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“O profeta que tem um sonho, conte o sonho; e aquele que tem a minha palavra,
fale fielmente a minha palavra.”
Jeremias, 23:28
“Tanto quanto posso ver, toda a funçã o destes magistrados resume-se sob o tacã o
da palavra tã o idiota e covarde de conciliaçã o.(…) o jugo mecâ nico (…) aplica-se
invariavelmente a estabelecer uma balança, uma espécie de soluçã o de
compromisso entre a demanda injusta e a recusa indignada”.
“A ideia de Pá tria é ligada à de guerra. Dado o que se tornou a guerra (…), esta
transforma a Pá tria na força mais imediatamente perigosa que circula entre nó s”.
Mas ao contrá rio dos filmes anteriores – em que todos eram implicados no jogo da
guerra discursiva, seja pelos reenquadramentos languianos e o cooper discurso em
Othon, ou pelo aerodinamismo da câ mera de Preminger, Blitzkrieg do Logos sobre
a infantaria dos corpos -, em Lincoln há uma reserva de silêncio e de penumbra, ao
longo de todo o filme, que permanece à espreita da açã o “do discurso”- da açã o,
tout court. Há um “fora de campo” que se encarna no Presidente – e nos décors que
habita, seus gestos estacados, o cadenciado de sua voz, seus relicá rios secretos e
aconchegantes, como a chaise-longue, a criança e o filho morto; a consanguinidade
mediú nica com a criada (“Ela sonhou com o senhor?”) – mas também num uso
particular, “ancestralmente” idiossincrá tico, da palavra, sob a forma de pará bolas e
digressõ es, nem sempre de inspiraçã o bíblica (a piada escatoló gica sobre George
Washinghton)… estes usos do Logos abrem uma cratera puritana de sub species
aeternitates na azá fama taquigrá fica e telegrá fica dos poderes democrá ticos em
açã o.
1
Publicado originalmente na Revista Cinética no dia 8 de abril de 2013. Disponível online em:
http://revistacinetica.com.br/home/lincoln-de-steven-spielberg-eua-2012/
Estas suspensõ es e retençõ es, que a presença do Presidente e seus atos
(linguísticos inclusive) “em pianinho” instalam, sequestram as rédeas da chibata
do Poder institucional. Mas nã o para renegá -las, retorcê-las, desregrá -las; afinal,
Lincoln é este Poder. Sem este, ele nã o teria sentido nem posteridade para nó s. O
que se manifesta aqui é uma operaçã o dialético-messiâ nica com longa posteridade
na histó ria do Ocidente, e que, na América Republicana e puritana, encontrou um
locus particularmente eficiente de intensidade escatoló gica. Trata-se da katargein
messiâ nica, operaçã o mística e política, por meio da qual Sã o Paulo tentou
reconciliar a comunidade judaica e os gentios, os nã o-judeus recém-convertidos ao
cristianismo.
A cena que cito é quando da espera pela contagem dos votos, junto aos dois
telegrafistas, numa sala na semi-obscuridade. Lincoln divaga diante dos dois jovens
sobre Euclides – sobre o conceito (experiência? credo?) de “Igualdade” em
Euclides. “Vocês sã o engenheiros. Vocês devem conhecer os axiomas e noçõ es de
Euclides. A primeira noçã o de Euclides é esta?: Coisas que sã o iguais a outras
coisas sã o iguais umas à s outras”. (…) Isso é verdade porque sempre funcionou. Em
seu livro, ele diz que isto é auto-evidente. Vejam, até num livro de 2000 anos de leis
mecâ nicas isto é auto-evidente que as coisas sã o iguais (…) Começamos com a
igualdade. Esta é a origem, nã o?”.
Lincoln nos dá o homem, ou o que restou dele, enviesado entre tantas coxias; o
cená rio e o figurino de suas ú ltimas (ú nicas?) batalhas – lembremo-nos da silhueta
desenhada pelo chapéu em bico-abutre, no plano subjetivo do negro, ú ltima
testemunha; mas nos nega o tiro fatal, o “Corta!” que um classicista jamais nos
negaria… Spielberg cresceu? Ou, desde o petardo nauseabundado que me inspirou
o cromo Cavalo de Guerra (2011)… mudei eu?