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O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES: CONTEXTOS, MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES AUDIOVISUAIS

Capítulo 6. Emoção e Apresentação


violência em Ressurreição
(Arthur Omar, 1988).
O CINEMA Eduardo Morettin
Marcos Napolitano

O
Rosane Kaminski cinema e as ditaduras militares: contextos, memórias
Capítulo 7. Os filmes da
e representações audiovisuais discute as relações en-
tre cinema e história a partir dos projetos ideológicos,
E AS DITADURAS MILITARES Capítulo 1. O cinema
brasileiro e os filmes históricos
ditadura civil-militar brasileira documentários, filmes de ficção e minisséries relativos ao pe- no regime militar: o lugar do
e o realismo político ríodo das ditaduras militares no Brasil, Argentina e Chile. Contextos, memórias e representações audiovisuais historiador
Cristiane Freitas Gutfreind Neste livro propomos um adensamento do debate face a no- Eduardo Morettin
vas fontes e perspectivas, como também procuramos pensar
Capítulo 8. Memórias em novos problemas e temas para as pesquisas históricas em re- Capítulo 2. Independência
negociação: o documentário lação ao cinema das/sobre as ditaduras, escolhendo filmes ou Morte: cinema histórico e
brasileiro nos trânsitos entre a documentais e ficcionais de diversas épocas. ditadura no Brasil
História e a subjetividade Este projeto editorial tem alguns objetivos e olhares comuns, Ignacio Del Valle Dávila
Reinaldo Cardenuto
fruto das atividades do Grupo de Pesquisa CNPq “História
Capítulo 3. O pensamento de
e Audiovisual”. Em primeiro lugar, valorizar o específico fíl-
Capítulo 9. Subversão, Gustavo Dahl sobre o cinema
mico em sua relação com um conjunto de teorias e metodo-
clandestinidade e farsa: o político: entre a estética do
logias sobre o audiovisual, caminho produtivo para pensar o
cinema de solidariedade ao silêncio e o jogo discursivo
filme enquanto documento histórico, partindo da indissocia-
Chile e suas estratégias com o regime militar
bilidade entre a análise das representações e o exame da lin-
Carolina Amaral de Aguiar Margarida Maria Adamatti
guagem cinematográfica. Em segundo lugar, pensar o cinema
não apenas como “vetor” de memórias sobre as ditaduras,
Capítulo 10. Marcas del Capítulo 4. O cinema e a
como se estas fossem gestadas apenas em outros lugares e lin-
terrorismo de Estado en el construção da memória sobre
guagens, mas como “produtores de memória”, identificadas
cine argentino de la última o regime militar brasileiro:
a partir de sua narrativa audiovisual em diálogo com os de-
dictadura militar: crisis
bates historiográficos e memórias dominantes ou recalcadas.
EDUARDO MORETTIN uma leitura de Paula, a
institucional y dominación história de uma subversiva
social MARCOS NAPOLITANO (Francisco Ramalho Jr., 1979)
Ana Laura Lusnich Marcos Napolitano
ORGANIZADORES Fernando Seliprandy

Capítulo 5. Anos Rebeldes:


melodrama, imagens de
arquivo, e uma memória da
ditadura militar no Brasil
Mônica Almeida Kornis
O CINEMA E AS
DITADURAS MILITARES
CONTExTOS, MEMóRIAS E
REpRESENTAçõES AUDIOvISUAIS
(Processo Fapesp 2016/23058-2)

As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material


são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a
visão da Fapesp.
Eduardo Morettin
Marcos Napolitano
O R g A N I z A D O R E S

O CINEMA E AS
DITADURAS MILITARES
CONTExTOS, MEMóRIAS E
REpRESENTAçõES AUDIOvISUAIS
Editora Intermeios
Rua Cunha Gago, 420 / casa 1 – Pinheiros
CEP 05421-001 – São Paulo – SP – Brasil
Fones: (11) 2365-0744 – 94898-0000 (Tim) – 99337-6186 (Claro)
www.intermeioscultural.com.br

O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES:
CONTEXTOS, MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES AUDIOVISUAIS

© Eduardo Morettin | Marcos Napolitano

1ª edição: julho de 2018



Editoração eletrônica, produção Intermeios – Casa de Artes e Livros
Revisão Nonononononono
Capa Lívia Consentino Lopes Pereira

CONSELHO EDITORIAL
Vincent M. Colapietro (Penn State University)
Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa Pires Ferreira (PUCSP)
Amálio Pinheiro (PUCSP)
Josette Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
Ilana Wainer (USP)
Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB)
Izabel Ramos de Abreu Kisil
Jacqueline Ramos (UFS)
Celso Cruz (UFS) – in memoriam
Alessandra Paola Caramori (UFBA)
Claudia Dornbusch (USP)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

N845 Morettin, Eduardo, Org.; Napolitano, Marcos, Org.


O cinema e as ditaduras militares: contextos, memórias e representações
audiovisuais / Organização de Eduardo Morettin e Marcos Napolitano. – São
Paulo: Intermeios: Fapesp; Porto Alegre: Famecos, 2018.

232 p. ; 16 x 23 cm.

Projeto Cinema e história no Brasil: estratégias discursivas do


documentário na construção de uma memória sobre o regime militar,
apoiado pelo CNPq por meio do Edital Universal 14/2013.

ISBN 978-85-8499-128-0

1. História. 2. História Social. 3. História Cultural. 4. América Latina. 5.


História do Brasil. 6. História do Chile. 7. História da Argentina. 8. Ditadura.
9. Resistência Política. 10. Resistência Cultural. 11. Indústria Cultural. 12.
Cinema. 13. História do Cinema. 14. Filmografia. I. Título. II. Contextos,
memórias e representações audiovisuais. III. Morettin, Eduardo, Organizador.
IV. Napolitano, Marcos, Organizador. V. Dávila, Ignacio Del Valle. VI. Adamatt,
Margarida Maria. VII. Seliprandy, Fernando. VIII. Kornis, Mônica Almeida.
IX. Kaminski, Cristiane Freitas. X. Cardenuto, Reinaldo. XI. Aguiar, Carolina
Amaral de. XII. Lusnich, Ana Laura. XIII. Intermeios – Casa de Artes e Livros.

CDU 94(37)(081)
CDD 370 i.9
Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino
Sumário

7 Apresentação
Eduardo Morettin e Marcos Napolitano

15 Capítulo 1. O cinema brasileiro e os filmes históricos no regime militar:


o lugar do historiador
Eduardo Morettin

33 Capítulo 2. Independência ou Morte: cinema histórico e ditadura no


Brasil
Ignacio Del Valle Dávila

57 Capítulo 3. O pensamento de Gustavo Dahl sobre o cinema político:


entre a estética do silêncio e o jogo discursivo com o regime militar
Margarida Maria Adamatti

77 Capítulo 4. O cinema e a construção da memória sobre o regime


militar brasileiro: uma leitura de Paula, a história de uma subversiva
(Francisco Ramalho Jr., 1979)
Marcos Napolitano e Fernando Seliprandy

101 Capítulo 5. Anos Rebeldes: melodrama, imagens de arquivo, e uma


memória da ditadura militar no Brasil
Mônica Almeida Kornis
129 Capítulo 6. Emoção e violência em Ressurreição (Arthur Omar, 1988).
Rosane Kaminski

155 Capítulo 7. Os filmes da ditadura civil-militar brasileira e o realismo


político
Cristiane Freitas Gutfreind

167 Capítulo 8. Memórias em negociação: o documentário brasileiro nos


trânsitos entre a História e a subjetividade
Reinaldo Cardenuto

195 Capítulo 9. Subversão, clandestinidade e farsa: o cinema de


solidariedade ao Chile e suas estratégias
Carolina Amaral de Aguiar

217 Capítulo 10. Marcas del terrorismo de Estado en el cine argentino de la


última dictadura militar: crisis institucional y dominación social
Ana Laura Lusnich
Apresentação
Eduardo Morettin1
Marcos Napolitano2

O livro O cinema e as ditaduras militares: contextos, memórias e


representações audiovisuais apresenta os resultados de três anos de pesquisa
do projeto Cinema e história no Brasil: estratégias discursivas do documentário
na construção de uma memória sobre o regime militar, apoiado pelo CNPq por
meio do Edital Universal 14/2013. Seu objetivo foi o discutir as relações entre
cinema e história a partir dos documentários e filmes de ficção brasileiros
que se ocuparam do período do regime militar, analisando as estratégias
de autenticação de seu discurso, como o uso de material de arquivo, do
testemunho e da voz over, dentre outros procedimentos3.

1. Professor de História do Audiovisual na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor


de Humberto Mauro, Cinema, História (São Paulo, Alameda, 2013) e bolsista produtividade em
pesquisa CNPq.
2. Professor do Departamento de História da USP e Bolsista do CNPq/Bolsa Produtividade,
cuja pesquisa para este texto contou com o apoio desta agência de fomento. Autor, dentre outros
trabalhos, de Coração Civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) - ensaio
histórico (São Paulo: Intermeios - Casa de Artes e Livros, 2017) e 1964: História do Regime Militar
Brasileiro (São Paulo: Editora Contexto, 2014).
3. Um objetivo secundário foi o de mapear a discussão teórica sobre o campo, realizando,
dentre outras ações, o levantamento da produção de dissertações de mestrado e teses de
doutorado defendidas no Brasil sobre história e cinema. Para acessar esse material ver http://
historiaeaudiovisual.weebly.com/cinema-e-histoacuteria.html, acesso em 17 mar. 2018.
8 O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES

Entre os anos de 2014 e 2016, o grupo de pesquisa CNPq “História e


Audiovisual: circularidades e formas de comunicação”, coordenado pelos
organizadores desse livro, promoveu uma série de atividades, como mostra4,
seminários abertos ao público5, entrevistas com diretores6, levantamento
de teses e dissertações sobre cinema e ditadura militar7, estabelecimento de
filmografia, com ficha técnica, fortuna crítica e textos explicativos sobre parte
dessa produção8, publicações9, apresentações de trabalhos em congressos
científicos, etc. Coroando esse processo, ao mesmo tempo em que o finaliza, o
presente livro espera não apenas divulgar o que foi consolidado ao longo desse
período, mas abrir perspectivas novas de trabalho sobre o campo.
É importante ressaltar que o cinema tem ocupado um lugar destacado na
representação e na refiguração dos passados traumáticos das sociedades. Para
além da consagrada dimensão de espetáculo artístico e lazer de massas, o cinema
parece ter uma função específica no campo da memória e da história quando
revisita processos de violência, guerras civis, conflitos internacionais e genocídios.
Não é raro que o cinema se antecipe ao debate acadêmico e até imponha certas
pautas historiográficas, como é notório no caso das representações da Shoah,
desde o incontornável Noite e Neblina (1955), de Alain Resnais.

4. Imagens da ditadura foi realizada na Cinemateca Brasileira entre 27 de março a 13 de abril


de 2014. A programação está disponível em http://historiaeaudiovisual.weebly.com/mostras.html,
acesso em 17 mar. 2018.
5. Foram ao total 17 seminários de pesquisa, com pós-graduandos e docentes da Universidade
de Buenos Aires, Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas, Universidade
Estadual de Santa Catarina, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Universidade
Federal do Paraná. A relação completa dessas atividades, bem como a gravação em vídeo de
algumas dessas palestras, podem ser consultadas em http://historiaeaudiovisual.weebly.com/2014-
--2017.html, acesso em 17 mar. 2018.
6. Silvio Tendler e Lucia Murat foram entrevistados por Eduardo Morettin e Mônica Almeida
Kornis no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC)
da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro, em novembro de 2015. Esse material será publicado
pelo periódico ArtCultura em 2018.
7. Ver http://historiaeaudiovisual.weebly.com/cinema-e-regime-militar-brasileiro.html, acesso
em 17 mar. 2018.
8. Disponível em http://historiaeaudiovisual.weebly.com/filmografia-ditadura-brasil.html,
acesso em 17 mar. 2018. O leitor que consultar a filmografia perceberá alguma discrepância entre
as datas de alguns dos filmes citados nesse livro e as que constam do levantamento. Devemos
considerar que no Brasil nem sempre a data de produção de um filme coincide com a de seu
lançamento. No site, o critério foi a organização cronológica pela data de lançamento, sempre que
possível.
9. Dentre elas, destacamos Ditaduras Revisitadas: Cartografias, Memórias e Representações
Audiovisuais (Faro, Portugal: CIAC/Universidade do Algarve, 2016), organizado por Denize
Correa Araujo, Eduardo Morettin e Vitor Reia-Baptista.
Eduardo Morettin | Marcos Napolitano 9

No caso das ditaduras militares latino-americanas, o cinema ocupa


igualmente um papel de destaque na representação daquele passado que até
hoje parece oscilar entre o trauma (o que não pode ser nomeado, porque
indizível) e o tabu (o que não deve ser nomeado, porque inconveniente). Os
cinemas brasileiro, argentino e chileno, em particular, têm esmiuçado o passado
ditatorial destes países na busca de explicações, equações, ponderações e
representações acerca dos golpes, da repressão, das guerrilhas, das resistências,
das colaborações e dos cotidianos das sociedades tuteladas por governos
militares de direita. Em que pese a percepção geral, correta até certo ponto, de
que o cinema tem um lado nesta História, o da “sociedade vítima e resistente”,
a produção ficcional e documental dos últimos anos é mais rica do que parece.
Esta riqueza não se expressa apenas nas linguagens diversas escolhidas pelos
realizadores, mais “autoral” ou mais “comercial”, se quisermos manter a
problemática dicotomia que se consagrou no circuito cinéfilo. Mas também
se expressa pela diversidade de temas, ideologias, abordagens e personagens
relativos àqueles passados que marcam os filmes.
Vale dizer, que os filmes sobre as ditaduras não foram produzidos depois
que estes regimes políticos foram superados pela volta das democracias. Ainda
durante a sua vigência, o cinema latino-americano representou as ditaduras
do continente, de forma direta ou enviesada, dependendo da conjuntura
repressiva. As ditaduras organizaram novas formas de relação entre os
respectivos Estados e as cinematografias nacionais, de diversas maneiras. Seja
pela censura que exigia novos exercícios de linguagem por parte dos diretores
e roteiristas, frequentemente ligada à alegoria e à metáfora como forma de
crítica. Seja pela normatização burocrática e pelo mecenato estatal que no
caso brasileiro, particularmente, impactou o campo do cinema e abriu novas
possibilidades de produção e distribuição para os realizadores nacionais,
críticos ou não do regime. Mesmo depois de superados os regimes autoritários,
os cinemas dos países que passaram pela experiência traumática das ditaduras,
assumiram um papel central como vetores de memória, a partir de diversos
gêneros e estéticas. Nas obras realizadas nas fases de transição democrática
ou de vigência plena do Estado de Direito na América Latina, as ditaduras
foram esmiuçadas, analisadas, comentadas, criticadas, compreendidas. Muitos
filmes, ficcionais ou documentais, se viram no centro de debates intensos,
posto que sua relação com o público ia muito além do mero entretenimento,
embora muitas vezes se confunda com este.
Na filmografia sobre os golpes e ditaduras do “Cone Sul” (Brasil aí incluído,
malgré sua geografia mais ampla), o primeiro aspecto que chama a atenção
são as diferentes trilhas de investigação histórica entre o documentário e a
ficção nos últimos 20 anos, ao menos. No primeiro gênero, o olhar subjetivo
10 O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES

dos realizadores refigura o passado, seja através da busca simbólica (e real),


muitas vezes traumática, dos parentes que se envolveram diretamente na
guerrilha, seja através da reafirmação de uma memória pública heroica e
monumentalizada dos resistentes com os quais se identificam. Na ficção, o
melodrama e o drama estruturados a partir de narrativas clássicas têm dado o
tom das obras, via de regra centradas nas figuras da resistência, seus dilemas,
derrotas e contradições. Na ficção, a catarse parece predominar sobre a
crítica, enquanto no documentarismo, o revisionismo e a problematização do
passado parecem ter mais lugar. Se no cinema ficcional, a derrota política real
é compensada pela vitória moral, seguida da monumentalização, daqueles que
lutaram (e morreram), sobretudo nas obras de viés mais melodramático, no
documentário a história ainda é representada como um processo aberto, como
se os cadáveres do regime ainda estivessem ao sol, exigindo uma autopsia.
Nestas escolhas, o cinema dos últimos 20 anos, à exceção de algumas obras
marcantes e singulares, parece fugir do diagnóstico político da derrota e da
cumplicidade social diante da repressão. O heroísmo dos resistentes e a vilania
dos repressores, que quase sempre caracteriza as produções de maior apelo
comercial, se adequam a este olhar obliquo sobre o passado. Ao que parece,
ainda é muito difícil tocar em certos temas. Voltamos aos traumas e tabus. Se
há diferenças de escala, culturas políticas e intensidades do debate em cada
cinematografia nacional, esta tendência geral parece estar se compartilhando
nos últimos 20 anos. No caso brasileiro, a nostalgia que boa parte da classe
média parece sentir do regime militar, talvez estimule obras revisionistas
no pior sentido do termo, matizando a violência do regime, vilanizando
o lado derrotado ou heroicizando a repressão. Alguns filmes já esbarraram
neste revisionismo, ainda que não tenham rompido completamente com as
representações dominantes da “sociedade vítima-resistente”.
Obviamente, há diferenças importantes entre o cinema argentino, chileno
e brasileiro. No caso dos dois primeiros, houve uma importante produção feita
no exílio durante os regimes militares, seguido de um ambiente particularmente
fértil para o cinema ficcional que realizasse a catarse da sociedade durante a
redemocratização, figurando a ditadura como hiato histórico, sobretudo no caso
argentino. No caso chileno, tudo indica que o cinema ficcional assumiu a tarefa
de representar um novo país, sem as ilusões ou valores do passado, entendendo
a ditadura não como hiato, mas como travessia a fórceps para um futuro incerto
e inglório. No caso brasileiro, dada a longevidade e as dinâmicas internas do
regime em relação à cultura, o cinema tem uma relação mais contraditória
e complexa com este tema. Nos anos 1960, sob os efeitos do cinema novo, a
ditadura foi representada de um modo bem diverso do que nos anos 1980 em
diante no documentário, mas principalmente na ficção.
Eduardo Morettin | Marcos Napolitano 11

A crítica e a historiografia do cinema já estabeleceram, ainda durante a


vigência dos regimes militares, várias pautas e formas de se analisar os filmes
latino-americanos sobre o tema. Neste debate, algumas tendências se destacam:
a importância da alegoria, os limites e potencialidades do naturalismo e
do realismo na representação do passado, o paradoxo do mecenato oficial
(sobretudo no caso brasileiro), as tensões entre o filme político, filmes históricos
e as regras de gênero, as contradições do documentário em sua busca pelo real,
entre tantos outros tópicos.
Neste livro, não só retomamos estas questões, propondo um adensamento
do debate face a novas fontes e perspectivas, mas também procuramos
pensar novos problemas e temas para as pesquisas históricas em relação ao
cinema das/sobre as ditaduras, escolhendo filmes documentais e ficcionais
de diversas épocas, que ora confirmam as tendências gerais aqui sintetizadas,
ora se oferecem para leituras alternativas a estas tendências. Os capítulos aqui
reunidos buscam analisar obras não-canônicas em profundidade, ou mesmo
as canônicas a partir de outras perspectivas, menos comuns. Procuram
discutir o documentarismo, mapeando tendências do passado, como a
“Internacional do cinema militante” sobre o Chile de Allende, ou do presente,
como o documentarismo subjetivo realizado por parentes de atores históricos.
Analisam políticas culturais das ditaduras, seus agentes e os filmes por elas
inspirados, que se contrapõem à memória hegemônica da “sociedade vítima-
resistente”.
O primeiro capítulo, de Eduardo Morettin, investiga as demandas
oficiais do governo brasileiro nos anos 1970 pelo filme histórico, gênero
particularmente cultivado pelas ditaduras, e sua relação com a crítica
histogriográfica, dada a participação de historiadores em projetos fomentados
pela Embrafilme, espaço que se tornou um lugar de disputa sobre o sentido do
passado, bem como um lugar de crítica ao presente. Ignacio Del Valle Dávila
segue nesta linha, analisando detalhadamente um caso de filme histórico de
adesão ao regime, mas que nem por isso escapa a contradições, o famoso
Independência ou Morte (1972), de Carlos Coimbra, grande sucesso do cinema
brasileiro, e sua relação com a obra do escritor Paulo Setúbal, abordagem pouco
explorada nos estudos sobre o filme. Margarida Adamatti recupera a trajetória
intelectual, rica e contraditória, de Gustavo Dahl, cineasta e crítico ligado à
esquerda e ao cinema novo que participou da burocracia oficial da ditadura,
que procurava estimular e organizar a indústria cinematográfica brasileira
nos anos 1970. Nesse sentido, não foram poucos os dilemas decorrentes dessa
participação e das estratégias para articular o cinema político ao mercado,
em busca de um maior público. O texto de Marcos Napolitano e Fernando
Seliprandy realiza um exame de conjunto da filmografia sobre o período, com
12 O CINEMA E AS DITADURAS MILITARES

destaque para Paula, a história de uma subversiva (Francisco Ramalho Jr.,


1979), um filme não-canônico sobre a ditadura brasileira produzido no início
da abertura política, obra pioneira em sua tentativa de enquadrar a memória
sobre os “anos de chumbo”.
O tema da memória e da representação do passado também serve de
mote para outros capítulos do livro. Monica Kornis examina a relação entre
melodrama televisual e imagens de arquivo na conformação de uma memória
sobre o regime militar brasileiro, a partir da minissérie Anos Rebeldes
(1992), articulando a análise ao mapeamento dos projetos ideológicos que se
encontravam em sua origem, além da recepção e impacto que a minissérie
teve à época. Rosane Kaminski traz ao debate o filme Ressurreição (1988),
curta realizado logo depois do fim do regime miliar, parte da cinematografia
desviante de Arthur Omar, como foco na violência e emoção presentes na
obra, como chaves para provocar uma leitura do passado recente. Como diz a
autora, suas imagens “ativam também a memória não tão remota da violência
praticada pelo governo militar contra os seus oponentes, ao longo das duas
décadas anteriores”.
Voltamos ao quadro geral com o texto de Cristiane Freitas Gutfreind, que
sintetiza algumas linhagens das obras que representaram o período em sua
articulação com o realismo e a dimensão biográfica, propondo uma revisão
do lugar do “filme político” nessa filmografia. Reinaldo Cardenuto analisa
as disputas de memória no documentarismo feito por parentes de militantes
políticos, discutindo as tendências e a busca da subjetividade como forma
de processar a experiência das ditaduras em três filmes: Diário de uma busca
(2011), de Flávia Castro, Os dias com ele (2012), de Maria Clara Escobar, e Em
busca de Iara (2013), de Flávio Frederico.
Os capítulos finais se dedicam ao contexto chileno e argentino. A
filmografia solidária às vítimas da ditadura chilena, realizada em circuitos
transnacionais, é analisada por Carolina Amaral de Aguiar. Ainda relativo
aos filmes feitos durante as ditaduras, Ana Laura Lunisch nos apresenta uma
filmografia crítica ao terrorismo de Estado na Argentina, de caráter muitas
vezes hermético, mas não menos contundente, feita durante sua vigência. Em
que pese a diversidade de temas, estilos, qualidade das obras e abordagens dos
filmes aqui analisados, este projeto editorial tem alguns objetivos e olhares
comuns, amplamente debatidos e exercitados nas atividades do Grupo de
Pesquisa CNPq “História e Audiovisual”10 que conectam todos os autores

10. Dentre essas atividades, além das já citadas em notas anteriores, cumpre destacar os resultados
de pesquisa publicados em Cinema e história: circularidades, arquivos e experiência estética (Porto
Alegre, Sulina, 2017), organizados por Carolina Amaral de Aguiar, Danielle Carvalho, Eduardo
Eduardo Morettin | Marcos Napolitano 13

envolvidos neste livro. Em primeiro lugar, valorizar o específico fílmico em


sua relação com um conjunto de teorias e metodologias sobre o audiovisual,
caminho produtivo para pensar o filme enquanto documento histórico,
partindo da indissociabilidade entre a análise das representações e o exame da
linguagem cinematográfica. Em segundo lugar, pensar o cinema não apenas
como “vetor” de memórias sobre as ditaduras, como se estas fossem gestadas
apenas em outros lugares e linguagens, mas como “produtores de memória”,
identificadas a partir de sua narrativa audiovisual em diálogo com os debates
historiográficos e memórias dominantes ou recalcadas.
Esperamos que os textos que se seguem tenham conseguido, dentro da
sua diversidade, atingir estes dois objetivos.
Ao fim e ao cabo, gostaríamos de agradecer o apoio da FAPESP e
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sem os quais esta publicação
seria inviável.

Morettin, Lúcia Monteiro e Margarida Adamatti, História e Documentário (São Paulo, Editora
FGV, 2012), organizado por Eduardo Morettin, Marcos Napolitano e Mônica Almeida Kornis,
e o primeiro projeto editorial do grupo de pesquisa, História e Cinema: dimensões históricas do
audiovisual (2ª ed., São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2011), organizado por Eduardo Morettin,
Elias Thomé Saliba, Marcos Napolitano e Maria Helena Capelato.

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