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Crise e revelação1

Luiz Soares Jú nior

“O profeta que tem um sonho, conte o sonho; e aquele que tem a minha palavra,
fale fielmente a minha palavra.”

Jeremias, 23:28

“Tanto quanto posso ver, toda a funçã o destes magistrados resume-se sob o tacã o
da palavra tã o idiota e covarde de conciliaçã o.(…) o jugo mecâ nico (…) aplica-se
invariavelmente a estabelecer uma balança, uma espécie de soluçã o de
compromisso entre a demanda injusta e a recusa indignada”.

Léon Bloy, “O Mendigo Ingrato”.

“A ideia de Pá tria é ligada à de guerra. Dado o que se tornou a guerra (…), esta
transforma a Pá tria na força mais imediatamente perigosa que circula entre nó s”.

Pierre Drieu la Rochelle, “De Genève a Moscou”.

A proposiçã o clá ssica de Clausewitz, segundo a qual a guerra é a continuaçã o da


política por outros meios, encontra em alguns filmes a sua inversã o: em Othon
(1970), de Straub e Huillet; Tempestade sobre Washington (1962), de Otto
Preminger, e este Lincoln (2012), de Steven Spielberg, é a Política o campo de
batalha, a arena da Guerra – do discurso, já sabemos -, e mais sangrenta trincheira
nã o há . Nestes petardos logofílicos, nã o há plano que nã o seja bombardeado pela
iminência de uma emboscada do contracampo, um instante de cadência que nã o
preceda o shot fatal.

Mas ao contrá rio dos filmes anteriores – em que todos eram implicados no jogo da
guerra discursiva, seja pelos reenquadramentos languianos e o cooper discurso em
Othon, ou pelo aerodinamismo da câ mera de Preminger, Blitzkrieg do Logos sobre
a infantaria dos corpos -, em Lincoln há uma reserva de silêncio e de penumbra, ao
longo de todo o filme, que permanece à espreita da açã o “do discurso”- da açã o,
tout court. Há um “fora de campo” que se encarna no Presidente – e nos décors que
habita, seus gestos estacados, o cadenciado de sua voz, seus relicá rios secretos e
aconchegantes, como a chaise-longue, a criança e o filho morto; a consanguinidade
mediú nica com a criada (“Ela sonhou com o senhor?”) – mas também num uso
particular, “ancestralmente” idiossincrá tico, da palavra, sob a forma de pará bolas e
digressõ es, nem sempre de inspiraçã o bíblica (a piada escatoló gica sobre George
Washinghton)… estes usos do Logos abrem uma cratera puritana de sub species
aeternitates na azá fama taquigrá fica e telegrá fica dos poderes democrá ticos em
açã o.

1
Publicado originalmente na Revista Cinética no dia 8 de abril de 2013. Disponível online em:
http://revistacinetica.com.br/home/lincoln-de-steven-spielberg-eua-2012/
Estas suspensõ es e retençõ es, que a presença do Presidente e seus atos
(linguísticos inclusive) “em pianinho” instalam, sequestram as rédeas da chibata
do Poder institucional. Mas nã o para renegá -las, retorcê-las, desregrá -las; afinal,
Lincoln é este Poder. Sem este, ele nã o teria sentido nem posteridade para nó s. O
que se manifesta aqui é uma operaçã o dialético-messiâ nica com longa posteridade
na histó ria do Ocidente, e que, na América Republicana e puritana, encontrou um
locus particularmente eficiente de intensidade escatoló gica. Trata-se da katargein
messiâ nica, operaçã o mística e política, por meio da qual Sã o Paulo tentou
reconciliar a comunidade judaica e os gentios, os nã o-judeus recém-convertidos ao
cristianismo.

O que significa exatamente este estratagema genial? A katargein nã o consiste em


anular a Lei judaica para satisfazer aos gentios, e assim integrá -los à neo-
comunidade cristã (ou seja: nã o circuncisa). Agamben:“Como bem viu Sã o
Jerô nimo (…), este termo nã o significa ‘anular , destruir’. (..) Ora, o conhecimento
mais elementar do grego é suficiente para nos fazer saber que o correspondente
positivo de katargeõ (…) é energeõ, ‘eu ponho em obra, eu ativo’”. O que busca Sã o
Paulo nã o é erradicar a lei judaica, mas situá -la dialeticamente num horizonte
maior e mais sublime: o da caridade e da fé. Aquilo que a Lei nã o conseguiu, por
tornar-se demasiado fundamentalista – atenta à la lettre -, a fé em Cristo Jesus
realiza. E qual era o propó sito da Lei, fito a que esta nã o esteve à altura? A
redençã o do pecado. A Lei permanece necessá ria – como, sem o risco de recair no
barbarismo, uma nova religiã o pode prescindir da ética? -; necessá ria, mas nã o é
suficiente; é preciso algo mais, um plus. A Lei, entã o, segundo uma expressã o
hegeliana, é “suprassumida” (conservada e ao mesmo tempo ultrapassada) num
domínio superior, que sã o o amor e a caridade em Cristo – a “cola” da
Reconciliaçã o entre o crente e o Infinito (aqui, o Norte e o Sul, o Negro infra-
estrutural, a superestrutura branca fundiá ria).

O modelo é o mesmo. Se Lincoln manobra, negocia, joga com os Democratas – se é


evasivo e reticente para com a negra e a mulher, com razã o ressentidas e
justiceiras, é porque sabe que para governar nã o os pode “jogar fora” ou afrontar
diretamente; é preciso saber jogar. Mas este é o gênio do filme de Spielberg: o
saber reivindicado aqui nã o pertence (ou nã o apenas) à ordem da estratégia ou da
ruse, e sim da profecia e da inspiraçã o sapienciais – a Grande Política. Se Lincoln se
entrincheira, se embosca (a contra-luz na janela, durante a aprovaçã o da Lei; com
os brinquedos do filho; nos seus percalços pela noite e pelos escaninhos dos
aposentos), é porque a política na qual crê se projeta em direçã o a vô os outros,
por-vires: sim, a Está tua do Congresso americano com que se encerram os
melhores Bildungsromans dedicados ao jovem Lincoln (o filme de Griffith e o de
Ford) acertaram na mira sem o querer, ou dizer; é diante deste patriarca, talhado
no alto-relevo do Direito Secular, que a América se prostrará .

Disse acima do “gênio” do filme, que consiste no estratagema de travestir uma


trajetó ria messiâ nica e profética numa crô nica hebdomadá ria – a pequena Política.
E disse mal. Como na katargein paulina, o gênio é de ordem dialética, vai e vem.
Spielberg nos mostra, em um mesmo e outro diapasã o, o Profeta por-vir e o rá bula
que nunca deixou de ser; a ave de rapina e o metó dico almoxarife. E estas rasantes
de Americana pelo mundo “de fora” do Congresso?, o tiro que nã o deu certo no
bêbado camarada, as corridas sem fô lego, os tragos e os trá fegos esbaforidos – esta
miscelâ nea de cartoon e épica que foi o talento americano, e que reencontramos
em tantas e tã o variados registros, das rapsó dias fordianas com Will Rogers à s
screwball comedies? E estes huis-clos soliló quios do ressentimento (Sally Field)
com o Lirismo (a criança) que em nada deixam a dever aos Broken Lulabby (1932)
e A loja da esquina (1940), que carregam o rastro dolce amaro de McCarey e dos
melodramas de Minnelli, em unçã o camerística? … e esta Histó ria, espú ria e nossa,
que insiste (no pasará ) em macular os limiares sagrados do Congresso e da Casa
patricarcal com os mortos despedaçados – cena magistral, com o escrutínio
biomédico de seu campo e contracampos à la Painlevé, e o plano telescopiado do
filho mais velho; e sobretudo por uma sequência que julgo ser a reinvençã o da
Pastoral americana mais comovente dos ú ltimos anos: o passeio primaveral pelos
campos semeados de cadá veres…

Há de se ressaltar, com enfado especial, no entanto, o flerte com o academicismo a


que cedem os rebarbativos concílios das sessõ es do tribunal – gênero mais do que
consagrado, só que em iluminura, na histó ria do cinema americano, pelo bico-de-
pena, pela vinheta humorística e estudo de cará ter sardô nicos destes discípulos de
Grosz e Karl Kraus que foram McCarey, Ford, Preminger e Capra em seus melhores
momentos… Tribunal spielberguiano tanto mais enfadonho pela pompa Ora pro
nobis da mú sica de Williams… Mas há uma cena chave na qual estas duas personas
– a místico-hagiográ fica, a histó rica – se revelam em um ú nico Abre-te sésamo:
Décor, figura (cabisbaixa e retesada, como o abutre crucificado com que Ford o
representou à porta dos jovens acusados de assassinato), distâ ncia do cadre,
coalescendo agora prudentemente entre proximidade e distâ ncia – até entã o,
alternava-se entre o plano médio meditabundo e o plano geral agorafó bico das
assembleias blá blá blá . A Reconciliaçã o que o personagem representara ao longo do
filme encontra um equivalente espaço-temporal e um contracampo enfim
adequado em matéria de interlocuçã o – o da mulher geralmente era apenas uma
das alternativas do jogo, reativa e melodramá tica; nã o por acaso, ela se “confessa”
culpada para o marido em seu ú ltimo passeio de carruagem.

A cena que cito é quando da espera pela contagem dos votos, junto aos dois
telegrafistas, numa sala na semi-obscuridade. Lincoln divaga diante dos dois jovens
sobre Euclides – sobre o conceito (experiência? credo?) de “Igualdade” em
Euclides. “Vocês sã o engenheiros. Vocês devem conhecer os axiomas e noçõ es de
Euclides. A primeira noçã o de Euclides é esta?: Coisas que sã o iguais a outras
coisas sã o iguais umas à s outras”. (…) Isso é verdade porque sempre funcionou. Em
seu livro, ele diz que isto é auto-evidente. Vejam, até num livro de 2000 anos de leis
mecâ nicas isto é auto-evidente que as coisas sã o iguais (…) Começamos com a
igualdade. Esta é a origem, nã o?”.

Aqui, o credo místico e a proposiçã o democrá tica mostram-se istmos de uma


mesma experiência, comunitá ria e individual – e haveria diferença? Ser iguais é ser
Uno, o democrata é o travesti do Messias… O credo místico consiste em integrar a
todas as diferenças – acidentes, rastros e retalhos da Histó ria – ao Uno Primordial,
a uma Origem… Qual o diagrama geométrico, o cá lculo matemá tico ancestral que
nã o liga estas duas pontas, que nã o vive desta morte, sublime embora?
Se a Ford e Griffhth bastou (bastou?) o intró ito desta trajetó ria – a descriçã o da
mocidade e do aprendizado de Lincoln -, no entanto sempre lhes foi necessá rio
(indispensá vel, aliá s) terminar seus filmes com o lentíssimo travelling na Está tua
do Congresso. Ou antes: começá -los sempre já sob a égide da Está tua (da
hagiografia), pois nã o só na Dialética, mas sobretudo na vida, o Fim Reencontra o
Princípio… é preciso, aliá s, exercer-se metodicamente uma genealogia sobre os
insights dialéticos sofisticados encontrados pela mise en scène americana – e nã o só
soviética, grá fico-construtivista – ao longo de seu percurso… O que lhe interessa
aqui é animar esta Efígie sob os auspícios da qual a América cresceu e morreu… e
voltou a renascer? É imprimir-lhe um cará ter “romanesco” – e aí já me pergunto o
que querem dizer as retomadas destes velhos novos containers de mise en scène e
de significaçã o – destas novas velhas centralidades, centrífugas e digressivas
embora (mas todo o Ford nã o é sobre isto?); deste fausto teatral que também
recicla as coxias (mas Busby Berkeley, Minnelli, só nã o fizeram isto? – sim, mas em
stimmung espetacular e “valor de exposiçã o”)…

Lincoln nos dá o homem, ou o que restou dele, enviesado entre tantas coxias; o
cená rio e o figurino de suas ú ltimas (ú nicas?) batalhas – lembremo-nos da silhueta
desenhada pelo chapéu em bico-abutre, no plano subjetivo do negro, ú ltima
testemunha; mas nos nega o tiro fatal, o “Corta!” que um classicista jamais nos
negaria… Spielberg cresceu? Ou, desde o petardo nauseabundado que me inspirou
o cromo Cavalo de Guerra (2011)… mudei eu?

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