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GOMES, Itania Maria Mota.

“Estudos culturais, cultura e cultura de massa” in


GOMES, Itania Maria Mota. Efeito e Recepção: a interpretação do processo
receptivo em duas tradições de investigação sobre os media, Rio de Janeiro, E-
Papers, 2004, 107-131;

Estudos Culturais, cultura e cultura de massa

Considera-se que a fundação dos Estudos Culturais se deu um pouco antes da


criação do CCCS. Dois livros publicados em fins dos anos 50, The Uses of Literacy, de
Richard HOGGART (1957), e Culture and Society:1780-1950, de Raymond
WILLIAMS (1958), e um terceiro publicado no início dos anos 60, The Making of the
English Working Class, de Edward THOMPSON (1963) são considerados os textos
inauguradores dos Estudos Culturais. Estes três autores estão preocupados, de modo
geral, em entender quem são e como se constituem as classes trabalhadoras. Esse
interesse pela situação social e cultural da classe trabalhadora os leva a buscar os meios
de redefinir a noção tradicional de cultura de modo a estendê-la o suficiente para incluir
a cultura popular ou de massa.

O programa inicial dos Estudos Culturais foi proceder a uma transformação


radical do conceito de cultura que se afastava daquele defendido pelos principais
intelectuais da época – que entendiam a cultura apenas no sentido que hoje damos à
expressão cultura erudita e que se refere à busca e ao cultivo da perfeição moral,
intelectual, espiritual. Desde essa fase inicial, desde esses primeiros esforços por
reformular o conceito de cultura que os cultural studies se distinguirão como uma
corrente de investigação que põe o foco da sua atenção no processo ativo e consciente
de construção de sentido na cultura.

Neste capítulo, exploraremos as contribuições de duas dessas obras que


marcaram o surgimento dos Estudos Culturais, especificamente The Uses of Literacy, de
Richard Hoggart, e Cultura e Sociedade –1780-1950, de Raymond Williams. Pensar a
cultura como expressão dos processos sociais, como faz Richard Hoggart, ou como um
modo integral de vida, como faz Raymond Williams, leva os Estudos Culturais, nessa
fase inicial, a criar as bases para uma compreensão de cultura como a esfera do sentido
que unifica as esferas da produção (a economia) e das relações sociais (a política).
Williams e Hoggart são considerados fundadores dos Estudos Culturais por mostrar, na
Inglaterra dos anos 50, que a vida material e a vida cultural são profundamente
interligadas e por mostrar, contra a visão própria da intelectualidade inglesa à época, o
lastro popular da cultura.

1.1. Cultura como expressão dos processos sociais

The Uses of Literacy. Aspects of working-class life with special reference to


publications and entertainments 1 é um livro dividido em duas partes. Na primeira, Uma
velha ordem 2, Richard Hoggart pretende indicar o caráter múltiplo e infinitamente
multifacetário da vida da classe trabalhadora e colocar-se contra o romantismo das
abordagens das classes trabalhadoras ou populares, romantismo que, ao mesmo tempo
em que traz consigo o perigo de super valorizar as qualidades da cultura operária, leva a
um conseqüente lamento por sua situação. Nesse primeiro momento, dá-se ênfase a
aspectos da oralidade, ao papel da família e da comunidade na configuração da cultura
tradicional, investiga-se o modo como o concreto, o pessoal e o local, o presente e o
imediato modelam essa cultura.

Na segunda parte do livro, Cedendo lugar ao novo 3, Hoggart concentra-se nos


aspectos “mais lamentáveis” das mudanças trazidas pela cultura de massa. Embora
analise detidamente as publicações populares e o entretenimento4, Hoggart acredita que
seu diagnóstico poderá, com alguns ajustes, valer também para o cinema, a
radiodifusão, a televisão e a publicidade (cf.Ibidem:270). Nessa segunda parte do livro,
a forma de abordar a relação entre meios e público não difere daquela que várias vezes
indicamos na primeira parte desta tese e que configura a forma mais usual de

1
A dificuldade de acesso a essa obra hoje, no Brasil, justifica nosso procedimento de apresentar
sua estrutura interna, detalhar seus conteúdos básicos e só então explorar suas conseqüências.
Tanto as edições inglesas quanto uma tradução portuguesa dessa obra (As utilizações da
Cultura: aspectos da vida cultural da classe trabalhadora, Lisboa: Editorial Presença,1973)
estão esgotadas. Neste trabalho, utilizamos a primeira edição inglesa, publicada pela Chatto &
Windus, da qual foram livremente traduzidas todas as citações indicadas.
2
An ‘Older’ Order.
3
Yielding Place to New.
4
Hoggart debruça-se, entre outros materiais, sobre as publicações ilustradas, os romances
populares, os calendários de parede com fotos de mulheres nuas e as letras das canções
populares.
investigação sobre os efeitos: da análise das publicações e entretenimento deduz-se o
efeito que eles causam.

Igualmente usual naquele período, a preocupação também é com a natureza da


produção de massa – concentração da produção, organização comercial em larga escala,
o interesse do lucro – e os efeitos dessa massificação sobre os consumidores, efeitos
sobre a sexualidade, a violência, os hábitos de leitura, sobre os valores. A questão de
fundo é que a cultura, agora, é um jogo de fazer dinheiro, um negócio, um comércio
quase sempre enganador e fraudulento (cf.Ibidem:197) possibilitado pela produção
industrial e pela tecnologia.

Essa associação entre cultura e negócio traz como conseqüência o próprio


processo de massificação ou, dito de outro modo, a mudança rumo a uma sociedade
culturalmente sem classes (cf.Ibidem:15;201;279). Hoggart, diferentemente de
Raymond Williams, como veremos adiante 5, acreditava que em pelo menos um sentido
a sociedade caminhava, naquele momento, em direção a “um tipo mais medíocre de
cultura sem classe ou ...uma cultura ‘sem rosto’” (Ibidem:280) 6. E isso porque a
indústria do entretenimento, para alcançar uma audiência maior, precisaria deixar de
lado os limites de classe. A especial dedicação que a produção de massa tem para com a
classe trabalhadora e a baixa classe média justifica-se apenas porque aquela audiência
forma a maioria de seus potenciais consumidores – nem que seja no simples sentido de
que essas classes formam a maioria da população. Para Hoggart, então, a identificação
entre cultura de massa e classe trabalhadora dá-se por uma relação de mercado: uma
forma o público consumidor da outra.

1.1.1. Qualidades da Cultura Operária

Hoggart descreve as mudanças na vida operária da Inglaterra do pós-guerra


através de sua própria experiência pessoal: seus exemplos são freqüentemente

5
Com o giro que os Estudos Culturais darão em direção ao marxismo, considerar a cultura tanto
em termos de massa quanto em termos da cultura própria de uma sociedade sem classes será
despolitizar o conceito de cultura. Ver, mais adiante, a discussão sobre Raymond Williams e sua
concepção de cultura como um modo integral de vida.
6
“...a poorer kind of classless, or ... a ‘faceless’ culture”.
garimpados na história de sua família7 ou dele próprio, quem viveu entre as milhares de
casas amontoadas e enfumaçadas do distrito operário de Leeds; quem, aos 11 anos,
passeava pelo bairro em direção ao centro comercial para comprar suas revistas
semanais preferidas; ou, ainda, quem analisa muitos dos detalhes da leitura e de outros
hábitos a partir dos seus próprios.

No que pretende ser um simples diagnóstico sem aspirar possuir o caráter


cientificamente testado dos levantamentos sociológicos (cf.Ibidem:11), uma visão
individual de algumas tendências da situação cultural baseada parcialmente na sua
própria experiência pessoal e parcialmente no seu interesse como especialista, Hoggart
se esforçará por

“ver além dos hábitos, o que eles significam; ver através dos relatos o que os
relatos verdadeiramente querem dizer (o que pode ser o oposto dos relatos
mesmos); detectar as diferentes pressões da emoção atrás das frases idiomáticas
e das práticas rituais” (Ibidem:18). 8

A essência da vida e da cultura da classe trabalhadora é um certo “sentido do


pessoal, do concreto, do local” (Ibidem:32,g.n.) 9. É uma “‘vida densa e concreta’,
uma vida cuja principal ênfase é dada ao que é íntimo, sensório, detalhado e pessoal”
(Ibidem:88,g.n.)10. Essa essência é incorporada na idéia de família, na de comunidade,
na fala, nas formas da cultura e nas atitudes tal como elas se expressam na vida
cotidiana. Hoggart presta especial atenção às maneiras de falar, de vestir, de morar; a
aspectos da experiência diária (tais como o hábito de comprar a crédito e pagar em
pequenas prestações (cf.Ibidem:21); às superstições e aos mitos (cf.Ibidem29ss). O
mundo concreto e local é o que pode ser compreendido, manuseado, é aquele no qual se
pode confiar, e é a partir dele que se poderá compreender as relações da subcultura

7
Por exemplo, entre as páginas 24 e 26 Hoggart conta como sua família atravessou as duas
guerras mundiais e foi obrigada a deixar a área rural e se instalar em zona urbana em busca de
maiores facilidades educacionais e sociais – por exemplo, acesso a médicos – e como, mesmo
então, seu passado rural se evidenciava no corpo, nas atitudes, na linguagem, no estilo de
moradia, na decoração das casas, nos aforismos.
8
“...to see beyond the habits to what the habits stand for, to see through the statements to what
the statements really mean (which may be the opposite of the statements themselves), to detect
the differing pressures of emotion behind idiomatic phrases and ritualistic observances”.
9
“...a sense of the personal, the concrete, the local”.
10
“...’dense and concrete life’, a life whose main stress is on the intimate, the sensory, the
detailed and the personal”.
operária com as “debilitantes forças externas” (Ibidem:146)11 representadas pelas
publicações e entretenimentos de massa.

A importância que se dá ao concreto, ao pessoal, ao íntimo, ao local nas culturas


populares justifica seu interesse pelas representações da vida cotidiana: essa gente é
imensamente interessada em gente: “eles têm a fascinação do romancista pelo
12
comportamento individual, pelos relacionamentos” (Ibidem: 89) . Hoggart
chama a

atenção para o fato de que a indústria do entretenimento é extremamente habilidosa em


usar isso a seu favor: a ênfase que ela dá aos aspectos da vida cotidiana, por exemplo,
quando seus seriados refletem diariamente os pormenores da vida cotidiana, é uma
estratégia de captura de audiência. A arte de maior apelo entre a classe trabalhadora será
sempre aquela que apresentar como seu pressuposto a compreensão de que “a vida
13
humana é fascinante em si mesma” (Ibidem:100) . O alimento básico dos seriados
populares não é alguma coisa que sugira uma fuga da vida comum; antes é o que
assume que a vida comum é intrinsecamente interessante. Daí porque, menos que uma
fuga da rotina diária, essa arte deve ser reiteradamente uma apresentação do que já é
essencialmente conhecido.

“[São] programas comuns realmente despretensiosos, freqüentemente


compostos... de uma série de itens ligados apenas pelo fato de que todos eles
ocupam-se da vida cotidiana da gente comum... eles simplesmente
‘apresentam o povo ao povo’ e são apreciados por isso... Se (um programa) é
realmente despretensioso e comum ele será interessante e popular”
(Ibidem:101g.n.) 14.

1.1.2. A mudança social

Os efeitos, em The Uses of Literacy, são compreendidos em termos de


mudanças sociais. E, sendo assim, eles são apenas um aspecto de uma interação de
fatores culturais, sociais, políticos, econômicos. “Concentrar-se nos prováveis efeitos
11
“debilitating forces outside”.
12
“they have the novelist’s fascination with individual behaviour, with relationships”.
13
“human life is fascinating in itself”.
14
“... The really ordinary homely programmes, often composed... of a number of items linked
only by the fact that they all deal with the ordinary lives of ordinary people... They simply
‘present people to people’ and are enjoyed for that... If it is really homely and ordinary it will
be interesting and popular”.
de certos desenvolvimentos nas publicações e entretenimento é, claro, isolar apenas um
segmento dentre uma extremamente complexa interação de mudanças sociais, políticas
15
e econômicas. Tudo está contribuindo para alterar atitudes...” (Ibidem:141) . Além
disso, o processo de mudança social é lento: não podemos pensar num corte abrupto
entre o mundo antes da cultura de massa e o mundo depois dele. No momento em que
Hoggart desenvolvia suas investigações, a cultura de massa estava passando por uma
fase de consolidação representada, sobretudo, pela chegada da televisão e ele entendia
que, naquele momento, as “velhas atitudes” e aquelas novas, decorrentes da presença
dos meios de comunicação de massa na vida da sociedade, poderiam ser encontradas ao
mesmo tempo nas mesmas pessoas. “As mudanças nas atitudes se processam de modo
muito lento através de muitos aspectos da vida social. Elas são incorporadas nas
atitudes existentes e freqüentemente parecem, à primeira vista, formas renovadas
daquelas ‘velhas’ atitudes” (Ibidem:142) 16.

Como decorrência dos processos de massificação, Hoggart, de modo similar a


vários investigadores do período, eventualmente se preocupa com os problemas da
degradação do gosto17, da apelação sexual18, da incitação à violência19, do

15
“To concentrate on the probable effects of certain developments in publications and
entertainment is, of course, to isolate only one segment in a vastly complicated interplay of
social, political and economic changes. All are helping to alter attitudes...”.
16
“Changes in attitudes work their way very slowly through many aspects of social life. They
are incorporated into existing attitudes and often seem, at first, to be only freshly presented
forms of those ‘older’ attitudes”.
17
“O argumento mais forte contra o moderno entretenimento de massa não é que ele degrada o
gosto – a degradação pode ser viva e ativa – mas que ele super excita o gosto,
consequentemente o entorpece e finalmente o mata; ele o enfraquece em vez de o
corromper...Ele o aniquila em sua sensibilidade, e ainda confunde e persuade sua audiência de
que ela é quase completamente incapaz de desviar o olhar... Ainda não alcançamos esse estágio,
mas essas são as linhas nas quais estamos nos movendo” (HOGGART.1957:163). [“The
strongest argument against modern mass entertainments is not that they debase taste –
debasement can be alive and active – but that they over-excite it, eventually dull it, and finally
kill it; that they ‘enervate’ rather than ‘corrupt’...They kill it at the nerve, and yet bemuse and
persuade their audience that the audience is almost entirely unable to look up... We have not
reached this stage yet, but these are the lines on which we are moving” ].
18
Hoggart desconfia, por exemplo, da capacidade de algumas publicações ilustradas ou dos
calendários com mulheres nuas de incrementar a imoralidade sexual entre os jovens. Ele não
consegue “imaginar muita conexão entre [essas publicações] e a atividade sexual. Eles podem
encorajar a masturbação: em sua forma simbólica eles podem promover aquele tipo de resposta
sexual hermética” (HOGGART.1957:192). [“I find hard to imagine much connection between
them and heterosexual activity. They may encourage masturbation: in their symbolic way they
may promote that kind of sealed-off sexual response”].
19
Entre as páginas 210 e 223, Hoggart analisa os romances de sexo-e-violência.
sensacionalismo20, e mesmo se preocupa com o fato de que “a imprensa popular...é uma
das maiores forças conservadoras na vida pública hoje em dia: sua natureza requer que
ela promova o conservadorismo e a conformidade” (Ibidem:196). Mas não são esses os
efeitos que detêm sua atenção. O interesse de Hoggart coloca-se precipuamente sobre a
mudança nos hábitos de leitura e sobre a reinterpretação de valores básicos da
cultura ocidental

burguesa, tais como liberdade, igualdade e progresso.

1.1.2.1. Os hábitos de leitura

Em relação à leitura, o problema é que ao avanço no sistema de ensino, à


diminuição do analfabetismo na Inglaterra e à maior facilidade de acesso às publicações
não corresponde uma melhoria da qualidade da leitura. Hoggart faz logo a ressalva de
que não é possível dar uma resposta estatística à análise da qualidade da leitura já que a
questão envolve distinções de valor (cf.Ibidem:271) 21.

20
Ver à página 191, de Hoggart.1957, referências à imprensa sensacionalista.
21
No início dos anos 70, no Brasil, Ecléa BOSI (1986) realizou uma investigação empírica, de
cunho sociológico, sobre leitura de operárias de uma fábrica em Osasco, periferia de São Paulo.
Nessa pesquisa Bosi apresenta, em termos muito próximos dos defendidos por Richard Hoggart
em The Uses of Literacy, largamente citado no livro que resultou da investigação, a relação
entre cultura de massa e cultura popular.
Tal como Hoggart, também Bosi pratica uma espécie de declaração de amor à cultura operária,
que a partir do cimento, da padronização dos loteamentos, da fábrica que desfigura o bairro,
“imprimindo o seu selo de esqualidez às ruas e casas cujas cores rouba e cuja fisionomia rói”
(p.20) realizaria um movimento lento e contínuo de diferenciação que pouco a pouco substitui o
cimento pelas plantações de milho e abóbora, pelas roseiras; que vai transformando um cômodo
pequeno de uma dessas casas planejadas e mobiliadas com móveis baratos e “que os refinados
consideram de mau gosto” (p.21) em um “ambiente em que a família se reúne, acolhedor,
quente e agradável, onde é bom estar”(p.21). Em outras palavras, Ecléa Bosi acredita que esses
movimentos de diferenciação próprios da cultura do povo implicam “uma resistência diária à
massificação e ao nivelamento” (p.23).
Inicialmente interessada em saber se se verificavam hábitos de leitura entre mulheres operárias,
a autora leva em consideração a leitura de qualquer material impresso, desde a Bíblia e clássicos
da literatura até as publicações de massa, tais como jornais, revistas, histórias em quadrinhos,
fotonovelas e os romances comerciais. Dessa investigação o que se ressalta é a relação entre
leitura e vida cotidiana, relação que se mostra tanto na escolha do material impresso ou do que
efetivamente se lê nesse material (por exemplo, Bosi mostra a relação entre a preferência pelos
horóscopos e a busca de orientação para a vida diária, p.127) quanto nos hábitos de leitura em si
(por exemplo, como o tempo para a leitura se insere na divisão do tempo entre a jornada de
trabalho fabril e de trabalho doméstico, p.22). Esse trabalho de Ecléa Bosi é considerado uma
das primeiras investigações sobre recepção no Brasil.
Segundo Hoggart, há um grande incremento no consumo das publicações
voltadas para o entretenimento e esse consumo não deve ser lastimado. O problema é
que, em alguma medida, "o tamanho do incremento parece haver sido decidido nem
tanto pela necessidade de satisfazer apetites anteriormente insatisfeitos, mas pela mais
22
forte persuasão daqueles que fornecem o entretenimento” (Ibidem:270) . É o esforço
da indústria do entretenimento por alcançar vendas cada vez maiores que dita as regras
da oferta e não os interesses do público ou mesmo do sistema educacional, com todas as
conseqüências “lamentáveis” desse processo23.

A objeção é de que ao incremento da capacidade de leitura não corresponde um


incremento na sua qualidade. Ao contrário, a centralização da produção, a preocupação
com os lucros e o crescimento do número de leitores implicam que as pessoas sejam
forçosamente mantidas num “espantoso baixo nível em suas leituras” (Ibidem:193).

Mas o critério de qualidade de Hoggart é surpreendentemente diferenciado dos


critérios de qualidade da cultura erudita e vincula-se às características que ele
identificou na cultura popular. Para Richard Hoggart, a ausência de qualidade das
publicações populares pode ser evidenciada não pelo fato de que elas não conseguem
chegar ao mesmo nível intelectual que The Times; mas pelo fato de que elas (assim
como tudo o mais a que servem de exemplo: os programas televisivos, o cinema popular
e muito do rádio comercial) não conseguem apelar verdadeiramente ao concreto, ao
local, ao pessoal (cf.. Ibidem:276-7).

Hoggart afirma não se basear num “inconfesso pesar” de que nem todo mundo
leia, por exemplo, The Times.

“Desejar que a maioria da população algum dia venha a ler The Times é
esperar que a natureza humana seja essencialmente diferente, e isso é cair num

22
“...The size of the increase appears to have been decided, not so much by the need to satisfy
previously unsatisfied appetites, as by the stronger persuasions of those who provide the
entertainment”.
23
Hoggart não nega que em muitos aspectos da vida a produção de massa trouxe benefícios. A
bicicleta é um produto industrial de massa que Hoggart aponta como exemplo. Andar de
bicicleta é uma atividade característica da classe trabalhadora (cf.HOGGART.1957:268ss) e,
para Hoggart, o hábito de passear de bicicleta nas manhãs de domingo, pelos arredores das
cidades, a participação nos clubes de ciclismo, são uma valiosa “evidência de que a classe
trabalhadora urbana ainda pode reagir positivamente tanto às mudanças no seu meio ambiente
quanto às vantajosas possibilidades da barata produção de massa” (HOGGART.1957:269)
[“...evidence that urban working-class people can still react positively to both the challenge of
their environment and the useful possibilities of cheap mass-production”]: com o ciclismo, os
jovens aproveitam para praticar exercício, respirar ar fresco e fazer amizades. A questão toda é
que justamente no âmbito cultural é que se torna difícil reconhecer quaisquer benefícios.
esnobismo intelectual. A habilidade para ler os semanários respeitáveis não é
condição sine qua non de qualidade de vida... A objeção mais forte aos
entretenimentos populares mais banais não é que eles impedem seus leitores de
se tornarem intelectuais, mas que eles dificultam que as pessoas sem inclinação
intelectual tornem-se sábios à sua própria maneira” (Ibidem:276) 24.

1.1.2.2. Liberdade, Igualdade e Progresso

Ao investigar o processo de mudança cultural favorecido pelos modernos meios


de comunicação, a questão que preocupa Hoggart é a da mudança dos antigos valores.
Ele analisa particularmente o modo como valores próprios da cultura da classe
trabalhadora, como a tolerância, o sentimento de grupo, a atenção ao presente,
vinculam-se aos conceitos de liberdade, igualdade e progresso no modo como eles são
reinterpretados pela cultura de massa.

“Que relações podem existir entre a antiga tolerância e as formas


contemporâneas da idéia de liberdade, entre o antigo sentimento de grupo e o
moderno igualitarismo democrático e entre (paradoxalmente, como parece ser à
primeira vista) o velho sentimento da necessidade de viver no presente e o novo
progressivismo? De que modo a tolerância contribui para as atividades dos
novos profissionais do entretenimentos?... Pode a idéia de aproveitar o tempo
enquanto se pode porque a vida é dura abrir caminho ao hedonismo de massa?
Pode o sentimento de grupo transformar-se num conformismo arrogante e
desonesto?...” (Ibidem:142) 25.

Na análise que faz das publicações e do entretenimento de massa, Hoggart


verifica que há um forte apelo a essas idéias de liberdade, igualdade e progresso, que
são tão caras ao mundo burguês, mas que particularmente alimentam o patrimônio
cultural da classe trabalhadora. O apelo a essas idéias é uma estratégia da cultura de

24
“To wish that a majority of the population will ever read The Times is to wish that human
beings were constitutionally different, and is to fall into an intellectual snobbery. The ability to
read the decent weeklies is not a sine qua non of the good life... The strongest objection to the
more trivial popular entertainments is not that they prevent their readers from becoming
highbrow, but that they make it harder for people without an intellectual bent to become wise in
their own way ”.
25
“What relationships may there be between the older tolerance and contemporary forms of the
idea of freedom, between the older group-sense and modern democratic egalitarianism and
between (paradoxical though it may seem at first) the older sense of the need to live in the
present with the newer progressivism? In what ways may tolerance help the activities of the
newer entertainers?... Can the idea of ‘aving a good time while y’ can because life is hard
opens the way to a soft mass-hedonism? Can the sense of the group be turned into an arrogant
and slick conformity?...”.
massa para manter a audiência receptiva a suas abordagens (cf. Ibidem:144). Esse apelo
não se faz, entretanto, sem que essas idéias passem por um processo de modelagem com
fins de se tornarem mais adequadas aos propósitos da cultura industrial.

Hoggart analisa a leitura que esses conceitos de liberdade, igualdade e progresso


recebem no seio da cultura operária tradicional; analisa o tratamento que esses
conceitos recebem nos diversos produtos de massa; e chega à conclusão de que a
maioria dos entretenimentos de massa tende “a uma visão de mundo na qual o progresso
é concebido como uma busca da possessão material, igualdade como nivelamento moral
e liberdade como o fundamento do infinito prazer irresponsável.” (Ibidem:277) 26.

Assim, o conceito de progresso, por exemplo, mantém-se como uma noção


inegavelmente válida para a classe trabalhadora em função dos benefícios e serviços
que a sociedade tecnológica possibilita, porque a ausência desses benefícios e serviços
tornaria muito difícil viver uma vida digna, porque sem eles a vida seria uma luta ainda
mais dura pela sobrevivência (cf. Ibidem:143). As novidades tecnológicas facilitam o
dia-a-dia, liberando tempo livre para o lazer. Nesse sentido, progresso combina com as
idéias de viver no presente e curtir a vida (cf. Ibidem:157ss).

No processo de reinterpretação engendrado pelos meios de massa, entretanto, o


progresso se transforma em progressivismo, ou seja, assume uma forma de
materialismo: incentiva-se não a busca por melhores benefícios e serviços
simplesmente, mas a ganância, o consumismo, o “desejo de por as mãos nos produtos
27
cintilantes da sociedade tecnológica” (Ibidem:143) . O progressivismo oferece uma
infinita perspectiva de divertimento, na medida em que a tecnologia cada vez mais serve
à indústria do entretenimento fácil.

Semelhante processo ocorre à idéia de liberdade. No modo como tem sido


transmitida à classe trabalhadora através da cultura de massa, ela apresenta-se como
uma justificação. “É sempre liberdade de, nunca liberdade para; liberdade como um
28
benefício em si mesmo” (Ibidem:147) . No interesse do entretenimento de massa, o
apelo é feito pelo recurso a uma noção de liberdade individual quase ilimitada, pelo
recurso a uma crença de que todas as velhas sanções foram finalmente removidas.

26
“They tend towards a view of the world in which progress is conceived as a seeking of
material possessions, equality as a moral levelling and freedom as the ground for endless
irresponsible pleasure”.
27
“... desire to lay their hands on the glittering products of a technical society”.
28
“It is always freedom from, never freedom for; freedom as a good in itself”.
“Liberdade eqüivale a permissão para prover tudo que melhore as vendas” (Ibidem:198)
29
.

Pela mesma “peneira deformadora e simplificante” (Ibidem:144)30 pela qual a


cultura de massa passa todas as grandes idéias, igualdade assume o caráter de
igualitarismo. Esse “grosseiro igualitarismo democrático” é o próprio fundamento da
massificação (Ibidem:149)31; ele garante que a produção massificada seja, de fato, bem
aceita pelas camadas populares e garante a tendência de se comprar as mesmas marcas
de tênis, assistir os mesmos programas, ler os mesmos jornais e revistas. Esse
igualitarismo apoia-se fortemente no sentimento de grupo próprio da cultura da classe
trabalhadora: o sentimento de grupo, que se traduz no fato de que todos gostamos de
sentir que “estamos indo aonde todo mundo vai”, tem sido usado em prol da mudança
social e da persuasão de massa (cf. Ibidem:149).

“...Há algo acolhedor no sentimento de que você está com todo mundo.
Ouvi pessoas darem, como razão para ouvir um popular programa de rádio, não
o fato de que ele diverte, mas de que ele ‘lhe dá algo sobre o que conversar
depois’ com as pessoas no trabalho” (Ibidem:156) 32.
A discussão sobre o igualitarismo traz uma das passagens mais contraditórias de
The Uses of Literacy. Segundo Hoggart, a tendência ao igualitarismo coopera para a
emergência de um agrupamento cultural quase tão amplo quanto a soma de todos os
outros grupos, daí sua compreensão de que caminhamos rumo a uma sociedade
culturalmente sem classe. Mas tal agrupamento tão amplo “seria um grupo apenas no
sentido de que seus membros compartilhavam uma passividade... Os olhos registrariam
mas não conectariam aos nervos, ao coração ou ao cérebro” (Ibidem:157) 33.

O sentimento de grupo é o responsável pelo prazer que os consumidores dos


produtos culturais de massa possam eventualmente tirar do seu consumo. Segundo
Hoggart, o prazer advém não das possibilidades contidas no objeto de consumo em si,
mas do sentimento de prazer proporcionado pelo fato de que todos desfrutamos os

29
“Liberty equals licence to provide what will best increase sales”.
30
“a simplifying and distorting sieve”.
31
"a callow democratic egalitarianism".
32
“ ...There is something warming in the feeling that you are with everyone else. I have heard
people give, as their reason for listening to a popular wireless programme, not the fact that it is
amusing, but that it ‘gives you something to talk about’ with everyone else at work”.
33
“...It would be a group only in the sense that its members shared a passivity...The eyes would
register but not connect to the nerves, the heart and the brain”.
mesmos romances, as mesmas publicações ilustradas, os mesmos programas de rádio,
os mesmos hits musicais. O prazer é decorrência da partilha.

Hoggart fala em passividade dos receptores ao mesmo tempo em que discute o


prazer de consumir os produtos de massa. O prazer que será considerado, tanto para a
corrente dos usos e gratificações 34 quanto para os Estudos Culturais dos anos 80 e 90 35
como a evidência de um consumo ativo por parte dos receptores. Para Hoggart,
entretanto, o prazer do consumo não impedia a passividade dos consumidores diante dos
produtos da imprensa, da televisão, do cinema, a aceitação passiva do que lhe era
imposto pela indústria do entretenimento.

1.1.3. Contigüidades...

Cada uma das partes do livro de Hoggart foi escrita com a linguagem e as
inquietações do seu tempo e, analisadas isoladamente, quase nada as afastaria do
pensamento canônico sobre a cultura de massa. A inquietação básica é aquela já nossa
velha conhecida dos primórdios dos estudos de comunicação:

“que estamos caminhando rumo à criação de uma cultura de massa; que os


resquícios do que era, pelo menos em parte, uma cultura urbana ‘do povo’ estão
sendo destruídos; e que a nova cultura de massa é, em alguns aspectos
importantes, menos sadia do que a freqüentemente tosca cultura que ela está
substituindo” (Ibidem:23-4). 36

Exceto, talvez, o uso de um método mais requintado de análise oriundo dos


estudos literários associado a observações de caráter etnográfico, quase não há o que
diferencie o diagnóstico produzido por Hoggart da produção intelectual própria da
investigação em comunicação dos anos 40 e 50; quase nada há que o afaste do
generalizado tom de queixa e preocupação com os efeitos da associação entre cultura,

34
Ver Parte I, capítulo 3, em especial item 3.1.1. Usos e gratificações.
35
John Fiske é quem, dentro dos Estudos Culturais (americanos), mais tem desenvolvido a
hipótese de que o prazer que o receptor tira da sua relação com os media é a prova de que a
recepção é um processo ativo. Ele parte dos desenvolvimentos de Barthes sobre O prazer do
texto (BARTHES. 1993b), para fazer uma investigação sobre a televisão. Ver FISKE. 1987.
36
“...that we are moving towards the creation of a mass culture; that the remnants of what was
at least in parts an urban culture ‘of the people’ are being destroyed; and that the new mass
culture is in same important ways less healthy than the often crude culture it is replacing”.
tecnologia e produção em larga escala. Mesmo a linguagem é aquela, dos efeitos, das
atitudes, da massificação. Analisado nesses termos, The Uses of Literacy faria parte,
tranqüilamente, do leque de obras que analisam as produções da cultura de massa e se
assustam com o que nelas encontram. Pode-se mesmo, sem muito esforço, identificar
certa combinação de nostalgia e pessimismo, nostalgia de um mundo livre da
tecnologia, da industrialização e da urbanização; pessimismo quanto às conseqüências
dessas mesmas tecnologia, industrialização e urbanização sobre a natureza humana.

Há, de fato, alguma aproximação entre The Uses of Literacy e algumas


modalidades de investigação sobre os media que discutimos na primeira parte desta
tese, sob a denominação de Estudos dos Efeitos. Marcadamente, Hoggart realiza um
37
diagnóstico muito afim ao da Escola de Frankfurt , mais especificamente ao
pensamento de Horkheimer e Adorno na fase posterior à Dialética do Esclarecimento.
Em outros aspectos, no entanto, Hoggart parece ligar-se às investigações do período dos
efeitos limitados, especialmente às investigações de Lazarsfeld sobre os grupos de
referência, ao uso do conceito de subcultura e à aposta nos métodos de investigação
etnográficos.

A compreensão socialista da cultura é talvez o aspecto que melhor justifique a


proximidade, sobretudo na segunda parte do livro, entre The Uses of Literacy e essa
outra corrente de investigação crítica da cultura, elaborada por pesquisadores ligados a
Frankfurt - e isso apesar de não se poder classificar Richard Hoggart como um
intelectual marxista: “ele não era, e nunca tinha sido, um marxista” (SPARKS. 1996:
72) 38. Hoggart não formou sua visão da cultura operária com referência ao comunismo
– que formou outros intelectuais proeminentes dos Estudos Culturais, Williams e Hall
entre eles - nem com referência a qualquer outra variante do marxismo. Além disso,
não aparece explicitamente em Hoggart a preocupação com um tema marxista clássico,
a ideologia, tão crucial para os pensadores de Frankfurt quanto será mais tarde para os
Estudos Culturais.

Embora os frankfurtianos demonstrem maior perspicácia e capacidade crítica ao


analisar a cultura e a comunicação de massa como inseridas no sistema capitalista de
produção, obedecendo ao mesmo modelo de gestão, organização e distribuição, à
mesma racionalidade técnica que caracteriza qualquer produto industrializado, também

37
Ver Parte I, capítulo 3, item 3.2. A teoria Crítica.
38
“he was not, and never had been, a marxist”.
em Hoggart essa compreensão está presente e se evidencia sobretudo quando ele
descreve os processos de centralização da produção e quando, tal como Adorno, assume
que o mercado é a categoria que distingue tanto a cultura popular autêntica quanto a
cultura erudita da cultura de massas. Aqui também se assume que o elemento
determinante na configuração da cultura de massas é a “especulação sobre o efeito”, é
“a motivação do lucro” 39.

As relações entre cultura e sistema capitalista constituíram a preocupação


primordial de Hoggart, tal como para Adorno e Horkheimer. Mas elas não são
interpretadas do mesmo modo. Em Hoggart, em última instância, a ênfase é posta nos
aspectos criativos da atividade humana como propulsora da mudança social.

O tratamento que The Use of Literacy faz da comunicação e da cultura de


massas aproxima-se, igualmente, das investigações ligadas ao chamado período dos
efeitos limitados. A afinidade está em considerar os media como causa necessária mas
não suficiente para a produção dos efeitos40. Praticamente ao mesmo tempo em que
Klapper dizia que "quase todos os aspectos da vida do membro da audiência e da cultura
na qual ocorre a comunicação parecem suscetíveis de serem relacionados com o
processo dos efeitos da comunicação" (KLAPPER.198741:164), Hoggart, do outro lado
do Atlântico, afirmava que os efeitos da massificação deveriam ser analisados contra o
pano de fundo geral da cultura e empreendia uma investigação sobre o processo de
mudança social em que tomava em consideração as relações entre a cultura operária e a
cultura de massa.

Embora Hoggart de modo algum faça referência ao modelo do two-step flow of


communication, sua compreensão dos processos comunicativos remete à idéia de que
tais processos ocorrem nos contextos das culturais locais. Certamente Hoggart é
influenciado por um clima intelectual que, animado com as descobertas antropológicas,

39
É muito pouco provável que Hoggart tivesse conhecimento das investigações conduzidas
pelos pensadores ligados ao Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt quando escreveu The
Uses of Literacy. Os textos de Frankfurt, majoritariamente escritos em alemão, receberam
traduções tardias para o inglês, particularmente a partir da década de 70 (cf. INGLIS.1993: 57-
8). Raymond Williams fala explicitamente, em Marxismo e Literatura, do seu acesso tardio às
obras da Escola de Frankfurt e de como sua leitura dos frankfurtianos, em especial de Walter
Benjamin, e de outros investigadores marxistas conduziu ao compromisso do seu trabalho com
a vida da maioria da população (WILLIAMS.1979:10).
40
Ver Parte I, Capítulo 2, Efeitos limitados: mediação, seletividade e reforço. Ver
especificamente o item 2.2. Líderes de opinião e grupos primários.
41
Original de 1958.
lança mão do conceito de subcultura e dos métodos de investigação etnográfica. Mas,
diferentemente das investigações americanas, Hoggart não se preocupa com as
influências a curto prazo. Ao contrário, é o processo de mudança social, um processo
necessariamente lento, que atrai seu interesse.

Tal como na investigação dos efeitos limitados, aqui também se rejeita o


diagnóstico de que as transformações implicadas pela Revolução Industrial tenham
necessariamente como conseqüência a segmentação das relações sociais, o
enfraquecimento dos grupos primários, o isolamento social dos indivíduos. Ao
contrário, Hoggart chega mesmo a afirmar que quanto mais as rápidas transformações
sociais desorientam os indivíduos, quanto mais o mundo exterior parece mais e mais
fluido, tanto mais a família e a comunidade surgem como um porto seguro, como algo
“real e reconhecível” (HOGGART.1957:88). E mais: esses laços comunitários e
familiares acabam funcionando como instâncias de mediação entre os indivíduos e a
cultura de massa.

Se nas investigações americanas dos anos 40 a ênfase acabou por ser posta nas
mediações individuais, ou seja, nas características psicológicas, na estrutura cognitiva e
nos processos perceptivos e mesmo quando se pensava na força dos relacionamentos
pessoais o destaque ia para os líderes de opinião, Hoggart parece se aproximar mais dos
desdobramentos das investigações de Lazarsfeld sobre os grupos de referência. São os
grupos familiares ou comunitários que mais freqüentemente aparecem em The Uses of
Literacy como intermediando a relação entre a cultura e a comunicação de massas e os
indivíduos. A classe social aparece como o principal fator de mediação para Hoggart,
ainda que ele leve em consideração também outras características socio-estruturais e
culturais dos membros da audiência, tais como a faixa etária ou o grau de instrução.

Acreditamos que nem esse avizinhar-se de algumas correntes de investigação


sobre os efeitos, nem mesmo a própria insistência de Hoggart em descrever os efeitos
das publicações e entretenimentos de massa devem ofuscar a contribuição decisiva de
Hoggart – e dessa obra em particular – para a fundação dos Estudos Culturais e,
consequentemente, para o giro que as investigações sobre comunicação e cultura deram
para as análises de recepção.
1.1.4. Rupturas

Em certos momentos Hoggart detém-se sobre as mudanças ocorridas em


conseqüência da massificação da cultura, com ênfase nos efeitos negativos dessa
massificação; em outros – e por mais que pretenda o contrário - produz uma romântica
declaração de amor à cultura da classe trabalhadora. Essa ambivalência levará Simon
DURING (1997:03) a considerar The Uses of Literacy um livro esquizofrênico, que
contém, por um lado, uma evocação sentimental das comunidades operárias
tradicionais, relativamente intocadas pela cultura comercial, e, por outro, um ataque à
moderna cultura de massas. Entretanto, acreditamos que o livro de Hoggart não deve ser
visto com tanta má vontade. Só é possível enxergar esquizofrenia em The Uses of
Literacy se sua leitura admitir cada um dos capítulos como um texto isolado dos demais,
sem conexões internas. Mas essa não parece ser a leitura preferencial desta obra
fundadora dos cultural studies.

De todo modo, uma questão se põe: o que pode haver num livro que
freqüentemente transita entre o saudosismo e a desesperança; num autor que acredita
que a cultura de massa atua como uma combinação de forças para embotar o poder de
discriminação da mente, incapacitando-a para todo exercício voluntário até “reduzi-la a
42
um estado de quase selvagem torpor” (HOGGART.1957:171) ; que acredita, enfim,
que os meios de entretenimento de massa são uma anti-vida (cf.Ibidem:277); o que
pode haver aí que justifique considerá-los, obra e autor, como fundadores de uma
corrente de investigação que definirá o processo de construção de sentido como um
processo ativo e consciente, que afirmará a atividade e a criatividade do receptor-sujeito
e chegará mesmo a saudar a cultura de massas?

O ponto de ruptura da obra de Hoggart com a tradição de investigação dos


media, aquilo que possibilitou à investigação britânica sobre a comunicação de massa
produzir, a partir dele, uma virada de paradigma, evidencia-se, sobretudo, na conexão
entre as partes do livro: há a cultura popular autêntica; há a cultura de massa; e os

42
“...to reduce it to a state of almost savage torpor”.
efeitos de uma sobre a outra só podem ser considerados a partir da sua inter-relação.
Ou, dito de outro modo, os

efeitos da massificação só podem ser analisados contra o pano de fundo geral da


cultura. É necessário, primeiro, descrever a qualidade da vida cotidiana para, depois,
identificar que mudanças sociais são processadas em decorrência dos apelos da cultura
do entretenimento.

Baseado em observações etnográficas do modo de construção das formas


culturais da classe trabalhadora, Hoggart tentou captar como os media associavam-se a
aspectos da cultura operária, sendo então reinterpretados e reapropriados. Naquele
momento, o trabalho de Hoggart optava por relativizar a idéia da onipotência da cultura
de massa: âmbitos importantes da vida cotidiana ainda permaneceriam impermeáveis à
sua influência.

Não há nada de esquizofrênico, portanto, em perceber, através da análise


detalhada de seus produtos, que a cultura e a comunicação de massa visam
determinados objetivos, buscam cumprir determinadas diretrizes, engendram todos os
esforços para capturar seus receptores, mas que não são todo-poderosos. Há, no lado do
consumidor desses produtos, certos aspectos que devem ser considerados: esses
consumidores têm uma cultura própria, interesses próprios, uma vida pessoal, cotidiana,
concreta na qual esse consumo se dá e que lhe molda os padrões.

“O efeito é... controlado e neutralizado continuamente por outras forças.


As pessoas não vivem vidas que são imaginativamente tão pobres quanto a mera
leitura de sua literatura poderia sugerir. Sabemos isso, simplesmente, da nossa
experiência cotidiana. A maioria dos entretenimentos populares contemporâneos
encoraja uma estéril atitude para com a vida, mas muito da vida ainda tem pouca
conexão direta com isso. Existem as guerras e o medo da guerra; há o mundo do
trabalho, das suas relações, lealdades e tensões; existem as obrigações
domésticas e a gestão do dinheiro; existem os laços e as solicitações
comunitários; há doença e cansaço e nascimento e morte...” (Ibidem:264-5). 43

43
“...The effect... is checked and neutralised again and again by other forces. People are not
living lives which are imaginatively as poor as a mere reading of their literature would suggest.
We know this, simply from day-to-day experience. Most contemporary popular entertainment
encourages an effete attitude to life, but still much of life has little direct connection with it.
There are wars and fears of war; there is the world of work, of the relations, the loyalties and
tensions there; there are the duties of home and the management of money; there are
neighbourhood ties and demands; there are illness and fatigue and birth and death...”
Se em alguns momentos Hoggart afirma que a cultura de massa pretende
submeter seus consumidores a um “processo de enfraquecimento” (Ibidem:198)44; se
fala da passividade dos consumidores diante das produções de massa; se identifica nas
publicações e nos entretenimentos populares uma certa inclinação por “manter seus
leitores num nível de aceitação passiva, no qual eles nunca realmente questionam, mas
45
alegremente aceitam o que lhes é dado e não pensam em mudança” (Ibidem:196) ;
Hoggart não deixa de reconhecer que essa aceitação é freqüentemente apenas aparente e
quase sempre limitada ao presente. As classes populares possuem uma forte habilidade
para silenciosamente ignorar aquilo que não lhes interessa, “para sobreviver às
mudanças adaptando ou assimilando o que elas querem do novo e ignorando o resto”
(Ibidem:31) 46.

E o que lhes garante esse jogo de cintura, o que, em outros termos, possibilita às
pessoas resistirem às investidas da cultura de massa, são as “ainda consideráveis
47
reservas morais da gente da classe trabalhadora” (Ibidem:266) , reservas que as
capacitam a ignorar muita coisa que pode ser descartada, mas, sobretudo, as capacitam a
colocar sua própria visão de mundo na interpretação que fazem dos produtos culturais
que recebem e, neste processo, chegar mesmo a transformar e melhorar muito do que
recebem da cultura de massa. É claro que toda essa energia para resistir pode mostrar-se
desprezível diante da força e da amplitude dos processos de massificação, mas –
acredita Hoggart - foi essa mesma energia que possibilitou que as pessoas da classe
operária sobrevivessem “à mudança de uma vida rural para uma vida urbana sem se
tornarem um lumpem proletariado amorfo...” (Ibidem:269) 48.

Essa “cultura completamente penetrante” (Ibidem:31)49 da classe operária é a


força que faz com que as pessoas sejam muito menos afetadas pela massificação
cultural do que poderíamos acreditar partindo exclusivamente da análise dos produtos
de massa. “A questão é, claro, saber por quanto tempo esse estoque de capital moral
durará, e se ele está sendo suficientemente renovado. Mas devemos ser cuidadosos em

44
"process of softening-up...".
45
“...To hold their readers at a level of passive acceptance, at which they never really ask a
question, but happily take what is provided and think of no change”.
46
“...to survive change by adapting or assimilating what they want in the new and ignoring the
rest”.
47
“...the still considerable moral resources of working-class people”.
48
“Working-class people survived the change from a rural to an urban life without becoming a
dull lumpen-proletariat”.
49
“...An all-pervading culture..”.
não subestimar seu efeito no presente” (Ibidem:266)50. O poder de persuasão da cultura
de massa é muito forte, mas não é irresistível: ainda há muitos âmbitos da vida comum
onde se pode exercer uma ação livre51.

Além de reconhecer que, se os efeitos da massificação existem – e Hoggart é


bastante aplicado na tarefa de apontá-los - eles não se dão independentemente de outros
fatores sociais, políticos, econômicos e culturais, The Uses of Literacy é precoce em
demonstrar que o apelo da indústria do entretenimento só se efetiva quando e na medida
em que essa indústria mostra-se hábil em adequar-se à cultura de seus receptores. Sendo
a classe trabalhadora (e a baixa classe média) seus maiores consumidores, o sistema da
cultura de massa deve estar atento para conhecer a cultura dessa classe e só então
formular estratégias de abordagem. Para que o efeito se produza é necessário que
leitores e escritores, receptores e consumidores partilhem um mesmo ethos
(cf.Ibidem:175).

Assim, por exemplo, se uma idéia propagada pela cultura de massa parece ser
bem acolhida entre a classe trabalhadora é porque essa idéia de algum modo remete à
cultura própria dessas pessoas; é porque parece estar “em concordância com certas
idéias chaves “que elas têm tradicionalmente conhecido como idéias orientadoras do
52
desenvolvimento social e espiritual” (Ibidem:282) . Ao mesmo tempo em que pode
funcionar como uma espécie de antídoto ou barreira para a penetração da cultura de
massa, a cultura tradicional também é a responsável por permitir que ela exerça seus
efeitos:

“Pode haver alguma verdade profética nas discussões sobre ‘a vasta


massa anônima com suas respostas completamente apáticas’. Mas até aqui as
classes trabalhadoras não são tão perversamente atingidas quanto a frase sugere,
porque com uma grande parte de si mesmas elas simplesmente ‘não estão lá’,
estão vivendo em algum outro lugar, vivendo intuitivamente, habitualmente,
verbalmente, recorrendo a mito, aforismos e ritual. Isso as salva de alguns dos
piores efeitos das presentes investidas; isso também as torna, de outros modos,
sujeitos fáceis daquelas abordagens. Tanto quanto elas têm sido afetadas pelas

50
“The question, of course, is how long this stock of moral capital will last, and whether it is
being sufficiently renewed. But we have to be careful not to underrate its effect at present”.
51
Hoggart sugere que é sobretudo em alguns âmbitos da vida privada que essa ação livre se
verifica mais largamente. Nos hobbies e nas artes manuais, por exemplo, os homens da classe
trabalhadora ainda exercitam a escolha pessoal, agem livre e voluntariamente
(cf.HOGGART.1957:145, 267).
52
“...which they have traditionally know as the informing ideas for social and spiritual
improvement”.
condições modernas, elas têm sido afetadas nos pontos nos quais suas antigas
tradições as tornaram mais abertas e suscetíveis” (Ibidem:321) 53.

O que Hoggart fez, concretamente, em The Uses of Literacy, aquilo que tornou
este livro tão decisivo para a fundação dos Estudos Culturais foi explorar um certo
leque de atitudes próprias das classes populares de modo a mostrar que elas
representavam não o resultado de um processo simples de massificação, brutalização e
lavagem cerebral das massas, mas eram mais matizadas, ambíguas e até incorporavam
valores positivos que encontravam expressão na vida cultural da classe operária. Em
outras palavras, Hoggart mostrou como a classe operária cria, no seu encontro com os
processos de industrialização e urbanização, formas culturais específicas e, ao fazê-lo,
mostrou que a produção e o consumo culturais expressam as relações sociais básicas, as
formas de vida de uma dada sociedade. O pressuposto que guia The Uses of Literacy é
o de que a cultura é expressão dos processos sociais básicos.

A contribuição de Richard Hoggart para os Estudos Culturais se dá por uma via


ao mesmo tempo teórico-metodológica e política. Para chamar a atenção para a cultura
operária, Richard Hoggart procedeu a uma radical reformulação do conceito de cultura
de modo a pôr fim à supremacia do conceito de cultura que vigorava então e que
acabava por limitar a cultura ao domínio da arte, da estética, dos valores morais ou
criativos.

Por outro lado, ao chamar a atenção para a solidariedade de rua da classe


trabalhadora, para as subculturas operárias, ele marca a opção da escola inglesa por
metodologias de investigação qualitativa: os métodos etnográficos de pesquisa de
campo, a opção pela consideração das culturas vivas, pela atenção aos receptores
concretos, irão conviver com métodos de análise literária. Uma contribuição
fundamental de Hoggart para os Estudos Culturais – tanto de seu próprio esforço
investigativo quanto da direção que imprimiu ao CCCS – foi estabelecer a premissa de
que os métodos de análise literária podem ser aplicados a um rol mais amplo de
53
“ There may be some prophetic truth in discussions about ‘the vast anonymous masses with
their thoroughly dulled responses’. But so far working-class people are by no means as badly
affected as that sentence suggests, because with a large part of themselves they are just ‘not
there’, are living elsewhere, living intuitively, habitually, verbally, drawing on myth, aphorism
and ritual. This saves them from some of the worst effects of the present approaches; it also
makes them, in other ways, easier subjects for those approaches. In so far as they have been
affected by moderns conditions, they have been affected along lines on which their older
traditions made them most open and undefended”.
produtos culturais. No mesmo ano de publicação de The Uses of Literacy, também
Roland Barthes irá aplicar, aos textos e produtos culturais, uma metodologia de análise
inspirada na lingüística saussureana. Mas Mitologias terá que esperar até os anos 70
para inspirar os Estudos Culturais. Voltaremos a isso.

Ao mesmo tempo, o interesse por entender quem são e como se constituem as


classes trabalhadoras, a preocupação com a sua situação social e cultural levam Hoggart
a definir um modelo de investigação explicitamente engajado. Foi desde essa fase
inicial, que os culturalistas marcaram uma posição que se tornou central para os Estudos
Culturais posteriormente: puseram o foco da atenção nos aspectos criativos da atividade
humana e, portanto, destacavam o processo ativo e consciente de construção de sentido
na cultura.

1.2. Cultura como um modo de vida

Dentre os autores fundadores dos cultural studies, certamente é Raymond


Williams54 quem maiores contribuições fará à investigação sobre os processos de
comunicação e à ênfase na recepção, ainda que ele próprio não tenha, em qualquer
momento, se dedicado aos estudos de recepção. Antes, o receptor é para ele, no mais
das vezes, uma categoria analítica. Embora o trabalho de Williams fique melhor situado
no âmbito dos estudos literários, suas análises sobre cultura e teoria cultural forneceram
os conceitos chaves para a investigação dos Estudos Culturais sobre a comunicação.

Cultura e Sociedade - 1780-1950 é sua obra de juventude, considerada como


fundadora dos Estudos Culturais ingleses. Mas sua contribuição não se restringe a esse
livro. The Long Revolution, publicado um pouco depois, em 1961, Marxismo e
Literatura, já no início da década de 70 e Television - Technology and Cultural Form,
de 1975 são suas obras mais decisivas para os Estudos Culturais, marcadamente para o
entendimento da comunicação e da cultura contemporâneas. Nesse momento, interessa-

54
Não pretendemos aqui discutir o tom moralizante que boa parte da obra de Williams adota,
nem sua aposta em que os Estudos Culturais requerem uma abordagem histórica, nem, muito
menos, discutir sua clara opção pelo socialismo de Estado. O que nos interessa é o conceito
amplo de cultura com o qual ele trabalha, conceito que será fundamental para os Estudos
Culturais até os dias de hoje e, sobretudo, para as análises de recepção que essa corrente de
investigação engendra.
nos particularmente explorar Cultura e Sociedade enquanto uma obra fundadora
específica.

Em Cultura e Sociedade, publicado em 1958, Raymond Williams procura


interpretar os usos que o conceito de cultura adquire na sociedade inglesa tomando
como objeto de análise a produção literária de finais do século XVIII até meados do
século XX. Segundo Williams, às modificações na vida e no pensamento correspondem
alterações na linguagem e, desse modo, é possível verificar como certas palavras
adquiriram novos sentidos e mesmo como novas palavras surgiram no vocabulário
inglês de modo a dar conta das mudanças que se processavam na vida daquela
sociedade.

Inicialmente interessado no entendimento da idéia de cultura, Williams teve que


ampliar o leque de sua atenção porque a história da palavra cultura, da sua estrutura de
significados, remetia a um movimento mais amplo de idéias e sentimentos que exigia
um quadro de referência mais alargado. As transformações no uso da palavra cultura
não foram conseqüência apenas dos novos métodos de produção cultural em sua
associação com a indústria e os meios tecnológicos. As questões implicadas nos
significados da palavra cultura surgem das grandes transformações históricas que, de
algum modo, se traduzem nas alterações sofridas pelas palavras indústria, democracia e
classe e são de perto acompanhadas pelas modificações experimentadas pela palavra
arte. Indústria, democracia, classe, arte e cultura formaram esse sistema de referência:

“A idéia de cultura seria mais simples se fosse resposta ao industrialismo


apenas; foi, porém, resposta a novos desenvolvimentos políticos e sociais, isto é,
à Democracia. Em relação a esta é resposta radical e complexa aos novos
problemas de classe social. Além disso, ao mesmo tempo em que essas respostas
definem conseqüências e comportamentos na área exterior sob exame, há, ainda,
na formação dos significados de cultura, referência evidente a um âmbito de
experiência pessoal e, aparentemente, privada, que iria afetar profundamente o
sentido e a prática da arte” (WILLIAMS. 1969:19-20).

O sentido de indústria altera-se durante a Revolução Industrial. É no final do


século dezoito que indústria deixa de remeter exclusiva e prioritariamente a uma
habilidade humana para indicar uma instituição, um conjunto de atividades, para
transformar-se num substantivo coletivo para designar as empresas e as atividades a que
se dedicam. Essa transformação “atesta o surgimento de uma série de transformações
técnicas de grande alcance e sua influência sobre os métodos de produção. Atesta,
ainda, a influência dessas modificações sobre a sociedade, que também as transforma”
(Ibidem: 16).

Democracia, ainda que originária do grego e significando “governo do povo”,


em seu uso contemporâneo está de algum modo associada às conseqüências da
Revolução Industrial. Ela só entra no vocabulário comum inglês a partir da Revolução
Francesa e das revoltas populares americanas e traduziu, na Inglaterra, a luta pela
“representação democrática” na configuração do poder político.

Modificação de igual importância ocorre à palavra classe por volta de fins do


século XVIII, quando ela deixa de significar precipuamente uma divisão escolar e passa
a se referir a uma divisão social. É claro que ela não indica o surgimento das divisões
sociais na Inglaterra.

“Mas indica, de maneira clara, uma transformação no caráter dessas


divisões e aponta, de modo igualmente claro, uma alteração nas atitudes com
respeito a tais separações. Classe é palavra mais indefinida do que categoria ou
ordem e foi esse, provavelmente, um dos motivos para adotá-la” (Ibidem:17).

Arte teve um desenvolvimento parecido com o de indústria. De habilidade


humana passou a designar um conjunto de atividades de certo tipo: “Arte, agora,
designava um particular grupo de atividades, as artes ‘imaginativas’ ou ‘criadoras’”
(Ibidem:17).

Cultura, para Williams, é a palavra que melhor traduz as transformações sofridas


pela sociedade e aponta para um processo geral de mudança que indica a configuração
das sociedades modernas.

“[Cultura] significara primordialmente, ‘tendência de crescimento


natural’ e, depois, por analogia, um processo de treinamento humano. Mas este
último emprego, que implicava, habitualmente, cultura de alguma coisa, alterou-
se, no século dezenove, no sentido de cultura como tal, bastante por si mesma.
Veio a significar, de começo, ‘um estado geral ou disposição de espírito’, em
relação estreita com a idéia de perfeição humana. Depois, passou a corresponder
a ‘ um estado geral de desenvolvimento intelectual no conjunto da sociedade’.
Mais tarde correspondeu a ‘um corpo geral das artes’. Mais tarde ainda, ao final
do século, veio a indicar ‘todo um sistema de vida, no seu aspecto material,
intelectual e espiritual’” (Ibidem:18).
Williams elabora uma espécie de historiografia da palavra cultura através da
análise de alguns textos e autores básicos. Para compreender o uso desta palavra na
tradição do século dezenove, ele vai aos textos políticos de, por exemplo, Edmund
Burke e William Cobbett, analisa os ensaios de John Stuart Mill sobre Jeremy Bentham
e Samuel Coleridge, lê poetas românticos ingleses Blake, Wordsworth, Shelley e Keats,
busca em Thomas Carlyle um diagnóstico da sociedade inglesa no tempo da produção
industrial e vai procurar naquilo que ele chama de “romances industriais” - Mary
Barton e North and South, de Gaskell; Hard Times, de Charles Dickens, Sybil, de
Disraeli, Alton Locke, de Kingsley, e Felix Holt, de George Eliot – a compreensão da
resposta humana ao industrialismo: para Williams, tais textos, e os romances mais
especificamente,

“não somente oferecem algumas das mais vívidas descrições da existência


humana numa sociedade industrial em seus desordenados começos, como
também ilustram certas idéias comuns, em que se fundava a resposta direta de
sentimento e pensamento à nova forma da sociedade” (Ibidem:105).

Mas é a definição de cultura dada por Matthew Arnold que confere à tradição do
século XIX “uma senha e um nome” (Ibidem:131). A cultura assume com Arnold todas
as conseqüências da noção de cultivo. A ênfase é posta na cultura do intelecto, que deve
ser cultivado de modo a atingir a perfeição. É essa busca da perfeição que Arnold
chamará cultura e que, naquele momento, se coloca contra uma acepção de cultura no
sentido utilitarista que concebia a educação e a cultura como um treinamento do homem
com fins de capacitá-lo para cumprir determinadas tarefas.

Essa concepção de cultura como busca da perfeição é uma reação aos efeitos da
industrialização e do conseqüente movimento da classe trabalhadora em meados do
século dezenove: cultura, como busca da perfeição, é colocada como oposta a anarquia
(a anarquia que Arnold via nos movimentos operários da Inglaterra, sobretudo em
1848). Arnold vai “propor a cultura como forma de nos salvarmos das dificuldades
atuais; considerando a cultura a busca da nossa perfeição mais completa, a ser
conseguida por meio do esforço por saber, em todas as questões que mais nos
interessam, o que de melhor for pensado e dito no mundo” (ARNOLD apud
WILLIAMS.1969:131) de modo a reagir à vulgaridade produzida pela industrialização
e pelo enriquecimento das classes médias e populares e, ao mesmo tempo, reagir à
instabilidade social que a Inglaterra vivia naquele período diante da organização das
classes trabalhadoras. As classes trabalhadoras são concebidas como desordeiras,
vulgares, populacho.

De fato, é contra essa concepção de cultura, e contra a implícita concepção da


classe trabalhadora que ela carrega, que os Estudos Culturais vão se posicionar.

É nas “opiniões do século XX”, título da parte final de Cultura e Sociedade que
Williams vai encontrar, entretanto, alguns dos elementos que conformarão sua teoria
cultural. Nessa parte ele analisa as contribuições de D.H. Lawrence, sobretudo em sua
obra de ficção, mais que em seus ensaios ou em suas correspondências, de T.S. Eliot,
nos críticos literários I. A. Richards e Frank Raymond Leavis e no marxismo.

É em Notes toward the definition of culture, publicado em 1948, que Williams


vai buscar uma formulação decisiva do conceito de cultura para compor sua própria
teoria da cultura. Desse conjunto de ensaios de T.S.Eliot, Williams extrai aquele aspecto
que ele considera de real mérito: “A importância maior do livro está, no meu entender,
em... sua adoção do significado de ‘cultura’ como ‘um modo inteiro de vida’”
(WILLIAMS. 1969:245).

Essa idéia de cultura como um modo inteiro de vida vem mostrar que a mudança
social nunca é parcial: a alteração em qualquer elemento de um sistema complexo afeta
seriamente o conjunto. Depois, na medida em que permitiu pensar, com o apoio da
Antropologia Social que se desenvolvia à época, em vários modos de vida, esse
conceito terminou por implicitamente afirmar que o modo de vida das sociedades
européias modernas não era universal nem permanente, não era a única possibilidade de
vida.

Dentre “as opiniões do século vinte”, Williams explora ainda uma tradição de
estudos literários de cunho liberal, associada a F. R. Leavis, a Queenie Leavis e a
Denys Thompson 55, e que dominou a Inglaterra durante quase três décadas, dos anos 30
aos anos 50. Nesse sentido, Raymond Williams ajuda os Estudos Culturais a se
constituírem na Inglaterra como um campo de investigação fora do “leavisismo” (cf.
DURING.1997:02),

Os Leavis denunciavam o romance comercial e propunham usar o sistema


educacional para difundir o conhecimento e a apreciação literária mais largamente, com
ênfase nas obras clássicas da literatura inglesa. Williams de algum modo compartilha

55
Ver Parte I, Capítulo 1, item 1.2. A metáfora da agulha hipodérmica.
com Leavis a compreensão de que a cultura de massa é perniciosa para a formação dos
indivíduos, que os textos canônicos são mais ricos que os textos da cultura de massa e
que a cultura deveria ser avaliada de acordo com sua capacidade de aprofundar e
ampliar as experiências humanas; mas, por outro lado, entende que os Leavis
desconsideravam as formas de vida comunitária nas quais o consumo da cultura
industrial se dava e que o levaria a apostar no potencial de resistência das pessoas
comuns face aos efeitos dos media.

Raymond Williams explicitamente reconhece os méritos do trabalho de F. R.


Leavis, sobretudo valoriza sua proposta pedagógica e seus julgamentos “precisos e
analíticos” sobre a cultura industrial, compartilha com ele um certo pessimismo em
relação à cultura comercial, mas adverte que “os modos de pensar e sentir associados a
instituições como a imprensa popular, a propaganda, o cinema e o rádio não podem, em
última análise, ser criticados sem referência a todo um modo de viver” (WILLIAMS.
1969:268).

A crítica que Williams faz ao leavisismo nesse momento será a pedra de toque
dos estudos de recepção a partir dos anos 80. Enquanto Williams dirá que Leavis e seus
colegas cometem uma “falha intelectual básica” que é a de estender um juízo válido
acerca das obras (no caso, obras literárias) a um retrato da vida contemporânea, os
pesquisadores da recepção irão denunciar as análises de conteúdo que posteriormente
têm suas conclusões extrapoladas para o âmbito da recepção e que já trazem
implicitamente a concepção do receptor como tabula rasa. E mais, a concepção de que
o receptor é uma tabula rasa advém justamente de não se fazer referência aos seus
“modos de viver”. Ou, como poderia ter dito Hoggart, de não se fazer referência à “vida
densa e concreta”.

Em Cultura e Sociedade, também as relações entre marxismo e cultura são


esboçadas de modo a apontar como o marxismo pôde contribuir para as transformações
impostas ao conceito de cultura – ao mostrar, por exemplo, que a “organização
econômica básica não podia ser separada e afastada de suas implicações morais e
intelectuais” (Ibidem:289). No final da década de 50, Williams já aponta para um uso
inadequado do termo cultura pelos marxistas e afirma que, ao invés de pensar em
artefatos e produtos intelectuais e de imaginação de uma sociedade,
“...parece que os marxistas deveriam logicamente empregar o termo ‘cultura’ no
sentido de um processo integral de vida, ou de um processo geral de caráter
social, já que dão ênfase à interdependência de todos os aspectos da realidade
social e definida importância à dinâmica da mudança social”( Ibidem:291).

Mas Williams só tinha, então, condições de dizer que esse uso inadequado era
decorrente da própria tentativa de Marx em esboçar uma teoria cultural a partir das
relações entre infra-estrutura e superestrutura; era decorrente, sobretudo, da
interpretação posterior que se fez desses termos, considerando-os como categorias de
descrição da realidade e não como “uma sugestiva analogia”.

É claro que Williams estava em busca de uma teoria cultural que permitisse
abordar aquilo que lhe parecia ser uma questão fundamental: a cultura da classe
trabalhadora; e somente um conceito largo de cultura, que não reduzisse a cultura a seus
artefatos ou a um corpo de trabalho imaginativo permitiria isso. Já que a classe
trabalhadora, por sua própria posição, não produziu uma cultura no sentido mais estrito,
caberia então buscar uma formulação que permitisse considerar outras contribuições da
classe trabalhadora. E Williams encontra:

“A cultura que [a classe trabalhadora] produziu e que é importante assinalar é a


instituição democrática coletiva, seja nos sindicatos, no movimento cooperativo,
ou no partido político. A cultura da classe trabalhadora, nos estádios através dos
quais vem passando, é antes social (no sentido em que criou instituições) do que
individual (relativa ao trabalho intelectual ou imaginativo). Considerada no
contexto da sociedade, essa cultura representa uma realização criadora notável”
(Ibidem:335).

Em outros termos, o que a classe trabalhadora produziu foi todo um modo de


vida.

É claro que Williams retomou esse conceito de cultura como todo um modo de
vida de T.S.Eliot (cf. Ibidem:240-255). É claro também que já havia um esforço da
antropologia para pensar a cultura nesses mesmos termos. Mas esse conceito, despido
do liberalismo da crítica cultural, adquire com o marxismo uma maior envergadura.
Modo de vida não implica apenas a forma de morar, a maneira de vestir ou de
aproveitar o lazer; implica, sobretudo, formas de conceber a natureza da relação social.

Pensar a cultura como um modo de vida e, sobretudo, colocar o centro do seu


interesse na cultura da classe trabalhadora permite aos Estudos Culturais rejeitar a idéia
de uma cultura de massas e o próprio conceito de massa que lhe dá sustentação. Em
conseqüência, atinge-se também a idéia de manipulação das massas, que era então o
termo chave com o qual se explicava a relação do homem com a cultura e a
56
comunicação contemporâneas . Implica, também, recusar a idéia correlata de uma
cultura sem classe.

Williams repele firmemente a idéia de que a industrialização, com seu interesse


pela expansão dos mercados e com seu processo de uniformização cultural, daria lugar
ao aparecimento de uma cultura que se poderia dizer sem classes. Essa crença somente
se justificaria com base numa grosseira interpretação de classe. Quando se refere à
classe trabalhadora, Williams quer se referir a um sentimento de classe que é ao mesmo
tempo uma espécie de modo de ser; um modo de ser que se corporifica nas organizações
e instituições daquela classe específica – o que não quer dizer que apareça
individualmente e obrigatoriamente em cada um dos membros daquela classe. A idéia
de classe é muito rígida e não serve para classificar os indivíduos. Serve, entretanto,
para falar dos “modos coletivos de expressão” (Ibidem:335).

“Se considerarmos a cultura, como importa fazê-lo, em termos de um


corpo de trabalho imaginativo e intelectual, perceberemos que, com a extensão
generalizada da educação, a distribuição da cultura se vem fazendo de modo
mais igual e, ao mesmo tempo, a nossa obra da cultura se vem endereçando a um
público mais amplo que o correspondente a uma só classe. Contudo, a cultura
não é apenas um corpo de trabalho imaginativo e intelectual; é também e
essencialmente todo um modo de vida. A base para uma distinção entre cultura
burguesa e cultura da classe trabalhadora não está senão secundariamente no
campo do trabalho imaginativo e intelectual...A base primária para a distinção
deve ser buscada no modo total de vida e, ainda aí, não devemos limitar-nos a
evidências tais como a forma de morar, a maneira de vestir ou de aproveitar o
lazer. A produção industrial tende a impor uniformidade nesses campos. A
distinção vital se coloca em nível diferente. O elemento básico da distinção na
vida inglesa, a partir da Revolução Industrial, não é a língua, nem a vestimenta,
nem o lazer – pois tudo isso tende, indubitavelmente, para a uniformidade. A
distinção crucial está em formas alternativas de se conceber a natureza da
relação social” (Ibidem:333).

Daqui em diante, os Estudos Culturais rejeitarão – e radicalmente – a idéia de


que a cultura contemporânea se possa traduzir por cultura de massa e usam para tanto
um argumento decisivo: descrever a cultura em termos de massa - tanto quanto em
termos de uma sociedade sem classes - despolitiza o conceito de cultura. Tendo em
conta que em nossa sociedade “as massas não podem ser outra coisa senão os
trabalhadores” (Ibidem:308), a expressão cultura de massa traz implícita a concepção
56
Ver Parte I, item 1.1. Sociedade, Cultura e Comunicação de Massa.
de que a classe trabalhadora pode, ou mesmo deve, ser conduzida. Para Williams, a
idéia de massa diz muito mais respeito a um modo intencional de enxergar a classe
trabalhadora como “populaça”, com suas supostas características de credulidade,
volubilidade, sugestionabilidade, vulgaridade de gosto e de hábitos, do que à realidade
concreta dessa classe.

Segundo Williams, o conceito de comunicação de massa e de manipulação de


massa não servem para uma sociologia “dessas instituições centrais e variadas”.
Primeiro porque, na expressão comunicação de massa, o conceito de massa explica
melhor o tipo de funcionamento dos meios de transmissão múltipla e sua intenção de
atingir uma audiência vasta e “fácil de conduzir”, do que os usos que se fazem dessa
comunicação (cf. Ibidem:311). Depois, porque o conceito de massa neutraliza as
estruturas de classe e o de manipulação “neutraliza as interações complexas de controle,
seleção, incorporação e as fases da consciência social que correspondem a situações
sociais e relações reais” (Idem. 1979:139). Em suas obras posteriores, Williams irá
aprofundar essas discussão.

Cultura e Sociedade formula, de maneira ainda mais explícita que The Uses of
Literacy, uma das premissas básicas dos Estudos Culturais: qual seja, a de que a cultura
não pode ser pensada fora de suas relações com a sociedade. As instituições e práticas
sociais da cultura não podem ser vistas como distintas do conjunto de instituições e
práticas sociais mais amplo, em geral reconhecido como sociedade. No caso das
sociedades contemporâneas, dizer isso significa pensar a longa revolução57, as
transformações históricas, sobretudo aquelas implicadas pela Revolução Industrial, e
que podem ser traduzidas pelos significados das palavras indústria, democracia, classe,
arte e cultura. Para os cultural studies, então, compreender a cultura implicará
compreender as “relações entre os elementos de um sistema geral de vida”
(Idem.1969:12).

57
Ver WILLIAMS.1961.

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