Você está na página 1de 58

Para as Madres e para as Abuelas da

Praça de Maio.

Para Haydeé Fernández (Em memória),


Ana Romay, Elsa Drucaroff, Cecilia Pavón
e Aída Bortinik (Em memória).
Nota da autora

Em 2005, vivi em Buenos Aires. Durante essa curta


– porém intensa – experiência, um dos aspectos da
cultura argentina que mais me marcou foi compre-
ender como os argentinos, de todas as classes so-
ciais, idades e regiões do país, lidam com a questão
da memória coletiva e das múltiplas histórias acerca
da ditadura militar que o país viveu entre os anos
1976 e 1983. Talvez essa seja nossa principal dife-
rença. Arrancaram de nós, brasileiras e brasileiros,
o direito à memória. O povo argentino, no entanto,
conhece seus traumas e a importância do não es-
quecimento. Em Buenos Aires, ouvi pela primeira
vez a expressão terrorismo de Estado. É assim que
movimentos sociais, estudantes, professores uni-
versitários, grupos de defesa dos Direitos Humanos,
jornalistas, escritores e intelectuais nomeiam o ge-
nocídio organizado pelo regime militar. Uma ca-
tástrofe histórica ainda muito recente, assim como
as catástrofes brasileiras, do passado e as atuais.
Na Argentina, milhares de pessoas foram presas,
torturadas e assassinadas, centenas de crianças sobrevivente da ditadura militar em seu país: “So-
foram sequestradas pelo Estado, houve persegui- mos também sobreviventes da repressão. Perdura
ção e censura a jornalistas, intelectuais e artistas, em nós a memória e estamos eticamente obrigados
totalizando um número estarrecedor de 30 mil de- a defendê-la, a nos reencontrar com ela, ainda que
saparecidos políticos. O trabalho de reescrever a seja doloroso. Tive a possibilidade de sobreviver.
história a partir do testemunho dos sobreviventes, Levo comigo a obrigação de não esquecer.”
das narrativas dos familiares dos desaparecidos e
da literatura é uma tarefa incansável e cotidiana. Este não é um livro sobre o Brasil, embora talvez o
Os textos que compõem o livro e que abordam te- seja, já que a escrita é uma espécie de jogo de espe-
mas variados – e não apenas a memória da ditadu- lhos. O que podemos ver refletido nestes textos para
ra militar – foram escritos entre 2014 e 2015, alguns além da história argentina? Meu desejo é que possa-
anos antes da chegada de Jair Bolsonaro ao poder. mos aprender com os argentinos algo tão urgente e
A partir de 2019, instalou-se no Brasil um projeto essencial: jamais esquecer, sempre se lembrar.
ultraliberal de desorganização social, econômica e
política. A ideologia fascista desse grupo ataca sis- Por último, gostaria de agradecer à minha amiga que-
tematicamente e de forma abominável nossa me- rida Silvia Renzetti, com quem morei em uma resi-
mória coletiva. Ao negar fatos históricos e pregar dência estudantil, na rua Bolívar, bairro de San Telmo/
o retorno da ditadura militar e do AI-5, o governo Buenos Aires, em 2005. Silvia realizou uma pesquisa
Bolsonaro agride a democracia, os diretos huma- sobre as crianças desaparecidas durante a ditadura.
nos, a Constituição e a história do país. A tarefa de Tive o privilégio de acompanhar de perto seu trabalho.
lembrar, testemunhar, narrar, escrever e reescre- Essa convivência afetou minha vida, meu pensamento
ver as histórias é ainda mais urgente. O relatório da e, consequentemente, minha escrita.
Comissão Nacional da Verdade traz uma citação de
Universindo Rodríguez Díaz, historiador uruguaio e Flávia Péret
Ida19

Instruções para carregar malas pesadas  20

Golpe de sorte 21

Ambiente climatizado   23

Cartão-postal25

Big Bang From My Heart  26

Casa tomada  29

A espuma dos dias 30

História oficial 1   38

Acidente geográfico  39

Instruções para montar mapas,


cidades e quebra-cabeças40

Sobre as pessoas que provocam medo 41

Formas de extravio  42

Cidade partida 47

Sob neblina, não ultrapasse  48

As marxistas também usam minissaia 49

Jesus te ama  52
Um corpo 53

História da sexualidade  55

City tour  58

Fantasmas  59

Rituais61

Respiração artificial 62

Mama, yo quiero un novio  63

É isso um homem? 64

Arquiteturas coletivas  65

A la mierda 67

Anotações68

Aguante los pibes 69

História oficial 2 71

Errata74

Os ofícios terrestres   75

Língua menor 76

Las Malvinas son argentinas  77

Cenas de um casamento argentino  79


Santíssima Trindade  80

Cumbiera intelectual 81

Contra o silêncio   83

Made in Brazil  84

Conexão aeroporto 85

Sueño de Amar 86

Imanência87

Lição de resistência 88

Hecho en Buenos Aires 89

Hermanas90

Belleza y Felicidad 96

Ponto cego 98

Anticartão-postal  99

Volta100

Pós-escrito ou a última pergunta 101

Posfácio por Paloma Vidal 105


Tudo que pode ser imaginado pode ser
sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos
sonhos é um quebra-cabeça que esconde um
desejo, ou então o seu oposto, um medo, ainda
que o fio condutor de seu discurso seja secreto,
que suas regras sejam absurdas, as suas
perspectivas enganosas e que todas as coisas
escondam uma outra coisa (...). De uma cidade
não aproveitamos as suas sete ou setenta
maravilhas, mas as respostas que nos dá a
nossas perguntas.

As cidades invisíveis, Italo Calvino


Ida

No livro Uma breve história do tempo, Stephen


Hawking explica que, quando um corpo se movi-
menta, a força que atua sobre ele provoca um des-
locamento que afeta a curva de espaço-tempo do
universo. O contrário também acontece, a curva de
espaço-tempo influencia a forma e a intensidade
como os corpos se movimentam. O ônibus saiu do
Brasil há dois dias. Desloca-se a 80 quilômetros por
hora em direção ao futuro. Dentro dele, 42 pessoas
afetam-se por coisas tão minúsculas, nosso mínimo
múltiplo comum. Toda viagem é uma fuga? A mu-
lher da cadeira 27 comprou apenas a passagem de
ida e uma mala grande com fundo falso.

21
Instruções para carregar Golpe de sorte
malas pesadas 

Era verão. Fazia um calor insuportável. Os telejornais


Em situações de sobrepeso, o equilíbrio da mala anunciavam que a onda de aquecimento permane-
torna-se complicado. Nesse caso, a estratégia está ceria até o fim da semana, um fenômeno climático
em desfazer-se do excesso, assim como das frases. bastante comum em Buenos Aires, conhecido como
“golpe de calor”. Eu estava confusa, já que não sabia
muito bem por que tinha decidido viver em outro
país, abandonar emprego, casa, amigos, família. Pas-
sei os primeiros dias de janeiro tentando compreen-
der o sentido das minhas decisões, procurando uma
explicação lógica nos acontecimentos aparentes, mas
também uma explicação oculta nos acontecimentos
incompreensíveis.

Um dia, depois de sair da linha vermelha do metrô,


decidi fazer o restante do percurso a pé. Andei qua-
se 30 quarteirões. Exausta, entrei numa pequena
livraria que encontrei no caminho. Peguei um livro
de poesia, uma coletânea de poetas latino-america-
nos, e abri aleatoriamente numa página onde havia
um poema tão bonito que tudo instantaneamente
começou a fazer sentido: a caminhada no calor de

22 23
40 graus, a viagem de ônibus de Belo Horizonte a Ambiente climatizado  
Buenos Aires, a solidão, o calor, o galope incessante
dentro da minha caixa torácica. Eu tinha atravessa-
do tantas coisas apenas para descobrir aquele poe- O turista profissional desembarca em Ezeiza e pega
ma e me lembrar dele toda vez que a vida se abris- um táxi até o hotel. A corrida custa 400 pesos. Ele
se sob meus pés como se embaixo deles algo muito desconhece a informação – estrategicamente nega-
violento começasse a se movimentar. Fui buscar o da ao turista profissional – de que ao lado do Ae-
nome do poeta no canto da página para anotá-lo em roporto Internacional existe uma estação de trem,
meu caderno e não esquecer jamais. O nome dele com embarques regulares para Buenos Aires. O tu-
era Carlos, já havia morrido, tinha nascido em uma rista profissional toma café da manhã no hotel. No
cidadezinha do interior de Minas chamada Itabira. primeiro dia, estranha a ausência de frutas tropicais
como mamão, manga e goiaba, mas depois se refes-
tela comendo medialunas de manteiga e doce de lei-
te. O turista profissional tem algum dinheiro, mas
pouco tempo. Ele compra artigos de couro na cal-
le Florida, come a legítima parillada porteña em al-
gum restaurante em Puerto Madero, toma um ex-
presso no Café Tortoni e compra alfajores Havanna
para levar para os parentes. O turista profissio-
nal observa a sujeira da cidade. Outra informação
que é negada ao turista profissional é que Buenos
Aires é uma cidade suja, poluída, barulhenta e caóti-
ca. No entanto, como turista profissional que é, sabe
direcionar seu smartphone para os cartões-postais

24 25
oficiais. É importante ressaltar que o turista pro- Cartão-postal
fissional organiza de forma bastante profissional
sua viagem. De dia, o turista profissional caminha
bastante: Obelisco, Casa Rosada, Bosques de Paler- Vista de longe, Buenos Aires é só paisagem. 
mo, Caminito, Delta do Rio Tigre, Cemitério da Re-
coleta, Teatro Colón, La Bombonera, Praça Dorrego,
Museu de Belas Artes, Feira de Artesanato de San
Telmo. Na sua última noite na cidade, o turista pro-
fissional bebe várias garrafas de vinho e assiste a
um show de tango em que a dançarina se equilibra
em cima de um salto altíssimo. O turista profissional
acorda na manhã seguinte com ressaca, mas feliz.
Volta para o Brasil com a mala cheia de compras e
continua sem saber onde fica Lomas de Zamora. 

26 27
Big Bang From My Heart fomos assistir a um filme do Pasolini – cineasta
preferido de Juan Miguel – e voltamos caminhando
pelas ruas silenciosas de Buenos Aires. Quando nos
Juan Miguel foi o primeiro amigo que fiz, assim que aproximávamos da Plaza San Martín, disputamos
cheguei a Buenos Aires. Colombiano, de Medellín, ele corrida para ver quem conseguiria sentar-se pri-
estava morando na cidade há alguns meses. O pro- meiro no balanço e se lançar lá de cima sem medo de
jeto era estudar cinema, mas ele preferia passar as cair. Assim seguíamos nossos dias, conversando so-
tardes fumando maconha no terraço da nossa casa. bre tudo, atrás do vento e da fumaça, do medo e do
Também gostava de mastigar a semente de uma flor amor, atrás daquela cidade que não era nossa. Um
azul chamada morning glory que ele encontrava dia ele chegou em casa assustado, tinha nas mãos
facilmente nas floriculturas locais e que, segundo uma carta do departamento de imigração nacional
ele, era levemente alucinógena. “Como é que eu vim que informava que ele tinha uma semana para dei-
parar aqui” era a pergunta que eu mais me fazia, e xar o país ou seria expulso. Precisava voltar para a
a única pessoa que escutava minhas confusões era Colômbia e regularizar a situação do visto. Às pres-
Juan Miguel, meu amigo de 20 anos, que me ensinou sas, arrumou as malas e partiu, deixou um post-it
coisas muito importantes, como as gírias, sem as verde colado no armário do meu quarto onde estava
quais eu nunca conseguiria pedir cigarros. Também escrito apenas: hasta siempre! Às vezes me escre-
me ensinou um método controverso para tirar o sa- via. Certa vez, disse que estava trabalhando como
bor amargo do mate, bastava misturá-lo com refri- guarda-florestal em Medellín. Depois, disse que es-
gerante de limão. Quando o conheci, ele tinha os ca- tava morando na praia e trabalhava num bar fazen-
belos na altura dos ombros, muito pretos, um pouco do drinks. Uma vez contou que estava apaixonado e
anelados, mas um dia chegou em casa com o cabelo que tinha escrito um poema para a garota: my love
totalmente raspado. Não deu explicações, subiu no is with you, my heart is empty of pain and full of good
terraço e ameaçou pular lá de cima. Numa noite, remembers* with you all mornings (especially) and

28 * Como no original. 29
in the day walking for this incredible space, our ima- Casa tomada 
ges, like flashback & the people ask, the people ask, the
people ask... e terminava com a frase big bang from
my heart. Eu adorava aquele coração destrambe- Eles achavam que a casa estava desorganizada. Mo-
lhado, falando coisas que eu não entendia, o senti- vidos por uma incumbência divina, decidem, contra
do escapava, mas o ritmo e a intenção jamais, numa os legítimos proprietários do lugar, reorganizar a
alucinação contínua que era causada por qualquer casa. Ao chegar, encontram a porta da frente tran-
coisa pequena ou grande que ele experimentava. cada. Utilizam um pé de cabra e arrombam a porta.
Eu adorava o fato de ser amiga de Juan Miguel e Depois, colocam um tapume na fachada e prometem
de me relacionar com ele de um modo profundo e reparar os prejuízos. Eles mentem o tempo todo.
direto. Depois o tempo foi passando. Ele parou de Eles começam o processo de reorganização: modi-
escrever. Ele não voltou mais para Buenos Aires. Eu ficam a ordem das coisas, deslocam móveis, portas
parei de escrever. Eu voltei para o Brasil. e janelas, derrubam paredes, somem com os vidros
trincados, reformam cômodos, distribuem bananas
para os animais, inventam o desaparecimento. Mas
eles se esquecem das pessoas. As mulheres não são
dóceis. Os homens não são dóceis. As pessoas são
um entulho que eles empurram para debaixo do ta-
pete. O entulho é volumoso. Eles resolvem, então,
descartar parte desse entulho no rio – as águas não
têm memória, pensam. No rio, os corpos não afun-
dam. De manhã, cedinho, é possível observar gran-
des quantidades de material orgânico em decompo-
sição flutuando nas margens do Rio da Prata. 

30 31
A espuma dos dias usa uniforme, mas seu uniforme é branco, da cabeça
aos pés: calça de brim branca, botas brancas, camise-
ta de malha branca, um avental de plástico branco e,
Quando entro na cozinha do restaurante, Matías já na cabeça, um pano branco amarrado. Vestido dessa
está posicionado em seu local de trabalho: a pia. forma, as tatuagens que tem por todo o braço e tam-
Matías é bachero. Bacha em castellano falado na bém nas mãos, chamam, ainda mais, minha atenção.
Argentina significa pia. Em Buenos Aires, quem Em uma delas, num coração que já foi vermelho, mas
trabalha lavando pratos é chamado de bachero. Eu agora está desbotado, está escrito com letra cursiva
sou garçonete, anoto os pedidos, sirvo as mesas, re- o nome de uma mulher: Marta. Além do coração, ele
colho os pratos depois de usados, abro dezenas de tem outros desenhos espalhados pela pele: o escudo
garrafas de vinho, negocio com os cozinheiros pe- do clube de futebol Boca Juniors, a imagem de um
quenas ou grandes alterações nos pedidos e, depois, puma, a imagem do cantor de música romântica San-
renegocio com os clientes a substituição de alguns dro, uma cruz de malta estilizada e alguns símbolos
ingredientes. Também escuto muitas reclamações que não reconheço.
e repasso os escassos elogios à equipe que prepara
os pratos. Sorrio, e falo sempre, porque eu gosto do Depois de guardar minha bolsa no escaninho do
som dessa frase: bom provecho! banheiro feminino e voltar para a cozinha, Matías
abre a porta de uma das geladeiras e me estende um
Matías é um homem robusto. Deve medir no máximo prato com três pedaços de tortillas frias. As tortillas
1,65 m de altura. A baixa estatura faz com que ele pa- de chorizo são as minhas favoritas e Matías sempre
reça ainda mais forte, os ombros largos e os antebra- guarda um pouco para mim.
ços grossos. Os olhos são azuis e o cabelo, que está
começando a ficar grisalho, é liso e escorrido, pentea- Trabalho nesse restaurante há apenas dois meses,
do para trás com bastante gel. Tem 52 anos e também mas tenho a sensação de que estou lá há muito mais

32 33
tempo. Quando estou servindo os clientes, pen- com o dinheiro que está guardado no banco pago
so que nunca mais na vida vou ter outro traba- despesas maiores, como as aulas de dança e as
lho, nunca mais vou me sentar na frente de um consultas com Raúl.
computador, abrir um arquivo no Word e salvá-lo
em meus documentos. Nunca mais vou participar Eu chego ao restaurante às 17h30, mas os clientes só
de uma reunião e nunca mais vou me angustiar começam a chegar por volta das 20 horas. Durante
porque tenho medo de não conseguir escrever esse período, realizo outras atividades, como, por
um texto. Mas, tirando o cansaço físico do fim da exemplo, arrumar as mesas, dobrar guardanapos ou
noite, gosto de trabalhar como garçonete: fazer lustrar as taças de vinho. No primeiro dia, quando
as coisas, uma depois da outra e tudo de novo, na me viu dobrando guardanapos em pé, Matías disse,
noite seguinte, repetidamente. Trabalho apenas de forma bastante seca: “Sentate!”, “Não, obrigada,
de quinta a sábado, que são os dias mais movi- estou bem assim”. “Sentate, te digo!”. Um pouco cons-
mentados. Por 10 horas de trabalho, que, em al- trangida, obedeci. Só no meio da noite fui entender
guns sábados, chegam a 12 horas ininterruptas o conselho. Depois de trabalhar 10 horas em pé, an-
em pé, andando de um lado para o outro, recebo dando de um lado para o outro, servindo mesas e
diariamente 15 pesos, mais as gorjetas. É um su- carregando bandejas pesadas, correndo sem sequer
bemprego, obviamente. Mas gasto relativamente conseguir parar para fazer xixi, descansar as solas
pouco. Com o dinheiro que recebo como garço- do pé por trinta minutos é uma atitude inteligente.
nete, compro comida no supermercado, pago mi-
nhas passagens de ônibus e de metrô e pago ainda Matías fala pouco, mas eu levo minha pilha de guar-
o cinema, os cigarros, os alfajores, as garrafas de danapos para a bancada que fica ao lado da pia onde
Vasco Viejo e os xerox da faculdade. O aluguel do ele lava os pratos e faço muitas perguntas, que é
quarto pago com o dinheiro que trouxe do Brasil e meu modo de conhecer essa cidade e as pessoas que
está guardado em uma conta bancária. Também vivem nela. Ele me diz que não gosta de trabalhar

34 35
na capital, gasta quase uma hora e meia do bairro imediato, Matías para de conversar comigo e olha
onde mora, em Lomas de Zamora, na grande Bue- para baixo fixamente, fingindo não ter percebido a
nos Aires, até a estação do Retiro, que é a principal entrada de Gustavo. Quando o gerente sai da cozi-
estação de ônibus e de trens metropolitanos da Ca- nha, Matías sempre me diz movendo os lábios sem
pital Federal. Depois, do Retiro a San Telmo, onde que saia nenhum som: “pelotudo de mierda!”.
está localizado o restaurante em que trabalhamos,
vai caminhando a pé para economizar dinheiro. Há Quando são 19 horas, ele me fala: “Andate a cenar!” E
23 anos veio com um primo, também da província mais uma vez obedeço aos seus imperativos, que é
de Corrientes, procurar trabalho em Buenos Aires. O a forma tradicional como os argentinos falam uns
primo se casou com uma moça de Bahía Blanca e se com os outros. Termino de comer, escovo meus
mudou para lá, nunca voltou. Eu pergunto: “Quem é dentes, coloco meu uniforme, que, ao contrário
Marta?”. Ele me responde: “nadie”. do uniforme de Matías, é completamente preto,
e vou para o salão. A partir desse momento, não
Durante quase 18 anos, Matías trabalhou como ope- converso mais com ele, mal o vejo. Matías passa a
rário em uma fábrica de meias, localizada em Quil- noite lavando e enxugando pratos, copos, talheres
mes (grande Buenos Aires). Em 2001, com a crise e toda uma variedade de vasilhames sujos de gor-
econômica, ele e todos os companheiros de trabalho dura de costela de porco, batatas fritas e molho
foram demitidos e a fábrica foi fechada. Desde en- chimichurri, suas mãos tatuadas passam horas
tão, sobrevive fazendo bicos. Já foi entregador de pi- imersas em uma espuma espessa, às vezes bran-
zzas, ajudante de pedreiro, trabalhou como vende- ca, às vezes marrom. Quando, no fim da noite,
dor ambulante na estação de Lomas e, atualmente, olho para as mãos de Matías, elas se parecem com
como bachero. Às vezes, durante nossas conversas, as mãos do homem que trabalhava no açougue
o gerente da noite, um homem mal-educado cha- onde minha mãe comprava carne quando eu era
mado Gustavo, entra abruptamente na cozinha. De criança. Dentro das unhas, o excesso de água e sa-

36 37
bão cria uma pequena superfície inchada que pode dor da periferia de Buenos Aires. Um homem como
se romper a qualquer momento, e aquela imagem tantos homens com quem cruzo diariamente nas
me causa aflição. ruas da cidade, mas com quem nunca troco olhares
porque esses homens não me interessam. Um ho-
O trabalho acaba por volta das três da madrugada, mem comum que já fez tantas coisas na vida e que
quando, enfim, deixo o salão e me sento num banco não precisa ficar pensando nelas ou lembrando-se
na cozinha, para descansar um pouco. A essa altura, delas o tempo todo para saber que tem uma existên-
meus pés estão tão doloridos que eu prometo para cia. Meus pés ainda estão doloridos, agora dormen-
mim mesma que vou mudar de trabalho, que vou tes, formigam dentro do tênis e eu sonho com a hora
avisar para o gerente que no dia seguinte não volto em que chegarei em casa e poderei tirar os sapatos.
mais. Procuro Matías com os olhos, mas ele já está Ao contrário de Matías, moro a 10 minutos de dis-
no banheiro se trocando para ir embora. Todas as tância do restaurante e volto caminhando sozinha
noites, antes de voltar para casa, ele toma banho e pelas ruas desertas do bairro. Matías se despede de
passa perfume. Limpo, com o cabelo penteado para mim com uma levantada de sobrancelha. Antes de
trás, tênis, calça jeans larga e uma jaqueta de frio sair pela porta da cozinha, num ritual humilhante e
verde-musgo, fechada até o pescoço, não reconheço que se repete diariamente, ele abre a mochila para
o homem bravo, tatuado e que fala comigo como se o gerente conferir se não roubou nada daquele res-
eu fosse uma criança, alguém que precisa de orien- taurante de merda onde Matías trabalha há um ano
tações o tempo todo, para sobreviver no ambiente e quatro meses, todos os dias, exceto às segundas-
hostil que é a cozinha de um restaurante, um lugar -feiras, 12 horas, em pé.
sobretudo masculino. Ele carrega uma mochila jeans
muito velha que segura em um dos ombros, como se
fosse uma bolsa. Assim, disfarçado, Matías é apenas
um homem de meia-idade, um trabalhador, mora-

38 39
História oficial 1   Acidente geográfico 

A década de 1920 na Argentina foi um período de Paloma nasceu em Buenos Aires, em 1975, um ano
prosperidade econômica. Naquele ano, o produto antes do golpe militar. Dois anos depois, seus pais se
interno bruto do país superou o de nações desen- mudaram para o Brasil. Primeiro, moraram num
volvidas, como Canadá, Itália e Austrália. Em 1924, apartamento da rua Domingos Ferreira, em Copa-
a prefeitura de Buenos Aires doou ao Ministério da cabana. Quando chovia, Paloma sentia medo. Du-
Marinha uma área de 17 hectares situada na região rante toda a sua infância teve pesadelos com água:
norte da cidade. O arquiteto Raúl Álvarez e sua equi- um barco atravessa o oceano lentamente, a viagem
pe iniciaram a construção do complexo de edifícios não termina nunca. Como quase todas as crianças
que iria abrigar a Escola de Mecânica da Armada da sua idade, Paloma aprendeu a nadar. A meni-
(ESMA), inaugurada oficialmente no dia 12 de outu- na também sonhava que o mar invadia seu quarto
bro de 1928. O pavilhão central é uma edificação de e todos os seus brinquedos morriam afogados. Os
estilo neoclássico, com quatro imponentes colunas pais tentavam interpretar o imaginário onírico da
de mármore branco. Além do prédio principal, a es- filha. Um psicanalista, amigo do casal, foi categó-
cola abrigava alojamentos para oficiais e suboficiais, rico: uma criança de cinco anos não tem condições
refeitórios, padaria, pavilhão de armas e aviação, simbólicas para compreender a dimensão do exílio.
enfermaria, escritórios, cozinha, oficinas, um po- Alguém tem?
lígono de tiro, piscinas, lavanderia, depósitos, uma
gráfica, laboratório fotográfico, casa de máquinas,
salas de tortura, celas de parto e até uma pequena
capela com uma bacia de água benta.

40 41
Instruções para montar Sobre as pessoas
mapas, cidades que provocam medo
e quebra-cabeças

Quando não estão provocando medo, as pessoas


O escritor argentino Jorge Luis Borges imaginou que provocam medo escovam os dentes, cortam as
um mapa que era do tamanho da própria cidade. unhas do pé, retiram os pelos que nascem no nariz
Nesta cidade-mapa viviam mendigos, reis, leopar- e dentro das orelhas, jantam com seus filhos, almo-
dos, alfaiates, aranhas e begônias. Infelizmente, çam na casa dos pais, brigam por causa de futebol,
pensamentos improváveis como o de Borges são compram xampus contra caspa, queda de cabelo e
raros nos dias de hoje, quando as crianças argenti- seborreia, telefonam para as esposas e dizem que
nas são criadas assistindo à Floricienta no canal 13. vão se atrasar, comem medialunas no café da ma-
Para o viajante ocasional, a cidade é um quebra-ca- nhã, fazem sexo, compram sexo, marcam consul-
beça: centenas de peças que às vezes se encaixam, ta com o dentista e depois faltam à consulta com o
outras não. dentista, esquecem datas de aniversário, derramam
café na roupa, compram remédio para o fígado,
assistem à TV, colocam a correspondência em dia,
pagam contas, alimentam os bichos de estimação,
enchem a garrafa de água, usam meias sujas, com-
pram o jornal, trancam as portas de casa antes de
dormir, vão à igreja, acreditam que sua conduta
pública é um exemplo público de conduta, dormem,
mas, antes de encostar a cabeça no travesseiro, as
pessoas que provocam medo sempre lavam as mãos.

42 43
Formas de extravio  alguém diz. Rejeito essa proposta. De onde venho,
a polícia não toma conta das pessoas, penso. A se-
nhora continua a chorar, o tempo passa e ela em
Observo uma senhora chorando na esquina das ruas nenhum momento solta minhas mãos. Alguém in-
Bolívar com México. San Telmo é um bairro de ve- siste que a delegacia fica a poucas quadras dali, na
lhos.  Antes que pudesse me esquivar, a mulher rua Peru. Decido levá-la até lá. Vamos caminhando
avança em minha direção. Tem os olhos azuis, um de mãos dadas.
azul muito claro, quase transparente – água-ma-
rinha –, os cabelos são brancos e ralos e a pele do Chegando lá, explico detalhadamente a história ao
rosto é tão fina que parece ter sido feita com pó de delegado de plantão que escuta e diz, me tranqui-
arroz. Ela também está perdida. Não se lembra do lizando um pouco, “já devem estar procurando por
próprio nome, nem seu endereço, nem o que faz so- ela, não se preocupe”. Enquanto espero, o policial
zinha na rua ali parada. Apenas chora, muito. A ve- me faz muitas perguntas. Sim, sou brasileira, estu-
lha carrega uma bolsinha de mão, peço autorização do literatura, moro em uma residência estudantil
para abri-la na expectativa de que possa descobrir na rua Bolívar, trabalho como garçonete três noites
alguma informação sobre ela, um número de telefo- por semana, gosto da cidade, acho os argentinos
ne, um documento de identificação, mas só encontro passionais e aguerridos, admiro o fato de que mui-
quatro notas de dois pesos.  tos argentinos dedicam suas vidas a desconstruir a
história oficial do país para que uma outra história,
Ficamos ali paradas, enquanto uma pequena aglo- violenta, assustadora, cruel, mas, no entanto, real,
meração de bisbilhoteiros começa a se formar em possa emergir. Nós brasileiros fazemos exatamente
torno de nós duas. Um curioso diz: “neste caso, con- o contrário, explico. Gosto de chinchulines fritos e
vém levá-la à delegacia de polícia mais próxima”. “A de berinjela napolitana, não gosto de mate, é muito
polícia tomará conta dela até a família aparecer”, amargo. Vou ao cinema quase todos os dias, tenho

44 45
uma carteirinha que me dá descontos, pago apenas outras vezes. Ele pediu para te agradecer.” Naque-
40 centavos de peso, gosto da comida que meus ami- la noite na hora do jantar, tomo três taças de Vas-
gos peruanos fazem, domingos e feriados sinto um co Viejo, um vinho barato que compro no mercadi-
pouco de saudade do Brasil, saudade é uma palavra nho perto da minha casa, e durmo profundamente.
portuguesa, sim, o fado é muito triste mesmo, o tan-
go não, o tango é trágico e sigo falando de mim sem Dois dias depois, recebo uma nova ligação do de-
perceber que, sutilmente, estou sendo interrogada legado. Eu deveria comparecer à delegacia para
por aquele homem vestido com uniforme de polícia. assinar o boletim de ocorrência. “Amanhã à tarde”,
Nunca tinha conversado com um delegado antes. A de preferência. Concordo, mas desligo o telefone
certa altura, ele me sugere que vá embora, diz coi- levemente preocupada, inicia-se ali um mal-es-
sas como: “tarde demais, perigoso, você está sozi- tar que me acompanhará até o final da tarde do
nha. Assim que a família aparecer eu te aviso, me dia seguinte. E se aquela conversa tivesse sido um
dê um número de contato”. Concordo, estou cansa- interrogatório disfarçado? E se a curiosidade do
da e faminta. A senhora já havia se alojado numa delegado sobre a jovem estudante brasileira fosse,
pequena sala com outros policiais, juntos tomavam na verdade, um pretexto para investigar pessoas
mate e assistiam a um programa na televisão, ela que vivem ilegalmente no país, um número bas-
não chorava mais e, quando me aproximo para me tante significativo, principalmente de latino-ame-
despedir, ela olha para mim como se nunca tivesse ricanos. Oficialmente, não tenho autorização nem
me visto antes. Os olhos dela agora estavam secos: para estudar, nem para trabalhar. Possuo apenas
azul-escuro. um visto de turista que renovo a cada três meses
em visitas regulares ao Uruguai. Naquela noite, não
Poucas horas depois, o delegado telefona para minha durmo bem. Sonho que estou num lugar pouco ilu-
casa. Diz que o filho da senhora acabou de buscá-la. minado, com o teto rebaixado, minhas mãos estão
“Ela tem alzheimer, se chama Vania, já se perdeu amarradas a uma cama de ferro. Grito, vou parir,

46 47
mas, depois que meu filho nasce, não consigo ver Cidade partida
o rosto dele.

Na tarde do dia seguinte, chego à delegacia na hora Ao colocar uma placa de vidro sobre o mapa da ci-
marcada. O policial está me esperando. Ele está dade de Buenos Aires e golpeá-la com um martelo,
nervoso, age com estudada formalidade, sem a es- é possível descobrir itinerários insólitos. O cotidiano
pontaneidade do primeiro encontro. Observo que é uma gaiola, é preciso olhar demoradamente para
as mãos dele tremem um pouco. Leio o boletim de cada lugar, pessoa ou coisa a fim de que ela perca
ocorrência, assino o papel e vou embora.  sua natureza familiar e, assim, encontrar nas fissu-
ras do banal o bilhete do homem que iria se jogar da
Dias depois, recebo uma nova ligação. Acho ainda ponte, mas desiste um minuto antes do salto.
mais estranho quando o delegado se identifica. Será
que faltava assinar mais algum papel? Ele é direto,
me pergunta se eu gostaria de sair para jantar. Res-
pondo que não. Agradeço o convite. Depois desse te-
lefonema, o delegado desaparece. 

48 49
Sob neblina, As marxistas também
não ultrapasse  usam minissaia

Uma mulher magra e alta, de cabelos compridos,


O limite entre o rio e o céu é largo. Do barco, é pos- usando meias finas pretas, sapato de salto e minis-
sível ver a cidade em modo cartão-postal, distante saia de veludo distribui entre os alunos o programa
da sua intimidade barulhenta. Há 10 anos, um ho- do curso que dará todas as quartas-feiras de manhã,
mem atravessa o rio. Não tem o visto de trabalho, até o final do semestre, na sala 204 da Faculdade de
assim como milhares de sul-americanos que vivem Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires.
e trabalham ilegalmente no país. A cada três me-
ses é preciso viajar até Colônia do Sacramento, no Antes de se apresentar, a professora comunica que
Uruguai, para renovar o visto de turista. Ele leva na a leitura dos capítulos 1 e 2 do primeiro volume de
mochila uma garrafa térmica com chicha morada O Capital são parte obrigatória da bibliografia do
e dois sanduíches de queijo. Ao chegar à aduana, curso e, caso algum aluno matriculado na disciplina
os guardas uruguaios perguntam se o passageiro ainda não tivesse lido Marx, deveria providenciar a
transporta alimentos. O homem conhece as regras: leitura para a próxima aula.
é proibido atravessar a fronteira levando comida.
A viagem dura em média 3 horas. O tempo de uma Depois, a professora se dirige até sua mesa e retira
decisão: voltar para Lima. Não mentir nunca mais. de dentro da uma bolsa de couro uma garrafa tér-
Quando, à noitinha, o barco atraca no porto de Bue- mica de metal. Prepara o mate, suga o líquido quen-
nos Aires e as pessoas começam a desembarcar, o te e amargo, enche novamente a cuia com a água da
homem acorda.  garrafa térmica e a entrega para o estudante que
está sentado na cadeira mais próxima a ela.

50 51
A professora começa então a falar de modo como- não se revelara com nitidez. Eu desistiria definitiva-
vente sobre Mikhail Bakhtin e Robert Arlt, Pierre mente do jornalismo? Estudaria literatura? Escre-
Bourdieu e Rodolfo Walsh. Ao meu lado, uma aluna veria livros. Seria professora? Mas, antes, precisava
estrangeira tira uma pequena tupperware de plás- ler os primeiros capítulos de O Capital em espanhol.
tico da mochila e de dentro da vasilha dois ovos
cozidos enrolados em papel-alumínio. Enquanto
escuta a professora falar coisas que, assim como
eu, a jovem entende parcialmente, ela come os dois
ovos cozidos.

Simultaneamente, o mate circula pela sala até che-


gar às minhas mãos. Constrangida, bebo o líquido
quente e amargo queimando a ponta do meu lábio
superior, dias depois aquele pequeno machucado se
transformaria em uma afta.

Eu nunca tinha lido Karl Marx, detestava mate sem


açúcar e o cheiro do ovo cozido me provocou enjoos.
Durante aquelas quatro horas, eu não disse nenhu-
ma palavra. Quando a aula acabou e fui caminhan-
do sozinha até o ponto de ônibus, eu estava confusa,
mas pela primeira vez isso não era ruim. Desde que
decidira viver em Buenos Aires, intuía que uma mo-
dificação profunda estava em trânsito, mas ela ainda

52 53
Jesus te ama Um corpo

Os paraguaios começaram a chegar ao país em 1947. Alguns anos depois, Joannes, um amigo alemão que
Atualmente, 600 mil vivem em Buenos Aires e re- fiz quando vivia em Buenos Aires, me escreveu. Ele
gião metropolitana. Em Villa 31, maior favela da estudava ciências políticas e nos conhecemos nas
capital portenha, mais de 40% dos moradores são aulas de espanhol avançado. Joannes dizia que o Mo-
de origem paraguaia. Filhos de paraguaios nascidos vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
na Argentina são considerados paraguaios. Netos era a experiência comunitária mais importante e
de italianos nascidos na Argentina são considera- bonita da América Latina. Eu tentava explicar que,
dos argentinos legítimos com dupla nacionalidade: no Brasil, a maioria da população havia sido levia-
argentinos e europeus. O mercado de trabalho in- namente manipulada e que o movimento era visto
formal “protege” esse contingente de pessoas da ex- como oportunista, arruaceiro e violento. Meu amigo
patriação. Trabalham, majoritariamente, como alemão também não entendia por que a polícia bra-
pedreiros, caixas de supermercado, empregadas sileira era tão violenta e me fazia muitas perguntas
domésticas. Pessoas que sobrevivem entre o su- sobre os livros de Jorge Amado, como se pudesse
bemprego e o desemprego; entre catar moedas ou encontrar naqueles textos, que ele tanto admirava,
passar fome; entre dividir um quarto com oito pes- alguma explicação para a origem da nossa violência.
soas a não ter um lugar para dormir. Talvez um dia
voltem. Os telejornais ensinam como reconhecê-los: No e-mail, Joannes me perguntava se eu ainda tinha
uma gente brava, barulhenta e suja, falam uma lín- contato com Juan Miguel – meu amigo colombiano
gua que ninguém entende. –, que ele conheceu certa noite numa festa na minha
casa. Respondi que não. Alguns dias depois, Joannes
escreveu novamente: “Querida Flávia, recentemen-

54 55
te encontraram em Berlim o corpo de um homem História da sexualidade
dentro de um rio, ele estava morto, tudo indica que
estava bêbado, caiu no rio e não conseguiu se le-
vantar, não havia marcas de espancamento nem de María Laura estuda na Faculdade de Filosofia e Le-
violência, no entanto, não conseguiram identificar tras da Universidade de Buenos Aires e trabalha como
o corpo porque a polícia não achou nenhum docu- garçonete no mesmo restaurante que eu e Matías. Ela
mento. A polícia colou vários cartazes com uma foto é de Santa Fé, uma cidade de 400 mil habitantes ao
do rapaz pelas ruas da cidade e esta semana conse- noroeste de Buenos Aires. Divide com duas amigas
guiram descobrir que se tratava de Juan Miguel, seu e o namorado um apartamento de dois quartos no
amigo colombiano. Ele estava morando em Berlim bairro Caballito. É uma típica estudante do interior:
há alguns meses, morava com a namorada que está tem pouco dinheiro e nenhum medo. María Lau-
grávida. A família dele já foi avisada e está vindo da ra também faz parte de uma banda punk feminista
Colômbia. Sinto muito”. chamada Soy Otra. Ela descobriu o que significa ser
mulher quando, na adolescência, seus primos mais
velhos começaram a passar a mão na sua bunda. Ela
reclamava com as tias, que defendiam os filhos. “Es-
tão apenas brincando, que menina mais chata você
é!” Na universidade, María Laura leu os dois volumes
da História da Sexualidade, do filósofo francês Michel
Foucault, xerocou algumas partes e levou para que
suas amigas da banda também lessem.

Com as companheiras de faculdade, conseguiram


um ônibus para levá-las ao Encontro Nacional de

56 57
Mulheres que iria acontecer em Mar del Plata. Dor- chila para ter certeza de que Fabián não levava ne-
miriam em uma escola pública e tocariam de graça nhuma garrafa de Red Label para casa. María Laura
no último dia do encontro. O problema passagem/ decide conversar com Roberto, ele está encostado
hospedagem estava resolvido, mas María Laura pre- no balcão tomando um café expresso quando ela se
cisava conseguir uma liberação no trabalho. aproxima. Ela conta que é estudante de antropolo-
gia e que participaria de um congresso de mulheres
Uma noite, ela chega ao restaurante e vai conversar em Mar del Plata, ela e as amigas já tinham conse-
com Gustavo, o gerente pelotudo de mierda. Cinica- guido transporte e hospedagem. Além disso, ela e
mente, ele diz que não tem autorização para libe- sua banda iriam se apresentar lá. Enquanto María
rá-la e que ela precisará conversar com Roberto, o Laura falava, Roberto segurava uma pequena xíca-
dono do restaurante. É mentira, Gustavo pode, se ra de porcelana branca nas mãos. Olhava fixamente
quiser, autorizar mudanças na escala dos garçons, para dentro da xícara. Piscou as pálpebras e viu seus
mas Gustavo é o tipo de pessoa que prefere não fa- próprios olhos refletidos na superfície negra e lisa
cilitar as coisas. do café. Os olhos de Roberto eram cansados e mar-
rons. Os olhos de María Laura eram muito pretos.
O dono do restaurante é um homem sério, que não Ele autorizou a viagem. Uma semana depois, quando
bebe álcool e que, segundo a mitologia interna, nun- retornou ao trabalho, foi demitida.
ca conversa com os funcionários. Mesmo quando
flagrou com suas câmeras de vigilância um garçom
bebendo uma dose de uísque enquanto trabalhava,
ele não disse nada. Naquele dia o restaurante estava
lotado, e Fabían, o garçom, trabalhou a noite toda.
No fim do expediente, antes que fosse embora, Gus-
tavo o demitiu. Ainda exigiu que ele abrisse a mo-

58 59
City tour  Fantasmas

Em 1930, Polo Lugones criou a picana elétrica, mé- Ñata e Pablo se conheceram no final na década de
todo de tortura inspirado na ferramenta usada para 1940, em Avellaneda, cidade da grande Buenos Aires.
assustar e amansar o gado. Em seres humanos, a pi- Começaram a namorar, depois noivaram e se casa-
cana elétrica é usada em gengivas, mamilos, órgãos ram. Tiveram dois filhos: um homem e uma mulher.
sexuais, abdômen e orelhas. Provoca dor intensa, Vivem, desde que se casaram, na mesma casinha
seguida de tremores, desmaios e, em alguns casos, simples no final de uma rua de terra, em um bair-
pode levar à morte. Lugones era filho do escritor ro de trabalhadores na região sul de Avellaneda. No
Leopoldo Lugones, que por sua vez era filho de um fundo da casa, existe um pequeno quintal onde Ñata
grande proprietário rural da região de Córdoba e é planta camomila, alface e salsinha. A porta que se-
também nome de uma importante avenida na ca- para o interior da moradia desse espaço tem uma
pital federal. Com seis quilômetros de extensão, a cortina de tiras de plástico coloridas. Esse tipo de
avenida Lugones passa por importantes pontos tu- cortina é bastante comum em algumas residências
rísticos da capital portenha, como o Estádio Nacio- na Argentina, assim como a garrafa de soda na hora
nal, os Bosques de Palermo e a Escola de Mecânica das refeições. Os utensílios domésticos que Ñata co-
da Armada (ESMA). loca todos os domingos em cima da mesa para servir
a família são como pequenos monumentos da histó-
ria daquela casa. Com o tempo, o plástico da cortina
perdeu a cor, é translúcido e puído como a memória
de Ñata: uma mulher que nunca fala de si, nunca
fala do período em que escondeu um sobrinho em
sua casa ou dos pesadelos que tinha, diariamente,

60 61
naquela época. Quando os netos e os filhos começam Rituais
a fazer certas perguntas, Ñata atravessa a cortina de
plástico para ver se as costeletas de porco já estão
prontas. Depois de um tempo, volta com um prato O homem tem medo do bicho que é, feroz. Por isso,
cheio de carne assada na brasa. Em cima da mesa, inventou a monogamia, a religião e a proprieda-
o pão, a salada de alface e tomate e o molho chimi- de privada. Nas touradas, depois que o touro era
churri completam o almoço de domingo em família. abatido, a carne do animal era vendida nos açou-
Enquanto os filhos e os netos comem, Ñata respira gues da cidade. Como prêmio máximo, caso a per-
aliviada; assim, com a boca cheia de comida, eles formance do toureiro tivesse sido excepcional, ele
não conseguem fazer perguntas que só servem para recebia as orelhas e o rabo do bicho. As corridas de
tirar sua paz. touro foram proibidas na Argentina em 1899, mas
o touro – enquanto símbolo de fertilidade e força
– ainda permeia o imaginário popular. Segundo a
cosmovisão mapuche, o homem se sente mais forte
à medida que consegue imolar sua natureza ani-
mal. Antigamente, os mapuches sacrificavam um
touro quando precisavam de paz. Esses rituais não
existem mais, foram substituídos por outro tipo de
adoração: o asado.

62 63
Respiração artificial Mama, yo quiero un novio 

Em Fedro, Platão nos coloca diante de um pro- No primeiro dia, ele levantou o braço esquerdo e a
blema. Thoth – criador da geometria e das artes abraçou com o direito. Ela recuou. Ele tinha olhos
plásticas – gostaria de presentear o rei do Egito tristes. A tristeza é como um tigre faminto, pensou.
com outra invenção: a escrita. Thoth promete ao Todos os dias, ele trazia presentinhos. À noite, fe-
rei que assim ele poderia conservar a memória do chavam e abriam seus corpos. Ela não dormia nun-
seu povo. O rei não concorda. Ele diz que quando ca. Aos domingos, ele levantava-se cedo e saía para
tudo estiver escrito ninguém mais se lembrará de comprar laranjas, medialunas e o jornal. Todos os
lembrar e que os homens perderão a memória. Co- dias, ele dizia que seu único propósito na vida era fa-
migo acontece exatamente o oposto: só me lembro zê-la feliz. Em alguns dias, ele quebrava garrafas,
porque escrevo, como se ao escrever – sobre esta cadeiras. Um dia, arrebentou uma porta. Te quie-
cidade movediça que tenho sob os pés – voltasse ro más que mi vida, dizia nesses dias. 
temporariamente a respirar.

64 65
É isso um homem? Arquiteturas coletivas 

Em 24 de março de 1976, instaurou-se no país o que o Os operários que trabalhavam nas redondezas da es-
escritor Rodolfo Walsh qualificou como o terror mais tação de trens do Retiro não tinham dinheiro para o
profundo que a sociedade argentina conheceu. Durante aluguel, muito menos para comprar um terreno ou
oito anos, uma junta militar aliada a instituições inter- uma casa em algum bairro afastado. Os primeiros
nacionais e grupos econômicos contrários ao intenso barracos foram construídos na década de 1930. Eram
movimento de organização popular que emergia na construções simples, feitas de madeira e sucata. Os
Argentina, assim como aconteceu alguns anos antes homens catavam o material durante o dia e erguiam
em outros países da América Latina, implementou um suas casas nos fins de semana, coletivamente. Al-
regime de violência que tinha no tripé sequestro–tortu- guém emprestava uma ferramenta, outro tinha co-
ra–desaparecimento sua principal forma de organiza- nhecimento em marcenaria, e juntos construíram
ção. De 1976 a 1983, existiram na Argentina cerca de 500 uma das maiores favelas de Buenos Aires – Villa 31,
centros clandestinos de detenção que eram os disposi- localizada em uma região altamente valorizada pelo
tivos do Estado para executar sua política de extermí- mercado imobiliário, ao lado do requintado bairro
nio. A Escola de Mecânica da Armada (ESMA) tinha uma da Recoleta. 
particularidade. No prédio, foi montada uma pequena
“maternidade” onde nasceram pelo menos 34 bebês, fi- A Villa 31 já teve inúmeros nomes e inúmeras são as
lhos de mulheres presas e, posteriormente, mortas. A nacionalidades que atualmente vivem lá, paraguaios,
maioria desses recém-nascidos foi sequestrada de suas bolivianos, peruanos e argentinos das províncias do
famílias. De todas as práticas de violência implemen- Norte, estrangeiros neste país chamado Buenos Ai-
tadas pelo regime militar argentino, a mais abjeta foi a res. Com o tempo, algumas famílias conseguiram
tortura de crianças na presença das suas mães. construir casas melhores: dois pavimentos, reboco e

66 67
pintura nas paredes. Os jornais começaram a infor- A la mierda
mar que a arquitetura evoluiu e a especulação imo-
biliária chegou também às villas miserias. Os jornais
se esquecem de informar o principal. Quem explora? Eu sempre ficava gripada. Um dia, minha garganta
Quem é explorado? estava começando a doer. Mesmo assim, fui traba-
lhar. Chegando ao restaurante, Gustavo avisou que
naquela noite eu ficaria no segundo andar. Expliquei
que minha garganta estava doendo e que como o ar-
-condicionado lá em cima era muito forte, eu prefe-
ria ficar no salão principal. De forma irônica, Gusta-
vo me explicou que os funcionários não têm o direito
de ter preferências. Minhas bochechas começaram
a arder. Calmamente, tirei meu avental, desci as
escadas, peguei minha bolsa no armário e, sem me
despedir de ninguém, atravessei a porta do restau-
rante, enquanto Gustavo, transtornado, corria atrás
de mim, implorando para que eu voltasse porque os
clientes já estavam começando a chegar. Acendi um
cigarro e fui caminhando até minha casa. Cheguei a
tempo de jantar com meu namorado.

68 69
Anotações Aguante los pibes

“Hay una cercanía muy grande entre el narrador y la Gustavo, Matías, os homens desconhecidos que to-
superstición. Las personas supersticiosas o las su- mam cerveja na porta do kiosco que fica em fren-
persticiones siempre trabajan con las coincidencias, te a minha casa, mas sobretudo Maradona – Diego
con las rimas de la realidad. Y así también trabaja la Armando, aquele que com ajuda divina fez um dos
novela. En una novela, a través de esas coincidencias gols mais importantes da indústria do futebol – são
se va creando la sensación de destino o de fatalidad, o protótipo daquilo que aprendi a identificar como o
que es tán esencial al género. A través de estas ide- macho argentino.
as el género da una Idea de orden.” Pablo de Santis,
escritor argentino, no ciclo de debates “La cultura O macho argentino é profundamente machista,
argentina hoy”, que aconteceu no dia 25 de outubro profundamente homofóbico, profundamente apai-
de 2005, no Museu Nacional de Belas Artes. xonado por futebol, profundamente ligado ao cor-
po e suas marcas. Cicatrizes e tatuagens contam a
seguinte história: viver é lutar, sobreviver. O macho
argentino não tem a ginga do macho brasileiro, são
espécimes, embora hegemônicas em seus respecti-
vos países, completamente diferentes. O macho ar-
gentino não coloca sua masculinidade em dúvida ao
beijar outro homem na bochecha ou chorar em pú-
blico. O choro, aliás, é um componente estético dessa
subjetividade permeada por uma expressão que Ma-
radona simboliza com precisão: el aguante.

70 71
Segundo a mitologia local, esta expressão que vejo História oficial 2
pichada por toda a cidade, aguante los pibes, e de-
morei meses para compreender tem a ver com su-
portar o insuportável, a derrota moral e a derrota Algumas famílias guardam tão bem seus segredos
política, mas sobretudo a derrota física, a violên- que é como se de fato eles não existissem. Mas não
cia dos campos de futebol, a violência da polícia e é verdade. Todas as famílias possuem segredos im-
do Estado contra os homens trabalhadores pobres pronunciáveis, sujos, gastos pelo tempo como os
das periferias de Buenos Aires, essa espécie que me gestos que fazemos diariamente, as manias, os ti-
dá medo, principalmente quando volto sozinha para ques, o som de determinadas palavras pronunciadas
casa, à noite, mas que também me dá pena. por um corpo que sente raiva. Alejandro nunca se
reconheceu nos olhos da mãe, não identificava nas
próprias mãos o desenho das mãos do pai e não ha-
via, em casa, fotografias da época em que era bebê.
Isso não era um problema. Às vezes, como muitas
pessoas, sentia que não fazia parte daquela família.
No entanto, era amado, e este sentimento – o amor
– atestava sua filiação.

Quando era adolescente, Alejandro foi a um show de


uma banda de rock muito famosa na Argentina. Em
um momento do show, o grupo estendeu uma gran-
de faixa branca e nela os seguintes dizeres: “30 mil
desaparecidos: Manuel Gonçalves Granada é um de-
les”. Ao lado do texto, a imagem de uma criança de

72 73
quatro anos, um menino moreno de cabelos lisos e mas também à luz do dia, já que os militares não pou-
pretos, olhos muito grandes, também pretos. pavam esforços para prender, torturar e fazer desapa-
recer pessoas consideradas inimigas do país.
Em 1977, um grupo de mulheres, mães que viram seus
filhos e netos desaparecerem à luz do dia em várias Mas aquelas avós não desistiam e exigiam informa-
cidades do país, criaram uma associação para tentar ções. Semanalmente, junto com outra associação for-
recuperar essas crianças e devolvê-las às suas famílias mada por mulheres – mães de desaparecidos políti-
de origem. Essas mulheres iniciaram uma luta quase cos –, marchavam em torno da Casa Rosada exigindo
impossível: descobrir para onde tinham sido levados explicações, estabeleceram contato com organizações
seus netos. Algumas crianças foram retiradas dos bra- internacionais de direitos humanos e descobriram,
ços das mães logo após o nascimento, já que muitas por exemplo, que algumas crianças foram vendidas
mulheres presas deram à luz em salas estrategica- para famílias europeias; outras estavam mortas, as-
mente montadas em alguns dos principais centros de sim como seus pais, e algumas ainda viviam no país.
detenção do país. Ao longo dos oito anos de ditadura Era preciso encontrá-las, reconhecer a paternidade
militar, cerca de 500 centros clandestinos de detenção por meio de exames de DNA e assim iniciar um lon-
funcionaram no país. Muitas mulheres, enquanto pa- go processo judicial de restituição familiar. Ao longo
riam seus filhos, tinham os braços presos por algemas, da história da associação criada por essas avós, 125
eram amordaçadas, os médicos que acompanhavam o crianças (hoje adultos) foram encontradas e tiveram
procedimento retiravam o filho de dentro da mulher e suas identidades e histórias de vida restabelecidas.
o entregavam imediatamente a um militar que espera-
va do lado de fora da cela de parto. Algumas mulheres Alejandro estava feliz naquela noite, realizava um
nunca tiveram o direito de saber se o filho era meni- sonho: ver de perto sua banda favorita, Los Pericos.
no ou menina. Outras crianças, alguns irmãos, foram Ao ver a faixa em cima do palco, reconheceu-se ime-
sequestradas em suas próprias casas, de madrugada, diatamente naquela fotografia.

74 75
Errata Os ofícios terrestres  

Fui um pouco impulsiva quando disse que o futebol Susana cuidava da limpeza dos quartos. Uma vez
é uma indústria. Acho que não me expressei bem. O por semana, trocava os lençóis puídos e sujos por
futebol não é uma indústria, o futebol é uma máfia. lençóis puídos e limpos. Além dessa função, chefiava
uma rede subterrânea de informações que envolvia
toda residência, interceptando e produzindo toda
sorte de boatos e maledicências. Susana morava
longe, acordava de madrugada para chegar ao tra-
balho, onde passava o dia limpando os quartos su-
jos de cerveja, vômito e sorvete de doce de leite da
classe média latino-americana e europeia. Estudou
apenas o fundamental e, embora soubesse ler e es-
crever, nunca gostou de anotar os recados, Susana
preferia transmiti-los oralmente acrescentando aos
seus relatos fatos imaginários e fantasiosos. Certa
ocasião, me contou que, ao entrar no quarto do meu
namorado, encontrou ao seu lado, na cama, outra
mulher. “Te lo juro”.

76 77
Língua menor Las Malvinas son 
argentinas 

A língua é também um território político onde ocor-


rem disputas violentas e simbólicas de poder. A Gonzalo é uma criança de cinco anos.  No seu último
língua é tanto um dispositivo de afirmação de uma aniversário, a avó paterna fez o tradicional bolo de
identidade coletiva – os argentinos – quanto de sua doce de leite com cobertura de pêssegos em calda.
negação. O lunfardo é um dialeto local, resultado do Antes de soprar as velinhas, todos comeram canapés
intenso processo de hibridização entre o espanhol de maionese com ovo cozido e matambre de carne
e outras línguas, sobretudo o italiano. Ao chegar a de porco. “Que los cumplas feliz, que los cumplas fe-
Buenos Aires, muitas palavras com as quais eu esta- liz, que los cumplas, Gonzalito, que los cumplas fe-
va habituada a me comunicar nas aulas de espanhol liz”, cantaram. Os adultos brindaram com cidra,
que fiz no Brasil não faziam mais nenhum sentido. um costume local. Gonzalo brindou com Coca-Co-
Onde eu morava, ninguém conversava usando as la.  Na Argentina, as crianças pequenas são proibi-
palavras do dicionário espanhol e eu precisei rea- das de tomar café porque tem cafeína, mas podem
prender a falar: guita (dinheiro), pucho (cigarros), tomar Coca-Cola. Neste ano, a namorada do irmão
laburo (trabalho), fiaca (preguiça), morfa (comida), mais velho de Gonzalo deu de presente para ele um
pibes (meninos) eram as palavras do meu novo voca- quebra-cabeça de 30 peças com o desenho do ma-
bulário e foi com elas– espreitando cada expressão pa-múndi. Com a ajuda do irmão, montaram o brin-
pichada nas ruas da cidade ou na boca dos porte- quedo.  A família, reunida em torno do mapa, co-
nhos – que comecei a entender que ser argentino é meça a explicar à criança: “Aqui é a Argentina, essa
um movimento complexo de ser e negar o que se é. parte azul é o oceano Atlântico, esse pedacinho pe-
queno de terra são as Malvinas, ilhas que pertencem
ao povo argentino, mas os ingleses foram lá e nos

78 79
roubaram, muitos argentinos morreram na guer- Cenas de um
ra, o seu tio-avô Norberto, irmão da vovó. Nunca casamento argentino 
se esqueça disso, as Malvinas são argentinas”. Mas
Gonzalo não presta muito atenção, porque ele tem
apenas cinco anos de idade e só quer saber de tomar O marido passa a manhã escutando músicas ro-
mais um copo de Coca-Cola. mânticas no rádio do computador. A esposa passa
a manhã na cozinha, lava os copos, seca os pratos,
prepara as milanesas para o almoço. Estão casados
há 40 anos. Dividem inúmeras coisas: o silêncio, a
cama, a pasta de dentes, a erva-mate, o medo de os
filhos ficarem desempregados, a carteirinha de só-
cios do clube onde jogam tênis com os amigos no fim
de semana, os dólares guardados – uma obsessão
da classe média nacional, fruto da crença de que o
dólar é uma moeda forte e segura e o peso uma moe-
da jodida. Dividem também, em silêncio, o arrepen-
dimento de terem votado em Carlos Menem em 1989. 

80 81
Santíssima Trindade  Cumbiera intelectual

Em Buenos Aires, as mães, a igreja e os psicanalistas A cumbia é um estilo musical de origem colombiana
têm sempre razão.  e paraguaia, bastante popular em países sul-ameri-
canos como Bolívia, Peru e Argentina. Os argentinos
das províncias do Norte, como Salta, Jujuy, Tucu-
mán, Chaco e Formosa sempre escutaram e dançaram
cumbia. Com a migração dessas populações (majori-
tariamente rurais) para a capital portenha, a partir da
década de 1940, houve também uma migração de cos-
tumes, sotaques e de uma intensa e rica cultura sono-
ra. Pronto, já estava criado o estigma. Para os porte-
nhos, a cumbia era música de “gente de província”, ou
“gente de bairro”, como são chamadas as pessoas que
vivem nas regiões periféricas e humildes da grande
Buenos Aires, música de los cabecitas negras, termo
bastante popular utilizado para denominar de forma
racista os descendentes dos povos indígenas. O insul-
to é usado sobretudo por pessoas da classe média e
alta, especialmente da cidade de Buenos Aires.

As primeiras canções falavam do amor e todas as


suas variáveis (paixões, ilusões, desilusões, traições)

82 83
e do cotidiano severo dos imigrantes que escutavam Contra o silêncio  
e dançavam cumbia nos fins de semana como única
alternativa de lazer numa cidade que não foi feita
para eles. Quanto mais a mídia criticava o gênero As  villas miserias, também chamadas de villas de
musical, mais ele se tornava popular. No final da dé- emergencia, são assentamentos informais de pes-
cada de 1990, jovens que cresceram escutando cum- soas, constituídos por moradias precárias e infra-
bia com suas famílias acrescentaram instrumentos estrutura básica inexistente. A luta de classes exis-
mais fortes e dançantes, como o teclado e a guitarra. te em todos os lugares, mas na Argentina ela tem
As letras falavam de sexo, drogas, álcool e  do co- contornos mais nítidos. Villeros é uma expressão
tidiano urbano dos bairros pobres onde a violência depreciativa e violenta, usada contra as pessoas po-
pós-Menem crescia exponencialmente. Segundo al- bres. Contra os “ricos”, essas pessoas têm algumas
guns jornalistas,  as canções eram explícitas e vulga- armas. O barulho é uma delas. 
res. A mídia batizou essa versão mais contemporâ-
nea de cumbia villera, acusando os artistas de fazer
apologia ao crime.  A partir desse momento, o ritmo
explodiu. A cumbia villera tocava nas rádios. Can-
tores e grupos vendiam milhares de discos, lotando
ginásios com bailes que reuniam até 10 mil pessoas,
transformando a cumbia em dos maiores fenôme-
nos culturais da Argentina nos dias de hoje.

84 85
Made in Brazil  Conexão aeroporto

Na estação do Retiro, uma senhora comenta com a Quando Moly – minha amiga norte-americana –
amiga: “Quem tira bandido da rua não é a polícia, voltou para os Estados Unidos, acompanhei-a até o
são as igrejas brasileñas”.  Aeroporto Internacional de Ezeiza. Fomos de ônibus
conversando e prometendo que nunca deixaríamos
de ser amigas e de nos falar e de escrever e-mails.
Chorei muito quando ela desapareceu pelo portão de
embarque. Voltei para Buenos Aires sozinha, no ôni-
bus, com o coração apertado. Era a segunda vez que
levava uma amiga a Ezeiza. Eu ainda tinha muitas
dúvidas naqueles meses. Eu não sabia dizer se que-
ria voltar para o Brasil (quando?) ou se queria ficar
(por quê?), mas tinha certeza de que meu retorno
não seria por via aérea. Eu chegara naquela cida-
de de ônibus, atravessando o sul do Brasil e a região
dos pampas, impressionada pela vastidão, pelo nada
e pelo céu que compõem essa paisagem, e voltaria
para o meu país assim, preenchida por aquele vazio.

86 87
Sueño de Amar Imanência

Quando criança, Pablo escutava cumbia na casa dos Cortázar escreveu que ser argentino não tem cura.
tios. O pai – caminhoneiro que fazia distribuição
de refrigerantes – vendeu o micro-ondas da famí-
lia e com o dinheiro comprou um teclado para o fi-
lho. O garoto aprendeu a tocar sozinho, de ouvido, e
com um amigo do bairro Esperanza (San Fernando/
Grande Buenos Aires) montou seu primeiro grupo
de cumbia. Nessa época, ele tinha apenas 12 anos.
Os dois começaram se apresentando em festas fami-
liares. Depois, foram convidados a tocar em eventos
organizados por escolas e clubes locais. Aos 14 anos,
Pablo passou a integrar o grupo de cumbia Sueño de
Amar. Nunca mais parou de tocar cumbia. Chega a
fazer oito shows em uma única noite. Os ingressos
são vendidos a preços populares. Ao longo dos 20
anos de carreira, Pablo já fez mais de 15 mil shows.
Ganhou muito dinheiro. Primeiro reformou a casa
dos pais, trocou o chuveiro que sempre dava cho-
ques. Depois comprou um Mitsubishi. Atualmente,
investe em seu principal hobby: relógios de ouro e
armas de fogo. 

88 89
Lição de resistência Hecho en Buenos Aires

Os argentinos nunca se esquecem. Os chineses são muitos. Os chineses não falam es-
panhol. Os chineses torcem para o Boca Juniors. Os
chineses não deixam suas esposas conversarem com
os argentinos. Os chineses matriculam seus filhos
em escolas bilíngues. Os chineses dominam o ramo
de supermercados. Os chineses não são confiáveis.
Os chineses são sujos. Os chineses exploram seus
funcionários. Os chineses vendem vinho misturado
com água. Os chineses – para economizar energia –
desligam os refrigeradores de seus supermercados.
Os chineses sonegam impostos. Os chineses vendem
carne estragada. Os chineses acham as mulheres
argentinas vulgares. Falar mal dos chineses é uma
espécie de cacoete local.

90 91
Hermanas a área fosse enorme, logo nos conhecemos. Em uma
das barracas estava Gastón, um rapaz de Buenos Ai-
res, estudante de filosofia. Na outra barraca, vivia
Um dia, me cansei de Buenos Aires, do barulho e da um casal de artesãos, Soledad e Júlio. Soledad tinha
sujeira nas ruas do meu bairro, da comida sem tem- minha idade. Eles estavam viajando há um ano: pa-
pero, me cansei daquela casa onde vivíamos todos ravam em pequenas cidades turísticas, trabalhavam
como se a coisa mais importante do mundo fosse fa- por um tempo nesses lugares tentando vender os
zer festas. Decidi viajar um tempo sozinha, queria objetos que produziam e, quando se cansavam, co-
conhecer um lugar chamado Capilla del Monte, uma locavam as mochilas nas costas e partiam para outra
pequena cidade construída aos pés do Cerro Uritor- cidadezinha. Em Capilla, estavam há dois meses.
co, na província de Córdoba. Parti da Estação Retiro.
Foi a primeira vez que fiz uma viagem longa de trem. Soledad e eu rapidamente ficamos amigas, saíamos
A escuridão da noite e a escuridão do medo sempre juntas para andar nas trilhas perto da montanha
espreitando as mulheres que viajam sozinhas. ou nadar nas cachoeiras geladas. Um dia, quando
eu estava descendo à cidade para comprar comi-
Chegando a Capilla, encontrei um camping encrava- da, ela pediu para ir junto. “Nunca desço nos dias
do aos pés do Uritorco. Ele era afastado do centro da de semana”. Fomos caminhando. No centro, desco-
cidade, do comércio e da movimentação dos turis- brimos que haveria uma sessão de cinema e, logo
tas. Eu acreditava que o silêncio das montanhas, sua depois do filme, uma conversa sobre violência do-
aparente quietude, poderia apaziguar alguma coi- méstica. Soledad disse que havia mais de um ano
sa dentro de mim que insistia em se agitar violen- não ia ao cinema ou assistia à televisão. Entramos
tamente como o som de uma cadeira sendo jogada na pequena sala do que parecia ser um centro co-
com força contra a parede. No dia em que cheguei, munitário e todas as outras mulheres que esta-
apenas três pessoas estavam acampadas e, embora vam presentes naquele ambiente nos olharam com

92 93
curiosidade. Não pertencíamos àquele lugar, e isso conseguindo construir coletivamente, enfrentavam
estava inscrito em nossas roupas, nos nossos cor- ainda um problema grave e persistente: a violên-
tes de cabelo, no meu sotaque, mas, sobretudo, na cia doméstica. Diante disso, elas criaram conse-
forma como entramos naquele espaço, tímidas, lhos comunitários que defendiam as mulheres das
como se não tivéssemos sido autorizadas a cruzar agressões dos companheiros e promoviam encon-
a fronteira que separa os turistas dos moradores tros nos quais as mulheres zapatistas explicavam
locais. Embora fosse argentina, Soledad sentia-se para os homens que eles não tinham o direito de
tão estrangeira quanto eu, acostumada a ser vista bater nelas. No fim do encontro com as mulheres
pelos moradores como uma hippie. Depois do fil- de Capilla, voltamos para o camping em silêncio.
me, as mulheres fizeram uma roda e começaram a
conversar. Falavam dos seus maridos, namorados, Faltando dois dias para retornar a Buenos Aires, de-
ex-namorados, pais e irmãos que no passado, mas cidi que iria subir o Cerro Uritorco. Soledad e Júlio
ainda hoje, as machucavam quando ficavam bravos me explicaram como ir, desenharam um pequeno
ou quando estavam com problemas no trabalho ou mapa e disseram que, apesar de não ser perigoso,
quando chegavam em casa bêbados ou quando sen- eu não deveria subir o cerro se houvesse ameaça de
tiam ciúmes ou quando brigavam com os filhos ou chuva, já que com a neblina forte é mais difícil en-
por qualquer outro motivo, como a falta de dinhei- contrar os caminhos de volta. Na manhã seguinte
ro, o nervosismo, a fome, o cansaço, o desemprego, acordei muito cedo, arrumei minha mochila, fiz al-
a raiva – sobretudo a raiva. A raiva masculina é um guns sanduíches, separei duas garrafas com água. O
problema de segurança pública, escreveu Rebecca dia estava claro e o céu sem nuvens, com o sol muito
Solnit. Lembrei-me de que alguns meses antes, em forte esquentando a barraca já de manhã cedo. Ini-
Buenos Aires, eu tinha participado de um seminá- ciei a caminhada, mas 15 minutos depois levei um
rio com mulheres zapatistas. Elas contaram que, tombo. A fricção do meu corpo com as pedras de-
apesar de tantas coisas maravilhosas que estavam senhou um pequeno mapa de linhas vermelhas na

94 95
palma das minhas mãos, que brilhavam e ardiam. bo, as garrafinhas de água, o medo de subir a mon-
Continuei a caminhada;alguns minutos depois, abri tanha, o comentário de Gastón. “Melhor assim, olha
minha mochila para pegar um pouco de água e a o céu”. E quando levantei minha cabeça para olhar a
sacolinha onde havia colocado as garrafas escorre- montanha, vi uma grande massa de nuvens, escura
gou, despencando em uma ribanceira. Em menos de e densa, bem em cima do Uritorco. “Está chovendo lá
30 minutos de caminhada eu tinha caído, ralado as em cima, você não conseguiria voltar”, ela disse. “Fiz
mãos, ficado sem água e perdido a confiança de que um presente pra você”, e me mostrou uma pequena
conseguiria subir a montanha. Desisti. Quando me pulseira com uma pedra marrom no meio. “Deixa
aproximei do camping, encontrei Gastón, o rapaz de ver se precisa apertar um pouco, acho que sim, o seu
Buenos Aires, que ao me ver deu uma risada sarcás- punho é muito fino.” Enquanto Soledad apertava a
tica e perguntou: “você não conseguiu?”. Eu apenas pulseira com um alicate, comecei a chorar. “Por que
bufei e olhei dentro dos olhos dele com tanta raiva, está chorando?”. Eu disse que estava cansada. Can-
mas também com muita convicção: eu não arranca- sada de acreditar que quando viajamos e mudamos
ria meus olhos de dentro dos olhos dele até que ele de paisagem mudamos alguma coisa dentro de nós,
falasse mais alguma merda ou recuasse o olhar. Ele mas que isso era uma ilusão, nos arrastamos para os
abaixou a cabeça e eu fui para minha barraca. lugares com os velhos e os mesmos medos. Quando
terminei de falar, ela me disse. “Com certeza você
Passei o resto da manhã lá dentro, quieta, triste, carrega seus medos, mas também sua coragem e
brava comigo mesma, com a montanha, com aquele hoje você descobriu que carrega também uma pro-
pelotudo de mierda. teção muito forte. A montanha não deixou que você
subisse, ela te protegeu.” E com as palmas da mão,
No fim da manhã, Soledad apareceu. Disse que es- Soledad começou a enxugar minhas lágrimas.
tava muito preocupada comigo. “Que bom que você
não subiu”. Eu contei o que tinha acontecido: o tom-

96 97
Belleza y Felicidad nem a escola de arte em Lomas de Zamora. Cecilia
guardou o pequeno açucareiro de vidro onde elas jo-
gavam as guimbas de cigarro como uma lembrança
Cecilia e Fernanda nasceram em Buenos Aires no daquela época.
início da década de 1970. Nos anos 1990, queriam ser
poetas, artistas, revolucionárias: “no soy dark, soy
intensa”. Escreviam poemas estranhos, vagos e au-
torreferenciais. Misturavam versos de Shakira com
trocas de mensagens pelo Hotmail e anúncios que
encontravam colados nas paredes da faculdade: “Ya
leíste Adorno? Guadalupe te lo explica: 4374 – 0247”.
Cecilia e Fernanda não queriam ganhar dinheiro,
queriam que a vida fosse divertida, cheia de desejo,
beleza e felicidade. Primeiro, criaram uma editora
para publicar os livros que reproduziam em máqui-
nas de xerox e vendiam em bares e festas da cidade.
Depois, abriram uma galeria de arte onde, além de
vender os próprios livros, liam poemas em voz alta
e comercializavam alguns objetos que compravam
baratinho no Once – bairro judeu de comércio vare-
jista. Na galeria, organizavam festas, performances,
comemoravam o aniversário dos amigos. Depois,
criaram uma escola de arte para crianças. A gale-
ria e a editora Belleza y Felicidad não existem mais,

98 99
Ponto cego Anticartão-postal

No mesmo dia em que tomei a decisão de voltar Aos domingos, pegávamos um ônibus na avenida In-
para o Brasil, comecei a ter pesadelos. A informa- dependiente, na região sul de Buenos Aires, e atra-
ção principal contida naquelas mensagens que mi- vessávamos a ponte sobre o Riachuelo, o rio que se-
nha cabeça produzia repetidamente era que Belo para Buenos Aires de Avellaneda, para comer asado
Horizonte não existia mais. Em um dos sonhos a na casa da avó do meu namorado. Antigamente, essa
cidade havia desaparecido, em outro se desman- viagem era mais longa, havia espaços vazios onde
chado e havia apenas um barro muito cinza e pe- hoje existem pontes, viadutos, edifícios e grandes
gajoso em cima de tudo. Uma vez sonhei que Belo avenidas, uma paisagem cinza e industrial. O pro-
Horizonte não era mais a mesma cidade e, porque gresso – mas principalmente a pobreza, que é o seu
não a reconhecia – uma nova e estranha paisagem avesso – reduziu a distância e as diferenças entre as
–, não conseguiria viver ali. Nos sonhos, eu sem- duas cidades. Resta o rio Riachuelo, seu cheiro de-
pre estava tensa e muito aflita: onde eu iria viver sagradável e sua poluição persistente, nesse último
agora, já que minha cidade não existia mais? O que cartão-postal.
mais me assustava nesses pesadelos é que, mesmo
de manhã, depois de me levantar da cama, lavar
o rosto e tomar uma xícara de café, eu continuava
acreditando que tudo aquilo era verdade: eu estava
destinada a nunca mais voltar pra casa?

100 101
Volta Pós-escrito ou a
última pergunta

Cinquenta e duas horas depois, chego à rodoviária


de Belo Horizonte, o corpo suado e dolorido pare- Quando eu morava em Buenos Aires, em uma resi-
ce tomar a forma de uma lagarta, retorcida em si dência estudantil localizada em um antigo sobrado
mesma dentro do casulo. Começa a amanhecer nes- no bairro San Telmo e dividia, entre muitas outras
ta parte do hemisfério sul e as manhãs são sempre coisas, os cigarros, as panelas, os banheiros e a má-
menos densas de poluição e calor. Olho através da quina de lavar roupas com 40 pessoas de nacionali-
janela do ônibus a cidade, a primeira coisa que vejo é dades diferentes, eu era jovem. Embora fosse uma
a placa em neon do Hotel Madri e descubro que tudo das pessoas mais velhas da casa, eu tinha apenas 27
– quer dizer, quase tudo – continua no mesmo lugar. anos. Em alguns dias da semana, para ir à Faculdade
de Filosofia e Letras, onde eu estudava literatura lati-
no-americana, pegava o 69 A, um ônibus que passava
na porta da minha casa. Mesmo a viagem de metrô
sendo significativamente mais rápida, eu preferia an-
dar de ônibus. A viagem durava cerca de 45 minutos
e eu adorava aquilo: olhar para a cidade. Eu olhava a
cidade o tempo todo. O que eu queria descobrir?

O céu em Buenos Aires é azul, quase sempre muito


azul, com poucas nuvens, um azul tão intenso como
o céu de Belo Horizonte no inverno. Eu me lembro
disso ou isso é mais uma memória que inventei? Eu

102 103
olhava para o céu todos os dias e sempre pensava da minha grande preocupação. Eu não sabia o que
que eu não podia esquecer a cor daquele céu. Tam- queria da vida, se queria ficar ou voltar, e conti-
bém não queria esquecer o desenho das ruas com nuava fugindo desse assunto: eu precisava deci-
seus prédios, suas casas, as lojas, o comércio em ge- dir? Eu não conseguia imaginar o que fazer com
ral, os cafés, os cinemas, os edifícios públicos e toda os dias que viriam e eu pensava bastante neles. Eu
variedade de estabelecimentos e edificações que teria um destino? Um futuro? Eu suportaria espe-
compõem a paisagem urbana e que revelam que a rar isso acontecer? Por que as pessoas mudam de
história de uma cidade ou de um país é feita também país? Por que elas abandonam uma vida organizada
dos seus restos e dos seus escombros. Em Buenos e se lançam nessas rotas de fuga? Para não pen-
Aires, com exceção de bairros muito pobres ou de al- sar, eu escutava, todas as manhãs, dentro da linha
gumas cidades da Grande Buenos Aires, as ruas são 69 A, aquelas canções vagas e tristes, mas também
arborizadas, os galhos das árvores crescem com li- alegres. Aquilo era como a minha vida. Eu olhava
berdade entrelaçando-se sobre nossas cabeças, de- para o céu, para as casas, para as folhas de álamos
senhando em algumas ruas túneis verdes que prote- no chão e pensava coisas também vagas: eu não sei
gem as pessoas do calor intenso do verão. Uma das ficar, eu nunca sei quem sou. Ainda hoje, 12 anos
árvores mais comuns na cidade são os álamos, uma depois, quando meu filho de dois anos e meio me
planta nativa da Europa que se adapta em locais de pergunta numa manhã de domingo: “quem é você,
temperaturas amenas e muda de cor conforme as mamãe?”, eu não consigo responder.
estações. O chão das ruas fica coberto por centenas
de folhas amarelas, no outono. Enquanto observa-
va tudo isso, da janela da linha 69 A, escutava em
meu discman um álbum que uma amiga do Brasil
tinha mandado de presente. Ao me deslocar dentro
daquela paisagem, me desligava temporariamente

104 105
Posfácio
por Paloma Vidal

“De uma cidade não aproveitamos as suas sete ou


setenta maravilhas, mas as respostas que nos dá a
nossas perguntas”. Assim termina a citação de Ita-
lo Calvino que Flávia Péret escolheu para abrir seu
livro. Ao ler a frase, pensei que isso também pode
ser dito da literatura. E quais são as perguntas des-
tas Instruções para montar mapas, cidades e que-
bra-cabeças? Para começar: “Toda viagem é uma
fuga?”. Uma jovem mulher que ainda não completou
30 anos compra uma passagem de ônibus, só de ida,
Belo Horizonte–Buenos Aires. Assim começam tex-
tos que transitam entre o diário, o conto, a crônica,
o romance, que acompanham a viagem, tornando
sua a economia dela: carregar o mínimo necessário.
Tentar a leveza, apesar do peso da incerteza e da
precariedade. Confiar na sorte, nos encontros, nos
acasos. Deixar-se levar por essa cidade estrangeira
que poderia facilmente se tornar um lugar-comum
de turista brasileira, porque são muitas as referên-
cias que antecedem a viagem: livros, livrarias, cafés,
passeios. Mas experimentar outros roteiros é a con- livro é feito de suas histórias: um homem perua-
dição de quem viaja com pouco dinheiro, tendo que no, trabalhador ilegal, que há dez anos atravessa o
trabalhar, andar de ônibus e metrô, e assim conhece rio de Buenos Aires a Colonia del Sacramento para
lugares e pessoas invisíveis para os que já sabem o poder renovar seu visto de turista; Maria Laura,
que querem encontrar. garçonete no mesmo restaurante que a narradora,
estudante universitária, abusada durante a ado-
A situação econômica não é menor no livro, pois cria lescência, que quer participar de um congresso de
entre Brasil e Argentina uma contiguidade que vai mulheres na cidade de Mar del Plata; Matías, que
além da vizinhança geográfica, cultural ou linguísti- também trabalha no restaurante, lavando pratos,
ca. Há muito em comum entre os dois países quando que veio para a capital, da província de Corrientes,
se trata de formas de exploração e exclusão. O que à procura de emprego e trabalhou 18 anos em uma
se busca, então, nesse parecido diferente? Fugir de fábrica de meias, até ser demitido durante a crise de
algumas determinações que parecem inescapáveis, 2001; Paloma, uma menina filha de argentinos que
relacionadas com ser mulher e com o desejo de ser se exilaram no Brasil que tem pesadelos com água:
escritora. “Desde que decidira viver em Buenos Ai- “um barco atravessa o oceano lentamente, a viagem
res, intuía que uma modificação profunda estava em não termina nunca”. São personagens que Flávia vai
trânsito, mas ela ainda não se revelara com nitidez. recuperando e recriando, a partir de um arquivo
Eu desistiria definitivamente do jornalismo? Estu- pessoal, histórico e literário, peças de um quebra-
daria literatura? Escreveria livros. Seria professo- -cabeça latino-americano que somos convidados a
ra?” O encontro com uma marxista de minissaia é montar com ela.
uma das cenas que marcam no livro uma reflexão
sobre a política dos corpos. Sobre a política nos cor- A literatura e a cidade são as protagonistas deste
pos: os corpos explorados pelo neoliberalismo e os livro tão valente quanto amoroso. A cidade não é
corpos desaparecidos pelas ditaduras militares. O a dos lugares pré-fixados pelo turismo, mas das
bordas invisibilizadas – da cumbia, dos expa-
triados, das villas, dos velhos –, a cidade que se
aprende a olhar com as oscilações, os percalços
e as lacunas com que nos aproximamos de quem
amamos. A literatura não está na instituição lite-
rária, mas na vida, nos corpos, na rua, na práti-
ca cotidiana, no caderno de viagem, no exercício
de rememoração do passado e de imaginação de
futuro. Quando há tantos que querem nos deixar
sem um nem outro, Flávia nos confia suas instru-
ções para continuarmos resistindo.
Texto © Flávia Péret No texto em português, mantivemos todos os nomes
próprios com a grafia em espanhol.
Capa e projeto gráfico
Daniel Bilac e Valquíria Rabelo – Estúdio Guayabo

Leitura e preparação de originais


Laura Cohen e Paloma Vidal Sobre a autora

Revisão Português Flávia Péret publicou também Imprensa Gay no


Diogo Rufatto Brasil, 10 Poemas de Amor e de Susto, A Outra Noite,
Uma Mulher, Os Patos e Mulher Bomba. Vive e
Tradução trabalha em Belo Horizonte.
Paloma Vidal
(“Hermanas” foi traduzido por Ana Romay)

Revisão Espanhol
Ana Romay

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Lumos Assessoria Editorial
Bibliotecária: Priscila Pena Machado CRB-7/6971

P437 Péret, Flávia.


Instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças /
Flávia Péret. — Belo Horizonte: Guayabo, 2021.
224 p.; 15 cm.

Edição bilíngue: português e espanhol.


ISBN 978-65-86337-00-6

1. Literatura brasileira. I. Título.

CDD 869.3

N o DO PROJETO: 0623/2017

Este projeto foi realizado com recursos da Lei Municipal de


guayabo.com.br Incentivo à Cultura de Belo Horizonte.

Você também pode gostar