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i'hilqJ/W Articro,
F, u11et:',UJ Pc1olo Adorno
Judith F!cvcl
Mrnic1pc1olu Fimic111i
Jcc111 -Fra11cois Prnclcc1u
Marcos Marcionilo
[tradução]
EPISl'EME
ISBN: 85-88456-25-7
de
a
com a filosofia universitária e com algumas formas
engajamento direto e de militância impedissem, de uma
a
vez por todas, de conferir ao percurso foucaultiano
o
dignidade de um pensamento. A menos que o term
sar
"pensamento" não sirva, por sua vez, para lhe recu
a outra dignidade que é a da filosofia.
Que ninguém se engane. Certamente, desde ·m uito·
o
cedo, alguns comentadores preferiram adotar o term
in Dits et lcrits
l. M. Foucault, "Usages des plaisirs et techniques de soi",
IV, p. 545, Paris, Gallimard, 1994.
66 Judith Revel O pensamento vertical: uma ética da problematizaçao 67
"percurso"\ a fim de afirmar, apesar da oposição de militante e engajado - das prisões ao movimento gay
todos, a coerência essencial da pesquisa foucaultiana; e - , que, tendo rompido com o estruturalismo, extrapola
não é menos verdadeiro que o fizeram administrando o quadro da análise dos discursos para se interessar
no interior da cronologia dos escritos urna divisão bem pelas práticas e pelas estratégias, passa da arqueologia
precisa: a divisão interna parece na realidade o único para a genealogia, lança as noções de disciplina e de
meio de se opor à censura da dispersão. E assim nos controle e depois - mas aqui se trata de um verdadei-
encontramos diante de um Foucault que muitos ensaios ro ultrapassar? - de biopoder e de biopolítica, e tra-
de literatura crítica, depois, acabaram por construir: balha essencialmente eE.1 U_JTia analítica do__, poder; por
não um autor, mas três, ou até mesmo quatro - cada fim, um Foucault dos anos 1980, fundamental mente
qual com seu próprio quadro de referência e de perten- interessado pelos processos de .s ubjetivação e pela
ça, seus campos de interesse e seus eventuais emprés- redefinição de um modelo ético no quadro do que ele
timos, sua terminologia específica e suas aporias. nomeia de uma "ontologia crítica da atualidade", e que
Haveria, portanto, um Foucault anterior a Foucault, não hesita em redefinir seu trabalho como um "jorna-
da "Introdução" a Binswanger e de Doença mental e .. lismo" filosófico ou como uma problematiza ção histó-
personalidade, do fim dos anos 19503, cujo horizonte rica do presente.
é ainda essencialmente fenomenológico; depois, um
O que choca aqui é, na realidade, a extrema dificul-
Foucault definitivamente emancipado de sua formação
dade de justificar cada uma dessas passagens. Lembre-
inicial e que não apenas es<::reve a História da loucura
mos ~ue no momento da publicação de As palavras e
em 1961, mas que, no ano seguinte, modifica profun-
as coisas, uma das censuras mais recorrentes formula-
damente e rebatiza seu texto sobre a doença mental";
das,.co~tra a noção de episteme referia-se justamente à
um Foucault dos anos 1960, que publica seus primei-
ausenc1a de uma verdadeira análise da ruptura epistêmi-
ros grandes livros, lança as noções de arqueologia, de
ca, do deslocamento de uma episteme a outra. A mes-
episteme, de ordem discursiva e é completamente as-
sociado ao estruturalismo e à antipsiquiatria, à nova crí- ma censura poderia ser feita a essa leitura ao mesmo
tica e à influência (sucessiva ou simultânea?) de Nietzsche, tempo cronológica e divisória da produção foucaultiana·
de Bataille e de Blanchot; um Foucault dos anos 1970, é. cert? que a divisão .p ermite manter uma aparência d~
lmeandade no corpus, mas ao preço de uma ausência
2. Cf. H. Dreyfus e P. Rabinow, Michel Foucault. Un parcours philosophique, ~uase t~t~ de transições, e pelo jogo de uma simples
Paris, Gallimard, 1984. 1ustap~s1çao das fases da pesquisa segundo a ordem de
3. M. Foucault, "Introduction", in L. Binswanger, Le Rlve et l'existence sucessao de seu desenvolvimento.
(trad. J. Verdeaux), Paris, Desclée de Brouwer, 1954, pp. 9-128, retoma-
do in M. Foucault, Dits et écrits I, pp. 65-119. A esse respeito, permito-
A ~ipótese q~e gos~arfamos de propor aqui é, ao
me indicar meu "Sur l'lntroduction à Binswanger", in Luce Giard (ed.),
Michel Foucault. Lire l'oeuvre, Grenoble, Jérôme Millon, 1992, pp. 51-56; c~nt~áno, a. seguinte: linearidade, continuidade , coe-
sobre a idéia de um "pré-Foucault", ver igualmente P. Macherey, "Awc renc1a e u~1dade não são termos equivalentes. Desse
sources de l'Histoire de la folie", Critique, n. 471-472: Michel Foucault: du ponto de vista, é _se~ dúvida significativo que o próprio
monde entier, Éd. De Minuit, agosto-setembro de 1986, pp. 753-774.
4. M. Foucault, Ma/adie menta/e et psychologie, Paris, PUF, 1962. Foucaul~ tenha indicado o pivô da única verdadeira
ruptura intelectual que reconhecia para si na leitura de
69
Judith Revel O peruamento vertical: uma ética da problematizaçilo
68
senta o ponto cego de As palavras e as coisas, ou seja, c;sbQçg_de _um .projeto, um parentesco ~ngíveJ22. Cada
o que se recusa à dupla classificação moderno de ciên- um dos escritores de que Foucault se ocupa representa
cias do homem e de ciências dn nahucza; assim como em si mesmo um mundo, mas um mu nd0 que ~ão
se recusam a ela, enfileirados nos escritos de Foucault apenas não declara, em moment:o algurri, a conscaen-
dos anos 1960, Sadc, Hõldcrlin, Nerval, Fluubcrt, cia que ele tem de si mesmo (Roussel ~ Roussel por
Mallarm~, Joyce, Kafka, Bataillc, Artaud cto. E como, aco,o ou dt1tmp1nha conaci,nt,m,nt, o acaso do en-
por sua vez, a ela se recusarão, em uma cxistencia nlo contr~ das palavras contra a ordem de discurso estabel~
mais apenas reduzida à produçlo de uma fala cxtraordi- clda?), mas que elimina toda possibilidade de definir
ndria (d la l,ttrw: fora da ordema do discurso), que se ma, um espaço qualquer de intersubjetividade - em uma
amplia para prdticas e estrat6gias de exlst8nch1, Pierre só palavra, um11 comunidade, mesmo estando ela redu-
Rivi~rc, Hcrculine Barbin e todos Oll "homens infamea" 21 zida a sua mais simples expressão. ~ ~•casos" liter4rios
que ASsoinbram na d~cada seguinte 01 arquivo• que sl!t_scm dt',vidn eYcntsll ainaulo.ros, ou seje, extraordimi-
Foucault examina meticulosamente. ili>J; JJW..do,.ta.l~m, , mais-banalmente - e sem dúvida
Voltcm03, cntlo, ao problema suscitado pel11 rela- ff)lif tngicamentc -: , "casos" individua.ia..scm CCCQlllPO-
çlo do dcsconUnuo e da unidade. Nlo h• d\lvida de ~'i.çlo possível, isto ~. frug11)Sntos, de solidAo. Essa impos-
que o que motiva, no fim do., anos 1960, o abandono sibilidaded e sair da dimensão individual ~ de tal modo
do campo de peaquisa filOllóftca que a literatura repre- via(vel que Foucault acaba por se ocupar, bem no fim
senta para Foucauh 6 a impoasibilidade de rcco1npor, clot anos 1960, de "casos" que cruzam a literatura com
a partir da descontinuidade extren1a dos "casos" algo a esquizofrenian: ora, no campo da escrita psicótica, a
que, para al~m de sua dimcndo pontual, se 11ssemo- impoaibilidade da unidade com o exterior 6 redobmd11
Jhaue a uma unidade: _µma coerencia tnmsversal, o
-
tarde ulln1lar, em SpblOII como "um pl1no do lmunenola": "Ao co11-
l:ri.rio, um plano de lmantncla nlo dltpõcl do 011111 dh11e11110 1u1llemontar:
por uma impossibilidade ainda mais profunda, que 6 a
da deaagregaçlo intcma do eu falantc. ju ct.o_~ solidao
da fala II cislo íntima do sujeito: a dcscontinuid~ a
o pl'OttllO de compoalçlo ~ 11Cr 1prtndldo om 11 mc1mu, 11lr1~1 du ~•peraGo atingiram o patol6gico2\
que ele cU, nequllo que ele cU. t um pl•no dei cum1lo1lçlo, nlo de
orpnl~lo 1wm do daenvolvlmcmto" (C, Otileu10, Splnora, l'hl/otot,hlt
pn1tltfw, Pari., PUP, 1970; «liçlo 1mpll!Kll I mod1ne•d111P11rl1, tdlllo1u 22. Pennlto-m1, acerct dlaao, reinoter a meu "Fouc111lt cl lll ll~l'lll\ll'tl'
de Mloult. 1981. p, 172), T•nlo cm ~buc:ault corno em Oelouae, f 11 ~~~~•une dlaparltlon", Lt 04Nt, n. 79, Parla, Calllmaro, m•~lnll
compoMÇlo que 11at>1 • Ofde.m ■o N N!CUNr • 011 1 e que produa o "1:1110",
21. Cí. M. Foucault, ~l,. vlt d11 homn,,a ln,-11111", lM C11hl1ra du n. cr., t>Or exemplo, Q bc,ltaalmo ~klU q110 ~011(11\lll conaaara • Jc.11-
rlwtmn, n. 2'i, U de l•ntlro de 1977, pp. 12-29, rtlmpro110 om 01ft ,1 Plorrc 8rluot, "Sept propoa nu lo 11ptltlmc •nao", ln J,..P, 8rl111t1t, w
I"'"'"'"'" loci4Jut, P1rl1, 'lehou, 1970, pp. 9-57, rohnpl'tll<l cm Uita tt
krjt, Ili, PP· 2J7-2J). f'olK!ault O r10t11 "Vldaa breve,, l'ffllOOlllradaa 10
lflllO em llvroe • doc11mc11101. F.nmf)/11, 11111 - dlfarcnlemenle daquilo
qut oe _.bl0t rHOlhl•m 110 curto do 1\1111 leltur11 - llo extmploa que
'°"" li, Pll, l 3-2S.
24, Sobrt1 11 problema du vatulótlluo como llmlt. d. wnttdo do ru tma
ltu4ím nwnoa l!ç6ot aobu, 11 quel1 meditar que efeltoe brme cuj1 Corç doa qu1droa rt1ttltlvoa d11 nrde111 do diacul'IO cf, G. Dclcmae "~ 1
1
11 t1lbit111 qtWe htltdillanttnte" (p, 2)7) - como " oa "~•tot" con• 'M>llion ou lc procod6", 111 t.'ritlqut tt ollnlftut, llaril, ltd. de Mlnl;lt. l~)s
1ltti...11 pnclurn,nlt lllNI dim,11110 pal'ldoul d• ,ampla nlo flXOtfl• O ~xlo \111\..mlldtdo • tthnp~o pu'llalmonte modlflc11d1 do p,.,,fiel~
piar•, !tio •• de •lntularldadea •beolutu •• nlo obt11nlt, re1l1 ("Eu qul1 •o vm l • , Wolfaon, l..t 110h1.t0 ti '" ld111u•, Plrla, (lllllimard l 970
que t0 lf..,_ 11mprt ele alettnclq mlt", lbld,, p, 239), que Dolcmao lnlltul1n1 "ltual de achlaolotlo", lu modlflea~ ll~ ~,~
ol1hmmte o t'tConhetlmonlQ, li 111111.e vlnh! 11no., do distlncll,, do uma
7H Judith R11'fll OP•""""'"'º wrtlca/: uma 1/lca da probltmal/1.aç/10 79
Estumos, pois, diante de mn impasse. Nl:lo obstante, relações (e quais?) podem se compor diretamente para
dois elementos vl\o intervir entre o firu dos unos 1960 formar uma nova relação mais 'extensa', ou se os pode-
e o início dos anos 1970, relançando no mesmo mo- res podem se compor diretamente para constituir um
vimento, de maneira cxtrnordinárin, u nnálise foucaultin- poder, uma potência mais intensa. Não se trata mais
na. O primeiro, pmamcnte teórico, é n publicação quase de utilizações ou de capturas, mas de sociabilidades e
simulltlneu, cm 1969 e l 970, de Lógica elo sentido e de comunidades. Como os indivíduos se compõem para
Diferct1çt1 o rupetição, ele Gilles Deleuze 25, nos quais formar um indivíduo superior, ao infinito? Como um
Foucault consagra um formidttvel urtigo em Critiqu,26• ser pode tomar um outro cm seu mundo, porém con-
O1 gue evidentemente choca -Foucault no discurso servando ou respeitando as relações e o mundo pró-
.
clcleuziano é a tentativa de definir um estatul'o ela di- prios? E a esse respeito, por exemplo, quais sito os
firençct qúescja precisamente a articuluçllo clu desconti- diferentes tipos de sociabilidade7"27 Dif-rença e repeti-
noictaãc com ã7mifülclcÇ( lii singularidade con;-~i- çao só fuz oferecer a reformulação teórica contemporã-
mensl1o do "comum" - em síntese, que se opõe simul- nea do problema spinozista da multitude: "Só fultava
l111Te8TilcTITc1\"S figu ras da ultcridaclc , como variante do ao spinozismo, para que o unívoco se tomasse objeto
nwsrno(aclêsrãiu ocomo inclusfo, pala razao, de seu de afirmação pura, girar n substftncia em tomo dos
outro: o espaço ela altcridude é ao 11~ 10 ten1P,o ad- modos (... ). A univocidade significa: o que é unívoco é
ministmao-no seiõêlaquílõ cõntru que ele ~ definido, e o próprio ser, o que é equívoco é o que dele se diz.
nifidarhenre circunscritO em Ümà relação de <lcrivaçüo Exatamente o contrario da analogia. O ser se diz nas
de sentiao TniCõ) e às figurus da singularidade como formas que não rompem a unidade de seu sentido, ele
_ -puros exerc(ç_Los .de..s.olidf!o. - - -· se diz em um só e mesmo sentido atnl~ de todas as
suas formas - por isso opusemos ~s categorias noções
O ponto de partida de Deleuze é uma referencia
de ?utra m1t.ureza. Mas aquilo de que ele se diz difere,
evidente a Spinozn: "Mas, agora, trata-se de saber se as
aqmlo de que ele é dito é a diferença em si mesma.
NUo é o ser nn4logo que se distribui nas caregorias e
11ltamAliv11 fundamcnt11I: ou II crrtic11 (isto 6, 11 possibilid11dc de recompo- reparte um lote fixo aos entes, mas os entes ~ rtptirttnn
,içllo e de artic11l11çao d11 subietivid11de fAl11ntc em um c:oniunto que
"Otcuc c:omunid11dc"), ou ll c:l(nlc:11 (isto 6, 11 dcsagreg11çao plllológica do no •spaço do ~-.r unívoco aberto por todas as fom1as. A
cu fiiltmte). A lomAdll de consclenci11 de Dclcuze 6 m11is hudh1 que II de aberhmJ pertence essencialmtnht e) univocidade"is. A
l•buc1mlt. E11qu11nto os dois volumes de C,1pitalia1110 , 1,quiio(rt11ia, substancia spinozista é para Deleuze o conjunto d"
.escrilos em col11borAçllo com F61ix Ou11tlllri (O anti-ldipo, em 1972, e
Mil piai&, cm 1980) aind11 traiam da esqui1ofreni11 como fom,a eminente ~11o~os •m s1~a difertnça; 1nelhor: é preciso preferir à
de desordem e de descontinuid11de - o que Deleuze e C1111ttari chamam 1dé1a de umdade, necessariamente redutora porque
de "m4quinas de guerna" - , Foucault 11b11ndo1111 esse tipo de hipótese fechada, a de univocidade como coe~ncia a~rta.
desde o início dos anc» 1970.
25. C. Delcu11e, Losiqu, du 11111, P11ris, ltd. de Minuit, 1969; Di/flrtnct A refc~ncia a Spinoza nilo aparece cm Foucault.
,t ~pitit/011, Paris, PUF, 1970.
26. Mlchel Foucault, "The11trum philc»ophicum", Critique, n. 282, no- Mas nno há dúvida de que a amfüse dcleuziana provo-
vembro de 1970, pp. 885-908, republicado cm Dits ,t krlts li, pp. 75-
99. Sobre o t-cxto de Foucault, cf. J. Rcvcl, "Foucault lcctcur de Deleuze: 27. C. Dcleuac, Spinwu, Philoso#)hi« ptotiqu«, op, eit., p. 169.
de l'6cart la la di1T6rence", Critiqu,, 11. 591-592, agosto-setembro de 1996. 28. C. Oclcu,c, Oi~,.,tt1t tt r#p#tition. op. dt., p. 188. Grifu meu.
80 fudith Revel O pensamento vertical: uma ética da problematização 81
ca pela primeir a vez nele o registro em palavras do ler os "casos" que o fascinam?; como pode haver um
problem a que assombra suas pesquisas há mais de dez discurso filosófico sobre os acontec imentos ?; como se
anos. "Pe!}semos na diferença. Geralme nte. se a analisa pode falar ·filosoficamente do descont ínuo?). Trata-se,
como a diferenç a de algo ou em algo; por . trás dela, na realidade, de redefinir uma ontologia "onde o ser se
alé':11 ?~la, mas para dar-lhe suporte, dar-lhe um__l!!gar, diria, do mesmo modo, de todas as diferenças, mas só
delimita-la e, portanto , dominá-la, põe-se, com o con- se diria das diferenças" 31 •
ceito, a unidade de um ênero ue ela parece fracionar
_em espécie s (domin ação orgânic a o · conceit o Por fim, os temas da descontinuidade e da diferença
aristotélico ; a diferença toma-se então o que deve ser geram em Foucaul t um último tipo de análise, que só é
es ecificad o no intenor tematizado nos últimos anos de sua pesquisa, mas que já
conceito , sem transõorcta:r
,para além dele" 29: o que pedimos ao pensam en o de se faz presente em filigrana no texto de 1970 consagrado
Foucaul t é precisam ente que dê conta de sua própria a Deleuze . Trata-se da noção de problematização.
unidade como fundo das diferenças que nele atuam. Com efeito, nos dois últimos anos de sua vida,
Tratamo s o exercício do pensam ento como se se tratas-
se da produçã o de um conceito30• Ora, o que Foucaul t
busca, ao contrári o, dizer é que, mais que buscar o
1 Foucaul t utiliza cada vez mais freqüen temente o termo
"proble matizaç ão" para definir sua pesquis a. Por
"proble matizaç ão" ele n_ã o enlende a re-prese ntação
comum sob a diferença, é necessário pensar diferencial- de um objeto preexístente nem a criação pelo discurso
mente a diferen ça, quer dizer, restitui r-lhe uma de um objeto que não existe, mas o "conjun to de prá-
positividade que lhe é própria e, em uma virada que vai ticas discursivas ou não-discursivas que faz algo entrar
contra toda lógica clássica, dela fazer o fundo do co- no jogo do verdadeiro e do falso e o constitu i como
mum. O desafio se toma por isso mesmo considerável objeto para o pensam ento (seja sob a forma da reflexão
e ultrapassa de muito nosso simples problem a de parti- moral, do conheci mento científico, da análise política
da (como ler Foucault?; ou ainda: como Foucaul t pode ~tc.)" 32 • A história do pensam ento se interessa por ob-
1etos, por regras de ação ou por modos de relação a si
29. M. Foucault, "1n_eatrum philosophicum", Dits et écrits II, pp. 87-88. à medida que os problematiza: ela se interrog a sobre
30. A crítica do conceito como totalidade fechada na realidade não é
nova: baste-nos pensar no Wittgenstein das Investigações filosóficas e no
sua forma historic amente singular e sobre a maneira
deslocam ento que ele opera: a idéia de "semelha nça familiar" com que eles represen taram em uma época dada certo
wittgensteiniana entre jogos de linguagem é na realidade a exata formu- tipo de resposta a certo tipo de problem a. Foucau lt
lação do que pode ser um conceito· "aberto", isto é, ao mesmo tempo
recorreu à noção de problem atização para distingu ir
coerente e irredutível à unidade. Wittgenstein, como Spinoza, jamais é
citado por Foucault, mas o problema da "política da citação" do filósofo radicalmente a história do pensam ento, ao mesmo tem-
mereceria, somente ela, uma pesquisa complexa. Portanto, acrescentemos po, da história das idéias e da história das mentali da-
simplesmente um terceiro nome à lista dos filósofos cuja ausência, para-
des. Enquan to a história das idéias se interess a pela
doxalmente, faz sentido: M. Merleau-Ponty. Há no último Merleau-Ponty
(de Signos a A prosa do mundo) a tentativa expHcita de definir a articu- análise dos sistemas de representação que subjaze m, ao
lação do singular e do comum ou, em outros termos, da diferença e da
unívocidade. O conceito de que Merleau-Ponty se serve é, desse ponto 31. lbid., p. 91.
de vista, revelador: é, mais uma vez e muito antes de Deleuze aplicá-lo 32. M. Foucault, "Le souci de la verité", Magazine littéraire, n. 207, maio
a Spinoza, o conceito de "expressão". de 1984, republicado em Dits et écrits N, pp. 646-648.
o pcnsam, nto v,rtical: uma Mica da probl,mati%açao 83
Judith R.vel
82
revelaram, segundo esse ponto de vista, um impasse. senciais: por um lado, trata-se de sair da ordem estri-
Mencionávamos acima dois elementos que relançaram tamente discursiva (de fato, a partir dos anos 1970,
a formulação do problema da descontinuidade bem no Foucault se interessará não apenas pelos discursos, mas
início dos anos 1970. O primeiro é evidentemente a também pelos saberes, pela estratégias e pelas práti-
leitura de Deleuze. Mas o segundo é de natureza com- cas); por outro, é necessário reformular o problema
pletamente distinta: é a participação no Grupo de ln- não mais no nível estritamente individual dos "casos",
formação sobre as Prisões· (CIP), ou seja a descoberta mas no nível, bem mais difícil, da ação coletiva. Assim
de que uma prática de resistência, longe de ser o resul- como a unidade não é o unívoco, o individual não é
tado da partilha de diferenças singulares e isoladas (os o singular: só ao .preço dessa distinção é que podemos
"casos"), é, ao contrário, aquilo que pode produzi-las. sair da aporia "literária".
Não é preciso buscar na agregação de sujeitos falantes A segunda tem um alcance indubitavelmente maior:
ou atuantes a causa ou o fundamento de uma comuni- cada reformulação teórica, isto é, cada nova problemati-
dade, mas descrever a maneira com que a prática co- zação está fundamentalmente ligada, em Foucault, a
mum - seja ela linguageira ou política - produz
uma prática, quer dizer, a um engajamento na atuali-
subjetividades da diferença, ou seja, existências
dade. Temos uma dupla confirmação desse mecanis-
irredutíveis à linearidade e à normatividade da ordem
mo: por um lado, a presença no percurso de pesquisa
estabelecida. O comum tem de diferente em relação ao
de Foucault de um certo número de experiências que
consenso o fato de não se tratar de um fundamento
atuam como "detonadores" do pensamento: a estada
dado: ele é uma produção37 •
em Sainte-Anne nos anos 1950, o GIP nos anos 1970,
Podemos tirar duas conclusões de tudo isso. A pri- a revolução iraniana no fim dos anos 197038, o proble-
meira refere-se ao próprio movimento do pensamento ma da homossexualidade (isto é, dessa estranha relação
de Foucault. Enquanto, em um filósofo como Deleuze, com o mesmo que não é um: nisso ainda se encontra o
a elaboração teórica de conceitos exige ser aplicada ao tema da diferença jogado contra o da identidade) nos
real - o conceito de diferença precede sua eventual anos 1980. Poderíamos até levar a hipótese mais longe:
utilização prática -, em Foucault, são a prática e o se é a prática que dá conta das "passagens" foucaultianas
engajamento na atualidade que geram, ao mesmo tem- ou seja, da descontinuidade coerente do pensament~
po, a problematização filosófica e o instrumental concei- ~e ~ou~~ult a _contrario de uma leitura divisora cujos
tua} que decorre disso. A experiência política do GIP hm1tes Ja mencionamos, não se pode dizer o mesmo da
permite, por exemplo, reinvestir o velho problema teó-
rico da transgressão efetuando dois deslocamentos es- ~8. !?uanto a esse ponto, seria preciso fazer um discurso complexo que
mfehzmente não podemos encarar aqui. É evidente que a reformulação
37. A distinção é, por exemplo, fundamental para a compreensão do mal- da r~lação com o político (isto é, a problematização do comum como
entendido que está no núcleo do debate - abortado - entre Foucault multitude de singularidades resistentes) sob a forma de uma ética deriva
e Habermas, no início dos anos 1980. Ver, a esse respeito, H. Dreyfus em grande _parte da reflexão que o episódio iraniano suscita em Foucault
e P. Rabinow, "Habermas et Foucault. Qu'est-ce que l'âge d'homme?", - em particular, por meio da problematização das noções de resistência
Critique, n. 471-472: Foucault: du monde entier, op. cit., pp. 857-872. e de ~ublevação. Quanto a esse ponto, cf. os numerosos textos sobre
0
Irã reimpressos em Dits et écrits III.
O pensamento vertical: uma ética da problematização 87
Judith Revel
86
mudança. Enfrentar a questão da atualidade significa,
velha questão das passagens de uma episteme a outra? pois, definir o projeto de uma "crítica prática na forma
De fato; esse é o tipo de análise ao qual Foucault teria de transposição possível"41 • Lá, o termo utilizado por
recorrido para explicar, por exemplo, a passagem à Foucaúlt ainda é "diferença". Enfim, tudo isso só é pos-
biopolítica pelo nascimento do liberalismo no início sível porque nós pomos em jogo o pensamento filosófico
do século XIX, ou quando ele insistir na noção de na ~tualidade - o famoso "jornalismo filosófico" de que
governabilidade: é-se sempre tomado em uma prática Foucault gostavá de falar - e por meio da atualidade.
de si e dos outros, e é a mudança dessa prática que Haveria mais bela definição de prática que esta?
produz efeitos de verdade, quer dizer, deslocamentos
ou rupturas epistêmicas. Kant não busca entender o presente a partir de
uma totalidade ou de um acabament o futuro. Ele busca
A outra confirmação vem de uma referência extre-
uma diferença: trata-se, mais uma vez, da busca da
mamente presente na reflexão foucaultiana dos últimos
diferença que caracteriza não apenas "a atitude da
anos, que o filósofo faz ao texto de Kant, "O que é o
modernida de", mas o ethos que nos é próprio, quer
Iluminismo?" 39• No centro do texto de Kant, há o pro-
blema da atualidade como marca de passagem à dizer, a problematização filosófica. A filosofia só é uma
modernidade. Para Kant, pôr a questão da pertinência ética à medida que ela se dá como pensamen to da
a sua própria atualidade é - comenta Foucault - diferença ou ainda, o que dá no mesmo, como pensa-
interrogar essa atualidade como um acontecimento cujo mento do comum. E, da mesma maneira, a extraordi-
sentido e singularidade é preçiso exprimir, e pôr a nária coerência do pensament o de Foucault só se dá
questão da pertinência a um "nós" c~rrespondente a no ~sco de si, ou seja, na coragem da problemati zação
essa atualidade, ou seja, formular o problema da comu- contínua de sua própria posição. "Acreditava afastar-se
nidade da qual fazemos parte. Reencontramos, portan- e se encontra na vertical de si"42 : a coragem e a digni-
to, os temas que já ressaltamos: acontecimento, singu- dade do filósofo é essa verticalida de.
laridade, comunidade. Mas é preciso também entender
que, se retomamos hoje a idéia kantiana de uma
"ontologia crítica do presente", é não apenas para
compreender o que funda o espaço de nosso discurso,
mas também para delinear seus limites. Assim como
· Kant "busca uma diferença: que diferença ele introduz
hoje com relação a ontem?""°, devemos, por nossa vez,
buscar resgatar, fora da contingência histórica que nos
faz ser o que somos, possibilidades de ruptura e de
39. O índice dos DitJ et écrits permite destacar 12 ocorrências entre 1981
e 1984.
40. M. Foucault, "What is Enlightenment7", DitJ et écrits, IV, pp. 562- 41. Ibid.
578. Grifo meu. 42. M. Foucault, "Usages d l ..
es P a1S1rs et techniques de soi", op. cit.