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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO
NA PUBLICAÇÃO (CIP)
Marcelino, Fernando
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SUMÁRIO
1.4. Referências p. 23
2.1. Hidro-hegemonia p. 26
2.10. Referências p. 80
SOBRE O AUTOR p. 87
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1. GEOPOLÍTICA DA ENERGIA
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No contexto pós-Segunda Guerra, os EUA perceberam que para manter seu
poder no mundo, deve ser capaz de ter um suprimento abundante de recursos. Até 1950,
os EUA eram o principal produtor mundial de petróleo. Naquele ano, os EUA
produziram aproximadamente 270 milhões de toneladas métricas de petróleo, ou cerca
de 55% da produção total mundial. Mas com a recuperação do pós-guerra a todo vapor,
o mundo precisava de muito mais energia, enquanto os campos de petróleo mais
acessíveis dos EUA ainda pudessem crescer, estavam se aproximando dos níveis
máximos de produção sustentável. A produção líquida de petróleo bruto dos EUA
atingiu um pico de cerca de 9,2 milhões de barris por dia em 1970 e depois entrou em
declínio (até a disparada do xisto dos anos 2010). Isso levou as gigantescas empresas
petrolíferas, que já haviam desenvolvido sólidas bases na Indonésia, Irã, Arábia Saudita
e Venezuela, a varrerem o Sul Global em busca de novas reservas para explorar. Uma
atenção especial foi dada à região do Golfo Pérsico, onde em 1948 um consórcio de
empresas estadunidenses – Chevron, Exxon, Mobil e Texaco – descobriu o maior
campo de petróleo do mundo, Ghawar, na Arábia Saudita. Em 1975, os produtores do
Sul Global produziam 58% da produção mundial de petróleo, enquanto que a
participação dos EUA caiu para 18% (YERGIN, 2008).
Iraque, Síria, Nigéria, Sudão do Sul, Ucrânia, Mares do Leste e do Sul da China: onde
quer que você olhe, o mundo está em chamas com conflitos novos ou intensificados. À
primeira vista, essas convulsões parecem ser eventos independentes, impulsionados por
suas próprias circunstâncias únicas e idiossincráticas. Não deveria surpreender ninguém
que a energia desempenhe um papel tão significativo nesses conflitos. Petróleo e gás
são, afinal, as commodities mais importantes e valiosas do mundo e constituem uma
importante fonte de renda para governos e corporações que controlam sua produção e
distribuição. De fato, os governos do Iraque , Nigéria , Rússia , Sudão do Sul e Síria
obtêm a maior parte de suas receitas das vendas de petróleo, enquanto as principais
empresas de energia (muitas estatais) exercem imenso poder nestes e em outros países
envolvidos. Quem controla esses estados, ou as áreas produtoras de petróleo e gás
dentro deles, também controla a arrecadação e a alocação de receitas cruciais. Apesar da
pátina de inimizades históricas, muitos desses conflitos, então, são realmente lutas pelo
controle da principal fonte de renda nacional. Como esses conflitos e outros como eles
sugerem, lutar pelo controle sobre os principais ativos de energia ou a distribuição das
receitas do petróleo é um fator crítico na maioria das guerras contemporâneas. Embora
as divisões étnicas e religiosas possam fornecer o combustível político e ideológico para
essas batalhas, é o potencial de lucros gigantescos do petróleo que mantém as lutas
vivas. Sem a promessa de tais recursos, muitos desses conflitos acabariam por se
extinguir por falta de recursos para comprar armas e pagar tropas. Enquanto o petróleo
continuar fluindo, no entanto, os beligerantes terão tanto os meios quanto o incentivo
para continuar lutando. Em um mundo de combustíveis fósseis, o controle sobre as
reservas de petróleo e gás é um componente essencial do poder nacional. Algum dia,
talvez, o desenvolvimento de fontes renováveis de energia possa invalidar esse
ditado. Mas em nosso mundo atual, se você vir um conflito se desenvolvendo, procure a
energia. Estará em algum lugar deste nosso planeta movido a combustíveis fósseis
(KRANE, 2021).
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atenção à geopolítica energética é impressionante, dada a importância substantiva da
energia na economia mundial.
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Não por acaso, grandes períodos de mudanças sociais, tecnológicas, políticas e
econômicas foram impulsionados por determinados insumos, a exemplo do carvão, no
século XIX, gás e petróleo, no XX, assim como muitos dos laços e conflitos
interestatais foram originados em torno da busca pela posse destes recursos. As
mudanças ocorrem através da chamada transição energética, que ocorre em longos
períodos de tempo - 40/130 anos - e está relacionada à transição de uma economia com
uma fonte dominante de energia e sua correspondente tecnologia para outra
(FOUQUET, 2012, p.3). As mudanças na civilização energética pelas quais a
humanidade tem passado implicaram, não só a disponibilidade de uma nova fonte de
energia, mas também a passagem de uma economia com uma fonte dominante de
energia e sua tecnologia para outra, com um país que a domina e exerce poder. Nessas
transições, observa-se o peso que os hidrocarbonetos tiveram, e ainda têm, como fonte
primária de energia, ao longo da história.
Não apenas a Ásia emerge como polo de expansão da oferta, mas também
emerge como polo de crescimento da demanda por petróleo e gás natural, alavancando a
Rússia como parceira estratégica nessa trajetória. Nesse quadro, ao que tudo indica,
deve haver o aumento da demanda por derivados e a consequente necessidade de
ampliação da capacidade de refino desses países. Segundo recente relatório da British
Petroleum (BP), até 2040 deve ocorrer uma demanda incremental de até 12 milhões de
barris de petróleo/dia no mundo, estando um terço dela concentrada apenas na China e
na Índia. De acordo com um levantamento realizado pela consultoria IHS Cera, se
considerarmos as 35 maiores descobertas de hidrocarbonetos com mais de 1 bilhão de
barris, além dos países americanos supracitados, encontraremos avanços significativos
em países como Rússia, China, Índia e Turcomenistão, o que coloca a Ásia também no
radar das novas transformações estruturais da geopolítica do petróleo. Parte dessas
cobertas corresponde a petróleo tradicional, além do xisto, cujo vigor de oferta não é de
longo prazo, mesmo assim a Eurásia emerge como importante ofertante e o Sudeste
asiático como relevante demandante.
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segunda foi a mudança para o uso do petróleo no século XX como base da atividade
econômica, coincidindo com a Segunda Revolução Industrial, centrada nos Estados
Unidos, que permitiu o deslocamento da Alemanha e da Inglaterra do poder. O Oriente
Médio fortaleceu sua posição em escala global já que ali estão localizados os principais
países fornecedores de hidrocarbonetos, com preços fixados através da Organização dos
Países Exportadores de Petróleo (OPEP) desde 1960, que podem influenciar o mercado
de petróleo, caso decidam reduzir ou aumentar seu nível de produção. A última
transição energética do século XXI mostra 1) uma tendência ao uso do gás como bem
substituto, mais abundante, com preço inferior ao do petróleo e o menos poluente dos
hidrocarbonetos. É considerado uma ponte ou combustível de transição até que um uso
massivo de recursos renováveis possa ser desenvolvido. Este recurso há muito
subestimado pelas empresas petrolíferas torna-se um elemento fundamental no processo
de descarbonização à escala global; 2) tecnologia que permitiu aos Estados Unidos, por
meio do fracking, extrair hidrocarbonetos não convencionais, como óleo de xisto e gás
de xisto (de forma incipiente também está sendo desenvolvido na Argentina); 3)
extração de hidrocarbonetos em águas profundas e ultraprofundas do pré-sal, por meio
do desenvolvimento de tecnologia própria no caso do Brasil; 4) transporte crescente
mercado de gás natural liquefeito (GNL) via marítima com o aumento do número de
navios metaneiros e regaseificadores que permitam aos países reduzir sua
vulnerabilidade e/ou dependência de um único fornecedor (GUERRERO, 2016).
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para o desenvolvimento de rotas de transporte e construção de infraestrutura, além de
fatores políticos e econômicos (HUTSCHEREUTER, 2008).
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dos EUA e a mobilização de seus recursos econômicos e tecnológicos, dos quais a
energia é um componente chave (KRANE, 2022).
Essa perspectiva foi totalmente adotada pelo governo Biden, que vê a luta global com a
Rússia e a China como o princípio governante da política externa e militar dos
EUA. Dos dois, a China é amplamente vista como o principal adversário dos Estados
Unidos, e muitos em Washington continuam a manter essa visão. Mas desde janeiro a
Rússia monopolizou a atenção dos formuladores de políticas dos EUA e, ao elaborar
estratégias para conter a agressão da Rússia na Ucrânia, eles se concentraram na energia
como um fator especialmente crítico.
Depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, a Alemanha tomou algumas decisões rápidas:
alinhar-se com os EUA e abandonar o Nord Stream 2; reduzir rapidamente sua
dependência do gás russo; assinar acordos de energia com Holanda, Noruega, Estados
Unidos, Catar e Polônia; alugar quatro terminais flutuantes de GNL e construir dois
terminais fixos; e concordar com um embargo ao petróleo russo. Qualquer chefe de
Estado preocupado em proteger os interesses estratégicos de seu país ficaria horrorizado
com a ideia de sacrificar algo tão vital quanto a segurança energética em questão de
semanas. Os embarques extras de GNL que os EUA prometeram representarão apenas
10% das importações alemãs da Rússia e a nova infraestrutura para lidar com o aumento
do volume não estará pronta antes de 2026.
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As sanções dos Estados Unidos levaram ao Nord Stream I não transportar gás
russo para a Alemanha no final de agosto de 2022. O par de gasodutos Nord Stream II,
que teria dobrado a quantidade de gás que estaria disponível para a Alemanha e a
Europa Ocidental, nunca estiveram operacionais, pois a Alemanha suspendeu seu
processo de certificação pouco antes da operação militar da Rússia na Ucrânia, em 24
de fevereiro de 2022.
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parcialmente realizadas, podemos esperar que a energia desempenhe um papel cada vez
mais fundamental na geopolítica das grandes potências. A ação militar russa e as
subsequentes sanções ocidentais criaram uma enorme pressão sobre os mercados de
petróleo e gás, forçando as nações a reavaliar as relações de abastecimento de longo
prazo e reformulando profundamente a geopolítica econômica global de energia.
1
A nova geopolítica da energia. Coluna Opinião FGV. Disponível em
https://fgvenergia.fgv.br/sites/fgvenergia.fgv.br/files/_leonam_dos_santos_-_geopolitica_0.pdf
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Na economia mundial, os países aproveitarão sua vantagem energética
comparativa sobre outros. O acesso à energia (ou a falta dela) determinará a posição de
um país na hierarquia regional e global.
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Zhiznin analisou que a diplomacia oficial está cada vez mais envolvida na
realização das tarefas políticas energéticas internacionais. Na prática diplomática
energética, os interesses dos países nas relações internacionais podem ser divididos em
interesses econômicos estrangeiros e interesses políticos estrangeiros. A política
energética externa e a diplomacia energética dos países contêm dois aspectos
específicos: 1) o objetivo das atividades políticas externas é garantir os interesses
econômicos do país no campo do desenvolvimento, transporte e consumo de energia e
2) fins políticos através do aproveitamento de fatores energéticos. Para evitar
competições de destruição e caos crescentes no mercado mundial de energia e garantir a
segurança energética nacional, regional e global, a colaboração internacional deve ser
fortalecida gradualmente no campo energético.
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confiável das rotas de transporte de trânsito internacional de energia. As relações de
jogo entre corporações multinacionais estão ligadas à segurança energética
multinacional, portanto, manter a cooperação mútua entre as principais multinacionais
de energia no mercado mundial de energia é de grande importância para a diplomacia
energética do governo.
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offshore de petróleo e gás natural no Oceano Ártico e nos mares do leste e do sul da
China2.
Muitos acreditam que tecnologias alternativas, como energia eólica e solar,
reduzirão o poder geopolítico dos produtores de energia tradicionais porque alternativas
de baixo carbono fornecerão diversificação e maior segurança energética, especialmente
para os países que dependem fortemente das importações de combustíveis fósseis.
Atenta-se que a difusão das energias renováveis aumentará a eletrificação e
estimulará o comércio transfronteiriço de eletricidade. Fontes de energia como solar e
eólica requerem sistemas de energia flexíveis que possam lidar com a variabilidade
das condições climáticas. As redes elétricas inteligentes desempenharão, portanto,
um papel cada vez mais importante na mitigação dessa variabilidade e na garantia da
estabilidade do sistema. No cenário energético mais globalizado, os gasodutos de gás
natural e as interconexões de eletricidade entre fronteiras oferecem a perspectiva de
cooperação internacional – e tensão.
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Michael T. Klare, Da Escassez à Abundância: A Mudança da Dinâmica do Conflito de
Energia , 3 P ENN . St. _ _ JL & I NT'L A FF . 10 (2015).
Disponível em: https://elibrary.law.psu.edu/jlia/vol3/iss2/4
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propriedade integral do estado russo e o presidente da Federação Russa determina os
objetivos da empresa. A construção de até dez unidades de reatores começou entre 2007
e 2017 e, entre 2009 e 2018, a empresa respondeu por 23 dos 31 pedidos feitos e cerca
de metade das unidades em construção em todo o mundo. Por meio de sua subsidiária
TVEL, a Rosatom também fornece suprimentos de combustível, controlando 38% da
conversão mundial de urânio e 46% da capacidade de enriquecimento de urânio além do
descomissionamento e disposição de resíduos. A Rússia foi o fornecedor de cerca de
metade de todos os acordos internacionais sobre construção de usinas nucleares, reator e
fornecimento de combustível, descomissionamento ou resíduos entre 2000 e 2015. O
portfólio de encomendas estrangeiras da Rússia, incluindo construção de reatores,
fornecimento de combustível e outros serviços, abrange 54 países. Sua principal
vantagem reside na sua capacidade de ser uma “loja nuclear única” para todas as necessidades,
sendo o único fornecedor a fornecer um “pacote completo”: know-how de construção de
reatores, treinamento, suporte relacionado à segurança, requisitos do regime de não proliferação
e opções de financiamento flexíveis, incluindo linhas de crédito de origem governamental. A
empresa também é capaz de descarregar combustível nuclear usado de clientes no exterior. Por
isso, a energia nuclear pode ser cogitada por países para os quais antes era inatingível,
principalmente no Oriente Médio, na África subsaariana e na América do Sul (REYMOND,
2022). Seus principais concorrentes de energia nuclear - China, França, Japão, Coréia e
Estados Unidos — responderam por outros 40%, combinados.
Porém, é certo que, assim como água, terra e ar, a energia não é apenas uma
commoditie, mas a precondição de todas as commodities. E a nova geopolítica da
energia inclui um mix de energias que possuem necessidades e capacidade de projeção
de poder. Ter reservas de recursos energéticos renováveis ou não renováveis, bem como
sua produção e consumo, gera dependências complexas e dinâmicas entre os países,
com interações entre ordens geopolíticas em diferentes escalas. Se alteram suas cadeias
produtivas, as relações entre produção e demanda, bem como a origem da energia, com
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a expansão de outras matrizes além do petróleo. Mas, como no passado, o poder da
energia terá um papel maior do que qualquer outro fator determinante nas relações entre
as nações. As alianças geopolíticas do futuro continuarão a ser sustentado pelos
diferentes interesses energéticos.
1.4. REFERÊNCIAS
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Social Science. 2014;1:198-205. http://dx.doi.org/10.1016/j.erss.2014.03.005.
______. Fueling the Fire: Pathways from Oil to War. International Security.
2013;38(2):147-80. http://dx.doi.org/10.1162/ISEC_a_00135.
ERGIN, Daniel. The Quest: Energy, Security, and the Remaking of the Modern
World . Nova York, Penguin, 2012.
______. O prêmio: a busca épica por petróleo, dinheiro e poder. Nova York, Free Press,
2008.
JIANHUA, Yu & YICHEN, Dai. Energy Politics and Security Concepts from
Multidimensional Perspectives, Journal of Middle Eastern and Islamic Studies (in Asia),
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KLARE, Michael. Guerras energéticas do século XXI: como o petróleo e o gás estão
alimentando os conflitos globais, 2014.
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Abundance: The Changing Dynamics of Energy Conflict. Penn State Journal of Law
and International Affairs, 2015. Disponível em
https://elibrary.law.psu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1093&context=jlia
_______. There Will Be Blood: Political Violence, Regional Warfare, and the Risk of
great Power Conflict over contested Energy Sources .,. (Uni. In: Energy Security
Challenges in the 21st Century. United States of America: ABC-CLIO, p. 40, 2009.
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foreign affairs, 3 March, 2015.
MANSSON, André. Energy, conflict and war: towards a conceptual framework. Energy
Research & Social Science. Lund University, 2014.
MEARSHEIMER, John. J. Por que os líderes mentem: toda a verdade sobre as mentiras
na política internacional. Rio de Janeiro, Zahar, 2012.
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2. GEOPOLÍTICA HÍDRICA GLOBAL
2.1. HIDRO-HEGEMONIA
Nas últimas décadas, a água vem sendo cada vez mais valorizada como como
recurso geopolítico e geoeconômico estratégico. Os vales dos rios e as bacias fluviais
foram berçários das civilizações e constituem elemento do território no qual convivem
diversas populações e comunidades. Os rios, lagos, aquíferos e bacias fluviais que
transbordam ou atravessam limites e fronteiras territoriais estão sujeitos à jurisdição de
vários Estados e são considerados peças-chave para manutenção da paz, a segurança
internacional e a realização do desenvolvimento sustentável diante de um cenário
mundial caracterizado por múltiplas crises econômica, financeira, alimentar, energética,
mudanças climáticas e pela degradação ambiental provocada pela ação antrópica
(WWAP, 2015). Cerca de 40% da população mundial vive no território de 263 bacias
fluviais compartilhadas que correspondem a quase metade da superfície terrestre e
aproximadamente 60% do fluxo global de água doce (GIORDANO; WOLF, 2003;
WWAP, 2015). A Europa é a região que tem a maior quantidade de bacias
internacionais, seguida da África, Ásia e Américas. Estados Unidos, Canadá e Rússia
são hidricamente soberanos, pois as bacias passam em grande parte pelo interior do
país. Outras grandes bacias têm países tem relevante papel nas relações regionais. O
território de mais de trinta países é localizado quase completamente dentro dos limites
de bacias hidrográficas compartilhadas e algumas dessas bacias estendem-se por um
grande número de países, como por exemplo a bacia do rio Danúbio que é
compartilhada por 14 países, a bacia do Nilo que banha 11 países africanos e a bacia
Amazônica que está sujeita à jurisdição de 9 países da América do Sul (PNUD, 2006;
UN-WATER, 2008).
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Elaboração Neto (2017)
Em seu tratado “A Riqueza das Nações” (1776), Adam Smith postulou que o
sucesso relativo dos estados dependia do alcance de seu sistema fluvial, que – ele
pensava – definia tanto o tamanho dos mercados quanto a complexidade da divisão do
trabalho. Ele acreditava que o antigo Egito, China e Índia foram sociedades duradouras
em seu tempo por causa de suas vastas redes fluviais nativas. Não surpreendentemente,
os britânicos e depois os norte-americanos investiram de acordo.
O acesso e o controle sobre cursos d'água e corpos d'água podem fornecer uma
posição estratégica para um país. Em alguns casos, pode aumentar essa posição em
termos de projeção militar, comércio, estabilidade doméstica e influência sobre outros
países. Por esta razão, a água tem uma importância geopolítica subjacente. O acesso e
controle sobre a água pode ser uma fonte séria de conflito entre as nações, inclusive
com potencial de chegar ao nível de guerra. Barragens hidrelétricas podem exacerbar os
temores de escassez de água e o potencial de conflito sobre os recursos hídricos
compartilhados entre os países a montante e a jusante.
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complacência seria obtida sobretudo com a distribuição de recompensas (WARNER;
ZEITOUN, 2008). A definição de princípios do direito internacional fluvial e a
institucionalização das regras de cooperação em nível regional por meio de acordos
bilaterais e multilaterais pode ser utilizado pelos Estados hegemônicos como
instrumento de manutenção de uma ordem que favorece seus interesses. Por outro lado,
o estabelecimento de princípios e regras do direito internacional também pode ser
utilizado como estratégia de contestação da hidro-hegemonia por Estados subordinados
(DAOUDY, 2008; WOODHOUSE; ZEITOUN, 2008; WARNER; ZAWAHRI, 2012;
FARNUM; GUPTA, 2016).
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de tal modo que a compreensão do seu funcionamento não pode ser divorciada do
contexto mais amplo da economia política regional e global da água (CASCAO;
ZEITOUN, 2010; ZEITOUN; MIRUMACHI, 2010).
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ser alvo ou utilizados como instrumentos em conflitos militares e atentados terroristas
(GLEICK, 1993).
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Laos, Vietnã e Camboja. A disponibilidade de água doce no Tibete coloca-o entre os
maiores depósitos do mundo.
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de 60 milhões”. O rio Salween origina-se nas cordilheiras Nyechen Tanglha no centro
do Tibete e flui para a Birmânia e Tailândia através da China. O rio Indo flui do Tibete
para Ladakh, Caxemira e depois para o Paquistão antes de entrar no mar da Arábia a
partir de Karachi. Este rio é conhecido por sustentar uma das sete civilizações antigas
inovadoras do mundo, a Civilização do Vale do Indo (3300 a.C a 1300 a.C). O rio tem
um enorme significado cultural, econômico e histórico na Índia e no Paquistão.
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Pequim aumentou a construção de barragens hidrelétricas ao longo dos
principais rios da Ásia, todas as quais começam dentro das fronteiras chinesas. Dois
grandes rios fluem da província chinesa de Xinjiang para o Cazaquistão: o Ili, no sul,
alimenta o maior lago do país, Balkhash; o Irtysh atravessa o coração industrial do norte
do Cazaquistão antes de continuar na Sibéria. A China usa até metade da água em cada
um. Os dois lados compartilham alguns interesses em garantir que a água dos rios seja
usada economicamente.
A China, até a década de 1990, não foi um ator importante nas interações
hidropolíticas da bacia do Mekong no Tibet: os seus principais centros econômicos
estão situados no litoral do mar da China e o Sudeste Asiático foi, durante décadas, uma
região de forte influência das potências ocidentais. Porém, o crescimento econômico da
China, com o consequente aumento da demanda de água para a produção de alimentos e
de eletricidade, associado à melhoria nas condições técnicas para a transmissão de
energia a partir de locais distantes dos grandes centros industriais no litoral, tornaram o
rio Mekong uma alternativa viável para o atendimento das necessidades chinesas
(HIRSCH, 2011). Em território chinês, ao longo do rio Lancang, estão sendo
construídas 14 barragens, todas na província de Yunnan, uma região onde a maior parte
da população vive na área rural (MEGLIO et.al., 2013).
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China passou décadas construindo uma série de represas hidrelétricas no alto
Mekong na China. Até o momento, a China construiu onze grandes represas e tem
planos para mais doze. Esse controle dos níveis de água do Mekong equivale a uma
hidro-hegemonia, na qual a China pode usar a água para seu próprio desenvolvimento
econômico ou como uma poderosa ferramenta de alavancagem em seu envolvimento
diplomático com as nações da Bacia do Baixo Mekong.
O canal principal do rio Mekong não cruza o território da Tailândia, mas forma o
seu limite internacional com o Laos, na sua região mais pobre, o nordeste. Para atender
à crescente demanda por energia, a Tailândia só pode utilizar rios tributários ao Mekong
ou desenvolver projetos em conjunto com o Laos, como é o caso de uma das principais
hidrelétricas sendo construída no rio Mekong, a de Xayabouri, feita com capital
tailandês (HIRSCH, 2011).
Estas obras preocupam o Vietnã, que está situado a jusante da Tailândia na
bacia. O Vietnã possui duas áreas inseridas na Bacia do Mekong. A primeira está
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situada no centro do país, em uma área montanhosa, predominantemente rural e que
possui um grande potencial para o desenvolvimento hidrelétrico. A segunda é o delta do
Mekong, área com mais de 20 milhões de habitantes e que depende do ciclo de cheias e
de vazantes do rio para manter a sua produção de arroz e a renovação do seu estoque de
peixes de água doce que são, respectivamente, os principais gêneros alimentícios de
origem vegetal e animal. Por estes motivos, qualquer alteração significativa na dinâmica
hidrológica do rio Mekong é sensível, em função da variabilidade anual das chuvas. A
preocupação do Vietnã pode causar tensões diplomáticas na região, ainda mais com o
histórico de conflitos com a Tailândia e a China (ELHANCE, 1999; HIRSCH, 2011).
O gigantesco projeto hidrelétrico Mutou proposto para ser construído pela China
na Grande Curva do rio Yarlung-Zangbo deve gerar um gigantesco 60-70 GW de
energia - mais de três vezes o projeto hidrelétrico de Três Gargantas localizado no rio
Yangtze na China, que é conhecido como a maior instalação hidrelétrica do mundo. O
projeto faz parte da estratégia conhecida como “Abrindo o Oeste”, visando atender as
províncias de Qinghai, Gansu, Shaanxi, Sichuan, Yunnan, Guizhou e Chongqing, por
meio de um extenso programa econômico. reduzindo a economia de eletricidade no
leste em Guangdong, Xangai e Pequim. De acordo com o Plano de Desenvolvimento
Hidrelétrico da China para 2005-2020, 13 bases foram identificadas: Nordeste, Rio
Amarelo principal (norte), Rio Amarelo Acima, Rio Daduhe, Rio Yalongjiang , Yangtze
River Up atinge, Jinshajiang River, Nujiang (Salween) River, Wujiang River, West
Hunan, Fujian, Zhejiang e Jiangxi, e Lancangjiang (Mekong) Rio. Até 2020, a
capacidade instalada de energia hidrelétrica terá como objetivo atingir 300 GW, 275
GW dos quais serão provenientes dessas bases hidrelétricas. No entanto, de acordo com
o novo Décimo Segundo Plano Quinquenal, a China deu prioridade ao desenvolvimento
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das cinco bases seguintes : o rio Jinshajiang (59 GW), o rio Yalongjiang (25 GW) , Rio
Daduhe (24,5 GW) 13, Rio Lancangjiang (Mekong) (25,6 GW), Rio Nujiang (Salween)
(21,4 GW) e Rio Yarlung-Tsangpo (79 GW). Atualmente, menos de 0,6% dos recursos
hidrelétricos do Tibete foram associados em uma região que produz aproximadamente
200 GW de energia hidrelétrica natural anualmente, o que representa cerca de 30% do
total da China.
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O Nepal, apesar de ter um rio ribeirinho superior, não desfruta da influência
geopolítica. A assimetria de poder afeta diretamente a configuração hidropolítica indo-
nepalesa, ficando o Nepal à mercê da exploração de seus recursos hídricos com a
pressão indiana para construção de vários projetos de hidrelétricas. O Nepal fica com
destaque no Himalaia no sul da Ásia. Possui mais de 6.000 rios, 5.358 lagos e um
escoamento anual de mais de 200 bilhões de metros cúbicos. Lar das cordilheiras do
Himalaia, os rios do Himalaia alimentados por geleiras contribuem com 70% da água
do Ganges durante a estação seca (dezembro a maio). Segundo algumas estimativas,
tem capacidade para gerar 42.000 MW de hidroeletricidade. A geografia e a topografia
do Nepal, com suas encostas íngremes e o gradiente de seus rios, são vistas por alguns
funcionários do governo no Nepal e na Índia como ideais para projetos hidrelétricos. No
entanto, apesar de seus abundantes recursos hídricos, o setor hidrelétrico do Nepal é
amplamente subutilizado, tanto que importa eletricidade da Índia para atender às suas
necessidades domésticas.
45
Os recursos de água doce do Afeganistão fornecidos por suas cinco bacias
hidrográficas são consideráveis. O rio Cabul contribui com um quarto da água doce do
Afeganistão. O rio Cabul nasce no Hindu Kush, recebe fluxos substanciais do Kunar e
de vários rios menores originários da região de Chitral no Paquistão, flui para o leste
passando por Cabul e Jalalabad antes de entrar no Paquistão. No Paquistão, o rio Cabul
é aumentado pelo rio Swat e seus afluentes antes de desaguar no Indo em Attock. Cinco
milhões de residentes de Cabul e Jalalabad dependem dele para todas as suas
necessidades de água. No Paquistão, o rio Cabul e seus afluentes são indispensáveis
para atender às necessidades de água potável e saneamento dos mais de dois milhões de
residentes da cidade de Peshawar, irrigação no pequeno mas fértil vale de Peshawar e
nas sub-regiões de Tank, DIKhan, Banuri e Waziristão do Norte. O rio Cabul sustenta a
barragem hidrelétrica de 250 MW em Warsak, construída em 1960 e posteriormente
ampliada, produzindo quantidades adicionais de eletricidade (SHAMS; MUHAMMAD,
2023).
O Afeganistão sofre de uma grave escassez de eletricidade, com apenas 28% dos
lares afegãos estão conectados a sistemas de fornecimento de energia. Barragens
construídas durante 1950-1970 e reabilitadas recentemente produzem menos de 300
megawatts de eletricidade. O Afeganistão importa 80% de sua eletricidade de seus
vizinhos da Ásia Central . Cabul concluiu estudos de viabilidade de mais de 20 projetos
hidrelétricos de pequeno e médio porte, incluindo uma dúzia de barragens na Bacia de
Cabul, mas não conseguiu garantir os grandes fundos necessários para construí-los
(SHAMS; MUHAMMAD, 2023).
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Enquanto o Paquistão está em um estágio muito mais avançado no
desenvolvimento de seus recursos hídricos, o Afeganistão está nos estágios iniciais de
planejamento de novas instalações de armazenamento para irrigação e energia
hidrelétrica e reabilitação das instalações existentes. Além disso, a dependência
comercial do Paquistão torna o Afeganistão em posição menos vantajosa em termos de
assimetria de poder econômico. O Afeganistão está em guerra e conflito nas últimas
quatro décadas, enquanto o Paquistão tem estado relativamente estável política e
economicamente (SHAMS; MUHAMMAD, 2023).
Após a derrota do Talibã pelas forças de coalizão lideradas pelos EUA em 2001,
as organizações internacionais de financiamento se concentraram no desenvolvimento
de infraestrutura no Afeganistão, com destaque à construção de barragens.
O rio Amu Darya, localizado a oeste e noroeste, é formado pela confluência dos
rios Vakhsh e Panj, que se originam das geleiras das montanhas Pamir, Tienshan e
Hindu Kush, a leste. O rio Amu Darya tem 1.415 km de extensão, que, se medido a
partir de sua nascente original (o rio Panj nas montanhas Pamir), atinge o número de
2.450 km, dos quais cerca de 1.126 km corre ao longo das fronteiras do norte do
Afeganistão com o Tadjiquistão, Uzbequistão e Turquemenistão. O fluxo médio anual
47
de água (descarga) do rio Amu Darya é estimado em 73,6 quilômetros cúbicos com uma
capacidade de armazenamento de 24 bilhões de metros cúbicos.
O rio Helmand é o maior rio localizado na distância entre o rio Tigre e o rio
Indo, que se origina nas regiões próximas ao rio Cabul com uma altitude de 3.000
metros. Este rio começa nas áreas montanhosas de Hazarajat e segue para o sudoeste, e
depois para as terras férteis de Zamindawar. Ao redor do deserto de Registan, o rio
Arghandab, que é o maior sub-ramo deste rio, junta-se à corrente principal e
gradualmente segue em direção ao oeste nos desertos do sul do país. O rio segue para o
norte perto da fronteira com o Irã e, antes de desaguar em uma enorme lagoa chamada
Hamun Helmand, forma cerca de 65 km ou 80 km da fronteira afegã-iraniana. Todo o
rio Helmand tem cerca de 1130 km de comprimento. Este rio, junto com seus afluentes,
cobre toda a região sul do Afeganistão
O Irã via a presença dos EUA no Afeganistão como uma ameaça à segurança
nacional e à integração regional. Irã e o Turquemenistão construíram uma barragem no
rio Hari chamada Barragem da Amizade. O Afeganistão também anunciou que
pretendia construir pelo menos duas barragens no rio: Barragem de Salma e Jedvad. A
construção destas duas barragens poderia ter um impacto negativo na Barragem da
Amizade e na qualidade da sua água. Com a redução do fluxo na barragem, o
armazenamento de água e o fornecimento de água para agricultura na planície de
Sarakhs enfrentarão limitações. Enquanto isso, a grave escassez de água potável em
Mashhad, no Irã, que muitos esperavam ser resolvido com a exploração da barragem,
entra novamente em situação crítica, ameaçando a segurança política da região.
48
As ações do Afeganistão ocorrem quando o país não mostra interesse em
participar de reuniões com seus vizinhos, abrindo caminho para a deterioração das
relações. O Afeganistão, como país a montante desses rios aponta que tem o direito de
explorar as águas superficiais construindo barragens e canais. Se prevalecer ações
descoordenadas do Afeganistão, Irã e Turcomenistão, implementando planos
unilaterais, problemas complexos surgirão na região que não beneficiariam nenhum
desses países.
As geleiras das montanhas com picos nevados são uma importante fonte de
água. O Amu Darya passa principalmente no Tajiquistão (cerca de 80%), Afeganistão
(12%), Uzbequistão (6%) e Turquemenistão (3,5%). Contribui com cerca de 74,2 % do
fluxo do rio, seguido pelo Cazaquistão, 12 %, Uzbequistão, 11,1 %, e Tajiquistão, 1,1 %
(IBATULIN, 2013).
49
O conflito na bacia de Amu Darya começa com o Tajiquistão, que gera até 80
por cento do rio recursos hídricos, mas não é bem dotado de combustíveis fósseis,
queria construir a usina hidrelétrica mais alta do mundo no afluente Amu Darya - o rio
Vakhsh – para alcançar a segurança energética. Após a independência, o Tajiquistão
tentou atrair investimentos externos para construção completa, porém,
desentendimentos e forte oposição dos Estados ribeirinhos inferiores efetivamente
bloquearam o financiamento do projeto. O Tajiquistão argumentou que a construção
permitiria uma melhor regulação do fluxo do rio, o que beneficiaria igualmente as
necessidades de irrigação dos estados a jusante. Estudos sugeriram que a usina “não
desempenha um papel significativo em ajudar a melhorar o verão fluxos para uso na
irrigação a jusante” (BEKCHANOV, 2015, p. 869) e que a construção da barragem
resultaria em um aumento significativo na produção de energia hidrelétrica com
impactos adversos relativamente menores na irrigação a jusante se for implementado
através de uma “gestão cooperativa ótima em toda a bacia” (idem, p. 869). O
Uzbequistão está preocupado porque o Tajiquistão tem o maior consumo do rio Amu
Darya, e o Uzbequistão, onde 75% da população vive nas áreas rurais, está preocupado
com suas consequências.
50
A expansão das terras agrícolas, com o objetivo de garantir a segurança
alimentar da região e aumentar a geração hidrelétrica, levou os países ribeirinhos do rio
Amu Darya a buscar maior aproveitamento. Isso levou a muitas disputas entre países,
incluindo Tajiquistão - Uzbequistão e Quirguistão - Uzbequistão sobre a construção de
barragens. Por exemplo, a barragem Rogun, com uma capacidade potencial de geração
de 3.600 MW, bem como as usinas Sangtuda 1 e 2 e a usina Narek estão em construção
na região. O Tajiquistão pode usar a represa Rogun como uma alavanca contra o
Uzbequistão.
51
A Turquia, com grandes projetos de barragens nas cabeceiras dos rios Eufrates e
Tigre, se projeta como hidro-hegemonia, com controle físico sobre o fluxo de água para
a Síria e Iraque. Adotou uma estratégia unilateral (autointerpretativa) no padrão de
relações hidropolíticas com outros países da bacia, se firmando num forte nacionalismo
hídrico. A Turquia está totalmente engajada em sua “missão hidráulica”,
extensivamente e rapidamente “desenvolvendo” os recursos hídricos em todo o seu
território. As extensas tentativas de desenvolvimento hidráulico conduzidas pelo
governo turco criam contestações locais, nacionais, interestaduais e transnacionais entre
os diferentes grupos de interesse. Uma grande quantidade de literatura acadêmica
analisou a lógica por trás do desenvolvimento hidráulico em grande escala da
Turquia. A missão hidráulica da Turquia está ligada à seu nacionalismo histórico,
objetivando a segurança energética e alimentar bem como resolução de conflitos
domésticos e fronteiriços.
52
hidrelétricas. Embora o projeto ainda não esteja totalmente implementado, grande parte
dela já foi concluída, principalmente as partes relacionadas à energia hidrelétrica, ao
contrário daquelas que serão utilizadas para fins de irrigação. Uma das peças mais
importantes (concluídas) do projeto é a barragem de Ataturk e a usina hidrelétrica a ela
ligada, com capacidade para fornecer 2.400MW de eletricidade (para colocar em
perspectiva, a capacidade máxima para a República do Chipre é de aproximadamente
1.200 MW).
O comportamento da Turquia para controlar o fluxo dos rios está de acordo com
sua estratégia de longo prazo de se tornar uma superpotência hidrológica regional,
aumentando assim suas capacidades regionais de hard power. Como o estado a
montante com a capacidade de controlar o fluxo de água, a Turquia desfruta de uma
assimetria de poder em relação aos estados vizinhos, que poderia ser facilmente
utilizada como um poderoso instrumento político e, se necessário, como uma arma em
seu arsenal militar. Da mesma forma, também poderia ser usado para aumentar o poder
político e militar do governo em relação às ameaças domésticas e, mais
especificamente, à população curda. Localizados no sudeste – e dominados pelos curdos
– parte da Turquia, os projetos de infraestrutura do Tigre e do Eufrates podem
potencialmente levar a mais empregos regionais e oportunidades econômicas que devem
ser, teoricamente, muito benéfico para a região.
Por outro lado, a Síria manteve sua posição hidro-hegemônica na bacia do rio
Orontes sobre o Líbano e a Turquia e como a mudança do ambiente político regional e o
uso de vínculos de questões pelo Líbano impactaram o poder assimetria na região para
desalojar a Síria de sua hidro-hegemonia na região (CONKER; HUSSEIN, 2020).
Israel assume o controle do rio Jordão, que produz mais da metade das fontes de
água na Jordânia. Israel começou a transferir parte da água do rio para o deserto de
Negev e o restante para o mar da Galiléia, que se transformou em uma bacia de água
natural. Israel tem procurado obstruir os projetos árabes de exploração dos rios Jordão e
Yarmouk sob o pretexto de que esses projetos afetarão o fluxo do rio e, assim, o
privarão da maior parte desses recursos. Israel trata o Mar da Galileia como uma fonte
de água israelense, por isso foi capaz de excluir o Mar de quaisquer negociações
futuras. Um futuro hídrico sombrio e perigoso para a Jordânia e faz com que ela sofra
uma verdadeira crise hídrica que ameaça sua segurança hídrica, tornando sua segurança
alimentar e nacional ao sabor do vento. A causa hídrica entre Israel e árabes é o
principal fator na natureza política do conflito entre os países da bacia do rio
Jordão. Este conflito político dos países da bacia do rio Jordão envolve diferentes
direções e caminhos, mas a água está no centro dele e é o principal motor na gestão do
conflito na região da bacia.
54
O rio Nilo é o maior rio em extensão da África, nascendo no interior do
continente, em Ruanda e na Etiópia, desaguando no Mar Mediterrâneo. Sempre ouve-
se falar que o “Egito é a dádiva do Nilo” uma frase famosa do historiador
Heródoto. Porém, aproximadamente 85% de toda a água que chega ao rio Nilo no
Egito se origina na Etiópia dos rios Nilo Azul, Atbara e Sobat. Desses rios, o mais
importante é o Nilo Azul.
O Egito é um país extremamente dependente das águas do Nilo para a
manutenção da sua produção alimentícia e abastecimento de água. A taxa de
dependência do Egito de recursos hídricos provenientes de outros países é de 97%. A
hegemonia egípcia na bacia do Nilo foi construída com o apoio britânico, tanto no
período colonial como após a independência dos países da região. O suporte britânico
esteve baseado no apoio técnico e político às decisões do governo egípcio de como
aproveitar os recursos hídricos do rio para o seu desenvolvimento econômico. Na
década de 1870, o Egito invadiu a Etiópia através da Eritréia e travou uma guerra por
dois anos para obter o controle do Nilo. Mesmo após o fim oficial do protetorado
britânico no Egito, em 1922, engenheiros britânicos trabalhavam no serviço de
construção da rede de irrigação do país, que era articulada à administração colonial do
Sudão. Por este motivo, em 1929, foi firmado o primeiro acordo de desenvolvimento e
uso dos recursos hídricos da bacia, o Acordo de Águas do Nilo, cujos signatários eram
apenas o Egito e o Sudão. Este acordo foi refeito em 1959, ampliando ainda mais a
preferência do Egito e do Sudão ao uso das águas do Nilo, frente às necessidades dos
outros países da bacia. Neste acordo, do fluxo anual de 84 bilhões de m³ do rio Nilo, o
Egito teria direito a 55,5 bilhões de m³ e o Sudão a 18,5 bilhões de m³ (HULTIN, 1995;
BLANC, 2013).
Por estas razões, ao longo do século XX, todas as grandes obras de infraestrutura
foram formuladas e executadas com o aval político do Egito. Alguns exemplos foram a
barragem de Aswan, o maior reservatório regulador das enchentes do rio Nilo,
localizado na fronteira entre o Egito e o Sudão; e o canal Jonglei, projeto que seria
executado no Nilo Branco, no Sudão, para drenar os alagados do Sudd e, assim,
diminuir a evaporação da água superficial do rio e aumentar o fluxo de água, o que
benefecia o Egito. Outro fator que fortaleceu o poder egípcio foi a instabilidade política
e econômica de todos os outros países que compartilham a bacia do Nilo, inclusive o
Sudão. A complexa história de conflitos e guerras civis que marcam a formação dos
55
Estados nacionais africanos nos últimos anos impossibilitou o desenvolvimento de
projetos alternativos de uso e aproveitamento dos recursos da bacia do Nilo (HULTIN,
1995; ELHANCE, 1999). O aproveitamento dos recursos do rio Nilo pelo Egito, apesar
de diversos efeitos ambientais negativos, permitiu que a produção agrícola fosse
ampliada, pois toda ela depende da irrigação. Da mesma forma, houve o aumento da
produção de energia elétrica, já que a hidrelétrica de Aswan produz 20% da energia
elétrica consumida no país.
59
Este processo de maior compartilhamento dos recursos do Nilo mostra quanto
problemático é qualquer controle unilateral e hegemônico dos recursos hídricos
transfronteiriços sem condições de exercer uma hegemonia positiva.
61
A segunda fase – controle hídrico – é quando um ator a montante decide
implementar projetos hídricos estratégicos dentro de uma bacia hidrográfica
compartilhada (por exemplo, construir uma barragem em um curso d'água), o ator a
montante geralmente justifica isso como parte do plano de desenvolvimento nacional,
sendo o desenvolvimento o principal impulsionador. Sob essa justificativa, os recursos
hídricos são controlados, levando a uma relação de hidrocontrole. O conflito é latente
neste estágio e os atores não sabem que o conflito pode existir. Independentemente das
intenções reais do ator a montante, é provável que o ator a jusante acredite que a
construção de barragens tem uma intenção negativa de controlar o fluxo natural de
água. Eventualmente, isso levará a uma crescente desconfiança, o que pode criar mais
complicações e um crescente sentimento de insegurança nacional e regional e aumentar
a probabilidade de anarquia nas relações hídricas. Seu caso é visto na barragem de Iliso,
construída pela Turquia na Bacia do Tigre e aberta para operação em 2018. Esta é uma
das preocupações mais críticas para o Iraque como um país a jusante. Embora a
barragem de Iliso produza aproximadamente 3.800 GWh/ano de energia hidrelétrica
limpa, espera-se que a barragem reduza o abastecimento de água do rio Tigre ao Iraque
em até 25%. Além disso, a construção da represa Rogun no Tajiquistão no rio Amu
Darya que estava paralisada desde 1976 por causa do colapso da União Soviética. Em
1998, uma parceria estratégica foi assinada pelo Governo do Tajiquistão com os
Governos do Cazaquistão, Uzbequistão e Quirguistão. O plano de construção foi
lançado novamente em 2016 na esperança de que a barragem ajudasse a aliviar a
escassez de energia do país, gerando 3.600 MW por ano. No entanto, a jusante, o
Uzbequistão teme que esta barragem reduza a água disponível para irrigação, o que tem
gerado desconfiança e medo nas relações entre os dois países. Isso foi amenizado
quando o presidente uzbeque anunciou que o projeto melhoraria as relações bilaterais,
destacando o grande poder das declarações políticas nesse contexto. Outro exemplo de
controle de água é a bacia do Nilo, onde o Egito acusa a Etiópia de refém do rio Nilo
através da Grande Represa Renascentista da Etiópia, que se torna uma fonte de tensão
entre os países ribeirinhos da bacia do Nilo.
A terceira fase – disputa pela água – acontece quando o controle da água por
meio de barragens maciças leva à escassez de recursos hídricos. Em particular, pode
perturbar gravemente os planos de irrigação dos atores a jusante, prejudicando o setor
agrícola. Assim, para os atores a jusante, essas barragens são percebidas como ameaças
62
à segurança alimentar nacional. Esse tipo de disputa entre os atores é comum nessa fase,
com a tensão aumentando devido ao desgaste emocional decorrente da desconfiança.
Como exemplo, a disputa de água na Bacia do Indo entre a Índia e o Paquistão que
remonta a 1948, quando a Índia controlava os fluxos no oeste de Punjab. Isso aumentou
a tensão entre os dois países e levou seis anos de negociação para assinar o Tratado das
Águas do Indo em setembro de 1960. Além disso, Índia e Bangladesh, que
compartilham 54 rios. A barragem de Farakka, estabelecida em 1975 no rio Ganges,
causou mudanças hidrológicas consideráveis na bacia a jusante e está sujeita a disputas
de água, que continuaram por 30 anos, até que o Tratado da Água do Ganges foi
assinado em 1996 após uma série de negociações. O Iraque e a Turquia têm uma longa
história de disputas de água sobre as bacias do Eufrates-Tigre; as disputas pela água
datam da década de 1920, após o colapso do Império Otomano. Iraque, Síria e Turquia
emergiram como estados independentes compartilhando rios, o que criou um ambiente
para conflitos potenciais. De volta à bacia do Nilo, os esforços diplomáticos falham em
resolver a disputa entre o Egito e a Etiópia sobre o compartilhamento das águas do Nilo.
A quarta fase – conflito pela água – é quando a possibilidade de conflito sempre
existe quando os atores têm requisitos, interesses ou perspectivas diferentes. Se as
negociações levarem a um beco sem saída, o próximo nível da relação entre os atores
será o conflito, e ambos os atores estarão cientes de que esse conflito existe. Ao
contrário da Fase 3, este conflito é um desacordo de longo prazo que não é
negociável. As consequências hidrogeológicas nesta fase são mais críticas, com os
atores a jusante susceptíveis de sofrer desertificação, degradação ecológica e problemas
de saúde. Depois de décadas de crescente tensão, Egito, Sudão e Etiópia chegaram a um
beco sem saída em suas negociações sobre a Grande Represa Renascentista Etíope na
Bacia do Nilo. Essa tensão mudou para um desacordo de longo prazo entre o Egito e a
Etiópia, e o conflito emergiu em momentos diferentes, incluindo declarações políticas
agressivas e potencial ação militar. No entanto, uma das razões pelas quais a Bacia do
Nilo não evoluiu para uma guerra de água foi o equilíbrio de poder, com a Etiópia (o
país a montante) sendo mais poderosa geograficamente e o Egito com maior capacidade
militar. Outro exemplo de conflito hídrico é entre o Irã e o Afeganistão (o país a
montante) sobre a bacia do rio Helmand e a bacia do rio Harirud-Murghab. Embora um
tratado de água sobre o rio Helmand afegão-iraniano tenha sido criado em 1973, o ato
unilateral de construção da represa Kamal Khan está estimulando o conflito de água
63
entre os dois países ribeirinhos. O controle da água pelo Afeganistão levou a
considerável seca e desertificação. Como resultado, nas últimas duas décadas,
aproximadamente 25 a 30% da população deixou a região do Sistan para se mudar para
as cidades devido à escassez de água Na África, o esgotamento do Lago Chade na
década de 1960, que era um ícone essencial do patrimônio agrícola, é outra face do
conflito hídrico entre quatro países vizinhos, ou seja, Chade, Nigéria, Níger e Camarões,
onde foram construídas hidrelétricas. As barragens de Tiga e Challawa Gorge
construídas pela Nigéria levaram a um conflito de água com o país a jusante do Níger.
A conclusão do Projeto do Sudeste da Anatólia (GAP) nas bacias do Eufrates-Tigre fará
com que a Turquia retire cerca de 70% da água do Eufrates, o que provavelmente
prejudicará as relações entre o Iraque, a Turquia e a Síria e colocará a região em perigo
de interdependência. escalada de conflitos entre estados.
Na quinta fase – extorsão de água - assume-se que a fase do conflito é motivada
pelo stress e pela ansiedade, especialmente se a relação da água com o interveniente a
montante for percebida como extorsão (isto é, usar a água como ferramenta para
negociar outras questões políticas ou económicas). Juntamente com a falta de
comunicação, a crença de que ocorre extorsão pode criar o pior cenário para as relações
hídricas entre os atores. Em 1992, em relação à bacia do Eufrates-Tigre, o ex-primeiro-
ministro turco anunciou: “Não dizemos que compartilhamos seus recursos petrolíferos e
eles não podem dizer que compartilham nossos recursos hídricos. Este é um direito de
soberania. Temos o direito de fazer o que quisermos”. Essa afirmação pode ser
interpretada como uma tentativa de abastecer uma região seca, mas também pode ser
percebida como uma forma de extorsão com o objetivo de trocar água por petróleo,
levando a objeções dos países a jusante do Iraque e da Síria. A bacia do rio Mahakali é
outro exemplo de extorsão de água, onde a Índia apreendeu os recursos hídricos do rio
Mahakali por meio de barragens, como a captação de água para geração de energia
hidrelétrica pela barragem Sarada, e negou o tratado de Mahakali assinado em 1996
entre a Índia e Nepal. Os países a jusante Nepal, Paquistão e Bangladesh acusaram
politicamente a Índia de usar os recursos hídricos do rio Mahakali como uma ferramenta
de chantagem.
A sexta fase – hegemonia da água – acontece quando a pressão interna das
repercussões sociais das disputas transfronteiriças pela água leva ao crescimento de
deslocados pode aumentar local ou regionalmente, com as grandes cidades ficando
64
lotadas e sua infraestrutura sobrecarregada. Isso representara um fardo crítico para a
economia nacional, levando a uma crise econômica se nenhum acordo estratégico for
alcançado entre os dois estados, onde indivíduos deslocados podem se tornar imigrantes
se a questão for negligenciada. O equilíbrio de poder entre os dois atores tende a ser
assimétrico, e o ator a montante ganha poder por meio do controle da água após obter
tempo suficiente para finalizar seus projetos hídricos. China e Mianmar usaram suas
posições geográficas estratégicas na bacia do rio Mekong para estabelecer a hegemonia
da água, controlando o fluxo de água através de dezenas de barragens, levando a
conflitos com os países a jusante Camboja, Laos, Tailândia e Vietnã. Em 1995, tanto a
China quanto Myanmar se recusaram a cooperar com a Comissão do Rio Mekong
depois que os países a jusante propuseram que a sustentabilidade fosse buscada e que a
exploração dos recursos hídricos fosse evitada. O hidrocolonialismo nos Estados Unidos
e no Canadá, que terminou com o Tratado de Águas Fronteiriças de 1909, envolvendo a
população indígena, é outro exemplo de relação hegemônica desenvolvida por meio do
controle dos recursos hídricos por meio de hidrelétricas. Nesse contexto, um ganho de
poder por hegemonia aparece quando o poder regional pode impor unilateralmente um
esquema de compartilhamento de água a outros. Em contraste, alguns estudos indicaram
que a hidro-hegemonia poderia ser relativamente diminuída se o estado ribeirinho
menos poderoso adotasse uma estratégia de resistência para combater a hidro-
hegemonia, ou seja, o rio Yarmouk (Síria-Jordânia) e o rio Nilo (Egito-
Etiópia). Diferentes níveis de hegemonia foram explorados, onde as ambições
hidráulicas turcas e a estratégia de poder nas bacias do Eufrates-Tigre são consideradas
como hegemonia doméstica e internacional aplicada ao setor de água
A fase sete – guerras da água – acontece com o crescente poder do ator a
montante sendo confrontado pela escalada do ator a jusante devido à pressão pública,
particularmente das partes interessadas na água. Esse ambiente competitivo reflete uma
abordagem de soma zero, que levaria a uma guerra inevitável. Isso não precisa
necessariamente ser uma guerra militar armada; em vez disso, pode ser uma guerra por
procuração ou guerra econômica. O Acordo de Argel entre Iraque e Irã foi estabelecido
para resolver o conflito em torno do rio Shatt Al-Arab, que tem importância estratégica
para transporte e exportação. O tratado bilateral assinado em dezembro de 1975 visava
um acordo político, com o Iraque querendo acabar com a rebelião curda apoiada pelo
Irã. No entanto, alguns anos depois, o rio Shatt al-Arab tornou-se um dos principais
65
motivos da guerra entre o Iraque e o Irã. A escalada começou com reivindicações de
soberania sobre o rio e finalmente levou à mais longa guerra convencional do século 20,
de 1980 a 1988. Depois de 2003, o Iraque foi atolado pela instabilidade política,
fazendo com que o equilíbrio de poder mudasse para o Irã. Na última década, o Irã
causou escassez de água no Iraque não apenas por desviar rios que abastecem o rio
Shatt Al-Arab sem consulta, mas também por construir um complexo de barragens
atualmente em operação, onde um plano estratégico foi definido para construir 109
barragens no oeste do Irã ao longo da fronteira com o Iraque dentro de dois anos. Essas
barragens são projetadas para uso em projetos de irrigação. A maioria dessas represas
são de pequena escala, mas podem interromper o fluxo natural do rio no Iraque; assim,
eles funcionam coletivamente como uma grande barragem. Consequentemente, há
preocupações de que outro conflito possa surgir. Além disso, o Projeto Turco do
Sudeste da Anatólia, que visava construir barragens maciças nas bacias do Eufrates-
Tigre, levou a potenciais guerras de água entre o Iraque e a Síria em 1975. Desde a
década de 1970, a Síria também usou a estratégia de vinculação de questões, apoiando
os rebeldes curdos (o Partido dos Trabalhadores do Curdistão) para exercer pressão
política sobre a Turquia para obter as cotas de água solicitadas. No entanto, a Bacia de
Orontes também testemunhou como a Síria usou uma estratégia de interação bilateral
para excluir os países ribeirinhos Turquia e Líbano. A Síria e a Turquia construíram a
barragem de Afrin e a barragem de Reyhanlı, respectivamente, enquanto a barragem de
amizade proposta entre a Turquia e a Síria foi suspensa devido ao levante sírio em 2011.
A oitava fase – negociação de água – leva em conta que embora a água possa
causar disputas, muitas vezes promove a cooperação em vez do conflito, mesmo entre
inimigos ferrenhos. Durante o período pós-conflito, as questões de água podem ser
resolvidas por mediação apropriada. Os atores são encorajados a explorar suas
semelhanças, compartilhar as lições aprendidas e garantir consistência em qualquer
compromisso futuro. Esta fase envolve a construção de confiança, onde o ator upstream
acredita em uma abordagem colaborativa (ou seja, um jogo de soma diferente de
zero). O ator a jusante aceitará projetos de água na bacia hidrográfica compartilhada sob
certas garantias e condições para garantir recursos hídricos suficientes. O conflito neste
estágio está em seu rescaldo, com os atores revisando o resultado e buscando uma
solução. O Acordo de Adana em 1998 representou um ponto de virada nas relações
Síria-Turquia e encerrou o conflito antes que ele se transformasse em guerra. Este
66
acordo estratégico foi alcançado após uma década de cooperação em diferentes níveis e
a duplicação do abastecimento de água para a Síria, devido às relações internacionais
resilientes adotadas por ambos os países naquele momento. Em 2021, após décadas de
disputa pela barragem de Illiso na bacia do Tigre, as autoridades do Iraque e da Turquia
anunciaram a assinatura de um protocolo de água para o rio Tigre e o estabelecimento
de um centro de pesquisa conjunto para a água; embora o protocolo mencione
brevemente que a Turquia concorda em liberar “parte justa da água do Tigre”, ele não
aborda um acordo sólido sobre a quantidade esperada de alocações de água. No entanto,
o protocolo ainda é considerado um progresso positivo entre os dois países em termos
de cooperação hídrica.
Pode ser introduzido um acordo estratégico que atue como trampolim para o
retorno à Fase 1 (harmonia e equilíbrio). No entanto, esta transformação da Fase 8 para
a Fase 1 depende da capacidade de liderança dos atores ribeirinhos, do tipo de doutrina
de relações internacionais adotada e do padrão do sistema de segurança internacional,
sendo o comportamento de um Estado também impulsionado por ameaças
transnacionais e globais. A governança global é caracterizada por problemas não
tradicionais que não devem terminar na fronteira política de um país, como mudança
climática, terrorismo, armas de destruição em massa e pandemias. Esses desafios
exigem esforços globais, colaboração regional e um conjunto específico de políticas. O
conflito pela água é um desafio global (AL-MUGDADI, 2022).
Várias hegemonias regionais impuseram relações hidro-hegemônicas negativas
em bacias hidrográficas transfronteiriças (como o Jordão, Tigre, Eufrates e Nilo), apesar
de estarem geograficamente em desvantagem devido à sua posição a jusante. Estados
como Israel e Egito sem dúvida compensam essa posição desvantajosa, valendo-se de
seus outros recursos de poder para manter o domínio (ZEITOUN; WARNER,
2006). Por exemplo, Israel usa 90% dos recursos hídricos compartilhados, embora os
direitos à água da Organização de Libertação da Palestina (atual Palestina) sejam
claramente reconhecidos por Israel no acordo de 1995 que moldou os acordos de Oslo
II. Estratégias de captura e contenção de recursos, pressão de coerção e exibição de
força militar e econômica ajudaram Israel a estabelecer uma forma de hidro-hegemonia
negativa (SELBY, 2005).
68
efetivamente na formulação das políticas de gestão e desenvolvimento da bacia
hidrográfica, como é citado o caso do rio Orange, onde a África do Sul exerce a
hegemonia (ZEITOUN e WARNER, 2006). Todos estes casos servem para demonstrar
como um Estado hegemônico regionalmente pode definir as formas de interação política
dos recursos hídricos em uma bacia hidrográfica, assim como definir o volume de
recursos disponíveis aos Estados mais fracos.
69
beneficiar do uso coletivo dos recursos hídricos compartilhados. Os benefícios indiretos
além do rio incluem uma série de benefícios que muitas vezes superam os ganhos
ambientais e econômicos, incluindo, por exemplo, comércio e desenvolvimento
regional.
70
muitas das principais bacias hidrográficas do mundo cruzem fronteiras geopolíticas,
conflitos e disputas sobre seus recursos hídricos não ocorrem apenas entre atores
estatais. Embora as análises de poder originalmente no quadro da hidro-hegemonia
sejam focadas em estados, questões de poder e privilégio, também é preciso
compreender ocorre o acesso das comunidades aos recursos da bacia hidrográfica além
e dentro dos estados.
Foi apenas no final da década de 1990 que a Etiópia passou de sua “disputa
velada” pela posição privilegiada do Egito na bacia do Nilo para uma “disputa aberta”
por meio do desenvolvimento de políticas hídricas nacionais abrangentes (ARSANO,
2007). Esses planos não apenas forneceram alavancagem para as reivindicações antigas
da Etiópia sobre a água do Nilo, mas também moldaram uma narrativa que contraria o
foco do Egito em seus direitos adquiridos e na securitização das questões do Nilo. As
barragens aparecem claramente no discurso político da Etiópia em duas vertentes.
73
2.8. HIDRO-HEGEMONIA OCEÂNICA
O Oceano Atlântico Norte e Sul sob hegemonia dos Estados Unidos e Inglaterra,
com outros atores disputando espaço, como Brasil, França, Venezuela, Argentina. O
Oceano Índico sob uma disputa hegemônica entre Estados Unidos, Inglaterra, Índia,
China, Indonésia, Cingapura, Austrália, Paquistão, entre outros, com três grandes
estreitos – Bab el Mandeb, Hormuz e Malaca – cuja importância remete às grandes
navegações e ao Império Britânico. No Oceano Pacífico – maior da Terra -, China e
Estados Unidos e seus aliados travam uma disputa hegemônica. No Oceano Ártico,
compostos principalmente de oceano congelado, relações mais ou menos cooperadas
entre Canadá, Reino da Dinamarca, EUA, Finlândia, Islândia, Noruega, Rússia, Suécia,
74
China, entre outros. Em torno do Oceano Antártico, um continente rochoso coberto de
gelo, uma área rica em matérias-primas e maior reserva de água doce do mundo.
Diferentes países reivindicam áreas, como Argentina, Austrália, Nova Zelândia, França,
Noruega, Reino Unido, Alemanha, Brasil, China, Estados Unidos, Índia, Rússia. Muitos
tem bases permanentes.
75
produtos de diferentes partes do mundo. No entanto, as cadeias se concentram e o poder
consolidado das corporativas no valor agroalimentar global e a economia política global
tornam esse cenário de tomada de decisão confusa e indiscutivelmente assimétrica.
76
sobretudo, a sua sustentabilidade ambiental a médio e longo prazo. Hoekstra e Hung
(2002) mapearam o fluxo mundial de água virtual dividindo o globo em países
exportadores e importadores, que se relacionam formando uma balança comercial.
Alguns países e regiões assumem a função central nessa balança e se destacam por sua
posição de exportadores. O Brasil é o país que mais detêm recursos renováveis de água
doce. Cerca de 13% de toda água doce do mundo pertence ao Brasil. Os 5 países que
mais detêm esse recurso são: Brasil, Rússia, Canadá, EUA e China. Somados esses 5
países possuem cerca de 40% de toda água doce do mundo. Também são exportadores
países na América Latina e do Sudoeste Asiático. Os fluxos entre importadores e
exportadores ocorrem com o Brasil tendo como seu maior mercado na Europa e a Ásia;
a América do Norte tem como maiores mercados a Europa, a Ásia, a África e também
uma parcela na América Central. Ainda como exportadores, mas com fluxos um pouco
menores, estão a América Latina, com seu mercado na região central e sul da Ásia, e o
sudoeste asiático, também como exportador para regiões da própria Ásia (especialmente
a área central e sul). Como importadores, destacam-se os continentes europeu e
africano, Oriente Médio e grande parte do continente asiático.
São dois os motivos que fazem com que os países recorram ao comércio
internacional para adquirirem produtos que demandam muita água em seu processo
produtivo: a) possuem poucos mananciais em seus territórios; b) possuem boa
quantidade de mananciais, porém, consomem muitos produtos de elevada pegada
hídrica (geralmente, esse é o caso dos Estados que têm densidade populacional e renda
per capita altas, sendo que alguns, inclusive, coincidem nas estatísticas como grandes
exportadores e importadores de água virtual (HOEKSTRA et al, 2011, p. 18-21). O
fluxo de água virtual (fonte externa de obtenção de água) torna-se mais relevante quanto
maior for a quantidade utilizada dela na cadeia produtiva pelo país exportador, o que
representa para este, consequentemente, uma impactante diminuição de suas reservas
hídricas em prol do importador (NEUBERT, 2008, p. 13). Dependendo do cenário, os
fluxos de água virtual são vantajosos. Por exemplo, um país abundante em água (e que
possui um consumo relativamente baixo) pode ser um exportador de água, por possuir
um excedente transferível, para aqueles que não possuem disponibilidade hídrica
suficiente. Entretanto, este deve ter cuidado para não esgotar suas reservas e, também,
para não privilegiar demasiadamente o "comércio" internacional da água, privando o
acesso de seus próprios habitantes e de seu meio ambiente natural a ela em prol do lucro
77
– afinal, a água não possui apenas um viés econômico, mas também (e principalmente
social e ambiental, sendo um direito humano e, até mesmo, da natureza) (CORTE,
2016). Por outro lado, deve-se considerar que, em alguns casos, se não realizadas as
transferências de água virtual através de produtos, como comida, muitas pessoas
também terão vários direitos humano-fundamentais negados – como o acesso à
alimentação, à vida digna, à saúde, à água (ainda que de forma indireta), entre outros.
Da mesma forma, não há mecanismos internacionais que regulamentem essa situação.
Os países importadores, no mesmo sentido, devem atentar para não ficarem dependentes
da água virtual de outros países, pois não há mecanismos que lhes assegurem o acesso
indireto à água (CORTE, 2016).
78
importadores de água virtual: Estados Unidos, Alemanha, Japão, Itália, França,
Holanda, Reino Unido e China.
79
2.10. REFERÊNCIAS
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