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Ciência

Política

Prof. Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner


Prof. Dr. Sandro Luiz Bazzanella

Indaial – 2020
2a Edição
Elaboração:
Prof. Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner
Prof. Dr. Sandro Luiz Bazzanella

Copyright © UNIASSELVI 2020

Revisão, Diagramação e Produção:


Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI

B364c

Bazzanella, Sandro Luiz

Ciência política. / Sandro Luiz Bazzanella; Walter Marcos


Knaesel Birkner. – Indaial: UNIASSELVI, 2020.

253 p.; il.

ISBN 978-65-5663-176-9
ISBN Digital 978-65-5663-177-6

1. Ciência política. - Brasil. I. Birkner, Walter Marcos Knaesel.


II. Centro Universitário Leonardo da Vinci.
CDD 320

Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Olá, acadêmico! Seja bem-vindo ao Livro Didático de Ciência Política. Para
melhor compreensão do conteúdo, distribuímos nosso estudo em três unidades. Cada
unidade contém três tópicos que, em conjunto contemplam uma abordagem sobre
temas, conceitos e autores elementares a uma compreensão inicial sobre o significado
e a importância dessa ciência.

A Ciência Política possui seus objetos específicos de investigação, análise e se


utiliza do método científico imprescindivelmente. Esse método implica rigorosamente
a observação empírica do objeto (factual ou documental); na formulação racional da
análise e na imparcialidade analítica, características que serão devidamente explicadas.
Os objetos específicos constituem o campo de investigação, que não é exclusivo, mas
próprio do espectro de interesses prioritários da Ciência Política.

Há uma enorme gama de assuntos de interesse investigativo da Ciência Política.


Todos giram em torno de objetos de pesquisa e análise, que pertencem aos conceitos
elementares dessa ciência, que são: a Política, em todo o seu universo formal e informal
de associações e disputas; o Poder, compreendido como o “leitmotiv”, objetivo último
no mundo da política e fonte de todos os conflitos e negociações; e o Estado, que
representa a conformação institucional mais acabada em resposta às necessidades de
organizar o poder e responder à sociedade. Esses são os conceitos fundamentais ao
conhecimento politológico a partir dos quais essa ciência se constitui. E não é por acaso
conceitual que a Ciência Política é também denominada de Ciência do Estado e Ciência
do Poder.

Esses conceitos abrem a abordagem deste livro didático, constituindo o


Tópico 1 da Unidade 1. No Tópico 2, apresentamos as três formas clássicas de governo,
que foram indicadas pela primeira vez pelo filósofo grego Aristóteles, e que ao longo
do tempo, encontraram adornos conceituais na modernidade em vigor até hoje. No
Tópico 3, expomos a abordagem propriamente moderna das formas de governo. Essa
contextualização inicia com a apresentação do fundador da Ciência Política Moderna, o
filósofo florentino Nicolau Machiavel e sua tese de separação entre moral e política. Em
seguida, passa pela tese da divisão dos poderes de Montesquieu e até chegar ao seu
conterrâneo francês Tocqueville e a magistral descrição sobre a democracia na América.
No cerne da teoria moderna da Política está o conceito de República.

Na Unidade 2, o objetivo é oferecer uma explicação sobre o significado e a


constituição dessa ciência do poder. E demonstramos a origem histórica e conceitual
desse campo do conhecimento das Ciências Sociais. Na sequência, aprofundamos
uma justificação sobre a especificidade de seu objeto de investigação e da condição
imprescindível do método científico, devidamente caracterizado. Além disso, abordamos
uma análise dos conceitos de sistema político, da racionalidade inerente às ações dos
agentes políticos e às relações com as instituições. Ao final da Unidade 2, expomos
uma inescapável reflexão sobre os partidos políticos, como também, as formas de
representação e de participação, elementos centrais no cotidiano público.

Por fim, a Unidade 3 representa o esforço de apontar conceitos e tendências


contemporâneas, pois a Ciência Política tem o compromisso de enfrentá-las
analiticamente. Nessa perspectiva, tratamos de dissertar sobre uma tríade terminológica
elementar à constituição histórica republicana: que é composta pelos conceitos de
igualdade, liberdade e justiça, expressando a síntese possível dos desafios da democracia
no século XXI. Nesse espectro, é inevitável contemporizar os fenômenos da burocracia,
do corporativismo e do patrimonialismo. E, ao demonstrar esses fatores como elementos
de crise e necessidade de reforma do Estado, discutimos mais dedicadamente o
problema republicano. Isso consiste em questionamento dos processos decisórios,
perguntando quem faz as leis e para qual finalidade.

Vale destacar a importância que conferimos no apontamento aos movimentos


de descentralização do poder como expressão de uma tendência do Estado republicano
durante o século XXI. É uma espécie de desfecho analítico a prenunciar desdobramentos
cognitivos para a Ciência Política atual e futura. Nessa perspectiva, desenvolvemos
um exercício reflexivo apoiado na filosofia política moderna. Portanto, é uma avaliação
politológica ante o processo histórico e, ousamos dizer, evolutivo das instituições e dos
valores políticos do Ocidente, somados a experiências contemporâneas da democracia.

Esperamos que este livro didático inspire a atenção que a Ciência Política
merece, para o bem da formação profissional e cidadã. Bons estudos!

Prof. Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner


Prof. Dr. Sandro Luiz Bazzanella
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Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!


SUMÁRIO
UNIDADE 1 - POLÍTICA: TEORIA E CONCEITOS ELEMENTARES DA POLÍTICA.................... 1

TÓPICO 1 - POLÍTICA, ESTADO E PODER...............................................................................3


1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................3
2 POLÍTICA..............................................................................................................................3
2.1 SISTEMA POLÍTICO.................................................................................................................................8
3 ESTADO.............................................................................................................................. 10
3.1 PRECEDENTES GREGOS E ROMANOS............................................................................................ 13
3.2 MACHIAVEL E BODIN.......................................................................................................................... 13
3.3 HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU........................................................................................................ 15
3.4 HEGEL.................................................................................................................................................... 16
3.5 BENTHAM E MARX...............................................................................................................................17
3.6 VARIADAS CONCEPÇÕES.................................................................................................................. 18
4 PODER............................................................................................................................... 20
4.1 AUTORIDADE COMO QUESTÃO NORMATIVA..................................................................................22
4.2 AUTORIDADE COMO QUESTÃO SOCIOLÓGICA.............................................................................23
4.3 AUTORIDADE COMO QUESTÃO PSICOLÓGICA.............................................................................23
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................... 30
AUTOATIVIDADE................................................................................................................... 31

TÓPICO 2 - FORMAS CLÁSSICAS DE GOVERNO:


MONARQUIA, ARISTOCRACIA E DEMOCRACIA................................................................. 33
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 33
2 MONARQUIA...................................................................................................................... 34
2.1 MONARQUIAS CONTEMPORÂNEAS................................................................................................. 37
2.2 MONARQUIA NO BRASIL....................................................................................................................39
3 ARISTOCRACIA................................................................................................................. 42
4 DEMOCRACIA.................................................................................................................... 48
4.1 A DEMOCRACIA ATENIENSE..............................................................................................................52
4.2 DEMOCRACIA NAS SOCIEDADES MODERNAS.............................................................................54
RESUMO DO TÓPICO 2..........................................................................................................59
AUTOATIVIDADE................................................................................................................... 61

TÓPICO 3 - FORMAS MODERNAS DE GOVERNO:


DE MACHIAVEL A MONTESQUIEU E TOCQUEVILLE........................................................... 63
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 63
2 MACHIAVEL....................................................................................................................... 64
2.1 VIDA E CARREIRA.................................................................................................................................64
2.2 ESCRITOS..............................................................................................................................................68
2.2.1 O príncipe.....................................................................................................................................68
2.3 VIRTUDE E FORTUNA.........................................................................................................................70
2.4 OS FINS JUSTIFICAM OS MEIOS.......................................................................................................71
3 MONTESQUIEU...................................................................................................................73
3.1 VIDA E CARREIRA................................................................................................................................. 73
3.2 CARTAS PERSAS................................................................................................................................. 74
3.3 A MATURIDADE INTELECTUAL......................................................................................................... 75
4 TOCQUEVILLE....................................................................................................................79
4.1 OBRA ..................................................................................................................................................... 81
4.2 A VIAGEM AOS EUA: DEMOCRACIA NA AMÉRICA........................................................................ 81
4.3 O ANTIGO REGIME E A REVOLUÇÃO.............................................................................................. 84
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................. 88
RESUMO DO TÓPICO 3.......................................................................................................... 91
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 92

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 93

UNIDADE 2 — O QUE É CIÊNCIA POLÍTICA: ORIGEM, OBJETO E MÉTODO........................97

TÓPICO 1 — ORIGEM, OBJETO E MÉTODO...........................................................................99


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................99
2 UM ENTENDIMENTO CONCEITUAL: ORIGEM, OBJETO E MÉTODO...............................102
2.1 O PODER...............................................................................................................................................104
3 AS TEORIAS ELITISTA E PLURALISTA............................................................................107
3.1 A TEORIA PLURALISTA......................................................................................................................109
3.2 A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES.............................................................................112
3.3 A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES ............................................................................113
3.4 PODER IDEOLÓGICO..........................................................................................................................115
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................122
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................124

TÓPICO 2 - SISTEMA POLÍTICO, RACIONALIDADE E INSTITUIÇÕES..............................125


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................125
2 SISTEMA POLÍTICO..........................................................................................................125
2.1 OS GUARDIÕES DOS PORTÕES ...................................................................................................... 129
3 INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO E TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL......................133
4 A IMPORTÂNCIA DAS INSTITUIÇÕES.............................................................................139
RESUMO DO TÓPICO 2....................................................................................................... 144
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................145

TÓPICO 3 - PARTIDOS POLÍTICOS, REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO...................... 147


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 147
2 O QUE É POLÍTICA?.......................................................................................................... 147
3 O QUE É PARTIDO POLÍTICO?.........................................................................................149
4 UM POUCO DE HISTÓRIA ................................................................................................ 151
5 AS FUNÇÕES DOS PARTIDOS POLÍTICOS......................................................................156
6 TIPOS DE PARTIDOS........................................................................................................ 157
7 OS SISTEMAS PARTIDÁRIOS..........................................................................................159
8 BREVE TRAJETÓRIA DO SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO............................................... 161
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................165
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................ 167
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................168

REFERÊNCIAS.....................................................................................................................169

UNIDADE 3 — CONCEITOS E TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEOS.....................................171

TÓPICO 1 — IGUALDADE, LIBERDADE E JUSTIÇA............................................................ 173


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 173
2 A INTERPRETAÇÃO ANTIGA............................................................................................ 173
2.1 PLATÃO E A QUESTÃO DA LIBERDADE E DA IGUALDADE........................................................ 173
2.2 ARISTÓTELES E A QUESTÃO DA LIBERDADE............................................................................. 178
3 A INTERPRETAÇÃO MODERNA........................................................................................ 179
3.1 LIBERDADE EM JOHN STUART MILL.............................................................................................180
4 A INTERPRETAÇÃO CONTEMPORÂNEA.........................................................................182
4.1 JUSTIÇA EM JOHN RAWLS..............................................................................................................183
4.2 IGUALDADE EM RONALD DWORKIN..............................................................................................185
4.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................................186
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................190
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 191

TÓPICO 2 - BUROCRACIA, CORPORATIVISMO E PATRIMONIALISMO.............................193


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................193
2 BUROCRACIA...................................................................................................................193
2.1 CARACTERÍSTICAS E PARADOXOS DA BUROCRACIA............................................................... 194
2.2 A BUROCRACIA E O ESTADO.......................................................................................................... 195
2.3 RESPONSABILIZAÇÃO JURISDICIONAL....................................................................................... 199
2.4 A NECESSIDADE DE COMANDO E O PARADOXO DESSA NECESSIDADE........................... 200
2.5 CONTINUIDADE................................................................................................................................. 200
2.6 REGRAS................................................................................................................................................201
2.7 PROFISSIONALIZAÇÃO.....................................................................................................................201
2.8 SUMARIZAÇÃO ................................................................................................................................. 202
3 CORPORATIVISMO.......................................................................................................... 203
3.1 EM NOME DO INTERESSE PÚBLICO ............................................................................................ 204
4 PATRIMONIALISMO........................................................................................................ 207
4.1 O PATRIMONIALISMO NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA BRASILEIRA......................................... 209
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................215
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................216

TÓPICO 3 - CRISE E REFORMA DO ESTADO: REPUBLICANISMO,


DESCENTRALIZAÇÃO E UMA PERGUNTA: QUEM FAZ AS LEIS E PARA QUÊ?........................ 217
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 217
2 REPUBLICANISMO........................................................................................................... 217
2.1 LIBERDADE POSITIVA E NEGATIVA............................................................................................... 220
2.2 LIBERDADE COMO NÃO DOMINAÇÃO.......................................................................................... 221
2.3 QUEM FAZ AS LEIS E PARA QUEM?............................................................................................. 223
2.4 A DESCENTRALIZAÇÃO COMO TENDÊNCIA
REPUBLICANA DO ESTADO CONTEMPORÂNEO.............................................................................. 225
3 HOBBES: HOMEM LOBO DO HOMEM E O DIREITO À VIDA ............................................ 226
4 ROUSSEAU: O BOM SELVAGEM E A AFIRMAÇÃO DA IGUALDADE............................... 228
5 LOCKE: O DIREITO À LIBERDADE EM COMUNIDADE.................................................... 232
6 CONCLUSÃO.................................................................................................................... 235
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................241
RESUMO DO TÓPICO 3....................................................................................................... 243
AUTOATIVIDADE................................................................................................................ 244

REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 245
UNIDADE 1 -

POLÍTICA: TEORIA
E CONCEITOS
ELEMENTARES
DA POLÍTICA
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• entender a importância da Ciência Política para a formação profissional;

• adquirir noção elementar acerca dos principais conceitos da Ciência Política;

• identificar os objetos de estudo específicos da Ciência Política;

• conhecer a classificação clássica das formas de governo;

• compreender o significado do adjetivo “moderno”, na menção ao Estado;

• apreender as ideias fundamentais a constituírem o Estado moderno.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará
autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – POLÍTICA, ESTADO E PODER


TÓPICO 2 – FORMAS CLÁSSICAS DE GOVERNO: MONARQUIA, ARISTOCRACIA E
DEMOCRACIA
TÓPICO 3 – FORMAS MODERNAS DE GOVERNO: DE MACHIAVEL A MONTESQUIEU E
TOCQUEVILLE

CHAMADA
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1
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A TRILHA DA
UNIDADE 1!

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2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
POLÍTICA, ESTADO E PODER

1 INTRODUÇÃO
A Ciência Política tem seus próprios objetos de investigação, o que é condição
básica de qualquer ciência. Nessa perspectiva, este primeiro tópico da Unidade 1 do
Livro Didático Ciência Política traz uma exposição de fenômenos, conceitos e autores
cuja apreensão introdutória é elementar aos nossos estudos. Trata-se de uma exposição
introdutória, que apresenta os primeiros e fundamentais conceitos da Ciência Política.
São, por assim dizer, as ideias fundantes, os principais fenômenos a originarem os
estudos desta ciência social.

Neste tópico, apresentamos os conceitos de Política, de Poder e de Estado.


Trata-se de fenômenos e conceitos que armazenam uma longa história de ações e
ideias e constituem a base inicial de reflexão, sem o que não é possível falar em Ciência
Política. Para tanto, é preciso recorrer às origens históricas, considerando os primeiros
relatos, as primeiras ideias e concepções teóricas acerca desses fenômenos. É preciso
estudar essas origens, pois é dessa maneira que passamos a iniciar uma compreensão
sobre o sentido de nossas próprias ideias e da ordem social, política e econômica em
que vivemos.

O conceito de Política é apresentado desde a sua concepção etimológica


e suas experiências na antiga Grécia e no Império Romano. Vem de lá as origens da
nossa forma de pensar e fazer política. O conceito de Poder é apresentado como a ideia
essencial da política, sintetizada nas disputas humanas e na necessidade do convívio
regrado. Não há como evitar nem as disputas, tampouco as regras. E o conceito, tanto
quanto o fenômeno do Estado, representa a expressão histórica dessas disputas e
dessa necessidade geral.

2 POLÍTICA

O conceito de política se origina do grego politikós, que significa tudo que tem
a ver com a polis, que significa cidade. Nessa direção, a política está essencialmente
vinculada às coisas públicas, às coisas relacionadas à comunidade dos homens. Tem
a ver com cidadão, cidadania, com o que é civil, social, coletivo e próprio da ordem
social que é estabelecida pelos homens e mulheres para que vivam em agregação. Isso
vai do município à nação e até mesmo para além desses limites. E, é preciso que se
saiba que quanto mais intensa e, portanto, cívica for a vida dos homens e mulheres em
comunidade, tanto maiores serão as chances de uma vida marcada por oportunidades
de realizações pessoais.
3
O termo política foi difundido desde a essencial contribuição do filósofo grego
Aristóteles que, por meio de sua notável obra intitulada “Política”, o definiu pela primeira
vez na história da civilização ocidental. Este livro foi o primeiro tratado sobre o assunto,
isto é, sobre a natureza da atividade política, do poder e das leis. É a primeira obra
a tratar da origem e necessidade do Estado, de suas funções, suas divisões, seus
necessários equilíbrios e as formas de governo. Nessa perspectiva, Aristóteles tratou
da arte de governar a polis, a partir de seus conflitos e necessidades. Muitas vezes o
fez de maneira descritiva, mostrando como a política é, outras vezes, o fez de modo
prescritivo, escrevendo como a política deveria ser.

De uma forma ou outra, sua obra se tornou a “pedra fundamental” da teoria


política do Ocidente. Durante muito tempo, a palavra “política” foi usada para referir-
se a escritos, sim, a livros dedicados aos estudos sobre as relações entre os homens
e o exercício do poder que se refere aos governantes e aos quais se viam os homens
submetidos. Em 1603, o filósofo alemão Johannes Althusius expôs sua definição do
Estado, apresentando esta instituição como um “consociatio publica”, considerando que
o Estado reune e é composto por várias formas de “consociationes “ menores (BOBBIO,
2000, p. 159). Somente as elites se referiam ao termo política e o entendiam como um
ramo de estudo da filosofia.

NOTA
O termo consociatio publica provém do latim, que significa consórcio
público ou associação pública. Esse era o tratamento conferido ao
que entendemos hoje por Estado. O filósofo político alemão Johannes
Althusius (1563-1638) usa o termo no original para se referir às coisas
do Estado, em sua obra “Política”. Para saber mais informações, acesse o
link a seguir: https://bit.ly/3sDYS8E.

Na modernidade, o termo “política” se aperfeiçoa, tanto quanto se populariza, até


chegar “à boca do povo”. Não obstante, quando referido como ramo do conhecimento,
passa a ter denominações como doutrina do Estado, filosofia política, ciência do Estado
e Ciência Política. Quando definimos a política propriamente dita, como fenômeno e
objeto de estudos da Filosofia ou da Ciência, ela continua tendo a mesma definição.
Significa o conjunto de atividades relacionadas à pólis, isto é, ao convívio entre os
homens na cidade, na comunidade, local, regional, estadual, nacional ou global. Por
extensão, é indispensavel dizê-lo: tem a ver com o Estado, isto é, com o funcionamento
interno dos governos, nas suas divisões de poder, e suas relações com a Sociedade.

Os atos do Estado, isto é, dos governantes, tem a ver com comandar, autorizar,
delegar, proibir, representar ou atender aos indivíduos no coletivo ou determinados
grupos sociais. Tem a ver, como nos faz lembrar o sociólogo Max Weber, com o monopólio

4
exclusivo do exercício de poder, do uso da violência e de domínio sobre um determinado
território. Trata-se, por extensão, de manter a ordem, de legislar e executar, distribuir
parte das riquezas segundo critérios de justiça social, de assegurar a liberdade, a
propriedade e a vida. Além disso, devemos ainda considerar que o papel do Estado (aqui
compreendido como o Executivo, o Legislativo e o judiciário) implica conquistar, manter
e defender seu território e proteger o seu povo.

De maneira ampla, podemos concordar que muito do esforço de definição


conceitual sobre política parte da raiz etimológica (do grego pólis), como vimos. E
isso é absolutamente natural e necessário. A concepção que os gregos (atenienses,
espartanos, entre outros) tinham sobre a pólis estava causalmente relacionada ao
desenvolvimento da potência humana. Noutros termos, era através do convívio e da
participação política qualificada que os homens desenvolveriam seus potenciais.
Deveriam fazê-lo (e o faziam) por meio do uso e desenvolvimento da linguagem, da
capacidade racional de entendimento e da vontade de realização.

Essa concepção da política, advinda da cultura grega clássica, passa pelo


império romano e sobrevive até os dias de hoje como um tipo ideal. Em outras palavras,
serve de referência orientativa a ser perseguida, mesmo que nunca seja plenamente
alcançada. Exprime a ideia de que a felicidade, tal qual a entendemos, só é plena na vida
coletiva e qualificada se a buscarmos pelo diálogo. E essa vida dialógica e conflitiva, por
certo, deve ser permeada pela razão e pela ética. A razão, todos a temos. A ética, por sua
vez, é o resultado do senso estético do “fazer a coisa certa”, o que todos adquirimos em
sociedade, através da educação e do diálogo racional que estabelece os consensos e
as regras de convivência.

INTERESSANTE
O conceito de tipo ideal é um recurso metodológico de investigação da
realidade a partir de uma ideia, isto é, uma concepção ideal do objeto
a ser estudado. Quem definiu isso foi o sociólogo alemão Max Weber,
sugerindo ao pesquidador que pré-estabelece um tipo puro, a partir do
qual faria seus estudos sobre a realidade. Assim, ao estudar, por exemplo,
as instituições políticas de uma dada nação, deve o pesquisador definir
previamente o que são instituições políticas. Ao tentar compreender, por
exemplo, descentralização do poder de um governo nacional ou estadual,
deve pré-definir o que entende por governo descentralizado. É isso.

Através dessa perspectiva que devemos entender o uso da expressão “animal


político” (zõon politikón), quando Aristóteles se referia ao ser humano. Significa que não
apenas vivemos coletivamente, pelos vários benefícios que isso significa na comparação
com o isolamento. Na condição de seres humanos racionais e vivendo coletivamente,
temos nessa complexa e instável circunstância as possilidades de aperfeiçoar essa

5
condição humana, evoluindo, desenvolvendo-nos. É nessa linha que compreendemos
a recomendação do sociólogo estadunidense Talcot Parsons, que as sociedades
evoluem através da linguagem e das leis. Por assim dizer, o desígnio humano de realizar
a aspiração republicana.

Mas, se o conceito de política existe desde os antigos gregos, também sofreu


revezes, soluções de continuidade e modificações. Ainda que permaneça na essência,
foi incorporando e, ao mesmo tempo, tomando novos significados. Nessa perspectiva,
uma de suas características atuais, talvez a mais notável, é sua “autonomização gradual
em relação a outros campos da ação humana” (DELLA PORTA, 2003, p. 16). Em outras
palavras, na pólis grega, o “cidadão” não se distinguia da esfera política, ao contrário,
fazia parte constituinte e ativa do Estado. Era literalmente um “animal político”,
participando da vida pública, constituindo-a e por essa forma se realizando como ser
pensante e cidadão ativo. Atualmente, a política é uma esfera separada dos cidadãos
e totalmente formalizada, ocupando um lugar específico na divisão do trabalho social.

É essencial que saibamos tratar-se de uma elite de habitantes das antigas


cidades gregas, constituída de homens livres e de posses. Esses “cidadãos” de direitos
tinham escravos a executarem os trabalhos necessários às suas rendas e à sustentação
de seus ócios. O tempo livre era, portanto, fundamental para que se interessassem,
pensassem a vida política e nela interferissem. Constituiam pequena parcela da
população, em geral não superior a um décimo dos habitantes. Os outros noventa
porcento eram as mulheres, as crianças, os escravos e os estrangeiros. Nesse sentido,
não é incomum que jovens estudantes acreditem na utopia da participação direta e
constante dos individuos na sociedade de massa, como a grande solução republicana.

Nada, nenhuma ideia política ou qualquer proposição idealista deve ser


descartada aqui, por mais utópica que pareça. A Ciência Política, enquanto ciência,
nada deve omitir, tampouco dissuadir, para não cairmos em restrições interpretativas
e desencantamentos prematuros em relação à realidade. Ainda assim, precisamos
estar atentos às ilusões sobre as possibilidades da democracia direta. Afinal, o homem
e a mulher comuns têm suas vidas privadas preenchidas por inúmeras tarefas e
necessidades diárias, tornando difícil e nada atraente a atividade política constante. Em
geral, a maioria dos indivíduos, na sociedade em massa, prefere delegar essas funções
a representantes por eles escolhidos.

É essa a característica da democracia indireta, leia-se, representativa, de


participação indireta dos indivíduos na vida pública. Ou seja, mesmo na Grécia antiga, de
onde vem nosso ideal democrático, a proporção de pessoas envolvidas diretamente com
as coisas da política, era uma minoria. Isso tem a ver com a própria divisão do trabalho
social em cada sociedade. Embora o tipo ideal grego de democracia nos inspire à ideia
da participação direta dos cidadãos, lá mesmo, no “berço” da democracia da civilização
ocidental, essa tarefa coube a uma minoria. Em outras palavras, na divisão do trabalho
social, coube a uma elite, por direitos discriminatórios, cuidar das coisas da pólis.

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Obviamente, a democracia indireta, caracterizada pela representação, demonstra
seus limites. Um sistema de representação ao extremo do formalismo e da autonomização,
como dissemos antes, cria um descolamento indesejável, do ponto de vista democrático,
entre representante e representado. Isso acontece nos regimes semidemocráticos, onde o
limite da participação dos representados está no ato de eleições aos Executivo e Legislativo.
A partir dessa delegação, regimes restritivos abrem poucos espaços participação. Essa
situação difere em regimes democráticos abertos e menos centralizados, em que a
mediação entre representado e representante tem instâncias intermediárias de participação
e pressão. Mas a autonomização da política é inevitável.

Tal divisão entre as coisas da política e outras coisas, estabeleceu-se de modo


mais categórico entre os romanos. Se, ainda na filosofia grega, Platão já prenunciasse
essa divisão com a ideia do bom governo, é na civitas romana que tal distinção fica
mais explicitada. É em Roma que, na prática, se institucionaliza essa divisão através da
criação de um “ordenamento jurídico”. É esse fato histórico que demarcará, no curso
da civilização ocidental, a primeira separação nítida e prescritiva entre a Sociedade e
o Estado. A partir daí, tem-se a primeira forma institucional dessa separação, através
da qual a civitas romana é juridicamente organizada e a vida em Sociedade passa a ser
fundamentada “no consenso da lei” (SARTORI, 1990 apud DELLA PORTA, 2003, p. 16).

NOTA
A ideia do bom governo ou governo ideal, para Platão, era o governo
aristocrático, mas que assim o fosse pelo mérito e não pela
hereditariedade, como nas monarquias. Tal governo aristocrático
seria composto pelos melhores e mais sábios e é dessa formulação
que surge a ideia do “rei filósofo”, ou seja, a defesa de que governos
deveriam ser sempre compostos por homens de saber notoriamente
reconhecido. Se esse fosse o critério, os governantes poderiam ser
inclusive escolhidos pelo povo.

Passado o longo “período das trevas”, como muitas vezes se codinominou a


Idade Média, vemos ressurgir os pressupostos dessa separação em fins do século XV,
pelas reflexões do “pai” da Ciência Política, o renascentista italiano Nicolau Machiavel.
Esse pensador profundo da política de seu tempo descreveu as coisas do Estado como
necessariamente distintas da sociedade. O autor de “O príncipe” delimitou as coisas da
política de modo a separá-la, nitidamente, da moral. Nessa perspectiva, o governante
precisaria estar disposto a subverter qualquer preceito religioso e moral em nome da
conquista e da manutenção do poder.

Com Machiavel, a política torna-se autônoma, orientada por leis próprias. Já não
vale mais a ideia do rei bom, benevolente e caridoso, submetido aos ditames da Igreja.
O que interessa é que o rei seja eficiente, justo quando necessário, mas, sobretudo

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capaz de manter a ordem, guardar com força o seu território e garantir a proteção e a
obediência dos súditos. É nessa perspectiva que deve ser compreendida a máxima de
que “os fins justiticam os meios”. Nao se trata dos fins privados. Trata-se dos fins últimos
da política, quais sejam, a manutenção do poder do governante, do Estado, acima de
tudo, em nome da nação e seus interesses estratégicos. E quaisquer que sejam os meios
utilizados, se justificam, desde que tais fins sejam garantidos. Com todas as variáveis
que a história produziu, continua sendo assim até hoje, expresso nos comportamentos
dos agentes políticos e nas leis.

Portanto, quando falamos em democracia direta, concebemos a hipótese de


que muitos indivíduos, na maioria das cidades, participe ativamente da vida política. É
verdade, e sempre será, que o grau de interesse de maior ou menor número de cidadãos,
em geral, defina a qualidade das instituições políticas. Se a vida política é mais ou menos
estável em um país ou cidade, isso tem relação com o maior ou menor interesse de seus
cidadãos com as coisas da política. A isso, denominamos de civismo. A rigor, somente
uma maioria de cidadãos que seja consciente e exigente elegerá bons representantes.
Nesse sentido, não somente boas instituições (leis e regras) criam bons cidadãos, mas,
também, cidadãos interessados e instruídos forçam a criação de boas instituiçoes e
bons comportamentos.

É preciso considerar que o interesse e o grau de “conscientização política” se


obtêm não somente através da participação direta. Há várias maneiras de participação
indireta que elevam o nível da cultura política de uma sociedade. Se há sempre uma
classe política que age diretamente, todos os cidadãos podem participar de alguma
forma. O lócus principal é o Estado, por meio de suas divisões (executivo, legislativo
e judiciário), subdivisões (ministérios, secretarias, órgãos, agências etc.) e níveis
(federal, estadual, municipal, regional ou local). Não obstante, política se faz desde o
ambiente familiar, passando pelas associações, agremiações e ambientes de todo tipo.
Nisso considerem-se sindicatos, conselhos, escolas, universidades, clubes e as várias
circunstâncias de diálogo e decisão, até a imprensa, as redes sociais, além das formas
de descentralização política que permitem a sinergia entre Estado e Sociedade.

2.1 SISTEMA POLÍTICO


Os estudos da Ciência Política, em geral, partem de dois conceitos elementares,
a partir dos quais as análises são formuladas, o conhecimento e a noção de política se
estabelece, tornando o conceito universalmente aceito. Esses conceitos são Estado e
Poder. A abordagem mais tradicional na Ciência Política, como na Filosofia Política, se
conforma a partir de uma perspectiva vertical da política, do Estado para a Sociedade.
A nítida separação entre essas duas esferas é o produto histórico e evolutivo da
racionalização da vida em comum. A forma de racionalização da vida em Sociedade
denominanos de superdivisão do trabalho social, dando origem ao conceito de
“sistema político”.

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Entendemos por sistema político o complexo ordenamento jurídico e estrutural,
composto pelas leis, normas e órgãos que compõem o Estado, isto é, um governo. Por
extensão, sua definição abrange as formas de comportamento políticas reais e prescritas,
a organização formal-legal e o funcionamento real dos governos, nas suas divisões e
níveis. Ainda mais amplamente definido, o sistema político é visto como um conjunto de
“processos de interação” ou como um subsistema do sistema social que interage com
outros subsistemas não políticos, como o sistema econômico, por exemplo. Isso aponta
para a importância também dos processos sociopolíticos informais e enfatiza o estudo
do desenvolvimento político.

A análise legal ou constitucional tradicional, usando a primeira definição,


produziu um enorme corpo de literatura sobre estruturas governamentais, muitos dos
termos especializados que fazem parte do vocabulário tradicional da Ciência Política e
vários esquemas instrutivos de classificação. Do mesmo modo, a análise empírica dos
processos políticos e o esforço para identificar as realidades subjacentes às formas
governamentais produziram um imenso e valioso armazenamento de informações.
Esse estoque informacional e cognitivo compõe o complexo teórico da Ciência Política,
inspirando e abastecendo inúmeros trabalhos acadêmicos, empregando dados e mais
dados e gerando novos conceitos.

Tudo isso torna a Ciência Política um campo do conhecimento bastante


dinâmico e atual, permitindo o aperfeiçoamento das instituições e a evolução da
ordem republicana. Nesse processo científico e informacional, o próprio conceito de
sistema político torna-se mais e mais abrangente. E a grande utilidade dessa dinâmica
cognitiva está em “abrir a caixa preta” do sistema. Nos estudos recentes, as pesquisas
e consequentes análises sistêmicas flutuam entre a eficácia das instituições, os
comportamentos individuais e as sinergias entre Estado e Sociedade. Essas três
vertentes analíticas constituem a maior parte do corpo teórico da politologia ocidental
e alargam, sem lastro, a compreensão dos dois conceitos fundamentais de todo o
pensamento político: Estado e Poder.

INTERESSANTE
Referente ao tema, acesse no link a seguir, sobre a matéria realizada pelo
Jornal Estadão – Grupos de renovação política ganham força e incomodam
partidos. Link: https://bit.ly/36o7MQl.

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3 ESTADO
Por muito tempo, a Ciência política foi identificada como a Ciência do Estado,
termo que vem do alemão Staatwissenschaft. O ponto de partida para uma compreensão
científica do Estado tem sido a divisão dos três poderes, tão magistralmente proposta
pelo eminente filósofo francês, o Barão de Montesquieu (1689-1755). Nesse aspecto, é
preciso lembrar que a Ciência Política é essencialmente uma ciência contemporânea,
assim como a divisão dos três poderes. Estuda-se o Estado moderno desde a sua
conformação inicial, mais ou menos no século XIV. Não obstante, o que se produz
de análise pretensamente científica sobre o Estado, parte essencialmente dessa
conformação contemporânea.

NOTA
Lembremo-nos de que, do ponto de vista historiográfico, considera-se
contemporâneo o que é pertinente ao curso da história ocidental desde
a Revolução Francesa, em 1789.

De modo geral, o que entendemos por Estado tem a ver com o ordenamento
político e jurídico que surge lentamente, aqui e ali, no contexto da Europa do século
XIV. As primeiras conformações aparecem em Portugal, Espanha, França e Inglaterra.
Emergem das fissuras do sistema feudal e pela força das circunstâncias impostas pelo
capitalismo mercantil. Nessa perspectiva, o elemento molecular do Estado é a progressiva
concentração de poder, justamente em função das necessidades circunstanciais.
Essa centralização do poder sob o controle do governante é a base do principio da 1)
territorialidade e da 2) obrigação para com o contrato social (contratualismo político).

IMPORTANTE
[...] Os autores contratualistas: John Locke, Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau
usavam a existência dos contratos sociais como uma forma de entender de que maneira
e diante de quais circunstâncias, o Estado Civil passou a regulamentar a vida em sociedade.
O contrato social pode ser implícito ou explícito e marca a passagem do estado natural
para o estado em que acontece a vida social e política.

Embora os três autores contratualistas mais importantes tenham chegado a conclusões


distintas, eles concordavam com a ideia de que a sociedade e o Estado se originaram a
partir de relações contratualistas. Nessa perspectiva, a partir dos pactos contratuais é
que foram estabelecidas as regras sociais, de convívio, as leis e a origem das instituições
políticas e de poder.

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John Locke

[...] Locke acreditava que o homem seria uma criatura naturalmente racional e social (com)
inclinação para o bem, empatia e senso de amor. Os homens seriam, também, naturalmente
livres, iguais e racionais, regidos sempre pela razão.

No entanto, o homem natural, embora fosse racional, não era constantemente bom, tendo
também sentimentos de raiva, vingança, ímpeto de destruição e egoísmo. Por conta dessas
características humanas,  os atritos entre os indivíduos surgiriam a partir dos conflitos de
interesses.
 
Assim,  seria um direito natural de todo ser humano punir outros de seu convívio que
desobedecessem às leis naturais.  Para que os seres humanos pudessem viver livres, de
forma organizada e com punições pré-estabelecidas, deveriam abrir mão de alguns direitos,
como os de fazer julgamentos e de praticar punições, transferindo-os para o Estado.

Essa transferência determina o contrato social, um acordo no qual todos reconhecem


a autoridade governamental, a autonomia no uso da violência e a existência de homens
atuando como juízes para o estabelecimento e garantia do bem comum.

Thomas Hobbes

Hobbes, por sua vez, acreditava que o homem era naturalmente mau, cruel
e egoísta. Para Hobbes, "o homem é o lobo do homem", ou seja, estava
sempre disposto a ser cruel e sacrificar o outro em benefício próprio.
Os problemas do homem, em seu estado natural, aconteceriam, pois,
a maldade do ser humano faria com que os homens vivessem em um
estado constante de guerras, ameaças e destruição.

[...] a única forma de garantir a convivência pacífica, organizada


e harmônica seria a cessão de alguns direitos ao Estado, que
seria o responsável pela organização social do poder, do
uso da violência e da força, de forma legítima. Somente
através de um contrato social é que o homem poderia
viver e desenvolver sua sociedade.

Jean Jacques Rousseau

[...]  Para Rousseau, o homem nasce bom, mas é corrompido pela


sociedade.  O homem também nasce livre, no entanto, mantém-se
sempre preso, por conta da vaidade, busca por status, posição social,
orgulho e vaidade.
Para que fosse possível a preservação da liberdade natural do homem
e, ao mesmo tempo, a segurança e o bem-estar social,  propõe um
contrato social no qual é garantido a prevalência da soberania social
e a soberania política determinada pelas vontades coletivas.

O contrato social rousseauniano deve definir a questão da igualdade


entre todos, garantir a vontade individual e determinar a vontade
coletiva com foco no bem comum. Rousseau propõe o uso da justiça
para submeter igualmente fracos e poderosos (e) explica o surgimento
da desigualdade social, originada pela posse de propriedades privadas.
A desigualdade na forma como as propriedades estão distribuídas, na
visão de Rousseau, originou uma sociedade de caos, crimes, destruição
e manutenção de uma sociedade de guerra. O contrato social surge,
também, como uma forma de organização dessa sociedade caótica na
qual os indivíduos pensam apenas no próprio bem.

FONTE: <https://querobolsa.com.br/enem/sociologia/contratualismo>.
Acesso em: 16 dez. 2019.

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Por guerra ou ameaça, compreendamos que o Estado moderno é resultado histórico
da conquista do mais forte senhor feudal sobre os outros. Disso resulta o acordo que legitima
a liderança do monarca, dono do mais forte exército, que submete os outros à sua vontade.
Estabelece os limites do seu território e a identificação de seu povo. Suas duas maiores tarefas
implicam a defesa desse território e na segurança de seu povo, base do contrato social. E o
toque de acabamento dessa conformação política e jurídica está assentado justamente no
estabelecimento da lei. E a característica fundante desse estabelecimento vai se conformar
historicamente na impessoalidade do exercício de quem comanda.

Na perspectiva sociológica, o Estado é uma forma de associação humana


diferenciada de outros grupos sociais por conta de seus objetivos específicos, quais
sejam, o estabelecimento da ordem e da segurança. Da mesma forma, o Estado se
distingue por seus métodos: o estabelecimento de leis e seu cumprimento. Por extensão,
diferencia-se pela demarcação de um território, pela área de jurisdição ou pelas as
fronteiras geográficas. E, finalmente, distingue-se pelo aspecto da sua soberania, isto é,
pelo fato de não haver poder acima dele. O estado consiste, de maneira mais ampla, no
acordo dos indivíduos sobre os meios pelos quais as disputas são resolvidas na forma
de leis. Assim, a principal distinção do Estado moderno, enquanto tal, é o governo pelo
imperio da lei e nao da vontade pessoal do governante.

Por extensão disso, vale apresentar uma classificação de tipo ideal, a partir
da qual possamos saber do que estamos falando, quando usamos a palavra Estado.
As definiçoes conceituais são, na verdade, imprescindíveis à nossa comunicação,
sem o que, a construção coletiva fica comprometida. Parece haver consenso entre os
teóricos da política quanto a algumas características essenciais na composição desse
ordenamento jurídico. Assim, para caracterizarmos o Estado moderno enquanto tal
adjetivo lhe sirva, é necessário que contenha, ao menos, seis características essenciais:

1. a impessoalidade do mando (o império da lei);


2. a defesa do território;
3. a defesa do povo, através da garantia dos direitos básicos;
4. o monopólio exclusivo do uso da violência;
5. o estabelecimento de uma burocracia pública racional-legal;
a autonomia em relação à religião (distinção não antagônica entre Estado e Igreja).

NOTA
O contrato social significa simbolicamente o acordo entre o governante
e os governados. Embora o nome seja uma metáfora criada por filósofos
políticos entre os séculos XVII e XVIII, representa a síntese explicativa
do surgimento do Estado Moderno. É baseado na ideia de que os
homens, em coletividade, admitem outorgar a um ente distinto o poder
de governá-los em troca da garantia aos direitos naturais básicos dos
serem humanos. Os três principais filósofos contratualistas foram John
Locke, Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau.

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3.1 PRECEDENTES GREGOS E ROMANOS
A história do estado ocidental começa na Grécia antiga. Platão e Aristóteles
escreveram sobre a polis, ou cidade-estado, como uma forma ideal de associação, na
qual as necessidades religiosas, culturais, políticas e econômicas de toda a comunidade
poderiam ser satisfeitas. Essa cidade-estado, caracterizada principalmente por sua
autossuficiência, era vista por Aristóteles como o meio de desenvolver a moralidade no
caráter humano.

A ideia grega corresponde com mais precisão ao conceito moderno de nação,


ou seja, uma população de uma área fixa que compartilha uma língua, cultura e história
em comum – enq uanto a res publica romana, ou comunidade, é mais semelhante ao
conceito moderno de o Estado. A res publica era um sistema legal cuja jurisdição se
estendia a todos os cidadãos romanos, assegurando seus direitos e determinando suas
responsabilidades. Com a fragmentação do sistema romano, a questão da autoridade
e a necessidade de ordem e segurança levaram a um longo período de luta entre os
senhores feudais da Europa em guerra.

3.2 MACHIAVEL E BODIN


Foi a partir do século XVI que o conceito de Estado passou a ser utilizado. O
encontramos nos escritos do filósofo italiano Nicolau Machiavel (1469-1527) e do teórico
político francês Jean Bodin (1530-1596). Os dois pensadores apresentaram o conceito
de Estado como a força centralizadora por meio da qual a ordem social se mantém.
Partiam do mesmo pressuposto de que o poder não é uma dádiva e sim uma conquista.
Apenas divergiram parcialmente na interpretação quanto à legitimidade do poder e
tal divergência permitiu um ótimo debate na teoria política. Em sua magistral obra “O
príncipe”, Machiavel priorizou a estabilidade dos governos, procurando entender como
podia ser obtida. Para isso, afirmou que o êxito disso dependia, primeiramente, do
afastamento de quaisquer restrições de ordem moral, leia-se, religiosa.

A partir desse ponto de ruptura, Machiavel passou a concentrar-se na força


do governante, como o elemento mais importante para o bom governo. Vitalidade,
coragem, astúcia e autonomia deveriam ser as qualidades do príncipe. Não poderia haver
obstáculos morais que pusessem em risco os fins últimos do governante. Os meios, isto
é, o modo de garantir as finalidades de cada governo, não precisavam estar revestidos
de preceitos religiosos. Os meios teriam de ser suficientemente eficientes para que os
fins da pollítica fossem assegurados. E a manutenção do poder, a garantia da ordem, a
defesa do território e a proteção ao povo são esses fins, princípio de toda carta magna.

Na ótica de Jean Bodin, o poder não seria suficiente por si só para criar um
soberano. Este teria de fazer por merecê-lo, obedecendo à moralidade para ser durável e
ter continuidade. A principal preocupação era garantir a estabilidade nas sucessões dos

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reis, sem quebrar a linhagem sanguínea. A teoria de Bodin foi a precursora da doutrina
do "direito divino dos reis", segundo o qual a monarquia era a própria expressão da
vontade divina na terra e os reis seriam descendentes diretos do Deus. Nesse aspecto,
em particular, é que a teoria do filósofo político francês é diferente da de Machiavel que,
por sua vez, não dava ênfase ao direito divino.

Os dois autores eram modernos, portanto, humanistas no sentido de atribuir


a responsabilidade e a legitimidade do mando à capacidade humana do governante.
Mas, enquanto Bodin ainda carrega tintas na força simbólica da religião, o pensador
italiano vai direto ao ponto: a política é coisa eminentemente humana. E essa tensão
propiciou um criativo debate de ideias reformistas na Europa, a partir do século XVII.
Dessa fundamental discussão aos rumos da política ocidental, foram precursores os
filósofos John Locke e Thomas Hobbes na Inglaterra, além de Jean-Jacques Rousseau,
na França e mais tarde Georg Hegel na Alemanha, entre muitos outros. Esses pensadores
começaram a reexaminar as origens e os propósitos do Estado, ajudando a fundamentar
o ordenamento jurídico do que é o Estado atualmente.

NOTA
Um exemplo de atitude amoral encontramos na descrição que o
dramaturgo inglês William Shakespeare fez da breve vida do Rei Ricardo
II, da Inglaterra do século XIV. Em um dos episódios dramáticos, o Rei
teria mandado matar o próprio filho por lesar o erário público. Do
ponto de vista da moral religiosa, sua atidute é condenável, porém, do
ponto de vista da ética política, o rei deu um exemplo radical e eficiente
do que poderia acontecer a qualquer um que desrespeitasse a lei.

O rei Ricardo II (1377-99), retratado em peça homônima de William Shakespeare.

FIGURA 1 - REI RICARDO II

FONTE: <https://bit.ly/34ExFuJ>. Acesso em: 18 set. 2020.

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3.3 HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Nas perspectivas dos contratualistas Thomas Hobbes, John Locke e Jean
Jacques Rousseau, o Estado seria o próprio reflexo da natureza humana na manifestação
de suas mais fundamentais necessidades. Se durante toda a Idade Média o mundo
era justificado a partir de uma concepção religiosa sem influência humana, na Idade
Moderna, sobretudo o poder passa a ser explicado a partir da dimensão humana. A
política já não era mais vista como uma esfera refletida da vontade de Deus. O poder
é analisado como o resultado de um jogo de interesses, regras e finalidades que eram
humanas. Assim, a política não é mais vista como uma fatalidade, mas como resultado
da capacidade humana.

O Estado, por sua vez, é o resultado histórico, na esfera mundana, daquilo que os
homens coletivamente conseguiram compor. De maneira geral, reflete as necessidades
e desejos humanos, sendo resultado das lutas pelo poder e dos consensos mínimos em
relação à ordem necessária em sociedade. Os seres humanos vivem coletivamente por
decisão humana, cientes de que essa condição é melhor do que viver isoladamente. Não
obstante, para viverem em sociedade, precisam estabelecer regras, sendo esta a origem
mais reomota do Estado. Na medida em que os agrupamentos humanos crescem e as
economias se desenvolvem, os conjuntos de regras ficam mais complexos, resultando
historicamente no que entendemos como o Estado.

A "condição natural" do homem, disse Hobbes, é egoísta e competitiva. Por


essa razão, os homens se submetem ao domínio do Estado como o único meio de
autopreservação pelo qual ele poderia escapar do brutal ciclo de destruição mútua.
Hobbes é o autor da parábola do “homem, lobo do homem”, segundo a qual, deixados à
solta e livres, os homens se matariam uns aos outros, inviabilizando a vida coletiva e a
própria sobrevivêncioa da espécie. Por reconhecerem essa condição natural, os homens
acordam entre si pela criação de um ente superior, capaz de protegê-los de si próprios.

Para Locke, a condição humana não é assim tão malévola e egoísta. Todavia,
também para ele o Estado é o resultado da percepção sobre as vantagens de viver
coletivamente e de modo minimamente organizado. Trata-se, por extensão, da
constituição política de uma imperiosa necessidade de proteção dos direitos naturais dos
homens. Estes seriam direitos inerentes à condição humana. Inspirador do liberalismo
clássico, Locke afirmou que o Estado seria a materialização mais acabada do contrato
social. Através deste, os indivíduos concordam em não infringir os "direitos naturais" uns
dos outros à vida, liberdade e propriedade, em troca do qual cada homem assegura sua
própria "esfera de liberdade".

Já na concepção de Rousseau sobre o contrato social, aparece uma ideia mais


otimista em relação à natureza humana, se comparada a Hobbes ou Locke. Em vez do
direito de um monarca governar, Rousseau entende que o contrato social é oriundo de
uma vontade geral dos governados. Para ele, a própria nação é soberana, e a lei não

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deve ser outra senão a vontade dos indivíduos em coletividade. Influenciado por Platão,
Rousseau reconheceu o Estado como o ambiente para o desenvolvimento moral da
humanidade. Seu pressuposto geral é o de que o homem é bom por natureza, mas a
Sociedade corrompe essa natureza boa. Para restabelecê-la, é preciso que o Estado
garanta as condições para tanto, estimulando os homens a buscarem o bem-estar
social. Como o resultado da busca individual gera conflitos, um estado saudável e sem
corrupção) só pode existir quando o bem comum é reconhecido como a meta oficial a
ser alcançada e garantida.

3.4 HEGEL
Para o filósofo alemão George W. F. Hegel, somente o Estado, como um ente soberano
e reflexo dos interesses mais gerais e prioritários, seria capaz de garantir a liberdade, princípio
fundamental da vida humana. Evidentemente associada à segurança, a liberdade seria
fundamental porque é a condição essencial para viver e desenvolver-se. Só poderia ela ser
garantida através de leis que garantissem a soberania dos indivíduos, entendida não somente
na sua perspectiva individual, mas coletiva, como um direito, expressão maior da razão
humana. Nesse sentido, o Estado, com todo o ordenamento jurídico, burocrático e policial,
seria (deveria ser) a expressão máxima da evolução da humanidade.

FIGURA 2 – GEORGE W. F. HEGEL

FONTE: <https://bit.ly/34MT98z>.Acesso em: 21 jul. 2020.

Que fique claro: para o filósofo alemão, a liberdade não é a capacidade, tampouco
o direito, de cada um fazer o que bem entender de sua vida. Muito mais que isso, é
um desejo universal pelo bem-estar. Quando os homens agem como agentes morais,
agindo racionalmente, os conflitos cessam e os objetivos passam a coincidir. Ao se
subordinarem, por livre entendimento, às leis do Estado, os indivíduos passam a estar
habilitados a realizar a síntese entre os valores familiares e as necessidades econômicas.
Para Hegel, o Estado é o resultado do armazenamento das ações morais ao longo da
história, onde são filtradas e solidificam o desenvolvimento humano. É no Estado que a
liberdade de escolhas se cristaliza, permitindo a união das vontades racionais.

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Nessa perspectiva, o filósofo alemão vê no Estado a representação resumida e
ordenada do direito à liberdade humana. Diferentemente dos contratualistas Rousseau
e Locke, Hegel não afirma diretamente que a liberdade é um direito natural. Mais do que
isso, a liberdade é o resultado da razão humana, depurada, através da qual homens
e mulheres tornam-se capazes de entender seu verdadeiro sentido: a expressão da
vontade individual em concordância com a vontade coletiva. O Estado seria a síntese
da ação moral, onde a liberdade de escolha é orientada para a universalidade, isto é, à
unidade das vontades. Através do ordenamento jurídico, as partes da constituintes da
sociedade seriam reunidas e assentadas para a saúde do corpo social.

3.5 BENTHAM E MARX


Por sua vez, para os utilitaristas ingleses do século XIX, o Estado seria a instituição
responsável por realizar a unidade dos interesse individuais, além de assegurar o
equilíbrio social. Esse entendimento foi proposto pelo filósofo utilitarista e jurista inglês
Jeremy Bentham (1748-1832) e compartilhado por outros seus contemporâneos.
Trata-se, também, de um entendimento de que os direitos não seriam naturais, mas
conquistados e preservados pelos homens a partir e através do Estado. O Estado, nesse
entendimento, seria a representação máxima da utilidade que as leis têm para aqueles
que exercem o poder sobre os outros. Leis ajudam a controlar o funcionamento da
sociedade e precisam ser resguardadas por um ente com autoridade para tal.

Assim, Jeremy Bentham ajudou a demarcar as bases para os primeiros


pensadores socialistas como Karl Marx (1818-1883). Para este filósofo alemão, o Estado
foi constituído para ser o "aparato de opressão" da classe dominante para a garantia
de seus interesses e privilégios econômicos, em detrimento dos interesses gerais
da classe trabalhadora. Nessa interpretação, o Estado não seria o representante dos
interesses gerais e aglutinador da razão universal. O Estado, compreendido em todo o
seu ordenamento júrídico, burocrático e policial representaria, fundamentalmente, os
interesses de uma minoria no poder. Portanto, leis não seriam sinônimo de justiça, mas
de usurpação e interesses privados.

Marx e seu amigo Friedrich Engels (1820-1895) foram pensadores revolucionários.


Entre suas inúmeras contribuições está a advertência de que não vejamos as coisas como
parecem ser e as autoridades dizem que são. Seria preciso perceber o que está por trás
do Estado e por baixo das leis. Elas expressariam interesses universais mas esconderiam
interesses particulares. Os dois pensadores e ativistas políticos redigiram a famosa obra
intitulada “O Manifesto Comunista”. Ali, afirmam que a única maneira de a classe trabalhadora
obter a liberdade e o bem-estar que lhe são de direito, seria tomando o poder à força.

A partir da conquista revolucionária do Estado, a classe trabalhadora instauraria


a "ditadura do proletariado". Seria uma etapa provisória, temporária, até que se pudesse
prescindir do Estado e este seria extinto, por pura falta de utilidade. O raciocínio é

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simples: O Estado é o produto histórico do ordenamento jurídico e policial das classes
dominantes ao longo do tempo. Sua maior incumbência seria proteger a propriedade
privada e garantir a acumulação de riquezas de quem está no poder. A acumulação
seria o resultado da exploração da classe dominante sobre a classe trabalhadora. Então,
o Estado é, por definição, contra os interesses dos trabalhadores. Sendo, na origem,
uma instituição de opressão, deveria ser extinto. O que se seguiria depois seria uma
sociedade sem classes, baseada não na aplicação das leis, mas na justa distribuição dos
bens produzidos e sem propriedade privada.

3.6 VARIADAS CONCEPÇÕES


De um modo geral, a concepção de Estado apresentada por Marx e Engels teve
muitos adeptos e ganhou força interpretativa desde o fim do século XIX, passando a
antagonizar com a concepção digamos assim conservadora do Estado, sintetizada
na idealização hegeliana. De um lado, a ideia do Estado como produto da razão e, de
outro, como instrumento de usurpação. E, embora tenhamos convivido fortemente
com o binário “direita” (conservadora ou reacionária) e “esquerda” (progressista ou
revolucionária) na política mundial e no interior das nações, as experiências concretas
se orientaram por essas duas concepções, hegeliana e marxista, sem exclusividade a
um ou outro lado.

Durante o século XX, as concepções de Estado tiveram alguma variação.


Oscilaram entre concepções as mais autoritárias e centralizadoras até as mais libertárias
ou mesmo descentralizadas. Foram do Estado totalitário ao anarquismo, passando pelo
Estado de bem-estar até o Estado mínimo. Em cada um dos casos, sempre houve
teorias a constituir elaboradas justificativas em defesa de cada modelo. Com exceção
da utopia anarquista, experiências concretas não faltaram, a deixar suas marcas na
história e as possibilidades de que se tenha aprendido com elas. Nessa perespecrtiva,
cabe resumida tipificação, como vemos a seguir:

• O totalitarismo expressa a máxima centralização do poder e a minimalização das


liberdades. É o Estado do medo, retratado e justificado notavelmente na obra “O
leviatã”, de Thomas Hobbes (1588-1679).
• O anarquismo, por sua vez, defende a extinsão do Estado, sugerindo que toda forma
de poder é uma forma de usurpação, de dominação ilegítima e deve ser negada. É a
negação do Estado, retratada, por exemplo, na obra “O anarquismo e a democracia
burguesa”, que inclui o capítulo “O Estado: alienação e natureza”, do anarquista russo
Mikhail Bakunin (1814-1876), entre outros escritos de anarquistas como Malatesta,
Phroudon e Kropotkin.
• O Estado de bem-estar social é, como sugere o nome, o Estado protetor, empenhado
na distribuição da riqueza social através de políticas públicas de transferência de
rendas, incluindo as políticas sociais na saúde e na educação. Nessa perspectiva,

18
governos são responsáveis pela sobrevivência de seus membros, garantindo
subsistência àqueles que não a possuem. Uma excelente análise foi feita pelo
sociólogo polonês Adam Przeworski (1940 - ), em seu livro “Capitalismo e social-
democracia”.
• O Estado mínimo expressa a ideia de que quanto menor for a intervenção do Estado
na vida privada das pessoas e na economia, tanto melhor. Para os liberais ortodoxos,
o Estado deveria apenas cuidar do básico, ou seja, garantir o direito à propriedade
privada, cuidar da segurança dos indivíduos e da educação aos que mais necessitam,
deixando o restante com a iniciativa privada e a sociedade organizada. Uma
compreensão sobre o assunto pode ser iniciada com a leitura do pensador liberal
austríaco Ludwig von Mises (1881-1973), em “A mentalidade anticapicalista”.

Contemporaneamente (século XXI), podemos afirmar que o Estado é uma ordem


política, cuja legitimidade é pouco distutível. Podemos manifestar nossas insatisfações
com a ordem política. Podemos contestar os ordenamentos jurídicos, reclamar das
políticas econômicas, de governos autoritários, ineficientes, corruptos, perdulários,
entre outros defeitos. Tudo isso nos permite constatar que a ordem política é produto
das relações de poder entre seres humanos em busca da consecução de suas ideias e
interesses, públicos ou inconfessáveis.

Por extensão, podemos concordar ou divergir das concepções sobre como o


Estado deve primordialmente ser. Poderia ou deveria ser mais centralizado, autoritário,
descentralizado, democrático, mais ou menos liberal, na economia, na organização
política, nos costumes e comportamentos individuais. Deveria ser mais assistencialista,
como sugerem os socialdemocratas ou menos intervencionista, como os defensores do
liberalismo clássico. Na vida real, esses “tipos ideais” se confundem, conformando as
experiências em cada governo, cada nação e em cada tempo.

As experiências políticas ao fim da segunda década do século XXI não permitem


prognósticos seguros. A democracia é a forma de governo preferida entre os países mais
desenvolvidos do Ocidente. Todavia, isso não nos exime de reconhecer que a relação
democracia e desenvolvimento seja uma regra tácita. A China não é uma democracia
e, no entanto, desponta para ser a potência econômica do século XXI. Seguirá sendo
um regime político centralizado e restritivo? E quanto ao Ocidente democrático, quais
serão os resultados do embate entre o Estado de bem-estar e o Estado mínimo, entre
social-democratas e liberais ortodoxos? (considerando que todos são, a rigor, liberais
democratas).

Sejam quais forem os resultados, eles dependerão do interesse dos cidadãos


de cada país, microrregião e cidade, sobre as coisas da política. O Estado, seja numa
conformação ou noutra, estará presente e legitimado pelos indivíduos, é difícil prever
algo diferente. Sua legitimidade dependerá sempre, em considerável medida, da
capacidade de a ordem política formal responder às necessidades econômicas e aos

19
direitos fundamentais dos indivíduos. E a qualidade dos serviços dependerá de um duplo
esforço da sociedade, qual seja, o esforço econômico e a atenção à política. Podemos
admitir, como sugeriu certo filósofo, que a política não nos levará ao céu, mas é somente
através dela que nos livraremos do pior dos infernos.

4 PODER
Definimos o conceito de poder como o resultado da ação capaz de exercer
influência sobre o outro ou os outros, a fim de conseguir realizar e fazer prevalecer o
interesse de quem busca obtê-lo. Se falarmos em termos de poder político, podemos
defini-lo como o exercício da influência legítima de um agente sobre outro ou outros.
Há inúmeras formas de um agente exercer poder sobre outros, fazendo-os alterar
seus comportamentos em função do interesse e mando de quem o exerce. No caso da
ordem política, é a autoridade legítima que se expressa, seja pelo uso da força, seja pela
ameaça de seu uso em nome da lei.

A recorrência ao uso da força na política é uma condição necesária, mas não


suficiente para definir o conceito de poder (BOBBIO, 2000, p. 164). Em política, o uso da
força como possibilidade ou ameaça depende da legitimidade conferida pelos cidadãos.
É o uso da força com a força da lei. E isso confere ao Estado o poder exclusivo de utilizá-
la, sem o que o poder é ilegítimo. Em outras palavras, somente o poder político tem o
direito de exercer o poder com base no uso ou na ameaça do uso da violência. Nenhum
outro indivíduo, grupo ou organização na Sociedade pode fazê-lo, o que confere ao
Estado o monopólio do uso da força para o exercício da autoridade.

É nessa perspectiva que devemos entender a explicação oferecida pelo filósofo


inglês Thomas Hobbes. No grande clássico da teoria política, intitulado “O leviatã”, Hobbes
explica mais ou menos assim os fundamentos do contrato social, base da teoria do Estado
moderno: trata-se da passagem do estado de natureza (estado selvagem) para o estado
civil (estado político), em que os homens abdicam do direito de usar cada qual sua força
para se protegerem e ou alcançarem seus interesses. É quando todos resolvem outorgar
esse poder a um ente superior, qual seja, o Estado, que Hobbes chama alegoricamente de
Leviatã, em recorrência à figura bíblica (HOBBES apud BOBBIO, 2000, p. 165).

Nessa perspectiva, os governos em geral são o exemplo de agentes com


autoridade exclusiva de usar a força física para obrigar a obediência aos cidadãos
nas circunscrições do território sobre o seu controle. Um policial, por exemplo, é uma
extensão humana da autoridade estatal sobre o cidadão. Mas o monopólio do uso da
força não deve ser confundido com autoridade sem limites, embora na prática isso
muitas vezes aconteça. Por exemplo, se esse policial, instituido da autoridade que lhe
é outorgada, ameaça um cidadão, o obriga a uma confissão ou lhe cobra propina sob
ameaça, estará fora dos limites da autoridade política. Trata-se, nesse caso, de um
exercício ilegítimo do poder.

‘Naturalmente, estamos tratando do fenômeno do poder de um ponto de vista


contemporâneo. O poder é tão antigo quanto a convivência humana. Admitido isso, não
podemos afirmar que sempre houve legitimidade no exercício do poder. A força de um

20
sobre outro é antes de tudo uma violência. O que torna esse uso minimamente aceitável
é quando a força é usada em defesa contra a violência alheia. E é exatamente essa
reação que, ao longo da história humana, vai revestir o uso da violência de moralidade. É
a constituição da autoridade, em nome da ordem, que legitimará o uso da força.

Todavia, se todos se atribuírem essa autoridade, o resultado tenderá a confirmar


o temor hobbesiano: deixados à própria sorte, os seres humanos entrariam em guerra
permanente e se matariam uns aos outros. É como que uma consciência adquirida pelos
seres humanos de que seus egoísmos ameaçam a própria sobrevivência da espécie. É
para assegurá-la, que os homens estabelecem o acordo, isto é, o tal “contrato social”.
Desse modo, outorgam o poder a um ente superior, um líder, chefe ou governante, a
quem incumbem a tarefa de exercer o poder em nome da ordem, da sobrevivência.

Admitida a evolução histórica, isso nos leva a compreender o surgimento do


Estado, onde o poder se concentra e se legitima em nome da ordem, da sobrevivência
dos indivíduos em coletividade. Está claro que, com frequência, o poder é mal exercido,
justamente porque operado por seres humanos de natureza egoísta, como definiu
Thomas Hobbes. Todavia, isso não decreta a possibilidade de extinção do Estado,
como sugeriram os anarquistas, como Bakunin e Phroudon, e os socialistas libertários
como Marx e Engels. O poder será sempre uma usurpação. Mas também será um poder
consentido pelos que a ele são submetidos. É ao Estado que compete esse poder
legítimo, e leva muitos a afirmar que, fora dele, não há solução.

O sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), a força física legítima é o ponto de


partida de toda ação do Estado, que exerce o poder político, entendido como legítimo,
sobre os cidadãos. Essa força é a espinha dorsal do sistema político. São as autoridades
políticas dos três poderes que têm o direito legitimado de usar a coerção e exigir
obediência. É, portanto, o poder político, o maior de todos. Sob o poder político estão
submetidas não apenas as instituições que regem a política, mas também as regras e
leis do poder econômico e do poder ideológico (WEBER, 1976, apud BOBBIO, 2000, p.
165). É bastante frequente que as leis e costumes econômicos, como também as ideias
dominantes, estejam em consonância com o poder político, como já lembrara Karl Marx.
Mas sua hegemonia dependerá sempre do poder político.

FIGURA 3 – O SOCIÓLOGO ALEMÃO MAX WEBER

FONTE: <https://bit.ly/34MD7eW>.Acesso em: 22 jul. 2020.

21
Como conceito central no estudo de sociedades, nações e organizações,
o fenômeno do poder é estudado em muitos campos do conhecimento. A origem e
natureza da autoridade e sua legitimidade é o principal assunto de filósofos políticos e
cientistas políticos. Investiga-se sobre as circunstâncias que legitimam a ação do Estado
em obrigar seus indivíduos a agirem em certa direção. Todavia, desde John Locke (1632-
1704), também se investigam as condições em que cidadãos podem, legitimamente,
desobedecer ao poder do Estado.

Para sociólogos e cientistas políticos, as questões mais essenciais do poder


dizem respeito aos antecedentes e aos efeitos da autoridade do Estado. Tem a
ver com as condições que permitem o exercício legítimo do poder e também com o
modo de exercê-lo. Tem a ligação com as ideias que o legitimam e os mecanismos
que permitem sua operação. Nessa perspectiva, aparecem as seguintes questões 1)
Por que os indivíduos, grupos e organizações se submetem à autoridade? 2) Como
instituições sociais mais amplas servem para legitimar essa autoridade? 3) Como o
modo de exercer autoridade interfere nas relações sociais e decisões dos indivíduos?
4) Por que os indivíduos obedecem à autoridade? E, finalmente, 5) Quais são os limites
dessa obediência, especialmente no que concerne aos valores e necessidades mais
profundos dos indivíduos?

4.1 AUTORIDADE COMO QUESTÃO NORMATIVA


Para a filosofia política, a questão primordial em relação ao poder é saber o que
efetivamente legitima a autoridade estatal, isto é, o poder político. Pode-se concordar
que a autoridade requer forte consenso e consentimento. Contudo, essa concordância
geral dos indivíduos não significa que sempre tenha consenso sobre os princípios que
definem o que é legítimo, tampouco sobre os limites dessa legitimidade. Isso acontece
quando, por exemplo, os cidadãos são obrigados a obedecer a leis que ameaçam suas
próprias vidas ou entram em conflito com suas considerações morais. Tais questões
foram enfrentadas ao longo da história das ideias por filósofos como Hobbes, David
Hume, entre muitos outros, até mais recentemente pelo filósofo e cientista político
estadunidense John Rawls.

Nessa direção, as reflexões sobre o poder político se revelam moralmente


complexas e aproximam aquelas duas concepções aparentemente opostas,
anteriormente mencionadas. De um lado, é preciso admitir que, até certo ponto, o
poder político só existe porque é aceito pelo conjunto de cidadãos. Por outro lado, é
difícil negar que esse poder não seja, até certo ponto, uma usurpação indesejada. Daí,
aparece o seguinte paradoxo, apontado pelo filósofo político contemporâneo Robert
Wolff (1933 -): Por um lado, a autoridade legítima exige que ajamos contrariamente ao
próprio julgamento. Por outro, a autonomia moral (de agir segundo a própria razão e
consciência) é um direito humano de primeira grandeza. Assim, o exercício da autoridade
política é uma violação da nossa autonomia moral, o que é imoral (WOLFF, 1970, p. 8-9).
Isso deu nova vida à discussão de justificativas normativas para legitimidade.

22
4.2 AUTORIDADE COMO QUESTÃO SOCIOLÓGICA
Para o sociólogo, a legitimidade que distingue entre poder coercitivo e autoridade
repousa não em algum fundamento normativo teórico, mas em uma convenção social
de fato (convenção social real, significando que legitimidade não é se o comportamento
de um ator satisfaz alguma norma ética ideal, mas se encaixa nas normas sociais
comuns às pessoas reais da sociedade). A sociedade confere a certos atores o direito de
influenciar os outros e esperar sua obediência. Um membro da comunidade que impede
outros na rua e vasculha seus bens contra sua vontade é um vigilante ou um ladrão
armado, exercendo poder coercitivo. Um policial que pratica o mesmo comportamento
de acordo com os procedimentos legais, validados por convenção social, está exercendo
autoridade.

Max Weber identificou três justificativas internas ou fontes de legitimidade, para


o exercício da autoridade:

1. normas tradicionais santificadas por convenções de longa data;


2. carisma que atrai a confiança e devoção pessoal dos seguidores;
3. racional considerações jurídicas apoiadas pela crença na validade dos estatutos legais
e na competência funcional.

Grande parte da autoridade citada nas organizações repousa sobre uma fonte
racional-legal de autoridade. Nos negócios, por exemplo, é a combinação da posição de
um gerente em relação às estruturas estatutárias e racionais que constitui o direito de
esperar obediência dos subordinados. Os acionistas compartilham um tipo de autoridade
semelhante em suas negociações com a corporação por meio de mecanismos de
governança.

4.3 AUTORIDADE COMO QUESTÃO PSICOLÓGICA


Para alguns psicólogos, a questão interessante sobre a autoridade é como ela
pode superar outras considerações ao obrigar os indivíduos a obedecerem às ordens,
especialmente as considerações básicas como sobrevivência e moralidade básica.
Na segunda metade do século XX, essa questão assumiu uma importância particular,
pois, os cientistas sociais se esforçavam por entender os pesadelos da Segunda Guerra
Mundial. Tinham dificuldade de compreender, particularmente, a disposição de cidadãos
e dos soldados alemães comuns de participar do extermínio de judeus e de outras
minorias nos campos de concentração.

Stanley Milgram, psicólogo social da Universidade de Yale, conduziu o mais


conhecido desses estudos, projetado para entender os limites da disposição de uma
pessoa de obedecer à autoridade. Milgram descobriu, como mais tarde escreveu em
seu livro Obedience to Authority (1974), que os adultos fariam quase tudo quando

23
comandados por uma autoridade. Fariam, inclusive, coisas como choques elétricos
dolorosos remotamente a uma pessoa invisível (que, desconhecida pelo sujeito, na
verdade não recebia tais choques). Ele atribuiu essa disposição, em grande parte, à
divisão do trabalho que caracteriza a sociedade moderna e afasta os indivíduos das
consequências de suas próprias ações.

A disposição dos indivíduos em autorizar outros a controlá-los levanta um


sério dilema. Por um lado, essa disposição de obedecer representa um dos principais
fundamentos psicológicos de organizações complexas. Por exemplo, a razão pela qual as
empresas adotam hierarquias em vez de deixar todas as práticas ou decisões corporativas
serem elaboradas por meios ad hoc que é mais eficiente e menos dispendioso para uma
pessoa obedecer a um superior em vez de se envolver em negociações constantes. Por
outro lado, muitos dos lapsos morais mais infames da história organizacional recente
envolveram indivíduos que estavam dispostos a seguir ordens autorizadas em vez de
questionar sua moralidade. Comentando sobre o comportamento de Adolf Eichmann
durante a Segunda Guerra Mundial, a filósofa política Hannah Arendt afirmara que essa
"banalidade do mal" representa o horror final da burocracia, na qual até os atos indizíveis
podem se tornar normais e rotineiros através do exercício da autoridade.

ATENÇÃO
A leitura a seguir é uma oportunidade de começar a entender o
significado da ideia-força do “contrato social”, que representa as
abstrações feitas pelos contratualistas para explicar o surgimento
do poder institucional, isso é, o Estado. Trata-se de uma resenha
do websiter Daniel Lage, sobre o livro “Contrato social”, do filósofo
oitocentista franco-suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778).
Não há uma única definição sobre o “contrato social”. De todo
modo, os contratualistas justificam a existência do Estado e sua
legitimidade a partir dessa ideia-força. De leitura em leitura,
nossa compreensão se expande e percebemos a grandeza e a
atualidade das ideias dos filósofos políticos modernos. Nessa
perspectiva, Rousseau, Hobbes e Locke, entre tantos outros, são de
leitura imprescindível para compreendermos a ordem e a desordem
da política de nossos dias. São fundamentais para que saibamos o que
pensar e fazer, como cidadãos, para que a política sempre se renove.
Nesse sentido, vale lembrar o que escreveu Machiavel (1996) “se a
política não nos leva ao céu, nos livra, contudo, do pior dos infernos”.

24
Reflexões sobre a leitura de “O Contrato Social” de Jean-Jacques Rousseau

Daniel Lage

A experiência da leitura de “O Contrato Social” foi de contato com uma
teoria política que está localizada na fronteira entre o romantismo e o realismo. Pois
ora se ergue fortes argumentos em favor da democracia direta e irrestrita como
única possibilidade de efetivação da liberdade, e ora essa mesma liberdade é posta
a longas léguas das possibilidades políticas ao homem em sociedade. Em outras
palavras, a sensação foi de que há um pêndulo argumentativo na teoria de Rousseau
que vai da radicalidade da crítica e do objetivo a se alcançar através da política,
e a volta a dura realidade das possibilidades colocadas ao homem, sobretudo, o
homem burguês que nada investe a não ser pelo lucro e o proveito próprio. Esse
movimento, creio eu, já pode ser encontrado na famosa frase com que o autor abre
o Capítulo I do Livro I: “o homem nasce livre e em toda parte é posto a ferros”. Num
primeiro momento, a liberdade existe, aliás é inata, contudo, estamos postos a ferro
e constrangidos pela sociedade.

Essa primeira frase também contém o problema que Rousseau está se


colocando a resolver na obra, qual seja, como, vivendo em sociedade, o homem pode
ser livre? Seguindo os passos de Milton Meira do Nascimento, em texto sobre o autor,
se no livro “Discurso sobre a Origem da Desigualdade”, Rousseau se preocupa em
fundamentar como a sociedade corrompe os homens, posto que esses naturalmente
nascem bons e valorosos, é no livro “O Contrato Social” que o filósofo vai propor
o caminho de volta. Isto é, como a sociedade, que ora corrompeu o homem e
constrangeu sua liberdade, pode, digamos, botar-lhe em contato com sua própria
natureza e dar-lhe novamente a liberdade, não mais a natural pois essa ficou para
trás, mas uma superior, a liberdade civil?

Diferente do que se estabeleceu vulgarmente sobre o autor, o caminho à liberdade


civil não se dá através da Democracia por excelência. A Democracia para Rousseau é
mais uma forma de governo cuja eficiência para a realização de uma verdadeira República
de cidadãos livres depende de diversos fatores como a quantidade da população, a
capacidade produtiva, os costumes, o grau de desigualdade entre os habitantes etc., ou
seja, não há uma forma de governo definitiva ou ideal. Aliás, esse é um ponto forte, pois
qualquer democrata fervoroso se surpreenderia com a afirmação do autor quando diz
que “se houvesse um povo de deuses, se governariam democraticamente. Um governo
tão perfeito não convém aos homens”. Eis o realismo que apontei e o pêndulo a funcionar.
Contudo, essa afirmação serve para dar ênfase de que a questão de Rousseau não se
resolve de uma forma simples, como elegendo uma forma de governo.

O ponto principal é que, os homens, ao se depararem com todas as


dificuldades da vida – no “estado de natureza”, onde reina o egoísmo e competição –,
ao ponto de verem ameaçada sua própria sobrevivência, percebem que vão perecer

25
se não mudarem sua maneira de ser. Sendo um contratualista, Rousseau utiliza a
lógica do contrato para entender os movimentos da sociedade. Assim, a questão
que os homens se colocam é expressa da seguinte maneira, como uma necessidade
objetiva, é preciso:

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força
comum a pessoa e os bens de cada associado, pela qual cada um, ao unir-se a todos,
obedeça somente a si mesmo e continue tão livre quanto antes”.

Esse é o problema que o contrato social pode resolver. Mas antes de


chegarmos ao contrato propriamente dito, vejamos com calma o duplo problema que
a humanidade se colocou no seu desenvolvimento segundo o autor. A primeira parte
da questão é a mesma que inspira Hobbes, qual seja, “uma forma de associação que
defenda e proteja com toda força comum a pessoa e os bens de cada um”, isto é, um
Estado soberano que garanta a segurança e a produção da vida e das pessoas.

É na segunda parte da proposição que Rousseau avança, pois a associação deve


ser de tal forma, que além de garantir a vida deve garantir a liberdade, pois “o homem
deve obedecer somente a si mesmo e continuar tão livre quanto antes”. Para Hobbes
isso é impossível, pois a liberdade é justamente a razão da guerra e da miséria humana,
o Estado hobbesiano se baseia na alienação da liberdade que é entregue ao Soberano.
Rousseau, ao contrário, defende que a questão sobre a liberdade não se resolve dessa
forma, pois nenhum homem pode entregar sua liberdade, essa é uma falsa questão, pois
ela é inata e se alguém o fizer dessa forma não está em pleno juízo. Por isso a segunda
parte do problema tem de ser respondida: como viver em sociedade em liberdade?

O contrato social proposto por Rousseau para resolver a questão – através do


qual se funda a sociedade política e o homem deixa o “estado de natureza” e passa ao
“estado civil” –, parte da alienação total de cada associado, com todos os seus bens, à
comunidade inteira: “cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder
sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos enquanto corpo, cada membro
como parte indivisível do todo”. Eis a “vontade geral”, a força possível de se submeter
sem perder a liberdade. No lugar da pessoa particular de cada contratante, ergue-se
um corpo moral e coletivo, um “Soberano”, um “eu” comum, a unidade possível de um
Povo. Esse é o ato fundante do Estado Civil, cuja base não é outro senão a “vontade
geral” do Povo que se sobrepõe as vontades particulares – essa última a razão da
corrupção, do egoísmo e do fim da própria sociedade. Para que ocorra o contrato
social este deve ser consensual e estabelecido entre iguais. Aliás, esse é o único
contrato que não pode ser votado, toda a assembleia deve estar de acordo, pois quem
não estiver será um estrangeiro.

A única saída para que a liberdade não fique constrangida pelas vontades
particulares é o pacto através do qual os homens se submetem à “vontade
geral”. Quando esses criam o Estado é justamente para sair da miséria criada pela

26
sobreposição da vontade particular à vida, e elevar-se a uma condição moral superior.
Para Rousseau, e para o horror dos burgueses, é na esfera pública que a liberdade
deve estar garantida; o homem que caminha pela sua cidade quando bem quer,
conversando e refletindo sobre filosofia e literatura com seus iguais, e se preparando
para a próxima assembleia, pensando as leis do país, esse é um homem livre. A
espera privada, por sua vez, não pode dar ao homem a verdadeira liberdade, pois ela
é individual e está garantida sem nenhum esforço, não é um problema verdadeiro,
afinal, sentir-se livre na esfera privada não acrescenta em nada ao bem comum,
motivo fundamental da associação entre os homens.

O contrato social rousseauniano, do ponto de vista legislativo, é um salto de


qualidade à reflexão sobre liberdade. Pois sendo o Estado o instrumento de governo
da “vontade geral”, suas leis só podem ser expressão da liberdade de seu povo, pois
é ele quem dá legitimidade, em suas assembleias, às leis. Seguindo a frase do autor,
“um homem que segue suas próprias leis é um homem livre”. Igualmente será livre
um povo que segue as leis que ele mesmo escolhe. Ao contrário da teoria de Hobbes,
na qual a lei é um constrangimento à liberdade, em Rousseau a lei é a expressão
dessa mesma. Por sua vez, o principal constrangimento à liberdade colocado pelo
filósofo é a dependência material, por exemplo, de uma criança em relação a sua
família. Contudo, quando os filhos saem de casa e vão viver por conta própria estão
libertos. Justamente por isso os homens só podem ser livres quando dependerem
deles mesmos e, para isso, devem se guiar pela “vontade geral”, pois essa é a vontade
soberana de um povo. A contradição tipicamente hobbesiana entre o indivíduo que
quer fazer o que bem entende e a sociedade que o limita e constrange, é resolvida
por Rousseau questionando se essa vontade do indivíduo é legítima, pois ela é
excessivamente particular, e na verdade, não é expressão da liberdade, mas é um
desvio moral que é preciso se alertar, pois é justamente essa vontade particular que
corrompe os homens.

Sendo fruto de um contrato, todos os membros da sociedade quando


percebem que o Estado não está se guiando pela “vontade geral” e não mais cumpre
com a razão de sua criação, podem desfazer a sociedade e voltar ao “estado de
natureza”. Antes disso, é possível também destituir os membros do governo e dar-
lhe novos. Para o Rousseau os governantes são funcionários do povo, e se eles
não cumprem com sua função devem sair do cargo. Contudo, é preciso cuidado
com a metáfora do governante-funcionário, pois essa tarefa é apenas executiva,
deve garantir a efetivação da “vontade geral”, mas quem é a voz é o povo, e este
tem que falar. Isso nos leva ao debate da representação que para Rousseau é uma
falsa ideia, pois a vontade geral não é representável, ou delegável a outrem que
não seu fundamento: o próprio povo. Ou este exerce a soberania e dita o que deve
ser feito ou ele apenas acha que é livre quando, na verdade, é escravo de seus
representantes. A “vontade geral” não se representa, ela é a mesma, pela voz dos
contratantes, ou é outra.

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Essa questão é cara para nossa atualidade pois vivemos numa democracia
representativa, e seguindo esse pressuposto rousseauniano a democracia só é
efetiva se ela é extremamente participativa. Para o autor, creio que ele diria, o que
vivemos no Brasil e na maioria absoluta das democracias modernas é uma forma de
governo próxima da aristocracia eletiva, e o grau de liberdade é baixo, pois apenas
votamos nos que realmente governam e não governamos. Aliás o dito comum que
chama a atenção do cidadão que só é livre na hora do voto é de autoria do filósofo
já em meados de 1760: “o povo inglês pensa ser livre; está muito enganado, pois só
o é durante a eleição dos membros do parlamente; tão logo estes são eleitos, ele é
escravo, é nada”.

A principal questão da representação é que a vontade geral é impossível de


representar. Pois na prática o conjunto de eleitos vão inevitavelmente se guiar pela
vontade particular do próprio conjunto e não do todo do corpo político (os cidadãos
e os membros do governo), afinal quando há representantes os cidadãos já não
fazem mais parte do corpo político, apenas o escolhem. Para Rousseau o próprio
governo executivo, tende a sobrepor as vontades particulares a “vontade geral”, pois
é uma tendência inevitável que deve ser controlada pelos cidadãos que, como dito,
podem substituir a qualquer momento os membros do governo. Já uma Câmara de
Debutados representativa é uma aberração e significa o declínio da República.

Vale dizer que o único papel do corpo político no qual a vontade particular
e a vontade geral estão imbricados de maneira a ser aceito é o do legislador. Esse
que escreve e elabora as leis, deve ser escolhido pelo povo por ser um homem
valoroso e de aptidões individuais excepcionais. O próprio Rousseau foi legislador,
e fez a constituição da Ilha de Córsega, local, diz ele, “onde reina a democracia e
um Estado de cidadãos valorosos, o único lugar que promete grandes avanços ao
mundo ocidental”. Julgamento que se confirmou parcialmente correto, pois foi da
Córsega que veio Napoleão, o Príncipe modernizador de toda a Europa, décadas
após a morte do filósofo.

Essa tendência ao corrompimento do governo dá movimento cíclico, como


em Machiavel, a vida política dos homens. Para Rousseau as Repúblicas, o Povo,
são como os homens: envelhecem com vícios difíceis de mudar, sendo preciso
morrer e renascer para começar um novo ciclo virtuoso. É preciso uma revolução,
uma guerra civil, para alterar os vícios de um Povo. Ainda em consonância com
Machiavel, o ator reconhece que, apesar de não existirem formas de governos nem
perfeitas nem perversas em si, a monarquia carrega uma tendência maior, por
conta do excesso de poder do monarca, a degeneração. Pois o interesse pessoal
dos Reis se sobrepõe inevitavelmente a vontade geral. Isso é o que Machiavel fez
ver com evidência, nos alerta o moderno filósofo. Saudando o italiano defensor da
República tal qual ele, Rousseau afirma que “ao fingir dar lições aos reis [Machiavel]
deu grandes lições aos povos”.

28
Por fim, Rousseau é um pioneiro em muitas elaborações que fazem parte da
vida política atual. Uma delas, e das mais importantes, é a defesa do Estado laico.
Afirma o autor que o Estado deve ser tolerante com as religiões que forem também
tolerantes com o conjunto de crenças diferentes entre si no seio do Povo. Avançando
o sinal, para Rousseau a religião é uma questão da esfera privada e não tem nada
que ver com o Estado. Por conta dessa elaboração, ao final do Livro IV de “O Contrato
Social”, o filósofo pagou caro, pois foi expulso de vários países, inclusive de sua terra
natal. Mesmo que ainda, na mesma parte, advirta que um Estado Religioso cujos
cidadãos através de sua crença amem seus deveres, as leis e a vontade geral, seja
um Estado virtuoso; e se esse Estado garantir através da religião esse dogma, está
garantida a liberdade. Rousseau foi perseguido pelas suas ideias e atividades políticas.
E certamente o romântico e o realista sempre andaram juntos.

FONTE: <https://bit.ly/33rDjj0>. Acesso em: 8 dez. 2019.

29
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

· É fundamental compreender a origem etimológica de nossas ideias políticas.

· É essencial compreender a origem histórica de nossa cultura política.

· Grécia e Roma antigas constituem a base de nossas instituições políticas.

· A busca pelo poder constitui o objeto em si da Ciência Política.

· O Estado é o produto histórico das disputas pelo poder.

· O Estado reflete igualmente a necessidade de regras ao convívio social.

· Fora da política não há solução civilizatória.

30
AUTOATIVIDADE
1 O conceito de “Contrato Social” é, talvez, a mais emblemática representação do
Estado. O Estado é, por assim dizer, a síntese histórica das disputas de poder e da
necessidade de regramento no convívio social. O filósofo contratualista franco-suiço
Jean Jacques Rousseau (1712-1778) foi autor de “Contrato Social”, onde expõe sua
concepção do Estado Moderno. Mas também Hobbes e Locke usaram a expressão
em suas obras, afirmando que o Estado civil é o necessssário resultado do contrato
social.

Defina as concepções de ser humano na perspectiva de cada um dos três autores


contratualistas.

2 Como toda a ciência, também a Ciência Política é um campo ao mesmo tempo


específico e abrangente de investigação. Uma das características de cada ciência é o
conjunto de conceitos-chave que compõe cada campo do conhecimento. O conceito
de Poder é central nesta mencionada ciência. Defina-o.

3 Considerando a amplitude do conceito de Poder, podemos afirmar que existem várias


maneiras de um agente exercer o poder. No caso do poder político, há uma definição
específica do seu exercício, assim como há uma esfera específica de xercer o poder
na sua amplitude. E, por fim, existe um agente de poder, maior que todos os outros.
Defina o poder, segundo a conceituação estabelecida por Max Weber (1864-1917), e
responda qual é esse agente máximo do poder.

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32
UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
FORMAS CLÁSSICAS DE GOVERNO:
MONARQUIA, ARISTOCRACIA E
DEMOCRACIA

1 INTRODUÇÃO

FIGURA 4 – O PARLAMENTO DEMOCRÁTICO

FONTE: <https://bit.ly/3JxGhBY>. Acesso em: 22 jul. 2020.

Acadêmico, neste tópico, você estudará três regimes políticos, que são:
Monarquia, Aristocracia e Democracia. Ao longo desse estudo, será possível
compreender a questão determinante na organização e estabelecimento de um regime
de governo reside na forma como se equalizam as relações de poder constitutivas de
um tecido social. Ou seja, toda e qualquer sociedade humana é constituída por grupos
de interesse que disputam as relações de poder. Assim, a constituição de um regime de
política significa o estabelecimento da hegemonia de determinados grupos na condução
dos interesses públicos.

Ainda, demonstraremos que os regimes políticos são contingentes, manifestam-


se e sobrevivem sob determinadas condições tecnológicas, produtivas e demográficas
que conformam as estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais durante certo
período. Porém, a substituição de um regime político por outro no contexto dos
desdobramos históricos não significa a supressão total e definitiva do regime político
anterior encontrando-se traços no regime subsequente.

E nesta direção, atualmente, encontramos governos monárquicos constitucionais,


parlamentares, ou mesmo na forma de monarquias absolutas. A mesma condição
encontramos em relação ao regime político aristocrático, cuja origem no ocidente
encontramos na Grécia Antiga, mas que se pode encontrar contemporaneamente nas

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estruturas burocráticas dos Estados nacionais. O mesmo fenômeno, salvaguardadas as
diferenças encontramos em relação à democracia, nascida entre os gregos antigos na
forma da democracia participativa direta e, que atualmente se apresenta na forma de
democracia de massas na forma representativa.

2 MONARQUIA
O ser humano é por excelência um ser social. Essa premissa é válida para as
mais diferentes espécies de seres vivos que coabitam na biosfera. Mas, especificamente
para a espécie homo sapiens (aquele que sabe que sabe) esta condição é determinante.
Ou seja, o humano reconhece sua própria condição na relação com outro humano. A
forma como nós nos compreendemos em nossa individualidade no mundo depende
das multiplicidades de relações que se estabelecem ao longo de nossas vidas, desde
os primeiros momentos de vida no seio familiar e posteriormente pela interação que se
estabelece nos mais diversos momentos e espaços sociais.

Assim, é a partir do conjunto de relações que o ser humano se estabelece ao


longo da vida com outros seres humanos que ele se abre para o mundo. Ou dito de outra
forma, o mundo é o resultado do conjunto de relações constitutivas do humano. Sob
tais pressupostos, o mundo é humano por excelência. As demais formas de vida animal
e vegetal não possuem um mundo. Somente o humano em sua condição relacional
consegue superar os imperativos do reino da necessidade e reconhecer sua forma de vida
em sua singularidade em relação às outras formas de vida. A singularidade da condição
humana se constitui a partir do reconhecimento advindo das relações humanas entre
humanos e, das relações com os demais seres presentes em seu entorno, permitindo-
lhe projetar sentido e finalidade às suas ações, ao mundo, à existência em sua totalidade.

Porém, a singularidade da condição humana é também inerente à condição


relacional constitutiva do ser humano às relações de poder. O poder é resultante da
força de que dispõe cada ser humano na superação dos imperativos da necessidade
e na relação com outros seres humanos, que impõem limites às possibilidades do
reconhecimento de si e do mundo. Nessa perspectiva, o filósofo francês Gerard Lebrun
(1930-1999) sugere que “a força é a canalização da potência, é a sua determinação. E
é graças a ela que se pode definir a potência na ordem das relações sociais ou, mais
especificamente, políticas” (LEBRUN, 1984, p. 12). É sob tais pressupostos, que se pode
compreender a assertiva de Aristóteles em sua obra “A Política”, quando afirma que
homem é um animal de linguagem e como tal um animal político.

Assim, o ser humano, resultado de sua condição necessariamente sociável,


encontra-se diante do desafio cotidiano de negociar as relações de força com os
demais seres humanos com intuito de alcançar uma condição existencial suficiente
que garanta o convívio e a promoção do humano. A arte da política se apresenta como
condição ontológica, como fundamento do humano, na medida é o meio e a forma de

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equalizar a força, a potência individual, bem como na constituição do espaço público
como garantia do humano. “Potência” (Macht) significa toda oportunidade de impor a
sua própria vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências,
pouco importando em que repouse tal oportunidade” (LEBRUN, 1984, p. 12).

A política é a arte de limitar a potência individual que em seu exercício


individualizado desagrega a dimensão relacional e pública a partir do qual se constitui o
reconhecimento do humano e do mundo. A política caracteriza-se pela capacidade de
intermediação das relações de poder com vistas à salvaguarda do espaço público, no
qual a condição humana se justifica e se preserva.

É que poder inclui um elemento suplementar, que está ausente da


potência. Existe poder quando a potência, determinada por uma certa
força, se explicita de uma maneira muito precisa. Não sob o modo
da ameaça, da chantagem etc., mas sob o modo da ordem dirigida
a alguém que, presuma-se que deve cumpri-la (LEBRUN, 1984, p. 12)

Nessa perspectiva, é que se podem compreender as diversas formas de


governo presentes nas mais diferentes sociedades humanas. Entre as primeiras
formas de governo de que se tem conhecimento está a monarquia. Essa forma de
governo em definição literal pode ser concebida como o governo de uma só pessoa,
o monarca. Porém, é preciso ter presente que esta definição primária de monarquia
não se apresenta suficiente, na medida em que há outras formas de governo que são
exercidas por uma só pessoa, entre elas, governos ditatoriais, regimes presidencialistas
de caráter vitalício. Também é preciso reconhecer que entre as experiências históricas
de governos monárquicos, encontramos a “diarquia” de Esparta, na Grécia Antiga. Essa
importante cidade-estado, rival de Atenas era governada por dois reis que tinham
igualdade de exercício do poder nas questões religiosas, políticas, administrativas e
judiciárias. Estudos e investigações históricas demonstram que esta singularidade da
diarquia espartana é resultante de compromissos entre grupos familiares extensos e
poderosos presentes na constituição de Esparta entre os séculos VIII e VI a.C.

Cabe ressaltar, que governos monárquicos não são sinônimo de hereditariedade,


na manutenção e exercício do poder, mesmo considerando a quase hegemonia de
tal condição em governos monárquicos de que se têm conhecimento suficiente. Ao
observar a forma monárquica presente nos povos da Mesopotâmia ou do Egito antigo
constata-se a predominância da forma hereditária de transmissão do poder entre
membros da família real. Situação excepcional, de mudança de dinastia (de família
real) no exercício do poder quando não havia herdeiros na linha sucessória. Nessas
circunstâncias, o poder passava para as mãos de outra família real. Mas, talvez se possa
afirmar que a perspectiva hereditária conferida às monarquias é uma característica da
tradição ocidental advinda das práticas políticas medievais em que a monarquia se
apresenta como sistema hierárquico centrado na figura do rei, que estava cercado por
membros da nobreza de sangue.

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Ainda, nesta direção, se o que justificava a ascensão de uma família ao poder,
transformando-se em família real era a extensão da família, suas posses materiais e, por
extensão seu poder de influência na corte, havia também na conformação do poder real
o reconhecimento por parte dos súditos de aspectos de divindade no monarca. Entre
as experiências histórias mais marcantes encontramos tal condição no Egito antigo.
O faraó era considerado uma divindade, um deus. Esse aspecto continua presente
de forma atenuada na monarquia inglesa atualmente, na medida em que a rainha da
Inglaterra é a chefe da Igreja Anglicana.

As características da monarquia como poder concentrado na figura do rei, ou


do imperador, justificado a partir do poder econômico e militar de determinadas famílias
conformando dinastia, ou justificado a partir de questões religiosas, de nobreza de
sangue não se apresentam como especificidade ocidental. Tais concepções também
se apresentam em determinadas monarquias orientais, entre elas na China e no Japão.
Pesquisadores afirmam que essas características compartilhadas entre monarquias
orientais e ocidentais se deve ao contato entre povos ocidentais (mesopotâmicos e
egípcios), mas, sobretudo, a partir de aspectos econômicos.

Ou seja, tratava-se, sobretudo dos grupos privilegiados economicamente


estabelecer uma forma de governo, que permitissem aos nobres manter o domínio sob
vastos territórios e populações. Considerando que a visão de mundo desses povos era
predominantemente mítico-religiosa e, em grande medida pautada na oralidade dos
feitos de antepassados, a aceitação de líderes hereditários de direito divino é adequada
às necessidades de organização das relações de poder entre aqueles povos e seus
contextos.

Uma variável dessa explicação econômica para aparição e constituição da


forma de governo monárquica, parte do pressuposto de que a monárquica é um regime
de governo que subjaz a psique humana, sempre carente de um ser superior, de uma
divindade que possa conferir sentido e finalidade a existência individual e social. Essa
necessidade psíquica da centralidade do poder na figura de um líder, de um governante
também encontramos nas formas de organização política de certas nações indígenas,
conferindo poder ao pajé, ao xamã e ao cacique.

Ao considerar a monarquia uma das mais antigas e mais duradouras formas de


governo presentes no mundo é preciso ter presente que suas especificidades variaram
ao longo do tempo e, de certa forma continuam a variar na atualidade. Assim, quando
perscrutamos as monarquias no mundo árabe constata-se a importância dos líderes tribais
na afirmação e garantia das relações de poder, na medida em que tais líderes exerciam
no plano local, funções determinantes para a manutenção do monarca. Ao observarmos
a questão da monarquia entre o povo hebreu antigo, constata-se que governos pautados
na figura de reis não tiveram duração significativa e, vindo de certa forma desaparecer na
tradição judaica. Na África subsaariana os reinados foram numerosos na forma de líderes
tribais. Ainda nos dias de hoje, na África do Sul, o sistema de governo de conformação
presidencialista convive com líderes tribais concebidos como reis.

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Dessas variáveis constitutivas das diferentes formas de monarquia se depreende
que a existencial de reis e de eleições não são incompatíveis. Sob tais pressupostos,
nas sociedades ocidentais, sobretudo a partir dos séculos XVI e XVII, presenciamos
movimentos que propuseram a eliminação da monarquia ou mesma a limitação do
poder das famílias reais. Caso emblemático e representativo é a família real inglesa.
No século XVII, a monarquia foi abolida, vindo a ser restaurada posteriormente com a
limitação dos poderes do rei em benefício do aumento do poder do parlamento na figura
do Primeiro Ministro.

FIGURA 5 – A GUERRA CIVIL DURANTE A REVOLUÇÃO INGLESA

FONTE: <https://mapadelondres.org/tag/guerra-civil-inglesa/>. Acesso em: 22 jul. 2020.

2.1 MONARQUIAS CONTEMPORÂNEAS


Na atualidade há majoritariamente dois tipos de monarquias: as monarquias
absolutas e as monarquias constitucionais. Nas monarquias absolutas, o monarca
possui autoridade irrestrita sobre o governo e seu povo. Geralmente, os monarcas
constituem um gabinete de conselheiros para conduzir as tarefas administrativas
e estratégicas do governo, mantendo a centralidade das decisões em suas mãos.
Quanto às monarquias constitucionais ou parlamentares, também conhecidas como
monarquias limitadas, caracterizam-se pelos limites do poder do monarca circunscritos
em carta constitucional.

Nessas formas de monarquia, o poder político e administrativo é exercido pelo


parlamento e um Primeiro Ministro. Geralmente, o monarca pode participar das ações
de governo desde que for aprovado pelo Primeiro Ministro. Mas, na maioria das vezes
suas ações circunscrevem os cerimoniais vinculados a datas nacionais simbólicas,
comemorativas e a visitas de chefes de estado de outros países, porém, no âmbito
constitucional, o monarca pode em determinadas circunstâncias, vetar legislação que
considera lesiva aos interesses do país, em situações de disputas políticas parlamentares
insolúveis pode dissolver o parlamento.

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Sob tais pressupostos, as monarquias parlamentares, ou constitucionais são
majoritárias no Ocidente e se caracterizam pelo fato de que os reis reinam, mas não
governam. As principais monarquias constitucionais se localizam no Reino Unido, na
Espanha, na Suécia, ou seja, o poder real é limitado. Sua existência se deve a inúmeras
razões, mas, sobretudo duas são centrais: manutenção da tradição constitutiva do ethos
desses povos, bem como a conveniência no que concerne no equilíbrio e nas relações
de poder. Nesse sentido, que a monarquia no Reino Unido assume no imaginário popular
a condição de unidade e continuidade do Estado diante da multiplicidade de partidos e
de políticos que se alternam no poder. Noutra perspectiva, na Espanha a monarquia foi
central na reconstituição da democracia durante a década de 70 do século XX. Nessa
direção, a monarquia na Espanha goza de apreço, pois é a garantia da liberdade e da
alternância no poder.

De forma geral, pesquisas de opinião pública indicam que as monarquias


constitucionais possuem avaliação positiva na medida em que representam para o
imaginário social estabilidade nas relações políticas, bem como garantia de liberdade
política. No que concerne as monarquias absolutas presentes de forma significativa
em partes da Ásia e do mundo Islâmico, as pesquisas de opinião pública não apontam
para uma avaliação positiva, quando comparadas as monarquias constitucionais. Entre
outros motivos, tais monarquias exercem em muitos casos o poder de forma arbitrária
tolhendo liberdades e direitos individuais e civis.

Ainda nessa direção, as monarquias com ascendência autoritária, no caso


específico a monarquia da Jordânia exerce de forma contundente o poder, limitando o
espaço para a organização social e, em algumas situações específicas desrespeitando os
direitos individuais e civis. Sob tais condições, as monarquias absolutas são contestadas
por movimentos sociais, populares e, alguns casos por movimentos rebeldes, porém, os
acontecimentos históricos demonstram as dificuldades de transição entre monarquias
absolutas para monarquias constitucionais, em diversos momentos desse gênero as
monarquias foram abolidas e substituídas por regimes republicanos, ou mesmo por
regimes revolucionários. Com isso, três exemplos são consideráveis:

• O primeiro é a Revolução Francesa que derruba a monarquia absolutista de Luiz XVI,


bem como condena a guilhotina a família real.
• O segundo refere-se à Revolução Russa, que em 1917 derruba a monarquia do Czar
Nicolau II, considerado um monarca autoritário e opressor. Também, neste caso, a
família real russa foi executada.
• O terceiro são os limites da transição entre monarquias absolutas, para monarquias
constitucionais é o caso da monarquia brasileira, em novembro de 1889 foi destituída
do poder por golpe militar que institui a República dos Estados Unidos do Brasil.

38
INTERESSANTE
Revolução Francesa: a Revolução Francesa foi um processo revolucionário que, na
interpretação clássica, entende-se de 1789 a 1799, e foi caracterizada por suas várias
reviravoltas, golpes de Estado e períodos distintos. Assim como o próprio movimento
revolucionário, também são díspares e controversas as avaliações que são feitas sobre a
Revolução, que recebeu diversas alcunhas: “esplêndida aurora” (Georg Wilhelm Friedrich
Hegel), “equivalente aos mitos e epopeias da Grécia antiga” (Thomas Carlyle), “a maior
catástrofe que caiu sobre a raça humana” (Goldwin Smith), “mãe de todos nós” (Albert
Soboul) ou “centro estratégico da história moderna” (Alfred Cobban). Para a leitura completa
do texto, acesse o link: https://bit.ly/3oRB6Vy.

Revolução Russa: entre  os acontecimentos mais relevantes do Século XX


está  a Revolução Russa de 1917. Movimento  que ocasionou  uma mudança
significativa no sistema político, econômico e social dos russos que até então
encontravam-se sob o jugo da era czarista há exaustivos trezentos anos
quando seu governo era baseado na defesa dogmática dos valores da
monarquia absolutista a partir da  teoria do Direito Divino dos Reis
oriunda do pensamento francês de Jacques Bossuet (1627-1704).
Para continuar lendo o texto, acesse o link: https://bit.ly/3BsuZMs.

Queda da monarquia brasileira: o Brasil já era monarquista mesmo


antes de ser um país, pois desde o seu descobrimento, passando pelos três
séculos do período colonial, o Brasil conviveu com o sistema monarquista. O
sistema republicano era praticamente desconhecido no Brasil até o século
XIX, apenas uma pequena elite que havia estudado na Europa sabia o que era
uma república. Os povos que formaram a nossa nação, todos eles, conviviam
com a ideia de rei ou formas similares de representação do poder. Não
eram somente os portugueses que viviam no regime monarquista, os negros
capturados na África para serem escravizados no Brasil também possuíam
reis no seu continente de origem. E até os índios, muito antes da chegada dos
europeus, possuíam um sistema semelhante à monarquia, com o centrado
em um chefe e a transmissão hereditária do poder. Para continuar lendo o
texto acesse o link: https://bit.ly/3GWejy7

2.2 MONARQUIA NO BRASIL


De acordo com os fatos históricos em 1500, Pedro Álvarez Cabral, a serviço da
Coroa Portuguesa, aporta no litoral brasileiro, mais especificamente na Bahia de Todos os
Santos. Desde sua origem até meados de novembro de 1889, o Brasil foi governado por
monarquias. Primeiramente pela monarquia portuguesa e, após a independência, pela
monarquia brasileira com Dom Pedro I e Dom Pedro II. Desde a descoberta em 1500 até
1808, um período de 308, o Brasil foi uma colônia de exploração administrada a partir de
Lisboa. Tratava-se para monarquia portuguesa extrair por meio de empresa de exploração
as riquezas naturais e agrícolas produzidas por estas generosas terras do atlântico sul. A
atividade mercantil inicia com a extração de “pau-brasil”, passando sequencialmente pela
mineração, produção de açúcar e de café, atividades que utilizaram largamente mão de
obra escrava, inicialmente dos povos nativos (índios) e, posteriormente de negros trazidos
da África por empresas operadoras de comércio negreiro.
39
Em 1808, em função das guerras napoleônicas e a ameaça de invasão de
Portugal pelas tropas de Napoleão, a família real portuguesa aportou no Rio de Janeiro,
transpondo a capital do Império Português de Lisboa para as terras tropicais da colônia
brasileira. A vinda da família real portuguesa de toda sua corte nobres, de funcionários
públicos (estima-se algo em torno de 15 mil pessoas). Foi neste período entre 1808 a 1821
que se constitui no Brasil colônia uma série de benefícios ausentes nestas terras, entre
elas: a) Abertura dos portos às nações amigas (1808); b) A criação da imprensa régia,
bem como a autorização para o funcionamento de tipografias e a publicação de jornais
(1808); c) A fundação do primeiro Banco do Brasil (1808); d) A criação da Academia Real
Militar (1810); e) A abertura de algumas faculdades, entre elas a de medicina na Bahia e
no Rio de Janeiro; f) Instalação da Real Fábrica de Pólvora no Rio de Janeiro; g) Fábricas
de ferro em Minas Gerais em São Paulo; h) Elevação do Estado de Brasil à condição de
Reino Unido a Portugal e Algarves; i) Vinda da Missão Artística Francesa em 1816 e por
extensão a fundação da Academia de Belas Artes; j) Mudança do nome de Capitanias
para Províncias; k) Criação da Biblioteca Real, do jardim botânico e do museu real.

FIGURA 6 – CHEGADA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA AO RIO DE JANEIRO EM 1808

FONTE: <https://www.migalhas.com.br/pilulas/315947>. Acesso em: 2 dez. 2019.

A partir da derrota de Napoleão na Batalha de Waterloo em 1815 e, com a


transferência da Corte portuguesa para o Brasil estoura em Portugal a Revolução do
Porto, que se caracterizava por ser um movimento de cunho liberal repercutindo nos
rumos da monarquia e da história portuguesa, bem como na condição do Brasil colônia.
Entre outras medidas, o movimento revolucionário português exigia o retorno da Corte
Portuguesa a Lisboa, o que ocorreu em 1821 e, ato contínuo demarcou também o fim
do absolutismo monárquico em Portugal como a promulgação da primeira constituição
portuguesa em 1822, instituindo em terras lusitanas uma monarquia constitucional.

FIGURA 7 – DOM PEDRO I

FONTE: <https://bit.ly/3sQk631>. Acessado em: 2 dez. 2019.

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Porém, entre outras iniciativas, os deputados da Corte Constituinte Portuguesa
exigiam a retorno do Brasil a condição de colônia de exploração. Diante das pressões
das cortes para a descolonização, Dom Pedro de Alcântara, que com o retorno da
Família Real à Portugal, havia permanecido no Brasil na condição de Príncipe Regente
e proclamou a independência em 7 de setembro de 1822. Após a independência, Dom
Pedro I foi o primeiro monarca que assumiu o poder, governando o Brasil de outubro de
1822 a 7 de abril de 1831. Em seu reinado proclamou a primeira constituição brasileira em
1824 ficando em vigência até 1889.

Com o retorno de Dom Pedro I à Portugal, em função de conflitos advindos


da Revolução do Porto com os membros da família real, Dom Pedro II, filho mais novo
do Imperador D. Pedro I, assume o poder com apenas cinco anos de idade. Em função
dessa condição, sua infância e adolescência foram marcadas por intensos estudos
e preparação para assumir o governo imperial no momento oportuno. Dom Pedro II
governou o Brasil durante 58 anos de 1831 a 1889, quando ocorreu a sua deposição. Foi
o segundo e último imperador do Brasil.

FIGURA 8 – FOTO DE DOM PEDRO II

FONTE: <https://bit.ly/3uXsNeF>. Acesso em: 2 dez. 2019.

Os governos monárquicos brasileiros contribuíram de forma significativa para


constituição do Brasil. Primeiramente, é preciso reconhecer que a independência foi
obra do governo imperial do regente D. Pedro I, mas a contribuição determinante é que
a forma monárquica conferia unidade territorial e social ao nascente país, composto
majoritariamente por escravos. Ou seja, sob o governo do monarca se estabelecia entre
as mais diferentes etnias presentes nas terras um princípio de igualdade, o tanto de
todos serem súditos do imperador.

Se a monarquia, em solo brasileiro, contribuiu de forma decisiva para a ideia de


nação, é preciso também reconhecer que a forma absolutista com que era exercido o
poder limitava o florescimento da liberdade de iniciativa e de expressão. As contradições,
as tensões e as disputas de interesses no seio dos grupos sociais que conduziam a
cena política e econômica brasileira, associada às dificuldades de o regime monárquico
de tonalidade absolutista transitar para uma monarquia constitucional, criaram as
condições para a efetivação do golpe militar que pôs fim à monarquia brasileira,
instaurando a partir de 15 de novembro de 1889 o regime republicano.

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Há indicativos suficientes para constatarmos que na atualidade governos
monárquicos se apresentam de forma efetiva no imaginário de indivíduos e de
sociedades. Condição compreensível se levarmos em consideração, que essa forma de
governo remonta à trajetória da humanidade e a tempos imemoriais. As crônicas e as
histórias referentes às mais diferentes monarquias se constituíram e se apresentaram
ao longo dos tempos sob os véus da opulência da força no exercício do poder. É sob tais
pressupostos que se constata a manutenção de inúmeras monarquias no continente
europeu, no continente africano, no oriente médio e mesmo no continente asiático.

No entanto, diante das transformações políticas, econômicas e sociais advindas


de um mundo cada vez mais globalizado, marcado pela afirmação do indivíduo em sua
individualidade, em sua liberdade de escolha, do avanço e afirmação dos direitos sociais
e individuais, constata-se que a monarquia como forma de governo possui limites em
sua capacidade de adaptação e de possibilidade de governo dos povos na atualidade.

3 ARISTOCRACIA
Ao estudarmos um sistema político e as formas de governo por ele engendradas,
é preciso ter como princípio orientador a dinâmica política em torno das quais se
estabelecem as relações de poder. Nessa direção, talvez se possa afirmar que o critério
por excelência na especificação e na compreensão dos regimes de políticos reside na
imagem em que as relações de poder são percebidas ou vivenciadas em determinados
contextos societários.

Na obra “A República”, Platão (2014) considerado o pai da ciência política no


Livro IV argumenta que podem existir tantas formas de alma, quantas são as formas de
governo. Especificamente, Platão afirma que são cinco as principais formas de governo:

1. a monarquia ou aristocracia que pode assumir a forma do governo de um homem só,


ou de muitos;
2. a forma de governo dos cretenses e lacedemônios (espartanos);
3. a oligarquia regime repleto de vícios;
4. a democracia;
5. a tirania que se difere de todas as demais por expressar o grau de doença em que se
encontra uma pólis (cidade-comunidade).

No que concerne à especificidade da monarquia e da aristocracia como sistemas


políticos, Platão as considerava como uma forma única de exercício do poder na medida
em que sejam muitos os governantes, ou ninguém infringirá, ou mesmo alterará as leis
fundamentais da cidade-comunidade, desde que tiver sido educado adequadamente
para o respeito ao espaço público e ao sistema jurídico o legaliza e o legitima. Para
Platão, a aristocracia é um governo conformado por um pequeno número de homens
ricos e, portanto, com maior aptidão para reconhecimento do que é bom e justo.

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Porém, Platão reconhece que de possíveis vícios da aristocracia podem nascer formas
estranhas, equivocadas de governo, entre elas, a timocracia, ou também conhecida
como timarquia, que se caracteriza pelo governo da ambição exercido por homens que
cultivam a arrogância e desprezam a cultura, os bons costumes, mas que, no entanto,
agem cotidianamente com o intuito de agradar a todo tipo de homens e cidadãos. É um
governante havido por elogios, honrarias e menções públicas.

Por seu turno, Aristóteles argumenta que os governos denominados de


aristocráticos não constituem a maioria dos governos dos Estados e, se aproximam
por suas características das formas republicanas de governo. Sob tal pressuposto, para
o filósofo estagirita governos aristocráticos e republicanos operam sob os mesmos
pressupostos.

Etimologicamente, a aristocracia deriva do grego antigo dos temos aristoi, que


significa “melhor” e, kratos, que pode significar “poder” ou “governo”. Aristocracia é a
forma de governo do melhor, ou que reúne os melhores. Assim, a aristocracia é um
termo utilizado para definir uma forma de governo conduzido por uma elite que pode
estar vinculada por laços de sangue, ou mesmo por um grupo de nobres, ou notáveis
que detém o poder. Especificamente, a aristocracia pode ser considerada uma forma
de governo, na qual, quem detém o poder constituiu um grupo, uma elite privilegiada,
eleitos por herança, por linhagem, por acúmulo de riqueza ou de poder aquisitivo.

Sob tais pressupostos, parece racionalmente lógico que a melhor forma de


governo seria aquela composta pelos melhores indivíduos de uma sociedade. Ou
seja, os melhores indivíduos de uma sociedade são aqueles que tiveram acesso a
uma educação de qualidade, que os preparam de forma suficiente no exercício de
habilidades e competências necessárias à liderança política de sua sociedade. Assim,
um governo aristocrático composto por uma elite bem formada e bem educada, pode
assumir diversas formas, entre elas:

a) o governo dos ricos como plutocracia;


b) o governo dos clérigos como uma teocracia;
c) o governo dos funcionários públicos na forma da burocracia.

Ao lançarmos um olhar para a trajetória política das mais diferentes sociedades,


nos mais distintos tempos, espaços e demonstram manifestações de governos
aristocráticos. Diversas sociedades antigas governadas por chefes tribais ou por
anciãos caracterizavam-se como aristocracias. Na Grécia Antiga, a forma de governo
aristocrática era bem conhecida como se pode ver nos primeiros parágrafos na posição
de Platão e Aristóteles, apenas para citar dois dos mais importantes filósofos do mundo
antigo. Naquele contexto, o termo aristocracia era utilizado em referência às cidades-
estados (polis ou poleis), que eram governadas por pequenos grupos de cidadãos. Em
alguns casos específicos famílias de destaque participavam do governo e, em casos
extremos se apoderavam do poder constituindo governos marcadamente tirânicos.

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Também em alguns momentos políticos da Roma antiga a forma aristocrática de poder
também se manifestou, bem como na Inglaterra dos tempos modernos, demonstrando
que a aristocracia tem uma significativa presença no governo das relações de poder
desde tempos imemoriais aos dias de hoje.

Porém, assim como todas as formas de governos possuem elementos


propositivos na conformação das relações de poder, também possuem aspectos
marcados pela imperfeição ou mesmo pelos excessos. Assim, as imperfeições de
governos aristocráticos são perfeitamente compreensíveis a partir das seguintes
experiências históricas.

Se observarmos aspectos do governo aristocrático na Roma antiga, constata-


se que apenas romanos de alta estirpe denominados de patrícios podiam ser eleitos
para compor o Senado romano. Plebeus e membros das classes populares não podiam
se candidatar ao referido cargo. Mas, o fato de apenas os patrícios serem elegíveis não
indica serem eles dotados de condições excepcionais, de capacidade ou aprimoramento
moral ilibado.

O domínio dos patrícios no senado no âmbito do governo do império romano e


de tal ordem que apesar das diversas reformas políticas, a oligarquia senatorial persistiu
ao longo dos tempos. Somente com o imperador Júlio Cesar por volta do ano 40 a.C., que
governou Roma de forma ditatorial, os patrícios não participaram do governo imperial
romano. Porém, após seu assassinato, governos aristocráticos voltaram a governar a
cidade eterna Roma, caracterizando-se como uma oligarquia corrupta, desprovida de
espírito cívico e de respeito ao interesse público, o que levou novamente a sua deposição
e substituição por uma monarquia absolutista.

No período medieval marcado pela conformação de monarquias, os governos


aristocráticos tornaram-se a norma corrente. A aristocracia europeia tornou-se poderosa
ampliando posses e propriedades fundiárias, bem como ocupando postos elevados
na hierarquia militar. Mas, sobretudo o que caracteriza a aristocracia nesse período é
sua condição patrimonialista em relação ao Estado e aos bens públicos ostentando
uma forma de vida extravagante. Porém, no século XVIII, na França sob a monarquia
absolutista de Luís XVI, em função dos limites financeiros, a monarquia francesa solicitou
que os membros da aristocracia considerassem dispor de suas benesses e privilégios
financeiros. Tal medida desencadeou conflitos políticos palacianos que contribuíram
para precipitar os acontecimentos que conduziram a revolução francesa que derrubou
o absolutismo monárquico, bem como decapitou o rei e aos setores consideráveis da
aristocracia.

As Revoluções Burguesas e Francesa, já abordadas anteriormente, foram


determinantes para o declínio de governos aristocráticos. Ou seja, a aristocracia
perdeu seus privilégios, a partir das declarações de Direitos Humanos, entre elas, a
Declaração de Virginia 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão com

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advindos da Revolução Francesa, a manutenção de privilégios e distinções raciais que
justificariam origem nobre ou de sangue perdeu sentido e a conformação de governos
majoritariamente aristocráticos perderam espaço para os governos constituídos no
âmbito dos Estados Democráticos de Direito.

IMPORTANTE
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)

FONTE: <https://bit.ly/3gQWEx9>. Acesso em: 22 jul. 2020.

Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a


ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos
males públicos e da corrupção dos governos, resolveram declarar solenemente os direitos
naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente
em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus
deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a
qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por
isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em
princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à
felicidade geral.

Em razão disto, a Assembleia Nacional reconhece e declara, na presença e sob a égide do


Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão:

• Art.1º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais


só podem fundamentar-se na utilidade comum.
• Art. 2º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos
naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a
propriedade a segurança e a resistência à opressão.
• Art. 3º O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação.
Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela
não emane expressamente.
• Art. 4º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o
próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem
por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade
o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados
pela lei.

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• Art. 5º A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela
lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.
• Art. 6º A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de
concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve
ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são
iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos
públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas
virtudes e dos seus talentos.
• Art. 7º Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela
lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam
ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão
convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário
torna-se culpado de resistência.
• Art. 8º A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e
ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes
do delito e legalmente aplicada.
• Art. 9º Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar
indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser
severamente reprimido pela lei.
• Art. 10º Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas,
desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
• Art. 11º A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do
homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo,
todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.
• Art. 12º A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública.
Esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular
daqueles a quem é confiada.
• Art. 13º Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é
indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de
acordo com suas possibilidades.
• Art. 14º Todos os cidadãos têm direito de verificar, por si ou pelos seus representantes,
da necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu
emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração.
• Art. 15º A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua
administração.
• Art. 16º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem
estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.
• Art. 17º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser
privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob
condição de justa e prévia indenização.

FONTE: <https://bit.ly/3I5kcKU>. Acesso em: 7 dez. 2019.

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Entre as principais fragilidades de governos aristocráticos, apresenta-se o fato
óbvio de que os intitulados nobres, ou eleitos socialmente os melhores nem sempre se
mostram à altura dos desafios e da liderança política necessária exigida pelas relações de
poder. Essa condição reside na inconsistência dos critérios e requisitos para determinar
quem realmente são os melhores, que via de regra se estabelece a partir do prestígio
social angariado a partir de diversas formas, ou por comprometimento e feitos em prol
da comunidade ou pelo fato de representar no imaginário social o comprometimento
com determinadas causas, sejam elas sociais, ambientais, econômicas ou culturais, por
apresentar-se também como um líder no meio militar, meio empresarial e meio popular.

Mas, o fato determinante em que residem os limites dos critérios que definem
a condição aristocrática é o fato de que não há garantia na definição e na escolha de
quem são os melhores mecânicos, professores, médicos, enfermeiros simplesmente
em função de seu estatuto profissional. Ademais no que concerne ao governo da
cidade, ao exercício da liderança política marcadamente caracterizada pelas exigências
de constante negociação nas relações de poder preservando os interesses públicos a
questão dos critérios de excelência que indivíduos necessitam alcançar para a condução
do governo é de outra ordem e grau de exigência.

O estudo e o debate em torno de regimes políticos e conformação aristocrática


perpassa o Ocidente. Dos gregos antigos em que a forma aristocrática de governo
aparece nos escritos de Platão, de Aristóteles e inúmeros outros pensadores do
período, aponta para variáveis políticas que se apresentam em toda sua vitalidade na
contemporaneidade. Ou seja, vivemos em sociedades demograficamente extensas,
exigindo do Estado capacidade científica e operacional significativa na conformação e
implementação de políticas públicas, bem como na oferta de serviços públicos eficientes
e eficazes diante das demandas societárias.

Esta condição e os desafios derivados conduzem a dedução lógica que a


composição dos cargos de ministérios e secretarias de governo devam ser ocupados por
indivíduos preparados e detentores dos conhecimentos e das necessidades públicas
inerentes à pasta que ocuparão. Nesta direção multiplicam-se discursos e se dissemina
na opinião pública o argumento de que somente técnicos deveriam ocupar os postos de
comando na conformação de governo. Assim, a condição aristocrática vincula-se a uma
suposta capacidade técnica do postulante ao cargo de gestor público.

O limite dessa argumentação reside no fato de que regimes políticos e formas


de governar dizem respeito à esfera pública, aos bens públicos, àquilo que pertence,
se apresenta fundamental para coletividade e, nesta condição, decisões de ordem
técnica advindas de posicionamentos aristocráticos podem não representar de forma
suficiente os interesses públicos e comunitários. Ou dito de outro modo, em diversas
situações decisões marcadamente, ou pretensas técnicas podem estar desprovidas
de legitimidade política ao representarem e beneficiarem interesses específicos em
detrimento dos interesses públicos.

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Outro paradoxo que se apresenta a partir do argumento acima é o aumento
exponencial da burocracia estatal que passa a se apresentar como uma variável
aristocrática no exercício do governo. O sociólogo alemão Max Weber foi um dos
pesquisadores que no final do século XIX e início do século XX, se debruçou sobre a
questão da burocracia demonstrando que o avanço da racionalidade aristocrática/
burocrática no âmbito do Estado e das sociedades modernas sequestra a política do
uso comum e cotidiano por parte dos indivíduos/cidadão remetendo ou submetendo
decisões políticas de interesse geral aos imperativos técnico-administrativos, que em
fundo último implica a redutibilidade da esfera da política, do debate público em torno
dos interesses e das prerrogativas coletivas e sociais.

O avanço e a condição determinante assumida pelas burocracias estatais


implicam a destituição do cidadão, remetendo-a a condição indivíduo vigiado,
controlado e reduzido em suas ações à dinâmica individual da produção e do consumo,
ou seja, esvazia-se a ágora pública, o espaço do debate político amplo e irrestrito
em torno da coisa pública fundamental na equalização das relações de poder e, na
imposição de limites ao exercício do poder por parte de governantes e de grupos que
passam a controlar a poder político. Nesse contexto, a política passa a ser privatizada,
a ser tarefa de especialistas restando aos indivíduos e às sociedades individualizadas
contemporâneas, a reverberação de variáveis da opinião pública, também conformada
e conduzida a partir da agenda dos especialistas da política.

Ou seja, tudo indica que estamos novamente diante de regimes aristocráticos,


conformados por especialistas que na legitimação de suas especialidades sequestram a
política do uso comum, do uso cotidiano por todo e qualquer cidadão diante dos desafios que
as demandas públicas exigem. Talvez se possa até afirmar como proposição do debate que
a condição avassaladora que assumiu a nova aristocracia dos burocratas e dos especialistas
implica uma contradição em termos, na privatização da esfera pública e da política.

4 DEMOCRACIA
Se a monarquia o poder soberano pertence ao rei ou a rainha, na democracia o
poder soberano pertence a maioria, ao povo. A própria etimologia da palavra indica tal
condição. “A democracia, no sentido etimológico da palavra significa o “governo do povo”,
o ‘governo da maioria” (ROSENFIELD, 1985, p. 7). Portanto, não se trata do governo de
um só (monarquia), ou governo de alguns (aristocracia), mas do governo dos cidadãos na
forma ateniense da Grécia Antiga, ou do governo das massas constituídas por indivíduos
portadores de cidadania no âmbito dos Estados modernos e, atentos à opinião pública.

Desde suas origens na Grécia Antiga (Atenas século V a.C.) aos dias atuais,
a democracia como forma de governo das relações de poder constitutivas de toda
e qualquer sociedade humana apresenta-se controversa. Mesmo que a crítica à
democracia na Grécia Antiga tenha se apresentado em diversos pensadores, entre eles
Píndaro, Heródoto, Tucídides, Eurípides é com Sócrates que ela alcança intensidade,
influenciando decisivamente seu discípulo Platão.

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Em seus diálogos em praça pública, Sócrates insiste com seus interlocutores no
reconhecimento da unidade indissolúvel entre o pensar e o agir. A excelência (areté) da
prática em suas dimensões ética, estética e política estava subordinada aos pressupostos
cognitivos alcançados pelo saber, ou pela busca incansável do conhecimento
(episteme). Para Sócrates toda e qualquer atividade humana para alcançar um grau
de excelência exige conhecimento do bem que pode resultar da ação que se pretende
realizar. Ou seja, não há virtude sem conhecimento. A ação moral requer conhecimento
e saber suficiente para sua execução. Assim, o alcance da coragem, da justiça, do bem
requer conhecimento para sua efetivação. Destas considerações depreende-se que o
exercício da política como arte da negociação tendo em vista a afirmação do espaço
público como locus por excelência da garantia do bem público e da felicidade requer
conhecimento e sabedoria por parte dos cidadãos.

Platão herda esta concepção intelectualista de seu mestre Sócrates ampliando


as consequências de tal posicionamento expressas em sua magistral obra “A República”.
Ao longo da referida obra o filósofo procura demonstrar que a política não pode ser
conduzida nos moldes tradicionais da democracia ateniense, como uma prática
cotidiana desprovida de zelo e de orientação cognitiva suficiente. O exercício da política
requer saber para que a ação pública se apresente adequada e legítima, a forma de
governo mais adequada para tal finalidade seria a “sofocracia”, o governo do rei filósofo.
Para Platão a polis, a cidade-comunidade apresenta-se como um organismo moral,
uma comunidade pautada por pressupostos éticos cuja finalidade de sua constituição
e organização é a plena realização da justiça e da virtude, para além do alcance de
objetivos materiais, de segurança financeira, de bem-estar e da produção de riquezas.

Sob tais pressupostos, a crítica de Platão à democracia se constitui no confronto


com os sofistas, mestres por excelência dos cidadãos que partiam de pressupostos de
que a arte da política estava pautada na retórica e na oratória como forma de articulação
de consensos em relação aos interesses de grupos majoritários no debate público.
Ou seja, para os sofistas e, por extensão para parte dos cidadãos tratava-se de emitir
opiniões, mesmo que desprovidas de sabedoria, ou fundamentos epistemológicos
suficientes na condução dos interesses públicos da polis. Para Platão foi esta condição
degenerada da democracia ateniense que condenou à morte o mais sábio dos seres
humanos. Sócrates foi condenado à morte pela ingestão de cicuta pela democracia
ateniense em 399 a.C. A acusação dirigida contra Sócrates pelos cidadãos era instigar
os jovens atenienses contra a democracia, bem como desrespeitar os deuses da cidade.

Diante desse trágico acontecimento promovido pela democracia, em que


os cidadãos atenienses condenaram à morte o mais sábio dos homens é que Platão
desenvolve sua perspectiva filosófica, bem como afirmar que a democracia também se
apresente como a ditadura da maioria sobre a minoria. Ou seja, a democracia como
forma e equalização e normalização das relações de poder possui em si a condição de
sua degeneração em formas autoritárias, ditatoriais de exercício do poder.

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Também para Aristóteles (2006) a democracia não se afigura entre as melhores
formas de governo. Para o filósofo estagirita três eram a formas adequadas de governo: a
monarquia (governo de um só), a aristocracia (governo dos melhores) e a politeia (governo
do povo). Porém, essas formas de governo estão sujeitas à degeneração derivados dos
interesses privados de grupos que passam a controlar o poder alterando o escopo do
governo na mediação das relações e poder colocando em risco os interesses da polis na
busca do bem comum. Essas formas de degeneradas de governo são respectivamente
a tirania, a oligarquia e a democracia.

Sob tais pressupostos Aristóteles considerava a democracia um regime


do governo marcado pela instabilidade, exposto à degeneração e a corrupção.
Para o referido pensador a estabilidade de uma democracia somente poderia ser
alcançada em situação específica, em cidades-comunidades (polis) que reunissem
as seguintes condições: a) compostas por cidadãos em situação de igualdade; b) por
um número adequado de cidadãos que quando reunidos em assembleia tivessem
acesso à palavra e com capacidade de ouvir o posicionamento de todos os demais;
c) que os cidadãos desempenhassem as mais diferentes atividades, pastores,
agricultores, pescadores, entre outras atividades; d) que as reuniões fossem
realizadas esporadicamente para deliberarem sobre questões de interesse público e,
portanto comum; e) que fossem cidadãos zelosos pelo autocultivo e, portanto aptos
para defenderem suas próprias ideais e posicionamentos; f) que o governo evitasse
o máximo possível interferir na vida privada dos cidadãos; g) os tributos deveriam
ser pagos de forma equitativa e direcionados exclusivamente ao interesse comum
e, por último h) que as relações de toda ordem entre os cidadãos fossem regidas
por contrato cujas regras não pudessem ser violadas, ou modificadas e, sobretudo
estabelecidas de comum acordo entre os cidadãos.

Nesta direção, evidencia-se que a Aristóteles não considera a democracia como


um regime desejável, ou virtuoso, apenas como uma forma de governo entre outras
aplicável somente em situações e condições excepcionais. Aplicada, desconsiderando
as premissas anunciadas, seria impraticável, bem como degeneraria comprometendo
os interesses coletivos e o bem comum. Na passagem a seguir Aristóteles se posiciona
em relação à democracia como forma de governo degenerada:

Há uma forma de república [...] na qual o poder supremo não emana


da Lei, mas da multidão, cujas reivindicações passam por cima da Lei.
Pois nas repúblicas constitucionais, os melhores cidadãos ocupam os
primeiros lugares, e não há espaço para demagogos, mas onde a Lei
não é suprema, os demagogos prosperam. Esse tipo de regime é uma
degeneração da república, assim como a tirania é uma degeneração
da monarquia. O espírito de ambas as degene­rações é o mesmo. Os
decretos da multidão se assemelham aos éditos do tirano e o dema­
gogo que corteja o povo corresponde ao cortesão que bajula o ditador.
[...] Os demagogos, submetendo as decisões políticas às assembleias
populares, fazem que as vontades da multidão fiquem acima da Lei. E
como o povo é condu­zido pelos demagogos, estes se engrandecem.
Se alguém não se con­forma e re­corre à Justiça, os demagogos dizem:
“que o povo decida”. E o povo aceita com prazer a incumbência.
Desse modo as au­toridades constituídas se desmoralizam. Essas
democracias, na verdade, não têm Constituição pois onde a Lei não
tem au­toridade, não há Constituição (ARISTÓTELES, 2006, p. 45).

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Os argumentos relacionados até o presente momento demonstram que a
democracia como regime de governo, mesmo em suas origens gregas não gozava de
apreço. É preciso ter presente que a sociedade Ateniense do século III e a século II
a.C. das quais participam Sócrates, Platão e Aristóteles vivem o declínio da democracia
ocasionado pela decadência econômica advinda de derrotas militares atenienses
e perda do poder de influência sobre as demais cidades-estados gregas. Ou seja,
naquele contexto, Platão é membro da aristocracia ateniense decadente, bem como
Aristóteles, mesmo na condição de estrangeiro, gozava de uma condição aristocrática.
Sob tais pressupostos pode-se conjecturar que a crítica que tais pensadores dirigem
à democracia advém da profunda crise econômica e política em que se encontrava
Atenas e, cujos desdobramentos a conduzem à conformação de governos tirânicos.

Nessa direção observemos a argumentação do filósofo francês Jacques Rancière:

[...] o ódio à democracia não é novidade. É tão velho quanto a


democracia, e por uma razão muito simples: a própria palavra é a
expressão de um ódio [...]. Foi primeiro um insulto inventado na
Grécia Antiga por aqueles que viram a ruína de toda ordem legítima
no inominável governo da multidão. Continuou como sinônimo de
abominação para todos os que acreditavam que o poder cabia de
direito aos que a ele eram destinados por nascimento ou eleitos por
suas competências. (RANCIÈRE, 2014, p. 8).

A democracia como forma de governo, de administrar as relações de poder implica


necessariamente o confronto entre os diversos segmentos e interesses constitutivos de
uma sociedade. Esta condição está presente desde as origens da democracia na Grécia
Antiga. O governo dos cidadãos se opunha ao governo das oligarquias, bem como a
aristocracia. Assim, a radicalização da democracia pode levar à tirania da maioria sobre
a minoria, bem como a tirania da minoria pode levar a formas de governo marcadas pelo
autoritarismo. Nesta direção, aspecto determinante na constituição e manutenção de
governos democráticos é o papel desempenhado pelas instituições na perspectiva de
coibir os excessos advindos das demandas democráticas.

Porém, a trajetória civilizatória ocidental das experiências democráticas oriunda


da polis (Atenas) grega às experiências democráticas das sociedades massas na
contemporaneidade, salvaguardadas as diferenças de contexto histórico e temporal, bem
como a forma participativa direta dos antigos e a forma representativa dos modernos
parecem revelar um aspecto em comum vinculado ao seu declínio. Este aspecto reside
nas crises econômicas. Ou seja, a democracia ateniense se constituiu no contexto de
pujança militar e econômica de Atenas por volta do século V a.C. e seu declínio a partir do
século III a.C. está vinculado à crise política, econômica e militar dos atenienses cedendo
lugar a governos tirânicos. Ao observar as democracias modernas presentes nos Estados
democráticos de direito europeus de meados do século XIX, constata-se que sua efetivação
se dá a partir da pujança econômica advindas dos processos de colonização das terras do
novo mundo (América Latina, África e partes da Ásia), bem como da Revolução Industrial.
Porém, a crise do liberalismo econômico de fins do século XIX e primeiras décadas do
século XX conduzem à derrocada das democracias liberais de mercado, abrindo espaço
para a ascensão de governos marcados pelo totalitarismo fascista e nazista.

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Talvez se possa afirmar que de forma invariável as crises da democracia no
Ocidente conduziram à forma de governo autoritárias, cujas consequências, sobretudo,
nas primeiras décadas do século XX, se apresentam traumáticas a partir da instauração
de um estado de exceção permanente, bem como perpetuaram os horrores dos campos
de concentração.

Nos próximos subtópicos apresentaremos aspectos constitutivos da


democracia ateniense e das democracias modernas procurando demonstrar as
diferenças constitutivas destas formas de governo, bem como procurando conferir
maior consistência às hipóteses apresentadas.

4.1 A DEMOCRACIA ATENIENSE.


A democracia é uma invenção da Grécia Antiga e está intimamente vinculada ao
surgimento das cidades-estados. As cidades-estados foram obra da aristocracia. Este
fenômeno se manifesta mais precisamente no século VII a.C. em que os eupátridas (os
bem-nascidos) assumem o governo da polis.

Em meados do referido século com o desenvolvimento do comércio marítimo


os eupátridas passam a perseguir os comerciantes (mesoi), que se apresentavam
como um grupo social economicamente em ascensão. Esta perseguição se estende
aos agricultores e trabalhadores em geral. Tal condição social se desdobra em revoltas
sociais em que os grupos sociais oprimidos passam a exigir um código de leis escritas,
que lhes garantam direitos, entre eles o de participar nos assuntos da pólis.

FIGURA 9 – A ÁGORA ATENIENSE

FONTE: <https://bit.ly/3uXAhys>. Acesso em: 22 jul. 2020

O resultado prático destas manifestações foi a instituição de uma comissão


de seis notáveis denominados de tesmostetes, formando um colegiado, o Arcontado.
Por volta de 621 a.C., Dracon, um dos tesmotetes de significativa projeção política,
promulgou um código de leis caracterizado pela severidade. O código draconiano foi a
primeira iniciativa no sentido de consolidar a supremacia dos interesses da pólis sobre
os interesses de determinados grupos. Mesmo considerado como um avanço, o Código

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de Dracon mantinha antigos vícios jurídicos, bem como a lei de talião, a lei da vingança,
permitindo a permanência de arbitrariedades e a violência como razão determinante
na resolução de conflitos. Tratava-se, portanto, de uma justiça seletiva que preservava
injustiças advindas de litígios entre os diversos grupos constitutivos da pólis.

No século VI a.C., mais precisamente em 594 a.C. foi eleito arconte Sólon.
Homem culto e com vasto conhecimento de outras culturas e povos e, que apesar
de sua condição aristocrática conduziu adequadamente as demandas populares
promulgando leis que primaram pela razoabilidade, conferindo a cada um o que lhe era
de direito, preservando os interesses da pólis. Uma das marcas do governo de Sólon foi a
anistia dos crimes políticos e a revogação do código draconiana. Nesta direção instituiu
um sistema judiciário baseado na argumentação a partir das causas e consequências
sociais de determinados delitos, ou situações de violência.

Porém, a contribuição significativa de Sólon foi a liberação das terras dos


agricultores que estavam hipotecadas a impedir empréstimos afiançados por pessoa
física. Estas medidas foram importantes, pois até aquele momento era consentido
submeter as pessoas à escravidão em função de suas dificuldades em pagar suas dívidas.
Ou seja, Sólon aboliu está prática, bem como imputou efeito retrativo a todos os escravos
vinculados a tais práticas. Sob tais perspectivas e encaminhamentos, Sólon estabeleceu
as bases para um período de prosperidade e harmonia na cidade-estado de Atenas.
Conferiu estabilidade aos diversos grupos sociais reconhecendo direitos e imputando
limites a práticas abusivas de uma classe sobre outra. Mas, sobretudo reconheceu direitos
políticos e voz ativa na ágora (praça pública) aos cidadãos atenienses.

Os cidadãos atenienses eram definidos em base a um censo que dividia a


sociedade ateniense em quatro grupos sociais conforme suas rendas anuais. Assim, o
grupo dos cidadãos era conformado por homens com título de propriedade e recursos
econômicos suficientes para dispor de tempo livre para participar dos assuntos da pólis.
Nesta direção, Sólon criou o Conselho dos Quatrocentos, instituição determinante para a
democracia ateniense. O referido Conselho era formado por cem representantes de cada
um dos quatro grupos sociais. Outra medida de suma importância implementada para
a efetivação da democracia ateniense foi a criação do tribunal Heliae, que funcionava
como órgão da magistratura com intuito de acompanhar e tornar menos arbitrário o
poder dos juízes.

Porém, o passo derradeiro na conformação das condições necessárias à


democracia ateniense foi a restauração da Eklésia, que se caracteriza pela reunião dos
cidadãos na ágora pública para o desenvolvimento dos debates em torno dos assuntos
da pólis. Assim, esse conjunto de reformas no século VI a.C. fez com que ser um cidadão
ateniense implicava duas condições básicas necessárias à participação ativa na vida
da pólis. A primeira implica controlar as próprias paixões, bem como ter disposição e
capacidade de argumentação, de defender argumentos constitutivos de um discurso
cujo epicentro era o interesse coletivo.

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Assim, a democracia ateniense é o resultado desse conjunto de reformas de
Estado que deram oportunidades aos cidadãos, o exercício da liberdade política a
partir do reconhecimento da instância máxima das leis com condição de resolução nos
conflitos de interesses. Os atenienses compreenderam que não basta a promulgação
de leis adequadas para conformar uma ordem social justa, mas, sobretudo, o empenho
de cada cidadão na observância dessas leis, bem como em sua proteção e manutenção.

Porém, na medida em que a cidade-estado de Atenas foi perdendo sua


capacidade de liderança entre as demais cidades-estados gregas, somadas a derrotas
militares no contexto do mundo antigo e, por decorrência assolada por crises econômicas,
as sólidas bases da democracia participativa direta dos atenienses construída sobre
o primado do interesse público e do império da lei ruiu. Neste contexto de crise, a
democracia ateniense deu lugar a governos tirânicos, ao fim da ágora pública, ao amplo
debate político, ao direito de livre expressão do pensamento das opiniões.

Tal condição demonstra que, desde suas origens, a democracia como regime de
governo de equalização das relações de poder, apresenta-se frágil, senão insustentável
em contextos em que os interesses privados advindos da necessidade de preservar
privilégios econômicos se apresentam como demanda individual, social, de um povo ou
de um Estado.

4.2 DEMOCRACIA NAS SOCIEDADES MODERNAS


A democracia volta a surgir somente na modernidade no âmbito dos Estados
modernos. A transição das formas de organização política características do mundo
feudal, marcadas pela fragmentação do poder dos senhores feudais e de tentativas de
reconstituição das bases do Império Romano sob a tutela da Igreja Católica, conduziu
a organização dos Estados nacionais. Outros fatores foram determinantes entre
eles, o aprimoramento de técnicas produtivas na agricultura, entre outras atividades
econômicas que permitiram a produção de excedentes impulsionando o comércio
entre os diversos burgos (cidades). O aumento demográfico também contribuiu para a
revitalização das cidades e a intensificação das trocas comerciais e práticas econômicas.

As grandes navegações colocaram os europeus em contato com outras culturas,


e fontes de matérias-primas e produtos, implicando o aprimoramento de estruturas
burocráticas necessárias à condução dos negócios, dos excedentes econômicos
extraídos da dinâmica de exploração à que foram submetidas as áreas colonizadas no
continente americano, africano e asiático. A organização de fronteiras territoriais, de
populações pertencentes aos estados, bem como de exércitos e o aprimoramento de
técnicas de defesa e coerção também se apresentaram como inovações deste período
e foram determinantes para a constituição dos estados modernos.

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Sob tais demandas e pressupostos nascem os Estados de direito que se
apresentam inicialmente na forma de monarquias absolutistas que passam a legislar
sobre o direito de propriedade, sobre as práticas comerciais (mercantilismo) controlando
e vigiando as práticas econômicas e sociais no âmbito de seus territórios nacionais.
Evidentemente, os nascentes Estados nacionais, na forma de monarquias absolutistas,
mantiveram em suas estruturas de relações de poder heranças medievais, entre elas a
preservação de títulos e privilégios à nobreza. Assim, a nobreza passa a conformar um
extenso estamento patrimonialista necessário à manutenção de Estados absolutistas
governados por monarquias de caráter hereditário.

Porém, o aumento do comércio, da atividade produtiva e industrial vai ao


paulatinamente, conferindo empoderamento a uma nova classe social, que passa a
reivindicar maior participação política nos negócios do Estado, bem como maior proteção
legal as suas atividades produtivas, entre elas, garantias de preservação dos interesses do
capital frente às demandas e insurgência dos trabalhadores. Essas condições implicaram
o fortalecimento dos ordenamentos jurídicos dos Estados nacionais como forma de
ordenação, controle e vigilância sobre as atividades econômicas, sociais e políticas.

Essas transformações econômicas, sociais e políticas foram acompanhadas


pelo avanço das ciências exatas e naturais e, sobretudo, pela aposta na capacidade
racional dos seres humanos que alcançaram uma condição de autonomia frente às
imposições da moral religiosa, bem como sobre as imposições dos Estados absolutistas,
ou toda e qualquer instância limitadora da liberdade humana. Assim, as sociedades
modernas ocidentais, movidas pelo espírito empreendedor da burguesia que conduziu
no século XVIII à Revolução Industrial, passam a pleitear maior participação política,
bem como o reconhecimento de direitos sociais e individuais. Nesse contexto instaura-
se o ciclo das Revoluções Burguesas, que iniciam com a Revolução Inglesa (1688),
estendendo-se para a Revolução Americana (1776), alcançando a Revolução Francesa
(1789) e, concluindo o ciclo com a Revolução Russa em 1917.

No âmbito as Revoluções Burguesas que o Estado moderno, inicialmente


absolutista, caracterizado como um Estado de direito, de garantia de propriedade à
nobreza e à nascente burguesia, constitui-se como Estado democrático de direito. Ou
seja, o Estado passa a ser organizado em três poderes (executivo, legislativo e judiciário)
interdependentes, garantindo a participação popular na forma representativa por meio
do poder legislativo, bem com os interesses estratégicos do próprio estado no âmbito
do poder executivo. Ao poder judiciário compete a mediação dos conflitos de interesse
e dos excessos advindos das relações entre poder legislativo e executivo, bem como
sobre possíveis excessos sobre os direitos dos indivíduos cidadãos.

Portanto, é no âmbito da modernidade de aposta nas luzes da razão (Iluminismo),


de um modo de produção e de vida burguês, pautado no reconhecimento dos direitos
individuais, civis e sociais que a partir de fins do século XVIII, mas, sobretudo na segunda
metade do século XIX que se constitui o Estado democrático de direito contemporâneo,
ou também nomeado de Estado constitucional afirmando a democracia representativa
como forma de governo ou de equalização das relações de poder.

55
IMPORTANTE
O que é Iluminismo?

Iluminismo foi um movimento intelectual que surgiu no século XVIII na Europa, em especial
na França.

O momento histórico do Iluminismo também é chamado de Época das Luzes e isso porque,
com esse movimento, houve muitas transformações na cultura europeia. O teocentrismo deu
lugar ao antropocentrismo e as monarquias foram ameaçadas. O movimento influenciou os
Pactos Coloniais e o fim do Antigo Regime em diferentes países, além de ter exercido papel
primordial na Revolução Francesa.

Dizer que o movimento Iluminista foi antropocentrista é dizer que foi focado no Homem.

No Brasil, os ideais Iluministas exerceram influência direta na Inconfidência Mineira, em


1789 (influência que PE facilmente percebida no lema Libertas quae sera tamen que, em
português, significa: “Liberdade, ainda que tardia”). Na mesma ideologia, aconteceram,
também no Brasil, a Conjuração Fluminense (1794), a Revolta dos Alfaiates na Bahia (1798)
e a Revolução Pernambucana (1817).

Origem do Iluminismo

O Iluminismo surge na Europa, com os pensadores que almejavam contribuir


para o progresso da humanidade. Estes buscavam desacreditar as
superstições e mitos que se formaram durante a Idade Média e ainda
estavam presentes na sociedade. Além disso, o movimento lutava contra
o sistema feudal, que garantia privilégios ao clero e à nobreza. Em
oposição à idade das trevas, o Iluminismo iniciaria o Século das Luzes.

A primeira fase do Iluminismo começa na primeira metade do XVIII,


influenciada pelas concepções mecanicistas da natureza que vieram à tona
a partir da Revolução Científica do século XVII. Esta primeira fase foi marcada
por diversas tentativas de aplicar o modelo de estudo dos fenômenos físicos
no estudo dos fenômenos humanos e culturais.

A partir da segunda metade do século XVIII, o Iluminismo se afasta do


mecanicismo e se aproxima das teorias vitalistas, de cunho naturalista.

Acadêmico, acompanhe essa matéria completa através do link a seguir:


https://abstracta.pro.br/iluminismo/.

Neste contexto é preciso ter presente a diferença entre a democracia grega,


marcada pela participação direta dos cidadãos atenienses e a democracia representativa
das sociedades ocidentais modernas, caracterizadas como sociedades de massas em
que o trabalho e a vida individual assumem importância significativa, bem como o espaço
do político passa a ser atribuição exclusiva do Estado. Assim, a participação política nos
assuntos públicos passa a ser um direito garantido nos textos constitucionais dos mais
diversos estados modernos, bem como um dever do indivíduo/cidadão para o Estado.

56
A afirmação dos Estados Constitucionais, ou democráticos de direito implicaram entre
outras questões a afirmação do sufrágio universal como forma de legitimar o exercício
do poder executivo e, sobretudo, como forma dos cidadãos se fazerem representar no
âmbito do poder legislativo.

FIGURA 10 – DISTINÇÃO ENTRE AS DEMOCRACIAS ANTIGA E MODERNA

FONTE: <https://bit.ly/3oVDKtg>. Acesso em: 22 jul. 2020.

Assim, a democracia representativa se caracteriza em nossos dias pela garantia


de direitos individuais, civis e sociais, pelos limites ao exercício do poder soberano Estado
e da razão governamental que o administra em determinado momento. Ressalte-se
ainda que o exercício da democracia representativa se constitui por meio de instituições
de Estado, mas também da sociedade civil organizada que funcionam como sistema
de pesos e contrapesos necessários ao equilíbrio nas relações de poder e ao adequado
funcionamento do processo democrático. Ou seja, garantindo o direito a palavra, o
direito à expressão de posicionamentos políticos divergentes, ou convergentes por parte
de indivíduos e grupos organizados, bem como a livre expressão da opinião pública.
Todas estas prerrogativas necessárias, o funcionamento e a preservação da democracia
representativa, estão circunscritas nos textos constitucionais dos mais diversos Estados
contemporâneos, o que significa afirmar que a Constituição representa, nesta forma de
organização social e política dos Estados modernos contemporâneos, a forma de ser e
de representar de um povo, de uma nação.

Assim, como a democracia grega antiga entrou em declínio por conta das
contradições políticas sociais de Atenas, do século III a.C., verifica-se que as democracias
representativas contemporâneas sofrem o mesmo estigma, ou seja, tudo indica que a
democracia como forma de equalização das relações de poder ou mesmo de confronto
entre os grupos populares e setores das elites das diversas sociedades tende no
decorrer das contradições e sobretudo de crises econômicas e sociais ferir de morte
a democracia. E neste diapasão que se pode compreender a crise das democracias
liberais de mercado de meados do século XIX, que conduzem ao poder em diversos

57
estados europeus governos fascistas e totalitários que desencadearam os dois maiores
conflitos mundiais do século XX, a Primeira e a Segunda-Guerra Mundial. Ou seja, sob
o discurso de defesa da democracia, governos totalitários desestruturam instituições,
retiram direitos individuais e civis, abandonando milhões de seres humanos à própria
sorte, ou mesmo justificando todo tipo de atrocidades infringidas a estes seres humanos.

A crise das democracias liberais de mercado demonstraram, assim como no


mundo antigo, salvaguardas as devidas proporções e diferenças históricas e de contexto,
que em momentos de crise, a democracia sede espaço para o racismo de estado, para
a xenofobia, para todas as formas de intolerância, para que o poder soberano possa
instaurar e agir a partir de um estado de exceção permanente, indicando quem pode
viver e quem deve morrer com forma de salvaguarda dos interesses do poder soberano
e dos grupos que controlam. Porém, paradoxalmente, nesses momentos proliferam os
discursos em defesa da democracia, mesmo que não se saiba adequadamente do que
se está falando quando se afirmar que vivemos em sociedades democráticas.

INTERESSANTE
Acadêmico, acesse o conteúdo completo do artigo que possui como
temática central o conceito de democracia nas filosofias políticas de
Slavoj Žižek e Giorgio Agamben, através do link: na indicação da fonte
dos autores Felipe Onisto e Sandro Luiz Bazzanella. Disponível em:
https://bit.ly/3BvWtkd.

58
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• O ser humano é por excelência um ser social. Essa premissa também é válida para as
mais diferentes espécies de seres vivos que coabitam na biosfera.

• É inerente à condição relacional constitutiva do ser humano às relações de poder.

• O poder é resultante da força de que dispõe cada ser humano na superação dos
imperativos da necessidade e, na relação com outros seres humanos que impõem
limites às possibilidades do reconhecimento de si e do mundo. A força da canalização
da potência é a sua determinação.

• A política é a arte de limitar a potência individual que em seu exercício individualizado


desagrega a dimensão relacional e pública a partir do qual se constitui o
reconhecimento do humano e do mundo.

• Entre as primeiras formas de governo de que se tem conhecimento está a monarquia.


Esta forma de governo em definição literal pode ser concebida como o governo de
uma só pessoa, o monarca.

• Governos monárquicos não são sinônimo de hereditariedade, na manutenção e


exercício do poder, mesmo considerando a quase hegemonia de tal condição em
governos monárquicos de que se têm conhecimento suficiente.

• As características da monarquia como poder concentrado na figura do rei, ou do


imperador, justificado a partir do poder econômico e militar de determinadas famílias
conformando dinastia, ou justificado a partir de questões religiosas, de nobreza de
sangue nãos se apresentam como especificidade ocidental.

• Na atualidade, há majoritariamente dois tipos de monarquia: as monarquias absolutas


e as constitucionais. Nas monarquias absolutas, o monarca possui autoridade
irrestrita sobre o governo e seu povo. Quanto às monarquias constitucionais ou
parlamentares, também conhecidas como monarquias limitadas, caracterizam-se
pelos limites do poder do monarca circunscritos em carta constitucional.

• Desde suas origens na Grécia Antiga (Atenas século V a.C.) aos dias atuais, a
democracia como forma de governo das relações de poder constitutivas de toda e
qualquer sociedade humana apresenta-se controversa.

59
• A democracia como regime de governo, mesmo em suas origens gregas não gozava
de apreço. A sociedade ateniense do século III e a século II a.C., da qual participa
Sócrates, Platão e Aristóteles, vive o declínio da democracia, ocasionado pela
decadência econômica advinda de derrotas militares atenienses e perda do poder de
influência sobre as demais cidades-estados gregas.

• A democracia como forma de governo, de administrar as relações de poder implica


necessariamente o confronto entre os diversos segmentos e interesses constitutivos
de uma sociedade.

• É preciso ter presente a diferença entre a democracia grega, marcada pela participação
direta dos cidadãos atenienses e a democracia representativa das sociedades
ocidentais modernas, caracterizadas como sociedades de massas em que o trabalho
e a vida individual assumem importância significativa, bem como o espaço do político
passa a ser atribuição exclusiva do Estado.

• Assim, a democracia representativa se caracteriza em nossos dias, pela garantia


de direitos individuais, civis e sociais, pelos limites ao exercício do poder soberano
Estado e da razão governamental que o administra em determinado momento.

• Etimologicamente, aristocracia deriva do grego antigo dos temos aristoi, que significa
“melhor” e, kratos, que pode significar “poder” ou “governo”. Aristocracia é a forma de
governo do melhor ou que reúne com os melhores.

• Entre as principais fragilidades de governos aristocráticos apresenta-se o fato óbvio


de que os intitulados nobres ou eleitos socialmente os melhores, nem sempre se
mostram à altura dos desafios e da liderança política necessária exigida pelas relações
de poder.

• Tudo indica que estamos novamente diante de regimes aristocráticos, conformados


por especialistas que na legitimação de suas especialidades sequestram a política do
uso comum do uso cotidiano por todo e qualquer cidadão diante dos desafios que as
demandas públicas exigem.

60
AUTOATIVIDADE
1 Salvaguardadas as diferenças entre a democracia grega antiga (participativa) e a
democracia moderna (representativa), constata-se que a democracia como forma
de governo, de equalização das relações, pode sofrer de um estigma diante de
crises políticas e econômicas. Que estigma é este e quais são suas consequências?
Argumente.

2 Qual é a concepção de Platão sobre os sistemas políticos da monarquia e da


aristocracia? Quais são suas vantagens e desvantagens?

3 Assim como a democracia participativa direta dos antigos atenienses entrou em crise,
também as democracias representativas modernas entram em crise periodicamente.
Qual é o aspecto em comum entre democracia antiga e moderna que se pode
identificar na origem destas crises?

61
62
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
FORMAS MODERNAS DE GOVERNO:
DE MACHIAVEL A MONTESQUIEU E
TOCQUEVILLE

1 INTRODUÇÃO
Neste terceiro tópico, nós apresentaremos as contribuições de três autores
fundamentais, não somente à teoria política moderna, mas especificamente à Ciência
Política. Suas obras não se resumem apenas no pensamento político do Ocidente,
constituído por muitos autores e alguns essenciais à nossa compreensão. Os autores
citados precisam ser conhecidos desde os fundamentos da reflexão científica da política,
ao seu modo em que cada um deles procurou olhar para a política de um ponto de vista
que tornou esse olhar mais objetivo. Isso significa que as coisas do Estado e as disputas
do poder foram compreendidas levando em consideração o homem e as coisas como
elas são e não como deveriam ser.

Nessa perspectiva, as reflexões de Nicolau Machiavel, sobre como deve agir o


governante, inauguraram esse modo moderno de encarar as coisas. Embora, muitas
vezes apresentar como imoral, Machiavel foi literalmente amoral ao demonstrar como
a política de fato acontece, independentemente do que sugere a moral. Ao sugerir
lições de como o governante deve proceder a cada situação, sua preocupação estava
em demonstrar como se alcança e se mantém o poder. Mostrava que os freios morais,
muitas vezes, representavam a ruína do Estado e das nações e teve a ousadia de propor,
pela primeira vez, o que se tornaria uma das principais marcas do Estado Moderno, que
ocorreu na separação entre religião e política, entre a Igreja e Estado.

Outro aspecto essencial na constituição do pensamento sobre o Estado


moderno foi a impessoalidade do mando. É preciso insistir: o Estado só passa a ser
literalmente moderno na medida em que o governante toma suas decisões com base na
lei e não na vontade pessoal. E o sublime desfecho da forma moderna foi apresentado
por Montesquieu, ao propor a divisão dos poderes entre o Executivo, o Legislativo e o
Judiciário. Ao demonstrar as possibilidades de materializar as aspirações de uma nação
desenvolvida a partir dessa premissa, o pensador francês define a fórmula perfeita
da impessoalidade e do equilíbrio entre os poderes para o bem da nação. Com isso,
demonstrou que a grande solução das nações fortes se dá a partir da engenharia
política, sacramentando a lei, o direito, isto é, o triunfo da razão humana.

Outro autor francês, Alexis de Tocqueville, consolida-se, cientificamente,


a compreensão de que a democracia é a forma tão necessária quanto possível de
organizar uma nação forte e desenvolvida. Também Tocqueville, como seu conterrâneo

63
Montesquieu, demonstra a lição tantas vezes negada, sendo sua negação a causa do
insucesso das nações. A lei é imprescindivelmente superior à vontade pessoal e deve
refletir de forma clara os interesses gerais dos indivíduos em comunidade, sobrepondo
o interesse coletivo ao pessoal. Por si só, isso leva ao ponto final e definitivo estágio da
ordem política: por mais que se possa e se deva questioná-la, como Tocqueville o fez,
a resposta deve ser sempre democrática. E essa resposta, Tocqueville não a justificou
moralmente, mas a demonstrou empiricamente em sua eficácia.

2 MACHIAVEL
Niccolò Machiavelli, nasceu em 3 de maio de 1469, em Florença na província
da Itália, onde também faleceu em 21 de junho de 1527. Pensador renascentista, foi
secretário governamental em sua cidade-estado, aproveitando toda a experiência de
vida pública para refletir sobre as coisas dos governos. Passou a maior parte da sua
vida refletindo e escrevendo sobre os assuntos do governante, suas relações com os
governados, sobre a racionalidade da ação do estadista e os interesses estratégicos de
uma república.

Considerado o pai da Ciência Política, sua reputação intelectual é inconteste,


conquanto polêmica e foi eternizada a partir da publicação de “O príncipe”. O livro
praticamente inaugura a metodologia de análise, segundo a qual é preciso ver como as
coisas são e não simplesmente escrever sobre como elas deveriam ser.

IMPORTANTE
“O Renascimento começou na Itália, no século XIV e difundiu-se
por toda a Europa, durante os séculos XV e XVI. Foi um período da
história europeia marcado por um renovado interesse pelo passado
greco-romano clássico, especialmente pela sua arte.

Para se lançar ao conhecimento do mundo e às coisas do homem, o


movimento renascentista elegia a razão como a principal forma pela
qual o conhecimento seria alcançado”.
Leia mais, através do link: https://bit.ly/3gRPclg.

2.1 VIDA E CARREIRA



O pai de Machiavel fora um homem de posses e conhecedor das leis, afastado
de suas funções públicas por perseguição política e também por sua condição de
insolvência financeira. Administrava sua pequena propriedade produzindo alimentos

64
para abastecer Florença. Tinha em sua casa uma generosa biblioteca e obrigava seu
filho a estudar horas por dia, sobretudo em relação às leis. Aprendeu a ler em latim e
em grego, o que lhe forneceu um precioso acesso a escritos que foram conformando
sua formação intelectual humanista (renascentista) e o preparando para o exercício
profissional futuro e nas coisas do governo.

NOTA
Cidade-estado era uma “cidade autônoma que, na Antiguidade,
funcionava como o mais importante centro político, cultural e
financeiro, com poder absoluto sobre as demais cidades. Estado
absoluto e independente formado por uma cidade central e suas
áreas vizinhas. Cidade independente cujo governo é exercido por
seus membros ou cidadãos livres”.

FONTE: https://www.dicio.com.br/cidade-estado/.

A Criação de Adão, clássica pintura renascentista de Michelangelo, retratando o


desejo antropocêntrico do homem de se igualar a Deus.

FIGURA 11 – A CRIAÇÃO DE ADÃO

FONTE: <https://bit.ly/3sKRb0A>. Acesso em: 5 dez. 2019.

Em suas leituras, Machiavel conheceu os sermões do frade dominicano Girolamo


Savonarola (1452-1498), autor bastante contestado por seus escritos de críticas e
acusações contra o governo, o clero e diretamente o papado. Conhecido como “profeta
desarmado”, o frade chamou à atenção de Machiavel, que ficara impressionado com os
discursos corajosos de Savonarola, sua sabedoria e retórica ácida e honesta. Por sua
ousadia, o frade foi considerado herético e condenado à forca pela Inquisição da Igreja,
em 1498. Dias depois, Machiavel tornava-se chefe da segunda chancelaria de Florença,
encarregado dos negócios de sua Cidade-Estado no exterior.

65
DICA
“A Inquisição foi criada na Idade Média (século XIII) e era dirigida pela
Igreja Católica Romana. Ela era composta por tribunais que julgavam
todos aqueles considerados uma ameaça às doutrinas (conjunto
de leis) desta instituição. Todos os suspeitos eram perseguidos e
julgados, e aqueles que eram condenados, cumpriam as penas que
podiam variar desde prisão temporária ou perpétua até a morte
na fogueira, onde os condenados eram queimados vivos em plena
praça pública”.

Leia mais em: https://www.sohistoria.com.br/ef2/inquisicao/.

No período de 14 anos de trabalho na chancelaria de Florença, o pensador


florentino convenceu Soderini a criar uma milícia, em substituição à dependência de
Florença por forças mercenárias. Maquiável também foi autorizado a realizar mais de 40
importantes missões diplomáticas e militares. Nesse sentido, organizou visitas à França,
a Cesare Borgia filho do Papa Alexandre VI, no de 1507, (que reinou entre 1492-1503), ao
papa Júlio II (que reinou entre 1503 a 13), sucessor de Alexandre. Igualmente, comandou
a missão diplomática à corte do Sacro Imperador Romano Maximiliano I (que reinou
entre 1493-1519) e, finalmente, para a república de Pisa (1509 e 1511).

NOTA
Chancelaria é a gestão administrativa destinada ao desenvolvimento da
política externa dos países. Tem a ver com autorizar, reconhecer governos
e atos de outras nações.

Seu primeiro escrito publicado foi resultado de suas observações durante a


missão a Cesare Borgia, intitulado “Del modo di trattare i sudditi della Val di Chiana
ribellati” (Sobre o modo de tratar os súditos rebeldes dos Valdichiana). Antecipando seus
discursos posteriores sobre Tito Lívio, ali Machiavel reverência os antigos romanos ao
lidar com os rebeldes, e aponta os equívocos da república florentina. Começa, ali, a
aparecer a crueza de raciocínio que levou muitos a maldizê-lo e acusá-lo de ateísmo.
Espelhando-se no império romano, afirmava que ao lidar com populações rebeldes,
havia dois modos: beneficiá-los ou eliminá-los. Sobre vingança de Cesare contra
seus capitães rebeldes, observou que "não se deve ofender um príncipe e depois confiar
nele" (MACHIAVEL,1996, p. 66). Posteriormente comemorou a queda e a prisão de Borgia.

66
DICA
“Tito Lívio (em latim Titus Livius) foi um importante historiador romano
que viveu na época da Roma Antiga. Nasceu por volta do ano 59 a.C.,
na cidade de Pádua (atual Itália). Faleceu por volta do ano 17 d.C. na
mesma cidade em que nasceu”. O título do livro de Machiavel, “Cartas
a Tito Lívio”, remete a uma situação imaginária, em que Machiavel
estaria escrevendo a um historiador que admirava, numa Roma
igualmente por ele admirada, anterior ao nascimento de Cristo.

Leia mais em: https://bit.ly/3sKlHrn.

Em 1512, a República de Florença foi derrubada pelo exército espanhol de Júlio


II. Com isso, os Médici voltam a governar a cidade-estado florentina. Machiavel é preso,
acusado de conspiração e depois exilado, mudando-se para San Casciano, ao sul de
Florença, na propriedade de seu pai. Lá, escreveu suas duas obras mais conhecidas e
póstumas: “O príncipe” e “Discursos sobre Tito Lívio”. Dedicou “O príncipe” a Lorenzo di
Medici, que governou Florença a partir de 1513. Após a morte de Lorenzo, o cardeal Giulio
de 'Medici (1478-1534) comandou Florença e Machiavel foi apresentado ao cardeal por
Lorenzo Strozzi (1488-1538), descendente de uma das famílias mais ricas de Florença a
quem ele dedicou o livro “Dell'arte della guerra” de 1521.

Finalmente, em 1520, Machiavel é empregado pelo cardeal Médici, incumbido


a importantes tarefas da chancelaria e até ser nomeado historiador oficial da república
de Florença. Enquanto isso, o papa Leão X (que reinou entre 1513 e 1521) encomendou-
lhe um relatório, no qual deveria falar sobre a organização administrativa de Florença.
Nesse documento, Machiavel critica o governo de Giulio Médici, aconselhando o papa
a restaurar a república, substituindo o modelo de principado estabelecido pelos Médici.
Machiavel foi cuidadoso e habilidoso, enfrentando o dilema de como dizer a verdade
sobre a ascensão dos Médici em Florença sem ofender seu patrono.

Depois do falecimento do papa Leão X, em 1521, o cardeal Giulio, único mestre


de Florença, decidiu reformar a administração da cidade e buscou os conselhos de
Machiavel, que prontamente o atendeu. Trabalhou com renovado entusiasmo na história
oficial de Florença. Em junho de 1525, ele apresentou suas “Histórias Florentinas” ao papa,
sendo financeiramente recompensado. Em 1526, é nomeado chanceler do Procuratori
delle Mura, encarregado de supervisionar o exército florentino. Naquela época, o papa
havia formado uma Liga Sagrada em Cognac contra o Sacro Imperador Romano Carlos
V (reinou de 1519 a 1556). Machiavel juntou-se ao exército na luta contra o imperador até
o fim do conflito, em 1527, com a vitória de Romano. Com ela, Machiavel perde o cargo
público que ocupara até então, adoece logo depois e morre no mesmo ano.

67
2.2 ESCRITOS
Quanto aos escritos de Nicollò Machiavel, são o resultado de uma obstinação
vocacional, por assim dizer sociológica e politológica. Ele mesmo dizia que as palavras
eram seu alimento e sem elas passaria fome. Na mesma época em que redigiu “O
príncipe” (1513), escrevia também os “Discursos para Tito Lívio”. Ambas as obras só
foram publicadas depois da morte do autor, entre 1531 e 1532. São livros que servem
de conselhos sobre como chegar ao poder, como se manter no poder e como preservar
as repúblicas. Muito mais do que exímios compêndios de sugestões pessoais, seus
livros revelam uma profunda preocupação em manter a unidade nacional e promover o
fortalecimento e o desenvolvimento de seu país.

NOTA
Obras notáveis de Machiavel:
• "O príncipe"
• “Discursos sobre os dez primeiros livros de Livy”
• "A arte da guerra"
• “A vida de Castruccio Castracani de Lucca”
• Histórias florentinas
• “A caminho de lidar com os súditos rebeldes dos Valdichiana”
• Mandrake

Os principais temas de estudos de Machiavel foram:


• Alemanha
• Cesare Borgia
• República
• Virtù
• Fortuna

2.2.1 O príncipe
FIGURA 12 – CAPA DO PRINCIPAL LIVRO DE MACHIAVEL

FONTE: <https://bit.ly/3JBAn2Q>. Acesso em: 5 dez. 2019.

68
Na literatura politilógica do Ocidente, a obra é classificada no gênero da
tradição de “Espelho para presidentes”, em que tais livros são manuais de conselhos
aos governantes, que, alegoricamente, se veriam refletidos neles. Nesse sentido, esse
gênero de livros surge ainda no século quinto a.C., com o livro Ciropedia, escrito pelo
historiador grego Xenofonte (431-350 a.C.) e continuam na Idade Média. Antes de
Machiavel, esses manuais eram muito lisonjeiros e aconselhavam que os príncipes se
guiassem por orientações estéticas e morais muitas vezes ineficientes.

A sua vez, a perspectiva do pensador florentino recomenda que um príncipe


esteja atento à realidade crua e nua. Deve primar pela eficiência, buscando o melhor
resultado, evitando a idealização moral e compreendendo que na política, o mais
importante do que bons modos são as realizações vitoriosas. Desse modo, não se trata
de ser um rei “bom”. É necessário ser competente na conquista e na preservação do
poder, do mesmo modo que se deve defender os interesses da nação de qualquer modo,
muitas vezes sem escrúpulos, desde que o resultado seja eficaz.

Nessa perspectiva amoral de análise, Machiavel é considerado o fundador da


modernidade no pensamento político. Essa é a principal marca que impingiu o pensador
florentino ainda no início do século XIX, será a principal característica a fundar a Ciência
Política. Trata-se da própria definição do objetivo geral da ciência moderna, qual seja,
o de entender a realidade como ela nos apresenta. Daí o conceito de realismo político
também atribuído e justamente a Machiavel. O livro “O príncipe” é uma contraposição
a toda a forma anterior de descrever a política no plano ideal, ou seja, como ela deveria
ser. Dito ainda de outro modo, Machiavel se opõe às utopias políticas como a “República”
(47 a.C.) de Platão (427 a.C. - ?), “Cidade de Deus” de Santo Agostinho (354-430) e “A
utopia” (1516) de Thomas Morus (1478-1536).

NOTA
A perspectiva amoral encontramos, por exemplo, nos escritos do
historiador alemão Friedrich Meinecke (1862-1954) e do filósofo alemão
Ernst Cassirer (1874-1945). Machiavel praticamente inaugura essa forma
de interpretação na filosofia e prenuncia o método científico que séculos
depois distinguirá a Filosofia Política da Ciência Política. Trata-se de explicar
ações na política segundo as necessidades da política e não da moral. Elas
são condenáveis do ponto de vista da moral não por serem imorais (contra
a moral), mas por serem amorais (isentas de julgamento moral).

Percebamos como Machiavel vê, por exemplo, a distinção entre principados que
são herdados e os que são conquistados. O autor sugere que, quanto mais fácil as coisas
vêm para o príncipe, mais facilmente se vão, enquanto o reino que se adquire por meio
da conquista é mais fácil de preservar. A causa disso é que o medo de um novo príncipe
é mais forte que o amor por um príncipe hereditário. A vantagem de um novo príncipe

69
está no "pavor de punição", enquanto o príncipe que espera fidelidade de seus súditos
se desapontará. Nesse sentido, a imposição do poder pela ameaça, para Machiavel,
é mais eficiente do que a manifestação da benevolência. O príncipe descobrirá que
“cada um quer morrer por ele quando a morte está a distância”, mas, quando o príncipe
precisa de seus súditos, geralmente se recusam a servir como prometido. Assim, todo
príncipe, seja novo ou velho, deve se considerar um novo príncipe e aprender a confiar
nas "próprias armas".

2.3 VIRTUDE E FORTUNA


As noções de virtude e fortuna são centrais na avaliação que caracteriza o
governante. Deve haver equilíbrio entre elas. A virtude está relacionada aos atributos
necessários que levam os homens às conquistas do que desejam. Já a fortuna tem
a ver com a riqueza, a sorte, a herança, a concessão, o destino favorável, o privilégio,
as facilidades, sejam elas concedidas ou adquiridas. É possível tornar-se príncipe por
hereditariedade, o que é produto da fortuna. Mas para manter-se no poder é preciso
desenvolver as próprias virtudes, sem as quais o poder escapa das mãos. Da mesma
forma, é merecida a fortuna aos que a conquistam. De um modo ou de outro, a fortuna
é sempre o resultado da virtude de alguém, no presente ou no passado. Contudo, para
mantê-la depende essencialmente da virtude.

O novo príncipe depende da sua própria virtude. Mas não se trata da virtude
pacífica, cuja definição encontramos na Bíblia. Trata-se da virtude no sentido de merecer
o que tem, através da astúcia, da disposição pessoal, da busca da sabedoria, do estado
de alerta, do senso de oportunidade e autoconfiança. Além disso, muita coragem e
determinação em agir segundo as circunstâncias e com objetivos bem definidos. É o
que se espera do príncipe, isto é, que tenha conhecimentos da arte da guerra e persiga
não somente a paz, mas a glória, a fim de ter o respeito dos súditos e deixar seu nome
para a posteridade.

O governante deve preservar sua imagem, dar exemplos de seriedade, rigidez


e sobriedade. Não deve ostentar o luxo, que exige a cobrança de mais impostos,
descontentando o povo. Assim, um príncipe não deve se preocupar se for considerado
mesquinho, pois, esse vício lhe permite governar. É preferível que o vejam como um
“pão-duro” do que como um perdulário. É o tipo de conselho que surgia como completa
novidade, pois súdito algum ousava questionar, sequer sugerir, os gastos dos monarcas.
Nessas preocupações pode-se perceber um verdadeiro conselheiro e não um bajulador,
algo comum à sua época.

Entre exemplos da virtude, Machiavel admite, inclusive, a crueldade do príncipe.


Usando o exemplo de Agátocles, príncipe de Siracusa, Machiavel enaltece suas virtudes
pela conquista do poder. Admite que o governante pode ser conhecido pela crueldade,
desde que seja "bem usada". Todavia, adverte Machiavel "não se pode chamar de

70
virtude matar os cidadãos, trair os amigos, ficar sem fé, sem misericórdia e sem religião"
(MACHIAVEL, 1996, p. 64). A virtude teria, sobretudo, a função de reduzir o poder da
fortuna sobre os assuntos humanos, porque tende a tornar os homens vulneráveis e
pouco preparados para as dificuldades, impedindo que confiem em si mesmos.

Machiavel concorda, a fortuna governa a metade da vida dos homens, mas


deve ser conquistada e preservada com a virtude. Metaforicamente, o autor compara a
fortuna a uma mulher que cede à virtude masculina, se deixando conquistar mais pelos
impetuosos "que a comandam com mais audácia" do que aqueles que são por demais
cautelosos. Essa virtude guerreira não é incompatível com a virtude moral tradicional,
sendo bom que as duas estejam presentes na conduta do príncipe. É preciso ser firme e
justo, até mesmo generoso em alguns momentos. Um príncipe que possui a virtude do
guerreiro e a conduta moral exemplar é o mais apto a comandar a fortuna e administrar
as coisas de seu povo de maneira a ser admirado e temido por todos.

2.4 OS FINS JUSTIFICAM OS MEIOS


É nessa perspectiva do político de virtudes, que Machiavel sustenta que os mais
importantes meios a serem utilizados pelo governante são os fins que prevalecem. É
inerente à virtude de o príncipe utilizar-se de todos os meios e recursos disponíveis para
a obtenção das finalidades últimas de seu exercício de governo. Somente o governante
virtuoso é moralmente isentado de culpa pelos governados que, conquanto possam
reprovar os procedimentos de quem governa, aceitam legitimar o seu poder, desde que
o melhor resultado, a última finalidade seja alcançada. Em circunstâncias de grande
perigo ao povo, isso fica explícito.

Ora, quais são os fins da política? Serão de paz em tempos de guerra, de


desenvolvimento em tempos de crise e de conquistas na cena da eterna competição
internacional. Serão de justiça em tempos de opressão e de saúde em tempos de doença.
Serão, afinal, todos esses objetivos e tantos outros quantos forem de interesse do povo.
Nessa perspectiva, retire-se aqui o caráter privado e pessoal de qualquer governante,
de qualquer político. Estamos falando do interesse republicano, como finalidade última
na política, cujos governantes precisam assegurar a vida, a liberdade e a propriedade
dos indivíduos no interior de um território.

Nesse ponto, o governante deve ser virtuoso para alcançar o poder e


uma vez conquistado, deve mantê-lo por meio da virtude. O objetivo principal do
governante, pode-se admitir, é a conquista e a preservação do poder. A finalidade de
seu governo é atender as demandas básicas dos governados, acima mencionadas.
Sua legitimidade, assim como a legitimidade do Estado moderno, reside nisso.
É nessa ótica que os fins justificam o uso de meios. Podem até ser moralmente
questionáveis, todavia, se essas demandas forem satisfatoriamente atendidas e os
indivíduos governados tendem a aprová-lo.

71
A razão disso é que, tanto para o governante, quanto para o governado, os
meios são importantes, mas o que interessa mais a ambos os lados são os resultados.
Ainda que os meios utilizados pelo governante demonstrem suas boas intenções, isso
não garante o bom resultado. Pensemos contemporaneamente na perspectiva de
Machiavel: um governo pode não agradar a muitos pelas suas opiniões e pelos seus
gestos. Pode até cometer pequenos erros, mas tende a ter a aprovação da maioria se
conseguir melhorar a economia, a segurança e preservar a liberdade dos indivíduos. No
entanto, se falhar gravemente num desses pontos, perderá o apoio da maioria e abrirá
um vácuo que logo será ocupado por quem, ao povo, parecer mais virtuoso e confiável.

Os escritos de Machiavel representaram uma nova etapa histórica do pensamento


político ocidental. Não se trata de uma simples continuidade, mas de uma ruptura
com o modo anterior de pensar o poder. Significa a abertura analítica que preparou
o terreno para pensar a política objetiva, racional, lógica e, portanto, cientificamente.
É com Machiavel que o pensamento político moderno se cristaliza, inaugurando um
novo tempo e fundamentando a teoria política, até chegarmos à Ciência Política, que
conhecemos hoje, atribuindo-se a Machiavel a paternidade desta ciência.

Ao invés de dizer como a política deveria ser, como fizeram seus precedentes,
esse pensador renascentista italiano passou a descrever a política como ela realmente
é. O pensador florentino não se preocupou em moralizar a política, como fizeram seus
precedentes. Separou a política da moral, demonstrando que a primeira funciona numa
lógica diferente da segunda por especificidades. Demonstrou que a sobreposição da
moral religiosa acima da política com frequência arruína as chances do bom governo.
Isso porque separa o religioso, o que vale é a intenção e para o político o que vale é o
resultado.

Mas não devemos confundir Machiavel com um herege, ateu e imoral. Isso fica
lá para o senso comum. Para nós, neste presente livro didático, importam os conceitos
e a análise da teoria política moderna, inerentes à Ciência Política. Esta ciência deve ao
pensador florentino o seu despertar, ainda que esta somente tenha surgido somente no
século XIX como tal. O que nós, estudantes das coisas da política, devemos a Machiavel
é sua forma de pensar cientificamente a política, isto é: procurar entender as coisas
como elas são e não como deveriam ser.

É esse o princípio da modernidade, um movimento cultural de rompimento com


a visão teocêntrica medieval, segundo a qual, tudo que acontecia era o desígnio divino.
Ao contrário, para o pensamento moderno, o homem passa a ser o centro do universo,
e a isso denominamos antropocentrismo. Também não se trata de uma anteposição à
religião. Trata-se, tão somente, de uma separação entre a esfera da ciência racional e
da moral oriunda da fé e dos ensinamentos sagrados. Machiavel faz isso. Nesse sentido,
trata-se somente de compreender que as coisas da política não seguem a vontade
divina. Seguem os impulsos humanos de poder.

72
Assim, os interesses legítimos de uma nação e mais os interesses egoísticos,
se impõe em meio às disputas pelo poder. Machiavel fez perceber que não adianta um
governante lutar, disputar o poder e tentar preservá-lo, agindo apenas moralmente.
Mesmo em nome dos interesses de seu povo e da paz, um governante precisa usar suas
virtudes como a astúcia e a frieza, para não falar na crueldade em últimos casos. Boas
intenções são insuficientes, porque ele não poderá esperar isso de seus adversários.
Um governante deve ser justo, sempre que possível, mas deve usar de todos os meios
necessários para garantir o fim último da política: o poder.

3 MONTESQUIEU
Charles-Louis de Secondat, o Barão de La Brède et de Montesquieu, nasceu em
18 de janeiro de 1689, em Château La Brède, perto de Bordeaux na província da França
e faleceu em Paris, em 10 de fevereiro de 1755. Filósofo e político prestou extraordinária
contribuição intelectual à teoria política. Suas contribuições são notáveis na Filosofia
Política, na Ciência Política, no Direito, na Geografia, na Sociologia, na Antropologia e
na Economia. O esforço honesto e a genialidade analítica estão impressa em uma das
obras mais importantes do pensamento político ocidental, por ter contribuído para a
formatação do Estado moderno. Estamos falando de “O Espírito das Leis”.

FIGURA 13 - IMAGEM CLÁSSICA DO AUTOR DE “O ESPÍRITO DAS LEIS”

FONTE: <https://bit.ly/3oV49aK>. Acesso em: 23 jul. 2020.

3.1 VIDA E CARREIRA



O pai de Montesquieu, Jacques de Secondat, pertenceu a uma família de
militares de modestas posses que, todavia, recebeu título de nobreza por serviços
relevantes à coroa francesa. Sua mãe, Marie-Françoise de Pesnel, cuja herança
de sua família permitiu investimentos na propriedade produtora de vinho de
La Brède, dos Secondat, herdada por Montesquieu. Essa segurança financeira
permitiu uma boa educação ao jovem futuro filósofo, educado primeiramente

73
em casa e depois no Collège de Juilly, perto de Paris e na diocese de Meaux.
Foi muito frequentado pelas famílias proeminentes de Bordéus, educados por
padres de sólida formação filosófica e iluminista.

O jovem Montesquieu deixou o Colégio Juilly em 1705, transferindo-se


para a faculdade de Direito da Universidade de Bordeaux, onde se graduou em
1708. Depois, iniciou carreira de advogado em Paris a fim de obter experiência
prática no campo jurídico. Com a morte de seu pai, voltou a Bordeaux em 1713 e,
dois anos depois casou-se com Jeanne de Lartigue, uma protestante rica, que
lhe permitiu aumentar as posses e, com o consentimento dele, passou a dirigir
os negócios da família. Mais tarde, herdou de um tio duas propriedades e o cargo
de vice-presidente no Parlamento de Bordeaux. Sua posição era de alguma
dignidade. Aos 27 anos, estava financeiramente seguro. Exercia sua profissão,
estudava detidamente o direito romano e aperfeiçoava seus conhecimentos
gerais. Estavam dadas as condições à emergência do grande intelectual.

FIGURA 14 - CAPA DE UMA EDIÇÃO CONTEMPORÂNEA DO CLÁSSICO DE MONTESQUIEU

FONTE: <https://amzn.to/3HYPFhH>. Acesso em: 23 jul. 2020.

3.2 CARTAS PERSAS


Sua iniciação pública como escritor se materializa com as surpreendentes
“Cartas persas” (1722), livro em que apresenta um retrato satírico da ordem social e
política da França, ficticiamente observada aos olhos de dois viajantes persas em Paris.
O livro ironiza o reinado de Luís XIV, recentemente findado. Ali, faz escárnio das classes
sociais, questiona a teoria de Thomas Hobbes sobre a suposta natureza humana e
estabelece inédita comparação entre o cristianismo e o islamismo. Também faz críticas
à Igreja católica, tanto quanto aos jansenistas, protestantes dissidentes do catolicismo,
inaugurando a crítica iconoclasta em seu País. O impacto foi vigoroso.

74
3.3 A MATURIDADE INTELECTUAL
Montesquieu viajou bastante, conhecendo países e aproveitou a vida. Entre
1729 e 1731, conheceu a Alemanha, a Itália, a Holanda e a Inglaterra. Quando retornou à
França, resolveu finalmente dedicar-se à carreira intelectual. Nos dois anos seguintes,
isolou-se em sua propriedade, em La Bréde, e passou a escrever, permanecendo por
dois anos. Disso resultam um tratado sobre “A monarquia universal”, de 1734, além de um
ensaio sobre a “Constituição inglesa”, só publicado em 1748, juntamente com o notável
livro “Reflexões sobre as causas da grandeza e declinação dos romanos”, publicado
isoladamente em 1734. A reedição desta obra, em 1748, em conjunto com “Constituição
inglesa”, foi publicada desse modo em função da opinião de Voltaire, que afirmava que
os ingleses adoravam comparar-se aos romanos (SHACKETON, s.d., s.p.).

DICA
Voltaire, (1694-1778) foi um filósofo e escritor francês, um dos grandes
representantes do Movimento Iluminista na França. Foi também ensaísta,
poeta, dramaturgo e historiador. Voltaire, Montesquieu e Rousseau
foram os três nomes mais significativos do Iluminismo francês. Leia mais
informações em: https://www.ebiografia.com/voltaire/.

Mas a aspiração literária de Montesquieu foi além. Tinha a ideia fixa de promover
uma grande análise das instituições políticas e produzir um tratado. Por instituições,
entendam-se as leis. Por tratado, entenda-se uma abrangente análise e uma proposição
sobre o melhor funcionamento das leis e do Estado. Então, dedicou-se a fazê-lo, depois
de um intervalo de descanso. Em 1736, voltou ao autoexílio em sua propriedade e
começou a escrever o que viria a ser sua obra-prima, embora, com o tempo, tenha
voltado à vida social e visitado Paris com muita frequência.

Dez anos depois do início de sua empreitada, entregou a primeira versão de “Do
espírito das leis” a uma editora suíça. Lá, foram solicitadas correções e Montesquieu
não somente as fez como escreveu novos capítulos, até que a obra foi publicada pela
primeira vez no ano de 1748. Era um compêndio que reunia 31 temas em 1.086 páginas.
“O espírito das leis” foi logo reconhecido como um livro indispensável, rapidamente
difundido nos ambientes intelectuais dos principais países europeus. É considerado
uma das maiores obras de teoria política e história do direito até hoje. O pensador
francês fez uma retrospectiva de tudo que de mais importante havia sido escrito até
então e promoveu uma síntese, formulando algo totalmente inovador.

A primeira formulação trata-se da classificação dos governos. Distanciou-se da


formulação teórica clássica até então vigente na teoria política, que classificava as formas
de governo em monarquia, aristocracia e democracia. Montesquieu formulou uma nova

75
classificação, segundo a qual a república se caracteriza com base na força, a monarquia
com base na honra e o despotismo com base no medo. Essa nova perspectiva analítica
procurava demonstrar que a classificação não diz respeito à localização do poder
político, isto é, se reside no governo de um só, de poucos ou de muitos. Diferentemente,
a categorização das formas de poder se daria pela forma de condução do poder.

NOTA
A classificação tradicional apresenta a monarquia como o governo de
um só, a aristocracia como o governo de poucos e a democracia como o
governo da maioria.

A segunda e mais notável de suas formulações está na sua teoria da


separação dos poderes. Ao propor a composição do Estado a partir da divisão
entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, Montesquieu asseverou
que seria a melhor fórmula de garantia da liberdade, da justiça e da eficiência
administrativa. Assim, cada um dos três poderes deveria ser composto por
indivíduos diferentes, com funções diferentes e objetivos específicos a cada
poder. O que nos parece comum e familiar hodiernamente, foi uma grande
novidade no século XVIII.

O objetivo do legislativo deveria ser exclusivamente legislar, ou seja, fazer


leis. Assim, vereadores, deputados e senadores têm a missão mais importante
de capturar a vontade geral do povo e traduzi-la em leis. O objetivo do executivo
deveria ser, exclusivamente, o de executar as leis, e agir sem delas desviar-se,
ou seja, sempre dentro das leis. Quaisquer que sejam suas decisões, ações e
políticas a implementar, não poderiam senão agir dentro dos limites da lei. E ao
judiciário, nada mais restaria do que interpretar as leis e fiscalizar os dois outros
poderes, quando for chamado a fazê-lo. Acrescente-se que isso só funciona
bem, lembra Montesquieu, na medida em que os poderes são independentes
entre si, isto é, um não se imiscui nas atividades dos outros.

O modelo ideal a inspirar Montesquieu é o da Inglaterra, cuja a forma


era constitucional, simples, equilibrada e clara, na qual, o autor já havia escrito.
A ordem institucional inglesa não estava fora de contestação. Entretanto,
vários pensadores políticos concordavam com Montesquieu ao elogiar o
ambiente político da Inglaterra, ele observava que os vários segmentos da
Sociedade (a monarquia, os senhores feudais, os comerciantes e o povo em
geral) tinham alguma representatividade. Montesquieu percebia um ambiente
de representatividade e liberdade ao observar a forte oposição exercida pelo
partido Tory à liderança do partido Whig.
76
NOTA
Tory e Whigs foram respectivamente, os partidos conservadores e liberais
da cena política inglesa do século XIX.

Assim, o sexto capítulo do livro XI de “Espírito das Leis”, sobre a Constituição da In-
glaterra, tornou-se famoso, pelos debates e contribuições subsequentes à teoria política mo-
derna. Mais que isso, foi a análise de Montesquieu que mais tarde inspirou dois documentos
igualmente históricos na cultura política do Ocidente, quais sejam, a Declaração dos Direitos
do Homem e da Constituição dos Estados Unidos. O autor vai aos fundamentos que originam
as leis que garantem as liberdades de opinião, de credo e de expressão.

Um pouco antes, no Capítulo III, o teórico francês define o que é liberdade e inicia
por negar que ela seja sinônimo de situação onde todos fazem o que bem entendem.
Criticando a ignorância dos opositores da democracia, Montesquieu demonstra como
funciona o ambiente político inglês, à época, definindo assim a liberdade: “... numa
sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se
deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve querer. [...] A liberdade
é o direito de fazer tudo o que as leis permitem. Se um cidadão pudesse fazer tudo o que
elas proíbem, não teria mais liberdade” (MONTESQUIEU, 1996, p. 200).

Finalmente, no capítulo VI, Montesquieu lança as bases do que configura o


Estado moderno e permitiu o desenvolvimento institucional das democracias: a divisão
dos poderes, cuja inspiração ele percebe na organização da ordem política inglesa e
vê como uma tendência a ser replicada por outras nações. Defensor da liberdade
como valor supremo, Montesquieu sugere que o desenvolvimento e o fortalecimento
das nações estão atrelados a defesa das liberdades. Para tanto, ele propugna que a
evolução institucional persiga tal desígnio por meio do equilíbrio entre os poderes. No
capítulo denominado “Da Constituição da Inglaterra”, o pensador francês afirma que:

Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o


poder executivo das coisas que dependem do direito das pessoas, e o
executivo que dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou
magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-
roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra, envia
ou recebe embaixadas, estabelece a segurança e previne invasões.
Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos
(MONTESQUIEU, 1996, p. 201).

Note-se que o autor estabelece uma hierarquia entre os poderes, ao começar


com o legislativo. Para Montesquieu, o mais importante dos poderes é o que faz as
leis. Como teórico, inspirador do institucionalismo e também um pensador moderno,
ele compreende que o bom funcionamento da Sociedade não pode depender da boa
vontade dos governantes. Uma sociedade funciona bem com boas instituições, isto é,
boas leis. São sempre as leis e não as vontades individuais de quem esteja no poder, que
devem governar a todos. Por isso, elas devem ser bem-feitas. Ao executivo cumpriria
somente o seu cumprimento e ao judiciário nada mais que a sua vigilância.

77
DICA
O institucionalismo é uma corrente teórica na Ciência Política, na
Economia e no Direito que estuda a importância das instituições na vida
dos indivíduos. Investiga-se o poder de influência que exercem na ordem
social, tanto quanto se estudam os fatores de ordem social que interferem
no funcionamento das instituições. Por instituições, compreendam-se as
leis em geral. Não menos importante é compreender que, na linguagem
das ciências humanas, devemos observar a diferença entre as instituições
formais, que são as leis jurídicas, e as instituições informais, que derivam
dos costumes.

Montesquieu foi intransigente na defesa da liberdade, sendo ela, o fator de


desenvolvimento humano e social, deveria ser assegurada em lei. Trata-se de uma liberdade
depurada pela moral, pela razão, através da educação. Ele era totalmente contrário às formas
de autoritarismo, de absolutismo, crítico da escravidão e defensor da tolerância, crente de
que cada indivíduo deve exercer sua liberdade em busca de seu desenvolvimento. Para isso,
boas leis eram necessárias. Sugeria que boas leis produzem bons homens. Mas reconhecia
o valor da educação e dos bons costumes, ao admitir que bons homens (de boa educação
e boas atitudes) seriam necessários para produzir boas leis.

IMPORTANTE
“Os Discursos a Tito Lívio” configuram a segunda obra mais conhecida de Nicollò Machiavel.
Trata-se não somente de um conjunto de conselhos ao governante, mas uma expressão das
preocupações cívicas, patrióticas e, portanto, do pensamento republicano inerente às reflexões
de Machiavel. O pensador florentino é até hoje peça-chave à compreensão de toda a tradição
do republicanismo ocidental, cujas remanescências encontram-se no humanismo cívico.

O humanismo cívico é um conceito que designa as preocupações com a coisa pública,


com as coisas da pólis grega ou da civis romana. É a preocupação de autores, mas
também das sociedades nas quais estavam inseridos e que analisavam, observando
as virtudes de suas nações e relacionando essas virtudes cívicas ao sucesso delas.
Contemporaneamente, o conceito de humanismo cívico tem sido comparado à ideia-
força do capital social, ambos os termos abordados no Livro Teoria Política II, da Editora
da Uniasselvi (BAZZANELLA; BIRKNER, 2020).

Esse aspecto, originalmente encontrado na Grécia antiga e no Império Romano, foram
resgatados por Machiavel, trazendo à tona todo o conhecimento e a visão humanista dessas
duas grandes civilizações. Por isso, Machiavel é um humanista, um renascentista e, portanto,
um pensador fundante da modernidade. Nas palavras de Harvey Mansfield, um dos editores
da Encyclopedia Britannica:

“No último capítulo de O príncipe, Machiavel escreve uma apaixonada "exortação para tomar
a Itália e libertá-la dos bárbaros" – aparentemente França e Espanha, que haviam invadido
a península desunida. Ele pede um redentor, mencionando os milagres que ocorreram
quando Moisés levou os israelitas à terra prometida e termina com uma citação de um
poema patriótico de Petrarca (1304-74).

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O capítulo final levou muitos a uma terceira interpretação de Machiavel como patriota e não
como cientista desinteressado. Como o príncipe, os Discursos sobre Livy admitem várias
interpretações. Uma visão, elaborada separadamente em obras dos teóricos políticos J.G.A
Pocock e Quentin Skinner, na década de 1970, enfatizam o republicanismo da obra e localizam
Machiavel em uma tradição republicana que começa com Aristóteles (384-322 a.C.) e continua
através da organização das cidades-estados medievais, a renovação da filosofia política clássica
no humanismo renascentista e o estabelecimento da república americana contemporânea.

Essa interpretação se concentra nas várias observações pró-republicanas de Machiavel,


como sua declaração de que a multidão é mais sábia e mais constante que um príncipe e
sua ênfase nos Discursos sobre Lívia sobre a virtude republicana do autossacrifício como
forma de combater a corrupção.

No entanto, o republicanismo de Machiavel não se baseia na premissa republicana usual de


que o poder é mais seguro nas mãos de muitos do que nas mãos de um. Pelo contrário, ele
afirma que, para fundar ou reformar uma república, é necessário "estar sozinho". Qualquer
ordem deve depender de uma única mente; assim, Romulus "merece desculpa" por matar
Remus, seu irmão e parceiro na fundação de Roma, porque era para o bem comum. Essa
afirmação é o mais perto que Machiavel chegou a dizer "o fim justifica
os meios", uma frase intimamente associada às interpretações de O
príncipe” (MANSFIELD, s.d.).

Na sequência, Mansfield sugere uma relação de autores que


escreveram obras relacionadas ao estilo republicano e de
enaltecimento ao humanismo cícivo, como fez Machiavel,
supostamente o grande inspirador de todos eles:

Karl Gotthard Lamprecht


Germaine de Staël
Johann Gottlieb Fichte
Samuel, barão de Pufendorf
Franz von Papen
Joachim von Ribbentrop
Heinrich von Treitschke
Friedrich Meinecke
Harry, conde de Arnim
Sir Samuel Hoare, 2º Baronete

4 TOCQUEVILLE
Alexis de Tocqueville nasceu em 29 de julho de 1805, em Paris, e faleceu em
16 de abril de 1859. Foi estadista, filósofo político e historiador que, por suas importantes
observações sobre a política e a cultura, inspirou a Sociologia e da Ciência Política, ciências
que surgiram após a sua morte. Sua obra mais conhecida é também um dos maiores clás-
sicos de todos os tempos, intitulado “Democracia na América, em dois volumes (1835-1840).
Nesse livro, aparece uma descrição muito original sobre a organização social e política dos
Estados Unidos da América, no início do século XIX. De ideias liberais e democráticas, de-
monstrou de modo original as relações entre cultura e instituições políticas.

79
FIGURA 15 - O JOVEM ALEXIS DE TOCQUEVILLE, AUTOR DE “DEMOCRACIA NA AMÉRICA”

FONTE: <https://bit.ly/3JxijGY>. Acesso em: 23 jul. 2020.

Tocqueville foi bisneto do estadista Chrétien de Malesherbes (1721-1794),


aristocrata liberal, descendente de normandos, prefeito monarquista perseguido
pela Revolução Francesa. Seu pai, Hervé-Louis-François-Jean-Bonaventure Clerel,
evidentemente também sofreu a perseguição e foi preso durante a Revolução Francesa.
Depois da restauração monárquica dos Bourbon, em 1815. A condição aristocrática e
a lealdade monárquica da família ajudaram o jovem Tocqueville a inserir-se no serviço
público como magistrado aprendiz. Essa condição o preparou à vida na política, em
meio ao confronto constitucional entre conservadores e liberais nesta época, em que
se inclinou pelos últimos.

Em sua veia intelectual também se revelou cedo e, associada às atividades


públicas, despertou ao mundo um grande filósofo da política. Na adolescência, começou
a explorar a biblioteca do pai, onde leu obras dos iluministas Montesquieu e Voltaire,
o que o levou a estudar Direito. Seu depoimento nos sugere o fascínio que sentiu
pelo privilegiado uso da biblioteca paterna. Mas também revelam sua estupefação na
confrontação entre o mundo das ideias e das imperfeiçoes humanas nas lutas pelo poder.
De um lado, o otimismo com a razão iluminista e, de outro, a experiência traumática que
lhe causou a Revolução Francesa. Tocqueville descreve assim suas impressões:

Quando me tornei vítima de uma insaciável curiosidade cuja única


satisfação possível era uma grande biblioteca, acumulei em minha
mente uma desordem de noções e ideias mais apropriadas a uma
idade mais madura. Até aquela época, minha vida havia sido envolvida
por uma fé que nem mesmo permitia que a dúvida penetrasse minha
alma. Então a dúvida entrou, a toda velocidade e com incrível violência,
não apenas sobre uma coisa ou outra em particular, mas uma dúvida
que permeava tudo. De repente, experimentei a sensação de que
falam as pessoas que passaram por um terremoto (TOCQUEVILLE
apud POWELL, 2013, s.p.).

80
4.1 OBRA

Em suas duas principais obras, a mencionada “Democracia na América” e
o igualmente brilhante livro “O Antigo Regime e a Revolução”, o pensador francês
faz uma excelente apreciação sobre a organização social e política moderna e
seus vínculos com a religião cristã. Especificamente, o ponto de convergência
que une o cristianismo à democracia está na ideia de igualdade entre os homens.
Essa brilhante vinculação causal lhe confere notável originalidade e ajudará a
impulsionar o surgimento das Ciências Sociais, notadamente da Sociologia e da
Ciência Política, como já dissemos. A relação entre religião e democracia inspirou,
por exemplo, o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) que, um século depois
fez a brilhante relação entre religião e desenvolvimento econômico.

NOTA
Jurista e economista, o pensador alemão Max Weber foi também um dos
fundadores da Sociologia. Entre suas obras estão “Economia e Sociedade”,
“Ciência e política: duas vocações” e “Ética protestante e o espírito do
capitalismo”. No último livro mencionado, Weber faz uma surpreendente
relação entre a religião e o desenvolvimento econômico, de modo
paralelo ao que Alexis de Tocqueville fez um século antes entre religião e
desenvolvimento das instituições políticas.

4.2 A VIAGEM AOS EUA: DEMOCRACIA NA AMÉRICA


Autorizados pelo governo francês, Tocqueville e seu amigo Charles de Beaumont,
passaram nove meses nos Estados Unidos entre 1831 e 1832. O propósito oficial fora
estudar o sistema penitenciário, o que originou o primeiro livro da viagem, intitulado
“Sobre o sistema penitenciário nos Estados Unidos e sua aplicação na França” (1833).
O segundo livro foi “Escravidão nos Estados Unidos” (1835), sobre os problemas raciais
dos Estados Unidos. Mas o terceiro livro, publicado em duas partes, revela o propósito
de fundo da viagem: “Democracia na América” (1835-1840). Tocqueville descreveu a
“alma” da Sociedade americana, chamando a atenção para as condições fundantes da
cultura democrática e anunciando qual seria a grande potência política e econômica do
século seguinte.

O extraordinário estudo de Tocqueville ajudou a fundar as bases da própria


Sociologia e da Ciência Política. Estava curioso por saber como funcionava o
experimento americano, sem a tutela de uma monarquia e como isso, poderia ajudar a
entender o futuro das nações, sobretudo de sua França. Em suas observações analisou
a vitalidade, os excessos e o futuro potencial da democracia americana. Sobretudo,
Tocqueville procurou demonstrar como uma Sociedade organizada, com forte senso de
comunidade (leia-se, republicana e federalista) seria capaz de preservar as liberdades,
corrigir os excessos da democracia e promover o desenvolvimento.

81
O entendimento de Tocqueville sobre a democracia está relacionado à ideia
do autogoverno, isto é, da capacidade comunitária de organizar a vida coletiva. Não
obstante, sua percepção sobre a democracia estadunidense vai além. Tocqueville
entende a democracia não apenas como autogoverno, mas como um modo de vida
abrangente. Em seus escritos, ele explica os efeitos da democracia nos hábitos teóricos
e práticos no cotidiano do povo americano. Ao observar atentamente o dia a dia da
Sociedade estadunidense, o autor percebe como a necessidade de auto-organização
comunitária produz efeitos originais. Em face da distância de um poder central, homens
e mulheres letrados, leitores da Bíblia, conseguem pôr em prática, às duras penas,
preceitos e objetivos que até então, eram só conhecidos nas teorias políticas.

FIGURA 16- A CULTURA DEMOCRÁTICA ESTADUNIDENSE SE FEZ NA PRÁTICA

FONTE: <https://bit.ly/3GX69Wf>. Acesso em: 23 jul. 2020.

Tocqueville relata as vantagens e os perigos da democracia. Enaltece a liberdade


de imprensa e a proliferação de agremiações de caráter comunitário, percebendo ali a
potência do regime democrático. Não deixa de alertar para os perigos da formação da
vontade da maioria, em detrimento dos interesses e direitos das minorias. Adverte que
o interesse da maioria pode se tornar despótico e ameaçador às liberdades e sugere
que as instituições políticas, sempre e somente elas, sejam sabiamente elaboradas ou
reelaboradas e preservadas para evitar esses possíveis males democráticos.

Mas, acima de tudo, Tocqueville chama à atenção de seus leitores para questões
de liberdade intelectual e política. Observa que em qualquer comunidade estadunidense
existem um ou mais jornais. Chama-lhe a atenção o fato de não serem jornais muito
bem elaborados e de maior teor intelectual. O que lhe chama à atenção é o fato de
que os habitantes estadunidenses são leitores aficionados, valorizando a condição de
alfabetizados. Vê, nesse fato, um extraordinário exemplo de senso de autonomia por parte
dos indivíduos, fator fundamental à construção de uma Sociedade e uma nação fortes.

A propósito, justamente, em relação ao senso de autonomia faz questão de


enaltecê-lo e, por fim, fazer uma importante advertência. Tocqueville não cansa de
apontar a liberdade e a autorresponsabilidade dos americanos como o motor da república
e fator original do desenvolvimento, associado à instrução. Observa o pensador francês
que na associação entre a defesa intransigente da liberdade individual e do apreço

82
à educação estão os pilares da prosperidade. Para reforçar essa ideia, Tocquevile faz
questão de observar como as famílias estadunidenses, em geral, valorizam o papel das
mulheres. O fato de a elas ser reservado o papel de educação e instrução dos filhos, nota
Tocqueville, redobraria as possibilidades de desenvolvimento.

Nas mencionadas obras, o autor procura demonstrar os resultados sociais


e políticos de colocar em prática os preceitos cristãos de igualdade, irmandade
autorresponsabilidade no uso do livre arbítrio. Lá estaria a origem da democracia, da
cultura de cooperação e da autonomia que Tocquevile afirma inerentes à formação
da sociedade americana, cujos colonos fundadores vieram com uma formação
cristã sólida, associada às ideias modernas de liberdade. A ausência de um sistema
monárquico foi a grande oportunidade para que esses colonos construíssem um
ambiente verdadeiramente livre, em que as decisões eram tomadas em comunidade,
com amplos reflexos na formação das instituições políticas republicanas e federativas.

NOTA
A colonização dos EUA inaugura a experiência de uma república
federativa, referência para outras nações, o que inclui o Brasil. Trata-se
de edificar um Estado comprometido com “a coisa pública” e dividido
em unidades federativas com relativa autonomia e compromisso com a
unidade do país através de uma Constituição federal. Essa experiência
histórica forjou leis, normas e regras concordantes com as aspirações
gerais da sociedade estadunidense.

Contudo, a advertência de Tocqueville fica justamente por conta do que


a autonomia em coletividade tende a provocar, a partir de suas ações e reações.
O senso de autonomia é a própria “carga genética” da democracia. Forma
uma sociedade mais independente em relação às coisas do Estado, menos
submetida aos ditames do governo central e, portanto, mais forte e exigente. As
democracias, por sua vez, estão marcadas pelo princípio da vontade da maioria.
Isso é bom, mas pode gerar a tirania da maioria sobre as minorias. Por essa
razão, Tocqueville entende a importância de certa centralização legislativa.

Em outras palavras, Tocqueville reconhece a importância do sistema


federativo descentralizado, em que enxerga a vitalidade social, sem a
dependência ao Estado centralizado o tempo todo. Mas também, defende
alguma centralização de leis gerais. Admite que a força da democracia está, de
um lado, na preservação das autonomias das unidades federativas, em que a
vontade da maioria se expressa. Percebe que somente leis de abrangência geral,
respaldadas por uma Constituição Nacional, podem garantir que liberdades
específicas e legítimas se expressem. Isso inclui a tolerância religiosa e o respeito
às escolhas individuais, preservado o respeito às liberdades alheias. Portanto,
a solução sempre instável a exigir vigilância eterna é um equilíbrio necessário
entre certa centralização legislativa com a descentralização federativa.

83
A outra advertência está relacionada ao efeito do próprio crescimento
das democracias, que Tocquevile antevia ao observar o desenvolvimento da
nação norte-americana. Admitia que o ambiente cultural e, principalmente, o
desenvolvimento institucional democrático geraria rápido crescimento do País.
Esse crescimento tenderia a levar as pessoas a se individualizar e se concentrar
cada vez mais nas coisas da economia, deixando as coisas da política ao
Estado centralizado. O desejado bem-estar material, somado à comodidade da
proteção leviatânica do Estado centralizado, ameaçaria a própria democracia,
causando a displicência do homem comum com as preocupações republicanas.
Para Tocqueville, o grandioso destino dos EUA dependia de vigilância constante
a essa tendência. Impressionante a atualidade de Tocqueville!

DICA
Um dos maiores clássicos do pensamento político de todos os tempos:

DEMOCRACIA NA AMÉRICA, DE TOCQUEVILLE

FONTE: <https://bit.ly/3uShuoa>. Acesso em: 23 jul. 2020.

4.3 O ANTIGO REGIME E A REVOLUÇÃO



A observação do Tocquevile sobre a organização da Sociedade americana e os
rumos daquela nação, serviram muito para pensar o futuro da França e as tendências
das sociedades modernas. A França tornou-se cada vez mais sua preocupação. Se “A
Democracia na América” é uma mensagem de otimismo, “O antigo regime e a revolução”
tem um tom de advertência sobre onde pode levar o excesso de otimismo e a pressa
em “melhorar” o mundo de supetão. Todos sabemos que a França promoveu um dos
eventos mais importantes da história política do Ocidente, qual seja, a Revolução de
1789, pondo fim ao despotismo monárquico. Na França pós-revolucionária, Tocquevile
viu a redução das liberdades pelos liberais, que chegaram ao poder em 1830, bem como
o crescimento da intervenção do Estado no desenvolvimento econômico.

84
O que mais incomodava Tocqueville era a crescente apatia política e
aquiescência de seus concidadãos nesse crescente paternalismo. Seus capítulos sobre
o individualismo e a centralização em “Democracia na América” continham o gérmen
do que viria em “O antigo regime e a revolução”, isso é, um novo aviso com base nessas
observações. Ele argumentou que o despotismo não acentuado e de paternalismo
leviatânico que a França vivia, seria invisivelmente destrutivo à democracia. Tocqueville
reivindicava uma Sociedade atenta e ativa, tal qual ele via na América do Norte.

IMPORTANTE
O despotismo é uma forma de governo, na qual, o poder está
concentrado na figura de uma pessoa, que exerce o poder de
modo absoluto, sem paralelo. Por ser absoluto, é sinônimo de
absolutismo, comum entre os monarcas que governavam sem
parlamento. Por sinal, o que distingue o Estado moderno de
formas anteriores da ordem política é justamente a limitação do
poder absolutista e despótico, através da instauração de leis e da
posterior divisão dos poderes, sugerida por Montesquieu.

Em “O antigo regime...”, o filósofo francês trata primeiramente das causas da


revolução. Elas estariam relacionadas aos excessos despóticos da monarquia francesa,
marcados pelo autoritarismo, pelo centralismo, além da falta de autonomia da Sociedade
e o excesso de um corpo burocrático ineficiente, corrupto e cheio de privilégios. Aos
olhos do mundo e nos livros de história contemporâneos, a Revolução Francesa é um
marco da materialização de aspirações civilizatórias de primeira grandeza. Para muitos
de seus defensores, era a esperança de democracia e descentralização do poder. Nessa
perspectiva, vale lembrar do seu lema, estampado desde então na bandeira francesa:
“liberté, igualité et fraternité”.

FIGURA 17 – OS TRÊS ESTADOS DO ANTIGO REGIME: O CLERO, A NOBREZA E A BURGUESIA

FONTE: <https://bit.ly/3IhDRq>. Acesso em: 19 jun. 2020.

85
Para Tocqueville, a Revolução Francesa centraliza ainda mais a administração
da coisa pública. Se o regime monárquico, anterior à revolução, era absolutamente
contrário às liberdades individuais e coletivas, a Revolução Francesa declarava a defesa
geral da liberdade. No entanto, instaurado o novo regime republicano, as decisões e
atitudes subsequentes dos governos logo impuseram progressivas restrições. A
grande promessa era a igualdade de condições a todos. No entanto, os excessos e
as precipitações, o espírito de vingança e a sede de poder e controle, tanto quanto a
desconfiança interpessoal, resultaram em medidas restritivas e injustas. Nesse sentido
“o ódio ao antigo regime excedeu todos os outros ódios [...] e o medo de seu retorno
excedeu todos os outros medos” (TOCQUEVILE, 1997, p. 15).

Nessa perspectiva, nem a liberdade, nem a igualdade, tampouco a fraternidade


pareceu a Tocqueville um movimento em ascensão. Tal como fez o filósofo inglês
Edmund Burke (1729-1797), Tocqueville criticou a Revolução Francesa por ter destruído
instituições que, aos poucos, o próprio regime monárquico se encarregava de criar.
Ele via os problemas do antigo regime, mas também percebia que as pressões do
povo forçavam o regime a ceder. Via nesse processo um lento e controverso, porém
contínuo desenvolvimento na direção da democracia, da mesma maneira que Burke
o compreendia. O problema é que os revolucionários tinham pressa e como diz um
conhecido provérbio: “a pressa é inimiga da perfeição”.

IMPORTANTE
“O filósofo irlandês Edmund Burke (1729-1797) notabilizou-se pelo
seu ensaio “Reflections On the Revolution In France” (Reflexões sobre a
Revolução na França), publicado em 1790, no qual, desferiu duras
críticas à revolução que havia se desencadeado na França em 1789 e,
até então, prosseguia. Desde a época da publicação do referido ensaio,
Burke foi alvo tanto de detrações quanto de elogios. É considerado, hoje,
um dos países do conservadorismo político moderno”. Leia mais em:
https://bit.ly/3sZXa1z.

Todo modo, Tocqueville era um pensador liberal. Mesmo sua origem aristocrática
não fez dele um defensor da monarquia. Ao contrário, era um entusiasta da democracia,
como deixa absolutamente explicitado em “Democracia na América”. E, em “O antigo
regime...”, cabe-lhe demonstrar os equívocos da monarquia tanto quanto denunciar
as contradições da democracia francesa, que pareceu a ele mais um continuísmo de
antigos vícios do que instaurador de novas virtudes. Não escolheu nem um regime,
tampouco defendeu o outro. Foi crítico, comprometido com sua percepção das coisas,
sem compromisso com o engajamento parcial e interesseiro.

86
Para Alexis de Tocqueville, o importante era trazer à tona a necessária
controvérsia, o debate intenso e honesto, sem compromissos reacionário ou
revolucionário. Entender as coisas como elas são, na concepção moderna da ciência, foi
seu método, o método científico. Mas não se tratava do posicionamento radicalmente
imparcial e amoral (isento de moral) do qual fora acusado muitas vezes Machiavel. Não
fora essencialmente a favor ou contra qualquer revolução. Seu compromisso era com a
verdade, sua predisposição à mudança e sua convicção era democrática.

Assim, Tocquevile empenhou-se em denunciar a desumanidade, no antigo


regime tanto quanto no Estado dito democrático francês. Não hesitou em acusar o
regime revolucionário de violento e anárquico, que teria resultado essencialmente no
despotismo que tanto dizia ter combatido. Contudo, ao fazer a crítica, queria que os
erros fossem corrigidos e a vida política seguisse o curso em direção ao que considerava
historicamente irreversível: a democracia moderna, calcada na garantia das liberdades,
no asseguramento da justiça e na geração de oportunidades. Era um pensador moderno,
à frente do seu tempo, justamente reconhecido como inspirador do conservadorismo
liberal, para uns, ou do pensamento liberal-democrático, para outros. Aos amigos
confidenciava: queria “mostrar aos homens como escapar da tirania [...] eis a ideia de
ambos os meus livros” (TOCQUEVILE, 1997 p. 15).

87
LEITURA
COMPLEMENTAR
MACHIAVEL E A AUTONOMIA DA POLÍTICA

Paulo Silvino Ribeiro

O intelectual Nicolau Machiavel tratou principalmente sobre política na obra “O


príncipe”, descrevendo como o governante deveria agir e quais virtudes deveria ter a fim
de se manter no poder e aumentar suas conquistas.

Nicolau Machiavel, nascido na segunda metade do século XV, em Florença, na


Itália, trata-se de um dos principais intelectuais do período chamado Renascimento,
inaugurando o pensamento político moderno. Ao escrever sua obra mais famosa, “O
Príncipe”, o contexto político da Península Itálica estava conturbado, marcado por uma
constante instabilidade, uma vez que eram muitas as disputas políticas pelo controle e
manutenção dos domínios territoriais das cidades e estados.

Conhecer sua trajetória como figura pública e intelectual é muito importante


para que as circunstâncias nas quais este pensador pensou e escreveu tal obra sejam
compreendidas. Machiavel ingressou na carreira diplomática em um período em
que Florença vivia uma República após a destituição dos Médici do poder. Contudo,
com a retomada dessa dinastia, Machiavel foi exilado, momento em que se dedicou
à produção de “O Príncipe”. Esta sua obra seria, na verdade, uma espécie de manual
político para governantes que almejassem não apenas se manter no poder, mas ampliar
suas conquistas. Em suas páginas, o governante poderia aprender como planejar e
meditar sobre seus atos para manter a estabilidade do Estado, do governo, uma vez
que Machiavel conta sucessos e fracassos de vários reis para ilustrar seus conselhos e
opiniões. Além disso, para autores especializados em sua vida e obra, Nicolau Machiavel
teria escrito esse livro como uma tentativa de reaproximação do governo Médici, embora
não tenha logrado êxito num primeiro momento.

Outro fator fundamental para se estudar o pensamento Machiaveliano é o pano


de fundo da Europa naquele período, do ponto de vista das ideologias e do pensamento
humano. Ao final da Idade Média, retomava-se uma visão antropocêntrica do mundo (que
considera o homem como medida de todas as coisas) presente outrora no pensamento
das civilizações mais antigas como a Grécia, a qual permitiu o despontar de uma outra
ideia política, que não apenas aquela predominante no período medieval. Em outras
palavras, a retomada do humanismo iria propor na política a “liberdade republicana
contra o poder teológico-político de papas e imperadores”, como afirma Marilena Chauí

88
(2008). Isso significaria a retomada do humanismo cívico, o que pressupõe a construção
de um diálogo político entre uma burguesia em ascensão desejosa por poder e uma
realeza detentora da coroa. É preciso lembrar que a formação do Estado moderno
se deu pela convergência de interesses entre reis e a burguesia, marcando-se um
momento importante para o desenvolvimento das práticas comerciais e do capitalismo
na Europa. Assim, Machiavel assistia em seu tempo um maior questionamento do poder
absoluto dos reis ou de alguma dinastia, como os Médici em Florência, uma vez que
nascia uma elite burguesa com seus próprios interesses, com a exacerbação da ideia de
liberdade individual. Questionava-se o poder teocêntrico e desejava-se a existência de
um príncipe que, detentor das qualidades necessárias, isto é, da virtú, poderia garantir a
estabilidade e defesa de sua cidade contra outras vizinhas.

Dessa forma, considerando esse cenário, Machiavel produziu sua obra com
vistas à questão da legitimidade e exercício do poder pelo governante, pelo príncipe. A
legitimação do poder seria algo fundamental para a questão da conquista e preservação
do Estado, cabendo ao bom rei (ou bom príncipe) ser dotado de virtú e fortuna, sabendo
como bem articulá-las. Enquanto a virtú dizia respeito às habilidades ou virtudes
necessárias ao governante, a fortuna tratava-se da sorte, do acaso, da condição dada
pelas circunstâncias da vida.

Para Machiavel “... quando um príncipe deixa tudo por conta da sorte, ele se
arruína logo que ela muda. Feliz é o príncipe que ajusta seu modo de proceder aos
tempos, e é infeliz aquele cujo proceder não se ajusta aos tempos” (MACHIAVEL,
2002, p. 264). Conforme afirma Francisco Welffort (2001) sobre Machiavel, “a atividade
política, tal como arquitetara, era uma prática do homem livre de freios extraterrenos,
do homem sujeito da história. Esta prática exigia virtú, o domínio sobre a fortuna”
(WELFFORT, 2001, p. 21).

Contudo, a forma como a virtú seria colocada em prática em nome do bom governo
deveria passar ao largo dos valores cristãos, da moral social vigente, dada a incompatibilidade
entre esses valores e a política segundo Machiavel. Para Machiavel, “não cabe nesta imagem
a ideia da virtude cristã que prega uma bondade angelical alcançada pela libertação das
tentações terrenas, sempre à espera de recompensas no céu. Ao contrário, o poder, a honra
e a glória, típicas tentações mundanas, são bens perseguidos e valorizados. O homem de
virtú pode consegui-los e por eles luta” (WELFFORT, 2006, p. 22). Assim, essa interpretação
Machiaveliana da esfera política foi que permitiu surgir ideia de que “os fins justificam os
meios”, embora não se possa atribuir literalmente essa frase a Machiavel. Além disso, fez
surgir no imaginário e no senso comum a ideia de que Machiavel seria alguém articuloso
e sem escrúpulo, dando origem à expressão “maquiavélico” para designar algo ou alguém
dotado de certa maldade, frio e calculista.

Machiavel não era imoral (embora seu livro tenha sido proibido pela Igreja), mas
colocava a ação política (construída pela soma da virtú e da fortuna) em primeiro plano, como
uma área de ação autônoma levando a um rompimento com a moral social. A conduta moral

89
e a ideia de virtude como valor para bem viver na sociedade não poderiam ser limitadores
da prática política. O que se deve pensar é que o objetivo maior da política seria manter
a estabilidade social e do governo a todo custo, uma vez que o contexto europeu era de
guerras e disputas. Nas palavras de Welffort (2001), Machiavel é incisivo: há vícios que são
virtudes, não devendo temer o príncipe que deseje se manter no poder, nem esconder seus
defeitos, se isso for indispensável para salvar o Estado. “Um príncipe não deve, portanto,
importar-se por ser considerado cruel se isso for necessário para manter os seus súditos
unidos e com fé. Com raras exceções, um príncipe tido como cruel é mais piedoso do que os
que por muita clemência deixam acontecer desordens que podem resultar em assassinatos
e rapinagem, porque essas consequências prejudicam todo um povo, ao passo que as
execuções que provêm desse príncipe ofendem apenas alguns indivíduos” (MACHIAVEL,
2002, p. 208). Dessa forma, a soberania do príncipe dependeria de sua prudência e coragem
para romper com a conduta social vigente, a qual seria incapaz de mudar a natureza dos
defeitos humanos.

Assim, a originalidade de Machiavel estaria em grande parte na forma como


lidou com essa questão moral e política, trazendo uma outra visão ao exercício do poder
outrora sacralizado por valores defendidos pela Igreja. Considerado um dos pais da
Ciência Política, sua obra, já no século XVI, tratava de questões que ainda hoje se fazem
importantes, a exemplo da legitimação do poder, principalmente se considerarmos as
características do solo arenoso que é a vida política.

FONTE: <https://bit.ly/3IhLuxp>. Acesso em: 23 jul. 2020.

90
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Machiavel foi o inspirador da Ciência Política moderna.

• Machiavel sugere a autonomia da política pela separação da moral.

• Na política, segundo Machiavel, os fins justificam os meios.

• Que o fim, na política, é o poder.

• Montesquieu propõe a divisão do poder entre executivo, legislativo e judiciário.

• Para Montesquieu, a liberdade só existe no respeito aos outros e às leis.

• Liberdade de opinião, expressão e credo são a base da democracia liberal.

• Tocqueville descreveu as bases do republicanismo moderno.

• Tocqueville ajuda a compreender o significado de federalismo, associado às


formas de descentralização do poder.

• Tocqueville percebeu a associação entre cultura cívica e desenvolvimento.

91
AUTOATIVIDADE
1 O pensador renascentista Nicolau Machiavel é considerado o fundador da Ciência
Política, por sua forma inovadora de abordar as questões relacionadas ao Estado,
às disputas e à manutenção do poder por parte do governante. É considerada
moderna porque, ao invés de colocar a moral religiosa e teocêntrica no centro ou
como ponto de partida, ele resolve pensar antropocentricamente, isto é, a partir do
humano, de suas imperfeiçoes e necessidades.

Aponte as três principais características do “realismo político” que justificam a atribuição


de “pai” da Ciência Política a Machiavel.

2 No capítulo VI de sua obra: “O Espírito Das Leis”, Montesquieu lança as bases do


que configura o Estado moderno e permitiu o desenvolvimento institucional das
democracias: a divisão dos poderes, cuja inspiração ele percebe na organização da
ordem política inglesa e vê como uma tendência a ser replicada por outras nações.
Como Montesquieu concebe a hierarquia de poderes? E qual é o mais importante dos
poderes em sua concepção?

3 Quais são as vantagens e os perigos da democracia na perspectiva de Alexis de


Tocqueville?

92
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Crise de legitimidade. Tradução Moisés Sbardelotto. IHU – UNISINOS.
Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2015/04/20/agamben-crise-
delegitimidade/. Acesso em: 18 jun. 2016.

AGAMBEN, G. A Democracia é um conceito ambíguo. Blog da Boitempo, 4 jul.


2014. Tradução Selvino José Assmann. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.
br/2014/07/04/agamben-a-democracia-e-um-conceitoambiguo/. Acesso em: 19 abr.
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AGAMBEN, G. Como a obsessão por segurança muda a democracia. Jornal Le


Monde Diplomatique Brasil. 6 jan. 2014. Disponível em: http://www.diplomatique.org.
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AGAMBEN, G. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução Davi Pessoa Carneiro.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

AGAMBEN, G. Democracia e pós-ideologia se elidem. Entrevista com Giorgio


Agamben. IHU on-line. São Leopoldo, 2008. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.
br/entrevistas/12818-democracia-e-pos-ideologia-se-elidementrevista-com-giorgio-
agamben. Acesso em: 3 nov. 2011.

AGAMBEN, G. Note liminaire surle concept de démocratie. In: Démocratie dans quel
état? La Fabrique 2009. English translation Columbia University Press 2011.

AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique


Burigo. – Belo Horizonte UFMG, 2002.

ARISTÓTELES. A política. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes,
2006.

BAZZANELLA, S. L.; BIRKNER, W. M. K. Teoria política I. Indaial, Uniasselvi, 2020.

BOBBIO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos. Rio,
Elsevier, 2000.

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de


Janeiro: Contraponto, 1997.

DELLA PORTA, Donatella. Introdução à ciência política. Lisboa: Editorial Estampa,


2003.

93
FIORI, J. L. Estado de bem-estar social e crise. In: Instituto de Estudos Avançados
da Universidade de São Paulo – USP. Disponível em: http://www.iea.usp.br/
publicacoes/textos/fioribemestarsocial.pdf. Acesso em: 14 nov. 2019

LEBRUN, G. O que é poder. Tradução Renato Janine Ribeiro. Silvia Lara Ribeiro. São
Paulo: Abril Cultural: Brasiliense, 1984.

MANSFIELD, H. Nicolau Machiavelli: italian stateman and writer. In: Encyclopaedia


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MACHIAVEL, N. O príncipe: escritos políticos. Trad. Lívio Xavier. Coleção Os


Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1996.

MONTESQUIEU, C. de S. Do espírito das leis. Coleção Os Pensadores, vol. 1, São


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PLATÃO. A república. Tradução Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins
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POWELL, J. Biografía de Alexis de Tocqueville. In: Instituto Ordem Livre. Disponível


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RANCIÈRE, J. O ódio à democracia. Tradução Mariana Echolar. São Paulo: Boitempo,


2014.

ROSENFIELD, D. L. O que é democracia. São Paulo: Abril Cultural: Brasiliense, 1985.

SHACKETON, R. Montesquieu: frensh philosopher. In: Encyclopaedia Britannica.


Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Montesquieu. Acesso em: 21
nov. 2019.

TOCQUEVILE, A. de. O antigo regime e a revolução. 4. ed. Tradução de Yvonne Jean.


Brasília, UnB, 1997.

WOLFF, R. P. In defence of anarchism. New York, Harper, 1970. Disponível em: https://
theanarchistlibrary.org/library/robert-paul-wolff-in-defense-of-anarchism.pdf. Acesso
em: 15 nov. 2019.

94
ANOTAÇÕES

95
96
UNIDADE 2 —

O QUE É CIÊNCIA POLÍTICA:


ORIGEM, OBJETO E MÉTODO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• definir o significado da Ciência Política;

• compreender as origens desta Ciência;

• identificar os objetos que são propriamente politológicos;

• dimensionar o espectro do sistema político;

• perceber a influência comportamental das instituições políticas e sociológicas;

• conferir sentido à racionalidade do comportamento político;

• entender o papel dos partidos políticos;

• diferenciar representação e participação política.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará
autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – ORIGEM, OBJETO E MÉTODO


TÓPICO 2 – SISTEMA POLÍTICO, RACIONALIDADE E INSTITUIÇÕES
TÓPICO 3 – PARTIDOS POLÍTICOS, REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

97
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!

Acesse o
QR Code abaixo:

98
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
ORIGEM, OBJETO E MÉTODO

1 INTRODUÇÃO
A Ciência Política estuda evidentemente as coisas da política, tendo-as como
conjunto temático de investigação prioritário. Isso quer dizer que investiga as coisas
relacionadas à organização, aos acordos e disputas do poder formal e informal. Tem a ver
com a ordem política, o sistema político, as coisas do Estado, os três poderes constitucionais
e outros poderes sociais que ali interferem. Tem a ver com o conjunto de instituições
formais (legais) ou informais (culturais), com os partidos políticos e outras organizações
de união, força e representação. Tem a ver com representação de interesses, públicos,
setoriais e privados, com participação social, civismo, associação, cooperação, diálogo e
negociação, enfim, tem a ver com os comportamentos dos agentes políticos, que a rigor
todos somos, em busca da satisfação de suas aspirações e convivência coletiva. São as
coisas da “polis” as coisas do poder, o “diamante” da política.

Embora seja sua especialidade, as coisas da política não são sua exclusividade.
Outras ciências ou áreas do conhecimento estudam as coisas da política. Filosofia,
Sociologia, Antropologia, Economia, Geografia e História, além do Direito, é claro,
estudam os objetos da política. Num universo cognitivo interdisciplinar e, por isso
mesmo, em expansão, engenheiros, matemáticos, médicos, cientistas da computação,
físicos e biólogos estudam coisas da política, relacionando-as ou comparando-as
com fenômenos pertencentes as suas especificidades. Nessa perspectiva, áreas de
conhecimento, profissões e disciplinas vão se tornando mais e mais híbridas. Isso não
muda o fato sacramentado de que cada ciência continua tendo um campo investigativo
que lhe é de maior responsabilidade do que de outras, acontecendo o mesmo com a
Ciência Política.

A Ciência Política forma o cientista político, e ser cientista político é, literalmente,


ser um cientista da política (com o perdão da redundância). É diferente de ser um político.
É diferente de ser um ideólogo da política. É ser rigorosamente um cientista, isto é:
observar, pesquisar, analisar e interpretar a realidade, nos limites do que consegue ver,
nada menos, nada mais que isso. É dizer como a realidade lhe parece e não como gostaria
que a realidade fosse. Nessa perspectiva, a Ciência Política é o campo de investigação
e interpretação que exige rigor analítico e máxima imparcialidade possível, a fim de
que a compreensão das coisas seja a mais clara possível. Segue o velho pressuposto
metodológico sugerido pelo pensador político florentino Niccolo Machiavel, segundo
o qual, a compreensão da política exige declinar das paixões e da moral na hora de
entender as coisas como são.

99
Nessa perspectiva, a busca do entendimento das coisas requer a devida
separação entre o método científico e nosso ímpeto moral e ético. É o princípio da
investigação científica, válido para as coisas da natureza, como para as coisas da
sociedade, incluindo a políticas. Nesses termos, exige a separação entre ciência e
política, como sugeriu o sociólogo alemão Max Weber, em seu livro “Ciência e política:
duas vocações”. Nesta obra, o autor recomenda a isenção política ao estudar e ensinar
política. Qualquer coisa além disso é uma presunção dogmática e pode levar a graves
equívocos. Quando Weber escreveu esse livro, originalmente uma conferência em uma
universidade, estava criticando as atitudes de seus pares professores que insistiam em
fazer política em sala de aula. Ele reconhecia a inevitável paixão que a política causa e a
impossibilidade de sermos imparciais. Mas asseverava que na busca do entendimento
das coisas da política, as paixões mais prejudicam do que ajudam.

IMPORTANTE
CIÊNCIA E POLÍTICA: duas vocações

FONTE: <https://bit.ly/3KeBTrO>. Acesso em: 12 mar. 2020.

O propósito de Max Weber neste livro é fazer a distinção entre o que é a prática científica
e o que é o fazer política. O significado dessa empreitada é dizer ao público universitário
que a Universidade é lugar de fazer ciência e não política. Mas não se trata de uma postura
reacionária do autor. Trata-se da manifestação de seu incômodo com o fato de que o
engajamento político, proposto por parte dos docentes universitários na Alemanha de sua
época (da direita à esquerda) comprometerem o método científico nas ciências sociais. Ao
declinarem da imparcialidade no ato de interpretar a realidade política e sugerir como as
coisas deveriam ser e não como de fato são, docentes abriam mão, segundo Weber, da
ciência, para fazer proselitismo.

Na concepção do autor, ao professor cabe o exercício de sua função, com base em


conhecimento e experiências puramente científicas, sem que transpareçam suas próprias
concepções mediante o aprendiz. É imprescindível envolver-se no trabalho e nas exigências
cotidianas, no âmbito particular e vocacional.

100
Para um comprometimento científico, ao professor recomenda-se o desencantamento do
mundo – isto é, demonstrando que a realização das coisas para o destino dos homens depende
exclusivamente do esforço humano, sem qualquer recorrência a forças extra-humanas. As
explicações sobre a realidade, inclusive política, devem ser estritamente racionais. Nenhum
apelo ao irracional, isto é, à magia, à religião e à paixão por valores e ideais, será exitoso.

Todavia, Weber faz uma ressalva importante: todo esforço científico, portanto, racional,
deriva do irracional, isto é, de uma paixão por aquilo que vamos estudar e tentar
compreender racionalmente. A preferência estética e ou emocional pelo objetivo de nosso
interesse investigativo é uma condição muito importante, a bem da verdade, igualmente
recomendável.

Do mesmo modo que se recomenda a razão como único método de compreensão das
coisas, sugere-se a paixão, o interesse, pelo assunto que escolhemos investigar. Seja o
Estado, os partidos políticos, as ideologias, os regimes, os poderes e suas relações, as leis
e os costumes (instituições formais e informais), estudar racionalmente aquilo que nos
interessa: eis a fórmula científica, na qual o irracional e o racional se encontram.

Nessa perspectiva, o sociólogo alemão reconhece que a imparcialidade é


absolutamente recomendável como método. Não obstante, ao fazermos
nossas escolhas sobre o objeto que vamos investigar, ali revelamos nossas
preferências e paixões. Mas ali está o limite de nossas paixões na ciência,
isto é, na escolha do objeto, ao qual devemos nos dedicar criteriosamente,
logicamente, buscando evidências para nossas afirmações.

Assim, nossas escolhas de estudos são escolhas éticas. Procuramos


estudar aquilo que nos interessa. Se nos interessa estudar as coisas
da política, é porque a política nos apaixona. Nesse sentido, há uma forte
tendência de que projetemos nossas vontades sobre a política, desejando
que as coisas sejam de determinado modo, segundo as nossas preferências
estéticas e ou morais.

Todavia, na condição de cientistas, de investigadores, de professores etc.


precisamos entender as coisas como elas são. Se assim agirmos, isso será
o correto a fim de conhecermos. Portanto, antes que as coisas sejam como
queremos, é preciso que entendamos como elas funcionam. Só então,
podemos sugerir como poderiam ser, mas a partir deste momento já não
seremos mais cientistas. Seremos agentes políticos.

FONTE: <https://bit.ly/3CbG30X>. Acesso em: 24 jul. 2020.

O que fazemos depois com o que apreendemos sobre a política é outra coisa.
É claro que estudarmos para uma profissão e para o nosso intelecto, com o objetivo de
usar o conhecimento a nosso favor, inclusive do ponto de vista ético e moral. Fazemos
escolhas pessoais, éticas, morais e utilitaristas com o conhecimento adquirido e isso é
absolutamente legítimo. O conhecimento que a Filosofia Política e a Ciência Política nos
oferecem é usado por agentes políticos, por intelectuais e profissionais, seja do Direito,
do Serviço Social, da Economia ou qualquer outra área profissional. Pode ser usado
para o bem ou para o mal, resultante de escolhas éticas ou antiéticas de governantes,
legisladores, juristas ou advogados etc. Isso vale para qualquer um de nós, podendo
nos engajar em boas causas, lutar pelo que é justo, protestar contra as leis ou querer

101
mudar o mundo, não importa. É quando agimos por interesses, paixões e valores, seja
como for. É quando agimos. Mas, enquanto estudamos a realidade, querendo entendê-
la, devemos nos esforçar por compreender gostando ou não do que vemos.

É assim que a Ciência Política pode realmente nos ajudar a fazer do conhecimento
o uso que nos convier. Reconheça-se, que seja muito difícil estudar os comportamentos
humanos nas disputas pelo poder e no estabelecimento e cumprimento das regras
de convivência. Em política com frequência há distinções entre a palavra e a ação e
isso não deve ser ignorado, nem ocultado ao contrário. Isso serve para o estudo das
instituições políticas e para as leis em geral, que revelam, mas podem ocultar intenções
e devemos perseguir os seus significados e efeitos. Com muito esforço intelectual,
e levando isso em consideração, cientistas políticos conseguem, como em qualquer
ciência, estabelecer regras de entendimento, conceitos e leis interpretativas que geram
teorias. Esse conhecimento pode aprimorar a confecção de leis e melhorar as decisões
governamentais e pessoais. É assim que esperamos que o acadêmico entenda a
utilidade da Ciência política.

2 UM ENTENDIMENTO CONCEITUAL: ORIGEM, OBJETO E


MÉTODO
A Ciência Política surgiu com esta denominação ao final do século XIX, emergindo
do interior da Filosofia Política, mais especificamente da Filosofia do Direito. Além disso, deve
parte de sua origem à História. E, pelas convenções que são próprias às ciências, a Ciência
Política acabou por compor o tripé do que denominamos de Ciências Sociais, quais sejam,
a Sociologia, a Antropologia e a própria Ciência Política. Trata-se do reconhecimento de que
essas três ciências têm em comum o estudo das relações entre indivíduo e sociedade, cada
qual com suas especificidades de investigação. A da Ciência Política, como já dissemos,
está relacionada às disputas de poder e à organização da vida coletiva, sempre sob a
ótica do poder e, indispensavelmente considerada a relação entre Estado e Sociedade. Na
Alemanha, ela surgiu com o nome de Staatwissenschaft-- Ciência do Estado. Enquanto
isso, na Itália e na França, vingou como “Ciência Política” (BOBBIO, 1991, p. 164).

Por volta da metade do século XIX, desenvolveu-se na Alemanha um esforço


intelectual de estudar, específica e obsessivamente as coisas relacionadas à ordem
política. O interesse estava concentrado nas coisas da administração pública, como
também nas instituições políticas, isto é, as leis e regras, seus significados e eficácia.
Robert von Mohl e Lorenz von Stein, além de Ludwig Gumplowicz e Karl Marx estiveram
entre os precursores. Na França, com Saint-Simon e Auguste Comte, na Inglaterra, com
os darwinistas sociais como Herbert Spencer e na Itália, com Attilio Brunialti e Gaetano
Mosca. Evidentemente, eles se debruçaram sobre os clássicos da Filosofia política, como
Aristóteles, Platão, Machiavel, Montesquieu, Tocqueville, John Locke, Hobbes, Rousseau
e Kant. Foram buscar os fundamentos sólidos do pensamento político ocidental, antes
de se debruçarem sobre os problemas políticos de seu tempo.

102
Feito isso, esses precursores da Ciência Política passaram a se distanciar,
progressivamente, da Filosofia Política, do Direito e da História para se debruçarem
sobre os problemas da organização e funcionamento do Estado moderno em sua época,
a segunda metade do século XIX. Interessavam-se em compreender os fenômenos
especificamente políticos, notadamente os assuntos de Estado, as rotinas das
decisões, as forças em jogo e os resultados dos jogos de poder, incluindo as relações
entre os poderes, os efeitos das leis e os problemas da burocracia estatal. Passaram
a compreender que os problemas e insuficiências do funcionamento do Estado não
estavam restritos ao heroísmo e liderança de grandes líderes. Tratava-se tanto quanto
de uma racionalidade cotidiana, de características da burocracia, de profissionalismo,
entre outros fatores que vão além de boas intenções e sugestões.

Embora tenha surgido em fins do século XIX, é somente no pós-guerra que a


Ciência Política passa a ser definida com o maior rigor metodológico, circunscrito ao
método científico. Na sua origem, portanto, esta ciência tinha uma carga filosófica que
lhe era predominante. Isso quer dizer que seu pensamento, suas análises e teorias se
constituíam mais dedutivamente do que indutivamente. A dedução é consequência
de um pensamento lógico, mas carece de indução empírica, isto é, pode-se formular
um bom argumento sem que haja a comprovação empírica do que se afirma. Isso
não é demérito à Filosofia, um campo de conhecimento lógico e de livre pensar. Mas
o que distingue a Filosofia política da Ciência política é principalmente esse detalhe
metodológico, isto é, enquanto a primeira é dedutiva, a segunda é predominantemente
indutiva. Isso quer dizer que, na Ciência, induzimos vários casos empíricos para verificar
o que há de regularidade neles. Só então se fazem as afirmações.

NOTA
“Pós-guerra” é a denominação atribuída a períodos que se seguem a uma
guerra. Normalmente, o período reflete as problemáticas causadas pela
guerra, como crises sociais e econômicas, e as consequências políticas e
geográficas do conflito bélico. Na historiografia mais contemporânea, o
pós-guerra quase sempre se refere ao período entre 1945 e 1955, ou seja,
após a Segunda Guerra Mundial.

FONTE: <https://educalingo.com/pt/dic-pt/pos-guerra>. Acesso em: 12 mar. 2020.

Dessa forma, é preciso insistir na distinção científica, alertando o leitor para a


circunstância de que a Ciência Política não emite opiniões sobre os acontecimentos e
comportamentos dos agentes políticos. Por extensão, prefere os diagnósticos e evita
os prognósticos, atendo-se ao presente, não se atrevendo a prever o futuro. Muito
menos, trata de apresentar dogmas, verdades morais, ideologias sobre as fórmulas ou
programas aconselháveis e desaconselháveis. Na análise politológica, as paixões e as
ilusões devem dar lugar à busca obsessiva pela compreensão racional e empiricamente

103
demonstrável da realidade. É assim que separamos o rigor científico do senso comum.
Nesse sentido, com o objetivo de distinguir a Ciência política de outras áreas do
conhecimento humano, a politóloga italiana Donatella Della Porta (2003) apresenta a
seguinte explanação:

1. A ciência política distingue-se da filosofia política, quando exclui


do seu âmbito juízos morais, prestando atenção à recolha e análise
dos dados empíricos;
2. A ciência política se distingue do direito público, quando a pesquisa
se concentra em processos reais, de preferência aos formais-legais;
3. A ciência política se distingue da história, quando a análise dos
dados empíricos visa mais uma generalização do que conhecimentos
circunscritos a uma realidade específica no espaço e no tempo
(DELLA PORTA, 2003, p. 14).

NOTA
O método empírico tem a ver com a verificação experimental do
objeto estudado. Assim, a pesquisa científica é um procedimento em
que o pesquisador verifica in loco o fenômeno que está investigando.
Nas ciências sociais, o método empírico é chamado de pesquisa de
campo, sendo realizado por meio de entrevistas, pesquisas de opinião
e pesquisa documental.

Nessa perspectiva, a Ciência política estuda, investiga e analisa a política


tal como ela se apresenta na vida real e não como ela deveria ser, o que faz lembrar
Machiavel e o realismo político. Essa é a distinção maior da ciência como um todo de
outras formas de conhecimento. Assim, o foco da Ciência política está nos processos
reais e não nos aspectos formais e legais. Isso porque, com frequência, o que diz a
lei não é rigorosamente o que acontece no mundo real da política. É claro que as leis
constrangem os comportamentos, mas são vulneráveis se não são bem-feitas. Além
disso, tendem a exprimir o mundo ideal e de formal interesse público, enquanto no mundo
real os indivíduos possuem outros interesses, expressando eventuais discordâncias
em relação às leis. Por extensão, também devemos considerar que as leis também são
elaboradas por homens em disputas, fazendo com que as leis escondam interesses
setoriais e nem sempre gerais.

2.1 O PODER
Embora vimos o conceito de poder na primeira unidade deste livro didático, é
importante retomar o tema, não apenas por ser o objeto principal da Ciência política, mas
por seus desdobramentos interpretativos. Nessa direção, cabe dizer que a perspectiva
estritamente científica que começa a se intensificar em meados do século XX, concentra-

104
se nos fenômenos de disputa pelo poder. Antes, ainda havia abordagens de cunho legal
sobre a política, valorizando a importância das leis como o fator explicativo maior para o
funcionamento da ordem política. As abordagens norte-americanas na Ciência política
se contrapuseram a essa perspectiva tipicamente europeia. Nessa direção, a Escola
de Chicago, promovendo a interdisciplinaridade entre economia e política passou a
centrar seus esforços no funcionamento real das coisas, levando em consideração os
comportamentos dos agentes políticos e suas motivações.

A focalização nos aspectos “reais” do cotidiano político em lugar da forma da


lei ampliou a consciência política, principalmente com a intensificação da pesquisa
empírica. Através dela, a aplicação de questionários e de entrevistas passou a fazer
parte da rotina desta ciência. E, mais do que o interesse pelas formas de organização
política através das leis, a preocupação principal passou a ser com os jogos de poder.
Até então, partia-se, prioritariamente, do pressuposto segundo o qual a ordem política
é o resultado das aspirações de um povo, como sugere a filosofia política alemã de
Hegel. Agora, partia-se do pressuposto de que a ordem política é o produto de disputas
e acordos políticos, algo sugerido por outro filósofo político alemão, Carl Schmitt, ao
afirmar que a política se exprime simplesmente na relação amigo-inimigo.

NOTA
A Escola de Chicago é uma denominação que, na Sociologia, se refere a
um grupo de cientistas sociais que, a partir da década de 1950, produziu
inúmeros trabalhos de pesquisa de campo na área da Sociologia e
da Ciência política. Além da tradição na pesquisa empírica, promoveu
importante aproximação interdisciplinar entre política e economia para
o estudo dos comportamentos dos indivíduos na esfera política. Dentre
os principais nomes da Escola de Chicago, destacam-se: Florian Znaniecki,
Robert E. Park, William I. Thomas, Louis Wirth e Robert McKenzie, entre
muitos outros.

FONTE: <https://bit.ly/3hBFDYk>. Acesso em: 12 mar. 2020.

A definição clássica do poder, nos remete à ideia de fazer o outro ou os outros


agirem de acordo com a nossa vontade. Isso pode significar que os outros ajam contra
suas vontades, mas também podem ser convencidos a agir de acordo com suas
vontades. É a diferença entre coação e persuasão. A primeira forma é característica
do ato autoritário, seja de uma pessoa sobre a outra, de um comandante sobre seus
subordinados, seja de um governo sobre o seu povo. A segunda forma é a democrática,
não dependendo propriamente da força física, legal ou moral e sim da capacidade de
convencimento. Na tipificação clássica de do sociólogo alemão Max Weber, “por poder,
deve-se entender a faculdade de encontrar obediência, junto de certas pessoas, a uma
ordem com um determinado conteúdo” (WEBER, 1991, p. 33).

105
Vários são os dispositivos, isto é, os recursos possíveis ao exercício do poder.
Como lembra Della Porta (2003), o primeiro dos dispositivos do poder é a força. Nessa
ótica, percebemos que em geral nosso modo de vida na polis, isto é, em sociedade, é
amplamente regulado por leis, normas e regras constitucionalmente respaldadas (nem
sempre), que limitam nossa liberdade de ação e de satisfação das nossas vontades
pessoais. Isso vai desde as obrigações com a propriedade, passa pelo lazer e pelo
trabalho, como na convivência diária em sociedade. Nossa desobediência nos custa
reprovações e punições. O poder que o sistema de vida político tem de nos ameaçar
e meter medo é ilimitado. Vai desde a ameaça física, passando pelas pressões morais,
até as psicológicas. E os instrumentos não são apenas legais e normativos em geral,
mas dependem dos recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados, no que os drones
serão os maiores exemplos.

O segundo recurso de exercício do poder é o ideológico. O uso das ideias é


um dispositivo, em geral, indispensável para a legitimação do mando e justificação
da obediência. Nesse sentido, percebemos como é necessário que o convívio social
depende de narrativas e justificações para a compreensão e aceitação da realidade
como se nos apresenta. Assim, desenvolvemos politicamente regras de comportamento
para vivermos com os outros e as utilizamos, na forma de símbolos, isto é, palavras
e gestos, escolhas e exemplos, a fim de representar nossos sentimentos, intenções e
expressar nosso desejo de aprovação social. Portanto, desejando conviver em sociedade
e extraindo os benefícios disso em termos de proteção e bem-estar, submetemo-nos
ao poder das ideias que nos é imposto, regulando nossas liberdades.

E o terceiro dispositivo típico do poder é o econômico. Através dessa forma,


aqueles que têm a posse dos recursos materiais, seja lá como a tenham obtido, por
usurpação ou por empreendedorismo, submetem os outros as suas influências, ao
seu comando e as suas vontades. Tipicamente, isso se sucede nas relações entre o
empregador e o empregado. Na forma civilizada, se estabelece a partir de um contrato
em que o detentor dos meios de produção paga um salário em troca do dispêndio da
força de trabalho do contratado, que aceita submeter-se às orientações do contratante.
E, pensando propriamente na ordem política, acontece por meio da influência que os
proprietários do capital exercem no interior do poder político, legal ou ilegalmente.
Por último e não menos importante, o poder de influência também o exerce a parte
organizada da sociedade civil, que faz valer suas demandas, pela capacidade de
organização e pressão sobre o poder político.

Com isso, podemos afirmar que o poder se desconcentra, historicamente até


certo ponto, nas sociedades democráticas e constitucionais. Podemos lembrar que o
Estado é o maior detentor do poder, porque, como faz lembrar mais uma vez o sociólogo
Max Weber (apud BOBBIO, 1991), é o Estado que tem o monopólio exclusivo do uso
da força. Em outras palavras, é a ordem política institucionalizada que, em nome dos
interesses gerais de um povo e respaldado na lei, faz cumpri-la, seja pela advertência,
seja pela punição, com seu poder de polícia. Todavia, a democracia constitucional

106
evoluiu sob as pressões da sociedade, pelo mecanismo das eleições, conjugado ao
aumento da informação, das liberdades civis e do aumento da instrução. Uma coisa leva
a outra e o produto político concreto tem sido o Estado de bem-estar e de direitos. Isso
foi conduzindo o interesse da Ciência Política, cada vez mais a investigar a distribuição
do poder na sociedade.

3 AS TEORIAS ELITISTA E PLURALISTA


Nessa perspectiva investigativa surgem duas importantes escolas de
pensamento politológico, comprometidas em responder às perguntas clássicas
inerentes à distribuição do poder na Sociedade Contemporânea, quais sejam: 1) Quem
tem poder? 2); quais são os recursos do poder e 3); Quantos são os que têm poder?
(DELLA PORTA, 2003).

Segundo Della Porta, a primeira corrente investigativa e analítica sobre a


distribuição do poder foi a denominada escola elitista. Segundo essa tendência, seja
qual for a sociedade, em qualquer tempo, sempre houve e sempre haverá uma minoria
dominante a controlar a maioria dos recursos políticos, econômicos e cognitivos. Trata-
se das elites de cada sociedade, um grupo restrito de pessoas que têm interesses e
atitudes mais ou menos monolíticas, por necessidade de preservação do poder. São
esses indivíduos e grupos que detêm a maior fatia de poder, capacidade de influência
e difusão de ideias que garantem o seu bem-estar. Os fundadores dessa escola são
os cientistas políticos italianos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, além do alemão
naturalizado italiano Robert Michels. Eles se esforçaram em compreender e definir as
características e estratégias desses grupos de poder, percebendo que mesmo nas
democracias empenhadas na igualdade, as elites não perdem seu poder.

Nos Estados Unidos, avançaram as pesquisas e análises correspondentes às


relações entre os recursos políticos, econômicos e ideológicos que caracterizam as elites.
Nesse sentido, muitos trabalhos passaram a revelar como o poder de certos grupos e
mesmo famílias controlava os processos decisórios, edificando estruturas de influência
e redes de relações a explicar o domínio das elites. Não apenas os comportamentos
das elites foram observados com esse fim elucidativo. Algumas vezes, o método de
investigação partia do extremo oposto, observando como cidadãos comuns atendiam
as suas necessidades. Dessa maneira, ao observar os hábitos de consumo, a busca de
satisfação de usas necessidades cotidianas por trabalho, saúde, educação, cultura e
lazer, os pesquisadores identificavam as redes de dependência da maioria aos serviços
a certos agentes das elites econômicas e políticas.

Nessa linha de interpretação, a detenção dos recursos econômicos acabava


aparecendo como a principal fonte de poder, influenciando o poder político e o
ideológico. Em termos simples, quem tem o capital, procura preservar seus negócios,
sua exclusividade, comprando poder político onde ele está institucionalizado (no

107
legislativo, no executivo e no judiciário). Por extensão, “compra”, financia, patrocina e
direciona os meios de comunicação (jornais, rádios, revistas, televisão, redes sociais,
escolas, universidades etc.), interferindo na formação da opinião pública. Pesquisadores
como o sociólogo estadunidense Floyd Hunter, autor de “Community Power Structure”
(apud STONE, 1988), demonstraram como o poder dos negócios interfere nos assuntos
cívicos de cidades típicas dos EUA.

FIGURA 1 – PRINCIPAL TRABALHO DO SOCIÓLOGO ESTADUNIDENSE FLOYD HUNTER

FONTE: <https://amzn.to/3vwMiv3>. Acesso em: 28 fev. 2020.

Pode-se depreender que isso aconteceu e ou acontece na maior parte do


mundo, em que empresários ocupam funções de liderança na comunidade, local,
regional ou nacional, como Hunter demonstrou (apud DELLA PORTA, 2003, p. 26-27).
O poder econômico interfere, não há dúvidas e não é necessário ser cientista político
para sabê-lo. Com dinheiro, é possível “comprar pessoas”. A expressão é vulgar, mas
todos entendemos claramente o que isso significa. Tendo seus interesses de realização
e enriquecimento, os agentes do poder econômico tendem a achacar os agentes que
têm poder político. Eles o fazem porque, bem no fim, são os agentes do poder político
institucional (dos três poderes), os responsáveis pelos processos decisórios que
determinam como as coisas venham a ser. E é no curso de cada decisão institucional
que os agentes do poder econômico tentam interferir, com razoável êxito, a considerar
todo o tipo de relacionamento entre o capital privado e os agentes governamentais, de
que se tem notícia diariamente nos jornais.

Mas duas coisas devem ser observadas. A primeira diz respeito à valorização da
pesquisa empírica, o que distingue a ciência de outras formas de conhecimento. Sim,
porque uma coisa é deduzir que assim seja e que seja assim até hoje. É absolutamente
normal que sejamos induzidos a pensar, imaginar e deduzir, segundo a nossa
capacidade de raciocínio e entendimento lógico das coisas. Assim formulamos nossos

108
pensamentos sobre as coisas da política e deduzimos, mesmo sem comprovação. Outra
coisa, no entanto, é demonstrar que certas coisas acontecem, através dos resultados
de pesquisas empíricas e explicar como exatamente isso acontece, a fim não apenas
de saber disso, mas de saber como as coisas funcionam no sistema e quem as opera.
Esse é o trabalho da Ciência Política, não se reduzindo a deduções bem argumentadas
ou a achismos vulgares. O método científico é imprescindível, para que não tenhamos
dúvidas e fiquemos no “disse, me disse”. É, sobretudo, para que encaremos as coisas
com realismo e tenhamos atitudes realistas sobre a realidade. A ciência nos “finca os
pés no chão” e nos permite não apenas melhor entendimento, mas, diante da sapiência,
fazer as melhores escolhas.

A segunda observação sobre o importante esforço da teoria elitista é lembrarmos


que estamos falando de situações pesquisadas na segunda metade do século XX. Desde
lá, seja nos Estados Unidos, na América do Norte, Na América do Sul, na Europa, na África
ou na Ásia, o avanço da democracia e mesmo do desenvolvimento econômico, onde
ele realmente ocorre, houve mudanças. As mudanças podem ser lentas e admita-se
que em alguns lugares sequer aconteceram até hoje, em termos políticos, econômicos
e educacionais-culturais. Mas o fato é que instituições democráticas avançaram em
muitas nações e a distribuição do poder foi alterada. As elites continuam existindo e o
poder econômico inclusive, mas também a mobilidade social acontece nas sociedades
democráticas constitucionais. E a distribuição do poder, que sempre estará em alguns
lugares, também sofre mobilidade e está mais desconcentrado. É um assunto que
trataremos na Unidade 3.

3.1 A TEORIA PLURALISTA


De todo modo, a escola elitista foi submetida à crítica por importantes cientistas
políticos. O maior inspirador desse movimento crítico e atuante pesquisador foi o brilhante
politólogo estadunidense Robert Dahl (1915-2014), formulador do conceito de poliarquia.
Esse grupo de cientistas percebeu uma estrutura pluralista na composição do poder em
sociedade, em que o poder estaria distribuído entre elites institucionais formais e não
institucionais, ou seja, informais. Em sua famosa obra “Who Governs? Democracy and
Power in an American City”, publicado primeiramente pela Editora da Universidade de
Yale, em 1961, Dahl demonstra como os recursos políticos, econômicos e simbólicos se
distribuem de maneira dispersa entre os vários grupos de poder. Demonstrou isso por
meio de um estudo de caso. Reconstituindo a história da cidade de New Haven, em
Connecticut, o autor demonstra como o poder era inicialmente bem identificado entre
os agentes que detinham a riqueza econômica e posições sociais correlatas.

Mas, com o tempo, Dahl demonstra, que o poder político adquire uma aura
de autonomia em relação aos outros poderes. Progressivamente, o poder político se
destaca e passa a residir na habilidade de governantes, legisladores, entre outros,
de estabelecer acordos, consensos e redes de cooperação e compromisso entre os

109
inúmeros grupos sociais. No caso particular de New Haven, Dahl observa isso por
ocasião das discussões e decisões tomadas no processo de reconstrução do plano
de saneamento da cidade. Durante muito tempo, a projeto não andava por interesses
díspares, mas, com o tempo, pelo esforço de alguns agentes-chave com capacidade de
diálogo, o projeto começa a ter movimento, através do estabelecimento de ampla rede
de apoio ao presidente do legislativo municipal. Robert Dahl consegue demonstrar, em
detalhes, como o principal líder do processo conseguiu comprometer a todos com o
projeto, negociando tais apoios em troca de garantias a cada grupo. Isso deixou claro
o quanto o poder estava disperso socialmente.

NOTA
Poliarquia, literalmente, quer dizer poder de muitos. Conceitualmente, é
um termo sugerido pelo cientista político estadunidense Robert Dahl, e diz
respeito a um regime em que existe um “elevado grau de institucionalização
da competição pelo poder, isto é, de existência de regras claras, públicas e
obedecidas, associadas à extensa participação política”.

FONTE: <https://bit.ly/35k5XUp>. Acesso em: 13 mar. 2020.

Robert Dahl demonstra bem como o presidente da Câmara de vereadores


de New Haven, Dick Lee, angariou os apoios necessários em vários segmentos da
sociedade. O líder do legislativo começou pelas outras lideranças do seu partido,
percebendo como cada um deles tinha poder de voz e influência sobre o eleitorado.
Diferente do conhecido preconceito de que saneamento não dá voto, Lee discutiu
com as lideranças partidárias como uma boa explicação e, sobretudo, a união das
lideranças em torno do projeto, sensibilizaria os cidadãos. Mesmo os mais céticos em
relação ao projeto convenceram-se dos ganhos eleitorais e evidentemente sociais da
empreitada. O líder do partido oponente foi convencido, assim como os diretores dos
serviços municipais, os banqueiros, os industriais fabricantes e os comerciantes em
geral. Também houve apoio da Universidade de Yale, de muitos de seus docentes, além
do apoio de grupos étnicos e líderes sindicais, entre outras entidades importantes da
cidade (DELLA PORTA, 2003).

Com esse estudo de caso, tipicamente politológico, o cientista político Robert


Dahl demonstrou como o presidente da Câmara de vereadores e sua equipe conseguiram
exercer um poder maior que outros agentes tradicionais, portadores de força econômica
e ideológica. Conquanto essa seja a tônica do livro, o estudo também demonstra como
cada grupo de poder poderia ter usado seu poder para criar obstáculos à empreitada.
Isso inclui o conjunto de eleitores, que afinal decidem quem deve se eleger e quem
deve sair. Nessa perspectiva, o líder do legislativo municipal se vê obrigado a criar
várias estratégias de recomposição do projeto para persuadir os diversos interesses e
pontos de vista que a comunidade apresentava. Nessa perspectiva, devemos perceber,

110
segundo Dahl (Apud BOBBIO, 1991), que o poder não reside simplesmente no cargo ou
no status de quem o ocupa, tampouco se resume ao poder econômico. Isso acontece,
notadamente, em ambientes democráticos, em que o poder é dissipado e relacional,
isto é, está distribuído entre muitos agentes e depende da capacidade de estabelecer
relações para concretizar objetivos.

Nessa perspectiva relacional, as contribuições de Dahl levaram pesquisadores a


prestar mais atenção às circunstâncias e condicionantes segundo as quais as relações de
poder se estabelecem e como interligam os vários agentes. Não se tratava simplesmente
de identificar os agentes com mais, com menos poder e sem poder, segundo os status
dos agentes, como sugere a teoria elitista. Esta última pressupõe que sempre há uma
elite a determinar as decisões e isso faz muito sentido. Não se descarta essa teoria, já
que em sociedades fechadas e tradicionais é assim que acontece, geralmente. O poder
pode estar razoavelmente concentrado na pessoa de um empresário, de alguns poucos,
de uma liderança política carismática ou de um grupo. Um exemplo, entre vários, é a
influência que a maçonaria exerceu em momentos importantes da história política
brasileira (TORRES, 2016).

Mas essa teoria precisa ser relativizada. Acontece que, em ambientes


institucionalmente democráticos contemporâneos em que nós vivemos, o poder se
encontra muito mais dissipado e as circunstâncias, em cada momento, podem fazer
com que o poder pese mais aqui ou ali. Nesse sentido, também se pode dizer que a
competição é aumentada e os resultados são menos previsíveis. O diálogo, a capacidade
de persuasão, de costurar acordos, a cooperação entre certos grupos de interesses,
tendem a prevalecer sobre as formas estáticas do poder tradicional. Nessa perspectiva,
é podemos imaginar: uma pequena cidade de seis mil moradores e identificar o poder
no prefeito, que é neto do grande proprietário de terras, plantador de uma commodity
agrícola e maior criador de gado da região. Outra é imaginar uma cidade de 300 mil
habitantes, com três mil indústrias, sindicatos, ONGS, associações, universidades,
veículos de comunicação e uma população informada e exigente na qual o poder estará
muito mais dissipado.

Enquanto a teoria elitista sugere a tradicional concentração de poder, a teoria


pluralista reconhece que o poder exibe uma tendência à desconcentração. O cenário
político dos teóricos elitistas é um pouco diferente aos teóricos do pluralismo, que
tem como referência as primeiras décadas do século XX. Em outros termos, a escola
elitista, com todo o significado e a utilidade analítica e interpretativa de suas premissas
e conclusões, tem origem em contextos de observação mais autoritários, tradicionais,
excludentes e de hierarquias mais rígidas. O cenário geográfico de Mosca, Pareto e
Michels é relativamente distinto do contexto temporal e geográfico de Robert Dahl e
seus seguidores. No primeiro caso, trata-se de uma sociedade mais tradicional, qual
seja, a de nações europeias, como Itália, Alemanha, França, Inglaterra etc. Com todo o
processo de modernização política pelo qual passaram essas nações, suas estruturas e
cultura políticas têm uma extensão histórica maior e raízes em passado mais longevo.
Isso sempre tem reflexos, maiores ou menores no presente e tendo a ver com o tempo.

111
Do outro lado, está a escola pluralista, que surge no início da segunda
metade do século XX, passada a Segunda Guerra Mundial. E nasce nos Estados
Unidos da América, uma nação que, desde o seu surgimento, está caracterizada por
significativa desconcentração do poder. Por intermédio da historiografia e por estudos
remanescentes da sociologia, como em “Democracia na América”, de Tocqueville,
sabemos que o Estado norte-americano é o resultado de um processo chamado
“bottom up”, ou seja, de baixo para cima. Nesse sentido, precisamos reconhecer que a
sociedade estadunidense participou, desde o início da constituição da ordem política
de seu País. Constituída dessa maneira, a população dos EUA soube preservar, através
de garantias constitucionais, grande autonomia federativa e individual. Isso significa
uma sociedade com alto capital social, facilitando a emergência de lideranças com
mais facilidade, desconcentrando o poder.

NOTA
Capital social é um conceito que diz a respeito às normas informais,
hábitos e relações de cooperação e confiança entre indivíduos numa
comunidade. A ideia será tratada na Unidade 3 deste livro didático.

Essa autonomia federativa, existente nos Estados Unidos, se reflete, na prática,


em uma sociedade mais democrática e menos desigual. Aliada a um grau de instrução
e educação acima da média mundial, isso promoverá, com o tempo, uma sociedade
constituída de indivíduos mais autônomos e responsáveis sobre as suas vidas. Em
outras palavras, os indivíduos que nascem em ambientes democráticos constituídos
com muito empenho pelos seus antepassados desde a fundação da Nação, tendem a
ser menos dependentes do Estado central e civicamente mais responsáveis pelas suas
vidas, seja do ponto de vista individual ou coletivo. Indivíduos assim são cidadãos de
fato, mais informados e comprometidos com as coisas da política. São também mais
empreendedores. Tudo isso compõe o cenário geográfico e temporal que os teóricos do
pluralismo tiveram a sua disposição para estudar a distribuição do poder.

3.2 A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES


Está certo que devemos tomar cuidado para não criarmos uma ideia de “tipo
ideal” sobre sociedade alguma. O que, em geral, diferencia as sociedades não é a
parabólica passagem “da água para o vinho”. As diferenças são graduais, um pouco
mais aqui, um pouco menos ali e começamos a entender as diferenças no mundo
real, tem sempre múltiplas, complexas e sensíveis razões. São detalhes institucionais,
valores, costumes, circunstâncias que explicam porque certas coisas funcionam melhor
em alguns países, estados, microrregiões ou cidades. Por que a média salarial de um

112
país é melhor? Não é somente a economia que explica. Por que a média instrucional, a
desigualdade social, os índices e as condições de saúde ou o nível tecnológico, ou ainda,
de expressão das liberdades, é maior ou menor, aqui e ali? Vários são os fatores. Com
isso, não há a menor dúvida: em relação a todos, o fator político é sempre importante.
Mais que isso, é preciso dizer: as melhores condições estão quase invariavelmente em
que o poder é mais desconcentrado.

3.3 A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES


Assim, como a desconcentração do poder é uma tendência nas democracias,
também a interdependência entre os poderes político, econômico e ideológico é um
fato constante, pode-se dizer, uma regularidade. É uma lei científica, o que quer dizer
que foi verificada e comprovada ao longo do tempo.

A influência do poder econômico sobre o poder político é observável sempre


que a procuramos. Isso acontece por várias razões óbvias. Como faz lembrar o sociólogo
italiano Gianfranco Poggi, em “Il gioco dei poteri” (1998 apud DELLA PORTA, 2003, p. 28),
a existência de instituições como a propriedade privada, os contratos (de trabalho, de
compra e venda etc.), profissões, as sucessões hereditárias, a economia de mercado, as
empresas, o sistema bancário, seguros e toda uma parafernália de fatores econômicos
adjacentes, não há como a política ser isenta da influência da economia. Dentro de suas
competências de manutenção da ordem e de sua condição de monopólio do uso da lei, o
Estado trata de garantir o bom funcionamento da economia. Nesse processo é bastante
comum que os governos usem de artifícios de “socialização dos custos”, fazendo com
que toda a sociedade arque com a sustentação de incentivos a segmentos privados.

Em termos genéricos é o que conhecemos por intervencionismo governamental,


ou estatal. Em termos específicos é o que denominamos de protecionismo, isso
é, a prática de proteção, de favorecimento de segmentos da economia, contra
concorrências externas. Essa atitude é bastante comum e justificada em razões nobres
como a necessidade de proteger a indústria nacional de concorrências desleais. Com
frequência, essas razões podem até ser aceitas do ponto de vista dos interesses
nacionais estratégicos. Mesmo que as intenções sejam boas, o fato é que isso sempre
tende a gerar relações promíscuas entre o poder político e o poder econômico. E,
de algum modo, o Estado usa do patrimônio público para favorecer determinadas
empresas privadas. Quando não é isso, favorece a manutenção de empresas estatais
cuja sobrevivência não é autossustentável, dependendo de aportes governamentais,
cuja origem é dos impostos cobrados de toda a sociedade e o destino vai para benefício
de corporações de servidores.

O poder político também conflita com o poder econômico privado, que o faz na
defesa de direitos trabalhistas, defendendo e garantindo reajustes salariais. Também
o faz investindo em políticas compensatórias aos segmentos mais necessitados,

113
promovendo transferências de rendas e garantindo a legalidade de movimentos
grevistas, entre outras formas de assistência e proteção. Toda essa forma de resistência
ao poder econômico privado depende de um sistema jurídico e de um aparato jurídico.
Depende igualmente de um aparato burocrático no Executivo e no Legislativo, cujo
custo a sociedade aceita manter em troca da eficiência do serviço público em toda a
sua complexidade. Isso tudo comporta uma volumosa estrutura legal e operacional de
proteção e garantias legais, que chamamos de Estado de bem-estar social e de direitos.

Muitas vezes, de governo a governo, até mesmo a interdependência entre o


poder político e o econômico é justificada para a consecução do interesse público e
manutenção do Estado de bem-estar. Afinal, a proteção para o fortalecimento de certos
segmentos econômicos tem sempre a nobre justificativa de manutenção de empregos
e da produtividade econômica, portanto, é a economia a fonte dos empregos, além
dos recursos para que o Estado arrecade impostos e mantenha sua estrutura de bem-
estar em nome do interesse público. Durante a primeira e a segunda décadas do século
XXI, sucessivos governos federais promoveram aproximações entre a esfera estatal
e grandes empresas nacionais. O objetivo oficial dessa aproximação era fortalecer a
competitividade de certas empresas nacionais, tornando-as “players globais”, com o
intuito final de beneficiar a economia do País no cenário internacional.

O que a sociedade está sempre a se perguntar é até que ponto isso se justifica
e até que ponto isso onera o esforço da sociedade. É que essas relações se intensificam
e se tornam bastante interessantes de serem mantidas, não apenas pelas nobres
intenções de resultados incertos, mas pelas vantagens pessoais a agentes públicos
e privados. No caso brasileiro, que não é exceção, a influência do poder econômico
por meio da proteção a empresas nacionais não foi compensatória para o interesse
público. Tome-se o exemplo da Operação policial “Lava-jato”, que demonstrou uma
grande rede de corrupção, envolvendo empresas privadas e públicas. Os desvios
financeiros serviram para financiar campanhas milionárias e literalmente fazer crescer
ilegalmente o patrimônio particular de muitos agentes estatais e privados. Através
dos financiamentos, as empresas e favorecimento em obras públicas, esses “players”
da economia ou tiveram juros subsidiados pela sociedade ou superfaturaram obras
públicas cujos excedentes financiaram campanhas eleitorais ilegais e ou foram parar
em bolsos de particulares.

NOTA
Operação Lava Jato: é reconhecida como a maior operação policial contra a corrupção no
Brasil. No site da Polícia Federal, apresenta a seguinte informação:

“No dia 17 de março de 2014, a Polícia Federal deflagrou a operação que viria a ser
conhecida como Lava Jato, unificando quatro investigações que apuravam a prática de
crimes financeiros e desvio de recursos públicos.

114
As operações receberam os nomes de Dolce Vita, Bidone, Casablanca e
Lava Jato. Enquanto as três primeiras correspondem a títulos de filmes
clássicos, escolhidos de acordo com o perfil individual de cada doleiro,
o nome Lava Jato faz referência a uma rede de lavanderias e um posto
de combustíveis de Brasília que era utilizado por uma das organizações
criminosas investigadas inicialmente para movimentar dinheiro ilícito”.

FONTE: <http://www.pf.gov.br/imprensa/lava-jato>. Acesso em: 13 mar. 2020.

Tudo que aconteceu, no caso específico do Brasil, teve consequências ruins à


economia e ao sistema político, mas, sobretudo, provocou muito prejuízo à sociedade,
refletido nos índices de desemprego. Quando muito dinheiro público é desviado
para incentivar segmentos privados e não retorna à sociedade, isso causa recessão
econômica. O custo de erros e desvios é diluído e arcado pela sociedade. Em certa
medida, isso acontece por supostos erros de condução governamental, através de
planos governamentais malconduzidos ou até mal pensados. Com frequência acontece
por intenções diretamente ilegais ou no mínimo, imorais, isentando agentes econômicos
privados de pagar os impostos e beneficiando agentes públicos que recebem propinas
por facilitar as coisas. Além do desvio do patrimônio público, grande parte dos recursos
envolvidos evade do país para contas bancárias externas, literalmente sumindo da
economia nacional.

Isso leva uma pessoa honesta a se questionar: até que ponto o Estado deve
ajudar, intervir e a oferecer proteção em nome do interesse estratégico nacional? É
que, juntamente com o suposto interesse público de incentivar e fortalecer segmentos
produtivos, há o perigo, quase certo, de interesses escusos interferindo. É um
fator humano, que deve ser levado em conta. Mais do que levado em conta, deve
ser considerado um risco imanente e permanente, que só pode ser razoavelmente
combatido por meio de instituições fortes e regras claras. Essas instituições – leia-se
leis, normas e regras – devem pressupor sempre o risco certo da interferência negativa
do poder econômico no poder político. Certamente, a elaboração de leis, normas e regras
claras depende de inteligência e honestidade. Por sua vez, esses necessários atributos
republicanos dependem de muita clareza da sociedade, resultado de um permanente
processo dialógico e de muita difusão da informação. Nesse sentido, o poder das ideias
é fundamental.

3.4 PODER IDEOLÓGICO


Para materializar seus propósitos de governar e manter o poder, governos
precisam de um importante aporte ideológico, ou seja, precisam de um conjunto de ideias
e da capacidade de comunicá-las à sociedade. Isso requer a presença de intelectuais,
que são estudiosos e formuladores de ideias coerentes com propósitos definidos que

115
liguem a sociedade aos que governam. Em outros termos, não há como governar de
modo razoável sem o apoio da sociedade, ou ao menos uma parte importante dela, que
precisa ser convencida das boas intenções e ações dos governantes. Intelectuais são
necessários, entre tudo, à formação de um pensamento de integração social, nacional ou
local. Nessa direção, o Estado, como instituição maior, no plano nacional ou subnacional
(estadual ou municipal) precisa ser visto como o ente agregador e protetor da vontade
geral da sociedade. Precisa ser capaz de produzir sentimentos de pertencimento
comunitário entre os cidadãos, que deve se sentir integrantes de um corpo político
solidário, caracterizado por uma identidade coletiva e pelo compartilhamento de valores
e desejos comuns.

Por vezes, há governos que têm intenções razoavelmente republicanas e que
procuram, evidentemente, colocar em prática aquilo que consideram mais importante
ao interesse da vontade geral da nação ou do município, que seja. Em sistemas
democráticos, não raras vezes, o poder executivo tem certas dificuldades de materializar
suas intenções, por confrontos com o poder legislativo. Coisas dos jogos de poder e
achar que tudo pode ser muito diferente na política, é ignorar, ao menos cinco lições da
história, que são:

1) nos sistemas não democráticos, a dispensabilidade do confronto e do diálogo tende


a produzir soluções menos eficazes à sociedade, porque o diálogo produz saber;
2) se o processo decisório é difícil, sua agilidade depende de reformas nas instituições
e não na sua extinção;
3) sua agilidade depende, igualmente, de uma sociedade atenta aos seus representantes
eleitos;
4) da parte dos poderes políticos, é preciso usar o poder ideológico para a devida
comunicação entre si e com a sociedade e, finalmente, a lição síntese;
5) sociedades evoluem com comunicação, diálogo e instituições fortes.

Nessa perspectiva, o papel dos intelectuais e seu poder ideológico tem sido
fundamentais na constituição das sociedades. São eles os principais emissores e
difusores de valores, explicações e narrativas que fazem a sociedade perceber a
importância da vida comunitária. E não importa se essa comunidade tem as dimensões
de um pequeno município ou de uma nação. Não há grupo humano sem liderança
ideológica, seja ela religiosa, educacional, moral, legal ou científica (considerando,
inclusive, que essas formas são relativamente distintas, mas andam juntas com muita
frequência). O poder de difundir boas e grandes ideias, informações e opiniões é
constante desde as sociedades primitivas e tem função de despertar, chocar e agregar
para evoluir. E se isso vale para uma pequena comunidade, pensemos na importância
que o poder ideológico tem a uma nação e, evidentemente, ao Estado.

Intelectuais difundem, amplificam e lapidam a linguagem da sociedade. Avivam


a memória, enaltecem os bons feitos do passado remoto ou próximo, retroalimentando
as identidades coletivas de um povo. São capazes de avivar a memória, enaltecer as

116
belezas e vantagens de viver em comunidade, num município, num estado ou num país.
São fundamentais à constituição do pensamento crítico, para a percepção dos erros
e das possibilidades de reformas, de correções e avanços. Ao mesmo tempo, são os
responsáveis por reproduzirem os melhores sentimentos de um povo, o que inclui a
autoestima, o orgulho de ser e de pertencer. Enquanto indivíduos produzem seus feitos,
geração em geração, sedimentando a cultura de uma sociedade, o intelectual tem o
papel de decifrar, conferir significado, crítica e brilho às ações. O poder ideológico exerce
um papel indispensável que alguns governos sabem bem usar, enquanto outros não
compreendem bem sua utilidade política e civilizatória.

Especificamente em relação às coisas do Estado, isto é, da política e de


administração da coisa pública, o poder ideológico dos intelectuais tem o papel de
legitimar as ações do poder do governante. Fazem ver e crer que a ordem política
institucional é absolutamente necessária e a administração especializada e racional da
coisa pública é a melhor alternativa à vida dos indivíduos. Naturalmente, isso requer todo
o tipo de especialistas, de uma burocracia intelectual responsável por fazer as coisas
acontecerem devidamente, com foco na eficácia do serviço público. São os intelectuais
da comunicação desses atos, na forma da fala e da escrita, que estão incumbidos de
valorizar as ações governamentais. Um governo sem um aporte eficiente do poder
ideológico vive “num mato sem cachorros”.

Devemos considerar, contudo, que os intelectuais não têm somente um


compromisso com os que governam. Do ponto de vista da necessária eficiência
governamental, todo governo ajuizado tem seu staff intelectual. Mas, do ponto de vista
do próprio jogo político entre quem governa e quem faz oposição, intelectuais também
são, com frequência, inimigos do poder. Mais que do jogo, a crítica, a denúncia e a
reprovação moral, técnica ou mesmo ideológica, são fundamentais ao próprio processo
civilizatório. De todo modo, as disputas eternas pelo poder geram, inevitavelmente, os
acordos e desavenças, perdas e ganhos. E, nesse processo dinâmico, vitórias e derrotas
são em maior ou menor grau, um processo de convencimento dos que disputam o
poder, tentando convencer os indivíduos de que suas ideias e intenções representam
as melhores escolhas à sociedade.

Por fim, o jogo político está sempre aberto e o poder ideológico é sempre um
elemento indispensável a quem deseja conquistar o poder, tanto quanto a quem necessita
mantê-lo. E a presença do poder ideológico nesse enredo de disputas e entrelaçamentos
entre o poder político e o econômico, a Ciência política tem uma tarefa igualmente
permanente. Precisa considerar a hipótese das elites, tanto quanto a dispersão do poder,
identificando seus agentes, mecanismos e circunstâncias que preenchem essa trama
cotidiana. Precisa levar em consideração as necessidades republicanas, associadas ou
dissociadas dos interesses econômicos, além dos corporativos. Além disso, deve prestar
atenção no conjunto de instituições formais (leis, regras e normas e seus operadores) e
informais (valores e costumes arraigados na Sociedade) e descobrir como esses fatores
jurídicos, politológicos e sociológicos se manifestam, direta ou indiretamente nas ações

117
dos agentes políticos e nas reações dos indivíduos em comunidade. Isso faz da Ciência
Política uma ciência, com método e objeto. E atribui a esta ciência e seus respectivos
cientistas a enorme responsabilidade de abrir a “caixa preta” da política, para o benefício
da clarividência, tão necessária ao desenvolvimento das sociedades.

Acompanhe a seguir, uma entrevista no Jornal Nexo, com dois cientistas


políticos sobre a postura científica:

O que há de ciência na Ciência Política

João Paulo Charleaux

Embora todos falem sobre política todos os dias, alguns fazem disso uma
profissão e uma área de estudo. Qual a diferença entre eles e a maioria de nós?

Todos fazem e quase todos falam sobre política todos os dias, mas um
grupo específico de profissionais se dedica ao assunto na qualidade de cientistas.
Além da paixão pelo tema, eles também obedecem a critérios técnicos para analisar
fenômenos que a maioria de nós comenta sem apego a métodos reconhecidos pela
academia.

Como os cientistas políticos exercem influência sobre muitos leitores e


telespectadores que tentam entender o cenário atual por meio da imprensa –
incluindo os textos do Nexo – entrevistamos a dois especialistas no assunto como
eles veem a própria atividade.

• Jairo Nicolau, doutor em ciência política pelo IUPERJ (Instituto Universitário de


Pesquisas do Rio de Janeiro) e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de
Janeiro)
• Wagner Pralon Mancuso, doutor em ciência política e professor da USP
(Universidade de São Paulo)

Qual a diferença entre um cientista político e um comentarista bem


informado, ou mesmo em relação a intelectuais de outras áreas, como a
filosofia, a economia e a antropologia, que também pensam política?

JAIRO NICOLAU: A ciência política é uma disciplina que se define pelo tema,
mais do que por um método. Por isso, provavelmente, ela é a mais pluralista, entre as
disciplinas de ciências sociais.

A política é mesmo um território de pesquisa de colegas de áreas próximas como


sociologia, economia, filosofia, psicologia e história. E, a rigor, não diria que existe nenhum
tema da política que seja território da ciência política. O que a ciência política tem de
melhor é um acúmulo de pesquisas, e teorias que são permanentemente testadas.

118
A imprensa acredita que a opinião de cientistas políticos tem uma aura de
“cientificidade”, o que, na maioria dos casos, não tem procedência. Se um jornalista
me pergunta, por exemplo, qual é o efeito do apoio do [vereador Andrea] Matarazzo
à campanha da [candidata à prefeita de São Paulo] Marta [Suplicy] e eu respondo, é
que tem algo errado. A resposta é quase sempre uma mera opinião. Mas os jornalistas
acham que vinda de um cientista político a opinião parece ser mais científica. O ideal
é que os cientistas políticos fossem convidados a falar de temas que eles pesquisam
e têm dados. Mas não acontece sempre.

WAGNER PRALON MANCUSO: A ciência política tem várias subáreas,


tais como teoria política, política brasileira, política comparada, políticas públicas,
relações internacionais etc. O cientista político usualmente é especialista em alguma
dessas subáreas, tendo dedicado anos de estudo a ela (iniciação científica, mestrado,
doutorado, pós-doutorado). Então, uma característica esperada do bom cientista
político é conhecer sua área a fundo.

Cada subárea da ciência política tem suas teorias e seus métodos e técnicas
de investigação, que o cientista político deve conhecer e dominar. Daí viria outra
característica esperada do bom cientista político: capacidade de estudar seu
objeto de forma rigorosa, com base em teorias sólidas e abordagens empíricas bem
desenhadas.

A produção da ciência política é apresentada em anais de encontros, em livros


e em revistas, tanto nacionais quanto internacionais. Os melhores encontros, livros e
revistas possuem um processo seletivo rigoroso, feito por pares, geralmente de forma
anônima. O bom cientista político apresenta os resultados de suas pesquisas em
encontros, livros e revistas de qualidade. Espera-se que isso assegure, em alguma
medida, o alto nível dos trabalhos publicados. Portanto, uma terceira característica
esperada do bom cientista político é a capacidade de produzir conhecimento que
seja publicável em espaços respeitáveis, mediante concordância dos pares, após
avaliação rigorosa.

Em síntese, pode-se dizer que o bom cientista político tem grande familiaridade
com seu objeto de pesquisa, investiga esse objeto de forma teoricamente informada e
metodologicamente rigorosa, e publica os resultados de sua investigação em lugares
sérios, mediante análise prévia dos pares. Isso garantiria a qualidade dos aportes que
faz aos debates sobre questões políticas.

A palavra ‘ciência’ sugere relações de causa e efeito dentro de algum


padrão de previsibilidade. Existe isso na política brasileira?

JAIRO NICOLAU: A ideia do que é científico na disciplina divide tanto os cientistas


políticos como as suas preferências políticas. Quer ver um departamento de ciência política
em polvorosa? Proponha uma discussão sobre as disciplinas de metodologia!

119
Acredito que a boa ciência política deve se inspirar nos procedimentos
de outras disciplinas empíricas: coleta criteriosa de dados, uso de estatística e de
métodos comparativos, disponibilidade de dados para reprodução e detalhada
discussão conceitual.

A ciência política acumulou um bom conhecimento sobre o comportamento


dos eleitores e o funcionamento das instituições brasileiras.  À maneira de outras
disciplinas de humanas, avançamos na construção de tipologias e na inferência
descritiva. Sou muito cético acerca da capacidade de identificarmos mecanismos
causais nos fenômenos políticos. Em situações especiais, é possível, mas a ciência
política não é uma disciplina que tenha se caracterizado por este fim.  Como de resto,
nenhuma disciplina de ciências sociais.

WAGNER PRALON MANCUSO: Certamente. Para dar um exemplo, a


ciência política prevê que as instituições – ou seja, as regras do jogo – conformam
o comportamento dos agentes políticos. Qualquer estudioso da política brasileira
sabe dizer como nosso sistema eleitoral afeta o comportamento dos candidatos; ou
como nosso federalismo afeta a relação entre presidente, governadores e prefeitos;
ou como o tipo de política pública em debate afeta o jogo dos grupos de interesse em
torno dela; ou como as regras de financiamento eleitoral afetam o comportamento de
doadores e recebedores; ou como o desenho das instituições de participação social
afeta os inputs que a sociedade pode oferecer aos governantes etc.

Como um cientista político lida com suas próprias preferências


políticas quando faz análises e estudos?

JAIRO NICOLAU: Cientistas políticos, como quaisquer outros cidadãos, têm


suas preferências políticas e elas sempre os afetam. Desde a seleção dos temas a
serem estudados até o que será feito com o resultado das pesquisas. Não há como
deixar de ser influenciado por nossas preferências. Mas hoje a disciplina tem um
arsenal de procedimentos para validar uma pesquisa como ‘bem-feita’. Não vou
convencer um parecerista de uma revista importante que meu artigo vale a pena ser
publicado por conta da minha preferência política. Tenho que mostrar que contribuo
de alguma maneira para o entendimento de um fenômeno. É fácil dar opinião no
jornal, mas fazer pesquisa é muito difícil.

WAGNER PRALON MANCUSO: Neste caso, acho que a grande lição vem
de Max Weber. Weber escreveu sobre a ciência como vocação. Segundo ele, para o
cientista vocacionado, o momento da ‘paixão’ é o momento da escolha do objeto de
pesquisa, do problema a ser investigado.

Definido isso, a análise realizada em seguida deve sempre ser rigorosa


e objetiva, em busca da ‘verdade efetiva da coisa’, para usarmos a expressão de
[Nicolau] Maquiavel. Mas é claro que o cientista político não é apenas uma fábrica de

120
‘papers’. Ele também é um cidadão, um eleitor. Como cidadão e eleitor, pode e deve
expressar seus pontos de vista e suas preferências nas redes sociais, em entrevistas,
em artigos opinativos publicados na mídia, em debates públicos etc. Às vezes essas
manifestações não têm o mesmo rigor de um trabalho publicado no Scielo [plataforma
que disponibiliza trabalhos acadêmicos]. Mas espera-se que a tarimba adquirida ao
longo de anos e anos de estudo ajude o cientista político a exprimir suas posições,
pelo menos, de forma embasada e coerente.

FONTE: <https://bit.ly/3pvD1Q8>. Acesso em: 29 jun. 2020.

121
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A Ciência Política surgiu com esta denominação ao final do século XIX, emergindo
do interior da Filosofia Política, mais especificamente da Filosofia do Direito. Além
disso, deve parte de usa origem à História. E, pelas convenções que são próprias
às ciências, a Ciência Política acabou por compor o tripé do que denominamos de
Ciências Sociais, quais sejam, a Sociologia, a Antropologia e a própria Ciência Política.

• Conquanto tenha surgido em fins do século XIX, é somente no pós-guerra que a


Ciência Política passa a ser definida com o maior rigor metodológico, circunscrito ao
método científico.

• A Ciência Política não emite opiniões sobre os acontecimentos e comportamentos


dos agentes políticos. Por extensão, prefere os diagnósticos e evita os prognósticos,
atendo-se ao presente, não se atrevendo a prever o futuro.

• Na análise politológica, as paixões e as ilusões devem dar lugar à busca obsessiva


pela compreensão racional e empiricamente demonstrável da realidade. É assim que
separamos o rigor científico do senso comum.

• As abordagens norte-americanas na Ciência política se contrapuseram a essa


perspectiva tipicamente europeia. Nessa direção, a Escola de Chicago, promovendo
a interdisciplinaridade entre economia e política passou a centrar seus esforços no
funcionamento real das coisas, levando em consideração os comportamentos dos
agentes políticos e suas motivações.

• A definição clássica do poder nos remete à ideia de fazer o outro ou os outros agirem
de acordo com a nossa vontade.

• O segundo recurso de exercício do poder é o ideológico. O uso das ideias é um


dispositivo, em geral, indispensável para a legitimação do mando e justificação da
obediência.

• O terceiro dispositivo típico do poder é o econômico. Através dessa forma, aqueles


que têm a posse dos recursos materiais, seja lá como a tenham obtido, por usurpação
ou por empreendedorismo, submetem os outros as suas influências, ao seu comando
e as suas vontades.

122
• Com isso, podemos afirmar que o poder se desconcentra, historicamente, até certo
ponto, nas sociedades democráticas e constitucionais. Podemos sempre lembrar
que o Estado é o maior detentor do poder, porque, como faz lembrar mais uma vez o
sociólogo Max Weber, é o Estado que tem o monopólio exclusivo do uso da força.

• Segundo Della Porta, a primeira corrente investigativa e analítica sobre a distribuição


do poder foi a denominada escola elitista. Segundo essa tendência, seja qual for
a Sociedade, em qualquer tempo, sempre houve e sempre haverá uma minoria
dominante, a controlar a maioria dos recursos políticos, econômicos e cognitivos.

• Enquanto a teoria elitista sugere a tradicional concentração de poder, a teoria


pluralista reconhece que o poder exibe uma tendência à desconcentração.

• Assim como a desconcentração do poder é uma tendência nas democracias, também


a interdependência entre os poderes político, econômico e ideológico é um fato
constante, pode-se dizer, uma regularidade.

• Para materializar seus propósitos de governar e manter o poder, governos precisam


de um importante aporte ideológico, ou seja, precisam de um conjunto de ideias e da
capacidade de comunicá-las à Sociedade.

123
AUTOATIVIDADE
1 O conceito de ideologia é um conceito estritamente moderno. O termo surgiu para
designar as pretensões de fundamentação de uma ciência das ideias, mas foi logo
associado ao exercício do poder e, bem como as instituições partidárias. Assim, um
dos recursos de exercício do poder é o ideológico. Disserte sobre a importância do
conceito de ideologia na definição de poder.

2 No âmbito Ciência Política se apresentam duas importantes escolas de pensamento


politológico, comprometidas em responder às perguntas clássicas inerentes à
distribuição do poder na sociedade contemporânea, quais sejam: 1) Quem tem
poder?, 2) Quais são os recursos do poder e 3) Quantos são os que têm poder? Uma
das primeiras correntes investigativa e analítica sobre a distribuição do poder foi a
denominada escola elitista. Disserte sobre a concepção de poder da escola elitista.

124
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
SISTEMA POLÍTICO, RACIONALIDADE E
INSTITUIÇÕES

1 INTRODUÇÃO
Neste segundo tópico, apresentamos uma abordagem sobre o entendimento
acerca do sistema político. Há maneiras de fazê-lo, afinal, nas Ciências Sociais, os temas
são tratados a partir de mais de um ponto de vista. No entanto, como sugere o próprio
nome, trataremos o sistema político pela perspectiva da teoria sistêmica, o que significa
que a política é literalmente tratada como um sistema. Até mesmo os críticos da teoria
sistêmica nas ciências sociais concordam com ela nesse ponto. Conquanto outras
teorias apontem insuficiências, há concordância quanto ao fato de que o ambiente
político possa ser introdutoriamente compreendido como um conjunto interdependente
de fatores, ações e instituições cuja racionalidade assim se expressa.

E por falar em racionalidade e instituições, apresentamos também duas


perspectivas adicionais. Elas vão para além da abordagem sistêmica e promovem um
precioso debate no interior da Ciência Política. Isso inclui o campo de estudos e de
funcionamento do Direito e, a rigor, todo campo profissional e de estudos que requer
o entendimento da política e das leis. Primeiramente, apresentamos a abordagem do
individualismo metodológico, também denominada de abordagem comportamental.
Parte-se do pressuposto de que em política os indivíduos se comportam a partir da
maximização do interesse próprio, como na economia. Em seguida, e por oposição,
apresenta-se a abordagem institucionalista, que sugere que acima do egoísmo está a
força coercitiva das instituições formais e informais.

Nessa trajetória reflexiva, você assimilará uma compreensão inicial indispensável


da Ciência Política, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista investigativo,
como do analítico-metodológico. Além disso, fará importantes conexões interpretativas
entre esta Ciência e seus fundamentos na Filosofia Política.

2 SISTEMA POLÍTICO
Quando falamos em poder e política, precisamos imediatamente reconhecer
a existência, isto é, o protagonismo coletivo de inúmeros agentes que fazem parte
do jogo do poder, tentando interferir nos processos decisórios. O funcionamento
das decisões e de todo o ambiente político envolve desde o mais jovem eleitor até
o presidente da República. E, se quisermos dizê-lo, essa rede é ainda mais extensa,
atingindo a consideração de todos na sociedade. Mas isso é genérico demais, embora

125
não seja inverídico. Então, se quisermos falar de sistema político, temos que fazer
uma delimitação, a fim de que o termo seja aceitável e compreensível. Para tanto,
precisaremos considerar todo o conjunto de instituições e órgãos correspondentes no
interior da ampla esfera estatal-governamental. Embora, temos que ser um pouco mais
abrangentes, levando em conta o conjunto não pequeno de agentes que não estão
ligados à esfera governamental, mas estão no espectro das relações governamentais.

Do ponto de vista do método de análise, nos é conveniente o approach da teoria


sistêmica, cuja formulação contém elementos analíticos interdisciplinares, oriundos da
Biologia e da Cibernética. A ideia é estudar o funcionamento do sistema político como um
ambiente caracterizado pela interligação de inúmeros agentes, vistos de forma análoga
a “órgãos”, no sentido biológico, ou “componentes”, no sentido cibernético. É um recurso
analítico-metodológico no sentido de facilitar a compreensão que podemos ter da política
como um sistema, que se pressupõe interligado. Essa é a ideia: observar e procurar
entender o sistema político como algo interligado, em que cada ação e cada decisão
tem uma ligação causal e consequências entre inúmeros “órgãos”, “componentes”. Isto
é, estamos nos referindo a vários agentes, pessoas físicas e jurídicas, de poder político,
econômico e ideológico, com interesses públicos, privados e corporativos, mas também
valorativos. O sistema político é uma rede de contatos incessantes, cuja compreensão
requer da Ciência Política, esse pressuposto investigativo.

Nessa perspectiva, o primeiro autor a que podemos fazer menção é o cientista


político canadense David Easton. No ano de 1953, o autor publicou um trabalho seminal
intitulado The política system: na inquiry into the state of Political Science, traduzido
para o português e publicado no Brasil sob o título “Modalidades do sistema político”
(EASTON, 1970). Duas décadas depois, os cientistas políticos Gabriel Almond e Bingham
Powell lançaram um importante compêndio intitulado Comparative politic systems,
process and policy, inspirados no clássico de Easton. Essas obras são importantes
referências da teoria sistêmica na Ciência Política, apresentando a característica geral
da análise politológica nessa perspectiva, qual seja: um sistema político faz parte de
um “ambiente” com o qual interage por meio de relações marcadas por uma afluência
de ações e reações, como no mundo da Biologia, ou mais precisamente, de “entradas e
saídas”, como na Cibernética.

Nessa perspectiva analítica e metodológica, a abordagem sistêmica pressupõe


ainda dois importantes aspectos, a saber:

1) as características de qualquer objeto estudado, em dados momento e circunstâncias,


são resultantes da troca de matéria e energia com o ambiente;
2) quaisquer alterações nas características de uma parte qualquer do objeto têm efeito
no todo deste objeto;

Na sequência, esse objeto alterado tende a afetar, por mínimo que seja, todo o
sistema. Além disso, os sistemas obedecem a certas funções, sendo a principal delas o
fato de que tudo que acontece dentro da lógica do sistema está orientado a assegurar

126
a sobrevivência do sistema. Como já dissemos, essa interpretação tem uma forte
analogia com o funcionamento dos organismos vivos e das máquinas, notadamente dos
computadores, se pensarmos nos sistemas informacionais tão intensamente presentes
em nossas vidas.

Como já dissemos, todo o ambiente social, em geral, afeta o sistema político e


é por ele afetado. O sistema político faz parte do ambiente social e funciona como uma
espécie de “caixa preta”, por onde as demandas entram, vindas do ambiente social. São
as “entradas”, que na língua inglesa significam os “inputs”. Uma vez que as demandas
entram na caixa preta (o sistema político), elas são recebidas e filtradas, sendo devolvidas
ao ambiente externo, na forma de leis, regras, normas, planos de ações governamentais
e políticas públicas em geral. A analogia parece bastante conveniente se pensarmos no
ambiente como a sociedade, de onde surgem as necessidades e desejos individuais,
corporativos e coletivos a cada instante. Cabe ao Estado a “caixa preta”, absorvê-
las, selecioná-las e devolvê-las, na forma de rejeição justificada ou de assimilação e
atendimento, em nome da vontade geral e segundo critérios definidos pela inteligência
do sistema político.

FIGURA 2 – MODELO DE SISTEMA POLÍTICO DE EASTON,


EM QUE O SISTEMA POLÍTICO FILTRA E DEVOLVE AO AMBIENTE

FONTE: <https://bit.ly/3vEUhGj>. Acesso em: 13 mar. 2020.

IMPORTANTE
Cibernética

No Dicionário Aurélio, lemos que “é a ciência que estuda


comparativamente os sistemas e mecanismos de controle, regulação
e comunicação nos organismos vivos e nas máquinas”.

No Dicionário Oxford: trata-se do “estudo científico dos sistemas


de comunicação e controle, que envolve a comparação de cérebros
humanos e animais com máquinas e dispositivos eletrônicos”.

127
FIGURA 3 – LIVRO DE D. EASTON - TRADUZIDO PARA O PORTUGUÊS EM 1970.

FONTE: <https://bit.ly/3pysGTu>. Acesso em: 24 jul. 2020.

Nas palavras do cientista político David Easton, “o sistema político é um sistema


de ações recíprocas através das quais se realiza a atribuição autoritária de valores livres
numa dada sociedade” (EASTON, 1970 apud DELLA PORTA, 2003, p. 31). Como interpreta
a cientista política italiana Donatella Della Porta, essa atribuição de valores se manifesta
de três maneiras, a saber:

1) “na prática, entendida como conjunto de normas respeitadas


tradicionalmente, que regula a esfera das relações privadas”; também
se manifesta na forma de 2) “intercâmbio, que implica uma ação
recíproca de indivíduos que negoceiam entre si”; e, finalmente, através
do 3) comando político, baseado em procedimentos coletivos que
permitem uma solução dos conflitos sobre a atribuição dos valores.
(DELLA PORTA, 2003, p. 31).

Vendo dessa maneira, compreendemos que a “caixa preta”, isto é, o sistema


político, é uma espécie de organismo constituído por agentes cujas relações são tecidas
por padrões de ação que os orientam reciprocamente. No interior dessas relações entre
os agentes circulam os valores sociais (as concepções morais e éticas). Entre todos os
sistemas sociais existentes no ambiente social geral, compete ao sistema político o
papel de ajustamento e regulação dos interesses conflitantes. O sistema político produz
as leis, normas, regras e políticas públicas, gera incentivos e punições, em resposta
às demandas oriundas do ambiente social. É claro que nesse processo, tudo tende
a ser produzido de acordo com a sobrevivência do próprio sistema e seus interesses
específicos. Não obstante, é por meio desses produtos políticos que entrega à sociedade,
cumpre seu papel de agregação social, sem o que a sociedade seria um caos.

É dessa forma, que o sistema político interage com toda a sociedade. Para que o
seu funcionamento aconteça, o sistema político precisa receber as demandas sociais o
tempo todo, selecioná-las e obter o necessário apoio para responder da melhor maneira.

128
Nisso, o processo de filtragem requer uma engrenagem complexa. Não esqueçamos
que essas demandas advêm da sociedade como “atribuições autoritárias de valores”.
Nesse sentido, a sociedade exige que o sistema responda e justifica suas exigências
com base em valores morais de toda ordem (religião, bons costumes, família, trabalho,
bem-estar merecido, cultura, educação, lazer etc.). Essas exigências dão origem a
decisões institucionais que se transformam em leis e políticas.

Contudo, essas exigências não apenas pressionam o sistema político por


respostas, mas seu excesso pode comprometer os interesses e a autoproteção do
próprio sistema que, como admitimos, tem seus próprios interesses. Em função disso,
o sistema político se provê dos guardiões de entrada (gatekeepers). A incumbência é
justamente a de filtrar e selecionar as demandas sociais que efetivamente ingressam
no compartimento central da caixa preta, onde acontecem os processos decisórios.
Evidentemente, essa alegoria nos deve fazer entender que se trata de todo o conjunto
de ações e relações entre os agentes decisores, leia-se, os parlamentares, os agentes
diretos do governo de plantão, os partidos políticos, os burocratas e todo o tipo de
influências externas que possamos imaginar. Tudo está ali, para ser decidido, segundo
as demandas externas e as conveniências internas que garantam a sobrevivência do
sistema e de seus interesses específicos. Até certo ponto, eles são convergentes com o
interesse público. Depois disso, nem tanto.

2.1 OS GUARDIÕES DOS PORTÕES



Os guardiões de entradas são conhecidos na literatura politológica internacional
como gatekeepers. São os agentes que ocupam funções estratégicas, legitimadas
institucionalmente, que lhes permite estabelecer o que passa e o que não passa no
sistema, determinando a pauta e formatando o conteúdo temático, legal-racional e
normativo do sistema. Partidos políticos são considerados guardiões de entradas, do
tipo estrutural, uma vez que representam uma microestrutura orgânica, ou ainda, um
microssistema no interior do sistema político. No interior dessas agremiações, certos
indivíduos, por sua liderança, sobretudo relacionada ao conhecimento legal e ilustração,
podem ser considerados guardiões de entradas. Além dos agentes do legislativo,
também os burocratas dos três poderes têm grande influência ou autoridade para filtrar
as demandas e determinar o que passa e o que não.

Também é correto falar em guardiões de entrada da forma cultural, quando nos


referimos à própria estrutura normativa. Em outras palavras, trata-se do conjunto de
normas e regras de procedimento que orientam e predeterminam o fluxo de exigências
que vem da sociedade. Essa clivagem dos inputs acontece por intermédio de uma série
de estruturas que condicionam e direcionam os procedimentos possíveis. São as regras,
as normas, baseadas em pressupostos legais, regimentais etc. Além dessas estruturas
formais, ainda existem as normas informais e valores, interiorizados psicossocialmente.
São os códigos morais (éticos ou não, republicanos ou corporativos) por onde todas as

129
demandas sociais passam ou são barradas, sempre em relação ao que é viável ou não,
segundo tais padrões. Importa lembrar que, quaisquer que sejam as demandas, mesmo
as mais republicanas e de forte pressão social, tudo é processado e decidido levando
em consideração a preservação do sistema político.

A caixa preta, isto é, o sistema político, recebe as demandas da sociedade. Essas


demandas são filtradas pelos processos decisórios, em que se decide o que passa e o
que fica retido, engavetado e “desaparece”. A conservação do sistema político, por sua
vez, requer o necessário apoio e suporte ao processo decisório. O sistema precisa de
legitimidade e essa é constituída por uma rede de atitudes e condutas que manifestem
a aprovação permanente ao sistema político. Se o sistema aprova ou reprova o que
vem da sociedade, por outro lado, também depende de aprovação da sociedade. Isso
requer uma logística de legitimação, tanto para os apoios de curto prazo, quanto a
aprovação social de longo prazo da sociedade às instituições que compõem o sistema
político. Nesse enredo comportamental, certa padronização é naturalmente percebida
pelos cientistas políticos, através de fatores de apoio, que podem ser classificados da
seguinte maneira:

1) A existência de uma comunidade corporativa de políticos, portadores de valores e,


evidentemente, interesses comuns, mas também ligados a uma identidade mais
abrangente, municipal, estadual ou nacional.

2) O regime político, compreendido como uma rede de valores do que pode ser aceito
no sistema político, em termos éticos e morais, igualmente compartilhados entre os
agentes políticos.

3) Uma composição de autoridades, ou seja, de pessoas que ocupam cargos de


direção no sistema político, fiscalizando e garantindo o cumprimento das exigências
normativas do regime e da comunidade política.

Deve estar claro, que assa rede de valores da comunidade corporativa de


políticos está em sintonia razoável com a comunidade geral, isto é, a sociedade
como um todo, seja no município, no estado ou na nação. Ainda que a opinião
sobre a classe política seja ruim, ela não pode ser tão ruim que leve à total perda de
apoio. Num país como o Brasil, por exemplo, o índice de aprovação ao Congresso
Nacional é baixo. Um levantamento realizado pelo Instituto FSB (2020), com 2000
eleitores entre 16 e 27 anos, entrevistados por telefone entre 7 e 10 de fevereiro de
2020, revelou que 44% dos entrevistados considera “ruim” ou “péssimo” o trabalho
dos parlamentares. Enquanto isso, apenas 11% deles os classifica como “ótimo” ou
“bom”. Matematicamente, e por probabilidade estatística, pode-se afirmar que a
maioria (56%) dos brasileiros entre 16 e 27 anos apoiam a instituição do legislativo,
enquanto 44% desaprovam. E, ainda assim, a desaprovação é ao comportamento
dos parlamentares e não necessariamente às instituições.

130
Nessa perspectiva, precisamos entender que o sistema político é constituído
e preservado por um conjunto de ações padronizadas, orientadas por valores que
conduzem os comportamentos a um centro de convergência. O motivo dessa
convergência é a autopreservação do sistema, o que também podemos entender como
fisiologismo corporativo. Não obstante, esses valores não podem ser fundamentalmente
divergentes dos valores pactuados pela sociedade em geral, ou seja, o ambiente onde o
sistema político está inserido. É claro que os interesses corporativos do sistema político
se chocam muitas vezes com os interesses republicanos da sociedade. Mas tal situação
tem um lastro de tolerância e os atores do sistema político precisam ter o cuidado de não
ultrapassar esses limites. E, por mais frequente que sejam os momentos em que esses
limites sejam perigosamente transpostos, a sociedade reconhece que o sistema político
tem o importante papel social de regulador dos conflitos, evitando a conflagração social.

Por exemplo, lembremos a crise política no Brasil entre 2015 e 2016. Erros na
condução da política econômica se somaram ao caso de corrupção que desencadeou
a operação Lava Jato, no interior da qual os dois principais no poder estiveram no
epicentro do escândalo. A consequência mais dramática do processo foi o impedimento
legal da ex-presidente da República, Dilma Rousseff, de continuar exercendo o mandato
ao qual foi reeleita. Não obstante, cabe igualmente lembrar que o processo seguiu os
ritos legais às vistas da sociedade. Não foram poucas as críticas ao processo e denúncias
de “golpe”, o que é natural e até certo ponto tão inevitável quanto necessário. Afinal,
mais que o interesse republicano, o que estava em jogo era a perda de poder de parte
dos integrantes do sistema político que, nesses momentos, tentam se preservar nele.
E, procedentes ou não, as críticas são tão importantes quanto as justificativas, para a
formulação da opinião pública.

De todo modo, o processo foi justificado com base em uma racionalidade


jurídica e na comprovação de irregularidades contábeis, cometidas pelo governo, entre
2014 e 2015, sobre o orçamento público federal. Foi a tal da “pedalada fiscal” que o
governo de Dilma Rousseff cometeu, transferindo valores de um ano contábil para o
ano seguinte, a fim de encobrir o déficit no fechamento das contas públicas durante o
exercício orçamentário de 2014. Seu governo vinha demonstrando falta de capacidade
de conduzir a política econômica, gerando crescente insatisfação em vários setores
da sociedade, entre eles empresários com seus negócios prejudicados e trabalhadores
que perdiam seus empregos. Além desses, havia os grupos políticos, fossem opositores
ou da base de governo, preocupados com os rumos da economia e com a insatisfação
de cidadãos eleitores. Não se despreze a oportunidade excepcional de opositores
retomarem o poder pela via judicial, depois de vencidos no pleito eleitoral. Tampouco
se ignore o poder ideológico da imprensa livre e de intelectuais críticos na difusão de
informações e na formação de opinião.

Por fim, cabe lembrar que o motivo jurídico apresentado não é a motivação
fundamental de um processo de derrubada de um governante. O desvio contábil que
foi utilizado como justificativa para a punição legal foi um paliativo com precedentes

131
em governos anteriores, que também o cometeram e não foram punidos por isso. A
diferença fundamental é que os governantes anteriores tinham o apoio suficiente dentro
do sistema político e este apoio estava respaldado pelo apoio fora do sistema, isto é, na
sociedade. Nesse sentido, a motivação de fundo é sempre a disputa pelo poder, que
apenas se justifica em nome da justiça e do interesse republicano. O interesse pelo poder
no interior do sistema político é o interesse vital. Todavia, não quer dizer que o interesse
republicano não esteja presente. A pedra de toque que determinou o impedimento foi o
apoio da maioria da sociedade, descontente com a economia, sem o que os agentes do
sistema político que impulsionaram o processo não teriam se movido a tal ponto.

Com todas essas considerações sobre o fato, algumas importantes lições


podem ser abstraídas desse relevante fato da história política brasileira e isso tem a ver
com a análise do sistema político. Conquanto essas razões possam parecer óbvias:

• momentos de crise política são decisivos para testar as instituições políticas;


• momentos de crise geram oportunidades de fortalecer as instituições políticas;
• instituições democráticas são a maneira menos imprecisa de se fazer justiça;
• a opinião pública acompanha as decisões jurídicas, reprovando os condenados e não
o sistema político;
• o apoio da sociedade é o fator motivacional a encorajar tais iniciativas;
• a perda de apoio do poder ideológico e do poder econômico é fatal aos governantes;
• o poder jurídico é impulsionado pelo poder social;
• a racionalidade jurídica serve para justificar legalmente motivações políticas;
• confirmando Montesquieu, o legislativo comprova ser o maior dos três poderes;
• confirmando o pai da ciência política, Nicollò Machiavell, os fins justificam os meios.

Esta última lição, dita há cinco séculos pelo “pai” da Ciência Política é, com
frequência ignorada, por inúmeros analistas da cena política. Porque, no fim das contas,
o que importa nisso tudo é o resultado mais impactante e no menor tempo possível,
a fim de que os efeitos das decisões se manifestem e tenham resultados nas vidas
das pessoas. Porquanto se possam apresentar objeções de ordem moral, sempre de
necessária publicidade para a avaliação da opinião pública, não são as boas intenções
que estão na ponta dos objetivos de quem decide se apoia ou não as decisões do
sistema político. Como também nos terá orientado Max Weber, na política vale a ética
da responsabilidade pelos fins últimos e não a ética das convicções morais. Que sejam
importantes, pouco há a objetar, mas não são determinantes. Nessa perspectiva, a
posição moral dos que defenderam o direito de quem foi eleito, ignorou a insatisfação
posterior dos que elegeram. Nesse sentido, as necessidades econômicas de curto prazo
dos eleitores são mais prementes que as necessidades morais de longo prazo.

Sejam as necessidades de curto prazo, as de longo prazo, as mais importantes,


em cada caso, transformam-se em exigências por parte dos eleitores. Tais exigências
transformam-se, por sua vez, em entradas ou inputs no sistema político. Ao ingressarem
na caixa preta, são filtradas pelos subsistemas, leia-se, os partidos políticos, os grupos
de pressão interpartidários e a burocracia estatal. Uma vez filtradas, o que quer dizer

132
legalmente respaldadas e assimiladas pelo corporativismo do sistema político, tornam-
se parte das decisões públicas, tornando-se leis e diretrizes e ações na forma de políticas
públicas devidamente filtradas e apoiadas pela Sociedade. Em outros termos, o sistema
político gerou respostas às demandas sociais. Nesse momento, a teoria sistêmica da
Ciência política dá a essas respostas o nome de saídas, ou outputs.

Isso é o sistema político: uma caixa preta, que é também uma caixa de ressonância
às demandas sociais, que são ouvidas, assimiladas e filtradas. Depois, as demandas de
maior pressão são encaixadas com as necessidades de autopreservação do sistema
político. Transformam-se em leis e políticas públicas, em resposta à sociedade. Seja no
exemplo emblemático do impeachment presidencial ou outro qualquer, há um processo
de inputs e outputs. Ou seja, há um fluxo de entradas e saídas, demandas e respostas
do ambiente maior para o sistema político e, deste, de volta à sociedade. As decisões
no interior da “caixa preta” tendem a ser: o cálculo racional do melhor ajustamento
entre a vontade geral da Sociedade e os interesses corporativos de autopreservação
do sistema. E os agentes do sistema político sabem que os resultados precisam ser
eficazes para a retroalimentação do apoio social ao sistema. É o imperativo da escolha
racional, calculada e corporativa, para a sobrevivência do sistema político.

IMPORTANTE
O impedimento da ex-presidente da República, Dilma Rousseff, em 2016, seguiu um
rito jurídico amparado na Constituição Federal. Todavia, para os críticos
e oponentes ao processo, o que houve foi um “golpe” e tal celeuma é
interminável. O impedimento da ex-presidente foi decidido em plenário do
Congresso Nacional, através do voto aberto de cada um dos 513 deputados
federais. A justificativa jurídica foi constituída com base na denúncia
de “pedalada fiscal”. Trata-se de um apelido para o procedimento em
que o governo promove manobras contábeis para maquiar as contas
públicas, conferindo uma aparência de normalidade e encobrindo
furos fiscais. No caso, atrasam-se os repasses de pagamentos de
dívidas que o governo tem com bancos, permitindo contabilizar as
contas públicas de um ano fiscal sem os registros dessas dívidas. O
objetivo é dar a impressão de um déficit público menor ou até um superávit
das contas, configurando uma maquiagem contábil.

3 INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO E TEORIA DA


ESCOLHA RACIONAL
Na perspectiva analítica de que as decisões seguem um padrão racional de
autopreservação, a teoria sistêmica se encontra com a teoria da escolha racional. Essa
importante e atual variável analítica faz parte do pressuposto geral weberiano de que
a sociedade precisa ser compreendida a partir da consideração dos comportamentos

133
dos indivíduos. É o que chamamos de individualismo metodológico nas ciências sociais,
particularmente importante na Ciência Política, mas também na economia, na sociologia
e no direito. Na análise sistêmica, a sociedade e o sistema político são entendidos como
um todo orgânico de sistemas e subsistemas, com funções orientadas à preservação
do todo. Conquanto esse método seja conveniente, é complementarmente importante
compreender as motivações dos indivíduos, a partir das quais eles orientam suas ações.
Não o fazem somente para a preservação do sistema ou subsistema, mas para os seus
interesses também. É o que Max Weber chamaria de ação racional orientada para os fins.

No campo das Ciências Sociais, a começar pela sociologia clássica, há duas


perspectivas analíticas gerais, que estão evidentemente presentes na Ciência Política.
Vamos aos clássicos da Sociologia: uma é a perspectiva positivista de Emile Durkheim,
que parte da premissa fundamental de que, para compreender a sociedade, o ponto
de partida é compreender o todo social para então compreender os comportamentos
individuais. Grosso modo, essa perspectiva converge com a visão estruturalista de Karl
Marx, segundo quem, era preciso compreender as estruturas econômicas da sociedade,
para entendermos os comportamentos individuais. Embora Max Weber reconhecesse
a importância desse ponto de partida do social na direção do indivíduo, afirmava que
tão importante quanto era estudar os significados que os indivíduos conferem às
suas ações, sem o que não se entendia a sociedade. Enquanto a primeira influencia
as teorias funcionalista, estruturalista e sistêmica, a segunda influencia as teorias
comportamentalistas, como a teoria da escolha racional.

No campo da economia, teóricos como o economista austríaco Joseph


Schumpeter (1883-1950) já haviam observado e tecido considerações acerca dos
comportamentos individuais. Essas observações influenciaram a Ciência Política. Nessa
direção, alguns pressupostos elementares da teoria econômica foram assimilados pela
Ciência Política e fazem parte da Economia Política. São eles:

1) o indivíduo é o ator fundamental da Sociedade – conquanto pareça


uma obviedade, o sentido desta assertiva está justamente em se
contrapor às teorias que pressupõe unicamente a influência do todo
sobre os indivíduos.
2) o indivíduo interage com os outros, partindo de seu interesse
pessoal – só depois, outros fatores interferem e condicionam sua ação.
3) o indivíduo calcula suas ações, procurando encaixar seus interesses
pessoais com os coletivos – sendo isso típico na política, permitindo
que muitas vezes ambos convirjam para o melhor resultado público
(SOLA, 1996 apud DELLA PORTA, 2003, p. 35-36).

IMPORTANTE
O conceito de ação social é clássico e constituinte da sociologia e, por extensão, de toda
a análise das ciências sociais. Segundo o seu formulador, o sociólogo alemão Max Weber
(1991) ela acontece quando cada um de nós age levando em consideração a ação ou a
reação dos outros, com o fim de decidir como devemos agir. Isso demonstra o quanto
somos seres sociais, cujas ações não são simplesmente pessoais, mas sociais. Segundo
Weber (1991) há quatro tipos característicos de ação social:

134
• agimos por tradição, segundo os costumes;
• agimos por afetividade, porque gostamos e queremos a aprovação de outros;
• agimos por valores, isto é, usamos noções de certo e errado; e
• agimos por finalidades, isto é, segundo interesses.

Na política, o tipo de ação predominante tende a ser a ação racional por finalidades
racionais que, embora influenciados pelos outros três tipos de ação, predominam
sobre essas. Isso parece ter sido inspirado na premissa fundamental de
Machiavel, que separa a moral da política. Segundo o renascentista italiano,
em política, os fins justificam os meios, ou seja, mesmo que os meios sejam
importantes, prevalecem os fins últimos e racionais na ação do agente
político. E o fim é a preservação do poder. Foi assim que Weber definiu o
termo ética de responsabilidades, em oposição à ética das convicções. Percebeu
isso observando os comportamentos individuais na política e na economia.
Também o sociólogo brasileiro Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da
República, é partícipe dessa premissa: enquanto na religião e no campo moral,
em geral, agimos por convicções, na política, se age pensando nos resultados.
Pela ética das convicções, poderemos ser perdoados por nossos erros, se agimos
bem-intencionados (vale a intenção). Pela ética das responsabilidades, seremos
responsabilizados pelos resultados das nossas ações.

No campo da Ciência Política, muitos autores se destacam pela transposição


metodológica da Economia para os estudos políticos. O cientista político estadunidense
Anthony Downs (1999), foi um dos pioneiros dessa transposição, com base na ideia de
que, a rigor, os agentes políticos devem ser tratados como fossem consumidores ou
vendedores no “mercado político”. Seja na condição de políticos em busca de votos, seja
na condição de eleitores que escolhem seus candidatos em busca de algum benefício,
a lógica seria de otimizar as escolhas e ações, de modo a obter a maior vantagem
possível. De modo geral, como já dissemos na análise da “caixa preta”, políticos e
servidores públicos não eleitos e procuram compatibilizar seus interesses individuais e
corporativos com o interesse público, sempre que possível. Contudo, a maximização de
seus interesses só não estará assegurada no plano imediato, se isso puser em risco a
sobrevivência no longo prazo.

Para Anthony Downs (1999), a lógica da ação dos indivíduos é a mesma da ação
racional com vistas aos fins de Weber, admitindo-se que os indivíduos fazem cálculo
sobre suas decisões sempre. Assim como consumidores e eleitores tem preferências,
interesses e necessidades que os levam a decidir suas escolhas eleitorais. Na outra
ponta, estão os políticos em busca de votos e de apoio necessário para se elegerem.
Na economia, empresas buscam o lucro o tempo todo e o contrário seria irracional.
Nas eleições, os candidatos têm como único e óbvio interesse o de se elegerem ou
de se manterem no poder. Maquiavelicamente, a tendência é de que façam tudo para
alcançar esse objetivo. É claro que há limites morais e éticos que impedem a maioria de
se matarem uns aos outros. Mas é absolutamente lógico que transponham pequenas
barreiras morais e éticas, e até mesmo legais, caso seus cálculos lhes permitam deduzir
racionalmente, que isso valerá à pena.

135
Nas democracias, os partidos políticos têm muitas características, definições
e objetivos. Todavia, do ponto de vista da escolha racional, são compreendidos como
agremiações que congregam indivíduos cujo interesse maior é o de alcançarem o poder
e de nele permanecerem. Nesse sentido, partidos têm o mesmo modus operandi que
empresas em relação a consumidores. Empresas oferecem qualquer produto, desde
que o consumidor os compre e isso lhes garanta lucro. Assim, partidos formulariam
programas e políticas, não com o principal objetivo de atender ao interesse público,
promover o desenvolvimento e ajudar as pessoas. Formulam programas e políticas
com o propósito de alcançarem os votos necessários para conquistar o poder e nele
se manterem (DOWNS, 1999). Essa é a premissa exclusiva da teoria da escolha racional.

Na outra ponta, está o “cobiçado” eleitor que, todavia, também age motivado
por seus interesses próprios. É claro que esses interesses podem ser convergentes
com o interesse geral ou local, seja dos compatriotas ou dos vizinhos. Mas tende a
ser um interesse que pragmaticamente melhore a sua vida. Assim como no mercado
econômico, em que o consumidor tende a exercer a sua soberania, também no mercado
eleitoral o interesse do eleitor reina. E, do ponto de vista do mercado eleitoral, o eleitor
é o “foco” do político, tratado como um “consumidor político”, significando o meio pelo
qual o político pode obter seus fins desejados. O eleitor expressará as suas vontades
e o político se esforçarão em atendê-las. Na interpretação radicalmente economicista
de Downs (1999, p. 119), “as ações republicanas em benefício da sociedade seriam
“incidentais”, isto é, aconteceriam como efeito possível e conveniente, mas não por
objetivo principal”.

Em concordância com Downs estão autores como o cientista político e norte-


americano James Buchanan (1919-2013) e sua tese do homo oeconomicus. Economista
e jurista, Buchanan foi um dos principais autores da teoria da escolha pública e recebeu
o prêmio Nobel de Economia, em 1986. Mesmo partindo desse pressuposto geral de
que as escolhas são sempre racionais e interessadas, esse autor adverte para o fato
importante de que essa lógica gera problemas. E esse problema é dos grandes, isto
é, daqueles que estão na origem das crises econômicas dos governos, questionando
a eficiência e o papel, sobretudo, os limites da intervenção do Estado na economia: o
déficit público. E a origem deste problema é motivada justamente por essa relação de
troca entre o político e o eleitor. Para Buchanan, “o político é aquele indivíduo que pede
dinheiro aos ricos e votos aos pobres, prometendo, se eleito, defender uns dos outros”
(BUCHANAN apud PEREIRA, 2011, s.p).

Para Downs (1999) a imperiosa necessidade de os políticos atenderem aos


eleitores fortalece, isto é, legitima a democracia. Já, para o jurista e Prêmio Nobel
estadunidense, estabelecer uma relação tipicamente racional-econômica tende a
colocar a democracia em cheque. Está claro que Buchanan concorda com a teoria da
escolha racional, admitindo que isso acontece, mas adverte: políticos lançam mão de
recursos públicos escassos para o atendimento das demandas dos cidadãos eleitores.
Em geral, as promessas são maiores que a capacidade de cumprimento. Não obstante,

136
o cumprimento delas, ainda assim, é maior que a capacidade orçamentária de atendê-
los. O que acontece, por causa disso, é que gastam mais do que os recursos disponíveis,
gerando a dívida pública. Observando nas eleições, políticos eleitos pressionam os caixas
dos governos e governantes abusam da capacidade de endividamento, gerando déficits
no longo prazo. Buchanan sugere que, a rigor, o Estado não passa de uma “organização
de interesses de seus ocupantes” (BUCHANAN apud BRESSER PEREIRA, 2009, p. 12).

Além disso, Buchanan analisa também o comportamento da burocracia estatal,


observando e demonstrando que os agentes do serviço público agem prioritariamente
para a maximização de seus interesses corporativos. Isso nada tem a ver com a
vulgar “demonização” do serviço público, que sempre será essencial e é necessária a
devida consciência sobre isso. Mas a contribuição da teoria da escolha racional, assim
como sua coirmã, a teoria da escolha pública, é importante ao demonstrar que, para
além ou para aquém da ética pública, há uma racionalidade econômica sugerindo a
proteção e maximização dos interesses privados. A tendência disso leva a pressões
pelo aumento do tamanho do Estado. É claro que a justificativa é o atendimento às
legítimas demandas da sociedade. Mas é inegável que a expansão do Estado favorece
os interesses das corporações do serviço público como o aumento de funcionários,
salários e, consequentemente, de poder.

Bem no fim, é a consequência das democracias, refletida no dilema de


seu grande produto político, qual seja, o Estado de bem-estar social e de direitos. A
racionalização econômica da relação de troca de interesses entre políticos e cidadãos,
governo e sociedade, é consequência natural na democracia de mercado. A liberdade
política e econômica parece conduzirem a isso com naturalidade. O resultado histórico
da pressão dos eleitores sobre os políticos foi a edificação progressiva do Estado de bem-
estar social e de direitos. Conquanto seja uma conquista política histórica, resultante
tanto das lutas de entidades trabalhistas e partidos congêneres, foi uma conquista da
democracia. O problema é que essa relação marcada pela racionalidade econômica de
maximização de ganhos entre eleitores e os eleitos, provoca a expansão indeterminada
do Estado, até que o que era bom se torna um problema orçamentário.

A consequência analítica e teórica da teoria da escolha pública de James


Buchanan será a sugestão pela redução do tamanho do Estado. É importante
caracterizar a teoria de Buchanan, baseada em, ao menos, três aspectos, importantes
a nossa compreensão:

1) a concordância com a premissa de que, na política, eleitos e eleitores agem a partir


de um cálculo econômico de maximização de seus interesses;
2) esse comportamento gera déficits públicos crescentes;
3) essa crítica vai atingir diretamente o Estado de bem-estar social e de direitos, cuja
tendência de crescimento é incessante;
4) isso resultará no neoliberalismo, que surge como crítica aos excessos do Estado
em prejuízo da Sociedade produtora e contribuinte que, cada vez menos, recebe do
Estado e cada vez mais tem de sustentá-lo.

137
Nesse sentido, surge a perigosa tendência de uma inversão de funções no
sistema republicano. Se na democracia, a lógica é de que o Estado sirva a sociedade, a
expansão das estruturas governamentais, nos três poderes sobrecarrega a sociedade
produtiva na tarefa de servir ao Estado.

Todo modo, do ponto de vista analítico e metodológico, a contribuição de Antony


Downs inaugurou o individualismo metodológico, bastante aceito na Ciência Política.
Isso inclui a teoria da escolha Pública de Buchanan, que usa o pressuposto da escolha
racional egoísta como causa motivacional dos déficits públicos, expondo o problema de
caixa do Estado de bem-estar social e de direitos. Mais que isso, nos leva à compreensão
analítica do campo de germinação e contaminação desse “desarranjo” orçamentário: o
sistema eleitoral, onde essas teorias siamesas identificam a conexão que dá origem ao
problema: de um lado, os partidos políticos estão constantemente tentando maximizar
votos. De outro lado, está o autointeresse do eleitor. Os dois lados praticam uma “ação
racional com vistas às suas finalidades” – para usar a terminologia weberiana. Ambos
desempenham um papel semelhante na política, tal qual consumidores no mercado
movidos pelo autointeresse. As eleições são o ponto central dessa troca na democracia,
em que cada um dos lados procurará obter o que deseja.

Assim, o eleitor deseja sempre um conjunto de coisas que possa estar o mais
próximo da maximização do seu bem-estar. Ele “negociará” seu voto procurando
comprometer seus candidatos e escolherá aqueles que acredita tenham a melhor
chance de materializar, de algum modo, suas expectativas. Já o político que deseja o
seu voto, este fará tudo o que for possível para alcançar o poder e nele permanecer.
Todos os outros objetivos, voltados ao interesse público, virão depois do principal. Tal
é escolha racional, na visão de Downs, de Buchanan e de outros teóricos e adeptos da
rational choice theory, bem como da public choice theory. Nessa direção, a escolha
do agente político, seja o eleito, seja o eleitor, será, antes de tudo, uma escolha
egoísta. Depois disso, poderá ser uma escolha moral, ética e republicana, preservado
o interesse individual.

Ainda que esse pressuposto do individualismo metodológico seja preponderante,


as melhores decisões e o melhor desempenho dos agentes políticos tendem a ser
também altruístas e voltadas ao maior número possível de eleitores. Isto acontece pela
razão lógica de que é desses últimos o julgamento e a decisão sobre a eleição e ou a
permanência e sobrevivência política daqueles. Como muitas vezes o interesse público
é a melhor solução da maioria, o agente político se orienta por essa escolha coletiva,
pensando na preservação do interesse próprio. Assim, o que pode parecer imoral ou
amoral no nosso julgamento sobre os políticos, deve ser visto como da própria natureza
do jogo político. Nessa perspectiva, toda vez que um agente político agisse sem querer
prioritariamente o poder, estaria agindo tão irracionalmente quanto um negociante que
não desejasse maximizar seu lucro nos negócios.

138
Por esse ângulo, a política é vista sem paixões. É preciso perceber que aqui
a ideia da cientificidade chega ao seu ápice na análise política. Podemos dizer que o
realismo político, que teve início com o pensador florentino Nicolau Machiavel, alcança
aqui seu caráter mais explícito. É claro que isso tende a incomodar moralmente
qualquer jovem estudante, predisposto a ver na Ciência Política um instrumento de
aperfeiçoamento e evolução da realidade. Mas é preciso encarar o individualismo
metodológico como um meio importante de compreender as coisas como elas
são. Só então, compreendidas como elas são é que podemos melhor nos atualizar
dos conhecimentos científicos para melhorar o mundo, em busca da realização de
nossas utopias coletivas. Esse é o individualismo metodológico, que pressupõe o
entendimento da política pela ação racional com objetivos que passam pelo egoísmo,
pelo individualismo, pelo interesse pessoal.

Desse modo, considerem-se que partidos políticos e eleitores agem de forma


racional para atingir certos objetivos específicos. O objetivo de governos é exercer o
controle sobre os seus partidários, sobre a oposição e sobre os eleitores. Nessa lógica,
tudo será feito com o objetivo de alcançar o poder e em nome dele preservá-lo. Deve
estar claro que, muitas vezes, seus cálculos resultarão em erros, em efeitos inesperados
e resultados indesejados, de toda ordem. É absolutamente normal que seja assim, já que
a política implica, sempre, uma relação de opostos, se entendemos como disputa pelo
poder. O resultado pode não sair de acordo, mas o objetivo será sempre o de preservar,
de maximizar os ganhos. Esses objetivos individuais somam-se a outros e se reúnem
quase que harmonicamente nos partidos políticos. Nesse sentido, os partidos são
máquinas de conquista e preservação do poder. E, com isso, o eleitor tende a maximizar
seus ganhos da mesma forma, no momento das eleições.

Se esse é o ponto de partida investigativo do cientista político, também poderia


sê-lo a cada um de nós em relação à compreensão de como a política realmente
funciona. Tal reflexão nos revela uma tensão permanente na democracia, existente no
nosso cotidiano tanto quanto no mundo das ideias. Trata-se da tensão entre a utopia
democrática e o realismo político. A utopia sugere que o povo controle os políticos e
estes ajam pelo bem público. Enquanto isso, o realismo nos mostra que há sempre
uma minoria dominante no poder, como sugerem os teóricos da escolha racional e da
escolha pública. Essa tensão é natural, porque revela a vontade moral rousseauniano
de como a política deveria ser e as escolhas racionais hobbesianas que mostram como
a política é. Por extensão, sempre nos remete de volta ao “pai” da Ciência Política,
Nicòllo Machiavel.

4 A IMPORTÂNCIA DAS INSTITUIÇÕES


Com toda a importância analítica, o individualismo metodológico dos teóricos da
rational choice theory e da public choice theory também são alvos de críticas. A principal
delas é que, se os agentes políticos em busca do poder obedecessem realmente aos

139
seus interesses e fossem, no máximo, guiados pelos interesses egoístas dos eleitores,
o bem comum não seria possível. O economista político brasileiro Luiz Carlos Bresser
Pereira (2009), por exemplo, afirma que “o processo civilizatório não seria possível pelo
mero egoísmo”. Isso nos leva à discussão sobre a importância elementar das instituições
políticas, isto é, as palavras, ainda que a propensão fosse sempre egoísta, o conjunto
de princípios, leis, regras e valores funcionariam como filtros, impedindo que o egoísmo
prevaleça. Nessa perspectiva, as instituições devem ser elaboradas evitando que os
interesses alheios aos republicanos se sobreponham.

Se nos perguntamos, por que um país como o Brasil é injusto e desigual?


Várias podem ser as respostas, a começar pelas morais e mais vulgares, segundo as
quais, políticos são egoístas, o sistema é corrupto, o problema é cultural e endêmico à
população ou é reflexo do sistema capitalista etc., mas, talvez, o maior desafio da Ciência
Política seja o de demonstrar que a “tecnologia” da desigualdade e das injustiças seja
fabricada pelas leis. Nesse sentido, o estudo das instituições formais, isto é, das leis,
desde as cartas constitucionais das nações são muito importantes. Esse talvez seja
mesmo o maior papel da Ciência Política, ao largo daquilo que os estudos no campo do
Direito, ao que se somam as contribuições da Filosofia política.

Sempre lembrando que na Ciência Política, como no Direito, nos referimos às


leis e regras, isto é, às instituições formais, estas são fundamentais ao nos oferecerem
o conjunto de significados que elas contêm. O papel do cientista político é revelar
esses significados. Para cientistas políticos como James March e Johan Olsen (1989
apud DELLA PORTA, 2003, p. 40), por exemplo, explicam que os seres humanos estão
frequentemente, procurando conferir um sentido as suas histórias particulares. Em
outras palavras, temos que voltar a Max Weber, quando esse sociólogo explica que as
ações humanas são dotadas de significados, sendo necessário identificá-los nas ações
dos homens, mas também de suas instituições.

Como sociólogo, Weber se referia não apenas às instituições formais, mas,


sobretudo, às instituições informais, isto é, valores, hábitos, costumes, crenças, códigos
de conduta e sentimentos, muitas vezes de longa data e inconscientes. Ações baseadas
na tradição, nas convicções e na afetividade, sempre permeadas entre si, explicam
ações humanas e suas consequências em sociedade. Existe uma reciprocidade de
influências entre os indivíduos e as instituições. Por um lado, os indivíduos orientam suas
ações em sociedade, através de uma enorme e complexa rede de instituições, sejam as
informais ou formais. Por outro, as instituições tendem a refletir, não apenas influenciar,
as expectativas dos indivíduos. É claro, não se trata de reunir os interesses de cada um
e somá-los. Trata-se de sintetizar e filtrar as demandas dos indivíduos em coletividade e
devolvê-las na forma de instituições que orientarão as ações dos indivíduos, ao mesmo
tempo que tendem a refletir suas demandas.

No campo da política, especificamente, mas também no campo do Direito,


trata-se de reconhecer que as instituições formais também revelam esses vínculos,
respondendo e ao mesmo tempo refletindo significados e intenções. Nesse sentido,

140
oferecem “cachos de crenças e normas” (DELLA PORTA, 2003, p. 40), como se fossem leis
em forma de frutos que abastecem os indivíduos. Isso não quer dizer que esses significados
e intenções estejam democraticamente distribuídos, isto é, que respondam equanimemente
ao interesse e entendimento de todos. Isso não acontece o tempo todo. Muitas vezes, como
sugerimos, escondem os interesses de quem tem mais poder e os protege. Mas, mesmo os
poderosos se encontram submetidos a “cachos de crenças e normas” que convergem para
os interesses de todos os indivíduos. Segurança, paz, propriedade privada, família e outras
tantas coisas entram nesse imenso pomar. E é essa conjunção moral, segundo os críticos
do individualismo metodológico, que se impõe na constituição social.

Não obstante, o mais importante é levar em conta, a velha e boa do grande


inspirador do institucionalismo, o filósofo político francês Barão de Montesquieu.
Autor de um dos maiores clássicos da Filosofia Política, em “O espírito das Leis”,
Montesquieu (1997) sugere que as sociedades em geral, nações, países e povos, como
se queira entender, se desenvolvem pela construção de boas leis. Essa construção
deve ser compreendida na perspectiva conservadora do longo tempo histórico. Não
há garantias de um processo continuamente evolutivo. A história das sociedades
está cheia de avanços e retrocesso, admita-se. E nunca se descarte que avanços
institucionais importantes podem acontecer em períodos relativamente rápidos.
O trabalho de elaboração e aprovação de uma Constituição Federal é um exemplo
de como reformas institucionais podem gerar mudanças notáveis e em espaços de
tempo não tão longos assim.

Mas nada acontece da noite para o dia e o trabalho é árduo. Além disso, boas
reformas institucionais serão evidentemente republicanas e isso depende da vigilância da
sociedade, isto é, de sua participação através das formas de participação, acompanhamento
e influência da opinião pública sobre as decisões que acontecem no interior da caixa preta.
Como já vimos, e com isso concordamos, no interior do sistema político, há sempre um
conjunto de interesses de autopreservação do sistema. Esse objetivo está evidentemente
ligado à maximização do interesse próprio. Mas o interesse próprio pode ser suplantado
pelo interesse público, ou até mesmo preservado parcialmente, desde que o interesse
público seja alcançado. Nesse sentido, a história do desenvolvimento institucional das
nações, tem demonstrado que quanto maior a informação da sociedade, seu poder de
pressão e participação, melhores serão as instituições.

Ao cientista político, compete muita atenção ao modo de como as instituições


formais, as leis, regras e normas são constituídas. E não deve descartar, em nenhuma
hipótese, os interesses que as impulsionam, desde o grande sistema social até o
interior do subsistema político. É preciso abrir a caixa preta com frequência, a fim de
que a luz do sol revele o que ali se esconde. Muitas vezes, uma bela lei anticorrupção
poderia ser dispensável, desde que a interpretação sobre algo considerado um desvio
fosse entendido como algo permitido. Uma lei que proíbe o financiamento privado de
campanha subentende que esse financiamento é imoral. Mas há países em que a lei é
mais flexível. Então, é uma questão de interpretação da própria sociedade sobre o que
considera ou não moral e ético.

141
Mas, além disso, uma resposta aparentemente positiva do subsistema político
às demandas do sistema geral, que é a sociedade, pode conter interesses corporativos.
Se muitas demandas empresariais são entendidas como legítimas do ponto de vista
da saúde econômica, como pagar menos impostos, podem ser consideradas ilegais
do ponto de vista institucional-legal. E os agentes responsáveis pela feitura das leis
podem tê-las feito com interesses corporativos, criando relações de dependência
promíscua. Tudo em nome da moral e do interesse público. Da mesma forma, as leis
que inibem o financiamento privado das campanhas eleitorais foram feitas em nome
do interesse público, mas aumentaram em muito as estruturas do poder judiciário,
com cargos, salários e poder, às custas de impostos dos contribuintes, convencidos
de que essa seria a melhor decisão.

Pois bem, a discussão não termina aqui. Há muito “pano pra manga” e o que
devemos lembrar é: o sistema político é constituído por um conjunto de agentes, órgãos e
interesses que produzem decisões em resposta às demandas da sociedade. A tendência
de maximização do interesse próprio existe no interior do sistema como fora dele, isto
é, na sociedade. Apesar disso, essa sociedade é composta de indivíduos que orientam e
filtram suas decisões, julgamentos e ações por valores morais e concepções éticas que
convergem com o interesse público. Esses “cachos de crenças e normas” interferem
nos processos decisórios no interior da caixa preta. Quanto mais forte a moral coletiva
voltada ao interesse público, e quanto mais informação, pressão e participação social,
melhores serão as instituições do ponto de vista republicano. Então, podemos lembrar
convenientemente a principal máxima de Montesquieu: boas instituições produzem
bons homens e bons homens são necessários para produzirem boas instituições.

INTERESSANTE
Política: por onde começar a apreender?

Sempre que se fala de política, a primeira coisa que vem à nossa mente é voto e eleições,
uma vez que, na  democracia, o ponto alto da participação do cidadão comum na vida
política é a eleição. Mas, na realidade, política é um assunto amplo e que está para além do
voto, pois trata de questões como a diplomacia, guerra, finanças do governo… Além disso,
é também uma parte significativa da vida de todos os cidadãos impactados por decisões
tomadas nessa seara, por isso é uma boa ideia compreendê-la. Vamos lá?!

Política + Sociedade = Apatia. Por quê?

Toda democracia opera com um certo grau de apatia, como nos apontou o economista
estadunidense Anthony Downs – que possui especialização em  políticas públicas  e
administração pública – na sua renomada obra Uma Teoria Econômica da Democracia. No
livro, o autor aponta a falta de vontade em se envolver com a política como uma forma de
se posicionar sobre o assunto. Nesse sentido, Downs realizou uma valorização positiva da
apatia política baseado na teoria da escolha racional (racional choice).

142
A apatia política do brasileiro tem algumas causas, como os escândalos de corrupção, a
influência negativa da mídia na formação de opinião sobre política e o pensamento de que
“eu não posso ou não sou capaz de resolver nada!”… Dessas, a mais relevante, segundo o
sociólogo Sérgio Abranches, seria a indignação da população brasileira com os sucessivos
escândalos de corrupção e a crise política que atingiu o país desde 2013. Recentemente,
episódios atingiram o presidente (Michel Temer) e essa indignação, em vez de se canalizar
em um “grito de basta” suficientemente forte para promover mudanças, vem se traduzindo
em “desolação, apatia, conformismo”.

É importante pontuar que,  existe uma diferença entre não  participar


da política por opção e não participar por não saber como. Segundo o
sociólogo Ricardo de Oliveira  (professor da Universidade Federal do
Paraná – UFPR), essa falta de preparo do cidadão é grande no Brasil e
dificulta a participação fora do período eleitoral. Mas estamos falando
de outra questão: a política enquanto ciência que permeia todas
as áreas de nossa vida desde o café da manhã na padaria até
o programa de televisão que assistimos deitados nos sofás
da nossa casa! Como nos educar e, eventualmente, passar a
gostar de política?

Então, confere algumas dicas que serão apresentadas! Leiam


os clássicos da política, é importante conhecer os pensadores
clássicos, acessando no link seguir:

FONTE: <https://bit.ly/3sCTyU8>. Acesso em: 29 jun. 2020.

143
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A política pode ser compreendida como um sistema organizacional.

• O sistema organizacional deve ser compreendido no interior do sistema maior, qual


seja, a sociedade.

• As relações intrassistêmicas e intersistêmicas são interdependentes.

• A teoria sistêmica trata o sistema político como uma caixa preta.

• A abordagem do individualismo metodológico sugere que os indivíduos agem, na


política, pela maximização de seus interesses.

• As teorias da escolha racional e da escolha pública representam as principais


abordagens comportamentais do individualismo metodológico.

• O institucionalismo na Ciência Política sugere a predominância das instituições sobre


os interesses individuais.

144
AUTOATIVIDADE
1 Na Ciência Política, a teoria do sistema tem uma presença notável nas abordagens
teóricas explicativas do funcionamento das coisas da política. Literalmente,
o ambiente político é compreendido e apresentado como um sistema menor,
dentro de um sistema maior, em interdependência externa e interdependência
(interna). Ao sistema político dá-se, inclusive, um nome alegórico para explicar
seu funcionamento, por analogia ao mundo real da política. Portanto, responda:
se o sistema político é um subsistema, qual é o sistema maior dentro do qual está
e como funciona esta relação intersistêmica, que nome se dá alegoricamente ao
sistema político e como ele funciona?

2 No interior da Ciência Política, a abordagem comportamental tem como modo de


análise e interpretação o individualismo metodológico. As duas vertentes teóricas a
utilizarem esse método são a teoria da escolha racional e a teoria da escolha pública.
Elas sugerem uma constante relação de troca entre o eleitor e o eleito, assim como o
aspirante à eleição. Nessa perspectiva analítica, explique o que sugere o individualismo
metodológico como ponto de partida? Além disso, na perspectiva da teoria da escolha
pública de James Buchanan, diga qual é o efeito desse comportamento padrão nas
contas públicas? Por último, indique o nome do autor clássico da Sociologia que
inspira a análise politológica a partir do significado das ações individuais.

145
146
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
PARTIDOS POLÍTICOS, REPRESENTAÇÃO
E PARTICIPAÇÃO

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, você estudará os partidos políticos em sua condição representativa
e participativa nas democracias ocidentais representativas. Compreender as
democracias de massas em sua condição representativa, requer o conhecimento
das diversas instituições políticas que justificam e legitima a representatividade
popular, o poder constituinte. Nestas condições, os partidos políticos desempenham
papel determinante. Evidentemente não se apresentam como as únicas instituições
representativas, mas entre elas uma das mais importantes, mesmo reconhecendo que
na atualidade seja uma das instituições com menor credibilidade no cenário social e
político brasileiro.

Especificamente, estudaremos o que é um partido político, quais suas


características determinantes, sua função, bem como formas de sistemas partidários
existentes no Ocidente. Procurarmos apresentar sob a perspectiva da história política
nacional os inúmeros partidos políticos que se constituíram em determinados contextos
da sociedade brasileiro e, que deixaram de existir no contexto seguinte. Trata-se de
reconhecer as fragilidades da cultura político-partidária nacional, expressão das tensões,
mas, sobretudo das dificuldades da sociedade brasileira em seus múltiplos interesses
setoriais alcançar consensos suficientes na construção de projeto consistente de
desenvolvimento nacional.

Desejamos a você excelentes reflexões, estudos e aprofundamentos!

2 O QUE É POLÍTICA?
Nosso objetivo, neste tópico, é compreender aspectos históricos e ideológicos
constitutivos dos partidos políticos, porém, antes de adentrarmos na descrição dessas
instituições que se circunscrevem nas esferas representativas das sociedades modernas
é preciso retomar a própria noção de política. Afinal, o que é política? Na atualidade,
este questionamento antes de se apresentar desnecessário, requer atenção em função
da banalização a que foi e é submetido no cotidiano. Por outro lado, a necessidade
de definição também se apresenta na medida em que muitas situações partimos de
preconcepções, de usos superficiais de um conceito desconsiderando os equívocos
provenientes desta condição.

147
Etimologicamente a palavra política deriva do grego antigo “polis” que designa
“cidade-comunidade”. A cidade-comunidade é o locus por excelência da vida social,
das relações entre os homens em função da constituição e manutenção de um espaço
público que acolha e preserve o bem comum. O bem comum é constituído de tudo
aquilo que serve a vida da coletividade, que contribui para a vida do cidadão possa
cumprir sua finalidade alcançando o bem viver e, por extensão preserve e desenvolva
a polis. Os gregos antigos estão entre os povos que compreenderam tal condição,
como demonstra Vernant (1986, p. 34): “[...] o sistema da polis é primeiramente uma
extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos do poder.
Torna-se o instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade no Estado, o
meio de comando e de domínio sobre outrem”.

Nesta perspectiva, Aristóteles definiu o homem como um animal falante “zoon


logon ekhon” (um ser vivo dotado de fala), que negocia com outros homens as condições
da existência, da vida em sociedade e, neste sentido pode-se dizer que o homem é zoon
politikon, um animal social e, portanto, político.

Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas


e os outros animais que vivem juntos. A natureza nada faz em
vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não devemos
confundir com os sons da voz. Estes são apenas a expressão de
sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os outros animais
são, como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limitado a
este único efeito; nós, porém, temos a mais, senão o conhecimento
desenvolvido, pelo menos o sentimento obscuro do bem e
do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a
manifestação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala.
Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e
civil. (ARISTÓTELES, 2006, p. 5).

Sob tais pressupostos, pode-se considerar que a política é uma atividade


vital para os seres humanos. Na condição de um ser social, que tem significativas
dificuldades de viver sozinho, necessita dos outros para constituir sentido e finalidade
as suas ações no contexto de mundo em que está inserido. Somente os animais ou os
deuses não necessitam da política na medida em que se bastam a si mesmos. Assim,
uma primeira acepção de política implica uma condição inerente ao ser humano que
age continuamente com o intuito de viver e conviver comunitariamente.

A definição exposta acima apresenta outra dimensão constitutiva da política.


Assim, se a política é inerente à condição humana que partilha, compartilha e negocia
no espaço público a própria sobrevivência, então é preciso considerar que a política tem
relação com o poder. Cabem os seguintes questionamentos: “Afinal, a “política” serve
para se atingir o poder? Ou, então seria a política simplesmente a própria atividade no
plano desse poder?” (MAAR, 1993, p. 9).

O ser humano na condição de um animal político, necessita constantemente


negociar as relações de poder com os outros seres humanos. Ou seja, a política é a
constante ação humana de busca de equilíbrio nas relações de poder e, nesse sentido

148
a política serve para se atingir o poder, tanto quanto é atividade por excelência para o
exercício do poder. Ou dito de outra forma, é por meio da negociação estabelecida na
esfera da política, que se pode alcançar o poder, mas a permanência no exercício do
poder, que demanda a capacidade política na manutenção deste poder.

3 O QUE É PARTIDO POLÍTICO?


Assim, como a definição de política se apresenta crucial na atualidade em função
de preconceitos e, de percepções equivocadas, também o conceito de Partido Político
se faz necessário. Afinal, a percepção social que se tem dos partidos, se caracteriza pela
desconfiança, pela desconsideração de seus fundamentos ideológicos e programáticos.
Talvez, possa dizer que para o senso comum disseminado socialmente, os partidos
políticos carecem de legitimidade e finalidade. São meras agremiações, cujos integrantes
procuram se locupletar a partir de suas possibilidades eleitorais. Transformam o exercício
da política representativa num balcão de negócios potencializando a corrupção política em
função dos interesses específicos de determinados grupos sociais, ou mesmo individuais.

No entanto, em regimes democráticos, a forma mais avançada de organização


social e participação política é o partido. Assim, o partido político pode ser definido como
agremiação que congrega cidadãos vinculados por interesses e ideais comuns, que se
empenham em colocar em ação por meio de um programa político e ideologicamente
definido por estratégias de conquista do poder político e, por decorrência o exercício
do governo. É a instituição por excelência de mediação entre Estado, povo e poder,
sobretudo como instrumento de expressão da vontade e dos interesses dos diversos
grupos que constituem o tecido social de uma nação.

Sob tais pressupostos, os partidos políticos são vitais para a prática da


democracia, pois se constituem como elo entre a vontade popular, considerado aqui
como o poder constituinte e o poder constituído na forma do poder legislativo e executivo.
Ou seja, a consistência de uma democracia pode ser medida, entre outras formas pela
vitalidade dos partidos políticos. Nesta direção, os partidos devem se constituir como
organizações de pessoas livres em torno de objetivos políticos comuns.

É atribuição dos partidos políticos transmitir ideias, promover o debate em


torno dos interesses públicos, bem como conquistar adeptos, fortalecendo sua visão
política e, suas estratégias de alcance do poder. Nesta direção, os partidos políticos
como instituições de organização política e social cumprem papel decisivo no sentido
de pesquisar, esclarecer, formar e debater questões públicas promovendo avanços nas
concepções políticas, nas formas de governo, bem como nas formas de organização
social. Sob tais condições, os partidos políticos precisam estar enraizados na vida
nacional como forma de responder adequadamente às aspirações nacionais. Por outro
lado, na medida em que os partidos não atendem suficientemente a estes requisitos,
comprometem a condição da democracia. Assim, os elementos centrais de um partido
são a doutrina e o programa.

149
A doutrina contém os princípios ideológicos básicos e as concepções
fundamentais sobre a pessoa humana e sobre a sociedade, e fornece
os critérios básicos ou postulados éticos pelos quais se deve orientar
a ação. O programa contém a proposta de sociedade de atuação
concreta sobre o processo histórico. Explica-se através de metas
concretas ou reivindicações e com vistas à realização da doutrina
(BRUM, 1988, p. 20).

Diante do exposto, cabe ressaltar aspecto de crucial importância na constituição


de um partido político, trata-se da ideologia. No atual contexto social e político, o
conceito de ideologia apresenta-se banalizado, assumindo conotação pejorativa como
conjunto de ideias marxistas, ou de esquerda e, que escondem determinados aspectos
da realidade social e política com fins obscuros. A mesma conotação é encontrada em
designações como ideologia de extrema direita, ideologia de direita ou conservadora.
Diante do obscurantismo, a que foi lançado tal conceito é oportuno apresentar uma
definição que nos permita o exercício reflexivo adequado. “Qualquer sistema abrangente
de crenças, categorias e maneiras de pensar que possa construir o fundamento de
projetos de ação política e social: uma ideologia é um esquema conceitual com uma
aplicação prática” (BLACKBURN, 1997, p. 194).

A ideologia do partido apresenta-se como visão parcial do contexto social e


político em curso na média em que um partido representa o pensamento, os interesses,
as aspirações de uma parte da sociedade que se identifica com o partido. Assim, se por
um lado a ideologia do partido atua no sentido de conferir consistência discursiva, por
outro, atua na desconsideração de determinados aspectos do contexto político e social
que não se apresentam no arco de seus propósitos.

É sob tais prerrogativas que se pode falar de ideologias conservadoras, que se


caracterizam por advogar pela manutenção de instituições sociais tradicionais, entre
elas a família, a comunidade local, os usos, os costumes, as tradições e convenções
estabelecidas. Ideologias conservadoras contrapõem movimentos e revolucionários e
progressistas. Ideologias revolucionárias advogam majoritariamente pela transformação
das estruturas sociais e políticas vigentes, bem como pela promoção de direitos sociais e,
diminuição das desigualdades sociais. Por seu turno ideologias de direita, se caracterizam
pela defesa de direitos individuais em relação aos direitos coletivos. Considera valores
tradicionais como família e religião como fundamentais para o bom funcionamento da
sociedade. Contrapõe-se a promoção da igualdade social entendendo que a liberdade
de mercado é suficiente para dirimir as desigualdades sociais.

Evidentemente essas são algumas das características dessas ideologias,


muitas outras poderiam ser apresentadas e, sobretudo é preciso ter presente que as
mais diversas ideologias não se apresentem como um conjunto de princípios gerais
definidos e válidos de forma universal, mas se apresentam também, como portadores
de singularidades, locais, regionais, nacionais e internacionais.

150
Ainda no que concerne a definição de partido político uma de suas características
é o fato de contemplar em sua condição a existência de tendência. Uma tendência é um
setor organizado no interior do partido que mantém divergências teóricas ou práticas
em relação à direção majoritária. Ou em sentido inverso, uma tendência constitui-se em
um conjunto de filiados que se alinham na defesa de uma mesma linha de pensamento.
Assim, entre as inúmeras tendências que podem compor um partido político há o
predomínio de uma tendência que se apresenta como majoritária, porém, há que se
considerar que uma tendência partidária, em função de suas concepções teóricas
e práticas, apresenta-se com significativas diferenças em relação ao conjunto das
demais tendências que compõem o partido e podem promover uma divisão partidária,
desconsiderando certas situações, se contrapondo à orientação majoritária do partido.

IMPORTANTE
O termo ideologia aparece pela primeira vez, em 1801 no livro de Destutt de Tracy.
Elements d’Ideologie (Elementos de Ideologia). Juntamente com o médico Cabanis, com
De Gérando e Volney, Desttut de Tracy pretendia elaborar uma ciência da gênese das
ideias, tratando-as como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano,
enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. Elabora uma teoria sobre as faculdades
sensíveis, responsáveis pela formação de todas as nossas ideias: querer (vontade), julgar
(razão), sentir (percepção) e recordar (memória).

Os ideólogos franceses eram antiteológicos, antimetafísicos e antimonárquicos.


Pertenciam ao partido liberal e esperavam que o progresso das ciências
experimentais, baseadas exclusivamente na observação, na análise e
síntese dos dados observados, pudesse levar a uma nova pedagogia e a
uma nova moral. Contra a educação religiosa e metafísica, que permitem
assegurar o poder político do monarca, De Tracy propõe o ensino
das ciências físicas e químicas para “formar um bom espírito”, isto
é, um espírito capaz de observar, decompor e recompor os fatos,
sem se perder em vazias especulações. Cabanis pretende construir
ciências morais dotadas de tanta certeza quanto às naturais, capazes
de trazer a felicidade coletiva e de acabar com os dogmas, desde que a
moralidade não seja separada da fisiologia do corpo humano.

FONTE: CHAUÍ, Marilena. 1991, p. 22-23.

4 UM POUCO DE HISTÓRIA
O surgimento e o desenvolvimento dos partidos políticos estão diretamente
vinculados à afirmação do Estado moderno e, mais especificamente, ao surgimento
das democracias liberais. Na passagem do século XVIII para o século XIX constitui-
se, sobretudo, na Europa o Estado Liberal Democrático pautado no princípio da
representatividade, a partir da legitimação via processo eleitoral dos poderes legislativo

151
e executivo. Neste contexto, também é característico do Estado Liberal Democrático
a existência e o direito à oposição seja via organizações e movimentos sociais, mas,
sobretudo, pelos partidos políticos.

Os partidos políticos na forma como se apresentam na atualidade, se constituem


nas primeiras décadas do século XIX. Nos Estados Unidos, os primeiros partidos iniciam
sua organização por volta de 1830; na Inglaterra, por volta de 1832. Na França, o surgimento
dos partidos políticos esteve associado à Revolução de 1848, a “Comuna de Paris”.

Os partidos políticos, tais como os concebemos atualmente, foram criados na


primeira metade do século XIX, considerando-se como o marco de seu nascimento a
reforma eleitoral promovida na Inglaterra em 1832 ("Reform Act"). “Assim, para muitos
estudiosos do tema, é impossível falar-se em partidos políticos antes dessa data, quando
se criou pela primeira vez uma instituição de direito privado, com o objetivo de congregar
os partidários de uma ideia política comum”. (SCHWARTZENBERG, 1979, p. 489).

IMPORTANTE
A Revolução de 1848: no ano de 1830, os franceses extinguiram os anseios da restauração
monárquica ao expulsarem a dinastia Bourbon do poder. Em seu lugar, com o expresso
apoio da burguesia nacional, Luís Filipe de Orleans assumiu o governo com o claro intuito
de firmar os avanços liberais na Constituição Francesa. Nesse sentido, buscou a ampliação
do Poder Legislativo e anulou qualquer ato de censura aos meios de comunicação e
realizou a separação entre Igreja e Estado.

Contudo, mesmo com tais avanços, vários grupos políticos se voltaram com seu governo assim
que o voto censitário fora preservado. Republicanos, socialistas e bonapartistas se aproveitavam
do fim da censura para realizarem grandes banquetes públicos durante os quais discutiam
as reformas a serem empreendidas no país. Conhecida como a “política dos banquetes”, essa
manifestação acabou ganhando força entre amplos setores da população francesa.

Visando desintegrar o movimento, o Rei Luís Filipe e o ministro Guizot resolveram lançar
essas reuniões à ilegalidade e não ceder a qualquer reivindicação política. Contudo, a
insensibilidade do governo acabou sendo estopim para que um grande movimento
popular se formasse em fevereiro de 1848. Naquele mesmo momento, a obra “Manifesto
Comunista”, de Marx e Engels, ofereciam um grande aporte ideológico para aquela luta
contra a hegemonia burguesa. Com o apoio de membros da própria Guarda Nacional, os
revolucionários forçaram a demissão do ministro Guizot e a fuga do rei para a Inglaterra. A
partir desse momento, a França se transformara em uma República. Imediatamente, a pena
de morte e o sufrágio universal foram instalados no país. Contudo, em seguida, a reação
dos conservadores resultou na formação de uma Assembleia Constituinte de natureza
predominantemente moderada.

Mesmo não instalando um regime socialista, a Revolução de 1848 teve


grande importância para que uma nova polarização política ganhasse vida. A
partir daquele momento, as lutas entre burguesia e proletariado seriam
vigentes em diversas nações da Europa. Não por acaso, naquele mesmo
ano de 1848, outras rebeliões de traço liberal e socialista abalaram as
arcaicas estruturas de Velho Mundo. Costumeiramente, esse conjunto de
revoluções ficou conhecido como a “Primavera dos Povos”.

FONTE: <https://bit.ly/3tpYdrK>. Acesso em: 6 mar. 2020.

152
Inicialmente, pode-se inferir que a gênese dos partidos políticos vincula-se aos
grupos parlamentares e aos comitês eleitorais, pois na medida em que as assembleias
políticas desenvolveram suas atribuições alcançando independência, os membros
destas assembleias constataram a necessidade de organizarem orientando a ação
política, sobretudo na média em que o direito de voto foi ampliado tornando-se urgente
constituir a organização partidária com o intuito de orientar o eleitor em relação aos
candidatos, suas propostas políticas e, por extensão seu voto.

Num segundo momento, mas contemporâneo ao primeiro movimento partidos


políticos, também foram criados a partir de sociedades científicas, de grupos vinculados
à imprensa, de clubes de profissionais liberais e, de clubes populares. “Pode-se falar
em criação exterior nos casos em que o conjunto de um partido é essencialmente
estabelecido por uma instituição pré-existentes que tenha atividade própria situada
fora do processo eleitoral e do parlamento” (PETERSEN, 1988, p. 89).

Nesta direção, inúmeros foram e, ainda são os agrupamentos sociais que deram
e podem dar origem a um partido político. Os sindicatos, os movimentos sociais de
diversas categorias de trabalhadores, deram origem a inúmeros partidos políticos de
orientação socialista, ou sindical. Agrupamentos de intelectuais, associações estudantis
e universitárias também estão na gênese de partidos de orientação progressista, ou
socialdemocrata. Agrupamentos de empresários, de produtores rurais estão na gênese
de partidos de orientação liberal e conservadora.

Também a Igreja, bem como inúmeras denominações religiosas, contribuíram


ou estimularam a criação de partidos políticos vinculados à democracia cristã, por
decorrência de orientação ideológica de direita. As associações de militares, ex-militares,
instituições financeiras, multinacionais, também contribuíram para o surgimento
de partidos políticos. Alguns desses partidos tiveram ação política impactante nas
primeiras décadas do século XX, como o Partido Nacional Socialista Alemão, propagador
do nazismo e Partido Fascista Italiano. Na história recente do Brasil, a partir da segunda
metade do século XX, oriundo da Ditadura Militar estabelecida no Brasil entre 1964 a
1984, encontramos o partido denominado de Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

153
IMPORTANTE
Partidos Políticos: entre 1966 e 1979, o Brasil tinha apenas dois partidos legais, a Aliança
Renovadora Nacional (ARENA), de apoio ao governo, e o Movimento Democrático Brasileiro
(MDB), de oposição consentida. Outros, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB),
continuaram a existir na clandestinidade. Já nos últimos anos da ditadura, o governo fez
uma reforma partidária, para dividir a oposição, ao mesmo tempo em que tentava manter
unido o partido do regime.

[...]
Além das organizações ilegais e clandestinas de esquerda, o MDB foi um importante canal
de expressão das insatisfações da sociedade civil durante as eleições legislativas, que
foram mantidas até como forma de legitimação por parte dos militares. Nos primeiros
anos, a Arena, o partido do governo, alcançou enorme maioria na Câmara e no Senado
e nas assembleias estaduais. Os governadores, depois de 1965 eleitos indiretamente,
também eram quase todos da Arena.

Em 1970, a Arena teve uma vitória eleitoral esmagadora, tornando o exercício de oposição
extremamente difícil, motivo pelo qual alguns membros do MDB chegaram a cogitar a
autoextinção do partido.

Um grupo de 23 parlamentares, chamados de “autênticos”, iria contribuir para dar uma


feição mais combativa ao MDB a partir de 1970. Os autênticos aproveitaram todos os
espaços legais para fazer oposição, pagando muitas vezes com a perda de mandato, como
se deu com o deputado Alencar Furtado, e até com prisão, como no caso do deputado
Chico Pinto.

Entre 1970 e 1974, o partido se encolheu diante do apoio social, ativo ou passivo, ao governo
militar em tempos de milagre econômico e repressão. Mas, em 1974, mais conectado com
grupos sociais e intelectuais de oposição, o MDB surpreendeu o governo militar com uma
vitória nas eleições legislativas, fazendo com que o regime temesse perder o controle do
jogo político sucessório. Daí até a reforma partidária de 1979, o MDB conseguiu se firmar
como uma frente de oposição, ora mais liberal conservadora, ora mais à esquerda, apesar
das manobras legais do governo para controlar o partido.

Nas eleições de 1974, portanto, houve uma surpreendente vitória da oposição, elegendo
16 senadores em 22 vagas em disputa, que mudou toda a história. A sociedade,
aparentemente tutelada, seduzida pelo “milagre econômico” e aderente à ditadura, deu
uma resposta contundente nas urnas, abalando a estratégia dos militares de consolidar o
regime autoritário. Além disso, ao longo da campanha, o MDB soube se aliar a outros atores
da oposição política e cultural, como os intelectuais, os movimentos sociais e sindicais.

Ao apoiar o MDB, o PCB, que recusara a luta armada e insistia nas formas legais de
enfrentamento, contribuiu para essa vitória, caracterizando uma aliança entre um partido
de esquerda ilegal e a oposição legal. Os comunistas pagaram caro por isso. A partir de
então, a repressão sobre o partido foi ainda mais brutal. No começo de 1975, o governo
lançou uma grande ofensiva repressiva contra os pecebistas, prendendo vários dirigentes,
com muitos deles entrando para a lista dos desaparecidos políticos e mortos sob tortura.

Além disso, nas eleições de 1976, o governo promulgou uma lei que proibia a campanha
eleitoral na televisão e no rádio calcada em debates e discursos protagonizados pelos
candidatos. Em vez disso, eles só apareciam em fotos na TV e sua apresentação se limitava
aos currículos e ao número de candidatura. Essa lei ficou conhecida como “Lei Falcão”, em
referência ao ministro da Justiça, Armando Falcão, famoso por ser a “face dura da abertura”.

154
Mesmo assim, a oposição legal avançava, sobretudo nas grandes cidades, e catalisava o
apoio de amplos contingentes da população. Percebendo que o MDB se avantajava a cada
eleição, o governo promoveu uma reforma nos partidos.

Essa lei de reforma partidária, sancionada pelo Congresso em novembro de 1979,


correspondia ao projeto estratégico do governo de dividir a oposição em muitas facções e
manter o partido oficial unido. O Partido Democrático Social (PDS), novo nome da Arena,
era alardeado como o maior partido do Ocidente e tinha as canetas, cargos e verbas do
governo militar para fazer e acontecer.
Nos cálculos do governo, as principais lideranças do exílio, Brizola e Arraes, organizariam
seus próprios partidos, dividindo a esquerda considerada “perigosa”. Os partidos
comunistas continuariam proibidos, dentro das regras da Doutrina de Segurança Nacional.
Os “novos” movimentos sociais eram considerados barulhentos, mas inaptos para a
vida institucional partidária. Por fim, o regime sonhava com um partido forte de centro-
direita, encabeçado por Tancredo Neves. O MDB queria continuar unido, mas o governo
considerava que isso seria impossível.

A lei de reforma partidária dificultava ao máximo a vida da oposição que estava se


reorganizando: proibia alianças, voto vinculado, exigia diretórios organizados em vários
estados da federação e que os partidos lançassem candidatos em todos os níveis.

As oposições efetivamente se dividiram, enquanto a Arena permaneceu unida sob o


PDS. O governo havia acertado sua previsão. De resto, não. O PMDB, novo nome
do MDB, manteve parte dos quadros parlamentares, conseguindo amplo apoio
do eleitorado nas eleições gerais de 1982.
Leonel Brizola não conseguiu a legenda PTB, que foi dado para Alzira Vargas,
liderança expressiva apenas no sobrenome famoso. Sem recuar, no
entanto, Brizola criou o Partido Democrático Trabalhista (PDT), verdadeira
continuidade do trabalhismo histórico. O PDT era forte no Rio de Janeiro
e no Rio Grande do Sul. Em outros estados, porém, era frágil.

Esse quadro foi completado pela criação do Partido dos Trabalhadores (PT),
anunciado em agosto de 1979 e fundado em fevereiro de 1980. Reunindo
parte da esquerda não comunista, sindicalistas e movimentos de bases, e
apoiado amplamente por intelectuais socialistas e radicais em geral, o PT em
princípio poderia assustar o regime.

O novo quadro partidário do final da ditadura lançou as bases para o sistema


de partidos do regime democrático. A principal novidade a partir dos anos 1980
foi a criação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a partir de uma
dissidência do PMDB, e a criação de dezenas de pequenos partidos, muitos
deles ligados a grupos de esquerda ou a igrejas evangélicas.

FONTE: <http://memoriasdaditadura.org.br/partidos-politicos/>. Acesso em: 6 mar. 2020.

Além de aspectos anteriormente expostos, o que caracteriza os partidos


políticos dos mais variados espectros ideológicos, desde seu surgimento nas primeiras
décadas do século XIX, aos dias de hoje é a forma de sua organização centralizada
na cúpula partidária, espraiando-se em orientações e formas de ação para comitês
regionais e seções locais. Essa hierarquia organizacional é fundamental na manutenção
da disciplina ideológica e eleitoral.

155
5 AS FUNÇÕES DOS PARTIDOS POLÍTICOS
A partir do conjunto de argumentos arrolados até o presente momento desta
exposição de depreende que partidos políticos são instituições constitutivas da
sociedade civil organizada no âmbito dos Estados de direito organizados em torno de
regimes democráticos representativos e possuem funções vitais para a justificação e
legitimidade da representação política nas esferas do poder legislativo e executivo.

Sob tais pressupostos suas funções, que variam de acordo com o contexto
histórico, social e político são imprescindíveis, o que significa levar em consideração que
as funções dos partidos em sua origem diferem das funções assumidas ou atribuídas
aos partidos políticos na atualidade. Os mais diversos autores atribuem aos partidos
atualmente três funções basilares, o que não exclui outras funções que se apresentam
como demandas emergenciais.

A primeira destas funções é a formação da opinião pública através da


disseminação de sua orientação ideológica. Trata-se de apresentar à vontade popular
concepções de Estado, de gestão pública, de formação e implementação de políticas
públicas, entre outras prerrogativas políticas diferenciais em relação aos demais
partidos políticos concorrentes, bem como a orientação político-partidária que exerce
o governo da sociedade.

Essa função é vital para o partido político tanto quando para a sociedade e a
opinião pública na medida em que os partidos políticos são uma das poucas instituições
sociais que têm condições de “[...] envolver um significativo número de indivíduos em
torno de uma ação política controlada e permanente, fortalecendo ou criando novas
atitudes e crenças políticas” (PETERSEN, 1988, p. 93).

Na formação da opinião pública, os partidos podem assumir uma de duas


formas possíveis de socialização de seu ideário político e ideológico. Podem corroborar
ou legitimar as concepções e práticas políticas em curso pela orientação político-
partidária que exerce o poder ou contrapor-se a questionar a tal proposta política
sugerindo mudanças na forma de organização do Estado e condução do governo ou
mesmo propondo transformações nos padrões político-culturais.

A segunda função determinante dos partidos políticos é a arregimentação de


formação de quadros políticos locais, regionais e nacionais necessários a visibilidade e
difusão de suas ideias e propostas, bem como na condição de candidatos para a disputa
eleitoral, porém, em mesmo grau de importância a constituição de quadros políticos
consistentes é crucial para a composição de cargos de governo em caso de vitória
eleitoral e as decorrentes exigências de administração da máquina pública, bem como
de negociação das relações de poder os poderes legislativo e judiciário e sobretudo com
as demais instituições da sociedade civil organizada.

156
A terceira função, decorrente das duas funções anteriores é o enquadramento
dos candidatos eleitos. Ao exercerem seu direito de voto, os eleitores se identificam
com o discurso e as propostas de determinados candidatos vinculados a determinados
partidos e suas visões ideológicas. Nesta perspectiva torna-se crucial ao partido
político, que os eleitos pelo voto popular se mantenham no exercício do cargo vinculado
às plataformas políticas e ideológicas do partido. A desvinculação do candidato eleito do
partido acarreta prejuízos organizacionais ao partido, mas, sobretudo a sua credibilidade
junto ao eleitorado. Tal condição prejudica a compreensão da importância das diferenças
ideológicas que constituem o espectro político-partidário e por extensão prejudica a
própria sociedade na medida em que difunde o descrédito sobre a instituição “Partido
Político” de função insofismável em democracias representativas.

Evidentemente, inúmeras outras funções podem ser elencadas, entre elas


a de manutenção e legitimação do Estado e do sistema político vigente. Ou seja, as
instituições partidárias apresentam-se como elemento determinante para justificar as
democracias representativas que legitima o Estado de direito. No âmbito desta função
também se enquadram os partidos que propõem transformações profundas no Estado
e no sistema político na medida em que para expressar sua perspectiva ideológica
necessitam apresentar-se no âmbito da institucionalidade partidária.

6 TIPOS DE PARTIDOS
Os tipos de partido referem-se à forma de organização interna dos partidos políticos
que majoritariamente assumem duas formas: partidos de quadro e partidos de massas.

Os partidos de quadro encontram-se vinculados ao surgimento e afirmação das


democracias liberais e se apresentam como expressão das classes dominantes, entre
a burguesia emergente. O que fundamentalmente caracteriza os partidos de quadro é
seu caráter restritivo, ou seja, não se apresenta a preocupação de agregar quantidades
significativas de filiados, mas sim, adeptos de notável qualidade em conhecimento
erudito, administrativo, jurídico ou técnico e com significativas condições financeiras.

Decorrente desta condição, os partidos de quadro não investem tempo e


recursos na organização constante do partido. Mantém a estrutura partidária no plano
local e regional movimentando-os de forma mais expressiva em períodos eleitorais.
Outro aspecto característico dos partidos de quadro se estabelece em relação aos
candidatos eleitos que gozam de significativa autonomia frente ao partido.

Por seu turno, os partidos de massa se constituíram no bojo das transformações


sociais e econômicas que deram ensejo ao Estado de direito, bem como às democracias
liberais representativas e à instauração do sufrágio universal. Nesta direção argumenta
Schwartzenberg (1979, p. 95):

157
A fórmula do partido de massas é inventada pelos movimentos
socialistas do final do século XIX e começo do século XX. É copiada
em seguida pelos partidos comunistas, pelos partidos fascistas e por
certo pelos partidos democratas-cristãos. A generalização da fórmula
do partido de massas corresponde ao alargamento da democracia
que se abre a toda a população.

Sob tais pressupostos, o partido de massas pode assumir três formas


específicas: socialista, comunista e fascista. A origem do partido socialista situa-se no
bojo da organização das massas diante da precariedade e das ausências de garantias
dos trabalhadores no contexto da Revolução Industrial do século XVIII. Assim, o partido
socialista se constitui na condição de representante da classe trabalhadora, naquele
contexto, nomeada de proletariado.

Em função das demandas de organização partidária, o partido socialista


implantou a filiação formal ao partido, em que o interessado em ingressar na
agremiação política assina a ficha de filiação do partido comprometendo-se a
contribuir financeiramente na forma mensal para sua manutenção. Diferente do
partido de quadros e dos notáveis que o compunham, o partido socialista composto
por proletários destituídos de condição financeira, o que exigia para a manutenção da
estrutura partidária a contribuição de seus filiados.

Esta condição imposta pelas demandas financeiras de manutenção do partido


fez com que o partido socialista ou de massas se constituísse como uma organização
estruturada e rígida nas determinações e controles do partido. Neste contexto, o
partido para manter e ampliar seu quadro de filiados, bem como difundir sua ideologia
se via impelido a realizar constantes reuniões, cursos de formação política e palestras,
mantendo-se em atividade permanente. E, na medida de alcance de eleição de alguns
de seus filiados para cargos eletivos, comprometiam-se em contribuir financeiramente
com o partido, na medida em que sua eleição era decorrente do esforço partidário, bem
como manter-se alinhado ideologicamente com o programa do partido.

A forma do partido comunista está vinculada à Revolução Russa de 1917 e


constituição do partido comunista soviético, que passa a exigir sua adoção aos partidos
comunistas europeus. O que caracteriza o partido comunista é sua centralidade
organizacional situada no núcleo dirigente ou célula que se apresenta restritiva,
homogênea e solidária entre seus membros. O escopo do partido de tipo comunista está
articulado em torno da formação ideológica de seus filiados. Na atualidade, o Partido
Comunista Chinês apresenta-se como o mais destacado.

A origem do partido tipo fascista localiza-se entre as duas grandes Guerras


Mundiais (1ª e 2ª Guerra Mundial). Eles podem ser concebidos como resultantes da crise
das democracias liberais de mercado de fins do século XIX, que provocou profunda
desestruturação no mundo do trabalho, das condições de vida dos povos, sobretudo
europeus, culminando na depressão econômica de 1929. Nesse contexto de crise do
regime de acumulação do capitalismo, o avanço dos partidos de socialista e comunista

158
era inevitável. Tratava-se de impedir este avanço. A saída liberal foi o estímulo à criação
do tipo fascista de partido que tinha como objetivo primordial impedir o avanço das
esquerdas por meio de partidos e organizações internacionais.

Assim, o tipo fascista exige o total engajamento de seus filiados para além das
demandas partidárias, formando verdadeiras milicas sob espírito corporativo e militar.
Sua ideologia se caracteriza pela defesa da família e dos valores tradicionais, pelo
cultivo do sentimento patriótico, bem como pela intolerância em relação aos direitos
de minorias ou grupos sociais caracterizados naquele contexto como sub-raças e que
deveriam ser extirpadas do tecido social. Em relação à organização partidária, esses
partidos apresentam rígidos, centralizados e hierarquizados.

7 OS SISTEMAS PARTIDÁRIOS
No que se refere aos sistemas partidários é possível compará-los na medida
em que períodos significativos, as suas estruturas internas, bem como suas doutrinas
apresentam regularidade permitindo a descrição dos mais diversos sistemas partidários
nacionais num determinado período. A importância do estudo e análise dos diversos
sistemas partidários se constitui na possibilidade de verificação de semelhanças e
diferenças, o que permite a caracterização.

As classificações existentes descrevem sistemas pluralistas, ou multipartidários


e sistemas de partido único, bem como também podem avaliar o grau de competitividade
entre os partidos a partir dos percentuais de votos obtidos em eleições proporcionais e
majoritárias. Outro critério de análise e classificação dos sistemas partidários se refere
no nível de democracia praticado pelos partidos. Nesse sentido, Duwerger (1970, p. 20)
assim se posiciona:

Não é verdade que os sistemas pluralistas correspondam, sempre, à


democracia ocidental e os sistemas de partido único a uma ditadura
comunista ou fascista; em certos estados recém independentes,
o pluralismo pode servir para mascarar a continuação do domínio
feudal e o partido único pode exprimir um esforço de democratização.

De todo modo, os sistemas partidários pluralistas que podem ser bipartidários,


ou multipartidários implicam o fato de que coexistem ao menos dois partidos entre
os quais se estabelece um equilíbrio de forças. Na medida em que um partido detém
o controle do governo, as condições políticas se apresentam com maior estabilidade
e clareza fazendo com os processos eleitorais se desenvolvam de forma consistente
permitindo o eleitor definições mais precisas em relação à atuação do partido no
governo, bem como às críticas e propostas da oposição.

Ainda no que concerne a sistemas multipartidários em que diversos partidos


disputam a cena política e eleitoral torna-se necessário extensas composições
partidárias para conferir sustentabilidade ao governo. Essas alianças partidárias que

159
compõem as bases de sustentação do governo e de seu partido apresentam um custo
político significativo na forma de cargos em primeiro e segundo escalão, bem como
comprometem a linha ideológica do partido que elegeu o mandatário. Outro aspecto
a ser considerado é que as maiorias resultantes de extensas coalizões se apresentam
menos homogênea, menos coerentes e por decorrências menos estáveis. Em contextos
desta natureza os processos eleitorais assumem particularidades que podem conduzir
ao desvirtuamento do debate em torno das questões públicas relevantes.

A formação de alianças estáveis, que vão para a luta eleitoral


munidas de programas concretos, redigidos de comum acordo e
aplicando-os depois (...) aproxima o multipartidarismo do sistema
bipartidário. Pelo contrário, quando cada um dos dois partidos
tem uma estrutura flexível, quando não existe no parlamento
nenhuma disciplina de voto as maiorias governamentais tornam-se
incoerentes e o bipartidarismo assemelha-se ao multipartidarismo
(DUWERGER 1970, p. 21).

No que concerne aos estudos sobre partidos únicos é preciso ter presente as
diferenças entre partidos únicos fascistas e nazistas, de partidos únicos comunistas. As
práticas políticas destes dois sistemas partidários são significativamente diferentes. No
caso dos partidos fascista e nazista, eram movidos por cultivo da personalidade de um
líder que incorporava do ponto de vista estético, bem como da ação política, práticas
populistas e messiânicas. Ou seja, o partido, sobretudo, o culto ao seu líder máximo
se circunscreve a partir de ações específicas que contemplam os interesses pontuais
de uma população massificada. No ritual do poder exercício de forma messiânica e
populista a eleição de um inimigo comum da nação é condição central para manter
mobilizada massa de seguidores do líder. Práticas de intolerância com certos setores
sociais, o exercício desproporcional da força em circunstâncias específicas, bem
como discursos de ordem conservadora em relação a valores e costumes e, discursos
agressivos em relação ao suposto inimigo comum fortalecem a imagem do líder que
sabe o que é adequado à nação como um todo. As experiências políticas dos partidos
nazista e fascista conduziram à constituição de estados totalitários.

No entanto, em inúmeras experiências contemporâneas sistemas de partidos


únicos têm demonstrado compromisso com a preservação das liberdades individuais
e sociais, com os direitos políticos, com a liberdade de expressão e sobretudo com
esforços significativos na concepção e execução de projetos de desenvolvimento
nacional de diminuição das desigualdades sociais. Países como a República Popular da
China, República de Cuba, República Árabe da Síria; República Popular Democrática do
Laos; República Socialista do Vietnã, o Turcomenistão e a Eritreia, são governados por
partidos únicos com avanços significativos em áreas específicas, bem como dificuldades
e até retrocessos em outras áreas. Argumentos dessa natureza também são aplicáveis
a sistemas bipartidários ou multipartidários.

160
8 BREVE TRAJETÓRIA DO SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO
O que caracteriza o sistema partidário brasileiro é sua instabilidade, o que
faz com que o país não disponha de partidos cuja existência seja marcada pela
longevidade, como é comum em diversos países, sobretudo, desenvolvidos. Em função
das instabilidades políticas e econômicas cíclicas, partidos são aniquilados e novos
partidos se constituem. Durante o longo período colonial, não havia a possibilidade de
constituição de partidos políticos formais, por motivo senão único, pelo menos óbvio:
o Brasil era uma colônia de exploração e não havia interesse por parte de Portugal em
fomentar atividade político-partidária na colônia. Os primeiros partidos políticos formais
que surgiram no Ocidente remontam as primeiras décadas do século XIX.

Porém, sob determinada perspectiva analítica, os primeiros partidos se


constituem no período que antecede à independência em 1822. São três os partidos que
se apresentam naquele contexto: 1) O Partido Português: constituído por comerciantes
que desejavam manter o Brasil sob o protagonismo comercial português em terras
brasileiras, bem como se posicionavam contrários à independência. 2) O Partido
Brasileiro: constituído por senhores de engenho, latifundiários, alguns comerciantes
portugueses e de outras nacionalidades que advogavam pela liberdade de comércio.
Também (não eram adeptos da independência, propondo uma monarquia dual que
compartilhasse o poder entre Portugal e o Brasil. 3) O Partido Liberal Radical: constituído
por membros da classe média do período. Advogavam pela implantação da República
com conotação democrática.

No Brasil Independente e Imperial, mais especificamente no Primeiro Império,


apresentaram-se três novos partidos: 1) Restauradores ou Caramurus. Sua proposta
política advogava pela volta de D. Pedro I e afirmação do regime monárquico; 2) Liberal
Exaltado ou Jurujubas. Advogavam pelo fim da monarquia e pela implantação da
República; 3) Liberal Moderado ou Chimangos. Sua proposta política vinculava-se à
continuidade da monarquia, bem como a manutenção da escravidão.

No segundo reinado com Dom Pedro II no poder, dois são os partidos que se
apresentam no debate político: 1) Saquaremas: que defendiam um regime imperial forte
e centralizador; 2) Liberais: que defendiam um regime político mais descentralizado
conferindo maior autonomia às províncias.

No período da República Velha (1889-1930), dois são os partidos que disputaram


a cena política, portanto, temos aqui o bipartidarismo. São os partidos: 2) Partido
Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM). Ambos eram
controlados por grandes proprietários produtores de café em São Paulo e de gado em
Minas Gerais, o que demarcou este período como política do café com leite na medida
que os dois partidos pertencentes a estes dois Estados controlavam a cena política
nacional. Porém, em 1922 foi fundado o Partido Comunista do Brasil de orientação
marxista, porém, foi mantido na clandestinidade por longo período. Posteriormente,
mudou seu nome para Partido Comunista Brasileiro.

161
No período de 1930 a 1945 chamado também de era Vargas ou de Estado Novo,
temos os seguintes partidos na cena nacional: 1) Ação Integralista Nacional, inspirada
nas ideias fascistas. 2) Aliança Nacional Libertadora, liderada por Luís Carlos Prestes,
defendia um programa de mudanças sociais, políticas e econômicas.

No período de 1945 a 1967, caracterizado como República democratizada com


o fim da ditadura do Estado Novo da primeira era Vargas apresentam-se os seguintes
partidos na cena política nacional: 1) Partido Social-Democrático (PSD) constituído
líderes rurais, funcionários públicos de alto escalão; 2) Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
formado por líderes sindicais e operários; 3) União Democrática Nacional, constituído
pela elite econômica nacional.

Durante o período militar de 1964 a 1984, o país sob a ditadura militar passa ser
bipartidário. 1) Aliança Renovadora Nacional (ARENA) partido governista; 2) Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) composto por lideranças políticas como forma consentida
de oposição pelos governos militares.

A partir do desgaste dos governos militares em 1979 começaram a se organizar


novos partidos. Em 1982, a ARENA transformou-se em Partido Democrático Social
(PDS), bem como o MDB passou a se chamar Partido Democrático Brasileiro (PMDB).
Neste contexto surgiram o 1) Partido Trabalhista Brasileiro (PDT); 2) Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), refundado e o 3) Partido dos Trabalhadores (PT). Em 1984 surge Partido
da Frente Liberal (PFL), o Partido Progressista Brasileiro (PPB), que mais recentemente
passou a denominar-se Partido Progressista (PP) e, por fim o Partido Social-Democrático
Brasileiro (PSDB).

Cada um desses partidos, representa determinado extrato social organizado na


disputa do Estado, o que significa ter presente que a criação destes partidos segue a
lógica da modernização do país e consequentemente a disputa ideológica e políticas
em torno de tensões sociais, políticas e econômicas específicas. Ou seja, compreender
a trajetória da proliferação de partidos, bem como de suas extinções no contexto
político nacional, implica compreender profundamente a dinâmica de conformação
da sociedade brasileira em seus grupos de pressão e de interesse, bem como das
instabilidades institucionais, políticas e econômicas atreladas a tais condições. Este
argumento é fundamental para compreendermos a proliferação dos partidos políticos
na atual cena política brasileira conforme demonstrado no UNI IMPORTANTE a seguir.

162
IMPORTANTE
PARTIDOS REGISTRADOS NO TSE

Nº DA
Nº SIGLA NOME DEFERIMENTO PRES. NACIONAL
LEGENDA
MOVIMENTO LUIZ FELIPE
1 MDB DEMOCRÁTICO 30.6.1981 BALEIA TENUTO 15
BRASILEIRO ROSSI
ROBERTO
PARTIDO TRABALHISTA JEFFERSON
2 PTB 3.11.1981 14
BRASILEIRO MONTEIRO
FRANCISCO
PARTIDO DEMOCRÁTICO
3 PDT 10.11.1981 CARLOS LUPI 12
TRABALHISTA
PARTIDO DOS GLEISI HELENA
4 PT 11.2.1982 13
TRABALHADORES HOFFMANN
ANTÔNIO CARLOS
5 DEM DEMOCRATAS 11.9.1986 MAGALHÃES 25
NETO
LUCIANA
PARTIDO COMUNISTA DO
6 PCdoB 23.6.1988 BARBOSA DE 65
BRASIL
OLIVEIRA SANTOS
CARLOS ROBERTO
PARTIDO SOCIALISTA
7 PSB 1°.7.1988 SIQUEIRA DE 40
BRASILEIRO
BARROS
BRUNO
PARTIDO DA SOCIAL
8 PSDB 24.8.1989 CAVALCANTI DE 45
DEMOCRACIA BRASILEIRA
ARAÚJO
PARTIDO TRABALHISTA DANIEL S.
9 PTC 22.2.1990 36
CRISTÃO TOURINHO
EVERALDO DIAS
10 PSC PARTIDO SOCIAL CRISTÃO 29.3.1990 20
PEREIRA
ANTONIO
PARTIDO DA
11 PMN 25.10.1990 CARLOS BOSCO 33
MOBILIZAÇÃO NACIONAL
MASSAROLLO
ROBERTO JOÃO
12 CIDADANIA CIDADANIA 19.3.1992 23
PEREIRA FREIRE
JOSÉ LUIZ DE
13 PV PARTIDO VERDE 30.9.1993 43
FRANÇA PENNA
LUIS HENRIQUE
14 AVANTE AVANTE 11.10.1994 DE OLIVEIRA 70
RESENDE
CIRO NOGUEIRA
15 PP PROGRESSISTAS 16.11.1995 11
LIMA FILHO
PARTIDO SOCIALISTA
JOSÉ MARIA DE
16 PSTU DOS TRABALHADORES 19.12.1995 16
ALMEIDA
UNIFICADO
PARTIDO COMUNISTA EDMILSON SILVA
17 PCB 9.5.1996 21
BRASILEIRO COSTA*
PARTIDO RENOVADOR JOSÉ LEVY FIDELIX
18 PRTB 18.2.1997 28
TRABALHISTA BRASILEIRO DA CRUZ

163
JOSÉ MARIA
19 DC DEMOCRACIA CRISTÃ 5.8.1997 27
EYMAEL
PARTIDO DA CAUSA RUI COSTA
20 PCO 30.9.1997 29
OPERÁRIA PIMENTA
RENATA
21 PODE PODEMOS 2.10.1997 HELLMEISTER DE 19
ABREU
LUCIANO CALDAS
22 PSL PARTIDO SOCIAL LIBERAL 2.6.1998 17
BIVAR
MARCOS
23 REPUBLICANOS REPUBLICANOS 25.8.2005 10
ANTONIO PEREIRA
PARTIDO SOCIALISMO E JULIANO
24 PSOL 15.9.2005 50
LIBERDADE MEDEIROS
JOSÉ TADEU
25 PL PARTIDO LIBERAL 19.12.2006 22
CANDELÁRIA
PARTIDO SOCIAL
26 PSD 27.9.2011 GILBERTO KASSAB 55
DEMOCRÁTICO
ADILSON
27 PATRIOTA PATRIOTA 19.6.2012 BARROSO 51
OLIVEIRA
PARTIDO REPUBLICANO EURÍPEDES G.DE
28 PROS 24.9.2013 90
DA ORDEM SOCIAL MACEDO JÚNIOR
PAULO PEREIRA
29 SOLIDARIEDADE SOLIDARIEDADE 24.9.2013 77
DA SILVA
JOÃO DIONÍSIO
FILGUEIRA
30 NOVO PARTIDO NOVO 15.9.2015 30
BARRETO
AMOÊDO
PEDRO IVO DE
31 REDE REDE SUSTENTABILIDADE 22.9.2015 18
SOUZA BATISTA
PARTIDO DA MULHER SUÊD HAIDAR
32 PMB 29.9.2015 35
BRASILEIRA NOGUEIRA
LEONARDO
33 UP UNIDADE POPULAR 10.12.2019 PERICLES VIEIRA 80
ROQUE

FONTE: <https://bit.ly/3vBav37>. Acesso em: 6 mar. 2020.

164
LEITURA
COMPLEMENTAR
REFORMA POLÍTICA – PULVERIZAÇÃO DE PARTIDOS DIFICULTA COALIZÃO SÉRIA,
DIZ MINISTRO ADMAR GONZAGA

Apesar de ter sua essência mantida, a Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95,
que completou 20 anos no sábado) ainda recebe muitas críticas e, atualmente, é um
dos alvos da reforma política debatida no Congresso Nacional.

Para o ministro do Tribunal Superior Eleitoral Admar Gonzaga, a lei, que já sofreu
várias alterações por meio de emendas,  ainda conserva a sua essência: “O corpo da
norma está consolidado, não tendo sido alterado substancialmente”. Ele explicou que a
Lei dos Partidos Políticos pôs fim à tradição de edição de normas às vésperas de cada
eleição, o que, segundo ele, trazia alguns casuísmos que não eram bem-vindos ao
processo eleitoral.

Os desafios enfrentados pela lei desde a sua promulgação foram muitos.


O combate à cultura da compra de votos, a ocorrência de abuso de poder político e
econômico e a regulamentação da campanha eleitoral foram alguns dos tópicos que
suscitaram o debate da sociedade e trouxeram alterações e acréscimos ao texto original.
Atualmente, no contexto da reforma política que está sendo debatida no Congresso
Nacional, as questões em discussão são outras, como as regras de criação de partidos
e a questão da fidelidade partidária.

• Pulverização de partidos

O ministro Admar Gonzaga concorda que a pulverização dos partidos políticos é


um dos assuntos que atualmente têm chamado a atenção de juristas e parlamentares:
“Essa pulverização dos partidos é algo que está trazendo problemas enormes para
o país. Hoje em dia, põe-se a culpa neste ou naquele governante, mas na verdade é
muito pouco provável que qualquer um deles consiga fazer uma coalizão séria, sem
interferências deletérias ao sistema político, com essa pulverização de partidos. São
muitos interesses a serem atendidos”. Ele acredita que a adoção de uma cláusula
de desempenho provocaria uma reorganização do nosso sistema partidário, com a
aglutinação dos ideais desses pequenos partidos em agremiações maiores e, por isso
mesmo, mais representativas.

165
O formato horizontal das coligações partidárias que é adotado no Brasil também
é alvo de críticas. Para Admar Gonzaga, ao aglutinar ideologias frequentemente
conflitantes numa “sopa de letrinhas” que confunde o eleitor, não se alcança a
representatividade que é buscada no processo eleitoral. Ele crê que esse é outro tópico
que precisa ser revisto na reforma política.

• Resgate da atividade política

Segundo o ministro, a diminuição do tempo das campanhas políticas no rádio e


na televisão, que já foi aprovada na reforma política, terá um impacto negativo no debate
político no país e no envolvimento da sociedade no processo eleitoral. Admar acredita
que o debate político deve estar sempre nas praças, nos bares, nas casas e nas ruas,
porque as pessoas têm que exercer a política em toda a sua plenitude. Ele vê a imagem
da atividade política passando por um intenso processo de desgaste nos últimos anos:
“Estamos vendo a proibição de se fazer campanha. Daqui a pouco a atividade política
estará virando algo pejorativo. A criminalização da atividade política está aí, as pessoas
com pouco apreço à classe política”.

• Sanção presidencial

Além da diminuição do tempo de propaganda eleitoral, também já foram


aprovadas na reforma política a limitação da interferência do poder econômico, a
diminuição do prazo de registro de candidaturas e o estabelecimento de um teto para
o financiamento privado das campanhas eleitorais, entre outras pautas. O projeto está
pronto para seguir para a sanção presidencial, com implementação já no pleito de 2016.

Admar Gonzaga acredita que as alterações são, em sua maioria, positivas para
o processo eleitoral no Brasil, mas acrescenta que ainda há a necessidade de uma
reforma política mais profunda. “Algumas questões foram bem tratadas, e eu creio
que serão positivas. Outras, como a cláusula de desempenho de partidos políticos e a
horizontalidade das coligações, deveriam ter sido melhor enfrentadas e não passaram”,
declarou. Com informações da Assessoria de Imprensa do TSE.

FONTE: <https://bit.ly/3MoYV1k>. Acesso em: 6 mar. 2020.

166
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A política é uma atividade vital para os seres humanos. Na condição de um ser social,
que tem significativas dificuldades de viver sozinho, o ser humano necessita dos
outros para constituir sentido e finalidade as suas ações no contexto de mundo em
que está inserido.

• Os partidos políticos são instituições centrais na prática da democracia


representativa moderna, pois se constituem como elo de ligação entre a vontade
popular, considerado como o poder constituinte e o poder constituído na forma do
poder legislativo e executivo.

• O surgimento e o desenvolvimento dos partidos políticos estão diretamente


vinculados à afirmação do Estado moderno e, mais especificamente ao surgimento
das democracias liberais. Na passagem do século XVIII para o século XIX constitui-
se, sobretudo na Europa o Estado Liberal Democrático pautado no princípio da
representatividade a partir da legitimação via processo eleitoral dos poderes legislativo
e executivo.

• As funções dos partidos políticos, que variam de acordo com o contexto histórico,
social e político, o que significa levar em consideração que as funções dos partidos
em sua origem diferem das funções assumidas ou atribuídas aos partidos políticos
na atualidade.

• Os tipos de partido referem-se à forma de organização interna dos partidos políticos


que majoritariamente assumem duas formas: partidos de quadro e partidos de
massas.

• É possível comparar os sistemas partidários na medida em que períodos significativos,


as suas estruturas internas, bem como suas doutrinas apresentam regularidade
permitindo a descrição dos mais diversos sistemas partidários nacionais num
determinado período.

• O que caracteriza o sistema partidário brasileiro é sua instabilidade, o que faz com
que o país não disponha de partidos cuja existência, seja marcada pela longevidade,
como é comum em diversos países, sobretudo, desenvolvidos.

167
AUTOATIVIDADE
1 Quanto às funções dos partidos políticos, variam de acordo com o contexto histórico
social e político, o que significa levar em consideração que as funções dos partidos
em sua origem, diferem das funções assumidas ou atribuídas aos partidos políticos
na atualidade. Os mais diversos autores atribuem aos partidos atualmente em três
funções basilares, o que não exclui as outras funções que se apresentam como
demandas emergenciais. Disserte sobre a formação da opinião pública como uma
das funções basilares de um partido político.

2 Os cientistas políticos estabeleceram uma tipologia classificatória que categoriza


os partidos políticos. Assim, os tipos de partido referem-se à forma de organização
interna dos partidos políticos que majoritariamente assumem duas formas: partidos
de quadro e partidos de massas. Apresente características dos partidos de quadro.

168
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A política. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia: consultoria da edição brasileira, Danilo


Marcondes; [Tradução Desidério Murcho ... et al.]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

BOBBIO, N. Dicionário de política / Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco


Pasquino. Brasília, UNB, 1991.

BRUM, A. J. Democracia e partidos políticos no Brasil. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 1988.

CHAUÍ, M. O que é ideologia? São Paulo: Editora Brasiliense, 1991 (Coleção Primeiros
Passos).

DELLA PORTA, D. Introdução à ciência política. Lisboa, Editorial Estampa, 2003.

DOWNS, A. Uma teoria econômica da democracia. São Paulo, Ed. USP, 1999.

DUWERGER, M. Os partidos políticos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1970.

ICP. A influência da maçonaria na política do Brasil. In: Instituto Cristão de


Pesquisas, edição 93, Disponível em: https://www.icp.com.br/df93materia1.asp.
Acesso em: 5 mar.2020.

MAAR, L. W. O que é política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993 (Coleção Primeiros
Passos).

PEREIRA, R. R. Autores liberais: James Buchanan. In: Instituto Liberal, 06/01/2011.


Disponível em: https://bit.ly/35GN0Lf. Acesso em: 21 mar.2020.

SCHWARTZENBERG, R. G. Sociologia política. São Paulo: Difel, 1979.

STONE, C. N. Preemptive Power: Floyd Hunter's "Community Power Structure" Reconsidered.


In: American Journal of Political Science. Vol. 32, n. 1 (Feb. 1988), pp. 82-104.

TORRES, M. G. Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade. Organizado


por Michel Silva. Reseñas de publicaciones. In: Revista de Estudios Históricos
de la Masonería Latinoamericana y Caribeña. REHMLAC, vol. 7 n. 2 San
Pedro, Montes de Oca Jan./Apr. 2016. Disponível em: https://bit.ly/35l9Vfv.
Acesso em: 5 mar. 2020.

WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.


Vol. 1, Brasília, UNB, 1991.
169
ANOTAÇÕES

170
UNIDADE 3 —

CONCEITOS E TENDÊNCIAS
CONTEMPORÂNEOS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• obter uma introdução aos conceitos de liberdade, igualdade e justiça na concepção


dos gregos antigos e de pensadores modernos e contemporâneos;
• compreender a importância destas concepções no âmbito da conformação do Estado
de direito;
• perceber a dinâmica das ideologias partidárias, bem como o comportamento das
instituições diante das convergências e divergências com tais concepções.
• considerar a interferência dos fenômenos da burocracia, do corporativismo e do
patrimonialismo na ordem política;
• entender os fatores de crise e a necessidade de reforma do Estado;
• concernir sobre a importância dos processos de descentralização político-
administrativos ao aprofundamento do republicanismo;
• relacionar as leis a quem interessa e a quem deve interessar.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará
autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – IGUALDADE, LIBERDADE E JUSTIÇA


TÓPICO 2 – BUROCRACIA, CORPORATIVISMO E PATRIMONIAOLISMO
TÓPICO 3 – CRISE E REFORMA DO ESTADO: REPUBLICANISMO, DESCENTRALIZAÇÃO E
UMA PERGUNTA: QUEM FAZ AS LEIS E PARA QUÊ?

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

171
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!

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172
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
IGUALDADE, LIBERDADE E JUSTIÇA

1 INTRODUÇÃO
Pensar sobre a liberdade, igualdade e justiça poderá parecer ato corriqueiro no
dia a dia. A todo tempo estamos submetidos a situações em que podemos nos questionar
o caráter de justiça de uma determinada ação. Podemos questionar os limites e como
é entendida a liberdade por um grupo específico em algum lugar do mundo. Podemos
notar como a igualdade é requerida por alguns grupos em relação a outros.

Ainda que esses conceitos sejam abordados em situações cotidianas, podemos


analisá-los sob perspectivas filosóficas. Tanto a questão da liberdade, quanto a da justiça
ou da igualdade foram abordadas por inúmeros pensadores ao longo da história da
filosofia. Daremos ênfase à Filosofia Política Antiga, Moderna e Contemporânea. Nossa
proposta é apresentar de maneira objetiva como esses assuntos foram e são tratados.
Para isto, visitaremos artigos auxiliares e as próprias obras dos autores aqui tratados.

2 A INTERPRETAÇÃO ANTIGA
Nos subtítulos a seguir, nós veremos como os temas de igualdade, liberdade e
justiça foram compreendidos na Grécia Antiga por dois dos maiores filósofos de todos
os tempos: Platão e Aristóteles. É importante compreendermos que vários assuntos que
até hoje são temas de inúmeras discussões, dentro e fora da academia, vêm sendo
debatidos e pensados há no mínimo dois mil anos pelos gregos antigos. Ao falarmos de
justiça, por exemplo, não há como desconsiderar a discussão realizada em A República,
de Platão. Deste modo, é imprescindível que o acadêmico entre em contato com
algumas noções da tradição filosófica que permeiam este tópico. Como já anunciado,
iniciaremos pela Grécia Antiga.

2.1 PLATÃO E A QUESTÃO DA LIBERDADE E DA IGUALDADE

173
FIGURA 1 – O FILÓSOFO PLATÃO

FONTE: <https://bit.ly/3Kis7Fl>. Acesso em: 27 jul. 2020.

Sob a perspectiva da Filosofia Política Antiga, Platão se apresenta como


pensador-chave para refletirmos a igualdade, a justiça e a liberdade. Sua obra A
República é de fundamental importância. A República busca apresentar a ideia de polis
ideal para Platão. Por isto, ao logo da obra o autor reflete sobre o que é justiça, o que é o
bem, quais as funções de cada cidadão na polis e diversas outras questões.

Em termos de justiça, Platão reconhece a dificuldade em definir o conceito.


Na alegoria da linha, encontrada no Livro VI, ele divide o conhecimento da opinião,
sendo componentes da última a crença e a imaginação e da primeira o pensamento e
o raciocínio dialético. As noções presentes na opinião fazem parte no mundo físico, são
a percepção e imaginação das coisas físicas, enquanto as formas presentes no mundo
do conhecimento, da episteme, fazem parte do mundo inteligível e dizem respeito
ao conhecimento dos objetos matemáticos, e por fim, das formas. É a esse tipo de
conhecimento que diz respeito à justiça: as formas, pois são elas a essência das coisas,
o que há de mais verdadeiro. Conhecendo as formas, principalmente a forma do bem,
que é superior a todas as outras, se consegue reconhecer os traços do bom, do belo, do
justo na realidade.

Tendo entendido então a justiça como uma das formas mais puras que podemos
conhecer, passamos a ver como Platão lida com o tema ao longo de A República.
Logo no Livro I surgem algumas possibilidades de definição de justiça por parte dos
interlocutores de Sócrates, aqui usado como personagem. Dentre as principais, citamos
a possibilidade de a justiça ser, segundo o interlocutor Céfalo, não mentir e restituir o
que se deve a alguém. Tal ideia é refutada por Sócrates:

Belas palavras as tuas, Céfalo, disse eu. E, assim, afirmaremos que


em si a justiça é simplesmente dizer a verdade e devolver o que
se tiver recebido de outrem? Ou que é possível, às vezes, agir com
justiça e, às vezes contra ela? Por exemplo, quando alguém, de um
amigo que estivesse em seu juízo perfeito, recebesse armas, se
estando fora de si, ele as pedisse de volta, todo mundo diria que
não deve devolver tais armas e que não agiria com justiça que as
devolvesse, nem se quisesse dizer toda a verdade a alguém nesse
estado (PLATÃO, 2014, p. 8).

174
Em seguida, Polemarco define justiça como oferecer aos amigos o bem, e aos
inimigos o mal, isto é, oferecer a cada um o que lhe é devido. Sócrates então questiona
se não é possível que alguém se engane quanto ao caráter dos amigos e dos inimigos,
julgando como bom alguém mau, e mau alguém bom. Ainda assim, caso alguém se
proponha a fazer o bem para os amigos de fato bons e mal para os inimigos de fato
maus, isso não parece ser um papel da justiça. Isto porque uma virtude, como é a
justiça, não é utilizada para gerar um dano e, portanto, seria um erro utilizar a virtude da
justiça para causar um mal, como fica claro no seguinte trecho do debate entre Sócrates
e Polemarco, no qual Sócrates questiona:

– Ah! Não é tarefa do homem justo, Polemarco, prejudicar nem o


amigo nem a nenhum outro, mas a do seu contrário, o homem injusto.
– Parece-me, Sócrates, verdade o que dizes.
– Ah! Se alguém afirma que é justo devolver a cada um o que lhe
é devido, e se para ele isso significa que aos inimigos, da parte do
homem justo, o devido é causar-lhes prejuízo, mas aos amigos prestar
ajuda, não seria sábio que o diz, pois sua afirmação não é verdadeira.
Em momento algum ficou evidente que seja justo prejudicar alguém
(PLATÃO, 2014, p. 15).

Citamos também a concepção de Trasímaco sobre justiça, que se apresenta na
seguinte perspectiva:

E, em cada cidade, o governo estabelece as leis tendo em


vista sua própria vantagem: o governo democrático estabelece
leis democráticas, o tirânico, leis tirânicas, o aristocrático, leis
aristocráticas, e os outros da mesma forma. Estabelecidas as leis,
declaram que o vantajoso para eles é o justo para os subordinados
e punem quem infringe essa norma, como transgressor da lei e
culpado de injustiça. Eis, portanto, excelentíssimo, o que eu digo ser
justo sempre, em todas as cidades sem exceção: o vantajoso para o
governo estabelecido. É ele que tem o poder e, para quem raciocina
corretamente, em todos os lugares o justo é sempre a mesma coisa,
a vantagem do mais forte (PLATÃO, 2014, p. 20).

Sócrates logo aponta a possibilidade de um governante dar ordens que acabem


por ser prejudiciais a ele próprio e seu governo. O que os subordinados realizam é algo
prejudicial aos governantes, mesmo estando sob a égide do agir justamente, já que foi o
que as autoridades lhes ordenaram. A discussão com Trasímaco segue e as conclusões
a que chegam os personagens se dão no sentido de encarar a justiça como virtude e a
injustiça como vício; admitem que a justiça traz mais vantagens que a injustiça e que o
homem justo é mais feliz que o injusto. Entretanto, o primeiro livro de A República finaliza
com a afirmação de Sócrates de que, mesmo tendo admitido certas características
sobre a justiça, os debatedores não chegaram a uma conclusão sobre o que é a justiça,
ficando esta questão em aberto.

Apresentada esta dificuldade em torno da definição de justiça no Livro I; no


Livro II se apresentam questões sobre a injustiça gerar mais felicidade que a justiça.
Também, Platão tenta mostrar como a justiça é um bem que deve ser desejado por si

175
mesmo e por suas consequências. Além disso, e ponto crucial, é que no Livro II, Platão
trata da questão da justiça circunstanciada na cidade e logo encontra a necessidade
de cada indivíduo possuir uma função própria para que cada função seja exercida com
excelência. Desta forma, os personagens passam a designar os papéis e atribuições do
guerreiro no Livro II, e de demais classes presentes na cidade ao longo do Livro III.

É no Livro III que Platão apresenta o Mito Fundacional, que divide as classes
da cidade de acordo com o metal que o deus criador deu a cada cidadão no momento
da geração. Desta forma, cada metal representa certa aptidão da alma, sendo o
ouro presente nos governantes, a prata nos auxiliares e o bronze, ferro ou cobre nos
agricultores e artesãos. Platão ainda ressalta que alguém vindo de família de um metal
pode nascer com predominância de outro e, consequentemente, acabará exercendo
a função de acordo com a disposição de sua alma. Em seguida, esboça quais são as
funções de cada grupo social, ou seja, dos governantes, auxiliares e trabalhadores.

É no Livro IV que encontraremos a noção mais clara de justiça para Platão.


Ela é circunstanciada na divisão de funções e caráter da alma de cada cidadão, que
citamos acima. Numa busca pela definição de sabedoria, coragem e temperança, os
interlocutores passam para a definição da justiça. Para Platão, portanto, é justo cada
um ocupar-se de sua tarefa perante a pólis, e cumprir esta tarefa com excelência. No
diálogo entre Sócrates e Gláucon, Sócrates inicia:

– Vamos! disse eu. Ouve-me e vê se faz sentido o que estou


dizendo! Aquilo que, desde o início, quando fundávamos a cidade,
estabelecemos que devíamos fazer o tempo todo é, parece-
me a justiça ou uma forma da justiça. Se estás bem lembrado,
estabelecemos e muitas vezes dissemos que cada um devia ocupar-
se com uma das tarefas relativas à cidade, aquela para a qual a sua
natureza é mais bem-dotada.
– Dissemos, sim.
– E que cumprir a tarefa que é a sua sem meter-se em muitas
atividades é justiça, isso ouvimos de muitos outros, e nós mesmos
dissemos muitas vezes.
– Dissemos, sim.
– Pois bem! disse eu. Eis, meu amigo, o que, de certa maneira,
pode ser o que é a justiça: cada um cumprir a tarefa que é a sua [...]
(PLATÃO, 2014, p. 154).

Após essas explanações sobre a justiça em Platão, é necessário que se diga


ainda que A República é uma obra circunstanciada em plena crise da democracia
ateniense. Sócrates foi morto pelo julgamento de cidadãos que viram as ideias de o
filósofo ir de encontro a diversos postulados nos quais, inclusive os governantes, se
apoiavam. Isso também ajuda a compreender por que Platão sugere que cada cidadão
desenvolva uma função específica. Para que não se incorra no erro de atribuir uma
função a alguém inapto e uma injustiça, ou um mal, seja cometido.

176
Podemos também, falar sucintamente da igualdade. Ela parece se dar
justamente por aceitar que os indivíduos não são iguais. Quando citamos o
Mito Fundacional, em que cada indivíduo teria a predominância de um metal e,
consequentemente, de uma função social, esse parece ser um traço que iguala os
indivíduos: cada um possui uma função, pertence a um grupo social e para Platão, isso
não representa uma injustiça, pelo contrário, como mostramos na citação anterior, é
justo que cada um cumpra sua função.

Uma discussão presente em torno da igualdade em Platão, é a igualdade entre


os sexos. No livro V, encontramos um debate acerca do papel da mulher na cidade.
Sócrates defende que às mulheres deve-se dar a mesma educação dada aos homens,
e ambos podem cumprir as mesmas funções, já que a diferença que existe entre
eles não é necessariamente de natureza, mas de atribuições, segundo o que diz o
personagem Sócrates:

Então, disse eu, se o sexo masculino e o feminino nos parecem


diferentes em relação a uma arte ou a uma ocupação, também
afirmaremos que devemos atribuí-las ou a um ou ao outro. Se parece,
porém, que são diferentes somente neste ponto – é o feminino que
dá à luz e é o masculino que fecunda –, afirmaremos que, em relação
ao que estamos falando, não ficou demonstrado que a mulher é
diferente do homem. Ao contrário, ainda acreditaremos que nossos
guardiães e suas mulheres devem ocupar-se com os mesmos
trabalhos (PLATÃO, 2014, p. 183).

Em relação à liberdade, na República não se encontra uma discussão


significativa. Para abordar esse tema em termos de Grécia Antiga, iremos recorrer a
Aristóteles. Antes de chamarmos o pensador para o debate, é de extrema importância
salientar que na Grécia Antiga mantinha-se um sistema de escravidão, onde o escravo
era responsável pelos trabalhos braçais e, às vezes, domésticos. Não era uma escravidão
análoga a que presenciamos na modernidade, dados os níveis de crueldade e opressão
que vimos nesta última. Além dessa informação, em Atenas eram considerados
cidadãos homens com mais de 21 anos que fossem naturais de Atenas e cujos pais
fossem atenienses. Talvez mais do que liberdade, se pode falar de desigualdade. Claro
é que cidadãos e demais componentes da polis não estavam no mesmo patamar de
“cidadania” e isso também, nos ajuda a compreender porque a escravidão era aceita
e porque se poderia justificar que um membro possuísse uma liberdade de ação e
participação na polis enquanto outro simplesmente não possuía.

177
2.2 ARISTÓTELES E A QUESTÃO DA LIBERDADE

FIGURA 2 – O FILÓSOFO ARISTÓTELES (385 a.C. – 322 a.C.)

FONTE: <https://bit.ly/3IG19Hl>. Acesso em: 27 jul. 2020.

Aristóteles, em sua obra A Política, acaba por justificar a escravidão. O filósofo


discorre por diversas vezes sobre o assunto, mas o que mais se destaca é o caráter
natural que ele atribui à escravidão. “Não é apenas necessário, mas também vantajoso
que haja mando por um lado e obediência por outro; e todos os seres, desde o primeiro
instante do nascimento, são, por assim dizer, marcados pela natureza, uns para
comandar, outros para obedecer” (ARISTÓTELES, 2006, p. 12).

Sob a ótica dos tempos atuais, o posicionamento de Aristóteles sobre a questão


da liberdade pode se apresentar contraditória, senão reacionária. Sobretudo, se levarmos
em consideração que com as Revoluções Burguesas iniciadas no século XVII, com a
Revolução Inglesa e, concluídas com a Revolução Russa nas primeiras décadas do
século XX, se estabeleceram as Declarações dos direitos do homem e do cidadão. Em
1948, pós-Segunda Guerra Mundial, foi proclamada pela ONU (Organização das Nações
Unidas) a “Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão”.

Na cosmovisão grega antiga, na qual Aristóteles está inserido, todos os entes


que se apresentam na Physis, na existência cumprem uma finalidade vital. Cumprir
adequadamente a finalidade circunscrita na existência é cumprir adequadamente com
os desígnios existências circunscritas na Physis.

Embora a distinção entre o homem livre e o escravo por natureza tenha


seus partidários e seus adversários, pelo menos não resta nenhuma
dúvida de que se encontram em todos os lugares combinações de
pessoas nas quais a uma cabe servir e à outra comandar, assumindo
o papel para o qual a natureza os predestinou. O comando de uma
pode ser justo e útil, e a liberdade da outra, injusta e funesta para
ambas (ARISTÓTELES, 2006, p. 16).

Ao longo da obra, Aristóteles discorrerá mais sobre o assunto, mas já é evidente


a natural liberdade de uns em contraposição à escravidão de outros.

178
Tratando da liberdade, em outra obra, Ética a Nicômaco, Livro III, Aristóteles
nos fala sobre ações voluntárias e involuntárias. Classificá-las depende da ocasião
em que o agente atua. As ações involuntárias, em resumo, são aquelas cuja origem
é externa ao agente ou se dão por compulsão ou ignorância. Aqui, queremos nos ater
às ações voluntárias, que dependem da vontade do agente. Aristóteles usa o exemplo
de um navio em meio a uma tempestade para ressaltar o caráter da ação voluntária.
Escolher atirar os pertences ao mar para poder salvar a própria vida e dos demais é uma
ação voluntária, ainda que a circunstância a tivesse feito agir:

Agora, a ação real nos casos em pauta é realizada voluntariamente


pois a origem do movimento das partes do corpo que atuam como
instrumentos do ato reside no agente, e quando a origem de uma
ação se encontra em si mesmo, está no poder de alguém realizá-la ou
não. Tais atos são, portanto, voluntários, embora talvez involuntários
independentemente das circunstâncias, pois ninguém optaria por
realizar qualquer dessas ações em si e para si mesma (ARISTÓTELES,
2002, p. 83-84).

Aristóteles ainda caracteriza a escolha como uma ação voluntária em conjunto


com uma deliberação. A liberdade, portanto, parece se dar neste âmbito: poder deliberar
e escolher, voluntariamente sobre agir ou não agir. Segundo Zaparoli (2016):

Assim, de acordo com a teoria formulada por Aristóteles a liberdade


consistiria no princípio apto e eficaz para eleger dentre as alternativas
existentes qual será a praticada, destacando-se que todas as coisas
tenderão a uma finalidade, sendo que esse fim poderá ser reduzido à
felicidade (ZAPAROLI, 2016, p. 6).

Por fim, nesta parte, apresentamos, resumidamente, questões sobre justiça,


liberdade e igualdade que foram desenvolvidas pelos filósofos gregos. Ressalta-se
a importância de ler tais autores e demais obras que discorrem sobre os temas aqui
apresentados para que se compreenda de maneira mais completa outras inúmeras
questões e nuances que, por conta do caráter resumido destes escritos, acabam por
passar despercebidas.

3 A INTERPRETAÇÃO MODERNA
Daremos um passo de quase dois mil anos desde os filósofos da Grécia Antiga
e passaremos à Filosofia Moderna. A Filosofia Moderna, aqui, em especial, a filosofia
política moderna, cujo início é ensaiado em Maquiavel (1469 – 1527), é caracterizada
pela inquirição sobre aspectos da sociedade em relação aos governos, como os modos
de legitimação de um governo ou ainda, o modo como os governos devem lidar com as
liberdades individuais, com a propriedade privada, e assim por diante. Deste modo, o
próximo subtópico concentra-se em John Stuart Mill, conhecido principalmente como
um dos grandes nomes do Utilitarismo. Aqui, utilizaremos a obra Sobre a Liberdade para
tratar, como já se pode imaginar, da concepção de liberdade em Mill.

179
3.1 LIBERDADE EM JOHN STUART MILL

FIGURA 3 – O FILÓSOFO JOHN STUART MILL (1806 – 1873)

FONTE: <https://bit.ly/3IAsOcx>. Acesso em: 27 jul. 2020.

Passamos agora à filosofia política moderna para falar de liberdade. John Stuart
Mill (1806-1873) foi um dos maiores nomes da filosofia inglesa do século XIX. Foi um
dos defensores do utilitarismo e do próprio liberalismo. Aqui utilizaremos a obra Sobre
a Liberdade para abordar a concepção de Mill sobre a liberdade no âmbito social, no
âmbito do indivíduo e quais os limites da interferência social na liberdade alheia.

Em sua defesa da liberdade, Mill (1991) destaca alguns aspectos a partir dos
quais deve se efetivar a liberdade. São estes, no âmbito da consciência, a liberdade de
pensamento, sentimento, opinião e expressão; a liberdade de agir (enquanto não viole o
outro, e isso veremos adiante). Agir de acordo com o que queremos e buscar as coisas
que nos agradam. Além dessas, a liberdade de ligar-se a companhias desejadas, desde
que estas também o desejem e desde que esta ligação não se dê com o intuito de gerar
um dano.

Assim, o Capítulo II de Sobre a Liberdade tem como título: Da liberdade de


pensamento e discussão. Aqui, Mill (1991) apresenta uma defesa mais extensa da
necessidade desta liberdade. Destacaremos alguns pontos. Silenciar uma opinião,
por exemplo, pelo fato de julgá-la falsa por não condizer com nossas certezas, atesta
presunção de infalibilidade, ao pensarmos que a verdade que aceitamos é uma verdade
universal. Da mesma forma que não devemos proibir alguém de expressar sua opinião,
não podemos ser proibidos de expressar a nossa. O que não nos é permitido, entretanto,
nem a ninguém, é tentar impor a opinião a terceiros.

Ainda, é apontada uma disposição no homem, a que Mill (1991) denomina como
uma capacidade de corrigir os erros. Opiniões errôneas, portanto, podem ser corrigidas
por meio da discussão e/ou por meio da experiência. Aqui se mostra a importância
da discussão. Não só como meio de retificação em caso de erro, mas como meio de

180
conhecer as ideias que se opõe a ela. Para isso, novamente, é necessário que haja
liberdade de pensamento e expressão. Na verdade, não só para corrigir ou retificar uma
ideia. Mill defende que duas visões podem se complementar a partir de uma discussão.

A citação a seguir é encontrada ao fim do primeiro capítulo, e resume os passos


que levam Mill a defender a liberdade de opinião e expressão:

Primeiro, se uma opinião é compelida ao silêncio, é possível que ela


seja verdadeira [...]
Segundo, mesmo que a opinião a que se impôs silêncio seja um erro,
pode conter, e muito comumente contém, uma parte de verdade. [...]
Terceiro, ainda que a opinião aceita não seja apenas verdadeira, mas
a verdade toda, só não será assimilada como um preconceito, se
aceitar ser, e efetivamente for, vigorosa e ardentemente contestada.
[...] em quarto lugar, se tal não se der, o significado mesmo da doutrina
estará em perigo de se perder [...] (MILL, 1991, p. 94).

Retornando agora ao terceiro capítulo, intitulado Da individualidade, como um


dos elementos do bem-estar. Nesse ponto, Mill (1991) busca defender a liberdade de
agir, como um complemento a liberdade de expressão e pensamento. O que ele chama
de madureza, faz com que o sujeito viva de acordo com sua experiência, suas vontades.
Não faz sentido, seguir a conduta de terceiros apenas pela conveniência ou costume.
Isso representa uma imitação, uma ausência de escolha, uma falta do exercício da razão,
dos juízos, da decisão. É importante, portanto, que se possibilite uma autonomia do agir,
pois o agir em conformidade aos costumes já estabelecidos causa a perda da vontade
própria, dos desejos, das opiniões e sentimentos.

Ora, se os homens não pensam de maneira idêntica uns aos outros, por que
deveriam viver de maneira idêntica? A diversidade de pensamentos e demandas internas
requer uma diversidade de modos de agir e viver. Mas Mill (1991, p. 119) reconhece: “Há na
presente orientação da opinião pública uma característica particularmente adequada a
torna-la intolerante para com qualquer manifestação mais viva de individualidade” e,
seguindo esta lógica, alerta que a ausência da diversidade faz com que passemos a ter
dificuldades em concebê-la.

O quarto capítulo tem como tema dos limites da autoridade da sociedade sobre
o indivíduo. Sendo o próprio indivíduo o mais interessado em sua própria vida, cabe a
ele, a sua espontaneidade, as decisões sobre ela. Entretanto, ele deixa claro que em
questões que envolvem as relações interpessoais deve haver normas de conduta.

A quem nos desagrada, devemos manter distância, e não buscar interferir na vida
desta pessoa, pois as ações dela acarretam consequências e, portanto, o que podemos
fazer é tentar orientá-la na direção que lhe causará menos mal. Mas se não quisermos ser
solidários, então que a deixemos a sua sorte. Entretanto, Mill reconhece a necessidade
da intervenção de terceiros em uma conduta que esteja causando mal à sociedade. Em
contraposição ao caso de alguém que esteja causando mal a si próprio, ele diz:

181
Muito diverso será o caso, se ela infringir as normas necessárias
à proteção dos seus semelhantes individual ou coletivamente. As
más consequências de seus atos não recaem, então sobre ela,
mas sobre os outros, e a sociedade, como protetora de todos os
seus membros, tem direito a represália: deve fazê-la sofrer pela
falta, com o propósito expresso de puni-la, cuidando de agir com
severidade (MILL, 1991, p. 122).

Portanto, ainda que defenda a liberdade como necessária à vida, Mill reconhece
que questões envolvendo malefícios à sociedade devem ser tratadas não sob a
perspectiva de liberdade absoluta, mas sob a perspectiva da lei. Um indivíduo tem a
liberdade de agir conforme entender e arcar com as consequências da ação, sejam
legais, ou, quando não alcançam o estatuto de serem tratadas sob a égide da lei, morais.

Mill (1991) ainda reconhece que a interferência de terceiros, às vezes, está ligada
ao julgamento destes a partir de seus próprios interesses, e não sob o interesse de
quem realiza algum ato. Portanto, certa ou errada, a opinião de uma maioria sobre uma
minoria é circunstanciada nos interesses de quem julga e não de quem é julgado.

Fomos contemplados, portanto, com a visão de John Stuart Mill sobre a


liberdade. Ela deve ser garantida ao indivíduo e este deve poder agir, pensar e associar-
se a outrem de acordo com suas vontades. Entretanto, é passível de punição caso algum
de seus atos provoquem consequências negativas à sociedade.

Para que possamos compreender melhor os dois autores a seguir, é importante


afirmar as posições destes quanto à Filosofia Política moderna. Tanto John Rawls como
Ronald Dworkin são considerados neocontratualistas. Segundo o dicionário Abbagnano
(2007, p, 825): “Em sentido lato, qualquer teoria, não somente política, mas também
ética, que reconheça no “contrato” (histórico ou hipotético, expresso ou presumido) o
procedimento típico por meio do qual ocorre a identificação dos princípios que devem
reger a vida em comum”.

Suas teorias são consideradas a partir do pressuposto de um acordo entre a


sociedade, tendo Rawls constituído uma teoria sobre a justiça, e Dworking defendido a
igualdade de recursos.

4 A INTERPRETAÇÃO CONTEMPORÂNEA
Do ponto de vista da Filosofia Contemporânea, a questão da liberdade, da
igualdade e da justiça passam a ser tratadas a partir de pressupostos não considerados,
por exemplo, na Grécia Antiga. Isto porque cada época apresenta sua particularidade
e, à filosofia política contemporânea coube considerar, por exemplo, a existência e
consolidação do Estado como entidade soberana; os diferentes tipos de regimes de
governo em voga mundo afora; a consolidação do capitalismo em quase todos os países

182
do mundo. Para pensar os conceitos tratados neste tópico, à luz da filosofia política
contemporânea, citaremos nos subtópicos a seguir John Rawls e Ronald Dworkin,
importantes nomes do liberalismo contemporâneo.

4.1 JUSTIÇA EM JOHN RAWLS

FIGURA 4 – O FILÓSOFO JOHN RAWLS (1921 – 2002)

FONTE: <https://bit.ly/3pEB8jV>. Acesso em: 27 jul. 2020.

John Rawls (1921-2002) defende o conceito de justiça como equidade. Esta


forma de lidar com a justiça distributiva prevê que convenções sociais partam de
princípios aceitos por pessoas que se encontram numa posição de igualdade. Desta
forma, é necessário que a liberdade, a igualdade, e outros direitos sociais sejam
distribuídos igualmente entre os membros de uma sociedade para chegar-se a tal
situação de convenção sobre a justiça na estrutura social.

A situação que conduz a estabelecer a ideia de justiça deve se dar sob o que
Rawls chama de véu da ignorância. Isto é, para que um acordo social se dê da maneira
mais justa possível, é necessário que as partes conheçam o menos possível sobre
suas condições sociais, classe, interesses. Ou seja, ainda que conheçam a si mesmas,
não saberiam onde se localizam na esfera social, pois, desta forma, diminuem-se as
possibilidades de buscarem acordos que favoreçam apenas a si mesmas. Esta posição
contribuiria para que se encontrasse e acordasse princípios de justiça, visto que ambas
as partes se encontrariam na mesma situação quanto aos seus direitos, a de igualdade.

Dado o que Rawls chama de “posição original” de igualdade, os princípios que


conduzem, ou devem conduzir, as convenções para Rawls seriam:

183
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente
sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um
sistema semelhante de liberdade para as outras. Segundo: as
desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal
modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas
para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições
e cargos acessíveis a todos (RAWLS, 1997, p. 64).

Ainda, nesta direção Rawls argumenta:

[...] esses princípios se aplicam primeiramente à estrutura básica da


sociedade, governam a atribuição de direitos e deveres e regulam
as vantagens econômicas e sociais. A sua formulação pressupõe
que, para os propósitos de uma teoria da justiça, a estrutura social
seja considerada como tendo duas partes mais ou menos distintas,
o primeiro princípio se aplicando a uma delas e o segundo princípio à
outra (RAWLS, 1997, p. 64).

Isso é, quanto ao primeiro princípio, ele diz respeito às liberdades sociais. São, as
principais, a liberdade de expressão, liberdade política, de pensamento, de associação,
liberdade à integridade (contra a opressão), direito de propriedade e proteção de
acordo com o estado de direito. Quanto ao segundo princípio, ele diz respeito à renda
e distribuição de riqueza. Aqui, Rawls (1997) destaca que a distribuição não precisa ser
igual caso a desigualdade gere benefícios a todos.

Quanto a prioridades, Rawls (1997) considera o primeiro princípio como mais


importante que o segundo, ou melhor, o primeiro não pode ser anulado em detrimento
do segundo. Isto é, não podemos restringir as liberdades básicas em nome das relações
econômicas e, inclusive, as liberdades básicas são passíveis de revisão quando vão
de encontro a elas mesmas. Aqui, ainda destacamos: “Todos os valores sociais –
liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da autoestima – devem
ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de
todos esses valores traga vantagens para todos” (RAWLS, 1997, p. 66).

Finalmente, a obra de Rawls possui papel de destaque, no que diz respeito


ao neocontratualismo. Tomando o critério da justiça como equidade, ele formula uma
teoria que busca as convenções sociais como meio de lidar com questões de justiça
social. Aqui oferecemos um panorama resumido de parte da sua concepção na obra
Uma Teoria da Justiça, mas ressalta-se a importância do aprofundamento nos estudos
caso se busque uma compreensão mais ampla de Rawls e sua teoria.

184
4.2 IGUALDADE EM RONALD DWORKIN

FIGURA 5 – O FILÓSOFO RONALD DWORKIN (1931 – 2013)

FONTE: <https://bit.ly/3pGpPYz>. Acesso em: 27 jul. 2020.

Como vimos, Rawls nos oferece uma teoria da justiça baseada na igualdade de
liberdade. Aqui, veremos uma teoria da igualdade baseada na igualdade de recursos. Ela
é defendida pelo filósofo americano Ronald Dworkin (1931-2013). Em sua obra, A Virtude
Soberana, ele busca defender a igualdade de recursos.

Para isso, num primeiro momento ele busca refletir sobre a igualdade de bem-
estar, que propõe que sejam oferecidos recursos às pessoas até que o bem-estar da
população seja igual, ou o mais igual possível. A primeira questão que ele coloca a
esta teoria é que diferentes pessoas necessitam diferentes coisas para atingir o bem-
estar. Os exemplos que ele utiliza são o de um deficiente, que necessita mais gastos
e materiais para ter seu bem-estar garantido, e o de uma pessoa que prefere tomar
champanhe, enquanto outra prefere cerveja. Neste sentido, existem alguns impeditivos
para que se alcance o bem-estar comum. Pode ocorrer que não se alcance a igualdade
de bem-estar, pois alguns grupos necessitam de mais recursos, sejam no sentido de
suas preferências pessoais, ou no sentido de necessidades. Além disso, ele reconhece
que há também uma dificuldade de definir com exatidão o que é o bem-estar para todos.
Deste modo, Rodrigues (2020, p. 3) afirma: “Assim, a tese de Dworkin (2005) refuta a
igualdade baseada no bem-estar, a uma por não se poder identificar bases confiáveis
para a definição do que seja o bem-estar de cada indivíduo; a duas pela dificuldade de
compensação daqueles em que o déficit de bem-estar advém dos expenses tastes”.

É notável a crítica feita ao utilitarismo, que considera uma ação moral pelo
caráter de aumentar a felicidade ou diminuir a dor do maior número de pessoas. Nesse
sentido, portanto, não é possível que o único critério da ação seja o bem-estar comum,
vistas as dificuldades citadas acima.

185
É em sua obra A Virtude Soberana que Dworkin faz essa análise, bem como
propõe a ideia de igualdade de recursos disponíveis. Tais recursos dizem tanto respeito
a riquezas quanto a qualidades. Ele reconhece o papel de dois itens fundamentais
no processo de garantir a igualdade de recursos: o princípio da responsabilidade do
indivíduo, ao defender que cada um é responsável por suas escolhas quando possui a
liberdade de deliberar o que é melhor em sua vida; e o princípio da igual importância,
que reconhece que diferentes pessoas possuem diferentes demandas, mas considera
a necessidade de tratá-las de modo igual sob certos aspectos.

Como forma de trazer para a realidade sua teoria, Dworkin imagina uma
situação. A de um leilão em uma ilha deserta, onde cada participante inicia com a
mesma quantidade de conchas (que serão utilizadas para o pagamento). Seguindo a
lógica de um leilão, e considerando que todos possuem meios para adquirir os bens que
lhes interessam, o ideal é que ao fim do leilão cada um possua os bens que mais convêm
com seus respectivos modos de vida. Lembremos as diferentes necessidades que as
pessoas possuem. Destacamos:

O leilão como a maneira de realizar a divisão de recurso na ilha


demonstra o papel fundamental que a liberdade representa na
teoria de igualdade de Dworkin (2005). O leilão hipotético é uma
metáfora do mercado em condições ideais e representa segundo
o autor a única maneira de se realizar uma distribuição adequada
dos bens disponíveis na sociedade em acordo com as diferentes
preferencias existentes. Esse mecanismo também garante com
que as pessoas arquem com a responsabilidade de suas escolhas
(RODRIGUES, 2020, p. 7).

E o caso das pessoas que possuem demandas superiores de recursos que não
surgiram por meio de suas escolhas, mas por situações do acaso ou infortúnios? Dworkin
aqui traz a ideia de “Seguro”. As pessoas poderiam adquirir o seguro para que, caso se
efetivassem situações se infortúnios e, maiores demandas, não saíssem prejudicadas
por necessitar estes recursos a mais.

A teoria de Dworking é extensa em conteúdo e possibilidade de reflexão. Aqui


oferecemos uma síntese, um panorama geral, de como o filósofo entende a igualdade:
ela deve ser empregada em uma sociedade como igualdade de recursos, para que a
partir do acesso aos recursos cada cidadão possa escolher pelos bens que lhe convém.

4.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Nesta seção, buscamos apresentar os conceitos de justiça, igualdade e liberdade
sob a perspectiva de diversos autores. Desde Platão até Ronald Dworkin, pudemos notar
como as questões que permeiam os conceitos aqui tratados são relevantes não apenas
em nosso dia a dia, como falamos no início, mas também para a Filosofia.

186
A busca pela reflexão sobre a justiça, sobre a igualdade, a liberdade, bem
como sobre outros diversos conceitos, é de extrema importância para refletirmos
não só as questões mais diretas que envolvem estes conceitos, mas questões que
caminharam com a humanidade pelo menos nos últimos 2500 anos. O que é, afinal,
a justiça? Somos livres? O que é, então a liberdade? Parece que ainda há muito o que
ser discutido e pensado.

Entretanto, é necessário reafirmar a importância de buscar um aprofundamento


nas questões aqui desenvolvidas caso se deseje compreender de maneira mais ampla e
específica a obra de cada autor. Os clássicos aqui trabalhados possuem uma obra vasta
cuja importância e complexidade não pode ser resumida em algumas páginas e é nosso
papel reconhecer as limitações que nossos escritos possuem. Por isso, não deixe de
buscar aprofundar-se nos temas que lhe interessaram.

Direito, Justiça e Sociedade

Sergio Cavalieri Filho

• A finalidade do direito é a realização da justiça

Direito e Justiça são conceitos que se entrelaçam, a tal ponto de serem


considerados uma só coisa pela consciência social. Fala-se no Direito com o sentido de
Justiça e vice-versa. Sabemos todos, entretanto, que nem sempre eles andam juntos.
Nem tudo que é direito é justo e nem tudo que é justo é direito. Por que isso acontece?

Isso acontece porque a ideia de Justiça engloba valores inerentes ao ser


humano, transcendentais, tais como a liberdade, igualdade, fraternidade, dignidade,
equidade; honestidade, moralidade, segurança, enfim, tudo aquilo que vem sendo
chamado de direito natural desde a antiguidade. O Direito, por seu turno, é uma
invenção humana, um fenômeno histórico e cultural concebido como técnica para a
pacificação social e a realização da justiça. Em suma, enquanto a Justiça é um sistema
aberto de valores, em constante mutação, o Direito é um conjunto de princípios e
regras destinado a realizá-la. E nem sempre o Direito alcança esse desiderato, quer
por não ter acompanhado as transformações sociais, quer pela incapacidade daqueles
que o conceberam, e quer, ainda, por falta de disposição política para implementá-lo,
tornando-se por isso um direito injusto.

Creio ser possível dizer que a Justiça está para o direito como o horizonte
está para cada um de nós. Quanto mais caminhamos em direção ao horizonte – dez
passos, cem passos, mil passos, - mais ele se afasta de nós, na mesma proporção.
Nem por isso o horizonte deixa de ser importante porque é ele que nos permite
caminhar. Pois também o Direito, na permanente busca da Justiça, está sempre
caminhando, em constante evolução.

187
• A criação do direito não é obra exclusiva do legislador

É justamente neste ponto que se enquadra a primeira questão que gostaria


de destacar. A criação do Direito não é obra exclusiva do legislador, como comumente
se pensa e se ensina, mas também, e principalmente, do jurista, do magistrado, do
advogado, enfim, de todos os operadores do direito. O que o legislador faz é criar a lei,
mas o direito é muito maior que a lei. Mário Moacyr Porto já dizia que a lei não esgota o
direito assim como a partitura não esgota a música. A boa ou má execução da música
dependerá da virtuosidade do intérprete. O mesmo ocorre no mundo jurídico; não
basta conhecer bem a lei para fazer justa aplicação do direito porque a justiça nem
sempre estará na lei. O mau operador do direito – advogado ou juiz – transforma uma
lei boa em má, ao passo que o bom operador é capaz de dar boa aplicação até a uma
lei ruim. Rosah Russomano, em suas Lições de Direito Constitucional (1970, p. 302),
diz que a “norma jurídica tornar-se-á boa ou má, produtiva ou prejudicial, elogiável
ou iníqua, não tanto pelo seu conteúdo específico, porém antes e acima de tudo pela
própria interpretação que o magistrado lhe imprimir”. E interpretar, pondero, é criar
uma concordância aceitável entre o caso concreto e a justiça.

É aqui que se revela o talento criativo dos grandes e verdadeiros juristas. São
aqueles que, tendo sensibilidade para perceberem os anseios da justiça, empenham-
se em ajustar o Direito a essas exigências antes mesmo do legislador, idealizando
novas fórmulas jurídicas. Buscam a realização da Justiça quando ainda não é ela
encontrada na lei. São os verdadeiros artífices do Direito.

A Escola da Exegese, da qual Montesquieu foi o seu precursor, colo- cava os


textos da lei acima de tudo. Ensinava que os juízes deviam seguir a letra da lei, porque
esta representava a vontade do povo. Uma interpretação demasiada larga pareceria
demonstrar que esta vontade não era clara. Sus- peitava-se do juiz, pois este poderia
deformar o pensamento do legislador. Essa escola perdeu toda a influência a partir do
momento que a sociedade percebeu que o poder judiciário está animado do mesmo
espírito democrático do legislador; que os juízes interpretam a lei com o mesmo
sentimento de justiça com que fora votada.

De todas as áreas do Direito, a responsabilidade civil é aquela que mais se presta a


exemplificar tudo aquilo que até aqui ficou dito. Evoluiu da culpa provada ao risco integral
numa marcha acelerada para acompanhar o ritmo das transformações sociais que
ocorreram no curso do século passado em consequência do fantástico desenvolvimento
tecnológico e científico que nele teve lugar. Passamos, primeiramente, pela flexibilização
do conceito e da prova da culpa; evoluímos para a culpa anônima e a culpa contratual,
até chegarmos à responsabilidade objetiva. E nesta, por sua vez, passamos ao risco
integral para certos casos, nos quais o próprio nexo causal fica profundamente diluído.
Essa enorme evolução da responsabilidade civil, entretanto, não foi obra dos legisladores,
mas sim de juristas geniais que, sensíveis aos reclamos da justiça, engendraram fórmulas
jurídicas capazes de eliminar o descompasso entre o social e o jurídico.

188
• A finalidade da justiça é a transformação social

Se a finalidade do Direito, como enfatizado, é a realização da Justiça, qual


seria a finalidade da Justiça? Essa é a segunda questão que gostaria de destacar.
A finalidade da Justiça é a transformação social. É a construção de uma sociedade
justa, como expressamente previsto no artigo 3º da nossa Constituição.

E o que é uma sociedade justa? A própria Constituição nos responde. É


uma sociedade sem preconceitos e discriminação de raça, sexo, cor ou idade; uma
sociedade livre, solidária, sem pobreza e desigualdades sociais, na qual a cidadania e
a dignidade da pessoa humana estão no topo da pirâmide jurídica. E se assim é, então
isso importa dizer que, como operadores do direito, jamais poderemos aplicar o direito
de forma a contrariar esta finalidade, ainda que a lei não seja a melhor.

FONTE: <https://bit.ly/3Cd0P0f>. Acesso em: 27 jul. 2020.

189
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Em A República, obra de Platão, encontra-se uma extensa discussão sobre o que é


justiça. Platão defende que a justiça consiste em cada um exercer a função que lhe
é devida na polis.

• A República ainda traz a concepção de Platão de que, assim como os homens, as


mulheres também podem exercer e aprender inúmeras funções em uma polis.

• Aristóteles, no Livro III da obra Ética a Nicômaco, discorre sobre ações voluntárias e
involuntárias e a liberdade, para o filósofo, parece se dar no sentido de alguém poder
deliberar por si mesmo sobre determinada ação.

• Em Atenas eram considerados cidadãos apenas homens, com mais de 21 anos, com
naturalidade ateniense e cujos pais fossem atenienses. Além disso, a escravidão era
permitida. A igualdade entre os homens, portanto, não se dá no sentido da igualdade
de direitos.

• John Stuart Mill, em sua obra Sobre a Liberdade defende que o cidadão possua
liberdade de pensamento, associação, ação, expressão e sentimento, mas destaca
que ela não deve ser utilizada para causar um mal à sociedade.

• John Rawls possui uma teoria da justiça em que defende a justiça como equidade.
Defende que as pessoas envolvidas em algum acordo social devem, primeiramente,
estar em posições iguais, ou como ele diz, “sob o véu da ignorância” e, nestes acordos,
dois princípios centrais devem ser observados e respeitados.

• Ronald Dworkin propõe uma teoria da igualdade de recursos, em que os cidadãos


devessem ter acesso de maneira igual aos recursos, mas que fossem obtidos a partir
da necessidade de cada indivíduo, levando em conta sua liberdade de escolha e
responsabilidade em relação às consequências.

190
AUTOATIVIDADE
1 Na Grécia Antiga permitia-se a escravidão que era, inclusive, algo normal no cotidiano
da polis. Aristóteles oferece argumentos para justificar a escravidão. Quais seriam?

2 John Stuart Mill defende a liberdade para os indivíduos. Liberdade de pensamento, de


expressão, de ação, de associação, de sentimento. Ele considera a opção de restringir
os atos (ainda que livres) de alguém de algum modo? Justifique.

3 Ronald Dworkin reconhece o papel de dois itens fundamentais no processo de garantir


a igualdade de recursos: o princípio da responsabilidade do indivíduo, ao defender
que cada um é responsável por suas escolhas quando possui a liberdade de deliberar
o que é melhor em sua vida; e o princípio da igual importância, que reconhece que
diferentes pessoas possuem diferentes demandas, mas considera a necessidade de
tratá-las de modo igual sob certos aspectos. Como forma de trazer para a realidade
sua teoria, Dworkin imagina uma situação. Que situação é essa?

191
192
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
BUROCRACIA, CORPORATIVISMO E
PATRIMONIALISMO

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico veremos questões ligadas a três modos de organização do Estado.
A burocracia, o corporativismo e o patrimonialismo. Esses são conceitos-chave para
compreendermos as relações governamentais que permeiam a estrutura do Estado.

Veremos que a burocracia diz respeito ao poder exercido de forma racional,


baseado em princípios, leis, regras e normas. E que para manter esse sistema funcionando
necessita-se de elementos de organização como a continuidade, a existência de regras,
a profissionalização dos servidores e a sumarização.

No corporativismo, por sua vez, os agentes organizam-se em corporações


de acordo com suas categorias de atuação e passam a defender coletivamente seus
interesses perante ao Estado. Já o patrimonialismo caracteriza-se por ser o governante
também um proprietário de terras, possivelmente um dos principais do local que governa.

Será possível também observar como a ideia de patrimonialismo, por exemplo,


é encontrada até hoje nas raízes do Estado brasileiro. Notar como o corporativismo
foi incentivado pela Itália fascista no entre guerras. Até mesmo compreender que a
burocracia, por mais útil que possa ser ao Estado, requer uma crítica contemporânea
indispensável à compreensão se seus limites e eventuais danos.

2 BUROCRACIA
Nos sobram definições acerca do significado de burocracia, embora literalmente
seja único o seu significado: do francês “bureau” (escritório ou escrivaninha) e do grego
“kratos”, gerando o sufixo “cracia”, que significa “poder”, define-se como “poder do
escritório”, portanto, o poder é racionalmente organizado e exercido por meio de um
conjunto sistemático de procedimentos, baseados em princípios, leis, regras e normas.
É o poder das regras, racionalmente ordenadas para determinados fins. Em outras
palavras, é a forma específica de ordenação das coisas definida pela divisão do trabalho
especializado, em que cada operador exerce funções específicas ligadas à complexidade
do todo, cuja finalidade é o bom funcionamento desse todo. A divisão especializada
do trabalho é exercida com administração profissional, controle hierárquico, cadeia
de comando e coordenação a partir da autoridade legal constituída. Distingue-se das
organizações informais.

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O tipo ideal de burocracia é a da gestão impessoal e racional-legal, isso é
fundamentado em leis e baseado em regras. A rigor, significa o contrário da gestão
orientada por intuição, voluntarismo, parentesco e amizade, desconsiderando a
autoridade patrimonial ou carismática. A organização burocrática pode ser encontrada
em instituições públicas e privadas, mas uma vez definidos os objetivos da organização,
públicos ou privados, estabelecem-se princípios e leis gerais, em seguida, regras de
procedimentos a respeitar os objetivos e princípios e orientadas por essas leis gerais.
Trata-se da estratégia da maior eficiência possível a fim de obter a melhor eficácia.
Através da burocracia, tudo tende a ser feito de forma respaldada por essas leis,
tornando o processo formal, em tese, o mais impessoal e justo. Tudo passa a depender
de uma autorização, uma declaração, um carimbo e uma assinatura.

FIGURA 6 – O PODER DO CARIMBO, OBJETO SÍMBOLO DA BUROCRACIA

FONTE: <https://bit.ly/378231r>. Acesso em: 21 abr. 2020.

2.1 CARACTERÍSTICAS E PARADOXOS DA BUROCRACIA


O sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) é considerado o principal teórico
da burocracia. Descreveu suas características ideais e também refletiu amplamente
sobre suas consequências, oferecendo uma abordagem histórica sobre a emergência
das organizações burocráticas. O autor observou que as características que compõem
a burocracia a distinguem claramente de outros modos de organização baseados em
formas de autoridade não legais. Percebeu também que a distinção da burocracia em
relação a outras formas de organização era o uso eficiente da técnica, do conhecimento
especializado, da certeza nas decisões, da continuidadee unidade dos procedimentos,
permitindo a previsibilidade.

O surgimento e a crescente hegemonia histórica do modo burocrático de exercício


do mando é resultante da ascensão do capitalismo, isto é, de um modo de produção da
vida econômica intermediada pelo uso da moeda. Foi o fator-chave de desenvolvimento
da economia de mercado, assegurando as transações impessoais e racional-legais,
dando cada vez mais confiabilidade sobre o sisterma. Organizações instrumentais (por
exemplo, empresas de capital aberto) logo surgiram porque sua organização burocrática
as equipou para lidar com as várias demandas da produção capitalista com mais eficiência
do que os pequenos produtores (ROCKMAN, 2019; DELLA PORTA, 2003).

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A burocracia nasceu e se desenvolveu com propósitos racionais absolutamente
justificáveis, baseados na eficiência e eficácia. Tornou-se fundamental na economia
como na justiça, na educação e, acima de tudo, na conformação do Estado moderno.

2.2 A BUROCRACIA E O ESTADO


Todas as formas de governança exigem administração, mas somente nos
últimos séculos, a forma burocrática se tornou relativamente comum. Weber (1999)
observou formas burocráticas de administração desde o Egito antigo, como também
no Império Romano, na Igreja Católica e na China imperial. Não obstante, a constituição
do Estado moderno é caracterizada pela progressiva instituição do modo racional-legal
e impessoal de governo. A burocratização crescente e permanente, sem soluções de
continuidade, passou a ser, progressivamente, a marca da autoridade na administração
da coisa pública. A burocracia, a serviço da coroa, era a própria manifestação da
autoridade estatal, sobrepondo-se, historicamente, à vontade pessoal do governante. A
construção do estado foi essencialmente identificada com a crescente proficiência de
seu aparato burocrático e o status de seus funcionários permanentes.

O desenvolvimento da burocracia pública geralmente acompanhava a


capacidade de um Estado de ampliar seu alcance e unir seus territórios sob uma única
soberania. O estabelecimento de um quadro administrativo de período integral foi um
sinal da unidade administrativa de um governo e de sua capacidade de implementar
seus mandatos. A burocratização do Estado, por mais estranha que possa parecer
inicialmente, normalmente forneceu a base para sua democratização, porque eliminou
as bases feudais, plutocráticas e patrimoniais da administração. Alguns estados,
tipicamente aqueles que enfrentaram uma luta para quebrar a base de poder de uma
aristocracia provincial, desenvolveram uma forte burocracia profissional para servir a
coroa e unificar o Estado. Afinal, devemos saber que, por muito tempo, o poder não foi
republicano como constitucionalmente hoje se apresenta. Era de oligarquias.

Durante o reinado de Luís XIV (1643-1715), a França estabeleceu um forte


corpo profissional de funcionários responsáveis ​​por obras públicas, extraindo
receitas e apoiando as ambições da coroa. No século XIX, a Restauração Meiji
no Japão (1868 a 1912), motivada por poderosas ambições modernizadoras,
centralizou o Estado, enfraqueceu a aristocracia e criou uma poderosa burocracia.
Por outro lado, a aristocracia mais poderosa da Grã-Bretanha continuou a exercer
funções administrativas amadoras até o século XIX, quando um serviço público
profissionalizado passou a ser implantado. Nos Estados Unidos, uma administração
pública profissional só foi criada no nível federal a partir de 1883. A instauração de
uma burocracia moderna no nível federal nos Estados Unidos foi mais complicada que
em outras nações, notadamente em função das características específicas de seu
complexo sistema descentralizado de autoridade política.

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FIGURA 7 - RETRATO DA RESTAURAÇÃO MEIJI, ESFORÇO DE INTEGRAÇÃO E MODERNIZAÇÃO DO JAPÃO
(1868-1912), O QUE INCLUI A INSTAURAÇÃO DE UMA BUROCRACIA PROFISSIONAL

FONTE: <https://bit.ly/3IN8PaO>. Acesso em: 22 abr. 2020.

A partir do século XIX, as nações reformaram suas gestões públicas para


responder a falhas de governança que colocavam em perigo, cada vez mais, a segurança
nacional. A crescente dificuldade de lidar com crises e de funcionar com a maior
normalidade possível em tempos de guerra justificavam tais reformas. Igualmente, as
necessidades crescentes de instaurar sistemas universais de proteção social, como
serviços de saúde, educação e pensões, requeriam administração cada vez mais
eficiente e capaz, inclusive, de tributar a sociedade.

Até hoje, as reformas administrativas estão focadas na meritocracia como


principal característica do desempenho no serviço público e objetivadas à maior eficácia
na apresentação de resultados e prestação de serviços à sociedade, o que inclui o
combate permanente à corrupção, ao patrimonialismo e a falta de responsabilidade para
com o patrimônio público. A partir dos anos 1980, os esforços de reforma antiburocrática
nas democracias estabelecidas ganharam impulso, enfatizando a descentralização e a
tomada de decisões com base no mercado e, em alguns casos, até a substituição de
funcionários públicos em tempo integral por gerentes contratados (BRESSER PEREIRA,
2009, p. 205). A fim de aumentar a flexibilidade e a adaptabilidade e tornar a esfera
pública menor e mais orientada para o desempenho, a desburocratização do aparato
administrativo do estado tornou-se moda, se não aplicada de maneira abrangente. Esse
tipo de reforma atual é denominado de Reforma para a Nova Gestão Pública.

O aparato administrativo estatal nos países em desenvolvimento, no entanto,


raramente chegou perto de alcançar o status impessoal baseado em regras que Weber
descreveu. Tampouco em geral conseguiu produzir o nível de proficiência que Weber
alegou ser característico da burocracia. Com frequência crescente, a falta de recursos
ao pagamento de servidores qualificados pela escassez de recursos levou à ineficiência
na prestação de serviços e à corrupção generalizada em alguns países. A ausência
de um forte corpo profissionalizado de funcionários em tais ambientes faz com que o
serviço público se torne amplamente ineficiente e corrupto.

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Muitos dos problemas identificados nos países em desenvolvimento, é claro,
afetam até os países mais ricos, embora geralmente em menor grau. A extensão em
que a burocracia atua de acordo com a caracterização weberiana (isto é, racional-
legal e impessoal) está relacionada às circunstâncias externas que governam suas
capacidades. Nessa perspectiva, quando esses recursos necessários à manutenção de
uma estrutura administrativa eficiente estão ausentes ou quando há pouca base para
o domínio da autoridade racional-legal, as coisas não funcionam. Incapaz de agir de
maneiras responsável e responsiva e baseada em regras claras, a burocracia estatal
torna-se um problema ao invés de solução. Além disso, quando os salários são baixos e
os recursos educacionais são limitados, os funcionários responsáveis pela operação do
maquinário administrativo podem ter habilidades inadequadas e tornar-se suscetíveis
à corrupção e evasão.

IMPORTANTE
O tipo ideal de burocracia, na concepção do sociólogo alemão Max Weber (1999,
p. 198), diz respeito ao estabelecimento de competências fixas para cada função,
cuja execução é orientada exclusivamente a partir de regras racionais e impessoais,
objetivadas a fins últimos previamente estabelecidos.

Desse modo, o fato de o aparato administrativo de um Estado ser chamado de


“burocracia estatal” pode variar muito de significado simbólico para a sociedade. Seu
funcionamento pode estar próximo ou distante do tipo ideal weberiano de burocracia,
baseado na racionalidade legal e na impessoalidade do exercício do poder. Quando os
Estados são dotados dos recursos materiais necessários e estruturam a administração da
coisa pública através da profissionalização, a burocracia significará motivo de confiança
dos cidadãos no Estado republicano. Do contrário, a burocracia será identificada com
o próprio Estado ineficiente, corrupto, controlado por elites patrimonialistas que se
utilizam da burocracia para legitimar seus privilégios. Por extensão, o corpo burocrático
será identificado com o que a política produz de pior à sociedade.

Nos países em desenvolvimento, as ideias sobre reforma administrativa


geralmente se movem na direção do ideal weberiano mais formalista – particularmente
a criação de padrões universalistas, procedimentos regulares e responsabilidade.
Por outro lado, em países mais desenvolvidos, especialmente nos de língua inglesa,
o foco é a redução do formalismo administrativo associado à burocracia. Trata-se de
tentar diminuir o número de regras e aumentar a capacidade responsiva. Enquanto
nos países em desenvolvimento, a principal necessidade é o combate à corrupção,
nos países desenvolvidos é o desempenho. Em contextos em que se acredita que a
burocracia estatal tenha sido essencial ao desenvolvimento da nação (como em França
e Alemanha), há maior resistência à reforma com foco em critérios de mercado para
avaliar o desempenho aparato administrativo estatal.
197
Mas a burocracia nunca está livre de severas críticas, onde quer que seja, em
países pobres, em desenvolvimento ou em países ricos. Críticas atuais sugerem que os
tipos contemporâneos do modo de organização burocrático tendem a ser caracterizados
como não responsivos, letárgicos, antidemocráticos e mesmo incompetentes (ROCKMAN,
2019). Max Weber previu tais consequências. Não obstante, sua análise teórica distingue
as vantagens comparativas técnicas e de proficiência, além de destacar seu predomínio
por sobre os sistemas de castas e outras formas de dominação social injustas baseadas
no status, no direito de sangue etc., que impedem a mobilidade social. Na forma pura
de organização burocrática, regras e procedimentos universalizados predominariam,
tornando irrelevantes o status ou as conexões pessoais.

Dessa forma, a burocracia é a síntese dos modelos universalizados através dos


quais situações semelhantes entre indivíduos e organizações são tratadas sob regras
uniformes, sem distinção entre os indivíduos. É quando o poder de quem o exerce
também está delimitado pelas leis e regras de procedimento, acima das vontades
pessoais e passionais. Nessas circunstâncias, o gosto e a discrição individuais do
administrador são limitados pelas regras do devido processo (ROCKMAN, 2019). Assim,
conquanto críticas existam e tenham muito sentido e utilidade contemporâneas, é
preciso ressaltar que se trata de um sistema administrativo e de governo fundamentado
na lei. As disfunções acontecem, evidentemente, por desvios próprios dos seres
humanos, mas são reconhecidos como desvios, enquanto a lógica da impessoalidade e
da correção segundo as leis permanece, seja na administração pública, seja na gestão
dos interesses de organizações privadas, igualmente submetidas às leis constitucionais.

A burocracia é composta por funcionários com conhecimentos especializados.


No caso da gestão pública, as atribuições e poderes do servidor são estritamente
delimitadas por legislação. Portanto, ainda que o serviço público possa ser criticado – e
com razão – o procedimento do funcionário público é, burocraticamente, baseado em
critérios objetivos e impessoais. Quando isso não acontece, é claro que há um desvio
de finalidade, portanto, do ponto de vista do tipo ideal weberiano, a atitude burocrática
representa o comportamento isento de paixões, preferências ou antipatias, ideologia
ou interesse pessoal. Se isso nos parece óbvio, por um lado, mas irreal, por outro, é
porque tem a ver com nossas experiências do dia a dia numa sociedade cheia de regras
e lacunas. De um lado, percebemos que nossa Sociedade é cada vez mais impessoal
e que as regras funcionam, até certo ponto. De outro, sabemos que a burocracia é
imperfeita. Mas precisamos compreender que, historicamente, ela foi um instrumento
modernizador e civilizatório.

Isso não impede que o termo burocracia tenha conotação social pejorativa. As
impressões sociais estão relacionadas a regras e regulamentos excessivos, falta de
sensibilidade para com as situações dos indivíduos, controle centralizado, ausência
de expostas que satisfaçam os cidadãos e ausência de responsabilização. Em termos
vulgares, é o que muitas vezes chamamos de “burrocracia”. Isso deixa cidadãos furiosos
e impotentes diante da “monstruosidade” da impessoalidade racional-legal. Nesse

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sentido, ao invés da eficácia pronunciada, a burocracia é entendida como obstáculo à
satisfação dos cidadãos. É quando as pronunciadas vantagens da impessoalidade e da
igualdade de tratamento causam o paradoxo de produzir patologias.

2.3 RESPONSABILIZAÇÃO JURISDICIONAL


A responsabilização jurisdicional é um elemento primordial da divisão do trabalho
da organização burocrática, que é dividida em unidades setoriais com responsabilidades
definidas. É o que entendemos por jurisdição, ou seja, o locus de competência jurisdicional,
aquilo que compete a cada unidade, setor e ou funcionário especializado. Tem a ver
com a especialização burocrática, que leva cada unidade burocrática da organização
a ter certas funções e não outras. Quando esse fenômeno da superdivisão entra em
contato com as demandas dos indivíduos, a tensão é frequente. As responsabilidades
dos indivíduos aumentam com o movimento ascendente através de uma hierarquia
organizacional. A divisão organizacional do trabalho permite que as unidades e
indivíduos de uma organização dominem detalhes e habilidades, transformando isso
em micro fragmentos de poder, de arrogância e, sobretudo, de desresponsabilização
sobre qualquer demanda dos cidadãos que não se encaixe exatamente nesse nicho de
conhecimento e poder burocrático.

Conquanto a divisão do trabalho seja altamente eficiente, pode levar a várias


patologias organizacionais, por exemplo: as unidades, sejam elas um órgão, um setor ou
um funcionário qualquer, podem ser incapazes de identificar e responder adequadamente
a problemas fora de sua competência e podem abordar todos os problemas e prioridades
exclusivamente a partir do alcance das capacidades específicas de sua própria
jurisdição. Esse recurso da burocracia leva, com alguma frequência, essas unidades
organizacionais a se esquivar de responsabilidades, permitindo que elas definam um
problema como pertencente a alguma outra unidade. Assim, muitos cidadãos honestos
e impotentes diante da “monstruosidade” e insensibilidade burocrática, não tem suas
demandas atendidas e os problemas se deslocam de uma unidade para outra, perdendo-
se no mapa burocrático, sem a supervisão de ninguém e sem solução.

Nesse cenário, desenrola-se uma consequência indesejada da burocracia na sua


origem, isto é, a organização burocrática tende a fragmentar-se em inúmeras divisões
e desligar-se do objetivo geral da burocracia, que é gerar eficácia em benefício da
sociedade. E os interesses dos indivíduos que compõem a burocracia tornam-se mais
importantes do que os interesses de quem deveria ser servido pela burocracia. Os nichos
de saber específico tendem, perigosamente, ao insulamento burocrático e ao alheamento
dos interesses gerais. Funcionários com conhecimentos específicos utilizam-se desse
conhecimento para proteger seus interesses corporativos e pessoais. E, ainda que a
burocracia funcione, sua morosidade e falta de respostas torna o sistema letárgico. Max
Weber (1999) também havia previsto isso. É quando os meios burocráticos se tornam fins
em si mesmos e a Sociedade, incluindo aqueles que a representam, ou seja, governantes
e legisladores, tornam-se igualmente dependentes do poder dos burocratas.

199
2.4 A NECESSIDADE DE COMANDO E O PARADOXO DESSA
NECESSIDADE
A autoridade burocrática é hierarquicamente organizada, com responsabilidades
assumidas no topo e delegadas com a devida discriminação de funções e ordem, de
cima para baixo. Devido ao acima mencionado risco real de fragmentação e insulamento
burocrático produzido pelos nichos jurisdicionais (órgãos, setores e outras divisões
burocráticas) a capacidade de coordenar e controlar a multiplicidade de unidades é
essencial. A autoridade é a ligação que une as unidades com tendência à fragmentação,
impedindo que essas unidades exerçam seus interesses corporativos de maneira
incontrolável e alheia ao interesse geral. Trata-se de um verdadeiro paradoxo, qual seja,
o de que, para que a burocracia funcione, não basta que haja bons princípios e boas leis.
O funcionamento das regras depende não apenas do conhecimento especializado dos
burocratas. Embora este fator seja essencial, é preciso que haja mecanismos de comando
e controle que façam com que esse conhecimento não seja usado majoritariamente
para o interesse dos próprios burocratas ao invés de servir aos interesses gerais.

Todavia, nenhum aspecto da complexidade da burocracia recebe tantas críticas


quanto o próprio “papel da autoridade hierárquica como meio para alcançar o comando
e controle organizacional” (ROCKMAN, 2019, s.p.). Nessa perspectiva, as críticas da
Sociedade e de especialistas miram no fato de que a “organização hierárquica estrangula
os impulsos criativos e injeta modos de comportamento hipercautelosos, com base nas
expectativas do que os superiores desejam” (ROCKMAN, 2019, s.p.). Ou seja, quando a
autoridade exerce rigor no controle sobre os comandados, isso tem duas consequências.
A primeira tende a ser positiva, qual seja, melhor controlar as unidades (órgãos, setores
e indivíduos) a cumprir os objetivos gerais da burocracia e não se fragmentar em
interesses aos gerais. A segunda é negativa, centralizando a autoridade e diminuindo
a flexibilidade e a criatividade que poderia haver nas extremidades burocráticas para
agilizar os processos. O equilíbrio é sempre precário e a vigilância, sobretudo social,
deve ser permanente.

2.5 CONTINUIDADE
A continuidade é outro elemento-chave da organização burocrática. A autoridade
racional-legal exige regras e procedimentos uniformes para documentos escritos e para
comportamentos oficiais. O armazenamento de informações burocráticas através de
seus registros fornece a memória organizacional, permitindo procedimentos operacionais
recorrentes, gerando aprendizado, aperfeiçoamento e previsibilidade. A capacidade de
utilizar procedimentos padronizados torna as organizações mais eficientes, diminuindo
os custos associados a qualquer transação. Arquivos organizacionais registram
procedimentos, comportamento antecedente e registros de pessoal. Eles também
permitem que uma organização seja contínua e, portanto, independentemente de
qualquer liderança específica, ou seja, tende à formalidade e à impessoalidade do poder.

200
De modo geral, a continuidade é essencial, vital para a capacidade de uma
organização manter sua identidade e até sua cultura organizacional. Sem seus
registros, seria impossível manter transações baseadas em legalidade e justificar os
procedimentos de funcionários, setores e órgãos a favor do interesse geral, sem a
interferência espúria de maus governantes e legisladores. A continuidade é, em grande
medida, favorável ao interesse geral da sociedade e das organizações. Quando boas leis
e boas regras constrangem maus atos e estimulam boas decisões de governantes, isso
é naturalmente bom. Quando essas leis e regras, impedem que sucessivos governantes
mudem de rotas seguras para o improviso e com objetivos de apagar o que antecessores
fizeram de útil, isso é de interesse da sociedade e das organizações. Evita-se um dos
piores males da política: justamente, a chamada “solução de continuidade”.

2.6 REGRAS
As regras são a matéria orgânica das organizações burocráticas, a força vital da
organização burocrática e fornecem uma base racional e contínua para procedimentos
e operações. Os arquivos de uma organização contêm uma visão geral das regras
acumuladas. As decisões burocráticas e, acima de tudo, os procedimentos são baseados
em regras e precedentes codificados. Embora a maioria das pessoas não goste de regras
que as inibem, a existência de regras é característica da autoridade legal-racional, o
que garante que as decisões não sejam arbitrárias, que os procedimentos padrão não
sejam facilmente contornados e que a ordem seja mantida. As regras são a essência da
burocracia, mas também são uma vergonha para os líderes que querem fazer as coisas
acontecerem imediatamente.

As regras restringem o comportamento arbitrário, mas também podem


fornecer obstáculos formidáveis ​​à conquista. O acúmulo de regras às vezes leva ao
desenvolvimento de inconsistências, e os procedimentos necessários para alterar
qualquer elemento do status quo podem se tornar extraordinariamente onerosos como
resultado do caráter da burocracia orientada por regras. Uma perspectiva sustenta que
a estrita adesão às regras restringe a capacidade da burocracia de se adaptar a novas
circunstâncias. Por outro lado, os mercados, que podem operar com muitas poucas
regras, forçam uma rápida adaptação às novas circunstâncias. No entanto, a maioria
das grandes organizações de negócios é organizada de forma burocrática porque a
hierarquia e a responsabilidade delegada reduzem os custos de transação da tomada
de decisões.

2.7 PROFISSIONALIZAÇÃO
A profissionalização é absolutamente indispensável ao funcionamento da
burocracia. É essencial que haja um quadro de funcionários atuando na malha burocrática
constituída de leis e suas regras consequentes, e a dedicação do corpo funcional

201
deve ser exclusiva às suas responsabilidades administrativas e legais. No governo, a
profissionalização é exercida pelo corpo funcional cujas funções e posições devem ser
alcançadas pelo mérito, como critério de rito de passagem. A administração pública,
constituída de um corpo permanente e estável de funcionários a serviço da Sociedade,
pode ser entendido como um governo permanente. Em outras palavras, trata-se de
um organismo independente dos políticos transitórios, que ganham e perdem eleições,
entram e saem, servindo o público (e aos seus interesses) por tempo delimitado e na
dependência dos eleitores que, no caso das democracias, decidem quem representará
suas demandas mais importantes a serem apresentadas ao corpo burocrático estatal,
que por sua vez deve viabilizá-las.

Portanto, burocracia implica um corpo de funcionários especializados,


trabalhando a partir e através de uma divisão especializada, como um organismo, cujos
órgãos e suas funções específicas trabalham para a saúde do organismo. Nas empresas
e em outras organizações burocráticas não governamentais, há também um quadro
profissional de gerentes. A profissionalização aumenta o conhecimento e a continuidade
dentro da organização. Mesmo quando as organizações estão temporariamente
sem líderes ou experimentam turbulências em suas posições de liderança, o quadro
profissional ajuda a manter um equilíbrio organizacional. Imagine-se o que seria de uma
nação, numa turbulência política, sem um corpo burocrático fazendo a máquina continuar
funcionando. As virtudes da profissionalização são claras: sem corpos profissionais,
as organizações e os governos sofreriam crises induzidas pela incompetência e
paralisariam. Assim, a profissionalização ajuda para a proficiência técnica superior que
Max Weber afirmou ser a marca registrada da organização burocrática.

2.8 SUMARIZAÇÃO
Na Ciência Política, a burocracia é compreendida a partir de seu aspecto
funcional e crítico. O aspecto funcional nos diz o que ela representa, para que serve
e demonstra a importância que tem nas nossas vidas. O aspecto crítico nos instiga a
reconhecer seus problemas, compreender a origem desses problemas e revelá-los, a
fim de que a sociedade saiba como enfrentá-los, se quiser enfrentá-los. Sob o aspecto
funcional, sabemos que a burocracia faz parte da racionalização da sociedade, algo
exigido pelo sistema econômico, mas também, pela complexidade da vida social nas
sociedades de massa. Seria impossível viver em sociedade sem um sistema racional-
legal de governo. Isso implica um sistema executivo, que executa leis. Evidentemente,
implica um sistema jurídico, que é o guardião e o intérprete das leis. E implica um sistema
legislativo que, em nome da sociedade, deve interpretar as demandas da sociedade e
transformá-las em leis. Em tese, é isso.

Seria, igualmente, impossível viver sem leis que regulassem as relações sociais
e pessoais nos diversos momentos da vida de cada um. As sociedades sempre têm
certo grau de autonomia e capacidade de auto-organização, o que na linguagem

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sociológica denominamos de capital social. Significa capacidade de cooperação,
solidariedade, diálogo, confiança e respeito ao próximo. Mas, os conflitos de interesses
que surgem o tempo todo nas sociedades de massa, requerem leis e a garantia de
seu cumprimento, para os objetivos gerais da Sociedade. Isso vale para qualquer
organização, governamental ou não, com seus interesses públicos ou privados. Para
que tais objetivos sejam alcançados e mantidos, um conjunto de leis e regras se faz
necessário. E para que as leis sejam materializadas e preservadas, as regras têm de
ser cumpridas. Por sua vez, o cumprimento dessas regras exige que pessoas com
conhecimentos especializados as procedam da maneira correta.

Não obstante, o aspecto crítico da burocracia nos obriga a observar atentamente


os desdobramentos políticos da formação e desenvolvimento do corpo burocrático.
Não há dúvidas quanto à burocracia como um sinal histórico de evolução. Mas, como
todo processo social, também os processos de desenvolvimento organizacional criam
desdobramentos que ultrapassam os objetivos iniciais, quando não revelam objetivos
implícitos não previamente anunciados. Não poderia ser diferente com um instituto
político e social tão importante à humanidade quanto o fenômeno da burocracia. E isso
nos leva aos dois conceitos subsequentes deste Tópico, quais sejam: o corporativismo
e o patrimonialismo.

FIGURA 8 – QUANDO A BUROCRACIA FUNCIONA

IMPARCIALIDADE RACIONALIDADE

FORMALIDADE

FONTE: <https://slideplayer.com.br/slide/1567690/>. Acesso em: 28 jul. 2020.

3 CORPORATIVISMO
Originalmente, a definição de corporativismo diz respeito à prática de
organizar a sociedade em "corporações" profissionais subordinadas aos interesses do
Estado. Nessa direção, tanto trabalhadores quanto empregadores se organizam em
corporações profissionais e industriais, funcionando como órgãos de representação
política e controlando em boa medida as pessoas e atividades dentro de sua jurisdição.
Nesse sentido, o corporativismo significa a associação de agentes de uma mesma
categoria profissional ou empresarial, cujos interesses de manutenção de seus direitos
e prerrogativas são representados assim, coletivamente, perante o Estado.

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Por definição, podemos afirmar que o corporativismo é um fenômeno
constituído por um tipo de associação de agentes que tem interesses em comum e
coletivamente se organiza para defendê-los. É uma composição semelhante à dos
sindicatos, empresariais, trabalhistas ou de profissionais autônomos. Essencialmente,
caracteriza-se pela lógica da associação e da cooperação solidária, por interesses
comuns entre os integrantes na defesa. Mas, associações e sindicatos são iniciativas
livres e, principalmente, desatreladas do Estado ou de qualquer autoridade maior. São,
portanto, independentes. Diferente disso são as corporações que, originalmente, foram
criadas a partir de estímulos do Estado, de um tipo de Estado ou governo específico: o
Estado autoritário e, mais especificamente, fascista na sua origem.

O Estado fascista é constituído por governo autoritário e centralizado, apoiado


na sociedade por meio das corporações. Surgiu com esta denominação, primeiramente
na Itália, entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais (1914-18 e 1939-45), centralizado
na figura do ditador Benito Mussolini. Literalmente, Fascismo vem do italiano “fascio”,
que significa aliança, liga e também federação. O significado político diz respeito à
aliança entre o Estado e as respectivas alianças da sociedade, isto é, as corporações
profissionais e empresariais. Nesse sentido, o Estado autoritário buscava o apoio
direto dos trabalhadores e empresários organizados sob sua tutela, dispensando as
outras esferas de poder, leia-se, o Legislativo e o Judiciário. Era, portanto, um governo
antiliberal, no sentido de desconsiderar as esferas institucionais liberais de equilíbrio
democrático do poder.

As guerras e os regimes fascistas de Mussolini na Itália, Hitler na Alemanha,


Franco na Espanha, Salazar em Portugal, entre outros, passaram. Mas as corporações
continuaram presentes na realidade política do dia a dia. As “alianças” entre o Estado
e as corporações, sejam profissionais, sejam empresariais ou de outro gênero,
permanecem atuantes pela natureza efetiva de sua força política, isto é, corporativa,
na defesa e proteção de seus interesses. A rigor, não é possível sequer imaginar que
algum governo de uma nação, estado ou mesmo município esteja livre desse tipo de
relação de interesses entre quem governa e precisa de apoio e quem se organiza em
busca de algum tipo de proteção, direito e ou privilégio. Nas palavras do cientista político
estadunidense Lew Rockwell o corporativismo “se tornou tão corriqueiro, tão trivial, que
praticamente deixou de ser notado pelas pessoas. Praticamente ninguém conhece este
sistema pelo seu verdadeiro nome” (ROCKWELL, 2016, s.p.).

3.1 EM NOME DO INTERESSE PÚBLICO


Evidentemente, se pensarmos na burocracia governamental como braço direito
de qualquer governante, é natural compreender que essa grande corporação tende à
superorganização corporativa para a preservação e, sempre que possível, ampliação
de seus direitos. Como uma grande corporação profissional, constituída ao longo do
tempo com a finalidade de administrar a consecução dos interesses republicanos, é fácil

204
entender que, ao longo do tempo, o corpo burocrático de qualquer governo irá “cobrar o
seu preço”. É inegável que o poder político de organização corporativa esteja assentado
no saber técnico, racional-legal e mesmo científico da coisa pública. E o principal mote
dessa força corporativa está justamente na profissionalização.

Apesar das vantagens da profissionalização na burocracia, há sempre o risco


do corporativismo profissional, em que os interesses das corporações profissionais se
enraízam e se estabelecem paralelamente às virtudes públicas da função e dos nobres
objetivos públicos que justificam a burocracia da administração pública. Muitas vezes,
o próprio corpo profissional de especialistas em gestão se torna uma fonte secreta
de poder, porque possui um conhecimento superior àqueles que são seus superiores
nominais, mas temporários, porque eleitos por tempo determinado. Em virtude de
maior experiência, domínio dos detalhes e conhecimento organizacional e substantivo,
os burocratas profissionais podem exercer forte influência sobre as decisões tomadas
por seus líderes. É natural que seja assim. Mais que isso, é prudente que governantes
requeiram o conhecimento de especialistas para a melhor tomada de decisões.

O conhecimento das leis e das regras é fundamental para o bom governo e


para o bom desempenho das organizações, sejam públicas, sejam privadas. De todo
modo, a importância dos burocratas por meio de seu poder cognitivo é também uma
questão política nada desprezível. Os burocratas são, em tese, os principais agentes
dos líderes políticos, no Executivo ou no Legislativo. São seus consultores e esse
poder cognitivo representa, literalmente, um poder político, situando os burocratas
em posição de imprescindível utilidade. Além disso, embora um corpo permanente
de funcionários leve conhecimento e domínio de detalhes à tomada de decisões, isso
também aumenta o seu poder político, através do monopólio de certos conhecimentos
indispensáveis às tomadas de decisão política. Com isso, aumenta a consciência do
burocrata sobre sua importância e o poder de barganha que isso lhe confere para a
defesa de seus próprios interesses.

O corpo burocrático, cujo caráter é permanente e não passageiro, é


tradicionalmente avesso às novidades, às inovações, isto é, a tudo que possa
agilizar o serviço público e sobretudo tornar a burocracia minimamente dispensável.
Frequentemente, a burocracia é muito resistente e tende a rejeitar as novidades, porque
a essência da organização burocrática é transformar qualquer inovação do passado em
nada mais que as suas rotinas permanentes. Ou seja, tudo que é novo, muda rotinas,
altera procedimentos, exige aprendizado, mas sobretudo, pode tornar certas funções
dispensáveis e, com isso, enfraquecer o poder burocrático. É então que se manifesta o
corporativismo, isto é, a resistência a qualquer ameaça ao poder que o corpo adquiriu
ao longo do tempo e que o mantém vivo e forte.

Os burocratas profissionais, do setor civil ou privado, também tendem a demandar


por sua profissionalização e aumentar a complexidade burocrática. Acontece que o
investimento em treinamento, capacitação e aperfeiçoamento fortalece as corporações

205
burocráticas. Torna-as mais resistentes às instruções de pressões externas, seja de
governantes e seus escalões diretos, seja de parlamentares ou da sociedade organizada
em geral. Isso pode ser bom ao interesse público na medida em que a resistência
burocrática não se dobra a interesses alheios à sociedade. É aquela história de um
“favorzinho pessoal ao compadre do fulano, prefeito, deputado, vereador”, que pode
ser evitado com ética e profissionalismo. Nesse sentido republicano, uma burocracia
profissional se mostra útil na autoafirmação de suas características fundantes, isto é, a
legalidade e a impessoalidade.

Por outro lado, a profissionalização vai aumentando também o “espírito de


corpo”, isto é, o sentimento de pertencimento a um grupo, um corpo profissional que
se torna um segmento indispensável, de quem os outros dependem. Quanto maior for
a dependência que a sociedade, ou parte dela, tenha desse corpo profissional, mais
status e poder esse organismo terá. Tanto melhor aos interesses “corporativos” desse
corpo profissional, que se torna um “corpo” de interesses próprios, relativamente
independente de certos desejos governamentais e dos interesses gerais da sociedade
a quem serve. Nessas condições, quaisquer que sejam os freios e contrapesos que
a própria lei imponha aos interesses corporativos, estes tenderão a resistir. Assim, os
inúmeros cargos burocráticos não apenas se justificam pela utilidade pública. Com
frequência escondem interesses, privilégios, direitos conquistados, status e, afinal,
poder, a fonte de todo o desejo, mas também de conflito político e instabilidade social.

O “espírito de corpo” dos burocratas vem daí. Quando usamos esta expressão, é
isso que quer dizer corporativismo, ou seja, a tendência de fazer prevalecer os interesses
do corpo de indivíduos que pertencem a um mesmo grupo. Esse corporativismo pode
muito bem ser empresarial, sindical, intelectual ou de outra ordem. Muitas relações
promíscuas com o Estado existem a partir desses. Aqui, pelas especificidades da
Ciência Política, nos referimos ao corporativismo do setor público. Isto é, referimo-
nos ao protecionismo do “corpo profissional burocrático”, subdividido e fortalecido em
centenas de categorias profissionais. Esses “corpos”, imbuídos de forte sentimento de
coesão e pertencimento, demonstram um empenho vital na defesa de seus interesses
“corporativos”. A justificação do corporativismo sempre é feita em nome do interesse
geral e de valores morais inquestionáveis. Mas, assim como muitas das regras que são
criadas, também as justificativas escondem o interesse corporativo.

Assim, o corporativismo do setor público, também denominado corporativismo


estatal, pode ser definido como a relação específica entre interesses organizados e
governamentais, em que a associação de interesses coordena algumas das atividades-
chave através de políticas e procedimentos governamentais. Ou seja, em nome do
interesse público, inúmeras atividades políticas e ou burocráticas são implementadas
e ou mantidas com recursos públicos, para garantir a existência e atuação dessas
corporações. É claro que boa parte dos seus serviços e procedimentos é publicamente
necessária. O que não está claro à sociedade é que nem tudo é essencial, portanto, às

206
custas dos recursos retirados da sociedade, muitas das ações, regras e procedimentos
que se justificam em nome do interesse público, são também de interesse corporativo e,
a rigor, nem sempre precisariam existir no todo ou na dimensão que existem.

Essa coordenação de atividades-chave pressupõe uma estrutura específica


de organização. Amparados em leis e regras criadas com interesse corporativo, líderes
corporativos representam interesses particulares de seus membros. Também deve estar
entendido que essas leis e regras são muito bem elaboradas e justificadas, aproximando
o interesse público dos interesses corporativos. Trata-se de uma engenharia política
entre os legítimos interesses republicanos com os interesses corporativos. Assim, ao
tempo em que se atendem interesses sociais, econômicos e direitos políticos gerais,
leis e regras de procedimento se adequam no atendimento de interesses corporativos.
Portanto, é sempre útil nos perguntarmos quantos cargos, leis e regras, autorizações e
despachos seriam realmente necessários, caso não houvesse o interesse corporativo.
Afinal, é do patrimônio público que saem os recursos que os mantém.

4 PATRIMONIALISMO
Por fim, à abordagem temática da burocracia e do corporativismo correspondente,
é importante associar uma explicação sobre o fenômeno do patrimonialismo. Como
conceito na Ciência Política, é bastante útil conhecer sua relação conceitual e prática
na conformação do Estado burocrático e corporativista. Não necessariamente como um
elemento do Estado moderno, mas de um resquício da constituição política antiliberal e
antirrepublicana que resistiu aos tempos, mais em algumas nações que em outras. Suas
implicações são bastante úteis para refletir sobre a política, as elites e a conformação do
Estado brasileiro e outros casos latino-americanos. Nessa direção, o conceito inspirou o
mais notável estudo sobre o fenômeno no Brasil, do jurista Raymundo Faoro, publicado
no livro “Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro”.

Originalmente, o patrimonialismo é a forma absolutista de organização do


Estado Moderno. Ainda não estamos falando do Estado Liberal, em que há uma
distinção entre poder pessoal do governante e poder da lei, além da divisão dos poderes
na forma tripartite como vivemos hoje nas democracias contemporâneas. A autoridade
do Estado absolutista e patrimonial estava assentada no poder pessoal exercido pelo
governante. No Estado patrimonialista, o governante é geralmente reconhecido como
o principal proprietário de terras e, no caso extremo, como o proprietário de toda a
terra do reino, como foi o caso do Estado monárquico português. A autoridade legal do
governante é amplamente inconteste. No poder patrimonialista, não havia um corpo de
jurisprudência ou lei formal que pudesse limitá-la. A frase mais conhecida a simbolizar o
poder absolutista é do rei Luís XV (1638-1715), da França, quando afirmou: “O Estado sou
eu”. Frase que simboliza a expressão do absolutismo patrimonialista.

207
FIGURA 9 – O REI LUÍS XV (1638-1715), DA FRANÇA

FONTE: <https://bit.ly/3hG7OFm>. Acesso em: 23 abr. 2020.

Em outros termos, o patrimonialismo está organizado politicamente com


base no patrimônio do Estado. Assim, a ordem política é regida com base na
condição de posse (de terras). Manda quem tem patrimônio, tendo sido essa a base
concreta de justificação do poder no Estado absoluto. E quem detinha o patrimônio
no Estado absolutista? O rei e, abaixo deles, os senhores feudais submetidos ao
seu reinado, mas não necessariamente destituídos de suas posses. Eram, portanto,
o rei e, no limite, os senhores feudais, que participavam do Estado, com cargos e
benesses, trocados por apoio ao rei, para a estabilidade de seu governo. É claro que
para o bom funcionamento dos governos, uma burocracia emergente se instalava,
progressivamente, mais era incipiente.

Por comparação, é importante frisar que essa situação do passado ocidental


fora completamente diferente do que o modelo do Estado liberal-democrático que
vivemos hoje. Ao menos do ponto de vista do respaldo constitucional e do conjunto de
leis e regras subsidiadas na Constituição, o poder é, contemporaneamente, exercido
com base na lei – e estamos nos referindo ao mundo civilizado e democrático. E a lei
que respalda o exercício do poder, por sua vez, representa o conjunto de interesses
gerais da sociedade, baseada em princípios e critérios igualdade, liberdade e justiça. Por
extensão, todo o aparato burocrático dos três poderes que devem estar a serviço dos
interesses da sociedade, que é a base do poder. Assim, para ser exato, o poder não pode,
em hipótese alguma, ser exercido em nome do patrimônio de uma elite oligárquica, mas
somente em nome dos interesses gerais da sociedade. Nesse sentido, o fundamento do
poder não está no patrimônio, mas na vontade do povo.

O que torna o conceito de patrimonialismo tão importante é o que também o


mantém atual. Em outras palavras, embora suas origens e sua legitimidade tenham feito
parte de um modelo de Estado que a rigor não encontramos no mundo politicamente

208
desenvolvido, o fenômeno persiste de forma camuflada. Obviamente não há o mínimo
respaldo legal para o exercício do poder estatal com base no patrimônio pessoal, de
quem quer que seja. Mas a realidade está permeada por brechas, não necessariamente
jurídicas, mas factuais.

Em outras palavras, a “realpolitik” que significa “política realística”, das


democracias contemporâneas guarda nuances do patrimonialismo. O fenômeno se
revela a não separação nítida entre o público e o privado. Na prática, acontece toda vez
que um agente público faz do patrimônio público uma extensão do privado. Ou seja,
usurpa do patrimônio público para aumentar o seu patrimônio privado.

Como já citamos, o conceito de patrimonialismo deve sua emergência ao esforço
intelectual, novamente, do sociólogo alemão Max Weber. Em sua maior obra, “Economia
e Sociedade” (WEBER, 1999) aparece o primeiro tratado sociológico sobre o tema. O
autor pormenoriza o fenômeno, demonstrando que a administração patrimonial do
Estado se adapta às exigências pessoais do senhor das terras, obedecendo às normas
de funcionamento de sua propriedade privada. Essa forma de administração, objetivada
sempre à maximização do patrimônio do senhor (seja o rei, seja qualquer membro
da monarquia que esteja sob as graças do rei), se transfere para a administração do
Estado. Nessa perspectiva, o objetivo final da administração estatal é simplesmente
zelar pelo patrimônio dos que detém o poder, às custas do trabalho do restante da
Sociedade. Apropriando-se dos cargos administrativo e os monopolizando, o governo
patrimonialista não distingue, ao contrário, confunde o público e o privado em benefício
dos que detém o controle do Estado.

4.1 O PATRIMONIALISMO NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA


BRASILEIRA
A formação histórica da sociedade e da economia do Brasil, a partir do
século XVI baseia-se, essencialmente, na concessão de extensas terras ao senhorio
português. Relações escravistas e produção voltada exclusivamente ao mercado
externo configurarão uma ordem política exclusivamente privatista e doméstica e
isso vai moldar o patrimonialismo brasileiro. Não houve, durante séculos, interesse do
Estado colonial português em criar um mercado interno e modernizar o Brasil. Mesmo
após a independência do país, em 1822, até as primeiras décadas do século XX, o
Brasil permanecia um grande território sob os interesses das oligarquias rurais, sem
ambições progressistas. A independência apenas livrou as oligarquias brasileiras da
interferência da Coroa portuguesa, permitindo à amplificação do Estado patrimonial
para a manutenção de seus interesses por meio de uma burocracia crescentemente
profissional e dedicada a manutenção e aperfeiçoamento do modelo de apropriação do
patrimônio público como extensão da economia doméstica.

209
Nesse contexto de uma sociedade incipiente e submetida aos interesses do
senhor das terras “coronel” patrimonialista a submeter a administração aos seus
interesses privados exclusivamente, a administração pública só o é no nome. De
fato, é uma administração patrimonialista, cujo exclusivo interesse é a manutenção e
ampliação do patrimônio privado.

Ora, um Estado assim governado e objetivado a esses fins, só poderia mesmo


reproduzir uma cultura patrimonialista. Nessa perspectiva, a burocracia estatal que se
forma e se aperfeiçoa, estará presa ao compromisso de gerir as coisas do governo para
fins privados. Não somente isso. Conhecedora de todos os meandros e consciente do
seu papel fundamental na gestão e controle da coisa “pública” para fins privados, não é
difícil imaginar essa burocracia reproduzindo as práticas patrimonialistas do senhorio.
Essa é a linha de interpretação que nos permite compreender a força e o poder do
“estamento burocrático brasileiro”, em “Os donos do poder”, clássico da sociologia
política, de Faoro.

Assim, a ideia de Estado, de governo e a noção de coisa pública ficam


comprometidas. E mais tarde, a partir da proclamação da República e até os dias de
hoje, a noção de política continua contaminada (esse é o termo) pela concepção de
que a esfera governamental, seja no Executivo, seja no Legislativo, seja no Judiciário,
é o locus de apropriação dos recursos públicos para fins privados. É claro que,
contemporaneamente, a ideia de política não se reduz a isso e é formalmente combatida.
Mas, no imaginário de boa parte da Sociedade, distante do poder, como de boa parte
de seus representantes nas três esferas, próximos demais do poder, essa concepção
continua sendo a essência do Estado.

O aperfeiçoamento histórico do aparato judiciário e policial, por meio de leis,


freios e contrapesos e fiscalização mais rigorosa, permitiu mudanças modernizantes, é
fato. O Brasil contemporâneo de uma democracia de massas não é simplesmente o Brasil
patrimonialista de 100 anos atrás. A monopolização crescente das forças coercitivas,
em substituição à violência do coronelato, a introdução do concurso público para os
cargos burocráticos e a própria força da economia capitalista, criando um mercado
interno à revelia do patronato brasileiro e forjando a emergência da industrialização,
são elementos que substituem a organização patrimonial como forma exclusiva de
organização político-administrativa nacional. É um processo histórico inevitável, em que
as forças modernizantes internacionais pressionam a modernização interna. Mas isso
não significou o desaparecimento do patrimonialismo. Antes, significou sua adaptação
aos novos tempos.

Até os dias atuais, por exemplo, o concurso público para o recrutamento dos
servidores concorre com o instituto da indicação de cargos de confiança. É um recurso
existente nas democracias, sim, mas a intensidade com que ocorre indica maior ou
menor presença do patrimonialismo. No Brasil, esse recurso é desproporcional.
Somente na esfera federal, o número de cargos de confiança, que são de nomeação da

210
presidência da República, gira em torno de 23 mil postos. É um número notavelmente
desproporcional a outros países de importância econômica e política no cenário
internacional. O nome popular que se dá a essa prática é “apadrinhamento”, algo que
grande parte da população considera “ruim”, mas faz parte da cultura política. Na
perspectiva da Ciência Política, isso tem um nome científico: patrimonialismo e não é
apenas ruim, mas comprometedor ao desenvolvimento de qualquer nação. É nocivo
pelo mal exemplo e pelo custo econômico, porque é injusto e retira recursos preciosos
da sociedade produtiva para entregá-los a quem nada produz.

INTERESSANTE
A matéria da Revista Exame a seguir, postada no blog do Instituto Milennium, é um exemplo,
entre muitos, de como o patrimonialismo sobreviveu aos tempos no Brasil.

Brasil supera EUA e Alemanha em número de cargos comissionados

De acordo com os dados do Portal da Transparência do Governo Federal, somente em 2013,


o Senado contratou 588 funcionários para cargos de Direção e Assessoramento Superior
(DAS), os cargos de confiança ou comissionados. A contratação de não concursados não
se limita ao Legislativo. O Executivo conta com cerca de 22,5 mil funcionários ocupando
cargos comissionados, contra, aproximadamente, 4 mil nos Estados Unidos, 300 no Reino
Unido e 500 na Alemanha.

É o que afirma Claudio Weber Abramo, jornalista e diretor-executivo da ONG Transparência


Brasil. Para ele, o excesso de cargos comissionados prejudica a administração pública.
Conforme destaca Abramo, a falta de clareza sobre as atribuições da função de assessoramento
superior acarreta na contratação de profissionais despreparados.

Isso é aproveitado para justificar a nomeação de pessoas sem qualificação


alguma, usualmente cabos eleitorais, gente a quem se deve favores”, afirma
Abramo. “É impossível haver uma gestão eficiente nessas condições”,
completa.

Bruno Garschagen, mestre em Ciências Políticas e em Relações


Internacionais e especialista do Instituto Millenium, concorda
com Abramo. “A finalidade dos cargos comissionados é aparelhar
a administração pública com os representantes do partido e dar
emprego a apadrinhados políticos”, pontua.

FONTE: <https://bit.ly/3sJjxJR>. Acesso em: 24 abr. 2020.

A autopreservação é característica de qualquer organização e não seria


diferente em relação ao Estado democrático. Afinal, do ponto de vista do tipo ideal,
sua nobre função é garantir igualdade, liberdade e justiça à sociedade. A realidade é
sempre um pouco diferente, sim, mas as vezes se distancia demasiado dos tipos ideais.
Elementos que acentuam o distanciamento da realidade com o tipo ideal do Estado
democrático são, por exemplo, a corrupção, a ineficiência, o apadrinhamento, o gasto

211
público irresponsável e o patrimonialismo, que frequentemente estão associados. Seus
ímpetos precisam ser controlados permanentemente, a fim de que o contrato social (no
sentido dos contratualistas) seja preservado. Os meios de assegurá-lo requerem que a
parte organizada da sociedade esteja sempre alerta.

Por essa razão de ordem geral, é fundamental que parte do esforço interpretativo
da Ciência Política também esteja voltado ao esforço de compreender o Estado como
fonte interpretativa e real dos problemas nacionais. Nessa perspectiva, a questão do
gasto público do Estado constitui um assunto de primeira grandeza e fenômenos
conceituais como o patrimonialismo e o corporativismo tem muito a esclarecer,
no que precisam ser insistentemente estudados. É imperativo o desafio analítico e
político de decodificar a malha burocrática que retroalimenta as estruturas do Estado
patrimonialista, centralizador e extrativista. Por extensão, cabe identificar os agentes
constituintes do estamento burocrático, além das condições racionais-legais, dos
fundamentos jurídicos e até mesmo as justificativas filosóficas que determinam suas
garantias, vantagens pecuniárias e seu poder decisório.

De origem, o Estado brasileiro carrega forte característica patrimonialista e


extrativista. É patrimonialista no sentido de que a ocupação do Estado, nos três poderes,
se mostra essencialmente vinculada ao passado monárquico. Na média, a atuação da
classe política tem se caracterizado historicamente pela apropriação do patrimônio
público como extensão do patrimônio privado. Não é algo generalizado, mas é frequente,
distanciando-nos do tipo ideal da boa política. Tais formas de apropriação acontecem
de variadas maneiras, desde a corrupção sistemática e, portanto, criminosa, até às
formas mais sutis e legais, amparadas constitucionalmente. As leis são fundamentais
para orientar a organização social, desde que sejam majoritariamente cumpridas e boas.
Mas muitas leis são feitas, como já dissemos, com a intenção de combinar anseios
republicanos com interesses corporativos e patrimonialistas.

Por isso, a nossa Constituição, nossas leis, normas e regras de procedimento


devem ser insistentemente estudadas. Não apenas por pesquisadores profissionais,
mas também por alunos de Ciência Política, de Direito, de Sociologia, de Serviço Social,
de Administração, entre outros. Temas como o patrimonialismo, o corporativismo e a
burocracia devem ser amplamente debatidos, até cair no senso comum da sociedade.
Precisam tornar-se assuntos corriqueiros, debatidos no dia a dia, por estudantes,
professores, trabalhadores e empresários, aumentando o conhecimento e demandando
soluções para a vitalidade do Estado de bem-estar, democrático, liberal e de direitos.

212
INTERESSANTE
A OMISSÃO BUROCRÁTICA

Os ministros da Nova Zelândia decidiram cortar 20% de seus vencimentos para auxiliar
no combate à COVID-19, sinalizando para os demais servidores públicos o caminho a
seguir. No Brasil, o grosso da carga tributária suportada pelo sofrido povo brasileiro é
destinado aos detentores do poder (políticos e burocratas), a ponto de o peso de benesses
concedidas a tais cidadãos elevar o peso dos tributos a nível superior, segundo a OCDE,
em levantamento de dois anos atrás, ao de Estados Unidos, Japão, Suíça, Coreia do Sul,
México, China e a maioria dos países com assento na ONU.

Para poder manter uma esclerosada máquina burocrática, que cria inúmeras obrigações
inúteis sobre o cidadão, que ao descumpri-las entram na mira do Ministério Público, o
Brasil é obrigado a endividar-se no mercado, tendo a mais alta dívida entre os países
emergentes democráticos. O FMI já admite que a dívida interna do Brasil, por seus critérios,
mais elásticos que os nossos, já atingiu 90% do PIB e chegará a 98%, no fim de 2020.

Ora, no momento em que se prevê que o desemprego dobrará, que as empresas lutam
para sobreviver ao pagamento de empréstimos e empregados, em que a manutenção
de emprego só é possível com acordos redutores de salários, não se compreende que a
mastodôntica máquina burocrática dos três Poderes das três esferas da Federação não
dê demonstração de patriotismo, aceitando a redução de seus subsídios ou vencimentos.

O Estado de S. Paulo publicou, em 2015, que o governo federal mantinha 115 mil servidores
não concursados, ante 4 mil no governo Obama (EUA) e 600 no de Merkel (Alemanha). Alvin
Toffler, no livro A Terceira Onda, afirma que os burocratas, quando se integram ao poder, são
mais permanentes que os políticos, pois sua função é, quase sempre, criar obrigações sobre a
sociedade e, dessa forma, tornar-se imprescindíveis. Em suma, se os políticos são temporários,
dependendo sempre de eleições, os burocratas são permanentes. Se tivéssemos apenas uma
redução de 10% na sua remuneração, por seis meses, o governo poderia utilizar tais recursos
para combater com mais eficácia a pandemia que assola o mundo.

É de lembrar que o governo prevê que no fim da pandemia, por seus


próprios critérios, seu endividamento chegará a 90%, além de diluir suas
reservas externas, que baixaram de aproximadamente US$ 360 bilhões
no início do ano a um patamar ainda imprevisível.

Não é possível que os que se declaram servidores públicos, mas


no curso dos últimos anos são os grandes privilegiados da Nação
– isto é, servem-se mais da sociedade do que lhe servem –, não
deem, neste momento de calamidade pública, sua contribuição,
lançando o ônus da luta hercúlea que o povo trava contra o coronavírus
à sociedade não governamental.

Com menos receita tributária pela paralisação de atividades e com mais


gastos, que terão de ser cobertos ou por recursos do mercado ou pela
inflação, os que detêm o poder, nas três esferas da Federação, deveriam
dar o exemplo ao País, auxiliando efetivamente com tal corte, que pela
magnitude muito auxiliaria no combate ao coronavírus. Se não o fizerem,
assemelhar-se-ão aos senhores feudais da Idade Média, explorando os
escravos da gleba, que são os cidadãos não governamentais.

É verdade que há excelentes servidores, bem preparados, nas


denominadas carreiras de Estado (militares, magistrados etc.). Mas
exatamente porque tais servidores não são apenas “amigos do rei” – por

213
auxiliarem os eleitos a chegar ao poder, recebendo o prêmio de seu apoio –, mas técnicos
concursados, se o exemplo viesse deles, dariam excepcional contribuição para que a
Nação, abalada, readquirisse fé nas instituições – às vezes tisnada por inúteis desavenças
entre autoridades, num momento em que todas deveriam estar juntas e unidas nas duras
batalhas que ainda teremos pela frente.

Quanto mais insensíveis forem, mais o governo terá dificuldade de lançar títulos no
mercado, pois para sustentar a pantagruélica máquina burocrática dos beneficiários da
República, com receitas reduzidas e despesas aumentadas, será impossível determinar os
juros ideais a prevalecerem em títulos de médio e longo prazos, o que elimina a atração
pela compra de papéis governamentais, em médio e longo prazos.

É de lembrar que, se o governo não conseguir colocar seus papéis, inicialmente o


aumento de juros e depois a inflação serão as consequências naturais da pandemia. Seria
importante que quem absorve considerável parcela dos recursos nacionais abrisse mão de
seus privilégios, por curto espaço de tempo e em porcentual bastante tolerável.

Estamos numa guerra sem data para terminar e sem cenário estável para a recuperação
mundial, pelo menos razoavelmente previsível. Que o exemplo de patriotismo, e não de
mesquinhos apegos às benesses que usufruem, seja dado por todos os servidores públicos
brasileiros, o que também serviria de modelo para outras nações em idêntica batalha.

É o que a Nação brasileira espera de seus servidores.

FONTE: <https://bit.ly/3hGoxZm>. Acesso em: 28 jul. 2020.

214
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A burocracia se resume à operação de um sistema baseada no cumprimento de


normas racionalmente criadas e especializada do serviço. A partir disso, se busca
operar com eficiência, ou seja, manter as condições necessárias para o funcionamento
do sistema que se opera, seja privado ou público.

• Elementos centrais para o funcionamento da máquina burocrática são: a


responsabilização jurisdicional; hierarquia; continuidade; regras; profissionalização e
sumarização.

• Ainda que o instrumento de modernização social, a burocracia pode receber críticas


pela possibilidade de se tornar morosa, corrupta, meio de legitimar privilégios de uma
classe sobre outras etc.

• O corporativismo se caracteriza pela união de grupos com interesses convergentes


em detrimento da defesa desses interesses perante o Estado.

• As corporações atuaram durante regimes fascistas, como o da Itália. Por não ser um
tipo de organização dependente do poder Legislativo ou Judiciário, por ser organizada
por si própria, os governos fascistas buscavam alianças com estas organizações.

• O chamado corporativismo estatal atua por meio da máquina burocrática e pretende


instituir, por meios legítimos, políticas que possibilitem a manutenção e existência do
corpo burocrático.

• O Estado patrimonialista se caracteriza por possuir na figura do governante, um


grande dono de terras, às vezes, o que mais possui. O poder do governante, por sua
vez, é absoluto. Um exemplo é a monarquia absolutista francesa na figura do rei Luís
XV, ao afirmar “o Estado sou eu”.

• O Estado brasileiro é historicamente ligado à ideia do patrimonialismo. Até hoje, a


burocracia estatal aqui vigente atua, pela manutenção de interesses privados.

215
AUTOATIVIDADE
1 O corporativismo estatal é uma importante característica a ser compreendida
na configuração da ordem política de qualquer sociedade. Seus impactos na vida
republicana são consideráveis porque a defesa autointeressada se choca, com
alguma frequência, com o interesse geral. Considerando isso, responda como se
caracteriza o corporativismo estatal?

2 A burocracia é um fenômeno absolutamente natural e indispensável da vida das


sociedades e, evidentemente, está presente na ordem política governamental.
Regras, normas, leis e procedimentos são tão indispensáveis quanto podem
atrapalhar. Nesse sentido, responda qual é a forma ideal que a burocracia deve
possuir para ser eficiente?

3 O Estado moderno é um produto da evolução da política ocidental. Não obstante


suas experiências concretas carregam, caso a caso, sequelas de um exercício de
poder pré-moderno. O patrimonialismo é uma característica da forma pré-moderna
de organização do Estado. Defina-o.

216
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
CRISE E REFORMA DO ESTADO:
REPUBLICANISMO, DESCENTRALIZAÇÃO
E UMA PERGUNTA: QUEM FAZ AS LEIS
E PARA QUÊ?

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico procuramos trabalhar algumas noções, iniciando pela noção de
republicanismo, tratada desde os tempos da Grécia Antiga. Nesse sentido, buscamos
a noção do republicanismo cívico para tratar o atual período. Estando fortemente
ligado com os movimentos do liberalismo, nos traz também a necessidade de refletir
a liberdade.

A questão da liberdade, será explanada a partir da concepção de liberdade


negativa, defendida por Hobbes, Bentham e Mill; liberdade positiva; e liberdade como
não dominação. Veremos a importância destas visões sobre a liberdade para pensar o
republicanismo. Encaminhando-nos para o próximo assunto abordado, circunstanciados
na ideia de republicanismo, veremos o papel das leis, ou melhor, veremos como elas
devem servir aos interesses públicos.

Com isso, trabalharemos a importância da descentralização para o Estado


republicano e recorremos a Hobbes, Rousseau e Locke para compreender um pouco
mais sobre as relações entre o republicanismo, a sociedade e o Estado e motivo sobre a
descentralização se mostrar como possibilidade no republicanismo.

2 REPUBLICANISMO
O conceito de "republicanismo" é um dos mais importantes entre todo o
conhecimento que compõe a Ciência Política. Isso tem a ver com o seu significado
literal, oriundo do substantivo “república”, que significa “coisa pública”. Tem a ver, por
extensão, com a própria utopia da política Ocidental, em permanente construção, isto
é, tornar a vida em sociedade como o resultado cotidiano e igualmente permanente
de uma expressão da legítima vontade dos indivíduos. Fazer com que a ordem política
institucional seja realmente tratada como patrimônio de todos e gerida em benefício
dos justos. Essa trajetória civilizatória em busca da materialização da república começa
com os gregos, há cerca de 2.500 anos, passa pela civilização romana, atravessa os
tempos, evolui, porém, continua. No século XXI, experimentamos importantes desafios

217
republicanos, marcados pela afirmação constante da democracia e pela tentativa de
fazer o sistema político evoluir na direção de um renovado republicanismo através dos
movimentos de descentralização do poder.

Embora reconheçamos as origens gregas da discussão, desde o esforço


inaugural do filósofo clássico Platão (428-348 a.C.), em “A república”, interessa-nos aqui
a discussão moderna do republicanismo. Para tanto, lembramos que a modernidade
passa justamente, por uma recuperação do conhecimento greco-romano, marcando a
passagem do fim da Idade Média para a Idade Moderna. Nessa perspectiva, lembremos
a o esforço inicial de Niccòlo Machiavelli e de seus precedentes conterrâneos italianos.
Além deles, nós devemos mencionar pensadores posteriores, como os republicanos
ingleses Milton, Sidney e Harrington, além do francês Montesquieu e dos federalistas
norte-americanos Jay, Jefferson e Madison. Entre as preocupações destes autores estão
as éticas e morais como a virtude cívica e a participação política (civismo), o problema da
corrupção, as vantagens de uma constituição mista e o Estado de direito etc.

FIGURA 10 - A PRIMEIRA GRANDE OBRA SOBRE A REPÚBLICA VEM DO ESFORÇO


SISTEMÁTICO DO FILÓSOFO GREGO PLATÃO

FONTE: <https://bit.ly/3pF5Wkz>. Acesso em: 27 abr. 2020.

Na teoria política contemporânea, duas importantes referências autorais nos


ajudam a compreender a trajetória constitutiva do conceito de republicanismo. Trata-se
do historiador e cientista político inglês Quentin Skinner e do filósofo político irlandês
Philip Pettit. Eles podem ser considerados pensadores "republicanos cívicos" ou
"neorrepublicanos". Ambos fazem observar que o principal valor republicano é a liberdade
política, entendida como não dominação ou independência do poder arbitrário. Nesse
sentido, o “tipo ideal” de republicanismo está associado à ideia de que os cidadãos
de uma sociedade são politicamente livres e relativamente dispostos a se dedicarem
direta ou indiretamente aos assuntos públicos. Assim, parte-se do pressuposto
hipotético-dedutivo de que as sociedades mais desenvolvidas são sociedades livres e
participativas, direta ou indiretamente, da política de suas cidades, estados ou países.
É o que podemos chamar de “civismo” e de “capital social”, tendo a ver com instrução e
descentralização do poder.

218
DICA
Republicanos cívicos: é a denominação dada aos autores modernos
do passado ou aos contemporâneos – Lembra-se: a modernidade inicia
no século XV. Os republicanos cívicos os encontramos principalmente
na História Política, na Filosofia e na Ciência Política, mas também na
Sociologia, na Antropologia e na Economia. Eles estudam as formas de
participação cívica dos cidadãos na política, encontrando nesse fator
a explicação do desenvolvimento das instituições políticas ocidentais
ao longo dos séculos. Machiavel já enaltecia o civismo dos florentinos
como causa das virtudes e do desenvolvimento de Florença.
Contemporaneamente, o civismo está bastante associado aos estudos
sobre instituições políticas, desenvolvimento regional, capital social e
processos de descentralização político-administrativos.

Reconhecida como uma área de estudos no interior da Ciência Política


contemporânea, o republicanismo cívico é compreendido como um campo de
investigação atualíssimo sobre os problemas cotidianos da democracia. Tem uma
relação com o aprofundamento do liberalismo e reflete o próprio esforço evolutivo
da cultura e da ordem política ocidental. A liberdade política é, nessa perspectiva, o
tema central para as discussões sobre o republicanismo cívico contemporâneo. E o
entendimento básico da concepção de liberdade política significa a não dominação de
e/ou a não dependência a qualquer forma de poder arbitrária. Por redundância, podemos
afirmar que a liberdade implica em fazermos aquilo que nós próprios decidimos fazer por
considerarmos a melhor escolha ao atendimento de nosso interesse.

DICA
Liberalismo: quando mencionamos o liberalismo, assim como outros termos muito
utilizados no vocabulário das ciências sociais, precisamos distinguir o significado conceitual
das conotações pejorativas.

O significado conceitual está vinculado aos princípios de liberdade individual e coletiva. O


liberalismo é um ideário em defesa da autonomia dos indivíduos e das liberdades civis,
políticas e sociais, com responsabilidade. Isso inclui o respeito mútuo
às liberdades alheias e aos direitos fundamentais convencionados pela
civilização ocidental.

Em síntese, no aspecto civil tem a ver com comportamentos individuais


e com direito à vida e à propriedade; no aspecto político tem a ver
com comportamentos políticos ligados à participação cívica e; no
aspecto social tem a ver com os direitos básicos de acesso aos bens
materiais e imateriais produzidos pela sociedade.

As conotações pejorativas nos conduzem a compreensões vagas


e preconceituosas, do tipo: o liberalismo exprime a defesa do
capitalismo selvagem e egoísta e do Estado mínimo (conotação

219
negativa); ou, o liberalismo seria a solução para o Estado ineficiente e corrupto. Melhor
seria o Estado mínimo, deixando que cada um cuidasse de suas vidas e, no fim das contas,
tudo se ajeitaria melhor.

Observação: nada, nem mesmo a mais pejorativa das ideias sobre qualquer coisa, deve ser
desprezada ou menosprezada pela ciência. A ciência não julga. Investiga, analisa e interpreta.
Quem julga somos nós como cidadãos.

2.1 LIBERDADE POSITIVA E NEGATIVA


Há inúmeras definições sobre a liberdade política, inclusive algumas
confrontantes entre si e isso não é um problema. O esforço do filósofo político inglês
Isaiah Berlin é dos mais notáveis sobre o conceito. Ele o destrincha em várias de suas
obras, principalmente no influente livro denominado Dois Conceitos de Liberdade, mas
também em Uma mensagem para o século XXI. De acordo com a concepção "negativa"
de liberdade, as pessoas são livres simplesmente na medida em que suas escolhas
não são interferidas por um poder superior e constrangedor. Existem muitas variações
nessa concepção, dependendo de como exatamente se queira entender o significado
de “interferência”. Basicamente, a concordância está na ideia de que ser livre é não ser
importunado e coagido na hora de fazer nossas escolhas. Encontramos essa concepção
especialmente em filósofos políticos ingleses como Thomas Hobbes, Jeremy Bentham
e John Stuart Mill.

Por sua vez, a concepção "positiva" de liberdade tem a ver com a ideia de
que um agente, individual ou coletivo, é positivamente livre ao ter controle sobre sua
decisão. Naturalmente, há variações interpretativas. Mas ser positivamente livre é ser
capaz de agir de acordo com o que queremos fazer e não de nos negarmos a fazer o
que queiram que façamos. Por exemplo, numa mesma situação, querer votar e fazê-lo
é uma liberdade positiva, enquanto não ser obrigado a votar é uma liberdade negativa.
E deve estar claro, a nós, que “negativo” não significa algo ruim. Apenas significa que,
assim como precisamos da liberdade de afirmar, também precisamos da liberdade
de negar. Berlin identifica a liberdade positiva principalmente em filósofos como
Spinoza, Rousseau e Hegel. Embora tenha encontrado algum apoio entre os filósofos
hegelianos ingleses como Thomas H. Green, aqueles que defendem a concepção
positiva de liberdade geralmente têm sido minoria, como é o caso da maioria dos
filósofos de língua inglesa hoje.

Pensadores liberais como Berlin preferem pensar o conceito de republicanismo


a partir do significado negativo de liberdade, isto é, do direito de não fazer o que não
se quer, negando a interferência de um poder externo a nós indivíduos ou nós como
parte de um coletivo assentado na ideia de liberdade. Nessa perspectiva precisamos
compreender quando usamos, conscientemente ou não, a concepção de liberdade
negativa, quando aceitamos que o sentido de liberdade está em que o Estado, por

220
exemplo, ou o nosso empregador, ou o nosso vizinho, não podem nos obrigar a fazer
coisas que não queremos. A pergunta que fica é: se o significado contido e absorvido
na perspectiva de liberdade negativa – como não interferência nas nossas escolhas
– realmente expressa o tipo ideal político (republicano) que mais nos interessa. Os
republicanos civis contemporâneos argumentam que não.

FIGURA 11 – LIVRO DO FILÓSOFO POLÍTICO INGLÊS ISAIAH BERLIN, UM DOS MAIORES


PENSADORES LIBERAIS DE TODOS OS TEMPOS

FONTE: <https://amzn.to/3HJKtNu>. Acesso em: 30 abr. 2020.

2.2 LIBERDADE COMO NÃO DOMINAÇÃO


Insistindo na redundância, precisamos nos perguntar precisamente do ponto
de vista republicano. República, literalmente, entendemos como coisa pública, isto é,
aquilo que é de todos e interessa a todos (não o que é individual e interessa a cada
um no seu mundo privado). É preciso que o leitor, acadêmico de Ciência Política, se dê
conta da importância de tal pergunta. Uma coisa é estarmos livres de coação, para não
precisarmos fazer o que não queremos. Outra coisa, é termos a liberdade (positiva) de
fazermos o que escolhemos fazer, pensando no bem geral e respeitando as liberdades
alheias. O significado republicano de liberdade política está nessa ideia, precisamente.
Em outras palavras, embora cada indivíduo deva desfrutar dela, a ideia de liberdade
“política” é coletiva, e não meramente individual.

Além disso, implica autonomia para decidir, participar, reivindicar, protestar e


interferir. Não se trata de compreender a liberdade política como um estado de coisas
em que o poder que é maior que nós, nos deixa em paz. Esse poder maior, normalmente
é o Estado que tem autoridade sobre nós, em nome de nossa própria liberdade e vontade
(a vontade geral do contrato social). É claro que isso tem a ver com liberdade e faz

221
parte do nosso Estado democrático e de direitos. Mas essas são, em geral, liberdades
civis (direitos), de ordem individual, de ordem privada. Do pondo de vista republicano,
o que nos importa é a compreensão das liberdades (direitos) políticas. E essa, em
geral, tem a ver com a concepção “positiva” de liberdade, isto é, com o direito de fazer,
não de ficar inerte. De toda maneira, o republicanismo inclui as duas concepções de
liberdade, considerando, o que comporta a ideia de ver-se livre da dominação, com a
qual concordam autores como John Pocock, Phillip Pettit e Quentin Skinner.

O grande empenho dos defensores do republicanismo cívico tem sido o de


demonstrar as vantagens de constituir e preservar uma sociedade cujos indivíduos
possam viver sob a não dominação. Fazem isso do ponto de vista histórico, sociológico
ou politológico, mas sobretudo filosófico, seja por estudos de política comparada, seja
tão somente por argumentos lógicos. Autores como os mencionados, entre outros
contemporâneos, tratam a liberdade política como um bem comum e um direito dos
povos, cujas consequências para o bem-estar e para o desenvolvimento são vantajosas.
Não tentam demonstrar a liberdade política como um “mar de rosas”, porque isso a
política nunca será, tampouco proporcionará. Diferentemente disso, os republicanos
cívicos procuram mostrar por evidências históricas, que as promessas utópicas sempre
tendem a prometer o céu e entregar um mar de frustrações.

IMPORTANTE
Um importante exemplo de política comparada é através da leitura do artigo intitulado
Capital Social e Desenvolvimento na Região Metropolitana de Porto Alegre: Comparando
Novo Hamburgo e São Leopoldo. Segue o resumo do artigo:

“Este artigo analisa a relação existente entre o capital social e o desenvolvimento local a
partir do estudo de dois municípios do estado do Rio Grande do Sul, Novo Hamburgo e
São Leopoldo, municípios estes situados na região metropolitana de Porto Alegre. Nossa
hipótese de trabalho sugere que o capital social existente nestas localidades se constitui em
uma variável importante que pode explicar em parte o desenvolvimento destas cidades. A
metodologia utiliza os resultados de duas pesquisas quantitativas, tipo surveys domiciliares,
aplicadas em ambos os municípios, com amostras probabilísticas, totalizando
1213 questionários, com erro amostral de 4% e confiança de 95%, bem
como pesquisa documental aos sites das referidas prefeituras, IBGE, TCE
e FEE. O estudo demonstrou que a confiança que as pessoas nutrem
umas nas outras, bem como as formas de participação, solidariedade e
cooperação estão correlacionadas positivamente com os índices
de desenvolvimento local, em outras palavras, com indicadores de
longevidade, renda, escolaridade, acesso a bens públicos, entre
outros que compuseram nosso Índice de Desenvolvimento Local”.

Acadêmico, para realizar a leitura completa deste artigo, acesse o link


a seguir:

FONTE: <https://bit.ly/3hF6FxV>. Acesso em: 1 maio 2020.

222
2.3 QUEM FAZ AS LEIS E PARA QUEM?
Esse esforço científico ou filosófico de autores sobre o republicanismo é
importante por várias razões. Do ponto de vista histórico, conseguimos notar o
processo evolutivo das sociedades. Nos permite compreender que decisões e ações
políticas refletidas com base na liberdade e na participação direta e indireta da
sociedade geram efeitos positivos. Geram desenvolvimento e servem de exemplo
entre as sociedades, os diversos grupos sociais e os indivíduos. Permitem a percepção
sobre a importância civilizatória de instituições políticas, cuja qualidade, depende
de conhecimento e espírito público. Com isso, se quer dizer que as leis devem ser
republicanas, atendendo ao interesse da coisa pública. Significa que nem sempre
as leis são exclusivamente de interesse público. Com bastante frequência, elas
beneficiam não a todos, mas a determinados segmentos da sociedade, notadamente,
os segmentos corporativamente organizados.

Esse fato não é necessariamente um problema. Com alguma frequência, os


interesses de corporações são compatíveis com os da sociedade geral. Podem não trazer
prejuízo à sociedade, ao contrário, podem ser duplamente bons, para as corporações e
para a sociedade em geral. Se forem elaboradas em nome da liberdade terão chance
de serem boas. Se forem formuladas em ambiente de liberdade, as chances serão
maiores. Com a participação da sociedade, de modo direto ou indireto, terão chances
ainda maiores de serem republicanas. Não imaginemos que a maioria das pessoas
participe diretamente, o que é uma utopia irrealizável nas sociedades de massa. Quanto
mais descentralizados forem os processos de formulação das leis e das políticas,
maiores serão as chances de êxito republicano. Esse fato, entre outros fundamentais
em benefício da “coisa pública”, a Ciência Política tem demonstrado ao longo de sua
existência. É sua contribuição mais importante.
A formulação de leis e de políticas públicas sempre sofrerá interferências.
Conquanto sejam propostas em nome do interesse republicano, são motivadas também
por interesses pessoais, corporativos e, às vezes, escusos. Isso faz parte da natureza da
política que, se não nos conduz ao céu, ao menos nos livra do pior dos infernos, dizia
o filósofo político italiano Norberto Bobbio (1909-2004). Se a política for pautada pela
liberdade e feita em ambiente de liberdade, terá mais chance de ser republicana. Nessa
direção, precisamos encarar as coisas como são, já dizia Machiavelli, o “pai” da Ciência
Política. E reconhecer que a política é movimentada a partir e através das confluências
de interesses privados e corporativos com aspirações republicanas é vê-la como ela
é. Jamais haverá uma situação de tipo ideal, condição que só nos cabe mencionar
teoricamente e, no limite, metodologicamente, como já dissemos em tópico anterior.

Mas, se jamais será o paraíso, a política pode ser razoável e suportavelmente


republicana. Por extensão, se queremos que ela seja o mais republicana possível,
dependerá de ambientes de liberdade republicana. A condição mais geral para que isso
aconteça está na vontade geral, isto é, no desejo consciente de que isso é o melhor para
a maioria. É a melhor condição, no longo prazo, para a promoção do desenvolvimento

223
de uma cidade e de uma nação. Não obstante, insista-se, os indivíduos precisam querer
a liberdade, não meramente individual e negativa, mas a liberdade política e positiva.
Trata-se da liberdade de escolher, opinar e, de algum modo, de participar dos processos
decisórios republicanos. Numa palavra, a política depende do interesse dos indivíduos
que são invariavelmente afetados por ela. Se são afetados, precisam antes interferir
nela, para que esteja o mais próximo possível de seus anseios mais justos.

Nessa perspectiva, precisamos compreender a importância de processos de


descentralização do poder. A “liberdade republicana é boa”, sugerem autores como
Pocock, Pettit e Skinner. É “boa” na medida em que nossos esforços para promovê-la
terão necessariamente consequências benéficas de longo alcance. Independentemente
disso, ainda resta um trabalho considerável a ser feito no desenvolvimento dos
fundamentos da teoria republicana. Esse esforço está em curso, em várias frentes de
investigação e análise, demonstrando resultados, insuficiências e tendências. A mais
importante delas é a tendência de dispersão do poder. Em outros termos, trata-se dos
movimentos de desconcentração do poder e de descentralização do poder estatal. Todo
o curso histórico ocidental impulsionado por anseios por liberdade individual e liberdade
política levou a isso. Nesse processo, lutas políticas e ideias, sobretudo ideias, forjaram
o republicanismo. E os processos de descentralização política tem representado uma
tendência consistente no século XXI.

INTERESSANTE
Contribuições de Pocock, Pettit e Skinner ao conceito de republicanismo

John Pocock

O historiador político neozelandês John Pocock aponta o início do republicanismo nas


experiências da vida comunitária de pequenas cidades europeias na transição entre a Idade
Média e a Modernidade. Isso aparece em seus amplos estudos, especialmente relatados
no livro “The machiavellian moment: Florentine political thought and the atlantic republican
tradition” (Pocock, 1975). Aparentemente sem tradução no Brasil, essa obra revela os
primórdios da cultura republicana comunitarista em Europa, marcada pelas formas de
organização autônomas em ambientes de relativa liberdade. É, sobretudo, na ausência
de um poder que tenha sido capaz de dominá-las, que essas cidades desenvolveram a
cultura cívica. À ausência de um grande poder estatal, some-se a necessidade de resistir
a frequentes invasões estrangeiras, para cujo enfrentamento a cooperação e organização
cívica dessas cidades, incluindo a ajuda entre elas, teria sido fundamental (POCOCK, 1975,
p. 189-217).

Phillip Pettit

O filósofo político irlandês Phillip Pettit, estudioso sobre o tema do republicanismo na


contemporaneidade. Sua obra mais conhecida é Republicanism a Theory of Freedom and
Government publicada em 1997 e ainda sem tradução para o português. Na tradução
para o espanhol (PETTIT, 1999), podemos ler como Pettit demonstra a origem do tema na
civilização romana, indicando que suas características conceituais reaparecem na obra do

224
“pai” da Ciência Política, Machiavell, entre os séculos XV e XVI. A grande contribuição deste
autor ao conceito de republicanismo está em afirmar que a liberdade só existe na medida
em que indivíduos encarnam a condição de cidadão. O que isso significa, para o autor, é
que só é livre aquele que desfruta do desejo e da coragem de conquistar sua liberdade,
não se dobrando às interferências de qualquer poder, vindo ele do Estado e suas instâncias
ou de outros indivíduos. É importante lembrar: Pettit não nega a autoridade e interferência
do Estado. Esta deve ser concebida somente quando representar legitimamente a vontade
dos indivíduos em coletividade (está implícita a ideia do contrato social). Do contrário, será
uma interferência arbitrária, não representará o acordo possível pelo “contrato social”
entre os cidadãos, que aceitam a interferência do Estado quando para o bem coletivo e
proteção individuais.

Quentin Skinner

Finalmente, devemos lembrar da contribuição do historiador político


inglês Quentin Skinner ao conceito de republicanismo. Em “As fundações
do pensamento político moderno”, traduzido e editado no Brasil
pela Cia. Das Letras, esse historiador das ideias, demonstra as
origens da renascença florentina e apresenta a ideia e o valor da
liberdade como conceito e fenômeno central do livro. Considera
a liberdade e a virtude os valores constituintes do humanismo cívico
(sinônimo de republicanismo cívico). Também analisa a questão dos
príncipes e a sobrevivência dos valores republicanos desde aquele
período até hoje. Skinner destaca a difusão da erudição humanista no
Ocidente ao longo dos últimos cinco séculos e insere as contribuições do
luteranismo do luteranismo que, a partir de uma interpretação moderna
do cristianismo, ajuda a difundir os valores humanistas e cívicos. Nessa
perspectiva da importância das ideias religiosas, estende sua análise à
importância da contrarreforma e sua influência no constitucionalismo
ocidental. Por fim, volta à reforma protestante e analisa a influência do
calvinismo e sua relação com a teoria da revolução.

As contribuições dessas informações têm origem no livro Teoria Política II,


do curso de Ciência Política da UNIASSELVI (BAZZANELLA; BIRKNER, 2019).

2.4 A DESCENTRALIZAÇÃO COMO TENDÊNCIA REPUBLICANA


DO ESTADO CONTEMPORÂNEO
Na perspectiva de apresentar a descentralização política como a principal
tendência em curso para a afirmação do Estado republicano, lançamos mão da
metodologia de política comparada. Faremos isso do ponto de vista teórico, através
da comparação de três autores clássicos da Filosofia Política ocidental. Aliás, são três
autores absolutamente fundamentais à compreensão da política moderna e isso inclui
dizer que não há possibilidade de compreender o Estado moderno sem a leitura mínima
sobre as ideias desses autores. Estão entre os mais importantes – não os únicos – para
a constituição do Estado no Ocidente: Hobbes, Rousseau e Locke. A leitura de suas
concepções acerca das relações entre o Estado e a Sociedade compreenderemos a
própria evolução das ideias políticas da civilização ocidental. É nessa perspectiva que

225
propomos o entendimento sobre a evolução e a lapidação do republicanismo, que
conduz à percepção sobre os movimentos de descentralização como tendência do
Estado para o século XXI.

3 HOBBES: HOMEM LOBO DO HOMEM E O DIREITO À VIDA


A fim de somar com o argumento da tendência descentralizadora, torna-se
útil a recorrência à obra Do Estado soberano ao Estado das autonomias, do cientista
social português Carlos Eduardo Pacheco do Amaral (1999). No entendimento
desse autor, estaríamos vivendo a passagem histórica de um Estado centralizado,
predominantemente hobbesiano, para um Estado descentralizado, cada vez mais
regional, na trilha do liberalismo político de John Locke. Acompanhando o raciocínio de
Amaral, o Estado estaria vivendo uma crise de soberania, sinalizada pelas dificuldades
de governar, distribuir poder, atender demandas e promover o desenvolvimento
hegemônico.

Ora, essas dificuldades podemos bem admiti-las diante de certas situações. Por
exemplo, quando nos defrontamos com os atuais desequilíbrios regionais no interior
de um país, podemos perceber as dificuldades do Estado contemporâneo manifestar
seu poder hegemônico. Primeiramente, porque a forma mais recente de manifestação
desses desequilíbrios tem a ver com a globalização desencadeada na última década do
século XX. Do ponto de vista do poder político, a principal característica desse processo
é a sobreposição e influência de interesses econômicos privados sobre os desígnios do
Estado nação. Em outras palavras, essa sobreposição significou, mais do que nunca, em
perda de soberania.

Na mesma perspectiva dessa crise do Estado podemos identificar os problemas


que os governos nacionais enfrentam relacionados à segurança pública e à violência
urbana. Sobrecarregado, responsável por tentar impor a ordem através de um equilíbrio
precário entre a punição, a correção e a proteção aos direitos humanos, o Estado tem
diante de si uma responsabilidade por demais complexa para enfrentá-la sozinho. Isso
não se difere em relação à sua dificuldade em atender às demandas pelos direitos sociais
vinculadas à concepção do welfare state, que potencializou consciências coletivas
incessantes na reivindicação de direitos que os indivíduos aprenderam a entender como
inalienáveis de sua condição de vida. Nesse sentido, a operacionalização das políticas
públicas se tornou praticamente impossível sem a descentralização do poder, ou pelo
menos a sua desconcentração.

Essa situação de incapacidade de atendimento força o Estado, por diversos


caminhos, a se aproximar dos indivíduos e das comunidades para governar de forma
compartilhada em atendimento às demandas que não cessam. Essas demandas são,
inclusive, de procedimento, portanto, pautadas pelo desejo de maior autonomia política,

226
expresso por segmentos sociais. Não se ignore o quanto a “mão” do Estado é necessária
ante a grandeza dos problemas, principalmente esses relacionados à segurança e
assistência social. Nessa seara, alguns cenários são claramente hobbesianos.

É no atendimento à multiplicidade dos problemas corriqueiros e cotidianos


que o Estado manifesta os limites do seu alcance e eficiência. Precisa da sociedade,
como precisa das regiões, embora tenha muito mais facilidades em protagonizar do
que em reconhecer autonomias regionais e compartilhar poder. Assim, as experiências
em curso revelam as contradições naturais entre vontades e resistências, em um vai
e vem histórico cujos resultados não são absolutamente seguros, mas podem sugerir
tendências.

Nesse sentido, é imperioso um esforço interpretativo desse movimento histórico


no sentido de testar a hipótese apresentada, qual seja a de uma tendência histórica
de descentralização do Estado contemporâneo. Para isso, sugerimos que esse esforço,
sem abrir mão do pretenso rigor metodológico das Ciências Sociais se apoie na Filosofia
Política moderna. Para isso, é preciso recorrer ao jusnaturalismo, desde a justificação
absolutista até a defesa da liberdade individual e das autonomias regionais. Para tanto,
apresentemos resumidamente o dorso filosofal dessa trajetória que vai da centralização
do poder até a sua tendência oposta. Ao fazermos isso, precisamos dizer mais uma
vez que qualquer originalidade aparente nesta interpretação deve ser atribuída às
percepções e indicações de alguns autores consultados.

Nessa direção, nos apoiamos na abordagem do filósofo político português Carlos


Eduardo Pacheco do Amaral (1999), que faz referência a três nomes da filosofia política
moderna, a fim de interpretar o movimento histórico no rumo da descentralização. Em
termos de teoria do Estado, o filósofo moderno a quem mais se recorre para demonstrar
a justificação do Estado centralizado é Thomas Hobbes. Sobre isso, desconhecemos
discordância. Trata-se de uma justificativa do Estado forte, o Leviatã, a partir de sua
concepção antropológica, isto é, de um entendimento sobre a natureza humana. Como
deve saber qualquer estudante de ciências sociais, filosofia ou direito, Hobbes entende
que o contrato social se firma entre os homens que, reconhecendo sua incapacidade
de auto-organização, abrem mão de sua liberdade. E o fazem outorgando ao Estado
a tarefa exclusiva – o monopólio – do uso da violência, como ameaça ou de fato, para
garantir a todos o direito natural à vida e à segurança.

É importante considerar o movimento histórico de demandas emancipatórias,


provocadas por ONGs e redes sociais de cidadãos críticos, consumidores exigentes e
emissores de informação. Por conta das vias de comunicação e troca de informações,
jamais o mundo presenciou indivíduos tão convencidos como hoje da legitimidade
de suas demandas e do direito de participar da formulação e operacionalização do
atendimento a elas. De modo geral, esse esforço interpretativo sugere o encontro da
História, da Filosofia e das Ciências Sociais. A fim de que tenhamos uma ideia de como

227
o pressuposto hobbesiano é influente nas concepções da ordem política moderna,
considere-se, por exemplo que essa ideia do sacrifício da liberdade estava apresentada
a condição de justificação do Estado soberano, ente superior único capaz de garantir
ordem social.

Não deve causar surpresa que essa concepção continue implícita à cultura
política ocidental, mesmo no interior de ambientes institucionalmente democráticos,
durante o século XX. A rigor, como admitimos anteriormente, são inúmeras as situações
sociais, relacionadas à segurança e à cidadania, a solicitarem a presença soberana do
Estado, sem a qual não haveria o que fazer.

4 ROUSSEAU: O BOM SELVAGEM E A AFIRMAÇÃO DA


IGUALDADE
Durante o século XX, podemos verificar a progressiva afirmação dos direitos
sociais. Se no século XIX a organização do capitalismo permitiu a constituição de direitos
civis, o século seguinte foi palco da emergência de direitos políticos e sociais. A despeito
de todo o reconhecimento da práxis que resultou na materialização desses direitos,
homens e mulheres lutaram em nome de valores, em nome de utopias e de certa
concepção sobre o ser humano, que novamente podemos encontrar na filosofia política
moderna. Essa concepção antropológica ajudou a justificar formas de organização
do Estado no século XX, estabelecendo pressupostos e preceitos constitucionais nas
principais democracias do Ocidente.

Grande parte dessa inspiração vem da concepção de homem e de sociedade,


inerente ao pensamento de Jean Jacques Rousseau. No jusnaturalismo de Hobbes, é
uma concepção antropológica negativa da natureza humana que justifica a intervenção
centralizadora e exclusiva do Estado em nome do direito natural a vida e segurança.
Portanto, no pacto social hobbesiano está ausente a ideia da autonomia política da
vida em comunidade. A liberdade natural dos homens dá lugar ao direito à vida. Já no
contrato social de Rousseau, o ponto de partida sobre a natureza humana é oposto. Se,
para Hobbes, o homem nasce mal e a Sociedade o civiliza por meio do Estado Leviatã,
para Rousseau o homem nasce bom e a Sociedade o corrompe. Noutras palavras, os
homens nascem livres e iguais, mas a sociedade, por meio da propriedade privada, cria
o conflito e a desigualdade social.

Disse Rousseau (1712-78), desde que o primeiro ser humano resolveu cercar um
pedaço de terra e afirmá-lo como sua posse, ali estaria a origem de todo o conflito social
e de todo o mal humano. Em sociedade, o desejo de posse das coisas levaria os homens
a disputas e conflitos. É a ideia central que encontramos no Discurso sobre a origem e
os fundamentos da desigualdade entre os homens, publicado originalmente em 1754
(ROUSSEAU, 1997). Por consequência disso, o Estado se justifica se somente garantir
as condições do restabelecimento da natureza humana do “bom selvagem”. Assim,

228
enquanto o principal direito no Leviatã de Hobbes é a garantia à vida, no pensamento de
Rousseau será o restabelecimento da igualdade entre os homens. Esta seria a expressão
da vontade geral e “condição natural” que garantiria inclusive a liberdade, a precedência
da igualdade em relação à liberdade.

IMPORTANTE
Veja-se como as ideias são poderosas, justificam decisões e ações e produzem
consequências importantes. Valor central na obra de Hobbes, a segurança é a principal
justificativa das experiências autoritárias e totalitárias. Era exatamente essa a posição de
Golbery do Couto e Silva (1911-1987), artífice intelectual do regime militar brasileiro, ao
defender uma intervenção autoritária no Brasil da década de sessenta e
justificar posteriormente a intervenção militar de 1964. Mas essa posição
já a encontramos nas palavras do cientista político estadunidense Samuel
Huntington (1927-2008), não por acaso consultor em três governos
militares brasileiros. Huntington, como seu leitor Golbery, sustentava
que pelas peculiaridades históricas do Brasil, justificava-se uma
suspensão temporária das liberdades em nome da segurança
que permitisse a constituição gradual de ambiente favorável ao
reestabelecimento das liberdades civis. É uma ideia inspirada no
pensamento de Hobbes, sugerindo que são incapazes de manter
a estabilidade em sociedade, por sua natureza egoística. Por causa
dessa natureza, só o Estado autoritário poderia manter a segurança e
resguardar certa liberdade e convívio pacífico entre os homens.

Não é difícil perceber, a partir desse entendimento a força do pensamento


rousseauniano para a constituição histórica do Estado de bem-estar. Afinal, é antes de
tudo o valor da igualdade o ponto de partida para a reivindicação dos direitos sociais,
maior emblema welfare state. E o Estado de bem-estar é a mais emblemática das
instituições políticas do Ocidente no século XX. Nesse sentido, a afirmação dos direitos
sociais foi mais intensa e, muitas vezes, precedeu a afirmação dos direitos políticos.
Salvo exceções, esses direitos não vieram sem lutas. Mas, sendo possível reconhecer a
força do discurso socialista e o desdobramento mais pragmático (a social democracia),
é mister reconhecer que a grande batalha política ocidental no século XX foi pela
afirmação da igualdade. É a premissa mais importante do pensamento rousseauniano e
única condição necessária ao restabelecimento da liberdade tolhida pela sociedade, por
meio da propriedade privada.

É necessário reconhecer, portanto, a importância que teve a concepção democrática


de Rousseau ao fortalecimento do Estado de direito, sobretudo o Estado dos direitos sociais,
materializando as condições de igualdade necessárias a fim da consecução da vontade
geral. Portanto, se a condição do Estado autoritário foi justificada predominantemente em
nome da segurança, a condição do Estado democrático de direitos foi e continua sendo
justificada predominantemente em nome da igualdade, pré-condição da própria liberdade.

229
Há um importante consenso internacional acerca dessa premissa, conquanto
nada autorize a falar em consolidação desse ideal, ante os desafios mundiais no
combate às desigualdades e à falta de liberdade. Não obstante, útil é lembrar que o
último quartel do século XX foi palco da insurgência neoliberal de uma “nova direita”,
por meio do combate aos direitos instituídos pelo welfare state. A sugestão desses
críticos do intervencionismo de bem-estar foi na direção de um capitalismo anárquico
neodarwiniana. Diante de renovado cenário competitivo promovido pela globalização,
e do esgotamento concomitante do welfare state, a melhor resposta estaria na menor
intervenção do Estado. Assim, ao estatismo meio hobbesiano, meio rousseauniano,
sucederia uma proposta de Estado mínimo nos termos de um reducionismo liberal de
cunho economicista.

Todavia, as recorrentes crises econômicas produzidas pela imperfectibilidade do


capitalismo, acabam sempre por reduzir o discurso do Estado mínimo a um movimento
utópico. Nessa utopia, haveria um equilíbrio natural baseado na liberdade de competir
e ir em busca dos sonhos individuais. Mas, isso que o neoliberalismo tem a oferecer
é pouco, pois, quando bate a primeira crise, é para a segurança do Estado que todos
recorrem. Certo equilíbrio mínimo, isto é, uma instabilidade controlável, é sempre algo
necessário, entre a liberdade de competir e a necessidade de reparar as consequências
negativas. Seja por respeitar as ambições humanas, seja por reconhecer essa ambição
como geradora de desenvolvimento, a liberdade de competir é necessária. Da mesma
forma, seja pela necessidade de compaixão, seja pela necessidade de ordem, a
intervenção do Estado também é necessária.

Mas a resposta a ela parece carecer de um salto discursivo, a orientar a


perspectiva de mudança política. Nessa direção, novas respostas estariam fora dos
limites atuais do intervencionismo, mas também do Estado mínimo. Mais uma vez,
é à Filosofia Política moderna que precisamos recorrer. Pensando numa tendência
contemporânea do Estado, a saída estaria numa espécie de revisão do contrato social
capaz de engendrar um sistema político que apresente a melhor combinação possível
entre “liberdade, corresponsabilidade e participação” (AMARAL, 1999, p. 127).

Em primeiro lugar, isso implicaria a superação do Estado centralizador e unitário,


cuja conformação discursiva encontramos, como já foi dito, no Leviatã de Hobbes.
Mas não é somente isso. Por extensão, implicaria também numa superação, ainda que
parcial, de uma concepção rousseauniana. Aqui é preciso explicar o caráter “parcial” da
superação desta última concepção. Se não é difícil sugerir a superação do centralismo
hobbesiano, claramente oposto à ideia liberal-democrática que compõe o imaginário
da democracia contemporânea, o mesmo não se pode dizer de Rousseau. No contrato
social deste último, há uma defesa da coletividade, isto é, de uma vontade geral à qual
as decisões do Estado devem estar submetidas. Assim, a organização social estaria
assentada num acordo – o contrato social – em que os indivíduos condicionariam as
suas liberdades ao bem da coletividade, em consonância com o interesse da maioria.

230
Ora, esse interesse da maioria, expressando a vontade geral é, em suma, a
epígrafe da democracia moderna. Nesses termos, o contrato de Rousseau foi inspirador
às variações interpretativas e desdobramentos práticos na constituição de inúmeros
Estados democráticos, a começar pela França. Nesse sentido, sua obra é frequentemente
apresentada em oposição ao Leviatã de Hobbes. Afinal, se o contrato social deste
sugere a outorga dos indivíduos ao Estado soberano, Rousseau sugere essa outorga à
coletividade soberana, à qual as decisões do Estado devem estar submetidas. Enquanto
Hobbes é o inspirador do absolutismo, Rousseau é o da democracia.

Entretanto, há um desdobramento da concepção democrática e antropológica


que Rousseau propõe e que redunda contraditoriamente em um Estado inibidor da
autonomia dos indivíduos. Ora, se por natureza o ser humano é bom, mas a sociedade
o corrompe, o papel do Estado seria o de reconduzi-lo a sua natureza boa. Isso se daria
através do contrato social que restabeleceria as condições de igualdade entre os homens.
Lembremo-nos que essa condição natural de igualdade é originariamente perdida em
sociedade em função da instituição da propriedade privada. Segundo Rousseau (1997),
seria essa a fonte de toda a desigualdade e vício humanos. Nessa condição, a maioria
estaria submetida e corrompida por uma minoria proprietária, que se apossa do Estado
e faz as leis de acordo com seus interesses, impedindo a vontade geral.

A materialização da vontade geral, portanto, só se daria através do contrato,


em que a maioria dos homens e mulheres entraria em consenso sobre a necessidade
do restabelecimento da igualdade, sendo a isto que o Estado estaria submetido.
Assim, a sociedade já não seria mais a corruptora da natureza humana restaurada pelo
contrato social, por sua vez, resguardado pelo Estado, vigilante e defensor permanente.
Nessa direção, o esforço primordial do Estado estará permanentemente voltado ao
estabelecimento das condições a essa igualdade. Conquanto haja razoável consenso
acerca dessa necessidade, o problema é que põe em constante risco a autonomia
dos indivíduos. Dependendo da variação interpretativa, esse norte orientador de
pressupostos constitucionais e da formulação de políticas públicas pode conferir um
peso desmedido à vontade geral, em detrimento dos direitos individuais.

As consequências disso não inumeráveis, podendo resultar naquilo que


é facilmente identificado com a crítica do conservadorismo liberal: estímulos à
acomodação coletiva e desestímulos à autorresponsabilidade. Nessa perspectiva,
outro ponto importante é o que muitos chamam pelo neologismo de “vitimização” dos
indivíduos. Em outras palavras, toda espécie de desvio comportamental, sobretudo dos
crimes, mas também da ignorância, da falta de politização etc. Tende a ser visto como
efeitos de uma sociedade injusta e desigual, grande causadora de todos os males, já que
os indivíduos são naturalmente bons, seus desvios se explicam pela sociedade desigual
que os corrompe. Assim, o Estado é responsável pelo cumprimento do contrato social,
tendo a obrigação ética de se responsabilizar por esses desvios, proteger e assistir, no
lugar de imputar responsabilidades.

231
Nesse sentido, o Estado assume, em nome da vontade geral e da concepção
antropológica do “bom selvagem”, uma tarefa gigantesca. Por isso, pode-se dizer
que o Estado, ao tomar a si tarefas que ele poderia compactuar com a sociedade, a
despolitiza. Isso é possível perceber, por exemplo, no excesso de “judicialização” da
sociedade contemporânea, substituindo o diálogo, a política comunitária, e reforçando
o poder corporativista de certas profissões, como as do advogado e do assistente social.
Essa tendência parece se manifestar nos sistemas prisionais, em que certos tipos de
criminosos seriam beneficiados por leis inspiradas nessa concepção do “bom selvagem”.
Na radicalização dessa perspectiva, criminosos são entendidos como vítimas e não
contraventores da sociedade. Eles próprios tendem a assumir, de modo oportunista,
esse discurso. Portanto, retira-se a responsabilidade do indivíduo, imputando-a fatores
externos, significando isso uma espécie de desumanização.

A consequência mais incomensurável dessa concepção antropológica do bom


selvagem é o fortalecimento da ideia do Estado todo poderoso, guardião dos direitos.
Ele passa a ser entendido como promotor único e unitário da igualdade. Note-se que
o faz em nome da igualdade e não da segurança, embora o ímpeto centrípeto seja o
mesmo. Naturalmente, o aumento desse consenso justifica pressões cada vez maiores
dos indivíduos sobre o Estado, o que não deixa de favorecer os inúmeros agentes
estatais e seus interesses fisiológicos e corporativos, cujas funções são justificadas pela
necessidade do atendimento às demandas. Assim, em nome da vontade geral, expressa
nas constituições resultantes dos amplos consensos nacionais, cresce ad infinitum o
aparato estatal. Governos assumem cada vez mais a tarefa de promover o bem público,
retirando das sociedades regionais e locais a autonomia de resolverem problemas
que o Estado assoberbado não consegue. Nessa medida, atrofia a criatividade das
comunidades, matando a política na raiz.

Diante da imensidão dos problemas, cada vez que se diz: “O Estado tem que
fazer”, foge-se da pergunta sobre “quais os limites desse Estado bem-feitor?” Em meio
a esse quadro de unitarismo estatal, o centralismo absolutista hobbesiano é substituído
pelo centralismo democrático de Rousseau. Com isso, ou os indivíduos se tornam
voluntariamente reféns de uma espécie assombrosa de totalitarismo da vontade geral,
ou o Estado se ramifica na sociedade, por meio de novas instâncias intermediárias,
locais e regionais. Nessa direção, não se trataria mais da “proteção atomizada dos
indivíduos isolados e abstratos” garantida pela soberania do Estado centralizado, mas
da consideração “das pessoas reais e situadas na pluralidade comunitária, contexto no
qual imprimem significado às suas vidas” (AMARAL, 1999, p. 128).

5 LOCKE: O DIREITO À LIBERDADE EM COMUNIDADE


Essa resposta ao centralismo significa, portanto, a característica e o resultado
cumulativo de um processo de mudança política em curso em vários lugares do
Ocidente. Significa uma tendência do Estado contemporâneo de perda de unidade de

232
poder para uma difusão territorial em novas unidades intermediárias, como também no
fortalecimento das unidades federativas. Na filosofia política moderna, essa superação
do centralismo absolutista de Hobbes e do centralismo democrático de Rousseau,
podemos encontrá-la no liberalismo de John Locke. A tendência descentralizadora do
Estado contemporâneo encontra, nos textos do filósofo inglês, um aporte discursivo
importante, embora não exclusivo. Não se encontra ali a alienação dos indivíduos a um
ente exterior único, seja ele o Estado, seja a coletividade. Ao contrário, os indivíduos são
portadores de direitos intransferíveis, sendo estes a vida, liberdade e propriedade.

A perspectiva liberal de John Locke é como se vê, descentralizadora e sugestiva


ao republicanismo cívico. O Estado existe como convenção dos indivíduos, que o
concebem para a garantia dos direitos fundamentais. É para isso que os homens criaram
governos. Se, todavia, esses direitos não fossem respeitados, os homens teriam todo o
direito de se rebelar contra o governo injusto e rejeitar suas imposições. Na filosofia
de Locke, o Estado tem suas funções específicas, sobretudo administrativas, mas não
chega a ser um ente soberano, de poderes exclusivos. Tampouco, a coletividade dos
indivíduos, constituinte da vontade geral, pode sê-lo, em sobreposição aos indivíduos
autônomos. Nessa concepção, ao homem está resguardada e imputada a condição
autônoma de responsabilidade pelos seus atos, vida e posses.

Nesse sentido, não compete ao Estado a intromissão, seja em nome do que ou de


quem for, no “núcleo privativo dos direitos e liberdades naturais e originárias da condição
pré-política do homem” (LOCKE, 2007, p. 68-69). Cabe, ao contrário, que o Estado garanta
as condições públicas ao exercício desses direitos. Nessa perspectiva, não é o poder
político que age o tempo todo, nas mais variadas situações, em nome dos direitos naturais.
Passa a ser o indivíduo, na assunção da sua autonomia e responsabilidade, que age
em comunidade estabelecendo os acordos mútuos para a vida política. Essa confiança
na capacidade dos indivíduos, sugerida no liberalismo de Locke, dispensa o grande e
centralizado aparato jurídico. É este o real significado do Estado mínimo: o Estado de
confiança nos indivíduos em coletividade. Aquele cuja fortaleza está justamente apoiada
na autonomia das comunidades, facilitando a tarefa do Estado.

NOTA
No Brasil, registram-se várias experiências de descentralização
política e ou administrativa nas últimas três décadas, inspiradas na
Constituição Federal. Apesar de aparecem na mídia e na bibliografia
da ciência política, reivindicações ou indicações sobre a necessidade
de um pacto federativo entre União, Estados e municípios, na direção
de maior autonomia das instâncias federativas subnacionais.

233
Nessa perspectiva antropológica, o indivíduo não é simplesmente o ser
atomizado e portador de direitos. Ele é o agente desses direitos, única condição de
garanti-los. Agora sim, estamos falando do sujeito político, condição resultante de sua
liberdade compactuada na comunidade. Esse é o sentido moderno do republicanismo
cívico, contexto no qual os indivíduos em comunidade, são também responsáveis pela
política, e não apenas reflexo passivo do Estado. Ao Estado, modo geral, é incumbência
garantir essa liberdade auto refletida. Sua tarefa agora já não parece tão grande. A
concepção antropológica de Locke confere ao homem a tarefa geral de cuidar da sua
vida, das suas posses e administrar a sua liberdade em coletividade. Quando temos
qualquer referência ou fazemos menção ao liberalismo, precisamos entender que esse
é o âmago do liberalismo político: a vida livre e corresponsável em comunidade.

É justamente essa condição que aproxima a sua perspectiva de uma ordem


política baseada na autonomia dos locais e regiões. Invocando Locke e Tocqueville,
Amaral (1999) aponta para um nível intermediário entre o poder pessoal e o poder
do Estado, chamando de poder civil local. Novamente, precisamos lembrar: este é o
significado do republicanismo cívico, no que coincide com o liberalismo político clássico
do qual John Locke é um dos maiores expoentes. Assim, de poder único, o Estado passa
a contar com mais duas entidades civis: as pessoas e as autarquias, cada qual com suas
atribuições e limites, não podendo uma interferir na outra, salvo sob circunstâncias de
consenso que o requeiram (AMARAL, 1999; LOCKE, 2007).

Nesse sentido, o liberalismo de Locke ganha contorno contemporâneo, servindo


de aporte reflexivo às abordagens favoráveis à regionalização e descentralização do
poder. Mas isso só é possível afirmar na medida em que, no liberalismo de John Locke, o
indivíduo claramente antecede o Estado. Para John Locke, não é o Estado que concebe
o indivíduo de direitos, ao contrário, é cria dos indivíduos. Por extensão, assim como o
indivíduo, também os municípios e as regiões o antecedem. Desse modo, advoga Amaral,
“tal como às pessoas individuais, também às pessoas coletivas (municípios e regiões)
corresponde uma esfera de privacidade, direitos e liberdades próprios e inalienáveis, e
todo um âmbito de atividades e de funções, na prossecução e na gestão das suas vidas
próprias e dos seus interesses específicos” (AMARAL, 1999, p. 141). 241

Nesse âmbito, continua o autor, “não é legitima qualquer interferência por parte
do Estado” (AMARAL, 1999, p. 141). Desta feita, corresponde aos municípios e as regiões
um poder semelhante ao núcleo de direitos e liberdades naturais dos indivíduos. Por
consequência, a descentralização do poder e sua regionalização aproximam o Estado
das comunidades regionais. Nesse processo, a criação de entidades intermediárias ajuda
na governança por meio da instituição de funções auxiliares. Entre outras vantagens,
essa aproximação tende a combater vícios favorecidos pela centralização, como é o
caso do patrimonialismo. E, ao contrário do que pregam os defensores mais centralistas
do Estado, amplia laços de confiança entre governo e sociedade, fortalecendo e
legitimando o poder político estatal ao invés de enfraquecê-lo.

234
Assim, o regionalismo e a descentralização apontam para a própria afirmação do
federalismo como tendência de uma mudança histórica no republicanismo do Estado
Contemporâneo. Incentivar e atribuir poder político e administrativo às regiões significa
potencializar a cultura, as formas de identidade, o diálogo, a solidariedade e a cooperação,
com desdobramentos positivos ao desenvolvimento regional. Segundo Amaral (1999),
essa tendência representaria a própria “reação ao positivismo da Modernidade”. Nessa
perspectiva das instâncias intermediárias de governança, a descentralização e a
regionalização significam algo diferente da relação que os contratualistas Hobbes e
Rousseau sugerem entre o Estado e os indivíduos.

DICA
O Positivismo é uma corrente de pensamento surgida no século XIX, a partir do
pensamento do pai” da Sociologia, o filósofo francês Augusto Comte (1798-1857).
Pressupõe a possibilidade de estudar a sociedade do mesmo modo que a natureza, isto é,
cientificamente. Noutras palavras, Comte defendia a tese de que “é possível entender as
coisas como realmente são”, desde que o método de investigação seja científico.

Desse modo, o positivismo está sintonizado com a modernidade, geradora do pensamento


racional que redundará na Ciência. A Ciência, a sua vez, permite o desenvolvimento de
técnicas e tecnologias que conduziram à industrialização e à urbanização, transformando
a economia, a política, a educação e a vida dos indivíduos, como a organização da
Sociedade em geral.

Nesse sentido, a modernidade transforma tudo e, nos séculos XIX e XX, o positivismo é o
ideário que mais expressa o otimismo em relação às transformações sociais. E, do ponto de
vista político e social, o positivismo da modernidade significa a valorização da cidade, no
lugar do campo, do capitalismo e sua individualização das tarefas ante o trabalho coletivo
na agricultura e nas oficinas de artesãos.

Em termos da história do republicanismo, quando o filósofo político


Carlos Eduardo Pacheco do Amaral se refere ao “positivismo da
modernidade”, isso significa a substituição do comunitarismo e do
civismo pelo individualismo. Significa que a modernidade substituiu
o protagonismo da participação dos indivíduos em comunidade
pela centralização política do Estado.

Em termos da atualidade do republicanismo, Amaral defende


a descentralização do poder estatal e a reconstrução, em
bases contemporâneas, de ambientes políticos que incentivem
formas de participação cívica dos cidadãos. E é nessa direção que
todas as experiências de descentralização política e administrativa
devem ser observadas pela Ciência Política.

6 CONCLUSÃO
A crise do Estado moderno é permanente por uma simples razão, entre tudo o
mais que se possa dizer: porque o Estado moderno carrega a utopia do “mundo melhor”.
A crise é uma expressão das insatisfações e das esperanças do ser humano. Enquanto

235
homens e mulheres viveram sob o regime da força e da conformidade ideológica mantida
pela religião, o mundo pareceu mais aceitável. O advento do Estado moderno é produto
da modernidade, isso é, da libertação da razão humana na presunção de compreender e
transformar o mundo à sua volta. Desde então, nossas manifestações de insatisfação e
esperança expressam essa presunção. Como seres modernos, representamos a libertação
da mente humana para aspirar por dias melhores, combater o infortúnio e realizar sonhos,
individuais e coletivos. E o Estado moderno expressa essa dupla vontade de realização.
Essa é a resposta mais genérica referente a crise do Estado.

Nessa perspectiva de realização, os indivíduos têm pressionado o Estado a
representá-los, reivindicando e lutando por mais liberdade, mais igualdade e mais justiça,
com tudo que se possa considerar ao largo desses grandes valores republicanos. Em
nome da própria legitimidade “contratual”, o Estado deve responder a isso com alguma
eficácia. Em contrapartida, entre os maiores obstáculos visíveis a essas aspirações,
indivíduos se defrontam com os efeitos antirrepublicanos da burocracia estatal,
como o patrimonialismo e o corporativismo, incluindo a corrupção. São elementos
antirrepublicanos paradoxalmente instalados no Estado, a instituição maior da qual se
esperam respostas republicanas. De modo geral, o que a história política tem demonstrado
é que as respostas mais eficientes por parte do Estado dependem das formas de
manifestação republicana dos próprios demandantes.

INTERESSANTE
Virtude cívica e corrupção

Uma das importantes relações factuais e analíticas na Ciência Política é feita por autores
entre corrupção e republicanismo cívico. A corrupção significa toda forma de interferência
do interesse pessoal e ou corporativo sobre o patrimônio público. Enquanto isso, o civismo
é o contrário, isso é, a sobreposição do interesse público sobre os interesses particulares.

Phillip Pettit (1999), aponta dois aspectos relacionados ao civismo. Segundo o autor, existe
o perigo de corrupção realizada pela burocracia pública. E existe, por outro lado, o perigo
de que o cidadão, se é que se pode assim chamá-lo, de ser o agente corruptor, tentando
subornar o servidor público por algum benefício particular.

Os autores do republicanismo cívico admitem que ambas as situações existem com frequência,
mas rejeitam certa premissa dos institucionalistas da escolha racional de que todo servidor e
cidadão devem ser tratado como um agente propício à corrupção (PETTIT, 1999).

Ao confrontar essa premissa, os autores procuram demonstrar as relações entre alto


grau de civismo (capital social, se quisermos) e menores índices de corrupção. Sugerem
os autores que a participação e o interesse cívico dos cidadãos quanto ao que é público os
faz perceber que esse comportamento gera ganhos gerais, isto é, à maioria dos cidadãos,
restringindo comportamentos alheios ao interesse público.

A disposição de cada um de fazer a sua parte, seria compensadora do ponto de vista da vida
em comunidade, racionalizando o uso do patrimônio público e trazendo compensações
materiais e morais, aumentando a autoestima coletiva e o senso de identidade e
pertencimento. Mas concordam autores como os já mencionados Skinner, Pettit e Pocock,
que a educação cívica é fundamental inclusive no processo escolar.

236
É, portanto, a disposição da própria ordem política, através do Estado e suas instâncias
diretamente responsáveis, que o civismo deve ser estimulado. Por meio de valores,
conceitos e ideias-força nos currículos escolares, o processo educacional
pode ser incrementado.

Por ser uma política pública, com princípios, leis, normas e regras, a
Educação formal pode ser o ponto de partida para um processo de
educação cívica, cujos resultados futuros tendem a estar vinculados
ao aperfeiçoamento institucional-legal, capaz de incentivar o
civismo e combater os males republicanos, a corrupção entre eles.

Nesse tocante, procuramos demonstrar que o apreço dos indivíduos à liberdade é


não somente fundamental, como as formas de exercitá-lo são imprescindíveis. Isso justifica
as demonstrações aqui precedentes sobre o conceito de liberdade e sua essencialidade à
vida republicana. E o que a história política ocidental tem demonstrado, desde a civilização
greco-romana até os dias de hoje, é que o desenvolvimento das sociedades, nações,
cidades e regiões têm dependido substancialmente do republicanismo cívico. Em outras
palavras, quanto maiores as demonstrações de interesse cívico, de participação direta e
indireta dos indivíduos, maior a tendência de reformas institucionais. Esse processo não
é uma via de mão única, sem curvas, sobressaltos e recuos. O processo civilizatório já foi
interrompido e postergado várias vezes e a utopia republicana juntamente. É próprio da
política, eterno palco das disputas pelo poder.

Todavia, se é possível sugerir um prognóstico sobre as possibilidades de o


Estado não ser vencido pelas crises, é preciso insistir nas formas de republicanismo
cívico. Se a Ciência Política encarregará, como já o faz, por demonstrar as
experiências nessa direção, uma constatação geral tem sido possível: as formas de
descentralização do poder se mostram necessárias. Com bastante intensidade, as
investigações empíricas e teóricas da Ciência Política continuam em curso. Suficiente
é o número de pesquisadores e centros de pesquisa no esforço de compreender o
funcionamento das instituições políticas. Não se trata apenas de um esforço discurso,
é bom lembrar. Afinal, a Ciência Política não pode abrir mão do método científico, que
prevê a observação empírica, a demonstração, a constatação de regularidades e a
comprovação, por evidência, de suas afirmações.

Ao longo do século XX e no curso do século vigente, as formas de descentralização


tem persistido nos países mais desenvolvidos na econômica, política e socialmente.
Esta é uma das constatações mais importantes da Ciência Política, respaldando os
argumentos aqui apresentados. As demonstrações da Ciência Política têm demonstrado
a correspondência entre o desenvolvimento econômico, político e social e as formas
republicanas e democráticas. Arranjos federativos, pactos homônimos, estadualização
e municipalização de responsabilidades e orçamentos estão entre os exemplos de
descentralização. Além disso, reformas políticas que promovem a melhoria da qualidade

237
da representação, como a distritalização do voto e demonstram o aperfeiçoamento
institucional republicano, aproximando os cidadãos eleitores aos seus representantes
eleitos, dinamizando as instituições políticas formais.

NOTA
Voto distrital: é crescente no Brasil e em outras democracias o tema da distritalização do
voto. O voto distrital significa a divisão do número total de eleitores de um território em
distritos. Nessa situação, o eleitor vota apenas em candidatos de seu distrito eleitoral para
os cargos ao legislativo, isto é, vereadores, deputados e senadores.

Assim, podemos imaginar uma unidade federativa (um estado, no caso de sistemas
republicanos federativamente descentralizados): digamos que haja ali um milhão de
eleitores. Faz-se uma divisão geográfica em, por exemplo, dez regiões, em que cada uma
concentra 100 mil eleitores.

Digamos que haja 20 vagas para o legislativo estadual, ou ainda, que haja 20 vagas para
eleger deputados federais. Nessas circunstâncias, cada distrito elegerá dois candidatos ao
legislativo estadual e dois ao federal, nem mais e nem menos.

Os eleitores votarão apenas em candidatos do seu distrito eleitoral, que coincide com a sua
região geográfica. Nessa situação, o eleitor não pode votar em um candidato a deputado de
outra região, isto é, outro distrito eleitoral. Vota somente em candidato que tenha domicílio
eleitoral em alguma cidade que pode ser a sua ou alguma próxima.

Possuem três vantagens na distritalização do voto que são:

1) O eleitor vota em um candidato de sua região, que está mais próximo,


portanto, mais visível e constrangido a prestar contas rotineiramente,
se for eleito.
2) Há equilíbrio na distribuição da representação do poder político
entre as regiões, isto é, os distritos eleitorais.
3) Os custos de financiamento de campanha diminuem, uma vez que
os candidatos não precisam fazer campanha em todo o território.

Por extensão dessas reformas históricas presenciadas na ordem política dos


países ocidentais, estão outros arranjos políticos. Não se negue que a maioria das
nações do planeta ainda encontra baixos níveis de democracia (BIRKNER, 2014). O que
a Ciência Política pode afirmar? Por evidências, é que existe uma relação entre baixos
níveis de democracia e baixos índices de desenvolvimento. Na outra mão, entre os 25
países mais prósperos do mundo pelo critério principal do Índice de Desenvolvimento
Humano – IDH – todos são governados por regimes democráticos e demonstram
sólidas instituições republicanas, formais e informais (RUIC, 2015). Os dados estão em
ranking do afamado Legatum Institute of Prosperity, da Inglaterra. Nesses países, os
sistemas políticos, tanto quanto a cultura política de longo prazo é marcada por formas
de participação dos indivíduos nas questões públicas.
238
Nessa perspectiva, parte importante e quantitativamente expressiva
dos estudos e pesquisas em Ciência Política mostram a evolução das formas
de descentralização do poder como tendência republicana e suas relações com
a prosperidade dos países, estados e regiões. Se, ao longo das próximas décadas
deste século XXI essa tendência republicana de descentralização se confirmar, isto
representará, ao menos, duas constatações importantes do ponto de vista histórico
e teórico. Do ponto de vista histórico, poderemos afirmar que o curso evolutivo da
civilização ocidental está marcado por uma persistente busca da liberdade, contra
todas as tentações autoritárias que já houve e as que estejam em curso ou virão. E,
do ponto de vista teórico, poderá confirmar que também no plano das ideias podemos
observar um curso evolutivo, como procuramos demonstrar aqui, desde o centralismo
autoritário de Hobbes, passando pelo centralismo democrático de Rousseau, até a
descentralização republicana de John Locke.

De soslaio, a Ciência Política poderá confirmar importantes análises da Filosofia


Política, estimulando aproximações interdisciplinares, sempre que se mostrarem
úteis. Nessa perspectiva, desde os estudos filosóficos da Grécia antiga e do Império
Romano, passando pelos filósofos políticos modernos como os mencionados acima, até
a Ciência Política do século XXI, talvez possamos encontrar um fio evolutivo. De todo
modo, considerada a importância da noção de liberdade a partir do filósofo do século
XX, Isaiah Berlin, é bom lembrar quanto a conceitos, como liberdade, igualdade, justiça
e republicanismo se apresentam “geneticamente” vinculados ao desenvolvimento das
nações e ao curso evolutivo da história.

Nessa perspectiva, é importante levar em conta o percurso civilizatório do


Ocidente, desde a herança greco-romana, onde encontramos os vestígios do civismo,
até hoje. E, nessa trajetória histórica, o Ocidente republicano e liberal produziu os regimes
democráticos, a divisão dos poderes entre executivo, legislativo e judiciário, e o Estado
de direitos (composto pelos direitos civis, políticos e sociais). Nesse quadro, é igualmente
necessário incluir o liberalismo econômico, as formas de intervenção e regulação do
Estado nos mercados o Estado de bem-estar social. E ainda devemos lembrar do
conjunto de liberdades individuais, relacionadas aos aspectos comportamentais e às
escolhas dos indivíduos, protegidas pela afirmação crescente e institucional, tanto
quanto cultural, do valor da diversidade. Assim, ao largo ou no interior do conceito de
democracia, igualdade e justiça, tanto quanto liberdade e republicanismo têm sido
vinculados e exaustivamente estudados.

239
IMPORTANTE
Relação dos 25 países mais prósperos, por ordem de classificação, segundo o Instituto
Legatum (2015).

É importante observar que a classificação pode variar, ano a ano, em função do número
de variáveis que acompanham o IDH. Do mesmo modo, é importante levar em conta que,
entre essas variáveis, são contabilizados critérios que demonstram graus de liberdade
e de capital social, que mencionamos como critérios republicanos fundamentais ao
desenvolvimento político.

1) Noruega, 2) Suíça, 3) Dinamarca, 4) Nova Zelândia, 5) Suécia, 6)


Canadá, 7) Austrália, 8) Finlândia, 9) Holanda, 10) Irlanda, 11) EUA, 12)
Israel, 13) Luxemburgo,14) Alemanha, 15) Inglaterra, 16) Áustria, 17)
Singapura,18) Bélgica, 19) Japão, 20) Hong Kong, 21) Taiwan, 22) França,
23) Malta, 24) Espanha e 25) Eslovênia.

Para mais informações sobre o Instituto Legatum, acesse o link a seguir:


https://www.prosperity.com/.

FONTE: <https://bit.ly/3tyeQl0>. Acesso em: 6 maio 2020.

240
LEITURA
COMPLEMENTAR
O PODER JÁ NÃO É MAIS O QUE ERA

Iker Seisdedos

O poder, como a energia, não se cria nem se destrói... Mas irremediavelmente ele
se dissemina entre uma multidão de agentes, de micropoderes em cujas mãos acaba
degradado. Essa degradação e o seu efeito sobre a marcha do mundo no século XXI,
são os temas centrais de O Fim do Poder (LeYa), novo ensaio de Moisés Naím, prestigioso
analista internacional e colunista do EL PAÍS. Esse foi também o tema central da
conferência proferida ontem à noite pelo pensador na sede madrilenha da Fundação
Rafael del Pino.

“O poder é cada vez mais fácil de obter, mais difícil de usar e mais fácil de
perder”, repetiu o ex-ministro venezuelano e ex-diretor-executivo do Banco Mundial
em várias ocasiões durante sua fala. Sua exposição, diante de um auditório lotado,
foi marcada pelo mesmo afã do livro, que aposta em “limitar a opinião” e confiar em
dados e revelações sem armadilhas para sustentar seus alicerces intelectuais. Pareceu
pertinente, portanto, que a palestra começasse com uma enxurrada de exemplos, que
Moisés Naím apresentou como “uma pequena brincadeira”.

O que têm em comum o papa Bento XVI, “o primeiro a renunciar em 700 anos”,
a impossibilidade de Obama em cumprir suas ameaças contra a Síria, a venda do jornal
The Washington Post à nova hegemonia da Amazon por 250 milhões de dólares ou a
declaração da falência do gigante fotográfico Kodak mais ou menos no mesmo momento
em que o Instagram, com sua intangibilidade e seus “13 empregados”, mudava de mãos
por 1 bilhão de dólares? Todas são patentes demonstrações, segundo Naím, de que “o
poder já não é mais o que era”.

“É um fato que está em plena mudança: dos EUA e da Europa à Ásia, dos palácios
presidenciais às praças públicas, do imobilismo das grandes companhias ao frescor das
start-ups. Essas mudanças são muito importantes, mas não basta determinar esses
movimentos de A para B. É importante levar em conta que o poder que chega a B é menor
do que o que A possuía”. Naím, que dirigiu durante 14 anos a influente revista Foreign
Policy, admitiu que sua tarefa é “intimidadora” (também se ouviu o adjetivo “polêmico”).
Não tanto pela sombra da caudalosa literatura anterior sobre o tema, mas porque o ensaio,
que quando foi lançado em inglês mereceu comentários elogiosos até de Bill Clinton
(“Mudará sua maneira de ler as notícias, sua maneira de pensar na política e sua maneira
de olhar o mundo”), defende “teses que vão contra a narrativa dominante”.

241
“Sei que afirmar que o poder está se tornando mais frágil e vulnerável contradiz
a percepção mais difundida de que vivemos em uma época na qual o poder está cada
vez mais concentrado e de que seus detentores estão mais fortes e mais firmes do que
nunca”, admite Naím no livro, antes de se lançar a uma estimulante refutação, da qual
ontem ofereceu um resumo por temas: da força militar, um Gulliver do qual crescem
anões como os drones (o recurso ao herói de Swift também apareceu ontem à noite),
à política e sua incontrolável descentralização, passando pelo mundo empresarial
e as religiões, onde se dão fenômenos inéditos como a sangria de fiéis sofrida
pelo catolicismo na América Latina em favor de novos cultos, com seu dinamismo
“semelhante ao de uma start-up”.

Estabelecido o diagnóstico, Naím tratou de delimitar os porquês. “A primeira


reação costuma ser atribuir essas mudanças à força da internet e das redes sociais”,
afirmou. “Só que estou em desacordo. Sua influência é importantíssima, mas se trata
apenas de instrumentos; convém esclarecer quem os usa e para que, e deixar de tomá-
los apenas como tecnologias para a libertação, pois já ficou demonstrada sua eficácia
como instrumentos de repressão em alguns regimes”.

Na opinião dele, as transformações do poder obedecem a uma tripla revolução.


A do “mais” (“É um fato documentado: há mais de tudo, mais países, mais tecnologia,
mais comida, mais ONGs, mais religiões, mais partidos políticos...”); a da “mobilidade”
(o desaparecimento das fronteiras impede que os detentores do poder o exerçam em
um âmbito cativo); e a da “mentalidade”, cuja transformação permite, conforme afirmou
Naím antes de iniciar um diálogo com a plateia, “um maior rechaço ao autoritarismo e
uma maior propensão a aceitar os diferentes”.

FONTE: <https://bit.ly/3tsOwZz>. Acesso em: 29 jul. 2020.

242
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• O pensar sobre a república se dá desde a Grécia Antiga. Este pensamento diz


respeito à participação dos indivíduos na coisa pública. O republicanismo cívico está
principalmente ligado à ideia de liberdade e participação dos indivíduos na política.

• O conceito de liberdade negativa diz respeito à liberdade do indivíduo não ser coagido
pelas forças do Estado a agir de determinada forma. Neste sentido, ele exerce sua
liberdade quando o Estado não interfere em suas ações.

• A concepção de liberdade positiva está ligada a ideia de o indivíduo ser livre para
controlar suas decisões.

• A liberdade como não dominação está ligada à ideia de liberdade coletiva. Liberdade
de ação, pensamento, decisão, expressão etc.

• Hobbes oferece uma justificativa para o Estado centralizado. Ele toma o contrato
social estabelecido entre indivíduos cientes de sua incapacidade de organização por
si mesmos, recorrem ao Estado para determinar normas e restringir liberdades para
que os indivíduos tenham direito à vida e à segurança.

• Em Rousseau, o papel do Estado é o de restituir a igualdade, e tendo feito isso seria


possível exercer a liberdade. Restituir a igualdade, pois, segundo ele, a desigualdade
social e os conflitos entre homens se dão a partir da disputa de posses.

• Em Locke, se nota a presença da descentralização. Para ele o papel do Estado, além


de administrativo, é o de garantir as liberdades fundamentais. Entretanto, ele não
deve ocupar um lugar de interferência na liberdade individual. Ou seja, é necessário
que o Estado garanta ao indivíduo a possibilidade de agir autonomamente e lidar com
as consequências de suas ações.

243
AUTOATIVIDADE
1 Como os pensadores chamados neorrepublicanos ou republicanos cívicos encaram
o republicanismo?

2 Estudamos a concepção de três pensadores modernos sobre a questão da relação


entre sociedade e Estado. São eles Hobbes, Rousseau e Locke. Faça uma breve
distinção entre a maneira como cada um define tal relação.

3 A teoria política ocidental é constituída de vários conceitos fundamentais ao seu


entendimento. Um desses conceitos é o de republicanismo. Segundo o economista
político brasileiro Luiz Carlos Bresser Pereira, durante o percurso do século vigente, o
desenvolvimento do republicanismo é fundamental para a evolução da democracia.
Defina o que significa o conceito mencionado.

244
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ANOTAÇÕES

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