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TEORIA DO DIREITO Amanda Carolina Buttendorff Beckers / Karoline Strapasson Jambersi

Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6375-8
Código Logístico
Teoria do Direito

Amanda Carolina Buttendorff Beckers


Karoline Strapasson Jambersi

IESDE BRASIL S/A


2018
© 2018 – IESDE BRASIL S/A.
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
J27t Jambersi, Karoline Strapasson
Teoria do direito / Karoline Strapasson Jambersi, Amanda Caroli-
na Buttendorff Beckers. - 1. ed. - Curitiba [PR]: IESDE Brasil, 2018.
110 p. : il. ; 21 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6375-8

1. Direito - Filosofia. I. Beckers, Amanda Carolina Buttendorff.


II. Título.

18-48868
CDU: 340.12

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Amanda Carolina Buttendorff Beckers
É advogada e professora de ensino superior. Doutoranda em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR), mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas
e graduada em Direito, também pela PUCPR. Atua como pesquisadora do Núcleo de Estudos
Avançados de Direito Internacional e Desenvolvimento Sustentável e é membro da Academia
Nacional de Estudos Transnacionais.

Karoline Strapasson Jambersi


É advogada, conciliadora em Juizado e professora de ensino superior. Doutoranda em
Políticas Públicas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Direito Econômico e
Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e graduada em Direito
pela mesma instituição. Atua como pesquisadora do Observatório dos Conselhos e do Núcleo de
Estudos em Instituições.
Sumário

Apresentação 7

1 O Direito ao longo da história 9


1.1 Período Clássico 9
1.2 Período Medieval 13
1.3 Período Moderno e o Direito contemporâneo 15

2 O Direito e sua relação com a Filosofia 21


2.1 O Direito e a Filosofia: epistemologia jurídica 21
2.2 O Direito e a moral 24
2.3 O Direito e a justiça 27

3 O Direito natural e o Direito positivo 33


3.1 Jusnaturalismo 33
3.2 Juspositivismo 36
3.3 A superação do positivismo jurídico 40

4 As relações jurídicas 45
4.1 Sobre o Direito 45
4.2 Sujeitos de direito 46
4.3 A relação jurídica 48
4.4 Direitos e deveres 51
4.5 Ilicitude e sanção 53

5 As fontes do Direito 57
5.1 A lei 57
5.2 A jurisprudência 59
5.3 A doutrina 61
5.4 Outras fontes 63
6 Teoria da norma jurídica 69
6.1 Classificação e conceito da norma jurídica 69
6.2 As espécies de normas jurídicas 72
6.3 As definições da Constituição de 1988 sobre as espécies legislativas 74

7 Teoria geral do ordenamento jurídico 81


7.1 O ordenamento jurídico e suas características 81
7.2 A integração das lacunas jurídicas 85
7.3 As antinomias jurídicas 88

8 O Direito e a linguagem 93
8.1 A linguagem na interpretação e na aplicação do Direito 93
8.2 Os métodos tradicionais de interpretação 97
8.3 As dificuldades inerentes à interpretação jurídica 100

Gabarito 105
Apresentação

O universo jurídico permeia a vida em sua totalidade. Desde o nascimento até a morte, as
relações jurídicas acompanham as pessoas. Por esse motivo, o estudo do Direito é envolto em dife-
rentes níveis de complexidade.

Aqueles que se dedicam a estudar o Direito e seus desdobramentos práticos têm vários de-
safios a cumprir: vencer a linguagem técnica e elitizada e perceber as diferentes relações do Direito
com a História, a Filosofia, a Sociologia, entre outras disciplinas. Compreender o Direito também
significa entender sua estrutura e as possibilidades de interpretação dessa área tão ampla.

O objetivo desta obra é apresentar temas relevantes para o estudo da teoria do Direito em
uma perspectiva didática e acessível. Nesse sentido, cada um dos oito capítulos foi ordenado para
esclarecer as diferentes nuances desse tema.

No primeiro capítulo, estudamos como o Direito perpassa vários períodos históricos, com-
preendendo sua construção gradual, bem como os marcos históricos que trouxeram grandes trans-
formações e o tornaram uma ciência efervescente e mutável.

Na sequência, no segundo capítulo, compreendemos as importantes contribuições dos sabe-


res filosóficos acerca do Direito, da moral e da justiça.

No terceiro capítulo, tratamos do jusnaturalismo e do juspositivismo, seus antagonismos e


desdobramentos na compreensão do que é o Direito.

No capítulo quarto nos aprofundamos no tema da relação jurídica – sujeito, vínculo e


objeto –, bem como nos direitos e deveres, e trabalhamos a noção de ilicitude e sanção.

O quinto capítulo é dedicado ao tema das fontes do Direito, isto é, como o Direito surge: a
lei, a jurisprudência, a doutrina, o costume e os princípios gerais do Direito.

O sexto capítulo versa sobre a teoria da norma jurídica, sua classificação, conceito, espécies,
e a distinção entre regras e princípios à luz da teoria de Robert Alexy.

No sétimo capítulo, discutimos a teoria do ordenamento jurídico, descrevendo as suas ca-


racterísticas e o modo de resolução de conflitos normativos: as antinomias e as lacunas jurídicas.

E, por fim, no oitavo capítulo, abordamos o tema da linguagem jurídica e sua interpretação,
que revela o sentido da norma jurídica, mas que também deve se ater à finalidade e à adequação desta.

Desejamos que esta obra sirva de incentivo para o estudo jurídico e que você possa com-
preender a força e a função transformadora do Direito na sociedade. Nosso intuito é colaborar com
seus primeiros passos no universo jurídico e, principalmente, estender o convite para o aprofun-
damento dos estudos acerca da teoria do Direito, haja vista a importância desta pesquisa para um
desenvolvimento profissional apurado.
1
O Direito ao longo da história

Neste primeiro capítulo, estudaremos o Direito ao longo da história, perpassando os perío-


dos Clássico, Medieval, Moderno e Contemporâneo, procurando abordar as informações mais re-
levantes de cada um destes para a compreensão da construção do Direito ao longo do tempo. Essa
abordagem é essencial porque o Direito é edificado de modo gradual na história humana. Dessa
forma, saber de que maneira se deu a evolução da ciência jurídica é essencial para compreender-
mos o Direito na contemporaneidade e de suma importância para fundamentar o estudo da teoria
do Direito e suas especificidades.

1.1 Período Clássico


Conforme as mudanças sociais vão ocorrendo, o mesmo acontece com o Direito; logo, a evo-
lução da ordem jurídica é, também, a evolução das sociedades humanas. Pouco se sabe sobre a for-
mação do Direito antes dos pensadores gregos. Para o ser humano primitivo, não havia distinções
entre a sociedade e a natureza, pois esta era parte intrínseca de sua sociedade. Compreender a na-
tureza como um objeto e como elementos é algo próprio do homem, que desenvolveu a tecnologia.
A base da organização jurídica nessas sociedades primitivas era o vínculo sanguíneo, de
modo que as pessoas de uma mesma descendência seguiam regras iguais, sendo a obediência
a essas regras o reconhecimento de pertencimento ao clã. O chefe do clã reunia em si as regras
religiosas, morais e jurídicas. As penalidades eram coletivas quando ocorria o conflito entre os clãs.
Para o homem primitivo, a norma que guiava as relações era a de retribuição, também conhecida
como a lei de talião: “olho por olho, dente por dente”.
A vingança era o princípio que determinava a conduta entre os homens primitivos,
sendo aplicado também a animais e objetos. Caso uma árvore causasse mal a uma pes-
soa, os parentes estariam obrigados a vingar-se dela. Algumas regras básicas de convivên-
cia regulavam o funcionamento desses grupos primitivos, como a proibição do incesto e do
derramamento de sangue familiar e a vingança de sangue na relação com outras famílias.
A morte de uma pessoa da família deveria ser vingada pelos seus parentes.
O Direito recebeu grandes contribuições do Período Clássico grego e romano. Dos gregos,
vieram contribuições importantes como o desprendimento do pensamento mítico e a formação
da Filosofia, sendo a Grécia Clássica o ponto de partida da formação da cultura ocidental, quan-
do o Direito começa a ser pensado de modo racional.
Um grande destaque desse período é a implementação da democracia ateniense – do grego
demo = povo e kratos = governo –, em que uma maioria da população dotada de direitos políticos
participava ativamente da pólis1. Há de se ponderar, contudo, que, embora pregasse a igualdade

1 Pólis eram as cidades-Estados gregas, que apresentavam organização bem distinta de outras cidades da época,
sendo autônomas política e economicamente.
10 Teoria do Direito

perante as leis, o regime democrático ateniense se restringia aos detentores de direitos políticos –
os cidadãos atenienses, ou seja, homens livres, filhos de pai e mãe ateniense, estando excluídos das
questões da pólis os estrangeiros, os escravos e as mulheres.
O primeiro legislador da Grécia Antiga foi Zaleuco de Locros, cujos registros datam de 650
a.C., a quem coube compilar as tradições e os costumes gregos, principalmente no que tange a fixar
penalidades para cada tipo de crime existente à época.
Destacam-se também Carondas – legislador da localidade de Catânia – e Licurgo – de
Esparta –, ambos com registros de 630 a.C. Em Atenas, a primeira codificação tida como lei bas-
tante severa se relacionava à proteção à vida e foi idealizada por Drácon, sagrando seu nome como
importante legislador grego ao distinguir tipos de homicídios, diferenciando homicídio voluntário
de involuntário, questão que hoje entendemos como dolo, culpa e legítima defesa.
A lei grega foi reformada por Sólon, que operou também uma reforma institucional,
social e econômica, reorganizando a economia, obrigando a transmissão do ofício aos filhos,
abolindo a escravidão por dívida, entre outras mudanças. A lei de Sólon, considerada menos
impositiva que as anteriores, preconizava um aumento do controle da vida dos habitantes em
prol da cidade e a premissa do serviço político como um dever, não um direito do grego.
O Direito grego se resume à compilação de leis e à administração da justiça na resolução dos
conflitos, analogamente ao que se poderia elencar como Direito Processual. Não há registro histó-
rico de farta doutrina jurídica escrita. Ao contrário do ramo filosófico, em que obras de Aristóteles,
Sócrates e outros que tiveram seus escritos amplamente copiados pelas gerações, o mesmo não
ocorreu com as leis. O ordenamento jurídico grego era classificado em leis de família, pública,
processual, de crimes ou tort.
As leis de família versavam sobre questões atinentes a casamentos, sucessões, escravidão,
comportamento feminino, cidadania etc. As leis chamadas públicas regulamentavam os deveres
políticos, as atividades religiosas, econômicas etc. As leis processuais, consideradas pelos historia-
dores como avançadas para a época, previam procedimentos de cumprimento das demais leis, e já
havia menção à distinção entre estudos de questões públicas e privadas. As leis tort, tratavam da
questão criminal da época.
Não obstante a questão escrita, a grande característica do Direito grego foi, sem dúvida,
a retórica como instrumento persuasivo. Não havendo figuras análogas aos advogados e pro-
motores, os próprios litigantes se dirigiam aos jurados, que atuavam nos tribunais divididos
em duas categorias: justiça civil e justiça criminal.
A justiça criminal era realizada no areópago, o mais antigo tribunal ateniense, cujas origens
remontam à lenda da deusa grega Atena. Após, criou-se o tribunal dos Efetas, composto de outros
quatro tribunais – Pritaneu, Paládio, Delfínio e Freátis –, que julgavam os crimes considerados pelo
areópago como involuntários ou desculpáveis.
A justiça civil, por sua vez, era realizada pelos chamados juízes de demos, escolhidos por
sorteio entre os cidadãos com mais de 30 anos, que decidiam questões não criminais, conformando
O Direito ao longo da história 11

um interessante sistema de divisão de atribuições judiciárias, em uma divisão por matéria que até
hoje se mantém.
Os gregos antigos não só tiveram um Direito evoluído, como influenciaram o
Direito romano e alguns dos nossos modernos conceitos e práticas jurídicas: o
júri popular, a figura embrionária do advogado na figura do logógrafo, a dife-
renciação de homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa, a mediação
e a arbitragem, a gradação das penas de acordo com a gravidade dos delitos e,
finalmente, a retórica e eloquência forense. (SOUZA, 2008, p. 100)

Conforme veremos adiante, houve influência do Direito grego no Direito romano, uma vez
que os romanos realizaram estudos sobre a lei de Sólon para elaboração de suas leis. Há, contudo,
diferenças importantes que observaremos.
No período histórico conhecido como Período Clássico, ou, ainda, Antiguidade Clássica ro-
mana, o Direito (jus) era tratado como uma questão de cunho sagrado. A construção do jus era
um verdadeiro ato sagrado, de expressão cultural e importante elemento de inserção social, tido
como projeto a ser fomentado e perpetrado no tempo. Na Roma Clássica, a questão da família, do
sagrado e da participação política se confundiam em um importante conjunto histórico.
Esse modelo de projeto em construção era passado entre gerações e encarado como ativi-
dade ética, a ser praticada mediante o exercício da prudência e a ser exercitada diuturnamente no
ato de fazer juízo de valor, o que deu origem ao termo jurisprudentia. Didaticamente, divide-se a
história jurídica de Roma em quatro períodos, como aponta Véras Neto (2003):
1. Período da Realeza, contado das origens de Roma até meados de 510 a.C., quando ocor-
reu a queda da realeza.
2. Período da República, de 510 a.C. até 27 a.C., com a ascensão de Otaviano.
3. Período do Principado, de 27 a.C. até 285 a.C., com a ascensão de Diocleciano.
4. Período do Baixo Império, de 285 a.C. até 585 a.C., quando falece o imperador Justiniano.
Veremos adiante os principais legados jurídicos de cada período. O Período da Realeza,
iniciado com a lenda de Rômulo e Remo, na qual Roma era considerada um Estado teocrático, foi
marcado politicamente pela unicidade na figura do rei, que era uma liderança política, religiosa,
militar e jurídica, com mandato único e vitalício. No setor jurídico, havia cargos auxiliares exer-
cidos principalmente pelos quaestore parricidii, magistrados encarregados de julgar questões dos
páter-famílias, e pelos duouiri perduellionis, juízes que julgavam crimes contra o Estado. O Direito
era costumeiro e implementado principalmente pelo comício dos curiatos e pelo Senado – órgão
de competência consultiva e subordinado ao rei –, que eram os responsáveis por modificar a ordem
legal das civitas.
O Período da República deu maior importância às magistraturas, principalmente com o
surgimento da figura dos cônsules, magistrados investidos vitaliciamente como únicos responsá-
veis pelo comando do exército e administração da justiça criminal. Nesse período, surge também
a figura dos censores por meio da Lex Valeria, sendo estes os responsáveis pelo recenseamento
romano, e dos pretores, que aplicavam o Direito civil romano.
12 Teoria do Direito

O Período do Principado foi marcado pelos comícios, que agrupavam os romanos em clas-
ses, definidas de acordo com a riqueza imobiliária. Havia peso diferenciado no voto das classes
mais ricas, o que influenciou sobremaneira o direito da época, que até então era fruto dos costu-
mes, da lei e dos editos dos magistrados.
O Período do Baixo Império, originado de uma crise política que ocasionou a descentrali-
zação dos poderes no reinado de Otávio, foi marcado também pela ascensão econômica de Roma,
decorrente de uma série de conquistas territoriais. Foi o período mais fértil no campo da Ciência do
Direito, com destaque para os jurisconsultos Sálvio Juliano, Ulpiano, Gaio, Modestino e Papiniano,
e o período de governo do imperador Justiniano, marcado como o mais próspero período de po-
sitivação jurídica, momento em que surgiram o Corpus Iuris Civilis, o Corpus Juris Canonici, os
primórdios dos documentos que viriam, mais tarde, a compor o Corpus Juris Canonici e a Lei das
XII Tábuas.
Tal movimento de positivação jurídica se deu por um pleito popular, principalmente pela
plebe, para elaborar leis escritas, em razão da aplicação incerta e não previsível por parte dos
magistrados patrícios. Estes, por sua vez, inseridos no segmento social hegemônico, formavam o
único grupo que detinha todos os direitos civis e políticos da época.
A Lei das XII Tábuas, oriunda da referida necessidade de positivação, foi elaborada com base
nas leis de Sólon, da Grécia Antiga, e preconizava disposições sobre os mais variados assuntos da
vida em Roma, desde a questão do pagamento e do não pagamento de dívidas, com as respectivas
penalidades (que chegavam à pena de morte), a questões de poder dos páter-famílias e de herança,
propriedade e posse – aspectos mais relevantes da referida lei, com interpretações bastante diversas
das que temos atualmente, galgadas pela questão central do poder familiar e do sagrado.
No Período do Baixo Império, quando notadamente se tem os primeiros registros sobre o
estudo do Direito romano, Justiniano solicitou a compilação do Corpus Iuris Civilis (o conjunto de
compilações das leis romanas, mas só assim nomeado na Idade Média). A referida obra engloba
as seguintes partes: Institutas, manual de estudo do Direito romano; Digesto, compilação de iuras;
Codigo, compilação das leges; Novelas, determinações pós-Justiniano.
O desenvolvimento de um pensamento prudencial como teoria do direito re-
presentou, assim, um certo distanciamento dos procedimentos decisórios con-
cretos em relação à ordem normativa capaz de possibilitar uma importante
distinção que marca peculiarmente a sociedade romana. [...] Isso significa que
a interpretação do direito, alvo máximo da dogmática em desenvolvimento,
destacava-se do caso concreto, constituindo uma discussão por si com critérios
próprios, abstratos se comparados com a experiência das disputas do dia a dia.
(VÉRAS NETO, 2003, p. 60)

No final do período conhecido como Antiguidade, em decorrência das invasões bárbaras,


o Império Romano se dividiu em Império Romano do Oriente, com sede em Bizâncio (e poste-
riormente Constantinopla), e Império Romano do Ocidente, com sede em Roma e que, com sua
queda, abriu espaço para a ingerência da Igreja nas intuições públicas, o que já vinha ocorrendo
desde antes da divisão do Império.
O Direito ao longo da história 13

1.2 Período Medieval


A Idade Média foi marcada por uma mudança na organização social: a divisão do território
em feudos – governados pelos senhores feudais, a quem cabia a administração das terras, a cobran-
ça de impostos, a organização das atividades econômicas e a aplicação da justiça – foi fator crucial
para a evolução do Direito no período.
O sistema de suserania e vassalagem, no qual o líder suserano proprietário da terra possuía
vários vassalos que se submetiam a seu mando, devendo-lhe lealdade, disseminou-se rapidamente,
e havia a figura do rei, cujo poder era entendido como derivado de Deus, que era marcante, sendo
que um reinado poderia ser vassalo de outro mais poderoso.
Essa multiplicidade de governos gerou também uma multiplicidade de leis a serem aplica-
das. Como veremos adiante, os costumes são poderosas fontes do Direito, e na Idade Média, pela
pluralidade de localidades com suseranos diferentes que determinavam suas próprias regras, houve
também pluralidade de leis aplicadas.
Assim, esse período foi juridicamente marcado pela pluralidade de leis, o que se devia,
em grande parte, ao modelo feudal, no qual cada feudo detinha certa autonomia legislativa e seu
povo vivia de acordo com seus próprios costumes e normas.
O período foi marcado, principalmente, pelo chamado Direito consuetudinário, que deriva de
consuetudo – termo latino para costume. Ou seja, não havia criação da lei por parlamentares, mas,
sim, o registro de costumes perpetrados por gerações e repassados pelos anciões de cada feudo.
Há de se ponderar que o surgimento das corporações de ofícios, nas quais se reuniam as
pessoas que realizavam o mesmo trabalho em grupos de interesse, marcou o início da ideia de uma
estrutura coletiva, com o fito de regular e proteger a atividade econômica envolvida.
Paralelamente ao Direito consuetudinário, em que os costumes eram fonte legislativa
(veremos mais sobre as fontes do Direito no Capítulo 5), houve uma retomada dos preceitos
do Direito romano.
As raízes do Direito romano permaneceram inalteradas em algumas regiões, principalmente
nos locais habitados pelos germânicos, originando o que se chamou de Direito romano vulgar, como
as codificações de reis bárbaros em diversas tribos germânicas, por exemplo: Lex Wisigothorum,
dos godos; Lex Borgundionun, dos burgundos; Lex Salica, dos francos.
A miscigenação das disposições de tais códigos com as instituições de Direito romano e o
surgimento das universidades deu origem a um novo Direito: “Do trabalho dos glosadores resultou
novo Direito romano, adaptado à sociedade medieval cristianizada” (GUSMÃO, 2003, p. 303).
Com a ascensão do feudalismo, o costume passou a ser a principal fonte legislativa, centralizando
o Direito da época em questões entre o senhorio e o vassalado, sublimando temporariamente a
influência do Direito romano na Idade Média, o que permitiu a ascensão do Direito canônico.
O Direito não perdeu seu caráter sagrado. Adquiriu, porém, uma dimensão
de sacralidade transcendente, pois de origem externa à vida humana na Terra,
diferente da dos romanos, que era imanente. Surgia, assim, um novo saber
prudencial, destinado a conhecer e a interpretar a lei e a ordem de forma
14 Teoria do Direito

peculiar, pois enquanto os romanos e o Direito era um saber das coisas divinas
e humanas, para a Idade Média os saberes eram distintos, ainda que guardasse
uma relação de subordinação. (FERRAZ JR., 2003, p. 62)

Desde o papado de Gregório VII, entendeu-se o Direito canônico como único válido
e interpretado de acordo com a vontade do papa, que por vezes se utilizava dos preceitos dos
jurisconsultos romanos como fonte supletiva.
Diante de tamanha pluralidade de realidades sociais e com o fito de compreender a estru-
tura da sociedade, surgiram as primeiras universidades e centros de estudos. A Universidade de
Bolonha, considerada a mais antiga do mundo, ganhou destaque por se dedicar aos estudos das
humanidades, assim como também ocorreu com as Universidades de Oxford, Paris e Coimbra.
Vale ressaltar que a criação de tais centros de estudos dependia da aprovação da Igreja e, em
seus estudos, havia influência direta dessa instituição, sendo os religiosos grande fonte de produ-
ção e reprodução (destacam-se os padres copistas, responsáveis por copiar e guardar textos dos
filósofos antigos) de conhecimento à época.
É nesse cenário, em meados do século XII, por influência do monge italiano Irnério, que
surgem os chamados glosadores. O método utilizado pelos glosadores era baseado nas glosas,
que eram breves explicações sobre trechos do Corpus Iuris Civilis. Os apontamentos – inicial-
mente realizados entre as linhas, as glosas interlineares, e após realizados ao lado das obras, as
glosas marginais – deram origem posteriormente a textos contínuos denominados apparatus.
Destacaram-se, nesse período, os glosadores Acúrsio, que escreveu a Magna Glosa, e Azo,
autor da Summa Codicis. Essa metodologia, porém, não permitia juízo de valor por parte dos glo-
sadores, que realizavam somente criteriosa interpretação do disposto nos códigos e leis.
No início do século XIII, houve um movimento pelo renascimento do Direito romano,
com especial foco à questão da jurisprudência, pois esse modelo atendia às necessidades do novo
processo de produção e representava uma ordem jurídica uniforme, que poderia ser aplicada
em vários territórios da atual Europa, facilitando as relações comerciais burguesas, que não mais
poderiam ficar à sorte de determinações feudais diferentes em cada localidade.
Foi nesse período que surgiu outro grupo de juristas, o dos comentadores, os quais não
só estudaram o Direito romano clássico como também as glosas, com uma metodologia diversa
da anterior, empregando método dialético e se utilizando de deduções e silogismos. Destacaram-
-se nesse período Cino de Pistoia, considerado o fundador da escola dos comentadores, Paulo de
Castro, Baldo de Ubaldo e Bártolo de Sassoferrato.
Os comentadores foram responsáveis por difundir o Direito romano na Europa e por inten-
tarem identificar pontos de convergência entre o Direito romano e os direitos locais, ocupando-se,
assim, não somente do Direito romano, mas do Direito canônico, feudal e local.
Entre os feitos importantes da classe dos comentadores, verifica-se que:
• foram responsáveis pela mudança de foco quanto à origem do poder, antes centrado na
origem transcendente e, a partir de então, centrado na sociedade;
O Direito ao longo da história 15

• defenderam a aplicação territorial do ordenamento jurídico ante o sistema feudal


então existente;
• defenderam a possibilidade de pluralidade de relação com as coisas (suserano, produtor,
cultivador, vassalo etc.);
• foram responsáveis pela criação de uma classe de juristas.
Já no século XVI, surgiram os humanistas, que visavam resgatar a limpidez dos textos da
Antiguidade Clássica, sendo sua maior contribuição a elaboração de críticas ao Direito romano e a
busca pela sistematização do Direito, com o fito de conformar um conjunto harmônico de normas.

1.3 Período Moderno e o Direito contemporâneo


Historicamente, costuma-se delimitar a transição entre a Idade Média para o Período
Moderno com a queda de Constantinopla e sua tomada pelos turcos, em 1453. O período foi de
suma importância para o desenvolvimento da Filosofia da Política, das Artes e também do Direito.
Revoluções eclodiram por toda a Europa, modificando consideravelmente a estruturação política
de vários de seus países.
Há de se ponderar que o Período Moderno se tratou de um momento de expansão comercial
e territorial, em que os fenômenos das grandes navegações, do mercantilismo e do expansionismo
europeu também tiveram influência no Direito.
É na Idade Moderna que verificamos uma organização jurídica semelhante à que hoje
conhecemos. O fim do sistema feudal e a ascensão da atividade burguesa e da vida nas cidades
deu origem a um novo Direito. A atividade capitalista burguesa, realizada entre territórios livres e
unificados, fez crescer a necessidade de uma legislação que pudesse dirimir os novos conflitos sociais.
É nesse contexto que surgiu a figura do Estado moderno, fenômeno que separou o poder do
governante das figuras religiosas, iniciando a criação de uma verdadeira política de Estado, cuja
instrumentalização se deu pela elaboração de normas aplicáveis à população, que agora se via às
voltas com novos conflitos sociais.
Foi nesse período histórico que surgiram as primeiras Constituições formais, passando-se a
distinguir, então, as normas jurídicas constitucionais e as demais leis dos respectivos ordenamentos.
Ponderamos também, como já dito, que os fenômenos do Período Moderno, como a expan-
são comercial e territorial, as grandes navegações, o mercantilismo e o expansionismo europeu,
tiveram influência no Direito. Além disso, o Direito aplicado aos países europeus passou a ser
também implementado nas colônias, operando nelas um fenômeno de ocidentalização jurídica.
Essa mudança de paradigma da figura do Estado, a modificação de foco econômico (não
mais de produção em feudos, mas de comércio e expansionismo) e a separação entre as coisas do
Estado e as coisas da Igreja fizeram crescer a necessidade de estudos de Filosofia e Sociologia, a fim
de se compreender os valores orientadores desse novo formato de organização política e a relação
entre os fenômenos sociais da época.
16 Teoria do Direito

Esse fértil período trouxe diferentes linhas de pensamento moderno, dentre os quais se des-
tacam o iluminismo, o enciclopedismo, o racionalismo e o empirismo. Por uma opção de recorte
metodológico e didático, não adentraremos nas minúcias de todas as correntes modernas, priori-
zando as escolas e os pensadores que mais agregaram ao estudo do Direito.
Uma grande marca do período foi o despertar da consciência crítica quanto às questões do
homem e da justiça, e o sagrado aparta-se finalmente do Direito, dando espaço às discussões filo-
sóficas e científicas em detrimento de respeito místico aos deuses, como no Período Clássico, e do
papa, como no Período Medieval.
Nesse contexto, destaca-se a Revolução Francesa, realizada em um Estado monarquista
absolutista, no qual o monarca já não tinha o respeito dos súditos, razão pela qual o movimento
revolucionário que buscava legitimidade no pensamento iluminista ganhou força com as ideias
defendidas por Montesquieu, Voltaire, Rousseau e outros pensadores da época.
Montesquieu, autor da obra O espírito das leis, propôs uma nova definição de lei, apontando
que “são relações necessárias que derivam da natureza das coisas” (2008, p. 32), pugnando pela divi-
são de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário, afastando-se do preconizado por Aristóteles
ao defender ainda a existência de diferentes formas de governo: despotismo, monarquia e república.
Voltaire defendia a reforma social como um objetivo a ser alcançado. Crítico da nobreza e
da Igreja católica, defendia a liberdade civil, religiosa e de expressão, o livre comércio, sem a inter-
ferência do Estado, e a queda do Estado absolutista.
Rousseau se destacou por sua tese Do contrato social, na qual afirma que o homem nasce
bom e livre e, corrompido pelo meio, passa a ser dependente dos outros, necessitando do que
chamou de contrato social para viver bem em sociedade. Sua tese se baseia em um acordo de
vontades entre os indivíduos para criar a sociedade e, assim, conviver harmonicamente, sendo
um pacto de associação.
Foram muitas as correntes de pensamento no Período Moderno. Os iluministas buscavam
enterrar definitivamente a monarquia absolutista e o poder papal, o que fizeram mediante obras
que até hoje são obrigatórias no estudo do Direito. Os enciclopedistas visavam a catalogar o
conhecimento do homem por meio de suas publicações, sendo a de maior destaque a Encyclopédie,
obra francesa elaborada por diversos pensadores da época e supervisionada por Diderot, a qual
versava sobre assuntos variados, como filosofia, política e religião.
Essas várias correntes de pensamento e autores defensores das mais variadas teses contri-
buíram sobremaneira para a construção do Direito como hoje o compreendemos. Dentre eles,
destacam-se alguns autores, que veremos a seguir.
Maquiavel foi um dos pensadores de maior destaque no período, pois rompeu com o ideal
moral enraizado pela cultura do cristianismo e buscou refletir sobre os problemas da ciência
política com base em políticas concretas, afastando-se do normativismo ético presente no Direito
canônico. Esse pensador, cuja obra clássica é O príncipe, deixou seu nome na história por voltar sua
atenção ao estudo da luta pelo poder.
O Direito ao longo da história 17

Thomas Hobbes defendia que “o homem é o lobo do homem” (1985, p. 109), sendo o instin-
to egoísta humano o ponto de partida para o caos social. Via no Estado o defensor das condições
necessárias ao desenvolvimento do homem, uma vez que seria o responsável por frear seu instinto
maléfico e estabelecer regras que permitissem a convivência em sociedade.
Immanuel Kant, autor de inúmeras obras de relevância, como Crítica da razão pura, Crítica
da razão prática e Crítica do juízo, preconizava a ideia de que o Direito conduzia à Filosofia crítica,
sendo expressão da coexistência das liberdades individuais. Fez, ainda, importante distinção entre
lei e moral (que será melhor abordada no Capítulo 2).
A chamada era contemporânea, cujo marco histórico foi a Revolução Francesa de 1789, trouxe
grandes modificações para o Direito ao aprovar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
documento que elencava direitos inerentes a todos os cidadãos, sem as distinções de antes, por classe,
sexo, cidadania etc.:
Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo
em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do
homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos,
resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do
homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros
do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres;
a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a
qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política,
sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos,
doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à
conservação da Constituição e à felicidade geral. (FRANÇA, 1789)

Dentre os direitos dispostos, a liberdade e a propriedade se destacam no texto da Declaração,


bem como a reafirmação da separação entre os poderes do Estado e da Igreja, preceitos que, com a
expansão napoleônica, foram difundidos por toda a Europa. O grande destaque no documento – e
também em todo o período que iniciou a era positivista, na qual o Direito decorre da lei, da sentença
e do contrato – é o disposto no artigo 5º, que cita que a lei só proíbe o que for prejudicial à sociedade,
sendo permitido tudo o que não está proibido.
Muitos foram os pensadores e estudiosos da época sobre a temática do Direito. Com ideias
contrárias às então defendidas por Friedrich Carl von Savigny, que acreditava que a formação do
Direito se dava de forma sutil, como a formação da linguagem, sem esforços ou lutas, a obra de
Rudolf von Ihering ganhou destaque. Sua conferência transformada no livro A luta pelo direito,
até hoje obra obrigatória para os estudos introdutórios à ciência jurídica, defende que a defesa do
Direito seria um verdadeiro dever, para com o indivíduo e para com a sociedade, cuja paz social
é o fim principal. Para alcançar a paz, fim último do Direito, a luta seria o meio necessário, sem o
qual não se pode alcançar o fim desejado.
Referidos autores modernos trouxeram importantes contribuições para a compreensão do
Direito como atualmente o compreendemos. Contudo há de se ponderar que, embora teóricos
questionassem a continuidade da Modernidade já em meados do século XX, existem divergências
sobre o marco inicial da chamada era contemporânea do Direito.
18 Teoria do Direito

Incontroverso foi o impacto das duas grandes guerras para o mundo do Direito, princi-
palmente da Segunda Guerra Mundial. Com os efeitos devastadores da Guerra e o consequen-
te choque oriundo das inúmeras violações de direito havidas, intensificou-se o debate sobre
os Direitos Humanos, com destaque para a tese defendida por Hannah Arendt, segundo a
qual os Direitos Humanos são frutos de lutas sociais, não sendo postos, mas decorrentes de
um processo de construção de acordo com a realidade social (ARENDT, 2013).
A crescente preocupação com a salvaguarda internacional da proteção aos direitos remonta ao
Pacto da Sociedade das Nações e firmemente à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
que trouxe verdadeira transformação no entendimento acerca da necessidade de proteção de direitos
não somente pelos Estados, mas também pela comunidade internacional.
O reordenamento na ordem global, no período pós-Segunda Guerra Mundial, representou
uma onda de reformulação dos processos econômicos. Diante do novo quadro global, vários países
ao redor do mundo iniciaram processos de reformulação de políticas econômicas, no intuito de
fomentar a industrialização e o crescimento econômico.
O surgimento dos blocos econômicos e, em alguns deles, de normativas jurídicas aplicáveis
não somente a um país, mas a um conjunto deles, e até discussões sobre o Direito comunitário,
a crescente atuação de organismos internacionais cujas decisões interferem direta ou indiretamen-
te nos países, tais como ONU, OIT, OMC, e tantos outros aspectos são reflexos desta era contem-
porânea do Direito, a qual estudaremos durante toda esta obra.
É nesse contexto que se consolida a ideia de que os direitos são frutos de lutas sociais, sen-
do uma verdadeira construção diária, e não um fenômeno estático e imutável, mas em constante
elaboração e transformação, razão pela qual não se pode jamais afirmar concluídos os estudos de
Direito – que ora se iniciam a você, leitor, por ser ele ciência efervescente e mutável.

Considerações finais
Neste capítulo, pudemos compreender de que forma se deu a evolução do Direito ao lon-
go da história, perpassando aspectos importantes da formação da ciência jurídica nos períodos
Clássico, Medieval, Moderno e Contemporâneo. Essa reflexão inicial é importante para embasar as
temáticas abordadas nos capítulos seguintes, nos quais veremos com mais detalhes questões levan-
tadas neste texto. Se você permaneceu com dúvidas, sugerimos que releia este capítulo introdutório.
Compreender a linha da história do Direito é um ponto fundamental para a boa compreensão da
teoria do Direito como um todo.

Ampliando seus conhecimentos


Como visto neste primeiro capítulo, o Direito sofreu grandes transformações ao longo
da história. Veremos mais adiante que, por se tratar de um reflexo dos fatos sociais – conforme
as palavras de Miranda (2002, p. 38): “a relação de adaptação do indivíduo à vida social, uma,
duas ou mais coletividades de que faça parte, ou adaptação destas aos indivíduos, ou entre si” –,
o Direito está em constante transformação, evolução.
O Direito ao longo da história 19

Assim, é certo que, para compreendermos suas bases, faz-se necessária uma leitura apurada
de sua transformação histórica, a fim de melhor entender o contexto do Direito de ontem e do
Direito que temos hoje e, ainda, o que esperar do futuro da ciência jurídica.
A seguir, complemente seu aprendizado lendo um trecho da histórica obra A cidade antiga,
de Numa-Denys Fustel de Coulanges, que esclarece como era a relação primária do homem com o
direito de propriedade, relação esta que tangenciava a questão religiosa da época, dando bastante
ênfase às relações familiares.

O direito de propriedade
(COULANGES, 2006, p. 52-53)

[...]
Há três coisas que, desde as mais antigas eras, encontram-se fundadas e solidamente estabelecidas
nas sociedades grega e itálica: a religião doméstica, a família, o direito de propriedade; três coisas
que tiveram entre si, na origem, uma relação evidente, e que parecem terem sido inseparáveis.
A ideia de propriedade privada fazia parte da própria religião. Cada família tinha seu lar e seus
antepassados. Esses deuses não podiam ser adorados senão por ela, e não protegiam senão a
ela; eram sua propriedade exclusiva.
Ora, entre esses deuses e o solo, os homens das épocas mais antigas divisavam uma relação
misteriosa. Tomemos, em primeiro lugar, o lar; esse altar é o símbolo da vida sedentária, como
o nome bem o indica [...]. Deve ser colocado sobre a terra, e, uma vez construído, não o devem
mudar mais de lugar. O deus da família deseja possuir morada fixa; materialmente, é difícil
transportar a terra sobre a qual ele brilha; religiosamente, isso é mais difícil ainda, e não é per-
mitido ao homem senão quando é premido pela dura necessidade, expulso por um inimigo, ou
se a terra não o puder sustentar por ser estéril. Quando se constrói o lar, é com o pensamento
e a esperança de que continue sempre no mesmo lugar. O deus ali se instala, não por um dia,
nem pelo espaço de uma vida humana, mas por todo o tempo em que dure essa família, e
enquanto restar alguém que alimente a chama do sacrifício. Assim o lar toma posse da terra;
essa parte da terra torna-se sua, é sua propriedade.
E a família, que por dever e por religião fica sempre agrupada ao redor desse altar, fixa-se ao
solo como o próprio altar.
A ideia de domicílio surge naturalmente. A família está ligada ao altar, o altar ao solo; estabe-
lece-se estreita relação entre a terra e a família. Aí deve ter sua morada permanente, que jamais
abandonará, a não ser quando obrigada por força superior. Como o lar, a família ocupará sem-
pre esse lugar. Esse lugar lhe pertence, é sua propriedade; e não de um homem somente, mas
de toda uma família, cujos diferentes membros devem, um após outro, nascer e morrer ali.
[...]

Atividades
1. Quais foram as principais características da ciência jurídica no Período Clássico?

2. Com base na atuação dos glosadores e dos comentadores, descrita neste capítulo, faça uma
glosa ou um comentário do seguinte trecho da obra Corpus Iuris Civilis:
20 Teoria do Direito

Convém a quem pretende dedicar-se ao direito saber, de início, de onde vem


o termo ius (direito): ius vem de iustitia. Celso, com muita propriedade, defi-
ne o direito como a arte do bom e do justo. § 1. Por essa razão, há quem nos
chame sacerdotes, pois cultuamos a justiça, professamos o conhecimento do
bom e do justo, discernimos o lícito do ilícito, para levar os homens a serem
bons não só por medo do castigo mas também pela motivação dos primeiros
a se empenharem na busca, se não me engano, da verdadeira e não da falsa
filosofia. (CORPUS..., 2010, p. 13, grifos nossos)

3. Sobre as inovações jurídicas trazidas pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
comente sobre os seguintes artigos do referido texto:
Art. 1º – Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções so-
ciais só podem fundar-se na utilidade comum.
Art. 2º – O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos natu-
rais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade,
a segurança e a resistência à opressão.
Art. 3º – O princípio de toda a soberania reside essencialmente na Nação.
Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que aquela
não emane expressamente.
Art. 4º – A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique ou-
trem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites
senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos
direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei. (FRANÇA, 1789)

4. Discorra sobre a importância da religião na formação do Direito nos períodos históricos estudados.

Referências
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.

CORPUS iuris civilis: digesto – livro II. Coord. e trad. Edilson Alkmim Cunha. Brasília: TRF1; Esmaf, 2010.

COULANGES, N. F. A cidade antiga. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: Edameris, 2006.

FERRAZ JR., T. S. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

FRANÇA. Assembleia Nacional Constituinte. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. 26 ago. 1789.
Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/
declar_dir_homem_cidadao.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2018.

GUSMÃO, P. D. Introdução ao estudo do Direito. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

HOBBES, Thomas. Leviathan. London: Penguin Classics, 1985.

MIRANDA, P. Introdução à sociologia geral. São Paulo: Bookseller, 2002.

MONTESQUIEU. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes. Introdução,
tradução e notas de Pedro Vieira Mota. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

SOUZA, R. O direito grego antigo. In: WOLKEMER, A. C. (Org.). Fundamentos de história do Direito. 4. ed.
Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

VÉRAS NETO, F. Q. Direito romano clássico: seus institutos jurídicos e seu legado. In: FERRAZ JR., T. S.
Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
2
O Direito e sua relação com a Filosofia

Como vimos no primeiro capítulo, o estudo do Direito perpassa diversos saberes de outras
áreas, como a História, a Sociologia e a Filosofia. No que tange às interfaces da Filosofia com o
Direito, esse diálogo é riquíssimo, fornecendo bases para importantes questionamentos sobre o
Estado, a justiça e as relações políticas e sociais que colaboram com a formação da ciência do
Direito. Neste capítulo, vamos estudar as relações entre o Direito e a Filosofia, entre o Direito e a
moral, bem como o conceito de justiça.

2.1 O Direito e a Filosofia: epistemologia jurídica


O termo filosofia tem origem no grego philo, que deriva de philia, e significa respeito entre
iguais, amor fraterno, e em sophia, que quer dizer sabedoria. Assim, filosofia indica o amor pela
sabedoria, baseada no respeito ao argumento entre iguais.
A história atribui ao filósofo grego Pitágoras a criação desse termo. Esse pensador defen-
dia que a sabedoria pertencia aos deuses, cabendo aos homens desejá-la e buscá-la, filosofando.
Modernamente, Jasper reafirmou, em sua obra Introdução ao pensamento filosófico, que essa ciên-
cia tem, em sua essência, a procura pelo saber, e não sua posse (1965), razão pela qual destaca-se
que as perguntas se tornam mais importantes que as respostas.
Filosofar seria, então, um ato de busca pelo conhecimento, no qual contemplar, avaliar e
observar são os verbos de ação, não havendo possibilidade para competições intelectuais ou
filosofia movida por interesses.
A Filosofia é, assim, não apenas importante, mas inevitável. Aos que pretendem
contestá-la, convém lembrar que refutar a Filosofia é uma forma de filosofar;
ou a expressão pitoresca de Maritain: o homem faz Filosofia até quando respira.
Mas o melhor argumento em favor da Filosofia talvez seja de ordem histórica.
Há mais de vinte séculos a cultura filosófica da Grécia marcava o apogeu de
uma das maiores civilizações do passado. A partir daí, superando obstáculos
e dificuldades, a Filosofia, sempre presente, atua intensamente sobre todos os
períodos da História: antiga, medieval, moderna, contemporânea. (MONTORO,
1995, p. 7)

Como ciência autônoma, a Filosofia do Direito remonta a meados do século XVI, com Hugo
Grócio, Francisco de Vitória e Francisco Suárez, tendo se desenvolvido mais tarde, com expoen-
tes como Bento de Espinosa, Thomas Hobbes, Gottfried Wilhelm Leibniz, Immanuel Kant etc.
(MONTORO, 1995).
Hoje, compreende-se que a Filosofia é um questionamento sobre os mais variados temas
complexos e fundamentais, como a existência, o conhecimento, a verdade e os valores morais.
O importante nesse processo de busca pelo conhecimento em determinado tema não são as
22 Teoria do Direito

respostas, mas o processo contínuo de observação e reflexão que se utiliza para alcançá-las, por
meio do uso da razão.
Perceba que a Filosofia não busca respostas pela mitologia ou religião, uma vez que essas
se baseiam na crença e na fé. Trata-se da constante construção da própria existência do Direito,
envolvendo conhecimentos e concepções diversos na construção da ciência do Direito, ou seja,
é um processo de reflexão.
De outro lado, não se pode confundir o conceito de filosofia com o conceito de ciência.
Enquanto esta abandona determinada ideia quando surge uma nova corrente, aquela não refuta
ideias anteriormente postas em decorrência do surgimento de outras linhas de pensamento.
Na Filosofia, todo novo conhecimento tem por base um pensamento anterior, sendo uma
verdadeira construção por meio de acúmulo histórico de proposições, em uma progressão de
novos conhecimentos. Trata-se, pois, de uma forma de busca racional que tem em sua liberdade
intelectual (que não está obrigada a apresentar respostas) o objetivo de discutir os objetos para os
questionamentos a que a própria ciência não consegue responder.
A Filosofia tem, assim, uma forte conexão com outras formas de pensamento e áreas, como
linguagem, matemática, raciocínio lógico etc. Nesse ponto, é importante ponderarmos sobre uma
série de questionamentos a serem analisados quanto à relação do Direito e da Filosofia.
Veja, a seguir, como alguns importantes ramos da Filosofia se relacionam com o Direito.
• Lógica: estuda o raciocínio, com a clareza do pensamento e a certeza proposicional.
Estando ligada à matemática, visa estruturar o raciocínio por meio de proposições, dedu-
ções ou induções, trazendo à reflexão questões como: de que forma podemos desenvolver
o raciocínio? Como provar que uma premissa é verdadeira ou falsa?
• Filosofia moral: ou ética, importante ramo da Filosofia que desenvolve seus estudos a
respeito do comportamento humano, dos costumes, hábitos, limites da ação humana e
seus meios de decisão, sendo fundamental para a compreensão do Direito e dos fenô-
menos sociais a ele relacionados. Pode-se exemplificar questões pertinentes a tal ramo
filosófico: o que é a justiça? O que é uma vida virtuosa? O que é a felicidade?
• Filosofia política: ramo que estuda o poder, a legitimidade, a representatividade, a von-
tade popular, a cidadania, o totalitarismo, as políticas sociais e outros importantes fatores
relacionados à política. Em sua interface com o Direito, podemos destacar alguns ques-
tionamentos importantes: Qual é o tipo de sociedade na qual gostaríamos de viver? Como
ela deve ser governada? Quais são os direitos e responsabilidades de seus membros?
• Epistemologia: trata-se do ramo da Filosofia que estuda a origem, a estrutura, os métodos
e a validade do conhecimento. Relaciona-se diretamente com a lógica e a metafísica, pois
busca compreender o processo do conhecimento e suas etapas e requisitos. Conhecida
também como filosofia da ciência, a epistemologia busca estimular o conhecimento
científico, ressaltando sua importância para as diversas áreas com que se relaciona, e,
ainda, aferir o grau de certeza dos conhecimentos citados.
O Direito e sua relação com a Filosofia 23

Defendida por Platão, a epistemologia grega opunha crença ou opinião (pontos de vista
subjetivos e variáveis de pessoa a pessoa) ao verdadeiro conhecimento (justificado, conjunto de
informações que descreve cientificamente um fenômeno).
Nesse contexto, ressaltamos suas duas mais famosas vertentes: a empirista, que afirma que
o conhecimento deve ser vivenciado, ou seja, deve ser baseado na experiência, no que foi vivido e
aprendido pela práxis; e a racionalista, que afirma que a fonte do conhecimento estaria centrada na
razão e no pensamento, e não na experiência.
Assim, podemos destacar alguns questionamentos importantes da Filosofia epistemológica:
Como podemos saber? Como adquirimos o conhecimento? O conhecimento é inato ou aprende-
mos tudo com base na experiência? Podemos conhecer exclusivamente pelo uso da razão? Qual é
a possibilidade de alcançarmos a verdade?
A epistemologia jurídica, por sua vez, visa examinar as origens do Direito, para definir
seu objeto e examinar os fatores que a ele se relacionam, buscando várias formas de com-
preendê-lo. Sendo o Direito resultado de lutas sociais e oriundas do ser humano, acaba por ter
diversas interpretações.
Veja que todas as ciências têm em suas bases pressupostos e dogmas que acabam por ser
aceitos sem discussão, tornando-se verdadeiros pontos de partida das investigações. Com o Direito
não é diferente. Cabe, pois, à Filosofia do Direito o estudo e a reflexão para preencher o significado
desses conceitos fundamentais.
Nesse contexto, ao nos deparamos com a Filosofia do Direito, encontramos diversas
questões para refletir: o que é justiça? O que é direito? Qual é o método para tomar uma deci-
são jurídica? O Direito é uma ciência? Qual é o método para a interpretação jurídica? O que é
norma jurídica?
Assim, podemos definir como principais funções da Filosofia do Direito (NUNES, 2004):
• a fundamentação dos conceitos;
• o estímulo ao pensamento sobre o Direito;
• a avaliação crítica das regras e dos preceitos legais em comparação com os critérios de justiça; e
• a crítica ao conhecimento jurídico.
O Direito somente se justifica em sua finalidade última se souber utilizar de modo adequado
os conceitos jurídicos. A regra estará de acordo com o ordenamento jurídico, o que é diferente de
afirmar que a lei estará de acordo com os critérios de justiça. Nesse caso, somente o exercício filo-
sófico poderia verificar a veracidade dessa afirmação.
É necessário ponderar, ainda, que na atividade profissional de aplicador do Direito encon-
tramos conceitos que a dogmática não é capaz de definir, em temas complexos como dignidade,
igualdade, moralidade etc. Cabe, pois, à Filosofia complementar tais conceitos.
Assim, a Filosofia, ao utilizar a razão como método de análise, busca a reflexão, o que
favorece ao profissional do Direito ser mais do que o aplicador da legislação no caso concreto,
devendo avaliar de modo crítico, diante da legislação e dos casos mais difíceis, compreendendo o
Direito à luz dos critérios de justiça (BITTAR; ALMEIDA, 2016).
24 Teoria do Direito

2.2 O Direito e a moral


Veremos agora importantes aspectos sobre o Direito e a moral. A estreita e conturbada rela-
ção entre ambos é um dos principais conflitos do positivismo e do pós-positivismo, correntes que
abordaremos com maior profundidade no Capítulo 3.
Para uma boa compreensão sobre os institutos ora estudados, é relevante conceituá-los e
levantar suas principais características.
A moral repousa em questões de foro íntimo, na subjetividade do indivíduo em agir ou não
de modo correto. “O agir moral expressa ação do indivíduo conforme sua própria convicção. Nesta
forma de conduta não há uma força externa determinando como deve, ou não, o sujeito agir”
(OLIVEIRA, 2001, p. 113).
Para além da questão individual, devemos observar o que parte da melhor doutrina deno-
mina moral social, fenômeno no qual a norma moral é expressa de modo que todos os indivíduos
ajam de forma correta.
Trata-se de uma consecução do reflexo social que expressa as normas de uma coletividade,
comportamento que passa a ser dominante em determinado grupo social. “Em suma, a conduta
moral possui fundamento na consciência do indivíduo. A exteriorização do agir moral implica a
formação de uma moral social” (OLIVEIRA, 2001, p. 115).
O Direito está atrelado à ordem jurídica, que por sua vez tutela o conjunto de normas deter-
minantes do comportamento individual. Assim, temos que o Direito pode ser considerado heterô-
nomo, ou seja, uma ordem externa sobre o indivíduo, enquanto a moral é autônoma, dependente
do estado de espírito e da intenção do indivíduo.
Verifica-se que o Direito se impõe ao sujeito como norma externa, diferentemente do que
ocorre com a moral, devendo ser cumprido independentemente da vontade individual.
Vemos que não só o Direito trabalha a ideia de normas e regras, mas que outras áreas do
conhecimento também a utilizam, a exemplo da religião, como apresentado no Capítulo 1. Kant
buscou afastar seu conceito de moral da visão religiosa, utilizando a razão como critério de defini-
ção de conduta moral.
A sociedade tem conceitos do que seria justo, associando, muitas vezes, a moral à ideia de
justiça, ocorrendo assim também com o Direito. Isso porque este, como já vimos, nasce do fenô-
meno social e se apropria das experiências gerais da sociedade para delineá-las em regras, impondo
seu conteúdo de forma que as regras passem a ser vinculantes.
Nesse sentido, as normas morais são anteriores ao Direito e interiores; ou seja, são pensadas
em consciência individual, e não mediante imposição coercitiva. É importante destacar que essas
cogente: coercitivo, normas têm caráter não cogente, uma vez que não são impostas aos sujeitos, não havendo ainda
constrangedor.
poder punitivo em caso do descumprimento, ao contrário do que ocorre com os descumprimentos
das normas jurídicas. O descumprimento do preceito moral pode somente desencadear reações de
rejeição social e de vergonha.
O Direito e sua relação com a Filosofia 25

Vê-se que, ao contrário da norma moral stricto sensu, a norma jurídica está revestida de
coercibilidade, sendo seu cumprimento passível de exigibilidade e/ou sanção. A norma do Direito
é coercitiva, pois exige sempre ações e condutas, ainda que omissivas; a moral, por sua vez, é espon-
tânea, sendo que o indivíduo age de acordo com sua motivação interior. Isso porque a moral não é
sancionada ou promulgada em códigos e leis, diferentemente do que ocorre com as regras jurídicas
positivadas, que passam por um processo de elaboração legislativa.
Precisamos compreender que, por mais que o positivismo jurídico tenha tentado afastar
a moral da interpretação do Direito, as normas jurídicas possuem fortes laços com diversas dis-
ciplinas. O Direito imoral é tão válido juridicamente como o moral. Quando o Direito caminha
em consonância com um preceito moral, acaba por encontrar um reforço na prática social e no
consentimento popular.
Para compreender melhor a relação entre o Direito e a moral, suas peculiaridades, caracte-
rísticas e refrações, estudaremos o pensamento de Immanuel Kant e sua importante contribuição
sobre o tema.

2.2.1 O imperativo categórico de Immanuel Kant


Immanuel Kant (1724-1804) foi um autor de destaque para o estudo da moral. Sua obra
Crítica da razão prática, de grande relevância para o tema, trata de assuntos importantes sobre o
bom, o belo, a virtude e a justiça.
Na obra, o autor defende a tese de que as noções de dever estão relacionadas à legalidade.
Assim, o cumprimento do dever só possuiria valor moral se não houvesse outras intenções envol-
vidas, como interesse pessoal ou reconhecimento social.
Vejamos estes exemplos: se você cumpre um dever disposto em um contrato somente por-
que vai receber, ao final, um lucro, cumpriu-o por interesse pessoal, ou seja, apenas cumpriu o
dever porque esperava algo em troca, não teve um ganho moral. Agora, se você faz uma doação
para uma instituição de caridade somente porque será bem-visto pela sociedade, cumpriu o dever
por reconhecimento social; sua ação, portanto, não pode ser considerada um ganho moral, pois
foi motivada por interesse, e não pelo estrito cumprimento do dever.
Pelos exemplos citados e aplicando-se a lógica estudada, cumprir o dever sob uma perspecti-
va moral resulta em concluir que não há outros interesses envolvidos, mas somente o cumprimento
do dever.
Já em sua obra Crítica da razão pura, o autor defende que o objetivo da Filosofia não seria
compreender os conhecimentos sobre o mundo e sobre os homens, mas aprofundar o conheci-
mento do homem, uma vez que “somente analisando as possibilidades profundas do espírito é que
é possível saber, na verdade, do que é capaz o espírito humano, revelando o que se pode saber, o
que se deve fazer e o que se pode esperar. Nessa obra, analisa, inicialmente, as possibilidades de
conhecer” (OLIVEIRA, 2001, p. 62).
26 Teoria do Direito

Para Kant, a moralidade não se resume ao cumprimento de um dever. Trata-se de uma pre-
disposição a cumpri-lo sem qualquer outro fundamento que não seja sua vontade em fazê-lo, ex-
cluindo-se desse conceito o cumprimento de dever por interesse pessoal e reconhecimento social.
Ou seja, a boa vontade do sujeito não pode ser influenciada por fatores externos.
Kant defende que as leis positivas seguem o padrão do que chamou de imperativo hipotético,
tese na qual defende que uma ação condiciona outra ação. Por exemplo: furar o sinal vermelho, in-
fração de trânsito considerada gravíssima, é punível com multa e pontos na carteira, logo, se o indi-
víduo não quiser ser autuado, pagar multa e ter os pontos vinculados à sua CNH, não deve fazê-lo.
Dentre outros importantes escritos do autor, destacamos as ideias de Crítica do juízo, na qual
se vislumbra uma filosofia da obra de arte e sobre a vida orgânica, e a obra Metafísica dos costumes,
na qual o autor faz uma síntese da ação moral. É nesta última obra que vamos nos concentrar.
Vimos como Kant entende a questão da lei positiva relacionando-a com o imperativo hipo-
tético. Veremos agora como o autor compreende a moral, fenômeno ao qual denominou impera-
tivo categórico.
O imperativo categórico de Kant se resume ao cumprimento do dever em si mesmo, sem
esperar nada em troca. Trata-se de um raciocínio no qual o sujeito age segundo uma máxima tal
que possa, ao mesmo tempo, tornar-se uma lei universal (KANT, 2013).
A moralidade em Kant não é algo natural, inerente ao homem, mas um dever racional que
governa o agir e o não agir, sendo necessário esforço para controlar a vontade por meio da razão.
A vontade, por sua vez, deve ser dominada pela inteligência e ser conduzida pelo que o autor
intitula imperativo categórico – um dever que obriga por si só, sem limitações, condicionantes e
finalidades, a não ser o próprio cumprimento do dever.
Quadro 1 – Imperativos categórico e hipotético

Imperativo hipotético Imperativo categórico


Frase de comando + consequência Agir apenas segundo uma máxima que poderia
ser elevada a uma lei universal.

“Se não quiser ser preso, não roube.” “Não roube”. O roubo não é correto, deve se opor
pela boa vontade. Se o roubo fosse elevado a
uma lei universal os efeitos seriam nefastos.

Semelhante à estrutura da lei positiva Sua estrutura está associada a uma moral com
caráter universal.

Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Kant, 2013.

Para uma melhor compreensão, vamos diferenciar moralidade de dever. Podemos conceituar
moralidade como uma predisposição interna, que não pode ser medida pelo resultado da ação,
sendo movida somente pela boa vontade do sujeito em cumprir o dever, sem quaisquer outras
influências. O dever, por sua vez, é fator externo que incide sobre o sujeito e pode ser cumprido
com diferentes intenções.
Nesse sentido é que se evidencia a diferença entre direito e moral. Para Kant, ambos são
extraídos do imperativo categórico, mas há diferenças conceituais importantes que merecem atenção.
O Direito e sua relação com a Filosofia 27

A moral em Kant é uma espécie de prática da lei por si mesma, seu sentido se encontra na
vontade do sujeito. O Direito se impõe como uma ação exterior, que obriga o seu cumprimento,
independentemente da moralidade. Ambos são considerados pelo autor em uma perspectiva uni-
versal, não podendo ser adaptáveis à conveniência dos sujeitos. Logo, na teoria de Kant, não se po-
deria considerar justo que um Direito dê privilégios a poucos. A justiça repousaria no imperativo
categórico e, por essa razão, seria universal.

2.3 O Direito e a justiça


Veremos agora algumas considerações sobre o conceito de justiça, que será aprofundado nos
demais capítulos desta obra. A justiça é questão central na Filosofia do Direito, sendo, juntamente
com o conceito de direito e os métodos interpretativos, um dos pontos mais importantes nesse
ramo da Filosofia.
Foram vários os filósofos que voltaram sua atenção para a reflexão do conceito de justi-
ça, o que nos leva a ter variadas definições sobre o tema. Muitas áreas utilizaram o conceito de
justiça, a exemplo da teologia, que considerou a justiça como uma virtude cardeal, tão impor-
tante quanto a prudência, a coragem e a temperança1.
Devemos considerar, inicialmente, que a justiça é um conceito fundamental e irredutível
da ética e da Filosofia jurídica e social. Trata-se, pois, de conceito essencial para a vida política,
social e jurídica; cujo objetivo é alcançar a justa medida quanto aos conflitos derivados das relações
humanas (ABBOUD; CARNIO; OLIVEIRA, 2015).
Seria então a justiça um axioma? Uma hipótese? Uma condição transcendental do Direito? axioma: evidência
material que dispen-
Um princípio? Sobre o tema, é necessário observarmos alguns aspectos importantes, a fim de sa a dedução lógica.

compreender a inter-relação da justiça com a compreensão do indivíduo. hipótese: pressupos-


to que pode ser con-
Alguns autores da corrente à qual se filia Bernardo Montalvão compreendem a configuração siderado verdadeiro
ou não.
do ser humano como uma tríplice (MONTALVÃO, 2017): condição transcen-
dental do Direito:
1) ser autônomo, que criou o Direito; a justiça seria uma
condição para a
2) fim último, uma vez que o fim último do Direito é o homem; existência do direito,
porém dotada de ca-
3) heterônomo, pois o homem se subordina ao Direito. ráter transcendental.

É fato que a justiça está intimamente ligada ao sujeito e ao Direito, podendo tal relação se princípio: propo-
sição verdadeira,
dar de forma objetiva – na qual se pode assinalar o conceito de justiça como justificativa para as valor que orienta
comportamentos.
ordens normativas, instituições e sistemas – e de forma subjetiva – na qual consideramos a justiça
como uma escala individual, que visa a constantemente dar a cada um o que seria seu de direito.
Assim, para bem compreender a justiça, precisamos considerar a ideia do Direito e o papel
do sujeito nesse contexto. Podemos compreender que um ideal de justiça passa pelo ser humano e
termina por culminar em normas de Direito, que podem ser aplicadas diretamente sobre os indi-
víduos ou em estruturas institucionais.

1 Essas virtudes foram estudadas por Platão e, posteriormente, incorporadas por Santo Ambrósio, Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino.
28 Teoria do Direito

Figura 1 – Relações entre justiça, Direito e sujeito

Justiça – valor que se inspira na ideia de Direito

Sujeito – ser autônomo que cria o Direito

Direito – regras de convívio social

Objetivo Subjetivo
instituições e sistemas aplicável ao indivíduo

Fonte: Elaborada pelas autoras com base em Montalvão, 2017.

2.3.1 A evolução do conceito de justiça


O conceito de justiça que hoje estudamos recebeu grande influência das teorias de Aristóteles,
que considerava a justiça como a virtude entre os extremos, o caminho do meio, conceito delinea-
do em sua obra Ética a Nicômaco (2017).
Vejamos um famoso exemplo que nos auxilia a compreender melhor o critério de justiça de
Aristóteles. Um soldado em batalha pode ter até três comportamentos. Pode se portar com covar-
dia e fugir da luta e pode ser inconsequente e lutar sozinho contra o inimigo, sendo a covardia e a
inconsequência comportamentos diametralmente opostos. Ou pode optar pelo caminho do meio,
entre as duas condutas, e enfrentar o inimigo com o auxílio dos companheiros de guerra, como um
ato de coragem, sendo a coragem a justa medida da ação do soldado.
Veja que justo, para Aristóteles, é aquele que age com igualdade nas relações humanas, com
caráter proporcional e optando sempre pelo justo caminho entre os extremos.
A teoria aristotélica se desdobra em dupla compreensão, a justiça universal e a justiça particular.
Enquanto a primeira está ligada à busca de soluções para os casos de injustiça, a segunda está
relacionada aos aspectos de virtude e de moral e seu consequente cumprimento ou descumprimento.
A justiça particular pode ainda ser subdividida em justiça distributiva e justiça reparadora
ou comutativa. A justiça distributiva está relacionada à distribuição de direitos entre os sujeitos de
uma comunidade, e o critério de distribuição é dividir em partes iguais para pessoas iguais e em
partes diferentes para pessoas diferentes. A justiça reparadora (ou comutativa) relaciona-se a con-
flitos, considerando os envolvidos como iguais. É a justiça das relações privadas, sendo necessário
reparar as relações jurídicas por meio de penalidades.
Essa interessante concepção de justiça de Aristóteles foi reproduzida também pelos romanos
e, após, na Idade Média, por São Tomás de Aquino, para quem a justiça é a virtude de cumprir o
direito. Ele, inclusive, inseriu aspectos diferentes na teoria da justiça universal e justiça particular.
O Direito e sua relação com a Filosofia 29

Em sua teoria, permaneceria o conceito de justiça universal, então denominado justiça legal, e à
justiça particular São Tomás de Aquino atribuiu as relações entre a comunidade e o indivíduo e as
relações entre as pessoas.
No Período Renascentista e com o advento da Reforma Protestante, a compreensão de jus-
tiça ficou vinculada ao Direito Positivo, não se podendo esquecer o ideal de justiça que permeou
as revoluções burguesas da época, as quais partiram da compreensão de que o direito posto estaria
em dissenso com o que de fato seria justo.
As mudanças de paradigma trazidas pelo positivismo e pelo socialismo desencadearam
questionamentos ao conceito de justiça, como uma utopia para as sociedades modernas. Nesse
período, verifica-se que houve, definitivamente, a separação entre o Direito e a ideia de justiça,
permanecendo esta atrelada ao conceito de igualdade.
Hans Kelsen, expoente do positivismo, relaciona a justiça a uma qualidade da moral,
tratando o conceito como uma valoração de conduta do indivíduo (1984). Assim, não seria
função do Direito se enquadrar no conteúdo da justiça, devendo a política complementar seu
conteúdo.

2.3.2 A justiça em sentido amplo e estrito


Veremos agora como a doutrina tem preenchido a lacuna entre a justiça e o Direito. Foi após o
advento do positivismo que Gustav Radbruch trouxe a relatividade do conceito de justiça, pontuando
que as convicções são importantes na ciência do Direito, com o fito de demonstrar as proposições
racionais para as tomadas de decisão (LIMA, 2009).
Nesse contexto, podemos entender a justiça em dois aspectos, o amplo e o estrito. A justiça
em sentido amplo se relaciona diretamente a uma forma, um conteúdo e uma função em relação ao
indivíduo e ao Direito. Já a justiça em sentido estrito se relaciona exclusivamente ao aspecto formal.
Figura 2 – A justiça em sentido amplo e estrito

Justiça em sentido amplo

Justiça sobre o
Justiça como Função da justiça
aspecto formal
adequação
SEGURANÇA JURÍDICA
IGUALDADE
CONTEÚDO
Como alcançar a paz social
Dar a cada um o que é seu
Justiça social e bem comum
Como agir para se evitar
Como se regulam
O que deve ser regulado? o arbítrio?
os comportamentos?

Justiça em sentido estrito

Fonte: Elaborada pelas autoras com base em Montalvão, 2017.


30 Teoria do Direito

Quando mencionamos a forma, estamos compreendendo a justiça sobre o critério da igual-


dade. Desse modo, o igual deve ser tratado de forma igual e o diferente, de modo proporcional a
sua diferença. Esse aspecto possui certas dificuldades, pois não se traçam distinções sobre quem
são os iguais e quem são os diferentes. São as determinações legais que trarão essas distinções e que
determinarão as consequências jurídicas dessas diferenças.
Ao analisar o critério formal, devemos refletir como devem ser regulados os comportamen-
tos da vida, e essa regulação deve partir de uma compreensão não arbitrária, compreendendo com
equidade as relações entre os indivíduos.
Quanto ao conteúdo, a justiça se relaciona à ideia de adequação, com enfoque na justiça
social e no bem comum. A questão central é que deve ser regulada, sendo importante considerar
as expectativas, as necessidades e os fatores éticos como critérios, sendo o ser humano fim último,
material e histórico do Direito.
Quanto à função da justiça, a segurança jurídica se dá pela estabilidade do Direito. Esse fator
busca responder quais seriam os meios, pretensões e proibições que devem ser regulados, em uma
perspectiva funcional, que compreende o sujeito como destinatário das normas jurídicas.
Reforçamos a ideia de que, para a justiça, em sentido estrito, importa o aspecto formal,
fazendo-se uso da máxima que determina que o igual deve ser tratado de forma igual, enquanto o
diferente merece tratamento proporcional à sua diferença, dando a cada um o seu direito.
A grande questão é definir quem é o diferente e quem é o igual desse conceito. A equipara-
ção entre iguais e a distinção entre diferentes depende, pois, de uma decisão, a qual se pode atribuir
ao legislador, que em sua função precípua cria os critérios para operacionalizar tal diferenciação
(MONTALVÃO, 2017).
Tércio Sampaio Ferraz Júnior apresenta uma interessante analogia sobre os critérios de jus-
tiça formal e material, com base em um jogo de futebol (2003). O autor esclarece que o Direito seria
um jogo de igualdades e desigualdades, no qual os atos normativos são jogadas, lances que podem ser
fortes ou fracos. Nesse contexto, o aspecto material da justiça se refere ao principal objetivo do jogo
jurídico, ou seja, o gol. Já os aspectos formais são as regras que definem o jogo, que trazem os limites
para se alcançar o gol. Apesar de o Direito ter por objetivo a justiça, as regras de limites jurídicos não
são o conteúdo da justiça, mas sim aspectos formais para se alcançar a justiça, o que revela a diferença
entre o Direito e a justiça (FERRAZ JR., 2003).

Considerações finais
Neste capítulo, pudemos compreender a relação do Direito com a Filosofia, os conceitos de
justiça e moral, suas diferenças e complementaridades. Essa reflexão é importante para compreen-
dermos de que forma a justiça e a moral se relacionam diariamente no exercício do Direito, o que
facilitará a compreensão do fenômeno jurídico e suas peculiaridades, que estudaremos nos próxi-
mos capítulos. Para tanto, faz-se imprescindível compreender a teoria de Kant e suas refrações, que
se perpetuaram no estudo do Direito.
O Direito e sua relação com a Filosofia 31

Ampliando seus conhecimentos


Com base nos conteúdos estudados neste capítulo, principalmente com a abordagem da
epistemologia jurídica, vamos ampliar os conhecimentos refletindo sobre a ideia de justiça, a ques-
tão da moral e o Direito, com base no dilema do maquinista, levantado por Michel Sandel em
sua obra Justiça: o que é fazer a coisa certa. Com base na leitura do texto, procure refletir sobre os
conceitos de justiça e moral e sobre a diferenciação entre o que é justiça e o que é Direito, em uma
análise epistemológica do exemplo trazido pelo autor da obra.

Justiça: o que é fazer a coisa certa


(SANDEL, 2012, p. 30-31)

Suponha que você seja o motorneiro de um bonde desgovernado avançando sobre os trilhos
a quase 100 quilômetros por hora. Adiante, você vê cinco operários em pé nos trilhos, com as
ferramentas nas mãos. Você tenta parar, mas não consegue. Os freios não funcionam. Você se
desespera porque sabe que, se atropelar esses cinco operários eles morrerão. (Suponhamos que
você tenha certeza disso).
De repente, você nota um desvio para a direita. Há um operário naqueles trilhos também,
mas apenas um. Você percebe que pode desviar o bonde, matando esse único trabalhador e
poupando os outros cinco. O que você faria? Muitas pessoas diriam: “Vire! Se é uma tragédia
matar um inocente, é ainda pior matar cinco”.
Agora considere outra versão da história de bonde. Desta vez, você não é o motorneiro, e
sim um espectador, de pé numa ponte acima dos trilhos. (Desta vez não há desvio). O bonde
avança pelos trilhos, onde estão cinco operários. Mais uma vez, os freios não funcionam.
O bonde está prestes a atropelar os operários. Você se sente impotente para evitar o desastre –
até que nota, perto de você, na ponte, um homem corpulento. Você poderia empurrá-lo sobre
os trilhos, no caminho do bonde que se aproxima. (Você pensa na hipótese de pular sobre os
trilhos, mas se dá conta de que é muito leve para parar o bonde). Empurrar o homem pesado
sobre os trilhos seria a coisa certa a fazer? Muitas pessoas diriam: “É claro que não. Seria terri-
velmente errado empurrar o homem sobre os trilhos”.
Empurrar alguém de uma ponte para morte certa realmente parece ser uma coisa terrível,
mesmo que isso salvasse a vida de cinco inocentes. Entretanto, cria-se agora um quebra-cabeça
moral: por que o princípio que parece certo no primeiro caso – sacrificar uma vida para salvar
cinco – parece errado no segundo?

Atividades
1. Como a Filosofia colabora para a formação profissional no Direito, tendo em vista as fun-
ções da Filosofia do Direito?

2. As relações entre Direito e moral são muito próximas. Trace um paralelo das principais diferenças
entre esses dois termos. Após delimitar as diferenças, relacione como a moral pode favorecer o
cumprimento das normas jurídicas ou, ainda, tornar-se um impasse para o seu cumprimento.
32 Teoria do Direito

3. O imperativo categórico de Immanuel Kant se propõe a ser uma estratégia de resolução de


problemas morais. Descreva o núcleo do imperativo categórico e aplique-o para os seguintes
casos, relacionando suas respostas:

Caso 1: Marisa está endividada e precisa de dinheiro para pagar os seus débitos. No entan-
to, sabe que, caso peça dinheiro emprestado, não terá condição de pagar pelo empréstimo.
É correto pedir valores emprestados nessa condição?
Caso 2: Durante a Segunda Guerra Mundial, uma família esconde judeus em seu porão.
Um agente da SS bate à sua porta e questiona se havia pessoas em sua casa. Qual resposta
deverá ser dada pela família?

4. Com base na assertiva “tratar os iguais de modo igual e os desiguais na medida de suas desi-
gualdades”, discorra sobre o conceito de justiça em sentido amplo e estrito.

Referências
ABBOUD, G.; CARNIO, H. G.; OLIVEIRA, R. T. Introdução à teoria e à Filosofia do Direito. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2015.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. ed. São Paulo: Forense, 2017. (Coleção Fora de Série).

BITTAR, E. C. B; ALMEIDA, G. A. Curso de Filosofia do Direito. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

FERRAZ JR., T. S. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

JASPER, K. Introdução ao pensamento filosófico. 3. ed. Verlag, München: R. Piper & Co., 1965.

LIMA, N. Teoria dos valores jurídicos: o neokantismo e o pensamento de Gustav Radbruch. Recife: Fasa, 2009.

KANT, I. Metafísica dos costumes. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.

KELSEN, H. Teoria pura do Direito. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984.

MONTALVÃO, B. Resolução 75 do CNJ: descomplicando a Filosofia do Direito. Salvador: JusPodivm, 2017.

MONTORO, A. F. Estudos de Filosofia do Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

NUNES, R. Manual de Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2004.

OLIVEIRA, M. C. Noções básicas de Filosofia do Direito. São Paulo: Iglu, 2001.

SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
3
O Direito natural e o Direito positivo

Neste capítulo, estudaremos a evolução do pensamento jurídico compreendendo os aspectos


do Direito natural e do Direito positivo, bem como o pós-positivismo. Tais correntes são importan-
tes para compreendermos o fenômeno jurídico, visto que todas trouxeram importantes elementos
a serem observados. Divergências à parte, jusnaturalistas, positivistas e pós-positivistas têm em
comum seu apreço pela ciência do Direito, sendo inegável sua contribuição para o Direito que
hoje conhecemos.

3.1 Jusnaturalismo
Segundo Cleyson de Moraes Mello (2008), a palavra direito é polissêmica, ou seja, pode ter
mais de um sentido. Trata-se de um vocábulo com origem latina, formado pelo termo directus
(guiar, conduzir, dirigir), trazendo a ideia de que o Direito não é curvo, mas íntegro, justo, hon-
rado. Também representa o conjunto de normas escritas e vigentes em um determinado Estado,
chamadas de normas positivas.
Os vários sentidos da palavra direito nos conduzem para alguns questionamentos. Será que a
ideia de Direito estaria restrita às normas editadas pelo Poder Legislativo? Qual é o parâmetro uti-
lizado para se criar as leis? Seriam todas as leis escritas pelos parlamentares justas e adequadas para
regular as relações humanas? Essas questões assolaram diversos pensadores ao longo da história
do Direito. Vamos concentrar nossa análise no estudo de duas correntes que buscaram respostas a
essas perguntas: o jusnaturalismo e o juspositivismo.
De acordo com Dimitri Dimoulis (2013), o jusnaturalismo compreende que existe uma per-
feição de regras que são necessárias, adequadas e estáveis – advindas da natureza – para regular o
comportamento de todos os seres vivos. Essa perspectiva remonta ao Direito natural1, o qual invo-
ca uma norma superior (natural) para questionar a validade de uma norma positiva, a chamada lei
natural decorrente de uma ordem cósmica (céus e universo), após seu descobrimento pela razão,
estando ligada a uma força superior aos homens. O Direito natural invoca uma norma superior
para questionar a validade de uma norma positiva.
Adrian Sgarbi (2007) preconiza alguns importantes postulados do jusnaturalismo: duali-
dade, derivação, caráter universal, cognoscibilidade e limite à atividade do legislador. Seria um
fenômeno dualístico, pois haveria, na visão do citado jurista, dois diferentes direitos, um natural e
imutável e outro derivado da obra humana, positivado pelo legislador, em um dualismo natureza
x autoridade humana (SGARBI, 2007). Trata-se de fenômeno derivado, verdadeira maneira de
se atribuir ou não reconhecimento jurídico, de caráter universal, pois suas disposições afetariam

1 Para Adrian Sgarbi (2007), o Direito natural é uma forma de entender o fenômeno jurídico, uma construção, isto é,
um conjunto de princípios ético-sociais. Ou seja, o sentido primeiro de Direito natural é de uma postura epistemológica,
portanto ele não se encontra no mesmo patamar que o Direito elaborado pelo legislador.
34 Teoria do Direito

a todos, sem distinção. Sua cognoscibilidade se verifica pelo fato de que podem ser conhecidos
por todos pela razão. E por fim, impõe limite à atividade do legislador em razão de estar acima de
eventual atividade legislativa2 que poderia vir a violá-lo.
Desde a Antiguidade, os gregos já encaravam a discussão do Direito natural. A tragédia
grega Antígona (SÓFOCLES, 2005) foi um marco na explicação do fenômeno do Direito natural.
Na obra, Antígona vai contra um decreto do rei Tebas que impedia de enterrar o seu irmão. Por
entender que tal norma afrontava a lei dos deuses, deixa de cumpri-lo, realizando ela mesma o
enterro do irmão. Depreende-se que, na obra de Sófocles, a lei natural seria imutável, imortal, não
escrita e eterna e, portanto, superior à norma positiva.
Da obra Antígona extraem-se importantes concepções, dentre as quais a da supremacia da
ordem divina diante das leis dos homens e, por conseguinte, verdadeiro conflito entre ambas; tudo
isso em razão da reflexão interior da personagem Antígona, ao não querer se submeter ao decreto
do rei, que ela considerava injusto3.
Já nas obras de Aristóteles, o Direito natural é compreendido como uma força natural, mais
estritamente ligada à ideia de justo, enquanto em Sófocles o Direito estaria mais relacionado à ideia
de divindade. Aristóteles defende a justiça política em (i) natural, que estaria em todos os lugares,
independentemente da aceitação do indivíduo, e (ii) legal, que dependeria da determinação de
uma norma externa ao sujeito.
O estoicismo – doutrina desenvolvida por Zenão de Cítio (332-265 a.C.) e aperfeiçoada
pelo romano Marco Túlio Cícero (104-43 a.C.) – compreendia que havia um legislador supremo
que estabeleceria regras que os homens não teriam condições de mudar, apesar do seu livre-
-arbítrio. Assim, caberia ao ser humano ser indiferente às coisas que não poderia mudar, como a
dor e a pobreza, sujeitando-se à vontade do legislador universal. O justo estaria em sintonia com o
legislador supremo, e não com as leis convencionadas pelos homens.
O jusnaturalismo recebeu forte influência do cristianismo. Toda a concepção ocidental do
Direito está ligada à concepção cristã. Nos Evangelhos (textos que contam a vida de Jesus: ensina-
mentos, julgamento e morte), existe uma distinção forte entre a justiça humana e a justiça divina.
Como a justiça humana é transitória e ligada ao poder, não estaria nela a verdade, mas, sim, na lei
de Deus, que é absoluta, eterna e imutável.
A morte de Jesus foi um acontecimento de grande porte que provocou a expansão de sua
pregação, e a mensagem passada pelos apóstolos anunciava a justiça divina que viria com o retorno
de Jesus. Um dos propagadores mais relevantes no anúncio do evangelho foi Paulo de Tarso, que,
por meio de suas cartas, levou a mensagem para a Península Romana.

2 A expressão doutrina do Direito natural (ou com o vocábulo jusnaturalismo) tem denominado as teorias, qualquer que
seja a ideia que se faça de natural e de natureza, que sustentam a procedência ou superioridade de certos direitos, quando
são confrontados com os direitos produzidos pelo legislador (SGARBI, 2007).
3 Segundo Coulanges (2006), é possível perceber nos escritores antigos o quanto o homem era atormentado pelo
receio de que, depois da morte, os ritos não lhe fossem tributados. Essa era uma fonte de angustiantes inquietações.
Temia-se menos a morte do que a privação da sepultura, pois nela residia o repouso e a felicidade eterna.
O Direito natural e o Direito positivo 35

Paulo, em seus textos, trata sobre a dualidade das condutas boas e aprovadas por Deus em
oposição às ações destrutivas e contrárias à vontade divina, agindo com justiça aquele que está de
acordo com os preceitos de Deus. Paulo foi responsável pela expansão do pensamento cristão, que
foi implantado no Império Romano e, posteriormente, serviu de base para a concepção de ética do
Período Medieval na Europa.
Surge, desse modo, o jusnaturalismo teológico, que compreende o Direito natural como
algo decorrente da vontade divina. Essa segunda compreensão do jusnaturalismo parte da
influência do cristianismo, que aumentou muito após a queda do Império Romano, momento
em que toda a Europa ficou dividida. A Igreja católica foi uma das poucas instituições que
sobreviveram a esse momento de fragmentação, conferindo à região identidade e posterior
unificação política, com os reis.
Entre os pensadores católicos, dois autores fortaleceram a ideia de que a lei humana deveria
corresponder à lei divina: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Para Santo Agostinho, a justiça
consistia na essência do Direito e, sem ela, o Direito seria uma instituição transitória e humana,
iníqua e desprovida de sentido.
São Tomás de Aquino compreende que, embora Deus tenha criado o mundo, este é autôno-
mo. Ele entendia que existiam as causas primeiras e as causas segundas. As causas primeiras eram
as leis de origem divina que ordenavam o universo. Já as causas segundas eram os princípios dados
por Deus para o mundo e para os homens.
Desse modo, podemos identificar categorias de lei: a lei eterna, a lei natural e a lei humana.
Bittar e Almeida (2016) afirmam que a lei eterna é a vontade de Deus que rege todas as coisas; a lei
natural pode ser alcançada pelo ser humano por meio de sua razão ao analisar a natureza e suas
regras, e se estende aos homens e aos animais; a lei humana é convencional, relativa e deve procurar
refletir o conteúdo das leis eterna e natural.
Com o movimento de ascensão do Renascimento e do Iluminismo, os pensadores da época
buscaram afastar a Igreja das questões políticas, jurídicas e econômicas. A concepção do Direito
natural se modificou sobremaneira, a partir de meados do século XVI, procurando-se retirar o
enfoque divino da teoria filosófica sobre a justiça, deixando-a com um caráter laico, e substituindo-a
pela razão.
Veremos, agora, os conceitos de Direito natural defendidos por alguns dos mais importantes
pensadores do período.
Hugo Grócio, considerado o fundador do Direito natural na Era Moderna, parte das
premissas de que (i) o Direito é um princípio racional, cujo objetivo é exercer uma função
pacificadora à sociedade, e de que (ii) o Direito, sendo um princípio racional, tem validade por
si próprio, independentemente de qualquer outro fator. Verifica-se que, na doutrina de Grócio,
há reflexão do desejo de autonomia, passado da ordem divina, anteriormente defendida como
substrato do Direito, para a natureza humana como centro da teoria. Sua obra influenciou
grandemente a construção do Direito internacional (SGARBI, 2007).
36 Teoria do Direito

Samuel Pufendorf, discípulo de Grócio, buscou, em suas obras, conciliar correntes diver-
gentes por meio de métodos matemáticos, com o fito de construir um princípio imutável. Em
sua tese, a formação da ideia sobre o que é adequado ou não deve ser elaborada com base em al-
guns elementos: (i) à luz da natureza; (ii) à luz das leis; (iii) à luz da revelação divina. Nesse senti-
do, o Direito natural seria elemento fundamental para consolidar a paz social e legitimar a atua-
ção dos Estados, mediante a ação humana. Pufendorf, embora compreendesse Deus como autor do
Direito natural, defendia a necessidade de se ter um Estado laico para uma convivência harmônica
(apud BITTAR; ALMEIDA, 2016).
John Locke defendeu, em suas obras, que as ideias são inatas ao homem, estando na natureza
e podendo ser conhecidas pelo uso da razão. Seu conhecido estado de natureza, de absoluta paz, ne-
cessitava obrigatoriamente de um estado civil que pudesse pacificar os conflitos e proteger os Direitos
naturais. O estado civil não poderia, entretanto, desrespeitar os direitos naturais, sendo a resistência
um direito altamente defensável por Locke, principalmente quando as autoridades civis desrespeitas-
sem o Direito natural (BITTAR; ALMEIDA, 2016).
Jean-Jacques Rousseau, considerado um dos últimos autores adeptos integralmente ao Direito
natural e autor da famosa obra Do contrato social, defende que os homens nascem livres, construindo
toda a sua teoria em torno de um modelo que permita que a associação dos indivíduos os proteja,
garantindo que sejam ainda tão livres como quando não associados. Assim, em sua teoria, as leis
que governam o Estado só podem ser oriundas da vontade geral, razão pela qual, para o autor, a
democracia é a forma ideal de governo, embora afirme, em sua obra, que o que denomina democracia
verdadeira jamais existiu e jamais existirá (SGARBI, 2007).
Thomas Hobbes, filiado à linha do chamado jusnaturalismo racional, considerado um dos pri-
meiros autores a conduzir o Direito natural para o Direito positivo, desenvolveu, em sua obra Leviatã,
uma verdadeira teoria sobre o poder soberano. Com a formação do Estado moderno, a coação passou
a ser necessária para a pretensão da estabilização social. Assim, a existência do Estado era tida, em sua
obra, como um verdadeiro artifício humano, com o fito de aperfeiçoar a natureza (SGARBI, 2007).
Dessa forma, o Direito natural se tornou uma doutrina de reação ao jusnaturalismo teológico,
considerado por São Tomás de Aquino, e a razão passou a ser o norte para que se compreendessem
os direitos com base na natureza. Deus não era mais o centro que fundamentava os preceitos e regras
jurídicas, sendo o pensamento teocêntrico deixado de lado para que se assumisse um pensamento
antropocêntrico.
Esse modo de pensar sobre a fundamentação do Direito teve um imenso impacto na sociedade
dos séculos XVII e XVIII, pois com base no Direito natural foram construídos os argumentos para as
revoluções burguesas, como a Independência Americana e a Revolução Francesa: um direito natural
de se rebelar contra o poder arbitrário.

3.2 Juspositivismo
Como já analisamos na seção anterior, o jusnaturalismo prega um dualismo entre regras
imutáveis e com uma validade universal com relação ao Direito positivo e a um determinado
Estado. Em princípio, o Direito positivo pode possuir uma correlação com o Direito natural. O
O Direito natural e o Direito positivo 37

ponto de conflito se dá quando não existe a correspondência entre o Direito positivo e o natural,
momento em que surgem discussões acerca da validade. As normas positivas dependem não de
teses genéricas e universais, mas da vontade política de um determinado povo ou de seus chefes.
Dimitri Dimoulis apresenta um exemplo interessante sobre esse conflito:
Decidir se um processo será julgado pela primeira ou pela segunda Vara
Criminal de uma cidade e se o prazo de prescrição será de quatro ou de cinco
anos é objeto de normas de Direito positivo, que não entram em conflito com
o Direito natural, mas simplesmente o complementam. Os problemas come-
çam quando o Direito positivo pretende derrogar regras do Direito natural, por derrogar: abolir;
acabar com.
exemplo, proibindo a defesa do acusado. (2013, p. 89)

Conforme vimos, para os jusnaturalistas, quando essas duas espécies de Direito entram em
conflito, o Direito natural possui uma hierarquia anterior que deve prevalecer. No entanto, o jusna-
turalismo passou a ser questionado e deixado de lado por vários filósofos, em razão de a sociedade
sofrer contínuas mudanças, enquanto um Direito imutável pode não oferecer respostas para essas
transformações sociais. Apesar desse enfraquecimento teórico, vários autores continuam conside-
rando a existência de princípios de justiça (DIMOULIS, 2013).
Parte dessa mudança e de críticas ao jusnaturalismo veio com o positivismo jurídico. Este
recebeu grande influência do movimento chamado positivismo filosófico, que teve origem no pen-
samento de Augusto Comte. Tal pensamento busca dar um caráter científico à Filosofia, passando
o conhecimento científico pela experiência e trazendo um conceito mecanicista de natureza.
Buckingham (2010) afirma que, de acordo com Augusto Comte, o progresso huma-
no passaria por três estágios. O primeiro seria um estágio teológico, vivido pela Europa no
Período Medieval, no qual as justificativas para os eventos naturais eram de origem sobrena-
tural. Em um segundo estágio, está a metafísica, que busca responder aos diversos questiona-
mentos filosóficos por meio da especulação, abstração e racionalidade. Por fim, tem-se a era
positivista, a qual apresenta uma atitude científica ao buscar regularidades observáveis. Para o
autor, o positivismo ajudaria a desenvolver um novo momento de evolução e desenvolvimento
na ordem social.
O juspositivismo jurídico trouxe o pensamento cientificista para dentro do Direito e
desenvolveu-se principalmente no século XIX. Para o positivismo, o Direito diria respeito apenas
às normas impostas pelo Estado, sendo que as regras que não possuem imposição jurídica, normas
de conduta ou morais, não deveriam ser denominadas normas jurídicas.
Dimoulis apresenta algumas críticas lançadas pelo juspositivismo contra o jusnaturalismo,
entre elas a vagueza, o subjetivismo, o conservadorismo e a irrelevância (apud NADER, 2017, p.
92-93). A vagueza ocorre porque o jusnaturalismo atribui importância para determinadas regras
muito genéricas e amplas, por exemplo: tratar todos de forma igual. A regra por si não apresenta
nenhum comando que informe como deverá ser o tratamento, sendo necessário que se desenvolva
uma norma positiva para trazer mais aspectos acerca da igualdade entre os desiguais. O subjetivis-
mo é utilizado para pregar como naturais algumas condutas injustas, como a escravidão, a domi-
nação de colonizadores sobre colonizados e a submissão das mulheres, temas vistos como naturais
em determinados períodos históricos.
38 Teoria do Direito

O jusnaturalismo apresenta estabilidade por compreender que a natureza dificilmente se


transforma; assim, o Direito positivista busca adequar as decisões políticas à vontade da maioria,
enquanto o Direito natural permanece fixado na tradição.
Para o positivismo, as regras de Direito natural não possuem validade jurídica e, desse
modo, somente seriam respeitadas no ordenamento jurídico se passassem pelo legislador, a
fim de serem incorporadas no ordenamento jurídico. Essas normas, mesmo que tivessem um
conteúdo de Direito natural, precisavam da forma positiva para serem respeitadas e valerem
no ordenamento jurídico. Veja outras diferenças no Quadro 1
Quadro 1 – Diferenças entre Direito positivo e Direito natural

Direito positivo Direito natural


É válido dentro do ordenamento jurídico de um país. A validade é universal.

Sofre alterações de acordo com a população local. É imutável.

O Direito surge com base em um poder soberano. A fonte do Direito está na natureza e é conhecida pela razão.

Os comportamentos regulados são qualificados porque Os comportamentos regulados pelo Direito natural são bons
foram disciplinado pelo legislador. ou maus em si mesmo.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Bobbio (1965), em seus estudos sobre o positivismo jurídico, classifica-o como; (i) método
do estudo do Direito; (ii) uma teoria do Direito; (iii) uma ideologia do Direito. Como método, o
positivismo se refere ao modo como os juristas delimitam o objeto a ser pesquisado e, consequen-
temente, a função da norma, não havendo preocupação com seu conteúdo.
Se compreendido como teoria do Direito, Bobbio defende a existência de subteorias que
formulou sobre a natureza da norma jurídica, cujo foco também recai sobre a forma. E, por fim,
se considerado como uma ideologia do Direito, também intitulado pelo autor como positivismo
moral, busca analisar a função de ser do Direito e sua consequente necessidade de obediência.
De modo geral, há na corrente do positivismo premissas que marcam caracteristicamente a linha
de pensamento. “Como teses centrais, podem ser destacadas as seguintes: 1) o Direito é produto
da atividade humana; 2) o Direito impõe obrigações; 3) essas obrigações não são espécies de
deveres morais” (SGARBI, 2007, p. 716).
Assim, verificamos que, com a ascensão do positivismo, a compreensão do Direito passou a
se revestir de caráter científico estritamente jurídico, alheio às discussões morais, políticas e sociais,
configurando-se como um positivismo jurídico, uma lei que contém todo o Direito.
Vejamos algumas importantes escolas do movimento positivista apresentadas por
Nader (2017).
• Escola da Exegese – Surgida após o Código Civil Napoleônico, de 1804, foi um impor-
tante marco teórico, pois antes de seu advento não havia aplicação uniforme do Direito na
França. Seus teóricos defendiam que a única fonte do Direito seria o Código e que, nele,
estariam contidas todas as regras válidas, perfeitas e sem lacunas.
• Escola da Pandectística – Nascida na Alemanha, transformou a tradição do Direito
romano em estrutura formal de regras jurídicas de Direito Civil. Seu foco era revestir
O Direito natural e o Direito positivo 39

os textos de um formalismo técnico-racional, conferindo coerência lógica, com o fito de


antever o maior número de situações concretas possíveis, o que deu origem ao Código
Civil Alemão, em 1900.
• Escola Histórica do Direito – Também de origem alemã, contrapôs-se à Escola da
Pandectística, opondo-se à pretensão de codificação largamente defendida por aquela, ao
acreditar que a base para a construção da ciência jurídica seria a cultura da nação, de onde
seriam extraídas as normas jurídicas por meio de estudo do período histórico.
• Escola Analítica – Surgida na Inglaterra, considerava o Direito positivo como aquele que
emana diretamente dos soberanos, não havendo relação com a moralidade humana, mas
com a decisão normativa do soberano.
• Escola da Jurisprudência dos Conceitos e Escola da Jurisprudência dos Interesses –
A Escola da Jurisprudência dos Conceitos, capitaneada por Georg Friedrich Puchta, com-
preendia como importante deduzir da lógica os conceitos necessários ao conteúdo do
Direito. Já a Escola da Jurisprudência dos Interesses defendia que é preciso compreender
o Direito partindo da análise dos interesses da vida real, segundo o pensamento de Rudolf
von Ihering.
Todas essas escolas citadas se afastaram do jusnaturalismo e deram passagem ao desenvolvi-
mento do positivismo jurídico normativo, defendido por Hans Kelsen.
O normativismo de Kelsen foi um verdadeiro marco jurídico e filosófico para a teoria do
Direito. Sua obra Teoria pura do Direito é considerada um dos pilares do positivismo jurídico. Para
compreender o Direito como uma teoria pura, Kelsen retirou a influência de outras ciências, como
a sociologia, a antropologia e a psicologia. Sua obra procura delinear o Direito como uma ciência
desprovida de qualquer influência externa.
Assim, a pureza de sua teoria consiste em assegurar que o objeto analisado é apenas alvo
de análise do Direito. Kelsen compreende que não se pode estudar os conteúdos das normas, por
serem variados em cada localidade, e desse modo, foca seu estudo na estrutura formal da norma
jurídica, pois, apesar de existirem diferentes conteúdos, o formato normativo é comum. Assim, sua
teoria ficou conhecida como normativista, uma vez que analisa as normas decorrentes da relação
do Estado com seus cidadãos, ou seja, necessariamente positivas.
Depreende-se, então, que o conteúdo da norma, para Kelsen, não é mais relevante do que
sua forma, trabalhando-se com a ideia de validade ou invalidade, e não de verdadeiro ou falso,
bom ou mau – temas comuns em uma perspectiva moral. O requisito da validade é analisado por
ocasião da entrada regular da norma no ordenamento jurídico, razão pela qual esse ingresso deve
respeitar o processo legislativo e a hierarquia das normas jurídicas.
Essa hierarquia normativa é importante em sua teoria para alcançar resoluções nos casos
de conflitos de normas. Para o autor, a norma hipotética fundamental é a base das Constituições e
um conceito externo e superior ao Direito positivista, capaz de conferir validade ao ordenamento
jurídico como um todo. Em outras palavras, a norma fundamental é a constituição do ordena-
mento jurídico em um sentido lógico de estrutura jurídica, de modo bem diferente do conceito de
Constituição positivada.
40 Teoria do Direito

Outro fator bastante relevante na teoria do autor é a questão da interpretação das normas.
Para Kelsen, a interpretação é uma operação mental realizada no processo de aplicação do Direito,
a qual deve, obrigatoriamente, levar em consideração a hierarquia das normas jurídicas a serem
aplicadas no caso concreto.
Considerando-se que existem variadas normas em um mesmo ordenamento, pode-se afir-
mar que o aplicador do Direito teria certa discricionariedade no momento de aplicá-las. Para Kelsen
(1984), o Direito seria tal qual uma moldura, na qual existem variadas possibilidades de aplicação
de teses jurídicas a serem inseridas, podendo haver diversas soluções para um mesmo caso.
Se por interpretação se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do ob-
jeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a
fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o
conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo
assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única
solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que –
na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se
bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do
Direito – no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença é fundada na
lei, não significa que a lei representa – não significa que ela é a norma individual,
mas apenas, que uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro
da moldura da norma geral. (KELSEN, 1984, p. 467, grifos do autor)

A teoria desenvolvida por Kelsen, segundo Mascaro (2016), é tida como o auge do jusposi-
tivismo, voltada à operacionalização das normas jurídicas com um caráter universal, isso porque
volta o seu olhar para a forma da norma, e não para o seu conteúdo.

3.3 A superação do positivismo jurídico


Conforme verificamos na seção anterior, o positivismo teve grande importância para a com-
preensão do fenômeno jurídico como hoje conhecemos. Não menos importantes foram aqueles
que buscaram aperfeiçoar a análise dos autores positivistas clássicos, a exemplo de Hart, conhecido
como um positivista brando, e ainda aqueles que se opuseram a tal corrente, intitulados como pós-
-positivistas, dentre os quais se destaca Ronald Dworkin.
Foram muitos os autores que buscaram melhorar seus estudos ou criticar o positivismo,
alguns dos quais veremos a seguir.
A Primeira e a Segunda Guerra Mundial trouxeram várias atrocidades e ações injustas chan-
celadas pelos Estados. O positivismo jurídico foi acusado de ter permitido que leis injustas, porém
formalmente válidas, fossem obedecidas e causassem danos irreparáveis.
Uma dessas leis foi a desnacionalização dos judeus na Alemanha nazista, responsável por re-
tirar a cidadania dessa parcela da população, que não podia recorrer ao Poder Judiciário diante dos
desmandos e perseguições do período. O próprio Estado era uma máquina de morte que enviava
essas pessoas para campos de concentração.
De acordo com Lima (2009), Gustav Radbruch (1848-1949) viveu na Alemanha no período do
nazismo. No início de seus estudos, Radbruch seguiu o positivismo jurídico, porém se desiludiu com
O Direito natural e o Direito positivo 41

leis cruéis e injustas decorrentes da Segunda Guerra Mundial e, por esse motivo, tornou-se jusnatura-
lista. O autor enfrentou o que chamou de problema da validade da lei injusta, defendida em seu artigo
A injusta legal e o Direito supralegal, um estudo de caso do período nazista, no qual questiona como se
deve julgar, resultando na até hoje estudada Fórmula de Radbruch, cujo enunciado preconiza:
Diz-se que o conflito entre justiça e certeza do direito pode ser resolvido no sen-
tido de que o Direito positivo, assegurado pela promulgação e pela coação, tem
preeminência também quando é, no seu conteúdo, injusto e inadequado ao seu
objetivo, a menos que o conflito entre a lei positiva e a justiça alcance um grau
tal de intolerabilidade que a lei, enquanto lei injusta, deva ceder frente à justiça.
(SGARBI, 2007, p. 712, grifos do autor)

Lon Fuller, outro expoente do movimento, em sua obra A moral do Direito, trouxe impor-
tantes conceitos para o estudo da questão da moralidade e sua relação com o Direito, estabelecendo
premissas de como as normas jurídicas deveriam ser.
John Finnis, em sua icônica obra Lei natural e direitos naturais, elaborou uma teoria com a
base do Direito natural, inspirada nos estudos de São Tomás de Aquino e “a partir da ideia de ra-
zoabilidade prática, pretendendo demonstrar, por um lado, que o Direito é mais do que a lei, e que
os valores não podem ser considerados apenas no âmbito das subjetividades humanas” (SGARBI,
2007, p. 713).
Esse fenômeno de revisão, e mesmo de contraposição à corrente positivista, deu-se em razão
de as relações jurídicas serem mais complexas do que a análise puramente legal. Vamos compreender,
a seguir, alguns dos pontos dessa crítica ao positivismo.
Um dos erros apontados para o positivismo foi a separação entre o Direito e a moral, apesar
de Hans Kelsen conceber o Direito em uma perspectiva pura e de modo não valorativo. No entanto,
não é possível afastar os reflexos da ordem social, os costumes e sua influência da produção nor-
mativa, até porque tanto os julgadores como os legisladores sofrem a influência de suas convicções
na construção ou na aplicação da lei.
Já com relação à aplicação do Direito, a grande crítica está no fato de o positivismo repre-
sentar a realidade com a expectativa de oferecer soluções jurídicas prévias aos casos concretos,
utilizando argumentos lógicos para resolver problemas hipotéticos. Ocorre que o Direito é reflexo
do fenômeno social, não sendo confiável esse raciocínio de previsibilidade, tendo em vista que não
comporta os hard cases, por exemplo, que não têm fácil solução pelo sistema jurídico.
No tocante ao valor da norma jurídica, também houve severas críticas ao modelo positivista.
Isso porque o positivismo, embora não negue a possibilidade da existência de uma norma válida,
porém injusta, afirma que o caráter valorativo imputado a essa norma não é capaz de retirar sua
existência, defendendo uma independência entre os pressupostos de validade, valor e justiça.
Diante desse quadro, os juspositivistas defendem que há uma prevalência das regras jurídi-
cas sobre os princípios, sendo o Direito uma série de imperativos legislativos. Há de se ponderar,
contudo, que a ordem jurídica é composta ainda da influência de outras ordens (ideológicas, po-
líticas, morais etc.), não sendo mera composição de regras determinadas pelo Estado, como com-
preendem os positivistas.
42 Teoria do Direito

Em suma, podemos afirmar que a corrente formada pelos autores pós-positivistas busca
incluir como fontes do Direito outros elementos, como a ideia de justiça, normas morais, política,
entre outras, levando em conta a eficácia normativa e utilizando-a como norte para compreensão
dos hard cases.

Considerações finais
Ao longo deste capítulo, estudamos duas correntes de pensamento que buscam definir qual
seria a fundamentação e validade do Direito. O jusnaturalismo compreende que existem regras
extraídas da natureza e observáveis pela razão que têm o condão de regular as relações sociais.
Entre os autores referenciados, alguns defendem uma perspectiva teológica do jusnaturalismo.
A lei natural é abstrata, não escrita, imutável e associada à ideia de justiça.
No entanto, com o surgimento do Código Civil Napoleônico, tem origem o positivismo,
que compreende que o Direito está contido na lei escrita, e não em pressupostos transcendentais.
O juspositivismo vai se fortalecendo e recebendo novas configurações, porém é com Hans Kelsen
e seu positivismo normativista que temos um marco doutrinário. Concentrado no estudo da for-
ma da norma jurídica, Kelsen desenvolve a ideia de validade de acordo com o correto ingresso no
ordenamento jurídico. Todavia, após a Segunda Guerra Mundial, o juspositivismo é acusado de
chancelar atrocidades realizadas pelos atos estatais.
Desse modo, diversos autores contemporâneos trouxeram críticas e novas visões sobre o
positivismo. Em seus estudos, tratam de temas como a justiça, a influência da política sobre o Poder
Judiciário, a inclusão de valores morais e também novas formas de interpretação do Direito com
relação aos casos mais difíceis. Percebemos uma constante evolução nas formas de compreensão do
Direito, sempre com o objetivo de corresponder às diferentes necessidades e desafios da sociedade.

Ampliando seus conhecimentos


Sófocles (496-406 a.C.), lendariamente conhecido pela tragédia Antígona, apresenta-nos, em
seu texto, muito mais que uma tragédia familiar permeada por intrigas de poder na realeza grega.
Em vários trechos mais expressamente, e por toda a obra como pano de fundo, verifica-se a ques-
tão da justiça e do cumprimento ou descumprimento de uma lei considerada injusta, bem como a
consequente discussão sobre sua validade, sendo uma obra fundamental para se compreender com
mais clareza as correntes jurídicas estudadas neste capítulo e o embate entre o Direito natural e o
Direito positivo.
Antígona, a personagem da tragédia que dá nome ao livro, defende o Direito natural ao in-
vocar as regras transcendentais à norma, já Creonte, o rei, impõe o seu decreto à força, culminando
na morte da heroína. Vejamos o trecho do embate entre Creonte e Antígona, quando ele descobre
que ela desobedeceu à sua ordem:
O Direito natural e o Direito positivo 43

Antígona
(SÓFOCLES, 2005, p. 29-30)

CREONTE – Ó tu, que mantém os olhos fixos no chão, confessas ou negas, ter feito o que diz?
[...]
ANTÍGONA – Confesso que o fiz! Confesso-o claramente.
[...]
CREONTE – [...] Sabias que por uma proclamação eu havia proibido o que fizeste?
ANTÍGONA – Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?
CREONTE – E apesar disto tiveste a ousadia de desobedecer a essa determinação?
ANTÍGONA – Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou, a deusa que habita com as divin-
dades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu
édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que
nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eter-
nas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! – Tais decretos, eu, que não temo o poder de
homem algum, posso violar sem que por isso me venham punir os deuses! [...]

Atividades
1. O jusnaturalismo parte da premissa de que existem regras imutáveis e anteriores ao Direito
positivo, como vimos ao longo deste Capítulo, em que diferentes autores trouxeram contri-
buições sobre o jusnaturalismo. Apresente as diferenças entre as concepções de jusnaturalis-
mo de Aristóteles, Zenão de Cítio, Santo Agostinho e os autores modernos Hobbes e Locke.

2. O positivismo jurídico é uma corrente que data do século XIX e buscou superar o jusnatu-
ralismo. Apresente as principais diferenças entre o jusnaturalismo e o juspositivismo e, na
sequência, discorra sobre as críticas do positivismo ao jusnaturalismo.

3. Um dos autores que mais contribuiu para o juspositivismo foi Hans Kelsen, especialmente
com a obra Teoria pura do Direito. Apresente as principais características de sua teoria, com
ênfase no enfoque dado para a validade da norma jurídica.

4. A aplicação do positivismo aos moldes da teoria kelseniana demonstrou ser insuficiente


diante das demandas sociais, e desse modo surgiram autores que criticavam essa visão e
buscavam novas orientações para o Direito, denominados pós-positivistas. Descreva quais
são suas principais críticas.
44 Teoria do Direito

Referências
BITTAR, E. C. B; ALMEIDA, G. A. Curso de Filosofia do Direito. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

BOBBIO, N. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.

______. El problema del positivismo jurídico. 6. ed. Ciudad del México: BEFDP, 1999.

BUCKINGHAM, W. O livro da filosofia. São Paulo: Globo, 2010.

COULANGES, N. F. A cidade antiga. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: Edameris, 2006.
Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cidadeantiga.html>. Acesso em: 3 mar. 2018.

DIMOULIS, D. Manual de introdução ao estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

KELSEN, H. Teoria pura do Direito. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984.

LIMA, N. Teoria dos valores jurídicos: o neokantismo e o pensamento de Gustav Radbruch. Recife:
Fasa, 2009.

MASCARO, A. L. Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

MELLO, C. M. Introdução ao estudo do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2008.

NADER, P. Filosofia do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

SGARBI, A. Teoria do Direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

SÓFOCLES. Antígone. jan. 2005. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/antigone.pdf>.


Acesso em: 3 mar. 2018.
4
As relações jurídicas

Neste capítulo, iremos analisar importantes conceitos e figuras fundamentais para a com-
preensão do Direito. Estudaremos o que é o fato jurídico e como interpretá-lo, compreenderemos
quem são os sujeitos de direito, analisando a dicotomia direitos x deveres, para, por fim, estudar
o conceito de ilicitude e a correspondente resposta do sistema jurídico a tal fato: a sanção jurídica.

4.1 Sobre o Direito


No capítulo anterior, comentamos que o conceito de Direito possui vários significados, po-
dendo associá-lo à ideia de justiça como também à existência de um ordenamento jurídico que
dita as regras de Direito positivo. O objetivo central deste capítulo é aprofundar a relação entre
as pessoas e o Direito positivo, com o objetivo de esmiuçar os elementos que o configuram sob a
perspectiva individual.
Partimos da ideia de que o Direito é um conjunto de normas que regulam a vida em socie-
dade, mas que, para ser efetivo, precisa ser obedecido. É essencial que as normas sejam dotadas
da capacidade de constranger as pessoas a se adequarem aos comportamentos prescritos. Assim,
caso exista algum descumprimento, é necessária a aplicação de uma sanção, e isso exige um poder
constituído de acordo com o Estado democrático de direito.
Neste capítulo, vamos compreender o Direito sob dois enfoques: um objetivo e outro subje-
tivo. No enfoque objetivo, continuamos analisando o Direito como conjunto de regras que formam
o ordenamento jurídico. Já sob o enfoque subjetivo, analisamos o Direito dentro de uma relação
jurídica. Nesse caso, o Direito é uma prerrogativa que determinada pessoa detém sobre uma situa-
ção jurídica. Para que o Direito subjetivo exista, é preciso que haja correspondência com o Direito
objetivo. Desse modo, o Direito objetivo é a regra, e o subjetivo é a transposição da regra para a
vida das pessoas (SIQUEIRA, 2017, p. 47).
No Direito subjetivo estão contempladas também as permissões e as autorizações que são
dadas pelos órgãos competentes após o preenchimento dos requisitos legais previstos pelas normas
jurídicas. O processo de habilitação para dirigir é um exemplo de licença dada pelo poder público,
após ser comprovada a capacidade de determinada pessoa de dirigir um veículo automotor.
É importante ressaltar que, na perspectiva do Direito subjetivo, o enfoque principal é
a liberdade do agente em invocar a norma jurídica a seu favor, de modo que sua vontade fique
juridicamente protegida. Analisemos o exemplo da sucessão hereditária: após a morte de uma
pessoa, existe uma lista de herdeiros que receberão seus bens. No entanto, se algum deles não
quiser receber sua herança, poderá recusar. Verificamos, assim, que a pessoa pode ou não exercer
o direito de receber a herança, o que depende de sua vontade.
46 Teoria do Direito

Há, ainda, o Direito potestativo, que não admite contestações e ocorre com uma declaração
unilateral de vontade capaz de criar, modificar ou extinguir as relações jurídicas, de modo que a
outra parte da relação jurídica fique submetida à decisão da primeira. Um exemplo que ilustra essa
situação é o caso de um cliente que revoga a procuração de seu advogado. O advogado deverá se
submeter à decisão de seu cliente e desistir de sua atuação.
Figura 1 – Distinções entre o Direito objetivo e o Direito subjetivo

Direito objetivo Direito subjetivo

Art. 481 do Còdigo Civil:


“Pelo contrato de compra e venda, um
dos contratantes se obriga a transferir o
domínio de certa coisa, e o outro, a
pagar-lhe certo preço em dinheiro.”

Prevê o contrato
de compra e venda
Compradora Vendedor

Envolve a faculdade de uma pessoa em exercer


determinado direito por meio de relações jurídi-
cas, permissões, autorizações.

Fonte: Adaptada de Siqueira, 2017, p. 47.

4.2 Sujeitos de direito


Como já vimos, o Direito tem como principal missão regular os comportamentos, e as pes-
soas que se submetem a esses condicionamentos são chamadas de sujeitos de direito.
Figura 2 – Conceito de sujeitos de direito

Sujeitos de direito
São aqueles considerados aptos para exercer direitos e obrigações. Podem
ser pessoas físicas, jurídicas (direito público e privado) ou entes despersona-
lizados (espólio e massa falida).

Fonte: Adaptada de Dimoulis, 2013, p. 235.

Podemos definir sujeitos de direito como aqueles considerados aptos a serem titulares de
direitos (sujeitos ativos) e obrigações (sujeitos passivos), de acordo com as determinações do or-
denamento jurídico. É importante ressaltar que nem todas as pessoas foram reconhecidas como
sujeitos de direito ao longo da história; no Brasil, a escravidão foi amparada legalmente até 1888,
fazendo com que um grupo significativo de pessoas fosse considerado judicialmente como objeto.
As relações jurídicas 47

Mas quem são os sujeitos de direito? Há variadas formas de classificá-los, e nós vamos estu-
dar três: pessoas físicas, pessoas jurídicas e entes despersonalizados.
1. Pessoas físicas: todos os seres humanos são considerados pessoas de direito, sendo a per-
sonalidade iniciada no nascimento com vida. As pessoas, antes do nascimento, não são
consideradas sujeitos de direito, mas possuem direitos patrimoniais assegurados e serão
representados pelos genitores. A morte é o momento em que se encerra a personalidade,
apesar de o Direito prever uma série de medidas para preservar a honra, os restos mortais
e distribuir os bens da pessoa falecida (DIMOULIS, 2013).
2. Pessoas jurídicas: são consideradas entes inanimados, não possuem a qualidade de serem
humanos, mas representam uma unidade organizada de pessoas físicas ou de patrimônios
com finalidades específicas e proteção jurídica. Podemos dividir as pessoas jurídicas entre
aquelas que são de Direito público e as de Direito privado. Entre as pessoas jurídicas de
Direito privado, podemos considerar as associações, sociedades, fundações, organizações
religiosas e partidos políticos. Já as pessoas jurídicas de Direito público podem ser divi-
didas entre as de Direito interno (municípios, estados e União) e as de Direito externo,
constituídas de outros países e organizações internacionais (DIMOULIS, 2013).
3. Entes despersonalizados: em alguns casos, temos uma união de pessoas e patrimônios
que não possuem personalidade jurídica, mas que podem proteger seus interesses des-
de que haja previsão no ordenamento jurídico. Entre os exemplos, estão a massa falida
(conjunto de bens que, após a falência de uma empresa, devem ser vendidos para pagar
credores) e o espólio (conjunto de bens de uma pessoa falecida antes da partilha para os
herdeiros) (DIMOULIS, 2013).
Um elemento importante para compreendermos os sujeitos de direito é a personalidade
jurídica. Podemos conceituá-la como a aptidão de adquirir direitos e contrair deveres e obrigações;
trata-se de um atributo jurídico que permite aos indivíduos serem titulares de direitos e contraírem
deveres. A capacidade, por sua vez, é um elemento da personalidade. O sujeito terá capacidade
quando reunir condições de defender seus interesses. Não reunindo os requisitos necessários para
tanto, no caso do ordenamento jurídico brasileiro, constante no Código Civil, será considerado
incapaz, podendo essa incapacidade ser relativa ou absoluta1.
Conforme vimos no Capítulo 1 desta obra, o Direito está em constante evolução e acom-
panha os fenômenos sociais, sendo certo que sempre surgem novas questões a serem enfrenta-
das pela ciência jurídica. No tocante à questão da personalidade e no que tange à delimitação
de quem seria sujeito de direito, uma questão polêmica tem sido levantada pela doutrina e
pela jurisprudência: seria o nascituro, ou seja, aquele que ainda não nasceu, mas está em fase
embrionária, sujeito de direito?

1 Para saber mais sobre a questão da capacidade civil no ordenamento jurídico brasileiro, veja o artigo 2º e seguintes
do Código Civil brasileiro.
48 Teoria do Direito

Atualmente, o ordenamento jurídico brasileiro alcança a proteção legal para os nascituros se


nascerem com vida, protegendo também a prole eventual (filhos ainda não concebidos). Todavia,
diante dos debates no campo da bioética quanto a temas como o aborto, levantam-se novas ques-
tões a serem enfrentadas pelo Direito e pelos tribunais. A falta de independência e de autonomia
do nascituro no corpo materno e o debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos fazem com que
alguns defendam o aborto e neguem o direito à vida intrauterina.
Permanece no ordenamento jurídico a punição no âmbito penal daqueles que cometem o
aborto, sendo que existem excludentes que envolvem os casos de estupro e se não há meios para
salvar a vida da mãe, além de, recentemente, o acréscimo de um novo excludente; o aborto de fetos
anencéfalos por meio da arguição de descumprimento do preceito fundamental n. 54, julgada em
2012. Existem várias iniciativas no Poder Legislativo e no Judiciário com a tendência de descrimi-
nalizar o aborto. Caso isso aconteça, o ordenamento no jurídico vai possuir normas para proteger
o patrimônio de quem nasce com vida, mas não terá medidas para garantir o nascimento com vida.

4.3 A relação jurídica


Agora, vamos nos concentrar na relação jurídica, também chamada de relação de direito.
Inicialmente, é importante fazermos uma breve distinção entre fato e ato jurídico, para compreen-
dermos melhor o tema.
O fato jurídico se refere à ocorrência de uma situação à qual se atribui consequências no
mundo do Direito. Ou seja, “fato jurídico é todo e qualquer fato que, na vida social, venha a corres-
ponder por uma ou mais normas de direito” (REALE, 2002, p. 201). Tudo o que interessa ao Direito
é constituído como um fato jurídico, pois são ocorrências da vida que recebem uma qualificação
jurídica e podem ter origem, finalidade e natureza diversas.
Os chamados fatos jurídicos da natureza seriam aqueles que derivariam dos eventos natu-
rais, como o nascimento, a morte, o decurso de tempo ou um desastre natural. Veja que os eventos
citados, embora de origem natural, geram efeitos no mundo jurídico, pois criam direitos aos que
nascem, transmitem direitos aos herdeiros dos que morrem e fazem surgirem, recaírem e prescre-
verem direitos.
Além dos fatos da natureza, há os atos de vontade humana, em que uma pessoa deliberada-
mente realiza um ato que terá consequências jurídicas, como escrever um testamento. Existem casos
em que a pessoa não age, e sua omissão também tem consequências no mundo jurídico, por exem-
plo, o indivíduo que não comparece nas eleições e não justifica sua ausência, devendo pagar uma
multa em razão de sua inércia. Podemos também incluir as pessoas que agem de maneira involuntária
e, em razão disso, seus atos geram consequências jurídicas. Consideremos aqueles que cometem um
acidente de trânsito, porém sem intenção, levando a óbito uma pessoa (DIMOULIS, 2013).
Outro conceito relevante em nosso estudo é o de ato jurídico, que seria uma subcategoria
dos fatos jurídicos. A principal diferença entre os dois é que os atos jurídicos estão relacionados
com a ação humana, seja ela voluntária ou não. Podem ser divididos entre: (i) atos jurídicos,
“atos praticados com a intenção de produzir efeito jurídico certo” (TELLES JR., 2001, p. 284); e
As relações jurídicas 49

(ii) fatos jurídicos com efeitos involuntários, “praticados com a intenção de produzir certos efei-
tos jurídicos, e que produzem, além desse efeito, algum efeito jurídico não procurado” (TELLES
JR., 2001, p. 284).
Com esse raciocínio, podemos traçar uma importante diferenciação entre ato jurídico e fato
jurídico, uma vez que aquele é a espécie do qual este é gênero. Assim, há de se ponderar que existem
atos jurídicos que podem se revestir de caráter lícito e ilícito, conforme defendem Miranda (2013)
e Reale (2002). Isso quer dizer que os atos jurídicos podem estar de acordo com o ordenamento
jurídico ou ser capazes de violá-lo.
Ainda sobre os atos jurídicos, podemos classificá-los pelo número de pessoas que atuam
para concluí-lo. Podemos chamar de atos unilaterais aqueles que dependem de uma única pessoa
(a exemplo do testamento) e atos bilaterais, multilaterais ou coletivos os que envolvem a atuação de
duas ou mais pessoas, como em um contrato de compra e venda ou na constituição de um sindi-
cato. Podemos classificar os atos jurídicos como atos de Direito privado entre pessoas ou organi-
zações privadas ou atos de Direito público, quando uma das partes é o Estado (DIMOULIS, 2013).
Figura 3 – Conceitos de fatos jurídicos e atos jurídicos

Fatos jurídicos:

Todas as situações que interessam ao Direito. Sua origem pode ser natural
ou de atos de vontade humana.

Atos jurídicos:

Relacionados às ações humanas, sejam elas voluntárias ou não. Podem ser


lícitos ou não, unilaterais ou plurilaterais.

Fonte: Adaptada de Dimoulis, 2013, p. 227-229.

É importante ressaltar que os atos jurídicos deverão preencher alguns requisitos para que
sejam válidos, pois se existirem defeitos a relação jurídica poderá ser considerada nula ou anulável.
Entre esses elementos, podemos incluir que o sujeito deve ter capacidade para o exercício do direi-
to (crianças não poderão realizar relações jurídicas), o objeto deverá ser lícito (o tráfico de drogas,
por exemplo, é a venda de um objeto ilícito) e a relação jurídica deverá respeitar os ditames do
ordenamento jurídico, obedecendo à forma prescrita pela lei.
Quando os fatos jurídicos se adéquam às normas jurídicas, garantindo direitos e deveres para
os sujeitos envolvidos, há uma relação jurídica. As relações jurídicas são as interações entre fatos so-
ciais e normas jurídicas. O ser humano é um ser social e depende da convivência com os demais para
sanar suas carências e satisfazer suas necessidades. Em meio às relações sociais, existem aquelas que
estão de acordo com os valores sociais e são adequadas ao meio e outras que são negativas e afetam o
interesse social e, desse modo, terminam sendo combatidas pelo Estado (NADER, 2014).
As interações entre as pessoas e os relacionamentos são essenciais para a sobrevivência do
ser humano, e o Direito regula todas essas interações e trocas, a fim de resolver e pacificar as con-
sequências e as falhas entre essas interações. Clovis Bevilaqua (2001) denomina isso como relação
50 Teoria do Direito

de direito e a conceitua como um laço garantido pela ordem jurídica que permite que determinada
pessoa atue sobre um objeto ou, ainda, que ligue pessoas entre si por meio de direitos que impõem
deveres diretos às outras pessoas.
Dimoulis considera que existem graus de intensidade nas relações jurídicas e os classifica
com base nas consequências (DIMOULIS, 2013):
• Situações com pouquíssimas consequências jurídicas: quando uma pessoa obedece a
uma norma jurídica dentro das margens da lei, há uma juridicidade de baixíssima inten-
sidade, pois não haveria outras consequências jurídicas. Podemos considerar nesse grau
uma pessoa que entra em uma loja e sai dela sem comprar nenhum item: não realizou
nenhum ato ilícito, porém, não comprou nenhum bem.
• Situações que podem gerar consequências jurídicas: em alguns casos, as consequências
poderiam ser resolvidas pelo Direito, porém não são levadas a essa instância. Exemplo:
uma pessoa entra em uma loja e furta determinado bem, no entanto não é descoberta.
Em tese, o furto geraria consequências jurídicas no âmbito penal e cível (indenização em
razão do furto), porém é necessário que alguém acione os mecanismos de aplicação.
• Situações que geram conflito sobre as consequências jurídicas: diversas situações po-
dem ter consequências jurídicas, por exemplo, uma pessoa que se machuca dentro de
uma loja poderá pedir uma indenização para a empresa sem acioná-la na Justiça. Isso
significa que as consequências jurídicas podem gerar conflitos no meio social e serem
resolvidas antes mesmo de serem levadas ao Poder Judiciário.
• Situações que geram consequências de modo voluntário: existem casos em que os
indivíduos, de modo livre, modificam o mundo jurídico, a exemplo da pessoa que
compra um bem em determinada loja, assumindo os direitos e as obrigações decor-
rentes da relação jurídica.
• Situações que geram consequências jurídicas mediante imposição estatal: nesse caso,
há a ação afirmativa do Estado intervindo nas relações humanas, por exemplo: quando
uma pessoa furta um bem em uma loja e sofre as consequências processuais penais, com
a prisão e a perda da liberdade.
As relações jurídicas dependem da ocorrência de eventos sociais ou naturais para receberem
um tratamento jurídico específico, por meio da aplicação do Direito avaliando-se a necessidade
de impor sanções, caso haja o descumprimento do preceito legal ou, ainda, para servir como um
modelo a fim de induzir o comportamento ou evitar determinadas ações.
É importante ressaltar que as relações jurídicas possuem três elementos: o sujeito (ativo e
passivo), o vínculo de atributividade e o objeto.
1. Sujeitos: uma característica importante das relações jurídicas é a alteridade; isso quer
dizer que a relação ocorre entre seres humanos que possuem situações jurídicas distintas.
Chamamos de sujeito ativo aquele que detém um direito subjetivo e que pode exigir de
outro o cumprimento do dever. Aquele que deve cumprir o dever é chamado de sujeito
passivo. Apesar de haver essa divisão didática, na prática essa definição raramente é clara,
em razão da reciprocidade dos direitos e das obrigações.
As relações jurídicas 51

2. Vínculo de atributividade: esse vínculo pode ser constituído pela lei ou, ainda, por meio
de um contrato. É em razão dele que um dos participantes da relação jurídica detém o
poder de pretender ou exigir algo de outrem. Podemos pensar nele como um laço que liga
as pessoas e confere poderes.
3. Objeto: o vínculo criado na relação jurídica ocorre em função do objeto, sendo esse o
fim específico da interação entre os sujeitos. É sobre o objeto que a exigência do sujei-
to ativo recai, sobre a correspondência do sujeito passivo. Consideramos como objeto
tudo aquilo que pode ser exigido: objetos materiais (bens), objetos imateriais (serviços),
seres vivos (animais domésticos) e até mesmo a pessoa, quando pensamos no contrato
de trabalho (DIMOULIS, 2013).
As relações jurídicas poderão ser de diferentes disciplinas: penal, civil, trabalhista, comer-
cial. Envolvem objetos distintos, como a prestação de serviços e objetos materiais ou imateriais.
Podem englobar um único sujeito ou várias pessoas, incluindo instituições, empresas e o próprio
Estado. É importante ressaltar que todas as relações jurídicas gozam de proteção do Estado e, nos
casos de violação, o Poder Judiciário poderá aplicar sanções. A ação judicial é um direito que todos
têm para fazer cessar a violação de um direito, desde que exista o legítimo interesse para sua pro-
posição (BETIOLI, 2015).
Figura 4 – Relação jurídica explicada

Comprador: sujeito que, mediante obri- Vendedor: sujeito que, mediante a en-
gação de realizar o pagamento, tem o trega de um valor do comprador, tem o
direito a um bem. dever de entregar o bem.

Objeto: o vínculo criado entre


os sujeitos recai sobre o objeto
Vínculo: os sujeitos possuem material, um ser vivo ou pessoa
um contrato de compra e venda, ou uma prestação de serviço.
que pode ser verbal, interli- Caso haja má prestação ou falha
gando-os e conferindo poderes contratual, as partes poderão
dentro da relação jurídica. resolver isso entre si ou recor-
rendo ao Poder Judiciário.

Fonte: Adaptada de Dimoulis, 2013, p. 234-235.

4.4 Direitos e deveres


Antes de analisarmos os direitos dentro da relação jurídica, é importante considerarmos que
existem diversos direitos subjetivos garantidos na legislação brasileira. Todavia, existem direitos
cuja importância é ainda maior: os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição
Federal de 1988, os quais vinculam o próprio Estado, para além dos demais particulares.
52 Teoria do Direito

A Constituição é o documento jurídico mais importante de um país, e os direitos previstos


em seu texto detêm o mais elevado grau da hierarquia das fontes do Direito, sendo o seu conteúdo
protegido para não sofrer restrições pelo legislador ordinário ou pelos particulares (DIMOULIS,
2013). Esses direitos são essenciais para limitar o poder do Estado e garantir a liberdade individual.
Dimoulis classifica os direitos fundamentais em quatro categorias principais (DIMOULIS, 2013):
1. Direitos de resistência à intervenção estatal: são aqueles que protegem a liberdade das
pessoas contra a atuação desmedida do Estado. Também são chamados de direitos negati-
vos. Um exemplo é a liberdade de associação, a qual possui ampla liberdade, mas poderá
sofrer restrições se colaborar com fins ilícitos.
2. Direitos sociais: permitem que as pessoas exijam do Estado prestações positivas em
prol de melhores condições de vida. Os direitos a saúde, educação, trabalho e moradia
são exemplos.
3. Direitos políticos: garantem a participação dos cidadãos para influenciar e fiscalizar a
atuação política do Estado, como o direito ao voto e o direito de ser eleito.
4. Direitos coletivos: esses direitos têm titularidade de um grupo de pessoas cujo número
pode ser indeterminado, a exemplo da proteção ao meio ambiente, que engloba as pre-
sentes e as futuras gerações.
É importante ressaltar que esses direitos envolvem um dever geral de proteção por parte do
Estado (dimensão vertical), bem como dos particulares (dimensão horizontal). Desse modo, a pre-
visão do direito de propriedade exige tanto que o Poder Público respeite a propriedade individual
quanto que os demais pares da sociedade não a violem. Esses direitos previstos no texto consti-
tucional podem não trazer efeitos práticos, caso não haja mecanismos para sua implementação,
especialmente no caso dos direitos sociais.
Como vimos, a previsão de direitos considerados fundamentais implica em deveres que preci-
sam ser observados pelo Estado e pelas pessoas. Além dos deveres impostos pelo ordenamento jurídico,
existem deveres assumidos de maneira livre pelas pessoas. Reconhecemos, assim, que existe um dualis-
mo inseparável: de um lado um direito-poder e de outro uma obrigação ou um dever.
O dever jurídico é considerado como um comportamento determinado pelas normas jurí-
dicas, delimitado de acordo com um recorte histórico. Sgarbi resume o conceito da seguinte ma-
neira: “tudo aquilo que é juridicamente obrigatório é sinônimo de dever jurídico” (SGARBI, 2007,
p. 225). Assim, verifica-se que existe uma correspondência entre o dever e o conteúdo da norma
jurídica (REALE, 2002) e que essa correspondência exige que determinada pessoa assuma uma
conduta em favor de alguém.
Em nossos capítulos anteriores, verificamos a diferença entre os deveres decorrentes do Direito
daqueles decorrentes da moral. Nos primeiros, há a imposição de uma penalização no caso de descum-
primento, o que não ocorre com as regras morais. De um lado, está a heteronomia do Direito (uma
norma imposta de fora e que dita um comportamento) e de outro, a autonomia da moral (que será
internalizada pelo sujeito e dependerá de sua vontade para a adequação do comportamento à moral).
As relações jurídicas 53

Faz-se necessário distinguir o conceito de dever do conceito de ônus. O ônus é a necessidade


de uma pessoa se comportar de determinado modo para a realização de um interesse pessoal.
Assim, se um indivíduo ajuíza uma ação no Poder Judiciário, deverá provar o seu direito e, caso
não o realize, terá consequências jurídicas desfavoráveis no processo (BETIOLI, 2015).
Já mencionamos que as relações jurídicas podem surgir ou em decorrência da vontade das
partes ou por uma imposição legal, mas qual é o momento em que ocorre a extinção da relação
jurídica? A extinção do dever jurídico decorre do cumprimento do dever, todavia poderá ser deter-
minada pelo Poder Judiciário via decisão judicial, pela substituição por outro dever, pela renúncia
do sujeito ativo, por morte ou, ainda, pela prescrição ou decadência de um direito (BETIOLI, 2015).

4.5 Ilicitude e sanção


As normas jurídicas são elaboradas para que sejam seguidas pela sociedade e para que o Direito
não se torne apenas expectativa ou letras mortas. A necessidade do cumprimento está na própria na-
tureza da norma, pois não há razão para se ter norma se não for para ser cumprida. A norma existe
para tutelar situação fática e guiar o comportamento dos sujeitos.
No entanto, existem atos que violam a norma jurídica. A ilicitude implica quebra de um
dever jurídico, devendo o seu causador reparar a infração causada. A configuração de um ilícito
exige os seguintes elementos: conduta, antijuridicidade, imputabilidade e culpa (NADER, 2014).
• A conduta envolve a falha humana ou o ato intencional.
• A antijuridicidade significa que o ato está em oposição completa ao ordenamento jurídico.
• A imputabilidade demonstra que o agente é o responsável pelo ato realizado.
• A culpa é o elemento subjetivo que revela a intenção do agente ao realizar o ato. Quando
uma pessoa age com imperícia, imprudência ou negligência, demonstra que não tomou
todas as medidas ao seu alcance, ocorrendo o ilícito (apesar de conscientemente não de-
sejar aquele resultado).
As consequências de realizar atos ilícitos implicam a reparação dos danos e a sujeição às
sanções. Todavia, o direito trata o ilícito em categorias diferentes: ilícito civil (descumprimento
de um contrato), ilícito penal (cometimento de um crime ou contravenção penal) e ilícito admi-
nistrativo (ocorre no âmbito do Direito Público, podendo ser disciplinar – servidores públicos –,
policial – que envolve a restrição da liberdade – e fiscal), podendo haver concorrência nas sanções
das diferentes disciplinas do Direito Civil, Penal e Administrativo (NADER, 2014).
Em relação às sanções, podemos mencionar que o direito e a coação são termos que cami-
nham juntos. Coação jurídica não se confunde, entretanto, com coação revestida de violência física
ou psicológica, uma vez que violência não reveste de legitimidade os fatos jurídicos – pelo contrá-
rio, coação violenta é motivo de nulidade jurídica. “Como as normas jurídicas visam a preservar o
que há de essencial na convivência humana, elas não podem ficar à mercê da simples boa vontade,
da adesão espontânea dos obrigados. É necessário prever-se a possibilidade do seu cumprimento
obrigatório” (REALE, 2002, p. 71).
54 Teoria do Direito

Entretanto, há de se ponderar que as normas jurídicas se revestem de coercitibilidade quan-


do o Direito prevê medidas jurídicas com a finalidade de dar efetividade à norma, podendo ser
tais medidas preventivas, compensatórias ou repressivas, categoria na qual se inserem as sanções
jurídicas a serem aplicadas em caso de não cumprimento.
É pelo descumprimento da norma que aparece a figura da sanção2. Por meio dela, exige-se
a realização do preceito normativo. Para Reale, a sanção é “todo e qualquer processo de garantia
daquilo que se determina em uma regra” (2002, p. 72). Para isso, as normas jurídicas “autorizam o
emprego de meios competentes para forçar seus violadores (violadores efetivos ou violadores pro-
váveis) a cumprir o que elas mandam, ou a reparar o mal causado pela violação, ou a se submeter
às penas legais” (TELLES JR., 2001, p. 75).
A sanção jurídica, ao contrário da sanção de ordem moral, que perpassa uma censura social,
é organizada por meio das leis e das consequências jurídicas a que o indivíduo que não cumpre a
norma está sujeito.
Tudo no direito obedece a esse princípio da sanção, organizada de forma
predeterminada. A existência mesma do Poder Judiciário, como um dos três
poderes fundamentais do Estado, dá-se em razão da predeterminação da san-
ção jurídica. Um homem lesado em seus direitos sabe de antemão que pode
recorrer à Justiça, a fim de que as relações sejam objetivamente apreciadas e o
equilíbrio seja restabelecido. (REALE, 2002, p. 75)

Conforme Kelsen (1998, p. 72), “as sanções são estabelecidas pela ordem jurídica com o fim
de ocasionar certa conduta humana que o legislador considera desejável”. Percebe-se que se evita
o arbítrio das pessoas e a tentativa de vingança por um mal cometido, revelando o Direito como
ferramenta importante para a pacificação social.
No começo da história das relações jurídicas, as sanções criminais e civis eram confundidas,
sendo as sanções precipuamente relacionadas à punição criminal, com reflexos sobre a vida e a
liberdade dos indivíduos. Com o advento da sanção civil, as punições recaíram também sobre a
propriedade dos homens3.
Assim, “a sanção é tornada uma consequência da conduta nociva à sociedade e que, de acor-
do com as intenções da ordem jurídica, tem de ser evitada. Essa conduta é designada pelo termo
delito” (KELSEN, 1998, p. 73). Dessa forma, é necessário ponderar que só haverá sanção quando
houver um delito prévio, ou seja, o delito é condição da sanção. A regra geral é a obediência ao
exarar: registrar por comportamento exarado na norma jurídica, e a sanção se volta aos comportamentos que fogem a
escrito; lavrar.
essa lógica.

2 Veja que, nesse item, ao tratarmos da relação entre ilicitude e sanção, estamos tratando da sanção que se refere a
gravame ou ônus consequente da violação da norma jurídica, e não da palavra sanção empregada juridicamente quando
relacionada à aprovação formal ou confirmação solene de uma decisão exarada por alguns dos três Poderes.
3 Para saber mais sobre o tema, leia Kelsen (1998).
As relações jurídicas 55

Considerações finais
Neste capítulo, estudamos como o Direito positivo se insere na vida das pessoas, por meio
das relações jurídicas. Estas têm por elementos os sujeitos (ativo e passivo), o vínculo atributivo e o
objeto. Os sujeitos deverão ser capazes de exercer direitos e cumprir os deveres advindos do víncu-
lo para com o objeto. Caso haja alguma falha na prestação da relação jurídica, há o Poder Judiciário
como instância para resolver os conflitos cujas partes foram incapazes de pôr um término. Desse
modo, as ilicitudes e os descumprimentos realizados pelos sujeitos são alvos da sanção jurídica,
que impõe comportamentos e busca reequilibrar a consonância perdida.

Ampliando seus conhecimentos


Traçando-se um paralelo com o capítulo anterior e a dicotomia do jusnaturalismo e o jus-
positivismo e este capítulo, em que, entre outros aspectos, verificamos o conceito de sanção, é im-
portante compreender a teoria de Norberto Bobbio sobre o tema. Verifica-se em sua obra que, ao
tratar do assunto, o autor busca discutir a eficácia da norma, e não somente sua validade no sentido
positivista do termo. Leia um trecho:

Teoria do ordenamento jurídico


(BOBBIO, 1995, p. 28-29)

Voltemos, agora, à definição de Direito a que chegamos no livro precedente. Ali determinamos
a norma jurídica através da sanção, e a sanção jurídica através dos aspectos de exterioridade
e de institucionalização, donde a definição de norma jurídica como aquela norma “cuja exe-
cução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada”. Essa definição é uma confir-
mação de tudo quanto sublinhamos nos dois primeiros parágrafos, isto é, a necessidade em
que se acha o teórico geral do Direito, em certo ponto de sua pesquisa, de deixar a norma em
particular pelo ordenamento. Se sanção jurídica é só a institucionalizada, isso significa que,
para que haja Direito, é necessário que haja, grande ou pequena, uma organização, isto é, um
completo sistema normativo. Definir o Direito através da noção de sanção organizada significa
procurar o caráter distintivo do Direito não em um elemento da norma, mas em um complexo
orgânico de normas. Em outros termos, poder-se-á dizer que a pesquisa por nós realizada
na Teoria Delia Norma Giuridica é uma prova do caminho obrigatório que o teórico geral do
Direito percorre da parte ao todo, isto é, do fato de que, mesmo partindo da norma, chega-se,
quando se quer entender o fenômeno do Direito, ao ordenamento.
[...]

Atividades
1. Sobre as situações narradas a seguir, descreva o que elas têm em comum no que tange
aos efeitos jurídicos: (i) Maria faleceu e deixou bens a seus herdeiros José e João; (ii)
Joana deu à luz Ana; (iii) Pedro deixou de prescrever seu direito ao pleito de reparação
civil em favor de Paulo.
56 Teoria do Direito

2. Analise os conceitos de capacidade e personalidade e pondere sobre a possibilidade de apli-


cação desses conceitos à figura do nascituro.

3. Considerando o disposto no caput do artigo 121 do Código Penal brasileiro: “Matar alguém:
Pena – reclusão, de seis a vinte anos”, e o estudado neste capítulo, pondere sobre o direito e o
dever jurídico contido nesse dispositivo sob a ótica das relações sociais horizontais e verticais.

4. Conceitue o que são os direitos públicos subjetivos por meio de exemplos, empregando o
texto constitucional e justificando a razão de sua superioridade.

Referências
BETIOLI, A. B. Introdução ao Direito: lições de propedêutica jurídica tridimensional. 14. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015.

BEVILAQUA, C. Teoria geral do Direito Civil. Campinas: Red Livros, 2001.

BOBBIO, N. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.

DIMOULIS, D. Manual de introdução ao estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

KELSEN, H. Teoria geral do Direito e do Estado. Trad. Luis Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: M. Fontes, 1998.

MIRANDA, P. Tratado de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

NADER, P. Introdução ao estudo do Direito. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

REALE, M. Lições preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

SGARBI, A. Teoria do Direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Teoria do Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

TELLES JR., G. Iniciação na Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2001.


5
As fontes do Direito

Neste capítulo, estudaremos as fontes1 do Direito e sua importância para o estudo da Ciência
do Direito. A palavra fonte, de origem latina, remete à nascente, àquilo de onde algo se origina.
O estudo das fontes é importante para uma boa compreensão do fenômeno jurídico como um todo
e, mormente, porque proporciona à sociedade modelos de comportamento e segurança jurídica na
aplicação das leis. Como por fonte compreendemos o local de onde surge algo, estudaremos agora
de onde brota o Direito e em que circunstâncias tal surgimento se dá.

5.1 A lei
Entre as fontes do Direito a serem estudadas neste capítulo, certamente a lei é a que mais me-
rece destaque. Trata-se da chamada fonte formal do Direito, que positivada informa expressamente
aos indivíduos a prescrição de comportamentos a serem seguidos e a previsão de sanções em caso
de não cumprimento de suas determinações.
Vejamos, como explica Paulo Hamilton Siqueira Júnior, o vocábulo lei tem várias aplica-
ções, existindo as leis naturais ou físicas (explicativas), as leis culturais (compreensivas) e as leis
éticas (normativas). As leis normativas, que mais nos interessam aqui, podem ser subdivididas em:
(i) religiosas; (ii) morais; (iii) de trato social; (iv) e jurídicas, que ora serão objeto de nosso estudo
(SIQUEIRA JR., 2017, p. 57-58).
Como vimos nos capítulos anteriores, a norma, transmutada em lei, prescreve condutas a
serem seguidas ou evitadas, sob pena de, em caso de descumprimento, aplicação de uma sanção
correspondente. Trata-se de fonte que emana da autoridade exercida pelo Poder Legislativo, que se
impõe aos indivíduos revestida de legalidade.
Para diversos doutrinadores, a lei é, sem dúvida, uma das mais importantes fontes do Direito,
e muitos a consideram a mais importante fonte formal. Trata-se, pois, de um instrumento base para
a busca de soluções dos problemas jurídicos.
Importante destacar que, neste item, estudaremos a lei no sentido lato do termo, “como sinô-
nimo de legislação, ou seja, para indicar regras jurídicas escritas, sejam as leis propriamente ditas,
aquelas oriundas do Poder Legislativo, sejam os decretos, medidas provisórias ou outras normas
baixadas pelo Poder Executivo” (SIQUEIRA JR., 2017, p. 59).

1 Fonte é o vocábulo que designa concretamente o lugar de onde brota alguma coisa, como fonte d’água ou nascente.
Usada metaforicamente, por extensão de sentido, a expressão fonte do Direito indica o lugar de onde provém a norma jurí-
dica, de onde nasce a regra jurídica que ainda não existia na sociedade humana. O termo fonte cria uma metáfora bastante
precisa, porque remontar à fonte de um rio é procurar o lugar onde suas águas saem da terra (CRETELLA JR., 2005, p. 131).
58 Teoria do Direito

Sobre a formação das leis, é importante destacarmos que todos os indivíduos que compõem
determinada sociedade são submetidos a determinado regime legal, que lhes é imposto por meio
da legislação de seu respectivo país.
Há que se ponderar ainda, a exemplo do que ocorre no ordenamento jurídico brasileiro, a
existência de leis que vigem somente em uma determinada parte do país, como cidades e estados, e
são elaboradas pelos órgãos competentes, no caso brasileiro, Câmara Municipal, Câmara Estadual
e Congresso Nacional, e Executivo municipal, estadual e federal, no caso de decretos e medidas
provisórias, por exemplo.
Verificaremos agora algumas características importantes da lei.
A lei tem o caráter de preceito, norma, regra de proceder, norma jurídica geral e,
por consequência, abstrata e permanente. A lei é uma norma geral ou comum.
Trata-se de um preceito comum, sendo dirigida a todos os membros da coleti-
vidade. É uma regra estabelecida não em vista de um caso individual, mas de
todos os casos da mesma espécie. A lei obriga igualmente a todos os membros
da sociedade sobre a qual estende a sua eficácia, isto é, a lei apresenta a caracte-
rística da generalidade, surgindo dessa característica duas propriedades impor-
tantes: a lei é uma regra abstrata e permanente. (SIQUEIRA JR., 2017, p. 60)

Trata-se de uma determinação que deve ser expressa, explícita, já que ninguém será obrigado a
fazer, ou deixar de fazer algo, senão em virtude de Lei, conforme máxima jurídica refletida no artigo
5º, inciso I da Constituição Federal do Brasil.
Quando se fala em “ninguém será obrigado”, está-se referindo a todos e a cada um, sem qual-
quer distinção, ou seja, a lei se reveste de impessoalidade, pois o legislador as define abstratamente,
não considerando a individualidade dos cidadãos ao exarar a norma. Há situações, contudo, em que
sabemos que as leis se dirigem especificamente a uma categoria de sujeitos, por exemplo, o Estatuto
do Idoso, normativa que traz preceitos jurídicos a quem se enquadra no conceito jurídico de idoso.
Vejam que a lei se refere a uma coletividade de pessoas que se enquadram em determinada situação,
no caso, os idosos, mas não trata de algum sujeito idoso em específico.
Podemos destacar, ainda, como importantes características das leis, seu caráter abstrato, pois
versam sobre situações hipotéticas genéricas, não individualizadas ou particulares. São permanen-
protrair: prolongar. tes, já que seus efeitos se protraem no tempo, enquanto não for revogada, ainda que tacitamente,
por outra fonte do Direito, como o costume. E, finalmente, mas não menos importante, ela tem
natureza de obrigatoriedade. Ou seja, a lei não é uma teoria a ser ponderada, uma orientação
consultiva a ser seguida se assim for desejada, mas configura uma obrigação, sendo essa a maior
condição de sua eficácia.
E qual o motivo da obrigatoriedade da lei? Paulo Nader afirma que seriam várias as teorias
a esse respeito: (i) a teoria da autoridade formulada por Hobbes defende que a obrigatoriedade
da lei decorre da força; (ii) a teoria da valoração, por sua vez, subordina a obrigatoriedade da lei
a seu conteúdo ético; (iii) a teoria contratualista defende que o caráter obrigatório da lei existe
pois aqueles que devem obedecê-la contribuíram para sua formação; (iv) a teoria neocontratualista
condiciona a obrigatoriedade da lei ao reconhecimento daqueles a que ela subordina; entre outras
não menos importantes (2017, p. 152).
As fontes do Direito 59

No que tange à constituição das leis, podemos destacar três elementos centrais a serem
observados: material, que se refere ao conteúdo da lei; formal, que se refere à vontade do legislador;
e instrumental, que se refere à sua forma necessariamente escrita.
Em nossos tempos, temos que a lei será sempre fórmula escrita, mas já vimos que nem sem-
pre foi assim ao longo da história. Hoje, a necessidade de ser escrita possibilita maior facilidade em
disseminar e assimilar seu teor, além de trazer segurança jurídica.

5.2 A jurisprudência
Por jurisprudência “(stricto sensu) devemos entender a forma de revelação do Direito
que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica
de decisões dos tribunais” (REALE, 2002, p. 167). Assim, importante ponderarmos que sua
formação se dá pelo “conjunto uniforme de decisões judiciais sobre determinada indagação
jurídica” (NADER, 2017, p. 139).
A jurisprudência será mais ou menos influente em um ordenamento jurídico, de acordo com
seu sistema adotado, de Civil Law ou de Common Law. Em países em que os costumes são fontes
principais e, por conseguinte, os precedentes têm grande importância na interpretação das normas
e na aplicação diária do Direito, a jurisprudência passa a ser uma das principais fontes jurídicas.
No sistema jurídico norte-americano, no qual as decisões da Suprema Corte se equiparam às leis e
à própria Constituição, os chamados precedentes judiciais são as mais estudadas fontes do Direito.
Já nos sistemas jurídicos codificados, de Civil Law, a jurisprudência se mostra menos icôni-
ca, sendo que alguns doutrinadores, como Tércio Sampaio Ferraz e Orlando Gomes2, não admitem
a jurisprudência como fonte do Direito nos sistemas de Civil Law.
Há que se ponderar, contudo, o disposto no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro, que prevê expressamente a possibilidade de o magistrado valer-se da
jurisprudência em caso de anomia jurídica. Por tal razão, outra parcela da doutrina reconhece anomia: ausência de
norma.
a jurisprudência como fonte do Direito, à qual se filiam André Franco Montoro, Maria Helena
Diniz3 e outros.
Podemos concluir que a jurisprudência se evidencia como verdadeira fonte do
Direito. Muito embora a jurisprudência não integre a lei, em muitos casos cumpre
uma função de complementar, suprir ou corrigir a lei. A impossibilidade de a lei
prever todas as hipóteses concretas é uma realidade solar, sendo certo que a jurispru-
dência surge como verdadeira fonte subsidiária da lei. (SIQUEIRA JR., 2017, p. 109)

2 Orlando Gomes assim defende: “Forma-se a jurisprudência mediante o labor interpretativo dos tribunais, no exercício
de sua função específica. Interpretando e aplicando o Direito positivo, é irrecusável a importância do papel dos Tribunais
na formação do Direito, sobretudo porque se lhe reconhece, modernamente, o poder de preencher as lacunas do ordena-
mento jurídico no julgamento de casos concretos. Mas, daí a incluir a jurisprudência entre as fontes do Direito vai grande
distância, porque os julgados dos tribunais não criam regras jurídicas. Duas razões principais confirmam a exclusão: a
primeira, a de que o juiz é servo da lei, não passando de aspiração doutrinária contestável e perigosa, a tese de que deve
ter o poder de julgar contra a lei; a segunda, a de que o julgado produz efeito unicamente entre as partes, princípio que se
proclama com a declaração de autoridade relativa da coisa julgada” (GOMES, 1999, p. 46).
3 Sobre o tema, Maria Helena Diniz defende que “a jurisprudência, de um modo ou de outro, acaba impondo ao le-
gislador uma nova visão dos institutos jurídicos, alterando-os, às vezes integralmente, forçando a expedição de leis que
consagrem sua orientação. É indubitável que constitui, além de uma importantíssima fonte de normas jurídicas gerais,
uma fonte subsidiária de informação, no sentido de que atualiza o entendimento da lei, dando-lhe uma interpretação atual
que atenda aos reclamos das necessidades do julgamento e de preenchimento das lacunas” (DINIZ, 2009, p. 269).
60 Teoria do Direito

Assim, para os doutrinadores que compreendem a jurisprudência como fonte do Direito,


parte deles a considera como uma fonte informal do Direito, vez que sua função inicial não seria a
de gerar normas jurídicas, mas de interpretação das normas já existentes, momento no qual acaba
por gerar novas compreensões jurídicas, transformando-se em fonte do Direito.
A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção
de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só
interpretação, a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a juris-
prudência tradicional para consolidar o ideal de segurança jurídica. Em vista da
plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável
aproximativamente. (KELSEN, 1998, p. 371)

Importante verificarmos que a jurisprudência pode ser secundum legem, praeter legem e
­contra legem. Vejamos.
A chamada jurisprudência secundum legem (de acordo com a lei) é aquela que corrobora
as regras definidas nas leis, encorpando com o entendimento esposado pelos juízes o que está no
ordenamento jurídico. A jurisprudência praeter legem (além da lei) é aquela que vem para suprir
uma lacuna legal, ou seja, trata-se de um mecanismo para superar uma omissão legislativa. E a
denominada jurisprudência contra legem (contra a lei) é aquela que vem de encontro à lei, quando
esta é considerada inconstitucional, por exemplo, ou pela evolução social ganha novos contornos e
passa a ser interpretada como ultrapassada; trata-se de uma interpretação judicial de acordo com o
compromisso do juiz com a justiça, e não necessariamente com o positivado na lei escrita.
Observe que o que é fonte do Direito é a jurisprudência, ou seja, um coletivo reiterado de
interpretações, e não decisões judiciais esposadas individualmente. Para que se torne jurispru-
dência, como o conceito diz, é necessário que várias decisões judiciais, formem um “conjunto
uniforme de decisões”, a que se dá o nome de jurisprudência.
Importante ponderar o papel das súmulas nesse processo. As súmulas são a uniformização
expressa da jurisprudência dominante em determinado tribunal.
Com o fito de evitar repetida manifestação dos tribunais superiores sobre assuntos já en-
frentados, o Novo Código de Processo Civil de 2015 trouxe, em seu artigo 9274, inciso IV, que os
enunciados sumulados pelo Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e os enunciados
sumulados pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional passaram a ser de
observância obrigatória pelos juízes e de primeiro e segundo grau.
Isso representou uma inovação na processualística civil brasileira. Até então, o que se tinha
como de observância obrigatória eram as ainda existentes e abundantes súmulas vinculantes,

4 Segundo o artigo 927 do Novo Código de Processo Civil, “os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de
recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça
em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados” (BRASIL, 2015).
As fontes do Direito 61

previstas no artigo 103-A da Constituição Federal5. Essa modalidade sumular tem requisitos
objetivos para sua criação, devendo ser originária de entendimento do Supremo Tribunal Federal,
derivada de reiteradas decisões sobre o tema e aprovada por 2/3 dos ministros da casa, sendo ato
formal sua veiculação em imprensa oficial.
Com a nova abordagem trazida pelo CPC 2015 muita algazarra se formou na doutrina
processualista, que até hoje trava uma acirrada discussão sobre o caráter vinculante das súmulas
editadas pelo STJ nos termos do inciso IV do artigo 927 e ainda a implementação de um sistema
de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Filiamo-nos ao entendimento de que referido dispositivo não elevou ao status de vincu-
lantes os entendimentos sumulados pelo STJ em matéria infraconstitucional. Vale lembrar que
se trata de um dispositivo processualístico civil, que não tem o condão de modificar o disposto
na Constituição.
O fato de o artigo 927 do CPC elencar diversos provimentos que passaram a ser
vinculantes, não pode nos induzir a leitura equivocada de imaginar que a súmu-
la, o acórdão que julga o IRDR ou oriundo de recurso (especial ou extraordiná-
rio repetitivo) são equiparáveis à categoria do genuíno precedente do common
law. [...] O sistema genuíno de precedentes inglês é criador de complexidade.
O que o CPC-2015 faz é criar provimentos judiciais vinculantes cuja função é
reduzir a complexidade judicial para enfrentar o fenômeno brasileiro da litigio-
sidade repetitiva. Respostas antes das perguntas. Mas, não podemos equiparar
o artigo 927 a um sistema de precedentes, sob pena de termos uma aplicação
desvirtuada do CPC. (STRECK, 2016)

O mote do artigo 927 não foi, em nenhum momento, criar ou instaurar um sistema
de precedentes no Brasil, conforme leciona Lênio Streck, mas, sim, por meio de um caráter
vinculante às súmulas que até então não gozavam de tal prerrogativa, proporcionar celeridade
processual e uniformidade de entendimentos, promovendo maior segurança jurídica.

5.3 A doutrina
Ao longo da história, a doutrina sempre foi elemento crucial para o aprimoramento da ciên-
cia do Direito. Desde a Roma Antiga, já se verificava a importância que os doutrinadores tinham
no desenvolvimento jurídico. Os chamados jurisconsultos, que vimos no Capítulo 1 desta obra,
esposavam seus entendimentos, sendo verdadeira fonte legislativa da época.
Já na Idade Média, a atuação dos doutrinadores passou a ter caráter subsidiário à lei, como fon-
te do Direito. Importante ressaltar que se tratava de um período em que os religiosos se debruçavam
sobre o estudo das leis, conforme vimos anteriormente.

5 Constituição Federal, artigo 103-A: “O Supremo Tribunal Federal poderá́, de ofício ou por provocação, mediante de-
cisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a
partir de sua publicação na imprensa oficial, terá́ efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e
à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou
cancelamento, na forma estabelecida em lei” (BRASIL, 1988).
62 Teoria do Direito

Com o advento da Idade Moderna, sob influência do Iluminismo e de outras escolas, o estudo
do Direito foi se aprimorando e tornando-se cada vez mais presente na construção do saber jurídico,
que, com a Modernidade, tornou-se mais facilmente difundido.
A doutrina: a palavra cheira muito ao século XIX! É, no entanto, tão habitual aos
juristas que duvido que eles sintam sempre esse perfume. Poder-se-ia falar hoje
de doutrina em química ou em matemática? Fala-se dela, contudo, em Direito.
Entende-se, por isso, o conjunto das opiniões expressas pelos juristas, práticos e
teóricos, a respeito dos problemas jurídicos. (MIAILLE, 1979, p. 221)

Hoje não se pode vislumbrar aplicação, estudo e cotidiano do Direito sem atuação dos juris-
tas e doutrinadores.
A inclusão da doutrina como fonte do Direito não é elemento pacificado entre os juristas.
Por não se revestir de coercitividade, muitos doutrinadores, como Orlando Gomes, Miguel Reale6,
entre outros, afirmam não se tratar de fonte do Direito, eis que o discurso doutrinário seria des-
critivo, cujo objetivo último seria compreender a natureza do Direito – e não a modificar, como,
segundo os autores citados, pretenderiam as demais fontes cogentes.
Outros doutrinadores, entretanto, por entenderem que a doutrina tem importância ímpar
na formação do Direito, a enquadram, sim, como fonte do Direito, dentre os quais se destacam:
Maria Helena Diniz, José Cretella Jr.7 e outros.
Por considerarmos que a doutrina é, de fato, importante elemento na conformação da inter-
pretação jurídica e que referida interpretação da ciência do Direito é, sim, elemento formador de
novos contornos jurídicos, nos filiamos a esta última corrente citada.
A doutrina, de acordo com Maria Helena Diniz: “é formada pela atividade dos juristas, ou
seja, pelos ensinamentos dos professores, pelos pareceres dos jurisconsultos, pelas opiniões dos
tratadistas” (DINIZ, 2009, p. 323). Não se pode negar que a evolução da ciência do Direito muito
deve aos doutrinadores. Seu aperfeiçoamento ao longo do tempo tem se dado de forma concomi-
tante e interdependente aos estudos e interpretações dos doutrinadores, o que, sem dúvida, filian-
do-nos a Cretella Jr. (2005), tem refletido diretamente nas fontes do Direito.
A doutrina influencia diariamente nas decisões dos tribunais. Ao enfrentarem diariamente
a árdua tarefa de interpretar as leis e resolver os mais variados casos concretos, os magistrados

6 Sobre o pensamento de Miguel Reale em relação ao assunto, destacamos: “As fontes do direito produzem modelos
jurídicos prescritivos, ou, mais simplesmente, modelos jurídicos, isto é, estruturas normativas que, com caráter obrigató-
rio, ­disciplinam as distintas modalidades de relações sociais. Como pensamos ter demonstrado em nosso livro O Direito
como Experiência, enquanto as fontes revelam modelos jurídicos que vinculam os comportamentos, a doutrina produz
modelos dogmáticos, isto é, esquemas teóricos, cuja finalidade é determinar: a) como as fontes podem produzir modelos
jurídicos válidos; b) que é que estes modelos significam; e c) como eles se correlacionam entre si para compor figuras,
institutos e sistemas, ou seja, modelos de mais amplo repertório. A bem ver, os modelos doutrinários ou dogmáticos en-
volvem as fontes do direito desde a emanação das normas, isto é, desde o momento da interpretação e aplicação desses
modelos, os quais representam o ‘conteúdo significativo’ produzido ou revelado pelas fontes” (2002, p. 176).
7 Sobre o tema, defende Cretella Jr.: “Em nossos dias, não é possível ter dúvidas a respeito [doutrina como fonte do
Direito] porque os trabalhos teóricos, quer em tese (livros, manuais, monografias), quer específicos (pareceres), dirigidos
para a interpretação das leis ou para a sistematização dos preceitos jurídicos, constituem, no âmbito do Direito privado
e no campo do Direito público, extraordinário elemento de formação do Direito, que influi e continua a influir de maneira
indiscutível na estruturação das teses jurídicas, discutidas perante os tribunais dos vários Estados” (2005, p. 139).
As fontes do Direito 63

enfrentam reiteradamente a missão de encontrar subsídios doutrinários que os levem à decisão


mais adequada possível. Dessa forma, pode-se afirmar que a doutrina acaba por ser de origem
também, ainda que indiretamente, da jurisprudência, resultado da interpretação jurisdicional.
Muitas questões atualmente reiteradas no Direito tiveram seu nascimento em discussões
doutrinárias, como, por exemplo: (i) a teoria da imprevisão, na qual uma interpretação doutrinária
contemporânea reformulou a interpretação da cláusula rebus sic stantibus, visando à revisão con-
tratual em caso de acontecimentos imprevisíveis e supervenientes à elaboração do contrato; (ii) a
questão da responsabilização civil por dano moral, que prevê a responsabilização civil, com o dever
de indenizar aquele que causar danos à moral de outrem, o que até tempos atrás não se vislumbra-
va, a indenização de um dano não mensurável; (iii) a teoria da perda de uma chance, construção
doutrinária que criou uma nova categoria de dano, na qual, por alguma ação de um sujeito, o outro
perde a chance de aferir algum benefício; (iv) a proteção aos direitos dos filhos adotivos, tendo em
vista que a legislação brasileira anteriormente previa distinção de direitos entre os chamados filhos
legítimos, filhos ilegítimos e os filhos adotivos, só havendo mudança legislativa para igualar as con-
dições sucessórias e extinguir as diferenças entre essas “categorias filiares” mediante árdua defesa
doutrinária prévia.
Desse modo, aqueles que, como vimos, não se filiam à corrente que compreende a doutrina
como fonte do Direito não podem negar sua importância na construção da ciência do Direito,
ainda que entendam não ser direta sua contribuição. Não se pode negar que, embora não produza
normas jurídicas obrigatórias, a doutrina é, sim, fonte produtora de conhecimento jurídico, o que
reafirma sua importância na criação e no aperfeiçoamento constante das normas jurídicas.

5.4 Outras fontes


Conforme estudado nos itens anteriores, a lei, a jurisprudência e a doutrina, que constituem
elementos importantes de um sistema jurídico positivado, baseado na norma formal e escrita, nem
sempre são suficientes para dirimir controvérsias, nortear comportamentos e manter a ordem,
havendo outras fontes do Direito. Vamos nos ater agora apenas às mais importantes dessas fontes.
Remontando ao estudado no Capítulo 1 desta obra, e analisando os itens anteriormente
vistos, podemos perceber que, sendo fruto de lutas sociais, o Direito é sempre posterior a um fato
social que precede a criação da norma e, portanto, surge antes do nascimento da lei, da doutrina e
da jurisprudência. Temos, antes mesmo da criação da norma formal, um comportamento repetido
reiteradas vezes, que cria um costume, sendo este, por sua vez, uma importante fonte jurídica.
Por costume, podemos compreender a conduta dos indivíduos em sociedade, a qual, por ser
praticada reiteradamente, passa a ser comum e entendida como aceitável pelos demais membros
da comunidade. “O costume jurídico é norma jurídica obrigatória, imposta ao setor da realidade
que regula, passível de imposição pela autoridade pública e em especial pelo poder judiciário”
(RIZZATTO, 2002, p. 130-131). Trata-se de conduta que, repetida reiteradas vezes, perpetra-se por
um longo período como comportamento esperado em determinada situação.
64 Teoria do Direito

Assim como as demais fontes vistas anteriormente, o uso dos costumes como fonte do
Direito foi se modificando ao longo da história. Desde o Direito romano já havia uma preo-
cupação com o estudo dos costumes como fonte do Direito, com os estudos dos chamados
consuetutos. As Ordenações Filipinas preconizavam também os costumes como fontes do Direito,
afirmando que o comportamento fosse “longamente usado e tal que se devesse guardar”.
Com o passar do tempo, verificou-se uma dicotomia entre os países que preconizavam as
leis escritas, a Civil Law, e aqueles que privilegiam o Direito consuetudinário, a Common Law, em
que o sentido das leis é mormente material, sendo que estes países, como a Inglaterra, constituíram
importantes fontes do Direito.
Como se vê, há pontos convergentes entre os costumes e a jurisprudência, mas não devemos
confundi-los, uma vez que são várias as diferenças entre eles.
Quadro 1 – Principais diferenças entre costumes e jurisprudência

Costume Jurisprudência

Origem Advém da sociedade como um todo. Advém de decisão técnica do Judiciário.

Possibilitar uma convivência harmônica entre


Possibilitar uma interpretação judicial harmônica,
Finalidade os indivíduos da sociedade, ao estabelecer pa-
ao estabelecer parâmetros de aplicação da lei.
râmetros aceitáveis de comportamento social.

Trata-se de uma criação espontânea da socie- Trata-se de uma criação fruto da ciência do Direito,
Motivação
dade diante de um fenômeno social. diante da invocação da prestação jurisdicional.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Para ser considerado um costume jurídico8, parte da doutrina defende a existência de ele-
mentos importantes a serem observados. O elemento material, ou objetivo do costume, refere-se
à prática reiterada e universal de uma determinada conduta, enquanto o elemento espiritual, ou
subjetivo, refere-se à convicção social da aceitabilidade da prática objetiva referida.
No ordenamento jurídico brasileiro, os costumes são legalmente considerados fontes
de Direito. O Código Civil Brasileiro9 traz algumas vezes o vocábulo costumes e outras vezes

8 “Em suma, o costume, como fonte de normas consuetudinárias, possui em sua estrutura, um elemento substan-
cial – o uso reiterado no tempo – e um elemento relacional – o processo de institucionalização que explica a formação
da convicção da obrigatoriedade e que se explicita em procedimentos, rituais ou silêncios presumidamente aprovadores”
(FERRAZ JR., 2003. p. 242).
9 Vejamos o que preconizam os seguintes artigos:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos
pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. [...]
Art. 596. Não se tendo estipulado, nem chegado a acordo as partes, fixar-se-á por arbitramento a retribuição, segundo o
costume do lugar, o tempo de serviço e sua qualidade. [...]
Art. 615. Concluída a obra de acordo com o ajuste, ou o costume do lugar, o dono é obrigado a recebê-la. Poderá, porém,
rejeitá-la, se o empreiteiro se afastou das instruções recebidas e dos planos dados, ou das regras técnicas em trabalhos
de tal natureza. [...]
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - castigar imoderadamente o filho; II - deixar
o filho em abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas fal-
tas previstas no artigo antecedente. V - entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção.” (BRASIL,
2002, grifos nossos).
As fontes do Direito 65

bons costumes para descrever situações em que se espera do cidadão um comportamento mo-
ralmente adequado.
Os chamados princípios gerais do Direito também são considerados fontes de Direito. Por prin-
cípios se compreende que são “proposições básicas, fundamentais, típicas, que condicionam todas
as estruturas subsequentes. Neste sentido, princípios são os alicerces, as bases, os fundamentos da
ciência” (CRETELLA JR., 2005, p. 222).
Para as doutrinas de inspiração positivista, princípios gerais do Direito são aque-
les historicamente contingentes e variáveis, que inspiraram a formação de cada
legislação concretamente considerada. Para as concepções racionalistas, pelo
contrário, a expressão princípios gerais de Direito, refere-se não a valores his-
toricamente contingentes e variáveis, mas a princípios universais, absolutos
e eternos, correspondentes aos princípios do direito natural. [...] Uma visão
compreensiva e objetiva da matéria nos leva a concluir que, entre os princípios
gerais do direito, devem ser incluídos os valores contingentes e variáveis, a que
se refere a concepção positivista, e os princípios universais referidos pelas dou-
trinas de inspiração racionalista, desde que, uns e outros, estejam devidamente
fundamentados. (MONTORO, 2000, p. 382-383)

É fato que os princípios são pressupostos basilares dos ordenamentos jurídicos e, por essa
razão, parece-nos bastante razoável filiarmo-nos aos doutrinadores que os compreendem como
verdadeiras fontes de Direito, pois, além de servirem de base para a construção de outras fontes,
como as leis e a doutrina, por exemplo, podem e devem ser utilizados em caso de ausência de lei
que ampare fato jurídico discutido.
Nesse sentido, o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro preconiza
que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais do direito” (BRASIL, 1942). Veja-se que o ordenamento jurídico brasileiro reco-
nhece os princípios como fontes de Direito nacional, afirmando que o operador do Direito poderá
valer-se deles para decidir em caso de omissão legislativa – postura que o ordenamento também
consagrou em relação à analogia.
Assim, o dispositivo nos leva a outra importante fonte do Direito, que é reiteradamente uti-
lizada com a finalidade de integração da lei: a analogia. Trata-se, pois, da “aplicação à apreciação
da relação jurídica às normas de direito objetivo aplicáveis a casos semelhantes, ou seja, consiste
em aplicar, a um caso não previsto, a norma que rege hipótese semelhante” (SIQUEIRA JR., 2017,
p. 150). Comumente utilizada ante a ausência de dispositivos legais específicos em determinada
situação, denominada anomia, ocasião na qual o operador do Direito aplica dispositivos ao caso.
Sobre a anomia e as lacunas jurídicas, estudaremos mais análogos apuradamente nos capítulos
seguintes desta obra.
Para finalizar, apresentamos a seguir uma figura que condensa os principais conceitos trata-
dos ao longo deste capítulo:
66 Teoria do Direito

Quadro 2 – Resumo dos conceitos do capítulo

Revelam o Direito e colaboram para manter a unidade do ordenamento jurídico diante


Fontes
das contradições e omissões.

Regras jurídicas escritas originárias do Poder Legislativo em um Estado Democrático


Leis
de Direito que recomendam ações ou proíbem condutas passíveis de sanções.

Conjunto de decisões reiteradas por determinado órgão do Poder Judiciário que


Jurisprudência
demonstra uma tendência de aplicação do Direito ao caso concreto.

Atividade dos juristas de colaboração da legislação e aperfeiçoamento de sua aplicação


Doutrina
aos casos concretos.

Prática reiterada de determinada conduta no tempo, de modo que se torna aceita


Costume
socialmente.

Princípios gerais do Direito Postulados brasileiros que condicionam estruturas do Direito.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Considerações finais
Como vimos, são várias as fontes do Direito, das quais estudamos algumas das mais rele-
vantes. No ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil prevê
que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito” (BRASIL, 1942). Verifica-se, pois, que, em caso de anomia, ou seja,
ausência da norma, o operador do Direito deverá se valer de fontes não escritas e acessórias à fonte
formal legislativa.

Ampliando seus conhecimentos


Sobre as fontes do Direito, vejamos agora o excerto da obra Como nasce o Direito, de
Francesco Carnelutti, na qual o autor expõe a importante relação da fonte lei com a fonte jurispru-
dência, ao discorrer sobre a necessidade de o juiz interpretar a lei, sendo essa mesma interpretação
uma importante fonte do Direito.

Como nasce o Direito


(CARNELUTTI, 2001, p. 47-48)

O problema do direito, contudo, não se esgota com a formação dos mandatos e, em particular,
das leis. Com efeito, um mandato não pode ser obedecido. Não é de crer, dentre outras coi-
sas, que quando a guerra veio a ser um delito fique eliminada imediatamente da sociedade.
A mais elementar experiência desmente esse otimismo: desde séculos e séculos e lei proíbe o
homicídio, todavia, mesmo em um país civilizado como o nosso, quantos homicídios ainda se
comete? É claro, pois, que para a formação das leis deve-se seguir alguma coisa a mais. Por isso
dissemos na lição introdutória que as leis são um produto jurídico semielaborado.
Essa outra coisa não pode ser mais do que a colocação em atividade das sanções: se alguém
matar ou roubar, poderá ser encarcerado; se não restituir a coisa alheia, esta lhe deve ser tirada;
se não pagar sua dívida, é preciso lhe tirar o que sirva para satisfazer o credor. Trata-se, em
uma palavra, de fazer com que se executem as leis, depois de havê-las elaborado.
As fontes do Direito 67

O conceito de execução sugere a imagem do carcereiro, como também a do verdugo ou a do


oficial de justiça, que desaloja de uma casa a quem ocupa sem ter direito, ou embarga e vende
os bens do devedor inadimplente. Mas um pouco de reflexão faz observar que a coisa não é
tão simples e que a execução não exige apenas a obra deles. Alguém é acusado de matar um
homem, mas será verdade? O dono de uma coisa sustenta que outro a ocupa sem título, mas
esse tal, na maioria das vezes, sustenta pelo contrário que o tem. O credor afirma que não rece-
beu, mas e se for mentira? Qualquer um verá que antes do carcereiro ou do oficial de justiça
entra em jogo outra figura: o juiz.
[...]

Atividades
1. Sobre o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, a seguir transcrito, discor-
ra sobre as fontes de Direito nele vislumbradas: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o
caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito”.

2. Discorra sobre as características das leis e sua importância como fonte do Direito.

3. Vimos neste capítulo que os juristas se dividem quando se trata de definir a doutrina como
fonte do Direito ou não. Com base nos posicionamentos vistos, em sua opinião é possível
enquadrar a doutrina como fonte do Direito?

4. Explique as diferenças e as semelhanças entre a jurisprudência e os costumes.

Referências
BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 set. 1942. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de-
creto-lei/Del4657compilado.htm>. Acesso em: 1 mar. 2018.

_____. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 1 mar. 2018.

_____. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF,
11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 1
mar. 2018.

_____. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF,
17 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>.
Acesso em: 1 mar. 2018.

CARNELUTTI, Francesco. Como nasce o Direito. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder
Cultura Jurídica, 2001.

CRETELLA JR., José. Primeiras lições de Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à Ciência do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo:
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68 Teoria do Direito

GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 14. ed., atual. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. Trad. Luis Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: M. Fontes, 1998.

MIAILLE, Michel. Uma introdução crítica ao Direito. Rio de Janeiro: Estampa, 1979.

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NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. 39. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

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STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Geoges. O que é isto – o sistema (sic) de precedentes no CPC? Consultor
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6
Teoria da norma jurídica

Neste capítulo, temos por objetivo central estudar as normas jurídicas e as diferenças entre
regras e princípios, bem como as formas de resolução de conflitos entre regras e colisão entre prin-
cípios. Como vimos no capítulo anterior, os princípios e as leis são, ao lado dos costumes, da juris-
prudência e de outros, fontes do Direito. Justamente por existir essa pluralidade de fontes, e pela
constante transformação social que impacta diretamente a ciência do Direito, é que existem, por
vezes, choques entre normas, sendo fundamental para a boa compreensão do fenômeno jurídico o
estudo das possibilidades de resolução de tais conflitos.

6.1 Classificação e conceito da norma jurídica


Nos últimos capítulos, estudamos as relações entre os sujeitos de direito e as fontes das quais
o Direito emana. Neste capítulo, vamos estudar a norma jurídica, um dos principais elementos do
ordenamento jurídico. As regras estão presentes no cotidiano de todas as pessoas e são necessárias,
sejam elas as morais, de etiqueta, de convivência ou, ainda, os regulamentos necessários para a
realização de um curso, de uma partida de futebol etc. Estamos rodeados de leis, que não são ne-
cessariamente as jurídicas.
Desse modo, existem comportamentos que são incentivados e que servem de parâmetro,
de acordo com o local, a atividade e as tarefas que precisamos realizar. Nosso foco central são as
regras emitidas pela autoridade estatal, as quais apresentam consequências legais diante de seu
descumprimento. Usualmente as pessoas empregam de modo genérico o termo lei para se referir
a esses dispositivos. As especificidades da lei em sentido estrito, sobretudo como fonte do Direito,
foram objeto de estudo no Capítulo 5. Neste, abordaremos a teoria da norma jurídica, com viés
mais principiológico, razão pela qual empregaremos o termo norma jurídica (DIMOULIS, 2013).
A palavra norma, em sua origem, significa o esquadro que o pedreiro utiliza para garantir
que o seu trabalho esteja ajustado e adequado à construção, criando um padrão ou um parâmetro
para o que deve ser colocado na sequência.
As ciências naturais utilizam a norma sob uma perspectiva descritiva. Portanto a norma
resume as características percebidas da realidade por meio da razão, como, por exemplo, a lei da
gravitação universal de Newton, que descreve uma realidade percebida pelo cientista.
Já sob a perspectiva jurídica, a norma possui um caráter imperativo preocupado com o dever
ser, ou seja, com padrões jurídicos que devem ser seguidos. Ao prever uma conduta que deverá ser
adotada, permite também que ela possa ser descumprida, ao contrário das leis descritas adotadas
pelas ciências naturais. É importante ressaltar que a norma jurídica é fruto de uma investigação da
vida social; ela prescreve uma conduta considerada como adequada e a ocorrência de uma sanção
caso esta conduta não se concretize (POLETTI, 2009, p. 207). De acordo com Ferraz Jr. (2003, p. 84),
70 Teoria do Direito

A norma jurídica, da qual fala o jurista, é, portanto, verdadeira construção teóri-


ca da própria ciência jurídica, em que os diferentes mecanismos estabilizadores
manifestam, idealmente, uma congruência consistente. É isso que lhe permite
fazer suas classificações, suas distinções, suas sistematizações. Contudo, para isso,
ele precisa de uma linguagem própria, com conceitos operacionais que lhe deem
condições de realizar o recorte teórico da realidade.

Podemos considerar como características das normas jurídicas a imperatividade, a coercibili-


dade, a bilateralidade, a generalidade e a abstração (POLETTI, 2009, p. 197). As normas jurídicas são
imperativas, de modo que todas as pessoas devem se submeter aos comandos nela, definidos. Caso tais
normas não sejam cumpridas, haverá sanções, fazendo com que seu conteúdo seja obedecido de modo
compulsório. As normas jurídicas revelam relações entre as pessoas, as instituições e o Estado; para
tanto, são genéricas e abstratas e se encaixam em várias situações e com pessoas distintas.
As normas jurídicas são proposições (um conjunto de palavras que possui significado e unidade)
incluídas como fontes do Direito em um determinado lugar e tempo para regular o comportamento
social, estabelecendo proibições, obrigações e permissões cujo descumprimento pode estar associado
a um prejuízo individual ou coletivo (BETIOLI, 2015; DIMOULIS, 2013, p. 99-100).
Vamos estudar os elementos das normas jurídicas por meio das seguintes categorias apre-
sentadas por Dimoulis (2013, p. 103-120): destinatários, modo de enunciação, forma de prescrição,
sanção, âmbito de aplicação, consequências, densidade, função e modo de aplicação.
• Forma de prescrição: as normas jurídicas são mandamentos que podem ser compreendidos
em três modalidades: normas que proíbem condutas, normas que permitem comportamentos
e normas que obrigam condutas.
• Destinatários: os mandamentos previstos nas normas podem descrever uma conduta e
prescrevê-la para alguém. Os destinatários são aqueles que deverão observar a conduta
e podem ser gerais ou determinados. São gerais quando as normas se dirigem a todas as
pessoas e determinados quando dirigidas a grupos específicos, como funcionários públi-
cos ou trabalhadores com carteira assinada.
• Modo de enunciação: as normas podem ser escritas, orais e não verbais. As normas es-
critas são aquelas que garantem maior segurança jurídica, pois dependem da elaboração
do Congresso Nacional e, em razão de serem publicadas, facilitam sua interpretação. Já
as normas orais são permitidas pela norma escrita, que confere a uma autoridade com-
petente a oportunidade de definir comandos. Um exemplo é a voz de prisão, que pode
ser exercida por um policial em decorrência da previsão legal e escrita de sua função. Já
as normas não verbais são os objetos que sinalizam condutas a serem adotadas, como o
semáforo e as placas indicativas de trânsito.
• Sanção: a sanção é uma consequência jurídica de uma conduta. Sob a perspectiva nega-
tiva poderá infringir a privação da liberdade, a indenização de um patrimônio, ou, ainda,
a suspensão de um direito. É em razão da sanção que muitas pessoas são convencidas
a se submeter às normas jurídicas. Além da perspectiva negativa, existem normas que
recomendam ações premiando as pessoas com consequências jurídicas favoráveis pelo
cumprimento do preceito legal.
Teoria da norma jurídica 71

• Âmbito de aplicação: a aplicação de uma lei pode ser empregada sem restrições (aplica-
ção incondicional) ou com restrições (aplicação condicional). De acordo com Dimoulis
(2013), o ordenamento jurídico brasileiro não seria incondicional, pois existem situações
que excluem a aplicação do Direito a pessoas que não possuem capacidade civil, ou, ain-
da, diante de excludentes penais. Um exemplo de restrição condicional é a proibição de
dirigir caso a pessoa tenha ingerido bebida alcoólica. As pessoas têm a liberdade de beber,
porém haverá restrições impostas pela lei.
• Consequências: as normas jurídicas podem prever comportamentos de permissão, reco-
mendação ou proibição, com a possibilidade ou não de sanções. No entanto, existem nor-
mas que não preveem sanções – neste caso, são normas que apresentam valores e objetivos
a longo prazo, sem que haja uma explicação sobre os meios com que esses objetivos possam
ser alcançados. Essas normas são classificadas como programáticas ou imperfeitas.
• Densidade: existem normas que são mais densas e apresentam vários elementos importan-
tes para a aplicação de seu conteúdo, e, desse modo, são específicas. Por outro lado, existem
normas que são muito genéricas e, em razão disso, são mais difíceis de serem aplicadas pelo
julgador, já que permitem uma grande margem de discricionariedade e, em muitos casos, não
apresentam sanções, como vimos anteriormente. Normas densas apontam responsabilidades
e deveres das partes, normas mais fracas e genéricas deixam essas questões nebulosas.
• Função: é do texto constitucional que as normas jurídicas possuem sua gênese. Isso
porque a Constituição define direitos fundamentais dos indivíduos e também apre-
senta as competências das autoridades, entre elas o processo de elaboração das normas
infraconstitucionais e da alteração do texto constitucional, permitindo, dessa forma, a
evolução do ordenamento jurídico.
• Modo de aplicação: o modo de aplicação passa pelo critério qualitativo e pelo critério
quantitativo. No critério qualitativo, a norma possui um caráter absoluto, pois emprega
critérios objetivos sobre a qualidade de determinada pessoa ou bem. Exemplo: critérios
para auferir a capacidade civil de uma pessoa. O Código Civil impõe critérios objetivos
para definir quem é capaz – um deles é alcançar a idade de 18 anos. No critério quanti-
tativo, não tratamos de forma absoluta sobre a incidência no caso concreto, mas sim de-
pendente de uma escala de proporção. Exemplo: o juiz busca dar a indenização moral ou
material de acordo com a extensão do dano vivido pela parte, desenvolvendo um critério
comparativo entre casos.

O conceito de norma jurídica é central para o nosso estudo, principalmente diante das refle-
xões do positivismo jurídico. Para Kelsen, o objeto da ciência jurídica é a norma jurídica. A com-
preensão do Direito parte da apreensão de um objetivo sob a perspectiva jurídica, e isso quer dizer
por meio de uma norma jurídica ou por seu conteúdo (KELSEN, 1998, p. 50).
Como revela Ferraz Jr. (2003, p. 71),
Em sua obra Teoria pura do Direito, Kelsen afirma que os comportamentos
humanos só são conhecidos imediatamente pelo cientista do direito, isto é,
enquanto regulados por normas. Os comportamentos, a conduta de um ser
humano perante outro, diz ele, são fenômenos empíricos, perceptíveis pelos
72 Teoria do Direito

sentidos, e que manifestam um significado. Por exemplo, levantar o braço numa


assembleia é uma conduta. Seu significado tem um aspecto subjetivo e outro
objetivo. O significado subjetivo desse ato pode ser, conforme a intenção do
agente, um simples movimento de preguiça, o ato de espreguiçar-se. Entretanto,
no contexto, esse ato pode ter um significado objetivo: manifestou-se, ao le-
vantar a mão, um voto computável para tomar uma decisão. Esse significado
objetivo é constituído por uma norma, a norma segundo a qual o ato de votar
será contado pelo erguimento do braço.

Segundo o positivismo normativista, a norma jurídica seria aquela exarada pela autoridade
estatal por meio do processo legislativo1, no caso brasileiro, definido na Constituição Federal.
O positivismo jurídico foi alvo de críticas, como já vimos em capítulos anteriores, por apre-
sentar algumas lacunas. Uma dessas críticas é lançada diretamente contra a ideia de norma jurídica
empregada pelo positivismo. Desse modo, os autores do pós-positivismo desenvolveram novas
classificações sobre as normas jurídicas para lidar com os hard cases, ou seja, os casos mais difíceis
para o julgador, pois ocorrem conflitos entre regras ou colisões entre princípios. No próximo tó-
pico, vamos nos dedicar às espécies de norma jurídica: as regras e os princípios de acordo com a
teoria de Robert Alexy.

6.2 As espécies de normas jurídicas


Seguindo a obra de Robert Alexy (2011), Teoria dos direitos fundamentais, a norma jurídica
se divide em duas espécies: as regras e os princípios. Cada uma delas está em uma escala diferente
de construção normativa. As regras ocupariam a dimensão de validade, já os princípios estariam
um nível acima, na dimensão qualitativa, com maior peso e importância.
Tanto as regras como os princípios possuem um conteúdo normativo de dever, permissão e
proibição; as diferenças entre os dois ocorrem por dois critérios: o de generalidade e o qualitativo.
O grau de generalidade das regras é inferior ao dos princípios. Com os princípios, é possível atingir
um grande número de situações, já no caso das regras temos situações mais específicas.
Apesar de o critério de generalidade apresentar uma distinção relevante entre as regras e princí-
pios, ele não é suficiente para apontar a hierarquia que os princípios detêm sobre as regras. Alexy des-
creve os princípios como mandamentos de otimização, em outras palavras: os princípios ordenam algo
que deve ser realizado, na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes.
Isso permite que os princípios sejam satisfeitos em graus variados, a depender da realidade
fática e jurídica. Caso não sejam satisfeitos em sua capacidade máxima, isso não afetaria a sua vali-
dade. Os princípios contêm mandamentos prima facie, isto é, apontam para uma forma de resolver
determinado caso. No entanto, essas orientações não são uma única resposta para o caso, pois os
princípios podem ser afastados por razões antagônicas.

1 “O processo legislativo se desenvolve no âmbito do Poder Legislativo. O órgão ou a autoridade competente para
exercer o poder de legislar, nos Estados Democráticos, é o Parlamento eleito pelo povo, com alguma participação do
Chefe de Governo. Nos regimes ditatoriais, o Poder Legislativo é absorvido pelo Ditador” (SIQUEIRA JR., 2017. p. 63).
Teoria da norma jurídica 73

Já as regras são bem distintas e exigem que o seu conteúdo seja cumprido inteiramente. Elas
serão sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Regras apresentam determinações dentro daquilo que é
fático e juridicamente possível, não sendo possível fazer distinções. Vejamos o exemplo dado por
Alexy: “Um exemplo de norma de grau de generalidade relativamente alto é a norma que garante
a liberdade de crença. De outro lado, uma norma de grau de generalidade relativamente baixo
seria a norma que prevê que todo preso tem o direito de converter outros presos à sua crença”
(ALEXY, 2011, p. 87).
É importante ressaltar que as diferenças apresentadas pelo autor implicam um tratamen-
to diferente quando há um conflito entre regras e quando há uma colisão entre os princípios.
Os conflitos ocorrem quando partimos de duas regras cujos conteúdos são opostos. Enquanto
uma regra permite determinado conteúdo, outra o proíbe. Isso quer dizer que se fossem aplicadas
isoladamente levariam a resultados que se contradizem e são inconciliáveis.
Alexy desvenda esses conceitos com exemplos, como o seguinte: em uma escola, temos duas
regras. A primeira é que os alunos não devem deixar a sala de aula antes de soar o sinal com o horá-
rio de término da aula. A segunda regra diz que é dever de todos os alunos deixarem a sala quando
tocar o sinal de alarme de incêndio. Vamos pensar na hipótese de o sinal do horário que anuncia
o fim das aulas não ter soado, porém ter disparado o sinal de alarme de incêndio. As duas regras
terminam orientando ações contraditórias (ALEXY, 2011, p. 92).
Como decidir qual regra será empregada? Para Alexy, podemos resolver esse conflito ou
invalidando uma das regras ou criando uma cláusula de exceção. Uma opção para solucionar é a
seguinte regra de exceção: os alunos não poderão deixar as salas antes de soar o sinal do horário de
término da aula, exceto nos casos em que soar o alarme de incêndio.
Caso não seja possível compor com uma cláusula de exceção, será necessário considerar
uma das regras inválida, retirando-a do ordenamento. O conceito de validade jurídica das regras
não possui variações ou gradações, ou ele é válido ou não é.
Já a colisão entre princípios é resolvida de outro modo. Os princípios não são considerados
inválidos quando colidem uns com outros. Um dos princípios deverá ceder, sem, porém, perder
sua eficácia. As regras de exceção não poderão ser aplicadas quando ocorre a colisão entre os prin-
cípios. O que vai ocorrer nesses casos é que um dos princípios terá precedência sobre o outro; para
isso, deve-se verificar no caso concreto quais dos princípios terá maior relevância. Alexy considera
que o embate entre regras ocorre na dimensão da validade, enquanto o embate entre princípios
ocorre na dimensão de peso.
Como devem ser aplicados os princípios com maior peso, faz-se necessário realizar um
sopesamento de interesses pelos tribunais. É importante afirmar que nenhum princípio é absoluto. sopesamento: inter-
pretação, avaliação,
Alexy cria a lei da colisão para resolver esse impasse: é preciso analisar as condições a fim de deter- análise.

minar quando um princípio se sobrepõe a outro; para tanto, as consequências jurídicas deverão ser
mais benéficas para resolver determinada situação jurídica.
74 Teoria do Direito

Alexy apresenta o caso Lebach, no qual uma emissora de televisão planejava exibir um
programa sobre a história de um crime de roubo de armas que culminou na morte de quatro
soldados. Um dos condenados como cúmplice estava para ser libertado da prisão próximo à data
da exibição do programa. Verifica-se a tensão entre dois princípios. O primeiro é o direito de exi-
bir o programa pela emissora de televisão, já o segundo é o direito à ressocialização do homem
que estava para ser libertado. O Tribunal Constitucional alemão resolveu o caso verificando qual
desses dois princípios teria precedência e se adequaria às circunstâncias concretas do caso. Por
fim, foi decidido que a repetição do noticiário colocaria em risco a ressocialização do liberto, de
modo que esta teria precedência sobre a liberdade de noticiar (ALEXY, 2011, p. 100).

6.3 As definições da Constituição de 1988 sobre as espécies legislativas


Para Kelsen, o Direito pode ser entendido como um objeto e como um processo. Um processo
dinâmico que cria normas, as quais, após sua edição, se tornariam um objeto a ser aplicado aos casos
concretos. O autor também apresenta o plano de validade das normas jurídicas, no qual as normas obe-
deceriam a uma estrutura hierárquica que lhes garantisse sua correta existência no ordenamento jurídico.
O conjunto das normas jurídicas é denominado ordenamento ou sistema jurídico e invoca
uma noção de integração, completude, harmonia, coerência, regularidade e estruturação capaz
de garantir a segurança jurídica. Nosso próximo capítulo versará sobre o ordenamento jurídico
e suas características.
Trataremos agora de outra questão central. Como as normas surgem no ordenamento jurídico?
De acordo com Antonio Bento Betioli, a teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale apresenta
pontos relevantes sobre o surgimento de uma norma jurídica2. A norma jurídica ocorre porque existe
um valor a ser tutelado, o qual incide sobre um fato social, permitindo que várias opções possam re-
solver essa interação, porém apenas uma dessas soluções será convertida em solução jurídica. Para que
haja uma norma jurídica é necessário que ocorra a interferência do Poder Legislativo, que transforma as
opções para solução em norma jurídica (BETIOLI, 2015).
A teoria tridimensional do Direito de Reale defende que os fenômenos jurídicos possuem
três elementos: fato, valor e norma. Esses elementos são inseparáveis e interagem de modo dinâmico
e com complementariedade. O Direito seria, então, uma integração normativa de fatos segundo
valores (REALE, 1994, p. 124-125).
O adjetivo jurídico só é dado à norma pelo poder estabelecido, após as autoridades legais
competentes, devidamente investidas nessa qualidade, tomarem a decisão final. É com base nessa
decisão que as tensões entre fato e valor são fixadas em uma resolução. No entanto, essa interação
permanece, pois os fatos e valores interagem com a norma, trazendo novas interpretações e saídas
para o caso concreto (BETIOLI, 2015, p. 63).

2 Sobre a teoria de Miguel Reale: “Em sua concepção, o fenômeno jurídico é uma realidade fático-axiológico-normativa,
que se revela como produto histórico-cultural, dirigido à realização do bem comum. Ao mesmo tempo que rejeita o histo-
ricismo absoluto, não admite valores meta-históricos. A pessoa humana, fundamento da liberdade, é um valor absoluto e
incondicionado. A ênfase que dá à experiência não exclui uma concepção de Direito Natural em termos realistas. Apesar
de sua natureza dinâmica, o Direito possui um núcleo resistente e uma constante axiológica invariável no curso da história”
(NADER, 2017, p. 390).
Teoria da norma jurídica 75

O processo legislativo é uma sequência de atos para a elaboração dos tipos normativos pre-
vistos na Constituição Federal, na dos estados ou pela Lei Orgânica dos Municípios. Vamos estudar
a criação de leis federais, as quais são elaboradas pelo Congresso Nacional, composto pela Câmara
dos Deputados e pelo Senado Federal, com a participação do Presidente da República.
Para que uma nova lei ordinária no âmbito federal seja criada, é necessário seguir o processo
legislativo previsto na Constituição Federal, bem como aquele previsto pelo regimento interno da
Câmara e do Senado Federal. Existem três espécies de procedimento legislativo, isto é, ritos proces-
suais que operam os atos para se alcançar as espécies normativas. Temos o procedimento legislativo
ordinário (para a elaboração de leis ordinárias federais), o procedimento legislativo sumário (quando
é requisitada urgência pelo Presidente da República) e o procedimento legislativo especial (adotado
para as demais espécies normativas previstas no artigo 59 da Constituição Federal).
Os procedimentos legislativos possuem as seguintes fases (SILVA, 2014, p. 528-534):
• Iniciativa: ato que desencadeia o processo legislativo, em regra geral realizado pelo Poder
Legislativo, sendo admissível outros legitimados, como a iniciativa popular, o Poder
Judiciário e o Poder Executivo.
• Discussão: momento em que o projeto é discutido em diferentes comissões temáticas e
referendado por pareceres favoráveis à sua votação no plenário, à sua alteração (por meio
de emendas) ou ao seu arquivamento.
• Aprovação: após passar por todas as comissões e ser colocado na pauta de votação da casa
legislativa, poderá ser aceito ou rejeitado pelo plenário. Para uma lei ordinária federal, o
quórum necessário para a aprovação é a maioria simples dos membros presentes na data
da votação3. Esse número de parlamentares necessários para aprovar os projetos de lei se
alterna de acordo com a espécie legislativa.
• Revisão: no caso das leis ordinárias federais, após o projeto passar pela casa iniciadora
(regra geral a Câmara dos Deputados), será encaminhado para a casa revisora (Senado
Federal), onde passará por novas comissões e poderá sofrer emendas. Caso seja aprovado
sem sofrer emendas, será encaminhado para sanção ou veto do Presidente da República,
mas, se existirem emendas, o projeto será encaminhado novamente para a casa iniciado-
ra, a fim de deliberar acerca das emendas propostas pela casa revisora.
• Sanção ou veto presidencial: após as fases anteriores, o Presidente da República manifesta
sua concordância ou discordância do texto legal. Caso passem 15 dias da aprovação da lei na
casa revisora e o Presidente não se manifeste, temos então uma sanção tácita, mas caso ele se
manifeste contrário ao projeto de lei, então teremos o veto presidencial. O veto poderá ser
total ou parcial e deverá ser apreciado pelo Poder Legislativo, por meio de uma sessão con-
junta do Congresso Nacional, com o voto da maioria absoluta de todos os seus membros.

3 Sobre a questão do quórum, é importante observarmos que a expressão maioria no processo legislativo pode ser
empregada de diversas maneiras; vejamos: “Maioria qualificada é aquela que exige um número ou quórum especial para
aprovação, como a emenda constitucional que exige um número superior a três quintos dos respectivos membros de
cada Casa do Congresso Nacional ou dois terços dos votos do Senado Federal no caso do impeachment. Maioria abso-
luta é o primeiro número inteiro imediatamente superior à metade dos membros do órgão legislativo ou integrantes da
respectiva Casa Legislativa. Maioria simples é o primeiro número inteiro imediatamente superior à metade dos presentes
em determinada sessão. Dessa forma, é equívoca a definição de maioria como metade mais um, pois seria impossível
determiná-la se a composição fosse ímpar” (SIQUEIRA JR., 2017. p. 73).
76 Teoria do Direito

• Promulgação: com a sanção, ocorre a promulgação da lei, que é o momento em que


o Presidente da República declara a existência da lei, informando que ela possui
­executoriedade. No caso de sanção tácita ou de rejeição do veto presidencial, é o presi-
dente do Senado o responsável pela promulgação.
• Publicação: momento no qual a lei é conhecida por todas as pessoas e se torna vigente.
Enquanto a promulgação obriga o Estado, a publicação envolve a coletividade.

Figura 1 – Resumo do processo legislativo para lei ordinária federal

Publicação

Rejeitado no
plenário
Promulgação

Começa na casa Discussão nas Aprovação no Envio à casa


iniciadora comissões plenário revisora

Sanção
presidencial
Retorna à casa Existem
Sim Não
iniciadora emendas?
Veto presidencial

Retorna para o
Congresso Nacional, que
pode derrubar o veto

Fonte: Elaborada pelas autoras.

De acordo com Dimoulis, é preciso analisar se uma norma é válida em determinado período,
país e território, considerando o texto constitucional. As normas jurídicas serão válidas se estiverem
adequadas ao processo legislativo descrito na Constituição Federal, isto é, se a forma pela qual ingres-
saram no ordenamento jurídico respeitou os ditames constitucionais. Ademais, se o conteúdo de uma
norma for contrário à Constituição, ele também perderá a validade após a análise judicial.
Após a publicação de uma lei, o Poder Judiciário realiza o controle dos atos legislativos
quanto à sua concordância com a Constituição, o que é chamado de controle de constitucionalidade.
Verificamos, assim, que a validade das normas jurídicas repousa na adequação de sua forma e con-
teúdo com o texto constitucional.
Vamos analisar as espécies normativas mencionadas pela Constituição Federal de 1988.
Segundo o artigo 59, as espécies normativas previstas são: emendas à Constituição, leis comple-
mentares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções
(BRASIL, 1988).
• Emendas à Constituição: é a medida para modificar ou ampliar o texto constitucional; seu
procedimento é previsto no artigo 60 da Constituição Federal. A capacidade de alteração
Teoria da norma jurídica 77

do texto constitucional é limitada, não poderá envolver a forma do Estado, o voto secreto,
direito e universal, a separação de poderes e os direitos e garantias individuais.
• Leis complementares: determinados dispositivos na Constituição precisam ser com-
plementados, de modo que o próprio texto constitucional indica essa espécie legislativa
como forma de regulamentação. É importante ressaltar que esse tipo legislativo possui um
quórum mais difícil de ser alcançado do que seria a maioria absoluta dos parlamentares4.
• Leis ordinárias: é o ato normativo elaborado de modo comum pelo Poder Legislativo.
Todas as vezes em que a Constituição emprega o termo lei, está fazendo remissão a
essa espécie legislativa. Ela pode regular qualquer matéria, exceto as restritas às outras
espécies legislativas.
• Leis delegadas: são atos normativos produzidos pelo Presidente da República após
uma delegação do Poder Legislativo, por meio de uma resolução. Alguns temas não po-
dem ser delegados, como os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, da
Câmara dos Deputados e do Senado Federal, matérias reservadas à lei complementar,
legislação sobre a organização do Poder Judiciário e do Ministério Público e de suas
carreiras, leis sobre nacionalidade, cidadania, direitos individuais e políticos e também
sobre o orçamento. As leis delegadas possuem equiparação às leis ordinárias. Essa espé-
cie legislativa não é muito empregada pelo Poder Executivo, em razão da existência das
medidas provisórias, que são mais fáceis de serem utilizadas.
• Medidas provisórias: são atos realizados pelo Presidente da República e possuem força
de lei, porém só poderão ser empregadas se forem atendidos os pressupostos de rele-
vância e urgência da matéria. Após sua edição, esses atos produzem efeito por 60 dias,
sendo prorrogáveis por mais 60 dias, com prazo máximo de 120 dias. Esses atos podem
se transformar em leis ordinárias se, durante esse período, as medidas provisórias forem
votadas pelo Congresso Nacional. Caso não sejam votadas, elas perdem sua eficácia, de-
vendo o Congresso Nacional modular os seus efeitos por meio de um decreto legislativo.
Enquanto o Congresso não editar o decreto legislativo, as relações jurídicas ficam sendo
reguladas pela medida provisória.
• Decreto legislativo: é um ato normativo administrativo próprio do Congresso Nacional
sobre matérias de sua competência, e seu quórum é a maioria simples. Essa espécie nor-
mativa não tem a participação do Presidente da República.
• Resoluções: a Constituição Federal apresenta as resoluções como uma competência do
Congresso Nacional e não estão sujeitas à sanção do Presidente da República. As resolu-
ções dispõem sobre as deliberações do Congresso Nacional com base na Constituição, bem
como no regimento interno da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (SIQUEIRA
JR., 2017, p. 77-96).

4 Significa que, para as leis complementares serem votadas e aprovadas, é necessário que mais da metade de todos
os parlamentares (não apenas os presentes) votem de modo favorável.
78 Teoria do Direito

Considerações finais
As normas jurídicas são válidas, dotadas de coercibilidade em razão de sua adequação ao
texto constitucional, seja em seu formato (modo com o qual ingressou no ordenamento jurídico),
seja em sua matéria (adequação do texto da norma conforme o texto constitucional). Nos próxi-
mos capítulos, vamos estudar o ordenamento jurídico e a interpretação jurídica, temas correlatos
ao conceito de norma jurídica e que irão completar todos os elementos essenciais para a compreen-
são do Direito.

Ampliando seus conhecimentos


Ao longo deste capítulo, fizemos menção à teoria tridimensional do Direito, de Miguel Reale,
para quem o Direito é constituído de três elementos inseparáveis: fato, valor e norma. Em uma de suas
palestras transcritas, o autor explica o que seria a norma jurídica de acordo com sua teoria. Na con-
tinuidade de seu ensinamento, o jurista cita um exemplo da época para explicar como os fatos e os
valores condicionam a interpretação da norma jurídica. Nós vamos estudar um exemplo recente dessa
espécie de alteração. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental n. 132 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4277, decidiu que o artigo
1.7235 do Código Civil, que versa sobre as uniões estáveis, deveria também se estender às uniões ho-
moafetivas, contrariando a literalidade do dispositivo, porém alcançando essas uniões que aconteciam
na sociedade como entidade familiar, albergando o valor da igualdade e da não discriminação com
relação às uniões estáveis heteroafetivas. Em suma, o reconhecimento realizado pela suprema corte de-
monstra que a interpretação da norma jurídica sofre alterações diante de novos fatos e novos valores,
indo ao encontro do entendimento de Miguel Reale.

Teoria tridimensional do Direito


(REALE, 1994, p. 124-125)
Que é uma norma? Uma norma jurídica é a integração de algo da realidade social numa estru-
tura regulativa obrigatória. Vamos examinar, por exemplo, o fato econômico pois qualquer
fato pode ser tomado como referencial. Sobre esse fato incide um complexo de interesses ou
valoração que exigem uma disciplina normativa, e edição, por exemplo, de uma norma legal.
Notem que o tridimensionalismo não serve só para o Direito, mas para qualquer atividade
cultural. Assim é que o artista, inspirado ante certa realidade factual, projeta sua preferência
valorativa, impressionista ou expressionista, por exemplo, e esta se concretiza numa forma
expressa por uma pintura ou uma escultura. O que é uma obra de arte senão a expressão
formal de uma vivência axiológica do fato vivido pelo artista? Ora a forma para o artista é a
norma para o jurista. A norma é a forma que o jurista usa para expressar o que deve ou o que
não deve ser feito para a realização de um valor ou impedir a ocorrência de um desvalor.
Mas acontece que a norma jurídica está imersa no mundo da vida, ou seja, na nossa vivência
cotidiana, no nosso ordinário modo de ver e de apreciar as coisas. Ora, o mundo da vida muda.
Então acontece uma coisa que é muito importante e surpreendente: uma norma jurídica

5 “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2002, art. 1723).
Teoria da norma jurídica 79

qualquer mudança gráfica, uma norma do Código Civil ou do Código Comercial, sem ter
alteração alguma de uma vírgula, passa a significar outra coisa.
[...]

Atividades
1. Em meio à vida em sociedade, diversas são as regras e os comportamentos exigidos das pes-
soas de acordo com determinados contextos. Desse modo, as normas jurídicas se diferen-
ciam das demais regras. Explique as principais características das normas jurídicas e como
elas destoam das demais regras sociais de convivência.

2. Quais são as diferenças entre regras e princípios, de acordo com o pensamento de Robert
Alexy? Essas diferenças têm efeitos práticos?

3. De acordo com a teoria tridimensional do Direito, de Miguel Reale, quais são os elementos
que conformam a norma jurídica e que dela são inseparáveis? Esses elementos são essenciais
apenas para a formação da norma jurídica ou continuam interferindo em sua interpretação
e entendimento?

4. Discorra sobre as fases do processo legislativo e a importância dos respectivos atos para a
validade das normas jurídicas.

Referências
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2011.

BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao Direito. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 1 mar. 2018.

______. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF,
11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 1
mar. 2018.

DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do Direito. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo:
Atlas, 2003.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. São Paulo: M. Fontes, 1998.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. 39. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

POLETTI, Ronaldo. Introdução ao Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Teoria do Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
7
Teoria geral do ordenamento jurídico

Neste capítulo, vamos estudar o ordenamento jurídico, suas principais características, bem
como um modo de resolver as antinomias e as lacunas jurídicas. O referido estudo se mostra de
grande importância para a compreensão e a operação da ciência jurídica, pois uma boa compreen-
são do ordenamento jurídico é a base instrumental para uma satisfatória resolução dos conflitos
normativos com os quais o operador do Direito se depara diariamente.

7.1 O ordenamento jurídico e suas características


Como já vimos em capítulos anteriores, o ordenamento jurídico é um sistema em constante
transformação, já que, rotineiramente, surgem novas normas, outras deixam de ser utilizadas, por
terem sido derrogadas ou por caírem em desuso. Diariamente surgem novas interpretações dou-
trinárias e jurisprudenciais sobre normas já existentes, e também se identificam problemas na apli-
cação de normas eventualmente conflitantes entre si, bem como situações jurídicas não reguladas
pelo legislador, temas que serão abordados neste capítulo.
Podemos, então, compreender o ordenamento jurídico como uma organização complexa
formada pelas normas jurídicas (NUNES, 2017, p. 325). As referidas normas, como vimos, têm
como origem um poder soberano, e seu objetivo é regular o comportamento dos indivíduos que
a ela se submetem. Desse modo, o ordenamento jurídico pode ser traduzido como um complexo
de normas.
É importante ressaltar que a teoria do ordenamento jurídico foi desenvolvida no seio do po-
sitivismo jurídico, tendo como principal influência a obra de Hans Kelsen, Teoria pura do Direito,
que foi aprimorada por Norberto Bobbio no final da década de 1950. Bobbio compreendeu que as
normas jurídicas não podiam existir sozinhas, mas que há uma ligação das normas entre si e com
o contexto a que se aplicam. Apesar de alguns pensadores considerarem a teoria do ordenamento
jurídico um pensamento a ser ultrapassado, ela ainda ensina muito a respeito dos desafios diante
da aplicação do Direito positivo (NUNES, 2017, p. 325; ABBOUD, 2015, p. 353).
Entre os pontos de colaboração dessa doutrina para a compreensão do Direito, podemos
citar: (i) a pluralidade de normas que constituem a unidade do ordenamento jurídico por meio de
uma hierarquia normativa dada pela Constituição; (ii) critérios para resolver as contradições nor-
mativas; (iii) identificação dos diferentes ordenamentos jurídicos presentes nos diferentes ordena-
mentos jurídicos internacionais e como deverão ser resolvidos os conflitos entre tais ordenamentos
(ABBOUD, 2015, p. 345-346).
82 Teoria do Direito

O estudo dessa teoria, apesar de eminentemente positivista, colabora para uma compreen-
são das normas jurídicas e de sua operacionalidade. Hans Kelsen – autor de grande relevância para
o estudo do Direito e do positivismo jurídico – considera que o Direito se identifica com o conceito
de norma jurídica (apud ABBOUD, 2015, p. 342) e preconiza em suas obras uma classificação so-
bre as normas jurídicas separando-as em estáticas e dinâmicas1.
As normas estáticas são normas postas, cujo objetivo é descrever o sistema das normas exis-
tentes, enquanto as normas dinâmicas são aquelas que permitem um verdadeiro processo de cria-
ção de novas normas, sendo seu objetivo principal a dinâmica de produção e a aplicação do Direito.
Veja-se que a dinâmica das normas jurídicas deve ser sempre observada no processo
legislativo, o qual já se encontra amparado por outras normas jurídicas. Ou seja, o próprio
Direito regula a produção e aplicação de novas normas jurídicas. No ordenamento jurídico
brasileiro, os dispositivos contidos na Constituição Federal atribuem a competência e a forma
pela quais novas normas serão editadas.
As normas, embora passem formalmente por rigoroso processo legislativo, não estão livres
de eventuais contradições. As contradições ocorrem porque os membros do Poder Legislativo se
alternam no tempo e, ao regular determinados temas, podem criar consequências jurídicas opostas
ao que anteriormente estava legislado. Assim, é necessário ao operador do Direito interpretá-las
de acordo com a hierarquia normativa, a fim de verificar a observação da ordem de integração dos
diplomas normativos.
Como vimos no capítulo anterior, o ordenamento jurídico, para revestir-se de validade, deve
obrigatoriamente observar as normas vigentes. Logo, uma norma somente será válida e adequada
formalmente se for condizente com as normas hierarquicamente superiores.
A teoria do ordenamento jurídico, portanto, está diretamente relacionada com a interpre-
tação e a compreensão do Direito e é uma importante contribuição do positivismo jurídico para
a teoria do Direito, apresentando três importantes características que estudaremos a seguir, com
base nos estudos de Norberto Bobbio2.
(i) Unidade: o ordenamento jurídico é uno, não admitindo contradições. Hans Kelsen
defendia que o ordenamento seguia uma disposição dinâmica, na qual as normas seriam criadas
de acordo com uma hierarquia. Assim, a validade da norma seria garantida sempre pela nor-
ma superior que lhe atribui competência específica, a qual o autor denomina norma hipotética
fundamental. Tal norma estaria acima até mesmo da Constituição, uma vez que é carregada
de verdadeiro poder instituidor das normas constitucionais. Logo, as normas teriam validade
apenas se estivessem em harmonia com a referida norma fundamental e com todo o sistema
desenvolvido com base nela.

1 Veja mais sobre a teoria das normas e suas classificações em Kelsen (1998).
2 Veja mais sobre o tema em Bobbio (1995), a partir da página 115.
Teoria geral do ordenamento jurídico 83

Esse sistema jurídico é comumente representado por uma pirâmide, como segue:
Figura 1 – Hierarquia normativa
Externa ao Direito positivo,
NORMA HIPOTÉTICA
confere validade a todo
FUNDAMENTAL
o sistema normativo

Lei suprema que


CONSTITUIÇÃO
configura o Estado

Legislação infraconstitucional
NORMAS GERAIS
e outras fontes do Direito

Norma aplicada em decisões


NORMA APLICADA
judiciais, contratos etc.

Fonte: Elaborada pelas autoras.

A ideia da unidade do ordenamento jurídico compreende que a norma superior confere


validade à norma inferior, sendo que a própria Constituição também possui um fundamento
de validade, que seria a norma hipotética fundamental. Já no caso desta última, ela seria a peça da
qual todo o ordenamento jurídico deriva: não estaria posta pelo legislador, mas descrita por quem
estuda o ordenamento jurídico.
Essa ficção jurídica desenvolvida por Kelsen para fundamentar a validade do ordenamento
jurídico é compreendida por outros autores de modo distinto. Hebert Hart considera que o que
confere validade ao ordenamento jurídico é a regra de reconhecimento, a qual passa pela aceitação
das normas jurídicas em virtude da concordância social.
(ii) Coerência: o positivismo afirma que o ordenamento jurídico será dotado de coerên-
cia na medida em que não houver contradições entre as variadas normas que o compõe. Logo,
tem-se que o positivismo nega a existência de antinomias e incompatibilidades entre normas.
As antinomias podem ser aparentes ou reais. As antinomias aparentes podem ser resolvidas por
meio de três critérios: cronológicos, hierárquicos ou de especialidade. Já as antinomias reais não
seriam passíveis de resolução por meio desses critérios.
84 Teoria do Direito

Vejamos a figura a seguir.


Figura 2 – Modo de resolução de antinomias aparentes

Normas mais recentes prevalecem sobre


Qual norma jurídica foi
CRITÉRIO CRONOLÓGICO as normas mais antigas, e a norma poste-
editada por último?
rior derroga a anterior.

Diante de um conflito entre normas de


Qual norma jurídica possui grau
CRITÉRIO HIERÁRQUICO diferentes estratos, prevalece a norma
hierárquico superior?
que possui critério superior.

Em caso de conflito entre normas que


Qual das normas em conflito trata tratam de uma mesma relação jurídica,
CRITÉRIO DA ESPECIALIDADE
do tema de modo específico? prevalece aquela com regras mais especí-
ficas para a situação.

Fonte: Elaborada pelas autoras.

(iii) Completude: o critério da completude tem como base a premissa positivista de que o
ordenamento jurídico não apresenta lacunas. No entanto, estamos entre aqueles que entendem que
existem, sim, lacunas jurídicas e que cabe ao juiz realizar a integração das normas.
Para Lenio Luiz Streck:
A discussão sobre a existência (ou não) de lacunas no direito assume relevância,
basicamente, em dois aspectos: em primeiro lugar, a discussão é importante
para a própria dogmática jurídica, na medida em que a tese das lacunas serve
como forte entendimento norteador e, também, como sustentáculo ao direito
visto de maneira circular e controlado; em segundo lugar, serve igualmente,
como argumento desmi(s)tificador do próprio dogma do direito baseado no
modelo napoleônico, pois pode-se entender, sem dúvida, que, quando o juiz
está autorizado/obrigado a julgar nos termos dos arts. 4º da LICC e 126 do CPC
(isto é, deve sempre proferir uma decisão), isso significa que o ordenamento é,
dinamicamente, completível, através de uma auto-referência ao próprio sistema
jurídico. (STRECK, 2007, p. 104-105)

Como vimos, o Direito é fruto de dinâmicas transformações sociais, sendo certo que sua
força motriz é o já estudado fenômeno social e que não há, a nosso ver, como se afirmar que não
existem lacunas jurídicas.
Ao desempenhar seu papel de dimensionar as soluções dos litígios por meio da legislação,
o legislador não consegue prever todos os desdobramentos e consequências que a legislação terá
para resolver os conflitos sociais.
Essa limitação fica ainda mais clara quando pensamos no advento tecnológico, na alteração
das relações sociais contemporâneas e, em especial, na crescente complexidade das situações co-
tidianas, o que faz surgir diariamente novas querelas, as quais, com o passar do tempo, transfor-
mam-se em fatos jurídicos, sendo impossível para o legislador alcançar de antemão a repercussão
que uma lei trará à sociedade.
Teoria geral do ordenamento jurídico 85

As lacunas jurídicas podem ser classificadas da seguinte forma: (i) próprias e impróprias;
(ii) subjetivas e objetivas; e (iii) praeter legem e intra legem.
(i) Próprias: aquelas que são percebidas dentro do sistema jurídico;
Impróprias: que derivam de comparação com outros sistemas jurídicos.
(ii) Subjetivas: decorrentes de lacunas deixadas pelo próprio legislador;
Objetivas: ocorrem com a interação das relações sociais.
(iii) Praeter legem: quando a norma não compreende todos os casos;
Intra legem: quando a norma é genérica, deixando margem para o intérprete.
Divergências à parte, entendemos que as lacunas não estão propriamente no ordenamento
jurídico, mas, sim, nas normas jurídicas, pois, com os meios de integração que veremos a seguir,
tais “faltas” poderão ser preenchidas. Assim, quando há a existência das chamadas lacunas jurídi-
cas, os operadores do Direito devem fazer uso da integração, como mecanismo de preenchimento
desse vácuo jurídico.

7.2 A integração das lacunas jurídicas


Como vimos, a doutrina não é unânime no que tange à existência e conceituação das lacunas
jurídicas. Em nosso entendimento, a questão das lacunas é uma questão aberta, que permite inge-
rência de diferentes posições ideológicas.
Filiamo-nos ao conceito de Tercio Sampaio Ferraz Jr., que afirma que a lacuna jurídica
“é uma incompletude insatisfatória dentro da totalidade jurídica” (ENGISCH apud FERRAZ JR., 2016,
p. 177). Incompletude é a negação do ato de estar completo, ou seja, algo não acabado, dentro de um
limite de lógica, considerando que, para ser completo, sempre haverá um limite fixado, caso contrário,
nada se revestiria de completude, se a lógica fosse infinita. É justamente essa finitude que fixa a lógica
jurídica do que é ou não completo juridicamente e que determina a “totalidade jurídica” do conceito
supracitado. Assim, tem-se que citada incompletude dentro do limite jurídico é insatisfatória ao orde-
namento, já que deveria haver completude jurídica dento do marco limítrofe.
Vejamos alguns exemplos de lacunas que foram supridas com o tempo e pelo uso de outras
fontes do Direito. O “gato” de energia elétrica, ao se tornar um problema reiterado e revestir-se das
características de fato jurídico, necessitou de interpretação do operador do Direito, pois não havia
tipo penal correspondente a tal conduta – o Código Penal, ao tratar do furto3, referia-se à coisa móvel.
Desse modo, a interpretação judicial considerou que o “gato” envolveria dois tipos penais: o esteliona-
to (BRASIL, 1940, art. 171), quando a pessoa altera o medidor de energia, e o furto propriamente dito.

3 “Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”
(­BRASIL, 1940).
86 Teoria do Direito

O cheque pré-datado é outro bom exemplo de lacuna jurídica. A Lei n. 7.357/854, que trata
do cheque, não prevê essa modalidade, inclusive consigna que o cheque é vencível à vista, mas,
como sabemos, é prática comercial brasileira o “bom para” ao pré-datar as folhas de cheque, outro
fenômeno social que se revestiu de fato jurídico e necessitou da interpretação dos operadores do
Direito, a fim de se promover a integração dessa lacuna jurídica.
Para suprir as lacunas, o ordenamento jurídico faz uso da técnica da integração das lacunas,
a fim de sanar omissão legislativa ou, ainda, em casos em que o próprio legislador deixa a critério
do julgador a interpretação sobre determinado assunto, sem vinculação legal específica para o
mesmo. Há, ainda, a possibilidade de duas normas apresentarem disposições contraditórias, uma
anulando a outra – fenômeno chamado antinomia –, defeito este que provém do legislador e que
veremos no item a seguir.
Por ora, basta compreender que, ao se deparar com lacunas jurídicas em que a lei é omissa
ou em que o legislador deixou a cargo do julgador a aplicação da norma, o julgador deve utilizar-se
de técnicas que permitam a real compreensão do alcance da norma, fazendo uso de outras fontes
do Direito. Vejam que “os elementos de integração do Direito não constituem fontes formais por-
que não formulam diretamente a norma jurídica, apenas orientam o aplicador para localizá-las”
(NADER, 2017, p. 191). Os meios de integração não são sinônimos de atividades de interpretação,
não se preocupam, pois, em definir o sentido das normas jurídicas, tampouco seu alcance, mas,
sim, dirimir o vácuo jurídico ali existente.
colmatar: corrigir, Assim, “a chamada integração é o meio pelo qual o intérprete colmata a lacuna encontrada”
alterar, tapar fendas.
(NUNES, 2017, p. 327), o que pressupõe que o operador do Direito tenha exaurido o uso das regras
de interpretação, a fim de encontrar uma norma existente aplicável, ainda que por analogia, ao caso
em tela. Só após essa vasta investigação, e não detectando norma compatível e hábil a suprir tal
situação, é que efetivamente se constata a existência de uma lacuna jurídica, a qual deve ser preen-
chida por meio da integração das lacunas que veremos adiante.
A discussão sobre as lacunas jurídicas é bastante antiga. Os romanos já reconheciam a possi-
bilidade de lacunas jurídicas, tanto em relação ao Direito positivado quanto aos costumes, principais
fontes do Direito na época. Seu maior defensor, Justiniano, preconizava que seria impossível haver
leis que resolvessem todos os problemas existentes.
Na doutrina moderna, há pluralidade de teorias sobre a existência de lacunas jurídicas, quais
sejam: realismo ingênuo, empirismo científico, ecletismo, pragmatismo e apriorismo.
1. O realismo ingênuo defende que as lacunas e os espaços vazios são criados pela evolução
social. Esses espaços vazios estão presentes não somente na lei, mas em todo o sistema
jurídico. Assim, para os defensores dessa teoria, muitas lacunas não poderiam ser solu-
cionadas com normas preexistentes, e os problemas que as originaram eram posteriores
à criação dessas normas.

4 “Art. 32. O cheque é pagável à vista. Considera-se não estrita qualquer menção em contrário. Parágrafo único –
O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação”
(BRASIL, 1985).
Teoria geral do ordenamento jurídico 87

2. O empirismo científico tem a liberdade como base da norma. Compreende, pois, que
tudo o que não estaria vetado por esta seria automaticamente permitido, o que levaria
à conclusão de inexistência de lacunas. Portanto, o que não estivesse previsto estaria
permitido, sem qualquer necessidade interpretativa.
3. A teoria do ecletismo, corrente que alberga a maioria dos teóricos, defende que a lei
poderia apresentar lacunas, mas a ordem jurídica não. Isso porque o Direito não se
restringe, na visão dessa teoria, somente à lei, mas a um sistema que engloba, além das
normas, os critérios gerais de sua aplicação.
4. O pragmatismo, corrente que reconhece a existência de lacunas no próprio ordenamen-
to jurídico, entende que o Direito sempre encontra fórmulas para regular os problemas
decorrentes da vida social.
5. A teoria do apriorismo filosófico defende que a ordem jurídica não apresenta lacunas.
Difere-se do empirismo jurídico, que também pugna pela inexistência de lacunas, mas pugnar: travar
combate; tomar a
compreende que a soma de regras jurídicas formaria o Direito, o qual, em sua totalidade, defesa.

estrutura o Direito positivo.


Norberto Bobbio (1995, p. 148) também se debruçou sobre a temática, trazendo, em sua
doutrina, dois métodos de resolução das lacunas jurídicas: a heterointegração e a autointegração,
que veremos a seguir.
O método da heterointegração defende que o preenchimento das lacunas decorre do orde-
namento jurídico anterior a elas. Ou seja, deve ser feito com o uso de fontes que não aquela domi-
nante, a lei, causadora da lacuna, mas com fontes diversas, tais como os costumes. Já o sistema da
autointegração prevê o uso do próprio sistema jurídico para o preenchimento das lacunas, mor-
mente o uso da analogia, que permitiria que uma lei destinada a situação semelhante fosse aplicada
ao fato sem previsão normativa.
A doutrina distingue a autointegração, que se opera pelo aproveitamento de ele-
mentos do próprio ordenamento, da heterointegração, que se faz com a aplica-
ção de normas que não participam da legislação, como é a hipótese, por exem-
plo, do recurso às regras estrangeiras. Considerado o sistema jurídico pátrio, a
integração se processa pela analogia e princípios gerais de Direito. (NADER,
2017, p. 191)

Vejamos:
Quadro 1 – Soluções para as lacunas jurídicas

Heterointegração Autointegração

Utiliza-se de regras de ordenamentos jurídicos anteriores Utiliza-se de regras aplicáveis a casos semelhantes,
para preencher a lacuna, por meio de costumes. analogias ou aos princípios gerais do Direito.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Há doutrinadores que trazem, ainda, outros mecanismos de integração: o método exegético,


muito utilizado pelo Direito francês, no qual se busca a vontade do legislador; o método dogmá-
tico-objetivo, ainda denominado de jurisprudência, que foca nos conceitos e se atém à lógica jurí-
dica, não se voltando às necessidades dos fatos sociais; o método da jurisprudência de interesses,
88 Teoria do Direito

no qual o Direito, cuja função é tutelar os interesses, é criado pela finalidade das normas; e outros
tantos descritos na obra do jurista português Castanheira Neves5.
No ordenamento jurídico brasileiro, a questão das lacunas jurídicas está prevista na Lei de
Introdução ao Direito Brasileiro, que em seu artigo 4º preconiza que “quando a lei for omissa, o
juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Isto
é, no Brasil o próprio ordenamento jurídico, já antevendo sua eventual omissão, estipulou regra
visando a saná-la.

7.3 As antinomias jurídicas


Como vimos, o Direito é fruto de lutas sociais – e, por isso, trata-se de uma realidade dinâmica
e mutável – que, com o desenrolar da história, se transformam em fatos jurídicos, sendo passíveis de
incongruências6 e de situações de ausência e/ou conflito normativo, que colocam à prova a estrutura
do sistema jurídico. No item anterior, pudemos conhecer o fenômeno das lacunas jurídicas; agora,
estudaremos o fenômeno da antinomia jurídica.
O termo antinomia surge na Antiguidade, tendo seu atual sentido se consolidado em meados do
século XVIII, quando o teórico Zedler “define antinomia como contrariedade de leis que ocorre quan-
do duas leis se opõem ou mesmo se contradizem” (apud FERRAZ JR., 2016, p. 166). Trata-se de um
“enunciado que é simultaneamente contraditório e demonstrável” (FERRAZ JR., 2016, p. 166), sendo
que parte da doutrina classifica o fenômeno em:
• (i) antinomia lógico-matemática, como aquela que se dá em sistemas formais, que gera
autocontradição em processo de lógica;
• (ii) antinomia semântica, que, embora leve a uma dedução correta, tem incoerências
decorrentes da estrutura e da linguagem;
• (iii) e antinomia pragmática, que ocorre quando há relação de complementariedade
e subordinação entre o emissor e o receptor da mensagem e, concomitantemente, para
se obedecer a determinada instrução outra deve ser desobedecida previamente, sendo
uma contradição lógica. “Assim, enquanto a antinomia lógico-matemática configura uma
falácia e a semântica um sem-sentido, a pragmática aponta para uma situação possível
nas relações humanas, mas que leva uma das partes a uma situação de indecidibilidade”
(FERRAZ JR. 2016, p. 168).

5 Veja mais sobre o tema em Neves (1993, p. 212).


6 “O homem, enquanto realidade histórico-social, tende a criar e a desenvolver, no contexto de um mundo natural e de
um mundo valorativo, formas de vida e de organização societária. A espécie humana fixa, na esfera de um espaço e de
um tempo, tipos e expressões culturais, sociais e políticas, demarcadas pelo jogo dinâmico de forças móveis, heterodoxas
e antagônicas. Cada indivíduo, vivendo na dimensão de um mundo simbólico, linguístico e hermenêutico, reflete padrões
culturais múltiplos e específicos. Sendo a realidade social o reflexo mais claro da globalidade de forças e atividades
humanas, a totalidade de estruturas de um dado grupo social precisará o grau e modalidade de harmonização deste.”
(WOLKMER, 2000, p. 64)
Teoria geral do ordenamento jurídico 89

Para nosso estudo das antinomias jurídicas, é condição que as normas conflitantes7 expres-
sem ordens que emanem de autoridades competentes no mesmo âmbito jurídico, seja interno ou
internacional. Veremos mais adiante que existem antinomias nacionais, internacionais e internas-
-internacionais; seguindo o raciocínio anteriormente esposado, embora as normas em colisão per-
tençam a domínios jurídicos diversos, são aplicáveis dentro de um mesmo ordenamento jurídico
em determinado caso concreto, o que torna possível sua existência.
Teremos a figura da antinomia quando duas normas, embora válidas no ordenamento jurí-
dico, apresentam conteúdos incompatíveis entre si.
A doutrina classifica as antinomias em: (i) reais e aparentes; (ii) próprias e impróprias;
(iii) quanto ao âmbito; e (iv) quanto à extensão da contradição.
(i) Antinomias reais e aparentes: a distinção das antinomias reais e aparentes, que se funda
na existência ou não de critérios normativos positivados para a solução da antinomia,
quando não há critérios para solução ou quando os critérios existentes são insuficientes.
De acordo com Tercio Sampaio Ferraz Junior:
Por exemplo, duas normas constitucionais (mesmo nível), igualmente gerais
(mesma extensão), promulgadas ao mesmo tempo (simultâneas) configurariam
caso de antinomia real. Na verdade, essa distinção implica que estejamos cha-
mando de antinomia real o caso de lacuna de regras de solução de antinomia.
Note, nesse sentido, que o reconhecimento dessa lacuna não exclui a possibi-
lidade de solução efetiva, quer por meios ab-rogatórios (edita-se nova norma
que opta por uma das normas antinômicas), quer por meio de interpretação
equitativa, recurso ao costume, à doutrina, a princípios gerais de direito etc. O
fato, porém, de que essas antinomias ditas reais sejam solúveis desta forma não
exclui a antinomia, mesmo porque qualquer das soluções, ao nível da decisão
judiciária, pode suprimi-la no caso concreto, mas não suprime a sua possibi-
lidade no todo do ordenamento, inclusive no caso de edição de nova norma
que pode, por pressuposição, eliminar uma antinomia e, ao mesmo tempo, dar
origem a outras. (2016, p. 172)

(ii) As próprias e impróprias: as antinomias próprias são aquelas que ocorrem por razões
formais, quando, por exemplo, uma norma permite e outra obriga; já as impróprias se
dão em virtude do conteúdo material das normas, quando normas de um mesmo orde-
namento protegem valores opostos entre si.
(iii) A classificação de antinomias quanto ao âmbito são: de Direito interno, de Direito inter-
nacional e de Direito interno-internacional. As antinomias de Direito interno ocorrem
dentro de um mesmo ordenamento estatal. As antinomias internacionais8 ocorrem entre

7 “Não é princípio lógico, mas um princípio jurídico-positivo, poder-se-ia objetar que uma norma que regula a realizante
derrogação no caso de conflito de normas, como norma expressamente estabelecida, em geral não se encontra num or-
denamento positivo. A partir disto, é de se explicar que o legislador muitas vezes deixa de normas expressamente porque
ele o pressupõe como evidentemente implícito.” (KELSEN, 1986, p. 162)
8 “Classificação quanto ao âmbito. Fala-se, nesse caso, em antinomias de direito interno, de direito internacional, de
direito interno-internacional. As primeiras são as que ocorrem dentro de um ordenamento estatal e podem ser dentro de
um ramo do direito (direito civil, constitucional etc.), ou entre normas de diferentes ramos. As segundas ocorrem entre
normas de direito internacional. As terceiras referem-se a conflitos de normas de direito interno com as de outro direito
interno ou entre normas de um direito interno e as de direito internacional.” (FERRAZ JR., 2016, p. 173)
90 Teoria do Direito

ordenamentos internacionais. Em casos de antinomias internacionais, a doutrina convencio-


nou algumas regras para a solução dos conflitos: a prior in tempore potior in jus, que deter-
mina a observância no disposto no primeiro tratado ou norma, pugnando pelo princípio da
primazia da obrigação assumida primeiro; a lex posterior derogat priori, de lógica inversa, na
qual a norma mais nova derroga a anterior; a lex specialis derogat generali, que preconiza que
a norma mais específica ao caso concreto derroga a geral, desde que as partes sejam as mes-
mas; e a lex superior derogat inferiori, a qual prevê que a norma de maior valor prevalecerá,
entendendo-se por valor da norma o bem jurídico albergado. E as antinomias internas-inter-
nacionais são conflitos entre norma de Direito interno com outra de Direito internacional.
(iv) A classificação das antinomias quanto à extensão: podem ser total-total, quando uma
norma não pode ser aplicada em circunstância alguma sem conflito com outras; total-
-parcial, quando uma das normas tem um campo de aplicação que entra em conflito
com apenas parte da outra norma e parcial-parcial, quando as duas normas têm partes
que conflitam e partes que não conflitam entre si.
Essa classificação acerca das formas de antinomias revelam as fragilidades do ordenamento
jurídico diante das contradições e das omissões, de modo que os doutrinadores buscam saídas para
essas situações que desafiam o ordenamento.

Considerações finais
Neste capítulo, pudemos compreender a importância do ordenamento jurídico e de seu
funcionamento no que tange às lacunas e antinomias jurídicas. Os referidos fenômenos podem
surgir no cotidiano da prática forense, sendo, portanto, de suma importância ao operador do
Direito saber como lidar em casos assim. Compreender como o ordenamento jurídico funciona
e resolve suas próprias incongruências é essencial para entender o sentido e o alcance dos ter-
mos empregados nas leis e que serão posteriormente utilizados nas petições e decisões judiciais.
Desse modo, a integração do ordenamento jurídico é um dos elementos que colaboram para a
interpretação jurídica, tema que será desenvolvido no próximo capítulo.

Ampliando seus conhecimentos


Sobre o surgimento das antinomias e suas refrações no mundo jurídico, Carlos Maxilimiano
traz algumas reflexões importantes. Pondera que, à primeira vista, o operador do Direito poderá se
deparar muitas vezes com contradições que nem sempre serão, de fato, antinomias. Assim, deve-se
primeiro realizar um exercício hermenêutico das normas em tese incompatíveis, para só então
determinar se realmente se trata de um caso de normas inconciliáveis. Isso porque a interpretação
é uma importante ferramenta no mundo jurídico, podendo dirimir querelas ou criar outras ainda
mais controversas. Vejamos um trecho.
Teoria geral do ordenamento jurídico 91

Hermenêutica e aplicação do Direito


(MAXIMILIANO, 2011, p. 110)

Não se presumem antinomias ou incompatibilidades nos repositórios jurídicos; se alguém


alega a existência de disposições inconciliáveis, deve demonstrá-la até a evidência.
Supõe-se que o legislador, e também o escritor do Direito, exprimiram o seu pensamento com
o necessário método, cautela, segurança; de sorte que haja unidade de pensamento, coerência
de ideias; todas as expressões se combinem e harmonizem. Militam as probabilidades lógicas
no sentido de não existirem, sobre o mesmo objeto, disposições contraditórias ou entre si
incompatíveis, em repositório, lei, tratado, ou sistema jurídico.
Não raro, à primeira vista, duas expressões se contradizem; porém, se as examinarmos aten-
tamente (subtili animo), descobrimos o nexo culto que as concilia. É quase sempre possível
integrar o sistema jurídico; descobrir a correlação entre as regras aparentemente antinômicas.
Sempre que descobre uma contradição, deve o hermeneuta desconfiar de si; presumir que não
compreendeu bem o sentido de cada um dos trechos ao parecer inconciliáveis, sobretudo se
ambos se acham no mesmo repositório. Incumbe-lhe preliminarmente fazer tentativa para
harmonizar os textos; a este esforço ou arte os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772,
denominavam Terapêutica Jurídica.
[...]

Atividades
1. Considerando as características do ordenamento jurídico, mormente seu caráter de unidade,
discorra sobre os critérios para dirimir eventuais contradições entre normas.

2. No que tange à classificação das antinomias quanto a seu âmbito, discorra sobre os casos de
antinomias internacionais em situações em que a doutrina convencionou algumas regras
para a solução dos conflitos.

3. Sobre as lacunas jurídicas, discorra sobre os meios de autointegração e heterointegração.

4. Diferencie a norma hipotética fundamental das normas gerais e das normas aplicadas,
descrevendo a função e a importância de cada uma.

Referências
ABBOUD, Georges. Introdução à teoria e à Filosofia do Direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos; rev. téc. Cláudio de
Cicco. 6. ed. Brasília: Ed. da UnB, 1995.

BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília,
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Acesso em: 2 mar. 2018.
92 Teoria do Direito

BRASIL. Lei n. 7.357, de 2 de setembro de 1985. Dispõe sobre o cheque e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, DF, 3 set. 1985. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7357.htm>. Acesso
em: 2 mar. 2018.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 9. ed. São
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KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 2. ed. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: M. Fontes, 1998.

______. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1986.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. 39. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Ed., 1993.

NUNES, Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do Direito. 14. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
Direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
8
O Direito e a linguagem

Neste capítulo, vamos estudar as relações entre o Direito e a linguagem, verificando quais
são as formas de interpretação a serem realizadas pelo profissional do Direito. A interpretação é
uma operação importante para compreender o alcance e o significado dos termos jurídicos; desse
modo, fica demonstrada a sua essencialidade para a aplicação do Direito. Porém, não existe um
consenso acerca das técnicas a serem aplicadas com vistas a esse fim. Algumas técnicas compreen-
dem aspectos da lógica aplicada ao Direito, enquanto outras consideram a existência de casos que
fogem a esses moldes interpretativos.

8.1 A linguagem na interpretação e na aplicação do Direito


A capacidade de comunicação permitiu ao homem grandes saltos no desenvolvimento social
e tecnológico. A tradução da realidade em símbolos, sejam eles os primeiros desenhos nas cavernas
ou, ainda, os alfabetos antigos, demonstra uma preocupação em registrar as ideias, os pensamentos
e a própria realidade.
Denomina-se linguagem o meio pelo qual se comunicam ideias e sentimentos, por meio de
símbolos sistematizados. A linguagem é uma das ferramentas mais importantes para o estudo do
Direito, bem como para sua interpretação e aplicação. Apesar da utilização do idioma oficial (a língua
portuguesa), o emprego de termos técnicos e também de vocábulos com significados utilizados pela
maior parte da população confunde quem está no começo do estudo do Direito. No entendimento de
Norberto Bobbio, “só quando se consegue construir uma linguagem rigorosa, e só naqueles limites
em que tal linguagem se constrói, pode falar-se de investigação científica, de ciência, em uma palavra”
(BOBBIO apud NADER, 2017, p. 225).
Adquirir o vocabulário jurídico é um dos desafios para melhor compreender o Direito.
A linguagem jurídica se diferencia dos diferentes idiomas naturais, pois é artificial e compreendida
por um grupo de profissionais da área jurídica. Para Dimitri Dimoulis, o Direito é o idioma do
poder, pois interfere no comportamento das pessoas convencendo-as a adotar determinado com-
portamento (2013, p. 137).
Infelizmente, os termos técnicos empregados pela legislação, decisões judiciais e obras jurídi-
cas são de difícil assimilação e compreensão para a maior parte dos cidadãos. É um dever de todos
os profissionais do Direito não manter o monopólio da linguagem jurídica como algo fechado a um
grupo de juristas, mas, sim, empregar uma linguagem coerente com expressões acessíveis sem causar
más impressões e incertezas em ambas as partes (DIMOULIS, 2013, p. 138-140).
Na vida jurídica não apenas a linguagem da lei deve reunir os predicados de
simplicidade, clareza e concisão, também a constante dos contratos e de ou-
tras modalidades de negócios jurídicos. Ainda nas sentenças judiciais a lingua-
gem hermética, inacessível, é um mal a ser evitado. A este respeito, louvável
94 Teoria do Direito

a campanha encetada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB),


em 2005, em prol da simplificação da linguagem jurídica. Não se preconiza o
abandono da terminologia própria do Direito, pois a linguagem jurídica, como
se tem afirmado, não é uma questão de estilo, mas de precisão de conceitos.
(NADER, 2017, p. 225)

Além dos desafios que advêm dos termos técnicos, existem outros percalços a serem venci-
dos quando estudamos a linguagem jurídica. Compreender o significado das palavras e alcançar
o sentido que deverão ser empregadas é uma das missões principais daquele que estuda e aplica o
Direito. Neste capítulo, vamos nos dedicar ao estudo da interpretação do Direito.
No capítulo anterior, verificamos que o ordenamento jurídico é um complexo de normas
dotadas de validade, que buscam regular o comportamento social. Para aplicar o Direito é preciso
estabelecer os significados das normas jurídicas e, assim, enumerar os direitos e deveres para as
partes em uma determinada relação jurídica.
A fim de compreendermos melhor a aplicação do Direito, é necessário diferenciar alguns
conceitos importantes, diversos e complementares entre si, quais sejam, a integração, a interpreta-
ção e a aplicação do Direito.
• A integração: visa preencher lacunas da lei, em casos de lacunas jurídicas. Para tanto,
utiliza-se de métodos supletivos para preencher esses “vazios normativos”, conforme visto
no capítulo anterior.
• A interpretação: possui um caráter prático como elemento e instrumental essencial para
a aplicação do Direito. É vista como uma atividade complexa, baseada na relação entre
um signo e seu significado, sendo empregados métodos e técnicas de interpretação para
compreender o alcance e o sentido da norma jurídica.
• A aplicação: é a atividade prática de tomar uma norma abstrata na lei e enquadrá-la ao
caso concreto (esse passo somente é tomado após a interpretação da norma jurídica).
Além desses conceitos, os autores também empregam o termo hermenêutica jurídica para se
referir à disciplina teórica que investiga e coordena, por um meio sistemático, os princípios cien-
tíficos empregados para a interpretação jurídica. O termo hermenêutica traz, em sua raiz etimoló-
gica, uma associação com o deus grego Hermes, responsável por transmitir as mensagens divinas
para os homens, sendo considerado o deus da eloquência, da interpretação das mensagens e da
comunicação, entre outras atribuições.
A interpretação é um processo complexo. A chave está em compreender como submeter
um caso concreto à norma jurídica. Esse processo de subsunção relaciona-se profundamente à
aplicação do Direito. Parte da doutrina clássica compreende que a interpretação está associada a
uma operação lógica, na qual se deve analisar primeiramente a regra geral (a lei) e, depois, os fatos
sociais que permeiam o caso estudado, para, então, chegar à conclusão de que será definida pela
autoridade legal no momento da sentença.
O Direito e a linguagem 95

A aplicação do Direito “consiste no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica


adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo
adaptável a um fato determinado” (MAXIMILIANO, 2011, p. 5). Trata-se de um exercício que,
como vimos, busca adequar a ação humana ao ordenamento jurídico.
Vejamos as etapas que devem ser observadas para a aplicação do Direito1.
(i) Diagnóstico do fato: o operador do Direito deve verificar a questão a ser submetida e
encontrar o ponto de aplicação da lei. Trata-se de uma tarefa preliminar em que é con-
siderada a narrativa dos fatos.
(ii) Diagnóstico do Direito: a etapa seguinte consiste na indagação da existência de uma nor-
ma que disciplina os fatos sociais; trata-se de um trabalho de constatação de existência de
uma lei que se aplique aos fatos.
(iii) Crítica formal: após esses procedimentos preliminares de conhecimento dos fatos e da exis-
tência da lei aplicável, o operador do Direito passa a analisar as formalidades da norma.
(iv) Crítica substancial: nesta etapa, o operador do Direito deve analisar as questões de
validade e efetividade da lei, bem como o teor das normas jurídicas.
(v) Interpretação da lei: superadas as etapas anteriores, busca-se avaliar neste momento o
espírito das leis, o sentido e o alcance da norma jurídica.
(vi) Aplicação da lei: por fim, cumpridos os requisitos supracitados, passa-se à efetiva apli-
cação da lei em forma de silogismo.

O silogismo é uma espécie de raciocínio explicitado por Aristóteles e que é composto por
três proposições declarativas. As duas primeiras estão conectadas entre si por um termo comum
e culminam em uma terceira, que representaria sua conclusão necessária. Aplicando tal conceito
ao Direito, temos a premissa maior sendo a lei; a premissa menor, os fatos; e a conclusão, a sen-
tença judicial.

Figura 1 – Operação silogística

Premissa maior: dispositivos legais/normas jurídicas.


Premissa menor: elementos do caso concreto.
Conclusão entre as premissas: sentença judicial.

Fonte: Elaborada pelas autoras.

O emprego da lógica formal como metodologia tradicional de interpretação foi construído


durante o século XIX após o advento da Revolução Francesa e do Código Civil de Napoleão, de
1804. São fundamentos para essa forma de pensar a ideia de um Estado de Direito, a soberania
popular e a conquista dos direitos individuais em oposição ao Estado absolutista. Assim, as pes-
soas só obedeceriam à lei porque estão submetidas a uma legislação que decorre de sua vontade
(OLIVEIRA, 2012, p. 116).

1 Segundo ensinamento de Nader (2017, p. 152).


96 Teoria do Direito

É também nesse período que se fortalece a ideia da separação de poderes; assim, é o Poder
Legislativo o responsável pela edição das normas, cabendo ao Poder Judiciário a aplicação das leis.
Com o advento do positivismo jurídico, adequou-se ao Direito os moldes da lógica aplicada às ciên-
cias naturais, de modo a utilizar no Direito esse instrumental próprio das ciências humanas. Isso
culminou no pensamento de que a sentença seria o resultado de uma operação lógica dedutiva do
texto da lei (OLIVEIRA, 2012, p. 117).
Compreendemos, com base na obra de Bernardo Montalvão, que a interpretação é uma
mediação entre o que o legislador determinou e o que o julgador decidirá. Essa mediação não é
desinteressada, tendo em vista que ela revela o significado dos termos legais para alguém que quer
resguardar ou defender seu direito. O ato de interpretar traz em si um duplo sentido, pois, se de um
lado, temos a compreensão das normas a serem aplicadas; de outro, temos os fatos que devem se
adequar às normas (MONTALVÃO, 2017a, p. 208-209).
Por mais “lógica” e pautada em métodos interpretativos, essa atividade não é simples. O intér-
prete, em seu ofício, acaba enfrentando alguns problemas, como a vagueza da linguagem e a abstração
dos regulamentos legais.
(1) Em razão da imprecisão da linguagem, pode-se interpretar as leis de vários modos, e isso
pode acarretar dúvidas, incertezas e controvérsias.
(2) Já a abstração dos regulamentos legais acontece quando o legislador, em vez de regula-
mentar um caso concreto, quer regulamentar um conjunto amplo de casos, inclusive outras situa-
ções que podem ocorrer futuramente. Mas, para que isso aconteça, é necessário um grande grau de
abstração e o emprego de regras gerais a serem elucidadas pela interpretação (DIMOULIS, 2013,
p. 143-144).
A linguagem corrente se vale de termos com certa flexibilidade, sendo que seu significado
poderá oscilar em virtude das circunstâncias, do contexto, do discurso ou, ainda, da entonação de
determinadas palavras. Existem definições legais que são incompletas ou equívocas, e também a
possibilidade de um mesmo termo ser empregado de modo distinto. “O trabalho de interpretação
do Direito é uma atividade que tem por escopo levar ao espírito o conhecimento pleno das expres-
sões normativas, a fim de aplicá-lo às relações sociais. Interpretar o Direito é revelar o sentido e o
alcance de suas expressões” (NADER, 2017, p. 263, grifos nossos).
Dentro do universo jurídico, o advogado, os legisladores e os juristas realizam a interpre-
tação, mas é especialmente o julgador o responsável por delimitar os conceitos do texto legal
(MONTALVÃO, 2017a, p. 210-211).
Para Dimitri Dimoulis, a interpretação é um processo de atribuir sentido aos enunciados
normativos jurídicos, e esse significado não pode ser preenchido de qualquer modo: “o aplicador
do Direito não tem a liberdade de decidir de acordo com sua consciência ou opinião política”
(2013, p. 141). Para preencher esses significados, deve-se empregar os certos métodos específicos,
os quais veremos a seguir.
O Direito e a linguagem 97

8.2 Os métodos tradicionais de interpretação


Para bem compreender os métodos de interpretação é importante avaliar quem interpreta,
quais meios possui e como serão os efeitos da interpretação. “A interpretação é uma só. Entretanto se
lhe atribuem várias denominações conforme o órgão de que procede; ou se origina em uma fonte jurí-
dica, o que lhe dá força coativa; ou se apresenta como um produto livre da reflexão” (MAXIMILIANO,
2011, p. 71).
Partindo dos métodos de interpretação desenvolvidos por Friedrich Karl Von Savigny,
vamos estudar quais critérios são importantes para a interpretação.
Parte desses critérios foram desenvolvidos em meados de 1814, com a compreensão de que a
lei não é o resultado da razão, mas que deve refletir o desenvolvimento histórico e as alterações so-
ciais. Antes de estudarmos a fundo as técnicas desenvolvidas por Savigny (2001) – gramatical, lógica,
sistemática e histórica –, devemos nos perguntar: quem irá realizar a interpretação?
Em uma perspectiva que parte do Estado Democrático de Direito, temos os três poderes
que, conjuntamente, integram o “Poder Público”. Cada um, em sua atividade principal, está rela-
cionado à edição, à execução ou à interpretação da lei.
• Poder Judiciário: os julgadores são os intérpretes por excelência, pois, partindo das nor-
mas jurídicas e dos casos concretos, procuram soluções por meio da interpretação judicial.
É importante ressaltar que, em seu ofício de análise, os julgadores são influenciados pelos
juristas, os doutrinadores do Direito. São os pensadores do Direito que sistematizam
conceitos, desenvolvem técnicas e colaboram com soluções para os casos mais complexos.
• Poder Legislativo: o legislador também se envolve na interpretação legislativa no mo-
mento da edição das normas jurídicas, pois também precisa interpretar a Constituição
Federal e os regimentos internos das casas legislativas para que o processo de elaboração
normativa seja bem conduzido.

Os parlamentares, ao editar uma norma, passam por um longo processo de discussão e


reflexão das consequências para o ordenamento jurídico da inclusão de uma nova legislação.
Desse modo, são eles que inicialmente já refletem no alcance, no sentido e no impacto de uma
nova legislação. Existem casos em que o legislador executa uma interpretação autêntica quan-
do fixa conceitos dentro da própria legislação. Vejamos o exemplo a seguir, retirado do Código
de Defesa do Consumidor:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza pro-
duto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que
indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, na-
cional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvol-
vem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação,
importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou
prestação de serviços.
98 Teoria do Direito

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.


§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securi-
tária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. (BRASIL, 1990)

Para que os direitos previstos no referido Código fossem bem aplicados na vida em socieda-
de, o legislador viu a necessidade de determinar os conceitos de consumidor, fornecedor, produto e
serviço. Assim, se uma compra ocorre entre um fornecedor para outro fornecedor (alguém que não
é o destinatário final), o Código de Defesa do Consumidor não será empregado.
O administrador público também exerce a interpretação legislativa. De acordo com Maria
Zanella Di Pietro, enquanto as relações entre os particulares se desenvolvem dentro da autonomia
da vontade, o administrador só poderá realizar ações que decorram da lei (2017, p. 96). O adminis-
trador público poderá também colaborar no preenchimento das normas. Um exemplo é a Portaria
n. 344/1998 do Ministério da Saúde, que regulamenta o controle de substâncias no país, definindo
quais são psicotrópicas (BRASIL, 1998).
Quais são os passos que o intérprete deve considerar em sua atividade para bem compreen-
der o sentido das normas? Para Savigny, deve-se empregar critérios e técnicas de interpretação
que levem em consideração elementos gramaticais, lógicos, históricos e a percepção sistemática
da legislação (essas formas de interpretar são empregadas de modo conjunto). Vejamos, seguindo
Oliveira (2012, p. 119):
• Gramatical: é o começo da interpretação, momento no qual se realiza a transcrição do
sentido, por meio das regras gramaticais de sintaxe e de morfologia. Levando em consi-
deração as possibilidades de cada um dos sentidos das palavras, tenta-se entender o que o
legislador quis ordenar por intermédio da lei.
• Lógico: busca-se estabelecer uma relação lógica no ato de interpretar, visando descobrir o
sentido da lei mediante a aplicação dos princípios científicos da Lógica.
• Histórico: são levadas em consideração as circunstâncias que marcaram a formação da
norma jurídica, os acontecimentos/problemas e todos os motivos que determinaram a
sua edição. Para que essa espécie de interpretação ocorra, é necessário estudar a exposição
de motivos para a criação da lei e os relatórios das comissões parlamentares.
• Sistemático: parte-se da unidade que existe entre as normas no ordenamento jurídico,
que é organizado de modo hierárquico para que haja coerência na atividade de interpre-
tação; assim, toda a legislação precisa ser compreendia à luz da Constituição, que é a lei
de hierarquia superior.

Para Dimitri Dimoulis, a técnica a ser empregada para a interpretação no ordenamento


jurídico brasileiro são os métodos gramatical e sistemático, sendo que, em alguns casos, a própria
legislação apresenta um norte para a interpretação. Seguem alguns exemplos no Quadro 1.
O Direito e a linguagem 99

Quadro 1 – Exemplos de recomendação do legislador acerca da interpretação da lei

Legislação Espécie de interpretação

Do artigo 107 ao 112, o legislador aponta para casos em que a in-


Código Tributário Nacional – Lei n. 5. 172,
terpretação deverá ser literal, e outros casos em que deverá ser be-
de 25 de outubro de 1966.
néfica para o contribuinte.

Lei de Introdução às Normas do Direito


Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela
Brasileiro – Decreto-Lei n. 4.657, de 4
se dirige e às exigências do bem comum.
de setembro de 1942.

Art. 6º Na interpretação desta lei, levar-se-ão em conta os fins


Estatuto da Criança e do Adolescente – sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os
Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. direitos e deveres individuais e coletivos e a condição peculiar da
criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Art. 4º Na interpretação desta lei, serão considerados os fins sociais


Lei Maria da Penha – Lei n. 11.340, de 7
a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das
de agosto de 2006.
mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Fonte: Adaptado de Dimoulis, 2013, p. 161.

Outra classificação relevante que ilumina a atividade jurisdicional envolve as consequências da


aplicação das normas jurídicas, de modo que o julgador deverá adequar a aplicação das normas ao
caso concreto para garantir uma aplicação com equidade. Podemos considerar três possibilidades de
compreender a repercussão dos efeitos da interpretação.
A primeira é a declarativa (ou especificadora), que chega ao mesmo resultado da lei, de-
monstrando a integralidade do que está escrito na norma (MONTALVÃO, 2017b, p. 369-371).
É possível, também, que a interpretação tenha um efeito restritivo: isso quer dizer que, apesar do
sentido literal da norma, o intérprete considera a finalidade da lei e restringe sua aplicação em prol
do bem comum; uma norma que reduz direitos fundamentais constitucionais é um exemplo de
norma que deverá ter seus efeitos restringidos. O intérprete também poderá estender o sentido da
norma jurídica nos casos em que a norma não tenha um sentido explicitado pelo legislador, mas
esteja em consonância com o sentido da norma jurídica (CUNHA, 2017, p. 226).
Quadro 2 – Classificação dos métodos de interpretação

Origem Meios Efeitos

Legislador Gramatical Descritivo

Julgador Lógico Restritivo

Doutrinador Sistemático Extensivo

Administrador Público Histórico

Fonte: Elaborado pelas autoras.


100 Teoria do Direito

8.3 As dificuldades inerentes à interpretação jurídica


Conforme vimos nos itens anteriores, o Direito foi compreendido como um exercício lógico,
mas essa ideia não é um consenso entre os pensadores do Direito. De acordo com Tercio Sampaio
Ferraz Junior, a doutrina compreende a decisão jurídica como um juízo de construção de sentido
por parte dos juízes, legisladores e administradores que deve ser operada com critérios lógicos,
com referência ao seguinte molde de operação dedutiva:
(a) a norma (geral) funciona como premissa maior; (b) a descrição do caso
conflitivo, como premissa menor; e (c) a conclusão, como o ato decisório stricto
­sensu. Essa operação valeria não apenas para a obtenção de sentenças judiciais,
mas também para decisões administrativas e, no sentido de que o legislador,
ao emanar leis, aplica a Constituição, também para as decisões legislativas.
Entretanto, reduzir o processo decisório a uma construção silogística o empo-
brece e não o revela em sua maior complexidade. (FERRAZ JR., 2016, p. 276)

Deve-se considerar que o Direito e sua linguagem não são semelhantes às ciências naturais
ou exatas, pois não se pode empregar a pura dedução para resolver de modo satisfatório todos os
casos (OLIVEIRA, 2012, p. 121). Os problemas jurídicos não são formatados e nem iguais em to-
das as situações e, muitas vezes, fogem dos moldes legais, mas nem por isso o julgador poderia se
eximir de resolver as lides, em razão do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário.
Isso não invalida a dedução lógica, mas demonstra sua insuficiência quando se trata dos casos
mais difíceis. Caso uma das premissas silogísticas esteja errada, o resultado da intepretação também
terminaria equivocado, especialmente por não considerar a dimensão valorativa na resolução de con-
flitos. De acordo com Dimitri Dimoulis, os casos difíceis podem ser identificados quando:
a) apresentam-se dificuldades na construção da premissa maior, isto é, da in-
terpretação das normas pertinentes, por termos conflitos normativos, lacunas,
dificuldades de entendimento das normas ou dúvidas sobre sua aplicabilidade
no caso concreto; b) há dificuldade em construir a premissa menor em razão
dos problemas na apuração da situação fática. (DIMOULIS, 2013, p. 162)

Nesses casos, a resolução exigiria o apoio da doutrina e de juristas especializados. Um exem-


plo atribuído ao autor Gustav Radbruch ilustra bem a possibilidade dos erros possíveis ocasiona-
dos pela lógica dedutiva. Em uma estação, havia uma placa proibindo a entrada de cães, porém,
certo dia, ingressou uma pessoa com um urso na coleira. Apesar de esse indivíduo não violar a lite-
ralidade da proibição dada aos cães, ele infringia a ideia central da proibição: garantir a segurança
das pessoas dentro da estação (OLIVEIRA, 2012, p. 161).
Uma interpretação formal, cega, da finalidade da norma e presa ao silogismo lógico pode
levar a situações absurdas. É equivocado o culto da lógica e a ideia de que o Direito seria algo equi-
valente à Matemática. É preciso levar em consideração a finalidade social, compreendendo que o
Direito também decorre de disputas, interesses dentro de uma comunidade. Os próprios julgado-
res sofrem influência do ambiente, da sua intuição e da emoção, de modo que o processo de dizer
o Direito para o caso concreto pode estar imerso em falhas e incertezas decorrentes das limitações
do ser humano (OLIVEIRA, 2012, p. 123).
O Direito e a linguagem 101

Bernardo Montalvão (2017a, p. 224) considera que existem duas teorias acerca do escopo
da interpretação: uma chamada de subjetivista, a qual toma por referência a interpretação jurídica
de acordo com a vontade histórico-psicológica do legislador (uma vontade que é presumida), e
outra denominada objetivista, a qual tem por meta a descoberta do sentido próprio da lei por si
mesma, desprendida do legislador. Importa ressaltar que não existe uma prática interpretativa que
seja considerada absolutamente correta, mas pode-se considerar a interpretação como adequada
se estiver coerente com a totalidade do ordenamento jurídico e de acordo com o contexto em que
está inserida.
Os que defendem a doutrina objetivista têm a compreensão de que a lei deve ser interpretada
de acordo com o momento que ela deve regular. Uma das teorias ligadas a essa nova percepção é
a Lógica do Razoável, de Recasén Siches, que parte da ideia de que a lógica formal não se adéqua
ao Direito, sendo necessário levar em consideração a moderação e os valores vigentes, de modo a
considerar uma pluralidade de soluções possíveis. Já que as normas estão integradas na vida das
pessoas, suas ações são revividas e atualizadas nas relações jurídicas e, com o tempo, as normas vão
adquirindo novos sentidos (OLIVEIRA, 2012, p. 132).
Assim, as normas não devem ser encaradas como dogmas perenes, mas como prudentes, ade-
quadas e viáveis. O Direito positivo se irradia para além das normas jurídicas. A interpretação parte,
assim, de uma reconstrução de sentido, não de uma criação de Direito livre e desapegada dos limi-
tes impostos pela linguagem e pelo contexto histórico do intérprete (ABBOUD, 2015, p. 469-470).
Importa ressaltar que as partes têm o direito de que as decisões sejam motivadas e não definidas pelo
arbítrio do julgador.

Considerações finais
A missão da interpretação envolve não apenas a compreensão dos termos da linguagem jurí-
dica, mas também a atenção às peculiaridades de cada caso, além de uma profunda compreensão de
qual é a finalidade da legislação. Para uma boa aplicação do Direito, deve-se considerar os fatos, sua
correlação com os valores e com a norma jurídica, em uma percepção que esteja em consonância com
ordenamento jurídico e com o interesse público.

Ampliando seus conhecimentos


Ao longo deste capítulo, verificamos as dificuldades na interpretação da lei, seja pela
vagueza das palavras, seja por seu grau de abstração. Dimitri Dimoulis, em sua obra Introdução ao
estudo do Direito, trabalha com as técnicas que o legislador deve observar para evitar confusões
na aplicação da norma. Além dessas observações, o legislador deverá apresentar definições e con-
ceitos para diminuir a margem de dúvidas e controvérsias e lançar orientações acerca de métodos
que deverão ser empregados diante de determinadas disciplinas e que se tornarão princípios nor-
teadores para o correto emprego da legislação.
102 Teoria do Direito

Manual de introdução ao estudo do Direito


(DIMOULIS, 2013, p. 160-161)

[...] o legislador deve utilizar técnicas de redação que permitam a manifestação de sua vontade
de forma clara e objetiva. Para tanto, os conceitos devem ser definidos e utilizados uniforme-
mente no texto da lei. As hipóteses de aplicação da norma e as sanções devem ser indicadas de
forma precisa. Faz-se também necessário evitar expressões genéricas que ampliem a discricio-
nariedade do aplicador.
No direito brasileiro, as normas básicas sobre a redação de leis estão contidas no art. 11 da Lei
Complementar 95, de 1998, que especifica as técnicas a serem usadas pelo legislador ordinário
brasileiro para facilitar e uniformizar a interpretação:
• Para obter clareza, o legislador deve seguir as seguintes orientações: formular frases cur-
tas; expressar-se de forma sintaticamente clara, usando a pontuação de forma simples;
empregar os termos em seu sentido técnico ou então no sentido comum.
• Para guiar o aplicador, o legislador deve indicar claramente o objetivo e o âmbito de apli-
cação da norma; evitar o uso de sinônimos e de termos ambíguos; limitar-se à utilização
de siglas notórias.
• Para apresentar os dispositivos com ordem lógica, o legislador deve adotar subdivisões
que facilitem a compreensão e cuidar de um único assunto ou princípio em cada artigo.
[...]

Atividades
1. Quais são os principais problemas enfrentados pelo intérprete das leis?

2. O que significa o silogismo jurídico e como ele determina a aplicação da lei?

3. Quais os meios apresentados por Savigny para que seja realizada a interpretação jurídica?

4. Com base nos autores apresentados neste capítulo, a interpretação deve ser vista como uma
operação lógica?

Referências
ABBOUD, Georges et al. Introdução à teoria e à Filosofia do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras pro-
vidências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Leis/L8078.htm>. Acesso em: 5 mar. 2018.

_____. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Portaria n. 344, de 12 maio de 1998. Aprova
o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 31 dez. 1998. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/
prt0344_12_05_1998_rep.html>. Acesso em: 6 mar. 2018.

CUNHA, Alexandre Sanches. Manual de Filosofia do Direito. Salvador: Juspodivm, 2017.


O Direito e a linguagem 103

DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do Direito. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 9. ed. São
Paulo: Atlas, 2016.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

MONTALVÃO, Bernardo. Resolução 75 do CNJ: descomplicando a Filosofia do Direito. Salvador:


Juspodivm, 2017a.

______. Manual de Filosofia e Teoria do Direito. Salvador: Juspodivm, 2017b.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. 39. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

OLIVEIRA, André de. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2012. (Coleção Saberes do Direito, n. 50).

PIETRO, Maria Zanella Di. Direito Administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

SAVIGNY, Friedrich Karl von. Metodologia jurídica. Campinas: Edicamp, 2001.


Gabarito

1 O Direito ao longo da história


1. Foram muitos os destaques do Período Clássico para a ciência jurídica, como: (i) a democracia gre-
ga; (ii) a definição de penas específicas para cada crime; e (iii) a questão da propriedade exclusiva
do cidadão.

2. Para fazer seu comentário ou glosa, lembre-se de que os glosadores e depois os comentadores
realizavam suas anotações breves sobre trechos do Corpus Iuris Civilis, cada um com sua meto-
dologia particular descrita no capítulo, podendo ser lineares ou marginais. Sugere-se uma glosa
ou comentário marginal no seguinte modelo:

“Convém a quem pretende dedicar-se ao Direito


saber, de início, de onde vem o termo ius (Direito):
ius vem de iustitia. Celso, com muita propriedade,
Pontos importantes em sua glosa:
define o Direito como a arte do bom e do justo.
§ 1. Por essa razão, há quem nos chame sacerdotes,
*O que é justiça
pois cultuamos a justiça, professamos o conhecimento
*Para que serve a justiça
do bom e do justo, discernimos o lícito do ilícito para levar
* A relação da justiça com o sagrado
os homens a serem bons não só por medo do
castigo, mas também pela motivação dos primeiros a se
empenharem na busca, se não me engano, da
verdadeira e não da falsa filosofia.”

3. Nesta questão, você deve lembrar os principais aspectos em cada artigo estudado: artigo 1º
– discorrer sobre os direitos à liberdade e à igualdade; art. 2º – discorrer sobre a questão dos cha-
mados direitos naturais; art. 3º – discorrer sobre a soberania centrada na Nação (e não mais na
Igreja ou no Sagrado); art. 4º – discorrer sobre o conceito de liberdade e seus limites.

4. Nesta questão, você deve discorrer sobre a religiosidade em cada período estudado, elencando se
e de que forma houve e a intervenção da religião na formação do Direito.

2 O Direito e sua relação com a Filosofia


1. A Filosofia colabora com o modo racional de se pensar o Direito e com a sua fundamentação,
em especial com termos em que a dogmática (disciplina positiva do Direito) é insuficiente para
responder sobre justiça, bem comum, igualdade e liberdade. Desse modo, a Filosofia serve como
um critério crítico com relação à doutrina do Direito e à jurisprudência.

2. Nesta questão, você precisa distinguir os termos, delimitando suas diferenças, principalmente
no que tange ao cumprimento das normas. É importante ponderar a questão da espontaneidade
desse cumprimento e a interferência de fatores alheios à convicção do sujeito e o seu papel no
cumprimento das normas morais e jurídicas.
106 Teoria do Direito

3. O imperativo categórico é uma forma de raciocínio na qual a pessoa deverá questionar se, caso
sua atuação fosse elevada para uma regra universal, seus resultados seriam positivos ou negati-
vos. Verifique quais seriam as consequências do comportamento de Marisa se fossem elevados a
uma escala universal.

4. Nesta questão, você deve elencar as diferenças e os elementos que formam o sentido amplo e estrito
de justiça, ponderando ainda a questão da igualdade abordada neste capítulo.

3 O Direito natural e o Direito positivo


1. Aristóteles e Zenão de Cítio representam o Período Antigo, no qual se iniciou o desenvolvimento do
jusnaturalismo com base na premissa de que haveria regras com força natural e anterior às conven-
ções humanas, sendo que os homens nada podiam fazer a não ser se submeter a elas. Com o Período
Medieval, o jusnaturalismo recebeu um caráter teológico associado ao cristianismo, reconhecendo-se
a perfeição das leis divinas em comparação com as leis humanas. Já no Período Moderno, os auto-
res buscavam dissociar o pensamento teológico do Direito e compreender que o Direito natural era
alcançado pela razão, e que suas determinações não deveriam ser descumpridas. Caso o monarca
afrontasse o Direito natural, seria admissível o Direito de se rebelar.

2. O jusnaturalismo parte da ideia de que havia uma lei anterior e suprema à lei convencionada pelos
homens. Busca ser um filtro com relação às leis positivas, no entanto, apresenta algumas característi-
cas criticadas pela corrente juspositivista. Entre essas críticas estão imprecisão, subjetivismo, conser-
vadorismo e irrelevância.

3. Hans Kelsen procura formular um método único para o estudo do Direito, dissociado da influên-
cia de outras disciplinas. Desse modo, concentra-se em estudar os parâmetros da forma da norma
jurídica, sendo considerada válida a lei que corretamente ingressou no ordenamento jurídico. Esse
modo de estudo deixa de lado aspectos morais e a discussão sobre o conteúdo das normas jurídicas,
aspectos caros ao jusnaturalismo. Desenvolve também a ideia de que haveria uma norma hipotética
fundamental, que embasaria todo o ordenamento jurídico e garantiria sua validade.

4. O Direito teve um papel significativo na Segunda Guerra Mundial, pois foi responsável por chancelar
atos de Estados que eram injustos e arbitrários. Desse modo, os autores pós-positivistas partem da
ideia de que o Direito não pode ser visto como uma disciplina não valorativa, separada da moral, sem
considerar princípios ou outras técnicas de interpretação. Eles partem da ideia de que o positivismo é
insuficiente para prever e regular todas as relações jurídicas.

4 As relações jurídicas
1. Nesta questão, as situações narradas correspondem a fatos jurídicos naturais, visto que os citados
acontecimentos fizeram surgir direitos às partes.

2. Nesta questão, é importante retormar os conceitos de personalidade e capacidade, levando em conside-


ração o tratamento no âmbito civil acerca da proteção patrimonial do nascituro, bem como os dilemas
atuais referentes ao aborto.
Gabarito 107

3. É preciso ponderar o conceito de Direito e sua dicotomia com o dever jurídico nesta questão, sendo
importante ressaltar que a norma jurídica que aplica a sanção, dependendo da conduta do sujeito,
deve ser analisada à luz do disposto no dispositivo legal elencado na questão.

4. Nesta questão, você deve buscar compreender os direitos e garantias fundamentais previstos no texto
constitucional e a razão para a sua superioridade, que limita a atuação do legislador ordinário e garante
os direitos de liberdade diante do Estado.

5 As fontes do Direito
1. Além do próprio texto legal ser uma fonte do Direito, estão presentes no teor do artigo referências a
outras fontes, que deverão ser invocadas em caso de omissão legislativa, como a analogia, os costumes
e o princípio geral do Direito. Ou seja, o próprio diploma legal citado traz diretrizes a serem seguidas
para o caso de a lei não suprir a necessidade da subsunção do fato à norma no caso concreto, quando
forem necessários o uso de outras fontes do Direito.

2. A característica mais marcante da lei é, sem dúvida, seu caráter coercitivo, que obriga a todos indis-
criminadamente. Como vimos no capítulo, tais elementos são fundamentais e de fácil comprovação,
uma vez que que todos os indivíduos que compõem determinada sociedade são submetidos a deter-
minado regime legal, que lhes é imposto por meio da legislação de seu respectivo país. Logo, a lei é
coercitiva, no sentido de que não é uma faculdade dos cidadãos obedecê-la, mas uma obrigação, sob
pena de sanção.

3. Independentemente de filiar-se a uma ou outra corrente estudada, é imprescindível elencar nesta


questão os argumentos de uma ou outra teoria, a fim de embasar sua resposta. Não só expondo sua
opinião, mas também fazendo verdadeiro exercício de justificação que os magistrados fazem com
base na doutrina. Por exemplo: “em minha opinião, entendo possível enquadrar a doutrina como
fonte do Direito, por se tratar de um elemento importante para a interpretação jurídica, dado que a
doutrina interpreta não só a legislação, mas também as decisões judiciais, fazendo verdadeiro cotejo
de informações e analisando o Direito em sua práxis”.

Por considerarmos que a doutrina é de fato importante elemento na conformação da interpretação


jurídica e que a referida interpretação da ciência do Direito é, sim, elemento formador de novos con-
tornos jurídicos, filiamo-nos a essa última corrente citada.

4. Conforme vimos no capítulo, enquanto a doutrina é formada pela atividade interpretativa dos juris-
tas, que analisam, interpretam e emitem suas opiniões sobre os fatos jurídicos, a jurisprudência, tal
qual hoje se conceitua, refere-se a um coletivo de reiterados de interpretações proferidas pelo Poder
Judiciário ao julgar casos concretos.

6 Teoria da norma jurídica


1. As normas jurídicas possuem diversas características, uma das quais é a coercibilidade, que permite
levar ao Poder Judiciário eventual descumprimento, o qual poderá aplicar sanções jurídicas àqueles
que se desviam das condutas previstas pelo texto legal.
108 Teoria do Direito

2. Os critérios para analisar as diferenças entre regras e princípios são: a generalidade, que remete ao
grau de abstração, e o critério qualitativo, que decorre dos valores que os princípios possuem. Essas
diferenças refletem no modo como são resolvidos os conflitos entre regras e a colisão entre princípios
– elementos de grande importância para resolver os casos mais difíceis pelo Poder Judiciário.

3. Os elementos do Direito, segundo o autor, são: o fato, o valor e a norma. Esses elementos são unidos
de modo contínuo e dinâmico e interferem, inclusive, na aplicação e interpretação da norma jurídica.

4. Para que o processo legislativo seja considerado válido, dando origem a uma norma válida, é im-
prescindível que sejam cumpridas algumas etapas (ou fases) do chamado processo legislativo. Como
vimos, destacam-se nesse processo: a fase de iniciativa, na qual a discussão sobre uma ideia de lei é
desencadeada; a fase de discussão, quando se discutem os aspectos formais e materiais da pretensa
lei a ser elaborada; a fase de deliberação, que representa a votação da proposta; a sanção, o veto ou a
promulgação da lei – a depender do resultado da fase deliberativa; e, por fim, a publicação da lei, que
a torna pública e exigível.

7 Teoria geral do ordenamento jurídico


1. Diante de um conflito de normas no ordenamento jurídico, verificamos algumas modalidades de
resolução desses conflitos, como, por exemplo: o critério cronológico, no qual prevalece a norma edi-
tada por último; o critério hierárquico, no qual a norma de grau superior derroga a de grau inferior; e
o critério de especificidade da norma, ou da especialidade, que preconiza que a norma mais específica
deverá ser aplicada quando colidir com norma mais genérica.

2. Quando se trata de uma antinomia do ordenamento internacional, a doutrina convencionou algumas


formas de resolução de tais conflitos estudadas neste capítulo, quais sejam: (i) prior in tempore potior
in jus, que determina a observância no disposto no primeiro tratado ou norma, pugnando pelo prin-
cípio da primazia da obrigação assumida primeiro; a lex posterior derogat priori, de lógica inversa, na
qual a norma mais nova derroga a anterior; a lex specialis derogat generali, que preconiza que a norma
mais específica ao caso concreto derroga a geral, desde que as partes sejam as mesmas; e a lex superior
derogat inferiori, a qual prevê que a norma de maior valor prevalecerá, entendendo-se por valor da
norma o bem jurídico albergado.

3. Para a integração das lacunas jurídicas, temos o sistema da autointegração, que se dá pelo aproveita-
mento do próprio ordenamento jurídico em questão; e o sistema da heterointegração, que recorre a
regras estrangeiras para a solução das lacunas jurídicas.

4. Segundo a tese defendida por Kelsen em sua pirâmide, a norma hipotética fundamental é a norma
superior, acima da citada pirâmide, que convalida todo o sistema jurídico piramidal. O referido sis-
tema tem, ainda, a Constituição, que prevê normas basilares do ordenamento; as normas gerais, ou
seja, aquelas de caráter infraconstitucional; e as normas aplicadas, derivadas da aplicação do Direito.
Gabarito 109

8 O Direito e a linguagem
1. Nem sempre as leis são claras ou específicas o suficiente, e isso pode acabar prejudicando a aplicação
do Direito.

2. O silogismo é uma operação lógica que é dotada de três proposições: a premissa maior, a menor e a
conclusão. Essa operação lógica é compreendida por alguns como essencial para a aplicação do Direito.

3. Para um bom aproveitamento dessa questão, sugere-se revisitar o item referido nesse capítulo, fazendo
uma análise sobre os métodos de interpretação, levando em consideração a contribuição de Savigny.
Sobre os métodos de interpretação, Savigny trouxe algumas técnicas de interpretação, quais sejam: gra-
matical, que compreende literalmente a norma; lógica, que leva em conta o sentido lógico da norma;
sistemática, que compreende, além do Direito, outras ciências, em verdadeira interpretação sistêmica;
e histórica, que revisita para realizar sua interpretação os preceitos históricos precedentes à norma.

4. Com a influência do positivismo filosófico e a aproximação das técnicas das ciências naturais à teoria
do Direito, a interpretação foi compreendida como uma operação lógica, porém vários, entre os auto-
res contemporâneos, discordam dessa visão acerca da interpretação jurídica.
TEORIA DO DIREITO Amanda Carolina Buttendorff Beckers / Karoline Strapasson Jambersi
Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-6375-8
Código Logístico

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