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Conjuntura da arte contemporânea:


a noção de “fim da arte” e a arte tecnológica
Pablo Lisboa
Cleomar Rocha

Resumo como é o caso do Ars Electronica (Áustria) e do


No contexto da história e das teorias da arte, ZKM (Alemanha).
o artigo aproxima o conceito de “fim da arte”, ela-
borado por Arthur Danto, das expressões artísticas Palavras-chave
visuais tecnológicas e reflete sobre sua relação com
os museus. Concorda-se o reconhecimento do fim arte tecnológica, museologia, fim da arte, história e
de um tipo de narrativa da história da arte com a as- teorias da arte, arte contemporânea.
censão da arte tecnológica em suas variadas expres-
sões. No contexto dos processos de musealização
Introdução
de salvaguarda e comunicação, a arte tecnológica
se desenvolve com diversos atritos em relação a arte As profundas transformações socioculturais em
contemporânea mais tradicional conforme diagnosti- curso no mundo contemporâneo, a partir do avanço
cado por Edward Shanken e Oliver Grau, configuran- da ciência, da revolução digital e do reconhecimento
do um cenário propício a especulações sobre a cor- das diversidades culturais, afetam fortemente o mun-
relação de forças entre as mesmas. A presença de do da arte. Isto fica evidente quando olhamos para
uma maior diversidade social e cultural, conjugada as expressões artísticas produzidas a partir da déca-
com uma recepção da arte contemporânea tributária da de 1990, que apresentam uma natureza temática
de um regime estético, está intimamente vinculada híbrida e diversificadamente heterogênea, eviden-
ao cotidiano social tecnológico e sua torrente de ciando que os relatos totalizantes estariam cada vez
dispositivos interativos de toda ordem. Deste cená- menos potentes. Isso seria explicado pela presença
rio emerge a arte pós-histórica (pós-moderna) que de maior diversidade temática nas narrativas sociais,
se libera dos axiomas fechados do modernismo e e, por consequência, na arte. O sepultamento dos
substitui a pergunta “o que é arte?”, pela pergunta relatos hegemônicos em torno de grandes narrativas,
“o que não é arte?”, o que implode com as fronteiras identificado por Canclini (2012), estaria localizado
do locus artístico. Por seu turno, a seleção institu- na queda do Muro de Berlim (1989) e no ataque às
cional dos museus tradicionais, muitas vezes presa Torres Gêmeas em Nova Iorque (2001). A partir de
aos critérios modernos, não salvaguarda de maneira então, na visão do autor, nenhum outro relato fora
razoável a produção de arte tecnológica, impelindo totalizante e hegemônico. Estamos vivendo tempos
um vácuo de memória que poderá afetar a leitura cada vez mais líquidos.
histórica das gerações futuras. Em contraposição, Essas transformações apresentam disrupções
a arte tecnológica constrói um circuito próprio atra- conceituais paradigmáticas que dividem o moder-
vés de festivais, mostras e centros de arte e mídia, nismo do pós-modernismo instigando abordagens

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de análise sobre o cenário da arte contemporânea. próprio caminho a partir de um sistema paralelo. Por
Tramado a isto, vê-se a total liberação da materiali- seu turno, a produção da arte, que é fruto, dentre ou-
dade da arte, ampliando os meios para a produção tros fatores, da disponibilidade de materiais, técnicas
e fluxo da mensagem artística que, agora, se torna e tecnologias no espaço-tempo histórico, além de,
sensível a partir de uma diversidade de chassis e é claro, abarcar aspectos poéticos e estéticos, não
visualidades, causando uma profunda afetação nas está, na maioria das vezes, objetivando sua absorção
interfaces constituídas na amarração entre obra e pelos museus tradicionais. São variadas e profundas
público. as contradições entre arte e tecnologia, contudo,
Aqueles que produzem, conservam e expõem a aqui, queremos evidenciar que a arte tecnológica é
arte contemporânea mais tradicional, dão sinais de fruto nato da era tecnológica na qual estamos imer-
não estarem muito dispostos a flertar com a arte de sos e nada nela tem de anacronismo, justamente
base tecnológica, no entanto, as expressões artísti- por ser composta do ferramental de seu tempo e
cas tecnológicas são cada vez mais pujantes, prin- expressar a linguagem de seu tempo.
cipalmente a partir da constituição de um circuito A partir da exposição de elementos de conjun-
próprio. A arte eletrônica é produzida por um número tura busca-se resultados que estejam situados no
cada vez maior de artistas, circula em instituições âmbito sociocultural e artístico, visando produzir um
específicas e em circuitos e festivais que valorizam desenho que faça uma montagem relacional entre
as estéticas cibernéticas em sua ampla variedade. É o conceito de “fim da arte”, elaborada por Arthur
debatida e criticada por um número cada vez maior Danto, e a produção artística tecnológica. São três
de pesquisadores que utilizam eventos, como se- os tópicos desenvolvidos nas linhas que se seguem:
minários e encontros, para refletir sobre o assunto. 1. O “fim da arte”; 2. Arte tecnológica; 3. A relação
Está claro que existe um desacordo entre a arte mais entre arte tecnológica e os museus.
tradicional e a arte tecnológica. Isso fica evidente
quando sentimos a ausência de produtos artísticos O “fim da arte”
tecnológicos nos principais museus de arte contem-
porânea mais tradicional. Rejeitada, a arte tecnoló- O conceito de fim da arte tem sua abordagem
gica busca um caminho distinto, localizando-se em original em Hegel e foi continuada com bastante pro-
centros de tecnologia e mídia, fluindo pela internet, priedade por Arthur Danto, em “Após o fim da arte:
organizando-se em festivais e outros eventos onde arte contemporânea e os limites da história” (2006).
o cruzamento entre arte e tecnologia é bem-vindo. De posse da noção de fim da história, o autor uti-
As instituições museais de arte, no que toca a liza o conceito de pós-historicidade para abordar
absorção da produção artística, têm seus procedi- criticamente a arte e seus desdobramentos a partir
mentos de seleção, separando objetos musealizá- do esgotamento do modernismo e do surgimento da
veis, de não musealizáveis, a partir do mérito de sua Pop Art. Danto refere-se especificamente às escul-
substância artística material e imaterial. A processu- turas Brillo Box (1964), produzidas e expostas por
alidade museal envolve o juízo de valor das obras de Andy Warhol, em Nova Iorque. A obra em questão
arte, descartando umas e selecionando outras. Nes- surge no momento da crise de representação da
te crivo, a arte tecnológica não tem logrado espaço arte moderna e inaugura um período disruptivo em
no circuito tradicional, sendo pressionada a criar seu relação ao modernismo. A partir de então tudo pôde

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ambicionar ser arte, não cabendo juízos de valor es- que viria a viabilizar a disrupção que se deu a partir
tético carrilhados pela linha temporária e sequencial da década de 1960 com as Brillo Box.
dos movimentos artísticos modernos. Um fato vem ao caso. Sob a ótica de Danto
A menção ao “fim da arte” não corresponde ao (2006), o historiador da arte Clement Greenberg
final da produção artística, mas, sim, de uma ruptura, esforçou-se em “suprimir” o Surrealismo da história
uma inovadora forma de interpretar, produzir e fruir da arte, determinando que seu lugar estava “além do
arte, não mais ancorada em preceitos fechados, nem limite da história”, trazendo à tona e deixando bas-
a partir de historiografias totalitárias e hegemônicas. tante explícito que a arte moderna, bem como seus
Concordamos que, observando apenas a frase de movimentos antecessores, estavam enquadrados em
efeito: “o fim da arte”, o leitor é levado a crer em uma narrativa oficial com limites sólidos, excluden-
uma visão apocalíptica, porém, em nenhum momento tes e puristas. Arthur Danto, inclusive, prospectou
Danto quis dizer que não se produziria mais arte a que “Greenberg pode ter pensado na arte nesses
partir das Brillo Box, de Warhol, mas, sim, que o mesmos termos, vendo no Surrealismo um tipo de
surgimento da arte pós-histórica encerrava um modo regressão estética, uma reafirmação de valores da
de narrativa totalmente distinto do sucedido. Desvin- infância da arte, habitada por monstros e ameaças
culada da necessidade de encarnar uma essência assustadoras” (DANTO, 2006, p. 12). Em relação a
filosófica da arte, como fizeram os movimentos mo- isso, poderíamos considerar que o Surrealismo, pela
dernos organizados com base em manifestos, a arte visada de Greenberg, seria a-histórico. Um movimen-
pós-histórica pode ser o que quiser, diferentemente to que não “entrou” na narrativa da história da arte
do que ocorria no século passado (DANTO, 2006, por não se “encaixar” numa etapa evolutiva sequen-
p. 58). cial de movimentos.
Não existe maior obstáculo para a fruição de Com o “fim da arte”, identificado por Arthur Dan-
uma obra de arte do que manter princípios e precon- to, um movimento como o Surrealismo, hoje, teria
ceitos (GOMBRICH, 2013, p. 29) e isso se torna um espaço em narrativas não totalizantes que conside-
entrave quando analisamos a paradigmática ruptura rem que a arte não é evolutiva, mas, sim, complexa,
que a pós-modernidade ofertou ao mundo artístico. como tem ocorrido com diversas das expressões
A história revela que artistas e movimentos consa- artísticas da nossa atual conjuntura. A partir deste
grados nem sempre foram bem aceitos no período conceito, também a arte tecnológica, tão criticada
de seu surgimento. O caso de Van Gogh é emble- por seus arranjos baseados em dados informáticos,
mático e concorda com a percepção de Gombrich poderia ficar livre da condenação de meramente utili-
sobre a necessidade de despirmo-nos de concep- zar ferramentas pré-moldadas e galgar espaço entre
ções que poucas vezes são aplicáveis para todos a concorrência das expressões típicas localizadas
os casos. Talvez seja esse o motivo para que Danto “depois do fim da arte” de Danto.
não dê ao Urinol, de Duchamp, a condição de obra A arte pós-histórica não é tributada pela noção
paradigma, como deu às Brillo Box, de Warhol. Antes de beleza, nem pela sua capacidade mimética, im-
de ser filosoficamente possível, uma obra deve ser perativos ordinariamente operantes na arte moder-
historicamente possível (DANTO, 2006, p. 58), e, na na. Os limites que antes estavam presentes na arte
visão do autor, o ano de 1917, data do surgimento moderna, agora são negociados caso a caso rela-
de “A Fonte”, ainda não se tinha a condição histórica tivizando qualquer suposição de fronteira estilística.

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A materialidade da arte pós-histórica, em muitos ca- analógica. As intervenções urbanas que utilizam a
sos, convive com algum grau de efemeridade, onde cidade como espaço de artisticidade são exemplo
a essência das obras, e principalmente a experiência disso, também as variadas estéticas tecnológicas
das obras, são as questões mais importantes. envolvendo ciência, como, por exemplo, na bioarte
de Eduardo Kac, com a obra transgênica intitulada
Arte tecnológica “GFP Bunny” - Alba, uma coelha que emite brilho
verde fluorescente quando se retira a luminosidade
Arte tecnológica é o termo guarda-chuva mais do ambiente. Essas produções dizem respeito a uma
amplo, por isso alguns autores referem-se a uma arte pouco convencional no sentido que a arte vinha
“vertente tecnológica da arte” (Priscila Arantes) sendo concebida ao longo da sua história, e, con-
como forma de englobar todas as expressões artís- frontadas com o conceito de Arthur Danto, podem
ticas tecnológicas. Entretanto, existem vários outros ser categorizadas após o fim da arte, e não só a arte
termos que convergem para o mesmo sentido. Na tecnológica.
língua inglesa e língua alemã, o termo “artemídia” A arte tecnológica consiste em um produto na-
tem sido utilizado com maior ênfase e escorrido nos tural de nosso tempo, expressão verdadeira da re-
textos de alguns intelectuais brasileiros à exemplo volução digital em curso desde o final do século 20.
de Arlindo Machado. Também temos a utilização da Os modos de produção artística constituem-se em
nomenclatura “arte digital”, de onde deriva o termo um fundamento central na análise da arte, pois, da
“arte numérica” (Edmond Couchot), bastante utili- sua relação com os produtos artísticos de seu tem-
zada na França. Já o termo “ciberarte” advém da po, são engendradas maneiras de se formatar obras
concepção de “cibercultura”, sendo utilizado larga- de arte. Em vários períodos da história podem ser
mente no Brasil. Arantes (2012, p. 18) cita outras encontradas tecnologias que modificaram os modos
terminologias como tecnoarte, arte eletrônica, arte de produção artística. Olhando por esse prisma, os
em novas mídias, mas não se pode afirmar que qual- dispositivos empregados na produção de uma obra,
quer uma destas nomenclaturas citadas aqui gozem ou na sua constituição, acabam por interferir direta-
de consenso no campo de pesquisa. Para fins de mente na percepção do artista, mas, sobretudo, na
coesão textual optamos por utilizar o termo “arte percepção de quem experencia as obras.
tecnológica” devido a sua abrangência, no entanto, A tinta óleo, por exemplo, proporcionou aos pin-
não podemos esquecer que por arte tecnológica tores no século XIV mais tempo para a aplicação das
podemos considerar também a fotografia e outras pinceladas antes da finalização de uma pintura em
modalidades de arte que utilizam-se de tecnologias tela. Isso significa que as cores empregadas em uma
em seu sentido lato. Contudo, queremos falar aqui determinada obra poderiam ter mais maleabilidade
da arte tecnológica que surge no final do século 20, de variação durante o processo, dando aos pintores
a partir de estéticas tecnológicas digitais de base um maior tempo na elaboração das partes de um
binária e com performance interativa. trabalho. Como resultado, a tinta a óleo modificou
Arantes (2011) destaca que os novos circuitos drasticamente os modos de produção da arte dei-
pós-históricos da arte não são exclusivamente do xando um legado importante nos trilhos da poética,
campo da arte tecnológica, coexistindo, igualmen- mas, também, subsidiam novos olhares por parte
te, modalidades e/ou expressões de arte de base

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dos públicos e financiam, também, novas sensibili- que só pode ser resgatada pela arte. O mal fun-
dades estéticas. cionamento industrial de uma máquina, encontra na
Sem a produção em série proporcionada pela arte uma função poética tecnológica. O desvio da
revolução industrial, não seria possível, por exemplo, performance industrial de um televisor contraria sua
a germinação da obra “A Fonte”, de Duchamp (1917), concepção e revela uma performance indesejada,
que trouxe à baila o debate sobre a condição de pro- que só a arte pode captar, reconceituar e devolver
dutos industriais tecnológicos serem considerados ao mundo com uma nova camada de sentido. Assim,
produtos artísticos e exemplares singulares de seu sem a existência do televisor, “Global Groove” não
tempo. Duchamp subverteu uma ordem consagrada seria viável. Aqui encontramos mais um exemplo de
ao colocar o sentido da obra na centralidade do fe- como as tecnologias são apropriadas pelos artistas
nômeno artístico e na sua polêmica retórica. Com de forma crítica e lançadas como arte sob novas
“A Fonte”, Duchamp lançava um desafio ao campo condições conceituais que geram novas percepções
da arte. Não se tratava de, tão somente, mais um estéticas.
objeto de arte a ser enquadrado na normatividade Os artistas utilizam as ferramentas que histori-
do sistema artístico, mas, sim, de uma intervenção camente lhes são ofertadas, recorrendo a toda sor-
artística declaratória de que tudo, a partir de então, te de dispositivos disponíveis. O que observamos
poderia ser arte, se colocado na galeria. nos casos abordados acima é que a tecnologia é
Com a sofisticação das máquinas da indústria subsídio natural empregado na arte de seu tempo,
do início no século 20, a performance técnica dos seja como apropriação técnica instrumental para a
produtos poderia superar as obras de arte. Por isso, construção de poéticas visuais, seja como apropria-
Duchamp apenas assinava os artefatos industriais, ção artística crítica para a revelação de expressões
lhes concedendo espaço em galerias e exposições. desviantes. Aquilo que para o projeto industrial é um
No sentido de identificar coerência entre a arte e os ruído, a arte transforma em substância poética para
recursos tecnológicos contemporâneos, “A Fonte” fins artísticos.
é um bom exemplo de produto artístico tecnológi- Com a revolução digital, modificações sociais
co natural de seu tempo. O que ocorre é que, no e culturais foram aderindo aos modos de vida e as
contexto do Dadaísmo, as obras de arte só seriam expressões artísticas não ficaram ilesas à estes pro-
obras de arte se adentrassem à galeria, diferente do cessos. A defesa de certa “pureza” da arte frente
que Warhol propôs com as Brillo Box: que as obras as apropriações tecnológica realizada pelos artistas,
estivessem por toda a parte numa fusão entre alta revela que muitos agentes de decisão do campo da
cultura e cultura de massa. arte desconsideram a relação histórica entre arte e
Como um último exemplo, citamos “Global tecnologia. No contexto daquilo que convencionou-
Groove” (1973), de Nam June Paik. Com a presença -se chamar de cibercultura, a relação entre arte e
cada vez mais constante da cultura de massa na vida tecnologia reposiciona práticas culturais e sociais,
das pessoas, Paik instaura a videoarte no sistema mas, contudo, é mais um dos vários processos his-
artístico utilizando os dispositivos de seu tempo, mas tóricos da arte que tem nas tecnologias a substância
subvertendo seus usos, o que tem sido recorrente material e imaterial para a construção de poéticas.
em muitas obras de arte tecnológica. Revelar os ru- Com a combinação entre infosfera (dados imateriais
ídos das máquinas, ativa uma sensibilidade estética e ubíquos) e dispositivos (objetos físicos de tradu-

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ção de dados), a arte tecnológica utiliza estéticas compartilhou da dissolução das fronteiras existentes
próprias criando novas sensibilidades e instaurando na arte moderna, concorre para a obtenção de re-
um pensamento sistêmico, legado direto da internet, conhecimento entre as expressões localizadas após
suas redes e complexidades. o fim da arte, sendo a arte tecnológica, uma delas.
Assim, a arte tecnológica, inaugurada pelas
atividades artísticas de base tecnológica dos anos A relação entre arte tecnológica e os
1970, utilizando televisores e sendo qualificada museus
como “videoarte”, poderia ser considerada uma
modalidade de arte pós-histórica, bem como todas A não aceitação da arte de vertente tecnológi-
as expressões artísticas que não utilizam apenas as ca por parte dos museus mais tradicionais revela
ferramentas materiais e imateriais que foram utiliza- uma celeuma das mais alardeadas pelo campo de
das até a arte moderna. Danto marca em Warhol a estudos das estéticas tecnológicas. Ocorre que os
instauração de uma ruptura no campo da arte que museus de maneira geral construíram ao longo da
implode com o sistema como era conhecido por to- sua história um expediente que lhe confere a prerro-
dos e a partir de então, a percepção dos públicos gativa de selecionar aquilo que será item patrimonial
se reorganiza e se relativiza. e descartar aquilo que não lhe parece louvável e
Se, como vimos com Danto, a arte pós-histórica representativo da vibração de um determinado tem-
foi deflagrada a partir do esgotamento da condição po histórico.
histórica da arte e da crise de representação da Edward Shanken e Oliver Grau são expoentes
arte, culminando com a exposição das Brillo Box, da reivindicação feita aos museus tradicionais por
de Warhol, em 1964, poder-se-ia considerar váli- mais espaço e justo registro da salvaguarda da pro-
da a assertiva de que a arte tecnológica, que não dução artística de cunho tecnológico, principalmente
apresenta representações tradicionais, nem utiliza das expressões tecnológicas surgidas a partir do
suportes consagrados, está nos limites de uma arte quarto quartel do século 20.
pós-histórica. Outrossim, a arte pós-histórica não O sistema normativo da arte sempre teve certa
carece de manifestos, nem de filosofias de essencia- cautela com as tecnologias inovadoras no campo da
lidades, nem de regras mestras, como tínhamos na arte e da comunicação. Foi assim com a fotografia,
arte moderna. Contudo, é importante destacar que que sofreu por ser supostamente um dispositivo de
a condição pós-histórica da arte não está ancorada cópia do real, e, hoje, não há quem se oponha à
apenas na ideia de superação da “representação” e sua artisticidade. Entre opiniões, a fotografia está
dos “suportes” tradicionais, tendo outras modalida- consolidada enquanto dispositivo de produção de
des no seu rol. arte e isso demonstra como pode levar tempo para
Portanto, confirmamos que a arte tecnológica que uma determinada tecnologia seja abraçada pelo
está inserida na pós-historicidade que Danto (2006) campo da arte. Olhando para trás, parece natural
identificada como sendo “após o fim da arte”. Se, que a arte tecnológica leve certo tempo para ser
como afirma o autor, as Brillo Box, de Warhol, foram aceita pelos museus mais tradicionais, pois isso
o divisor entre a modernidade e a pós-modernida- ocorreu com outras tecnologias em outros tempos,
de, a obra de Warhol é o ponto final na condição como vimos nos casos apresentados no tópico an-
histórica da arte e tudo que veio depois disso e que terior.

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Examinando a linguagem de uma maneira ge- que constitui um alento perante à esse campo de
ral, podemos constatar que as ressalvas em relação estudos.
ao novo sempre se fizeram presentes na sociedade Se “os artistas são as antenas da raça” (Ezra
civilizada. A invenção da escrita, igualmente, so- Pound, 1934), ou são pessoas de “atenção integral”
freu rejeição, pois estar-se-ia colocando em xeque (Marshall McLuhan, 1964), somos levados a con-
a oralidade. O mundo civilizado que inaugurou-se, cordar com Lúcia Santaella: “neste momento histó-
dentre outros fatores, a partir da invenção do alfa- rico-antropológico, que alguns chamam de terceiro
beto fonético e do uso da escrita, foi a revolução ciclo evolutivo do sapiens sapiens, temos de prestar
necessária para os registros, e, por conseguinte, atenção no que estão fazendo os artistas que se
para o estabelecimento de uma narrativa histórica situam na ponta de lança da cultura” (SANTAELLA,
para a humanidade. Mais recentemente, mesmo nas 2012, p. 11). A partir desse entendimento, busca-
tentativas de inovação tecnológica experimentadas mos consumar essa metodologia, que consiste em
por empresas de tecnologia digital, como a Apple, observar a arte para entender sociológica e antro-
vimos que por ocasião da colocação no mercado do pologicamente a atualidade. Exemplos dessa meto-
inovador dispositivo tablet, os resultados só foram dologia não faltam no decorrer da história. Cristina
colhidos depois de um tempo. Evidentemente que Costa, em “A imagem da mulher: um estudo de arte
o tempo de hoje é acelerado e as mudanças não brasileira” (2002), desenvolveu um estudo sobre o
demoram a ocorrer. Seja na antiguidade, ou na atu- imaginário nacional em relação a presença feminina
alidade, o que evidenciamos é um jogo social entre na arte, utilizando como objeto de pesquisa as obras
aceitação e rejeição de inovações tecnológicas que de arte nacionais, demonstrando que a arte pode ser
tem nas curadorias dos museus o seu catalisador. instrumento de interpretação da sociedade. Portanto,
Certo medo sempre orbita nas transformações que certa rejeição por parte dos museus em relação a
guardam impacto sociocultural e isso não apresenta arte tecnológica contraria os autores supracitados e,
nenhuma novidade. ao invés de realizar uma aproximação, o que temos
Um fato polêmico neste contexto é o da diver- visto é um afastamento sendo feito pelos museus em
gência entre arte tecnológica e museus tradicionais, relação a arte tecnológica.
pois a produção de arte tecnológica não tem sido A instituição museal é um instrumento de ab-
absorvida de maneira razoável pelos museus de arte sorção de artefatos que são exemplares singulares
contemporânea ao redor do mundo. Deste conflito, de uma era, expressão simbólica e legado cultural e
emerge a preocupação por parte de alguns críticos social de uma época no contexto geral ou específico.
de que essa rejeição da arte tecnológica por parte Como espaço de poder, o museu tem seu expediente
dos museus mais tradicionais de arte contemporâ- de filtragem, eleição, silenciamento e consolidação
nea pode gerar um “vácuo memorial” a ser sentido dos artefatos que terão a função de servir de base
no futuro, deixando para as próximas gerações silên- para discursos museais, que reverberam na socie-
cios indesejáveis, pois esses não conhecerão boa dade e nos indivíduos.
parte da produção da arte contemporânea que teve No caso dos museus de tipicidade artística, a
início na segunda metade do século passado. Con- absorção dos artefatos se dá a partir da seleção
tudo, a arte tecnológica está criando um circuito com daquilo que é produzido e exibido por artistas em
produção, exposição, recepção e crítica própria, o espaços de fruição. Contudo, esse processo recebe

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a influência política de gestores e curadores que tem por ocasião da abordagem sobre os processos de
a tarefa de distinguir objetos artísticos selecionáveis, musealização. Imbuídos de um “poder simbólico”
de objetos artísticos descartáveis. Os métodos utili- (premissa de Pierre Bourdieu) a curadoria interfere
zados na eleição de um objeto artístico para a cate- nos processos museais,
goria de museável são tributários dos procedimentos
de aquisição, mas, também, das decisões tomadas “consoante classificação de uma especialidade
no curso de sua pesquisa, exibição e circulação. dotada, a ação do poder simbólico termina por
A curadoria é o ato decisivo que vai separar itens formalizar uma “distinção”, em conformidade
louváveis, de não louváveis, aquilo que vai ser com Bourdieu (1989, p.11-12), qual seja, uma
exibido, daquilo que será silenciado, o que vai ser posição que aponta para o critério da diferen-
digno de memorialização ao longo do tempo, e aqui- ça, evidenciando a marca da exclusividade que
lo que não vai ser arquivado, mas, sim, rejeitado. cada campo detém” (LIMA, 2013, p. 38).
Não podemos esquecer que a produção de crítica
acadêmica sobre as obras e os artistas também tem Esse “poder simbólico” de decisão está ancora-
sua função nesse processo de curadoria. do na institucionalidade estabelecida pelos museus,
Os processos museológicos de seleção e esco- permissão socialmente concebida ao longo dos tem-
lha da arte ocorridos ao longo da história, ganharam pos, mas, principalmente, no “capital cultural” que
a nomenclatura de curadoria, complexificando e so- gozam tais instituições e seus atores. Esse ferramen-
fisticando os caminhos percorridos por uma obra tal invisível é utilizado para a demarcação de “distin-
até a obtenção da chancela de patrimônio cultural. ções” entre itens musealizáveis e não musealizáveis.
Retomando historicamente os procedimentos curato- Então, retomando a análise da arte tecnológica,
riais, Priscila Arantes evidencia uma mudança impor- por muitas vezes, por sua característica efêmera, a
tante na curadoria, destacando os novos circuitos tecnologia digital é entendida como ferramenta de
que emergem da nova relação “após o fim da arte” destruição. Assim, algumas instituições julgam que
(DANTO, 2006). artefatos artísticos tecnológicos podem contaminar
um espaço “puro” como são alguns museus de arte,
“De fato, tornou-se recorrente, na história da signatários do axioma moderno de arte. A “pureza”
arte contemporânea e em diálogo com a pró- buscada e estimulada pela arte moderna não mais
pria prática artística que começa a transitar em habita a arte pós-moderna, ou pós-histórica, como
outros circuitos, curadores que desenvolvem queiram. Danto destacou essa busca pela pureza
exposições em locais inusitados, como fábri- em Greenberg: “Greenberg talvez tenha pensado
cas desativadas, igrejas, hotéis abandonados, na arte nesses termos, e encontrou no Surrealismo
rádios, espaços de publicidade, entre outros” algum tipo de regressão estética”. Segundo Danto,
(ARANTES, 2011, p. 2558). para Greenberg a pureza se conecta com a razão
aplicada a si mesma, sem preocupação com outra
São novas formas de seleção para novos am- coisa, a partir da ideia kantiana advinda da “Crítica
bientes de interação entre público e obra. Vemos da razão pura”. Os museus do novo milênio devem
como virtuosa a utilização de Pierre Bourdieu na conviver em sintonia com as expressões estéticas
análise realizada por Diana Farjalla Correia Lima tecnológicas sob pena de sucumbirem e isso pas-

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sa, primordialmente, pela relativização da ideia de selecionar itens que sejam fiéis representantes ma-
pureza da arte. teriais e imateriais de seu tempo. A arte tecnológica,
por sua característica fluida, busca outros espaços
Considerações finais que não os tradicionais para sua performance. Fruto
da era tecnológica digital, a arte tecnológica sofre
A partir dos argumentos em tela, evocamos a de uma rejeição conflituosa em relação a arte con-
prospecção de que as transformações em curso na temporânea mais tradicional, o que deve ser anali-
arte são um sintoma de acentuadas transformações sado e refletido pelos pesquisadores e críticos do
que estão provocando mudanças psíquicas, culturais campo. A seleção institucional dos museus, presa a
e sociais, interferindo de maneira contundente nos critérios modernos, não retém de maneira razoável
processos cognitivos e sensoriais dos sujeitos de a produção de arte tecnológica, tornando complexo
nossa época, que têm sido chamados de “nativos o campo museal e apontando para uma divergência
digitais”. Com isso, evidencia-se o crescimento da em relação à arte contemporânea mais tradicional.
permissão de uma maior diversidade social, cultu- Longe de tentar encontrar um consenso hege-
ral e estética. Os públicos, espectadores, usuários, mônico sobre a arte de nosso tempo (século 21), até
ou seja lá que nomenclatura tenham, ganham nova mesmo porque isso entraria em dissonância com a
condição na interação com as obras de arte na ideia de arte pós-histórica já desenvolvida no de-
conjuntura do século 21, onde a recepção da arte correr deste artigo, constatamos que a emergência
contemporânea obedece ao regime estético e con- das poéticas e estéticas tecnológicas compõe o rol
juga vida social tecnológica com percepção estética de predominâncias artísticas tributárias de uma era
tecnológica. tecnológica que se distancia da narrativa histórica
Por seu turno, a obra de arte adquire uma nova linear, com sua sequencialidade evolutiva e sua his-
condição com a liberação de regras que no mo- toriografia lógica. Se a história da arte está morta,
dernismo do século passado vigoravam em forma a arte tecnológica está viva e semeia seu caminho
de regime. Agora, a condição pós-histórica da arte em fluxos comunicacionais e estéticos interfaceados
permite que tudo possa ser arte, a partir da filosofia por dispositivos interativos que deixam marcas in-
da arte que se lança a refletir sobre os fenômenos deléveis.
artísticos. O caso das Brillo Box, de Warhol, é emble-
mático no sentido de sustentação da arte a partir da Referências
sua fusão com a cultura popular. As galerias deixam
de ser o único locus da fruição para que os trânsi- ARANTES, Priscila. Curadoria, arte contemporânea
tos artísticos estéticos ocorram na imageria (WU- e novos circuitos. In: 20º Encontro Nacional da
NENBURGER, 2018) social cotidiana. No contexto ANPAP: “Subjetividade, Utopia e Fabulações”.
da arte pós-histórica (pós-moderna) que se libera Rio de Janeiro. 27 set. - 1 out. ANPAP:
dos axiomas fechados do modernismo, a pergunta Associação Nacional de Pesquisadores em
“o que é arte?” é substituída pela pergunta “o que Artes Plásticas, p. 2551-2564, 2011.
não é arte?”
Como tudo pode ser arte, na era pós-histórica, ______. @rte e mídia: perspectivas da estética digital.
é evidente que os museus terão certa dificuldade em São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2012.

#17.ART • 17º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia • 2018 ISSN: 2238-0272


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