão financeiro
chamado holding) investir ou desinvestir massas de capitais de acordo com as
exigências de valorização do mercado (2008, p. 41).
93
diversas transformações precarizantes no processo de trabalho ou que, pior,
estes processos estimulam uma “libertação” do capitalista industrial pelo
aumento do poder das finanças.
94
desenvolvimento do sistema financeiro global são formadas “sociedades de
ações” que forçam o trabalho social cooperativo, intensivo e complexo a superar
as rígidas hierarquias do trabalho transformando os capitalistas industriais
clássicos em “meros diretores”. O capitalista não precisa mais ser um grande
proprietário. Conforme Marx, com o desdobramento máximo da grande
indústria capitalista sob o processo de financeirização mundial, a condição de
assalariado também é dada ao capitalista industrial em relação ao capitalista
financeiro e bancário. É uma “nova configuração” do capitalismo que não
supera o antagonismo estrutural de classe nem torna o capitalista assalariado
um trabalhador que aliena sua força de trabalho. Ao contrário, é uma nova
forma de personificação capitalista ainda mais fetichista onde o capitalista
ativo se torna um mero diretor do processo de produção. O famoso “patrão” –
o capitalista industrial – some do campo simbólico do trabalhador
“harmonizando” o conflito de classes e esconde uma fusão entre os capitalistas
financeiros e os “meros diretores” quue gerem a força de trabalho alheia.
Essa progressiva transformação do capitalista industrial em assalariado
se inicia com o capital se reproduzindo dominantemente na esfera financeira
reduzindo, dessa forma, o capitalista industrial a mero acumulador de
propriedade sobre o trabalho. Segundo Marx, as “sociedades por ações”
correspondem à dimensão negativa do processo de financeirização do capital.
Elas se dão pela expansão imensa da escala de produção da grande indústria,
sendo impossível atingi-las por capitais individuais.
O capital que, por natureza, assenta sobre modo social de produção e supõe
concentração social dos meios de produção e de forças de trabalho, assume
então diretamente a forma de capital social (capital de indivíduos diretamente
associados) em oposição ao capital privado, e as empresas passam a ser sociais
em contraste com as empresas privadas. É a abolição do capital como
propriedade privada dentro dos limites do próprio modo capitalista de
produção (2008, p. 582, 583).
95
conflituosas que produz os sintomas da luta de classes. Em outras palavras,
faltam elementos para a criação de conflitos pelo desvanecimento da autoridade
simbólica do capitalista, causando num primeiro momento uma analfabetização
do corpo político, chegando ao ponto de não se saber ao certo acerca da própria
existência de um corpo político para articular a luta econômica. O que esse
processo trás de novo para o capitalismo é a despersonificação do capitalista no
campo produtivo: é o que Marx chamou de “a mistificação do capital na forma
mais contundente” (idem, p. 521). Dessas condições, o capitalista ativo como tal
fica existindo apenas como um funcionário “especial” da empresa. Nas palavras
de Marx, “o capitalista desaparece do processo de produção como figura
supérflua” (idem, p. 513). Com a financeirização global, a relação entre os
capitalistas se transforma radicalmente ocorrendo uma disjunção radical entre
função e propriedade do capital:
96
Dessa forma, o capitalista perde progressivamente sua autoridade
simbólica fazendo apenas o papel de uma “mediação desvanecente” – processo
que é visto pelos teóricos do trabalho imaterial como uma “libertação”. Essa
transformação decorre do lucro assumindo a “pura forma de juro” que se revela
o “fruto genuíno do capital, o elemento original” enquanto o lucro do
empresário é um “mero acessório, aditivo que acrescenta ao processo de
reprodução”. Ao mesmo tempo “o trabalho aparece por completo separado da
propriedade quer dos meios de produção quer do trabalho excedente” num
“puro assenhoreamento de trabalho excedente alheio” (idem, p. 583).
Esse “deslocamento qualitativamente essencial” é a passagem onde Marx
caracterizava uma “nova configuração” do capitalismo – um período de
transição marcada pelas contradições entre a grande indústria e o capital. O
capitalista industrial se torna um gerente que busca a auto-organização do
trabalho devida sua perda de autoridade para implementar as hierarquias
militares própria da etapa manufatureira do desenvolvimento do capitalismo.
Esta passagem da preocupação do capitalista da produção do trabalho a
organização do trabalho é correlata à passagem do conflito político a técnica.
Esse processo de forma alguma supera o antagonismo que sustenta a relação
estrutural e hierárquica entre capital e trabalho. Ao contrário, essa “nova
configuração” afirma o antagonismo de classes mistificando-o sob o caráter
cooperativo e polivalente do trabalhador que deve produzir mercadorias só que,
agora, podendo chamar o “chefe” pelo apelido e dando sugestões sobre a melhor
capacitação do trabalho. O “chefe” é substituído pelo “líder” e o assalariado se
converte num “colaborador” tornando a empresa uma espécie de coletividade
em que, no nível da aparência, não existem conflitos próprios da divisão
estrutural Real entre capital e trabalho. Hoje em muitas empresas os chefes e
empregados, além de serem rebatizados, dividem o mesmo restaurante, o
mesmo uniforme, o mesmo banheiro. A todo custo se busca criar uma coerência
da quais todos dividem uma mesma visão de mundo – a visão da empresa como
uma família em que todos estão no mesmo barco. Como salienta Antunes, esse
modelo é baseado num “envolvimento cooptado” onde a empresa desenvolve
mecanismos participativos e envolventes que possibilita a apropriação tanto do
“fazer” como do “saber” do trabalhador numa sujeição qualitativamente
diferente da era fordista. Tratando de aspectos mais específicos dessas
97
transformações, Marcia Hespanhol escreve que a idéia difundida na empresa
contemporânea é que seus empregados tenham uma inserção mais participativa
na organização. O trabalhador passa de meros executores de tarefas
predeterminadas para se tornarem “colaboradores”, de quem se espera opiniões
e sugestões. Essas propostas teriam como objetivo com que todos os
trabalhadores tivessem uma maior satisfação num lugar onde as divisões de
classes teriam desaparecido. A organização gerencial, extremamente
verticalizada no modelo taylorista, se modifica numa horizontalização sob a
eliminação de diversos níveis hierárquicos intermediários e com delegação de
responsabilidade para os trabalhadores da base. Criam-se espaços onde os
trabalhadores devem opinar e dar sugestões sobre a produção, entre os quais, se
destacam os Círculos de Qualidade (QQC) que é parte central da “japoneização”
do mundo do trabalho ocidental (idem, p. 26, 27). Em outras palavras, o
antagonismo entre capital e trabalho se mascara sob novas formas tecno-
organizativas onde o trabalho torna-se mais cooperativo para atender os
imperativos existenciais de acumulação e expansão do capital pós-manufatura.
É a “grande indústria enxuta” que emerge no último quartel do século XX e
opera a todo vapor no mundo contemporâneo produzindo rupturas no
desenvolvimento da maquinaria e desenvolvendo novas formas de correlação
entre a subsunção real e formal do trabalho ao capital.
Paradoxalmente as históricas reivindicações dos trabalhadores se tornam
o material para uma maior intensificação do trabalho hoje. Emerge noções
como a de competência que por individualizar o trabalhador impõem que
assuma seus riscos e fracassos. Também presenciamos um processo de
individualização das remunerações de operários e empregados que além de
funcionar como prática de mobilidade sistemática dos assalariados deteriora os
nexos de classe entre os assalariados. Como assinada Danielle Linhart, as
remunerações são muitas vezes acompanhadas de carreiras individualizadas
baseadas em arquivos sobre competência e em programas de formação
específicos. São estímulos estritamente individuais dados aos assalariados e
que, acrescidos das práticas de polivalência e de mobilidade, trazem uma grande
contradição entre essa individualização e as políticas que visam promover
formas mais coletivas de expressão e de trabalho (2007, p. 117) Além disso, com
os altos índices de desemprego, as empresas utilizam mecanismos explícitos –
98
como a demissão de trabalhadores com “um espírito reivindicatório exagerado”
– como mecanismos mais sutis – como sistemas de sanções, recompensas
informais, individualização dos salários – para exercer o processo de cooptação
dos trabalhadores aos interesses da empresa. Nesta burocracia pós-fordista
ninguém sabe o que é realmente requerido, intensificando a ambigüidade das
atividades laborativas. A burocracia da grande indústria pós-fordista funciona
independentemente de alguma autoridade externa. Ela não toma uma forma
específica delimitando as funções de trabalhadores particulares, mas invade
todas as áreas do trabalho social. O resultado é o auto-assenhoramento do
trabalhador forçando sua própria “boa performance” para a empresa. No
mundo do trabalho contemporâneo se essa exigência não for atendida pelo
trabalhador - Trabalhe! Melhor! Mais ainda! - ele tem como sério potencial a
entrada traumática na dimensão do desemprego já que não estaria apto à
hipercompetitividade que marca profundamente as relações de trabalho hoje.
Trabalho demanda mais trabalho – e o capitalista desvanecido não pode deixar
de demandá-lo incansavelmente.
99
Capítulo 5
Desenvolvimento e crise do modo de produção capitalista:
relendo Marx para o século XXI
101
das mercadorias e passa a medir a capacidade de reprodução das máquinas.
Está suposto aqui a utilização do trabalho vivo, mas a medida do valor se
transforma pela aceleração do processo reprodutivo das máquinas.
102
finalidade de auto-valorização mediada pela necessidade do “toque do valor de
uso” na produção e circulação de mercadorias. Como a atividade do trabalhador
coletivo é determinada pelo movimento da maquinaria na grande indústria, seu
saber-fazer é expropriado para conseguir valorizar o valor o máximo possível
reproduzindo a condição de “autômato” do proletariado para o capital. Assim, o
tempo de reprodução das máquinas passa a ser determinante do valor na
grande indústria. Com isso a capacidade da maquinaria de “objetivação” das
funções mais abstratas do intelecto humano torna possível a transformações
profundas nas atividades intersubjetivas. Além disso, a maquinaria da grande
indústria tardia tem a capacidade de corrigir-se e adaptar-se a demandas
variáveis. O capital fixo da maquinaria, com o avanço da grande indústria, é
extremamente flexível na sua capacidade de apropriar a informação como
matéria-prima. A tendência central do capital é a transformação dos meios de
produção em maquinaria. Ao contrário da força de trabalho como meio de
produção, a maquinaria revoluciona todos os outros meios de produção sendo
capaz de apropriar-se de uma crescente porção da dimensão intelectual do
trabalho vivo para reproduzir a si mesma. Nas palavras de Marx,
103
O aperfeiçoamento das máquinas, enquanto aplicação consciente da
ciência, “só ocorre quando a grande indústria já alcançou um nível superior e o
capital capturou e colocou ao seu serviço todas as ciências; por outro lado, a
própria maquinaria existente já garante grandes recursos” (MARX, 1973, p.
227). Nesse estágio de desenvolvimento das forças produtivas, a atividade
inventiva torna-se objeto de um ramo particular da economia: “as invenções se
convertem, então, em um ramo da atividade econômica e a aplicação da ciência
à própria produção imediata se torna um critério que determina e incita a esta.”
(idem, p. 227,). O próprio Marx reconhece que este “não é o caminho pelo qual
surgiu em geral a maquinaria e menos ainda o caminho pelo qual ela prosseguiu
em detalhes.” (MARX, 1973, p. 227). Ele descreve esse curso assim:
104
determinante da produção – da criação de valores de uso -; na mesma
medida, o trabalho imediato será reduzido quantitativamente a uma
proporção mais exígua, e qualitativamente a um momento sem dúvida
imprescindível, porém subalterno perante o trabalho científico geral, a
aplicação tecnológica das ciências naturais, por um lado, e, por outro
lado, perante a força produtiva geral resultante da estruturação social da
produção global, força produtiva esta que aparece como dom natural do
trabalho social (ainda que [seja, na realidade, um] produto histórico). O
capital trabalha assim a favor de sua própria dissolução como forma
dominante da produção (MARX, 1973, p. 222).
105
No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels argumentam que “o
proletariado utilizará seu domínio político para arrancar pouco a pouco todo o
capital à burguesia para centralizar todos os instrumentos de produção nas
mãos do Estado, ou seja, do proletariado organizado como classe dominante
(...)”. (MARX; ENGELS, 2001, p. 66). Na transição socialista, os meios de
produção são coletivizados através da propriedade do Estado. Assim, as forças
produtivas (meios de produção e força de trabalho) contariam com as condições
propícias para a liberação do seu desenvolvimento, com eficiência e
superioridade, cada vez mais, em relação ao capitalismo. Com o processo de
avanço do comunismo, o Estado, progressivamente, extingue-se. “A intervenção
da autoridade do Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num campo
após outro da vida social e cessará por si mesma. O governo sobre as pessoas é
substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de
produção. O Estado não será ‘abolido’, extingue -se”. Em outro momento, mais
ponderado, Marx aponta que após o capitalismo, haveria “um período de
transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do
proletariado” (MARX; ENGELS, 2001, p. 67).
106
transformação do capitalista realmente ativo em “mero dirigente, administrador
do capital alheio, e dos proprietários de capital em puros proprietários, simples
capitalistas financeiros” (idem, p. 583). Entretanto, o desvanecimento da
representação do capital torna, num primeiro momento, o corpo social do
trabalho “sem transcendência”, degradando as mediações conflituosas que
produz os sintomas da luta de classes. Em outras palavras, faltam elementos
para a criação de conflitos pelo desvanecimento da autoridade simbólica do
capitalista, acarretando num primeiro momento uma analfabetização do corpo
político, chegando ao ponto de não se saber ao certo acerca da própria existência
de um corpo político para articular a luta econômica. O que esse processo trás
de novo para o capitalismo é a despersonificação do capitalista no campo
produtivo: é o que Marx chamou de “a mistificação do capital na forma mais
contundente” (idem, p. 521). Dessas condições, o capitalista ativo como tal fica
existindo apenas como um funcionário “especial” da empresa. Nas palavras de
Marx, “o capitalista desaparece do processo de produção como figura supérflua”
(idem, p. 513).
107
esfera financeira dominante e uma esfera produtiva dominada independente,
mesmo que muitas vezes ambas tenham estratégias diferenciadas.
Marx também lembrou que não existe luta de classes entre os capitalistas
financeiros e industriais. Eles fazem parte de uma mesma classe e, mesmo que
tomem formas de decisão diferentes e com ímpetos até mesmo contrários,
atuam para a reprodução ampliada do capital. Enquanto o capitalista industrial
busca uma taxa de lucro pela mais-valia produzida pela totalidade do trabalho
social (pela relação entre essa mais-valia e valor do capital todo e pela
concorrência pelo movimento que possibilita os capitais extrair a mais-valia
diferentemente), o capitalista financeiro se reproduz a partir de sua relação na
maioria das vezes meramente técnica com a mercadoria universal: o dinheiro.
Como escreve Marx:
108
Quando se finalizam progressivamente as possibilidades de crescimento
com desenvolvimento na sociedade capitalista, fazendo com que a sobrevivência
continuada do capital dependa da depressão contínua das condições de vida dos
trabalhadores, Marx aponta que são formadas “sociedades de ações” como
desenvolvimento do sistema financeiro em contraposição as “cooperativas”
globais baseadas num trabalho cooperativo, intensivo e complexo que, para
superar as rígidas hierarquias do trabalho, necessita transformar os capitalistas
industriais clássicos em “meros diretores” no sentido de harmonizar o horizonte
das determinações antagônicas de classe que acabam por ser reduzidas a
conflitos individuais e, consequentemente, individualmente remediáveis. As
contradições da realidade social se “desvanecem” transferindo ao indivíduo os
encargos criados socialmente.
109
caso, a reprodução – do valor dos produtos de trabalho passado resulta apenas
de seu contato com o trabalho vivo” (idem, p. 528). Dessa forma, o capitalista
perde progressivamente sua autoridade simbólica fazendo apenas o papel de
uma “mediação desvanecente”. Essa transformação decorre do lucro assumindo
a “pura forma de juro” já que, por esse caminho, tais empresas de ações se
reproduzem pela “autonomização” do valor de troca. Aí o juro se revela o “fruto
genuíno do capital, o elemento original” enquanto o lucro do empresário é um
“mero acessório, aditivo que acrescenta ao processo de reprodução”. Então, para
Marx, com o desdobramento da financeirização global o referente do capitalista
industrial se desvanece do campo produtivo abrindo as condições para a etapa
mais fetichista do capital com o crescimento “sem taxa natural” do capital
fictício. Em suas palavras, “desaparecem então todas as normas, todas as
justificações ainda mais ou menos válidas no modo capitalista de produção...
concepções que ainda tinham sentido em fase menos desenvolvida da produção
capitalista tornam-se por completo caducas...a expropriação agora vai além dos
produtores diretos, estendendo-se aos próprios capitalistas pequenos e médios”
(2008, p. 586).
Esta visão mais ou menos orgânica das contradições do modo de
produção capitalista conjuga seu estágio mais elevado de desenvolvimento da
grande indústria levaria a sua crise com a financeirização altas taxas de
multiplicação do capital e na transformando das relações de trabalho uma ilusão
para se manter o modo de produção capitalista. Quando mais de desenvolve a
grande indústria, mais estas contradições se expressam, num longo período de
transição social. Assim, num estágio histórico em que o capitalismo que atingiu
seu teto de desenvolvimento, ampliando suas formas predatórias de reprodução
por meio da financeirização e reestruturação produtiva, como podem ser
chamados os paradigmas de especialização flexível como o toyotismo que veio
se mostrar superior em eficiência durante a Terceira Revolução Tecnológica, é
que novos modos de produção se desenvolvem de forma mais rápida, tendo que
resolver contradições insolúveis do capital.
110
Crise do modo de produção capitalista contemporânea
111
setoriais da economia uma vez que sua estratégia de atuação abstrai as formas
concretas em que investe seu capital. Elas deixam de ser cada vez mais uma
empresa predominantemente industrial ou de serviços, bem como companhia
bancária ou financeira adquirindo, dessa forma, uma extrema mobilidade de
modo a permitir à direção do centro (grupo congregando várias filiais sob 8 o
controle de um centro de decisão financeiro chamado holding) investir ou
desinvestir massas de capitais de acordo com as exigências de valorização do
mercado (2008, p. 41).
112
As empresas que retornavam parte de seu lucro para investimentos na produção
passaram a investir relativamente alto no mercado financeiro “quebrando” o
pêndulo cíclico entre finanças e produção em detrimento radical deste último,
exatamente pela incapacidade de superar a crise crônica de superprodução de
capital que emerge a partir de meados de 1970.
Com a maior competição global (emergência econômica do Japão e da
Europa Ocidental em detrimento dos Estados Unidos), as altas taxas de lucro
vistas entre 1945 e fim da década de 1960 nos países mais avançados
começaram a declinar e, pela incapacidade do campo produtivo proporcionar a
taxa de lucro necessária, o deslocamento para o canal financeiro foi uma
conseqüência necessária diante da compressão da lucratividade geral com uma
acirrada competição internacional. Nesse sentido, o processo de financeirização
trouxe um desvio crescente de fundos da produção e emprego fazendo com que,
progressivamente, a economia global dependesse cada vez mais da
financeirização para o crescimento. Entre 1980 e 1992, por exemplo, a formação
de capital fixo cresceu numa taxa anual de 2,3% enquanto os ativos financeiros
cresceram 6%. O volume diário total de transações financeiras globais em 1983
era de 2,3 bilhões passando, em 2001, para 130 bilhões. A financeirização freia a
taxa de investimento na produção, introduzindo uma pressão suplementar
sobre o processo de valorização que permite a expansão do capital pela
aplicação de novas formas de flexibilização na gestão da força de trabalho.
Financeirização do capital e flexibilização do trabalho são processos que
caminham juntos com o mesmo objetivo: a auto-expansão do capital numa
crescente amplitude e intensidade independentemente das conseqüências
sociais e ecológicas envolvidas. Essas transformações no mundo do trabalho
têm ligações complexas com o sistema financeiro e bancário mundial.
Como salienta Wladimir Pomar,
113
financeira, quanto na extração de mais-valia absoluta dos baixos salários.
A reestruturação do capital imperialista e sua consequente globalização
capitalista teve por base essa dupla ação. O que resultou na ocorrência de
uma profunda desindustrialização dos Estados Unidos e da Inglaterra e,
em menor escala, da Alemanha e da França. Paralelamente, houve a
consolidação dos tigres asiáticos como pequenas potências industriais, e
a emergência da China como potência econômica e principal fabricante
mundial de bens industriais. A isso associou-se uma profunda crise
depressiva controlada no Japão, e a emergência de uma série de novos
países em processos de industrialização, não só na Ásia, mas também na
África e na América Latina. Finalmente, desmentindo as análises
triunfalistas do capitalismo desenvolvido, a emergência de uma série de
crises financeiras e econômicas a partir de 2007 tendo como epicentro os
países desenvolvidos da América e da Europa. É nesse contexto que
procuramos discutir as duas grandes tendências mundiais de
desenvolvimento capitalista em curso. Por um lado, os países de
capitalismo desenvolvido começam a apresentar sinais de que o alto nível
tecnológico e cientifico de seus meios de produção (e também de
destruição) tendem a acentuar o fato de que a força de trabalho deixa de
ser uma necessidade indispensável para a realização da produção. Eles se
aproximam cada vez mais do ponto em que poucos trabalhadores são
necessários para a elaboração de projetos e inovações cientificas e
tecnológicas e para a produção efetiva das máquinas automáticas capazes
de realizar todo o resto do processo produtivo. Ou seja, o trabalho morto
tende a se tornar o aspecto fundamental para a produção, enquanto o
trabalho vivo tende a se tornar um apêndice altamente especializado do
processo produtivo. De outro lado, há uma série de países de
desenvolvimento capitalista médio, além dos que estão ingressando agora
na industrialização e no desenvolvimento capitalista, que tendem a
subordinar as exportações de capitais para seus territórios aos interesses
de seu desenvolvimento nacional. Mesmo os países que se subordinam a
processos mais intensos de exploração por parte dos países capitalistas
tendem a se ver às voltas com reivindicações sociais de soberania. As
empresas financeiras multinacionais ingressaram numa intensa
associação, fusão e incorporação de empresas industriais e comerciais,
começando a constituir corporações que congregavam finança, indústria,
agricultura, comércio e serviços, numa escala muito superior aos antigos
trustes e cartéis. No entanto, da mesma forma que antes e durante as
duas guerras mundiais, ao invés de conseguirem algum tipo de acordo
entre si, como alguns teóricos supuseram possível na época do
surgimento do imperialismo, essas novas corporações monopolistas, de
caráter transnacional, intensificaram suas disputas pelo domínio dos
mercados, tanto em seus territórios, quanto nos demais territórios do
mundo. Criaram, dessa forma, um crescente conjunto de problemas em
seus territórios ou países de origem, cuja reversão passou a depender,
cada vez mais, basicamente de duas ordens de ação. Em primeiro lugar,
da transformação de grande parte do capital excedente em diferentes
tipos de papéis financeiros, ou da criação de dinheiro através de dinheiro,
sem que essa massa financeira tivesse base na riqueza material real. Em
segundo lugar, da exportação de outra parte considerável dos capitais
excedentes para regiões do globo onde o capital industrial pudesse extrair
114
mais-valia absoluta da força de trabalho barata. Do ponto de vista
empresarial, as corporações transnacionais deveriam se espalhar por
todo o mundo, exportando seus capitais excedentes. Essas exportações se
apresentaram em diferentes formas. Financiamentos, empréstimos,
aplicações em investimentos de curto prazo, venda de títulos e
derivativos e formas assemelhadas constituíram aquilo que se tornou
conhecido como financeirização. Investimentos diretos de capital
dinheiro para comprar empresas, ou parte delas, transferências,
relocalizações ou deslocalizações de plantas industriais, completas ou
segmentadas, passaram a ser vistos com naturalidade e como
componente comum do funcionamento do capitalismo desenvolvido.
20
https://elahp.com.br/a-questao-do-socialismo-ii/
115
É longa a lista dos diversos problemas que surgem ou se agravam com o
capitalismo, ao longo do tempo, como se assiste hoje: concentração e a
centralização do capital, monopólios, instabilidade econômica geral, crises
periódicas, aumento do exército industrial de reserva, luta de classes entre
trabalhadores e burgueses, tendência à violência política e à guerra,
contradições entre os Estados imperialistas, conflitos entre países centrais e
periféricos, tensões entre dominação de empresas transnacionais e políticas
públicas nacionais, mediocridade crônica dos níveis de crescimento da
economia global, depredação da natureza, entraves ao desenvolvimento
econômico e social em vastas regiões, misticismo, fetichismo mercantil,
alienação, ódio interétnico, chauvinismo e ressentimentos nacionais. Do ponto
de vista do desenvolvimento dos grandes países desenvolvidos, como Europa e
Japão, é inegável uma retração econômica de longo prazo, colocando o sistema
econômico capitalista em uma fase de crescimento lento. A crise financeira
internacional que se originou nos Estados Unidos em 2007 causou danos
tremendos aos sistemas econômicos dos países capitalistas. Muitos países não
se recuperaram totalmente de sua influência até agora. Isso pode lembram às
pessoas que as contradições inerentes ao capitalismo não foram atenuadas, mas
gradualmente se aprofundaram de forma invisível.
116
corrente do socialismo utópico. Um modelo pronto e acabado da futura
sociedade escaparia ao método materialista de compreensão da realidade, dada
a ausência das situações concretas, postas objetivamente. A conquista do
socialismo decorreria do movimento operário a partir dos centros econômicos
mais avançados. Como a história veio a desenrolar de outra forma, basta dizer
que as proposições de Marx e Engels não bastam para estudar os problemas do
socialismo hoje, inclusive a controvertida modernização socialista da China.
Entretanto, a caracterização do modo de produção capitalista por Marx e Engels
e a compreensão sobre as possibilidades da evolução histórica geral oferecem
elementos para a discussão sobre os processos de transição socialista, a partir da
luta dos trabalhadores.
A nova situação criada pelas atuais condições gerais da China e do
socialismo de mercado no mundo deve ser examinada, sem perder de vista as
idéias sobre o socialismo e os debates sobre sua renovação. Além da crítica ao
capitalismo, o desenvolvimento da teoria marxista no século 21 requer resumir a
experiência histórica dos movimentos socialistas e práticas socialistas na China
e em outros países do mundo e responder às questões realistas da época. Então,
torna-se indispensável um breve exame crítico da discussão no âmbito das
correntes marxistas sobre a transição socialista.
117
mostrado vantagens correspondentes em comparação com o desenvolvimento
capitalista. O atual padrão capitalista e socialista global passou por grandes
mudanças, refletidas principalmente na crise financeira internacional que
começou nos Estados Unidos em 2008 e se espalhou pelo mundo. Deve ganhar
novos contornos com a crise do coronavírus. A vitalidade econômica e a situação
econômica da Europa e dos Estados Unidos foram enfraquecidas. Enquanto
isso, diversos pesquisadores, inclusive marxistas, vêm apontando na China a
formação de um novo modo de produção alternativo.
118
REFERÊNCIAS
Alves, Giovanni. Trabalho e subjetividade – o espírito do toyotismo na era do
capitalismo manipulatório. são Paulo: Boitempo editorial, 2011.
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995.
_____. Pós-Grande Indústria nos Grundrisse (e para além deles). Lua Nova,
v.19, 1989.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2005 (1a
ed. 2000).
119
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. Uma Pesquisa sobre as origens da
mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1993.
LESSA, Sergio. Para Além de Marx? Crítica da teoria do trabalho imaterial. São
Paulo: Xamã, 2005. LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva. São Paulo: Loyola,
2007.
_____. Para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982
____. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
Livro III. Vol. V, p. 21-22.
120
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. 10. ed. São
Paulo: Global, 2006.
______. Automação e trabalho: Marx igual a Adam Smith? In: In: Estudos
Econômicos, vol. 25, n.1, 1995.
______. Marx, Taylor and Ford at the end of XXth century: reflections on work
and citizenship. Revista ORG & DEMO (Marília), n. 3, p. 55-60, 2002.
121
SOBRE O AUTOR
122