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1
A dificuldade de acesso a essa obra hoje, no Brasil, justifica nosso procedimento de apresentar
sua estrutura interna, detalhar seus conteúdos básicos e só então explorar suas conseqüências.
Tanto as edições inglesas quanto uma tradução portuguesa dessa obra (As utilizações da
Cultura: aspectos da vida cultural da classe trabalhadora, Lisboa: Editorial Presença,1973)
estão esgotadas. Neste trabalho, utilizamos a primeira edição inglesa, publicada pela Chatto &
Windus, da qual foram livremente traduzidas todas as citações indicadas.
2
An ‘Older’ Order.
3
Yielding Place to New.
4
Hoggart debruça-se, entre outros materiais, sobre as publicações ilustradas, os romances
populares, os calendários de parede com fotos de mulheres nuas e as letras das canções
populares.
investigação sobre os efeitos: da análise das publicações e entretenimento deduz-se o
efeito que eles causam.
5
Com o giro que os Estudos Culturais darão em direção ao marxismo, considerar a cultura tanto
em termos de massa quanto em termos da cultura própria de uma sociedade sem classes será
despolitizar o conceito de cultura. Ver, mais adiante, a discussão sobre Raymond Williams e sua
concepção de cultura como um modo integral de vida.
6
“...a poorer kind of classless, or ... a ‘faceless’ culture”.
garimpados na história de sua família7 ou dele próprio, quem viveu entre as milhares de
casas amontoadas e enfumaçadas do distrito operário de Leeds; quem, aos 11 anos,
passeava pelo bairro em direção ao centro comercial para comprar suas revistas
semanais preferidas; ou, ainda, quem analisa muitos dos detalhes da leitura e de outros
hábitos a partir dos seus próprios.
“ver além dos hábitos, o que eles significam; ver através dos relatos o que os
relatos verdadeiramente querem dizer (o que pode ser o oposto dos relatos
mesmos); detectar as diferentes pressões da emoção atrás das frases idiomáticas
e das práticas rituais” (Ibidem:18). 8
7
Por exemplo, entre as páginas 24 e 26 Hoggart conta como sua família atravessou as duas
guerras mundiais e foi obrigada a deixar a área rural e se instalar em zona urbana em busca de
maiores facilidades educacionais e sociais – por exemplo, acesso a médicos – e como, mesmo
então, seu passado rural se evidenciava no corpo, nas atitudes, na linguagem, no estilo de
moradia, na decoração das casas, nos aforismos.
8
“...to see beyond the habits to what the habits stand for, to see through the statements to what
the statements really mean (which may be the opposite of the statements themselves), to detect
the differing pressures of emotion behind idiomatic phrases and ritualistic observances”.
9
“...a sense of the personal, the concrete, the local”.
10
“...’dense and concrete life’, a life whose main stress is on the intimate, the sensory, the
detailed and the personal”.
operária com as “debilitantes forças externas” (Ibidem:146)11 representadas pelas
publicações e entretenimentos de massa.
15
“To concentrate on the probable effects of certain developments in publications and
entertainment is, of course, to isolate only one segment in a vastly complicated interplay of
social, political and economic changes. All are helping to alter attitudes...”.
16
“Changes in attitudes work their way very slowly through many aspects of social life. They
are incorporated into existing attitudes and often seem, at first, to be only freshly presented
forms of those ‘older’ attitudes”.
17
“O argumento mais forte contra o moderno entretenimento de massa não é que ele degrada o
gosto – a degradação pode ser viva e ativa – mas que ele super excita o gosto,
consequentemente o entorpece e finalmente o mata; ele o enfraquece em vez de o
corromper...Ele o aniquila em sua sensibilidade, e ainda confunde e persuade sua audiência de
que ela é quase completamente incapaz de desviar o olhar... Ainda não alcançamos esse estágio,
mas essas são as linhas nas quais estamos nos movendo” (HOGGART.1957:163). [“The
strongest argument against modern mass entertainments is not that they debase taste –
debasement can be alive and active – but that they over-excite it, eventually dull it, and finally
kill it; that they ‘enervate’ rather than ‘corrupt’...They kill it at the nerve, and yet bemuse and
persuade their audience that the audience is almost entirely unable to look up... We have not
reached this stage yet, but these are the lines on which we are moving” ].
18
Hoggart desconfia, por exemplo, da capacidade de algumas publicações ilustradas ou dos
calendários com mulheres nuas de incrementar a imoralidade sexual entre os jovens. Ele não
consegue “imaginar muita conexão entre [essas publicações] e a atividade sexual. Eles podem
encorajar a masturbação: em sua forma simbólica eles podem promover aquele tipo de resposta
sexual hermética” (HOGGART.1957:192). [“I find hard to imagine much connection between
them and heterosexual activity. They may encourage masturbation: in their symbolic way they
may promote that kind of sealed-off sexual response”].
19
Entre as páginas 210 e 223, Hoggart analisa os romances de sexo-e-violência.
sensacionalismo20, e mesmo se preocupa com o fato de que “a imprensa popular...é uma
das maiores forças conservadoras na vida pública hoje em dia: sua natureza requer que
ela promova o conservadorismo e a conformidade” (Ibidem:196). Mas não são esses os
efeitos que detêm sua atenção. O interesse de Hoggart coloca-se precipuamente sobre a
mudança nos hábitos de leitura e sobre a reinterpretação de valores básicos da
cultura ocidental
20
Ver à página 191, de Hoggart.1957, referências à imprensa sensacionalista.
21
No início dos anos 70, no Brasil, Ecléa BOSI (1986) realizou uma investigação empírica, de
cunho sociológico, sobre leitura de operárias de uma fábrica em Osasco, periferia de São Paulo.
Nessa pesquisa Bosi apresenta, em termos muito próximos dos defendidos por Richard Hoggart
em The Uses of Literacy, largamente citado no livro que resultou da investigação, a relação
entre cultura de massa e cultura popular.
Tal como Hoggart, também Bosi pratica uma espécie de declaração de amor à cultura operária,
que a partir do cimento, da padronização dos loteamentos, da fábrica que desfigura o bairro,
“imprimindo o seu selo de esqualidez às ruas e casas cujas cores rouba e cuja fisionomia rói”
(p.20) realizaria um movimento lento e contínuo de diferenciação que pouco a pouco substitui o
cimento pelas plantações de milho e abóbora, pelas roseiras; que vai transformando um cômodo
pequeno de uma dessas casas planejadas e mobiliadas com móveis baratos e “que os refinados
consideram de mau gosto” (p.21) em um “ambiente em que a família se reúne, acolhedor,
quente e agradável, onde é bom estar”(p.21). Em outras palavras, Ecléa Bosi acredita que esses
movimentos de diferenciação próprios da cultura do povo implicam “uma resistência diária à
massificação e ao nivelamento” (p.23).
Inicialmente interessada em saber se se verificavam hábitos de leitura entre mulheres operárias,
a autora leva em consideração a leitura de qualquer material impresso, desde a Bíblia e clássicos
da literatura até as publicações de massa, tais como jornais, revistas, histórias em quadrinhos,
fotonovelas e os romances comerciais. Dessa investigação o que se ressalta é a relação entre
leitura e vida cotidiana, relação que se mostra tanto na escolha do material impresso ou do que
efetivamente se lê nesse material (por exemplo, Bosi mostra a relação entre a preferência pelos
horóscopos e a busca de orientação para a vida diária, p.127) quanto nos hábitos de leitura em si
(por exemplo, como o tempo para a leitura se insere na divisão do tempo entre a jornada de
trabalho fabril e de trabalho doméstico, p.22). Esse trabalho de Ecléa Bosi é considerado uma
das primeiras investigações sobre recepção no Brasil.
Segundo Hoggart, há um grande incremento no consumo das publicações
voltadas para o entretenimento e esse consumo não deve ser lastimado. O problema é
que, em alguma medida, "o tamanho do incremento parece haver sido decidido nem
tanto pela necessidade de satisfazer apetites anteriormente insatisfeitos, mas pela mais
22
forte persuasão daqueles que fornecem o entretenimento” (Ibidem:270) . É o esforço
da indústria do entretenimento por alcançar vendas cada vez maiores que dita as regras
da oferta e não os interesses do público ou mesmo do sistema educacional, com todas as
conseqüências “lamentáveis” desse processo23.
Hoggart afirma não se basear num “inconfesso pesar” de que nem todo mundo
leia, por exemplo, The Times.
“Desejar que a maioria da população algum dia venha a ler The Times é
esperar que a natureza humana seja essencialmente diferente, e isso é cair num
22
“...The size of the increase appears to have been decided, not so much by the need to satisfy
previously unsatisfied appetites, as by the stronger persuasions of those who provide the
entertainment”.
23
Hoggart não nega que em muitos aspectos da vida a produção de massa trouxe benefícios. A
bicicleta é um produto industrial de massa que Hoggart aponta como exemplo. Andar de
bicicleta é uma atividade característica da classe trabalhadora (cf.HOGGART.1957:268ss) e,
para Hoggart, o hábito de passear de bicicleta nas manhãs de domingo, pelos arredores das
cidades, a participação nos clubes de ciclismo, são uma valiosa “evidência de que a classe
trabalhadora urbana ainda pode reagir positivamente tanto às mudanças no seu meio ambiente
quanto às vantajosas possibilidades da barata produção de massa” (HOGGART.1957:269)
[“...evidence that urban working-class people can still react positively to both the challenge of
their environment and the useful possibilities of cheap mass-production”]: com o ciclismo, os
jovens aproveitam para praticar exercício, respirar ar fresco e fazer amizades. A questão toda é
que justamente no âmbito cultural é que se torna difícil reconhecer quaisquer benefícios.
esnobismo intelectual. A habilidade para ler os semanários respeitáveis não é
condição sine qua non de qualidade de vida... A objeção mais forte aos
entretenimentos populares mais banais não é que eles impedem seus leitores de
se tornarem intelectuais, mas que eles dificultam que as pessoas sem inclinação
intelectual tornem-se sábios à sua própria maneira” (Ibidem:276) 24.
24
“To wish that a majority of the population will ever read The Times is to wish that human
beings were constitutionally different, and is to fall into an intellectual snobbery. The ability to
read the decent weeklies is not a sine qua non of the good life... The strongest objection to the
more trivial popular entertainments is not that they prevent their readers from becoming
highbrow, but that they make it harder for people without an intellectual bent to become wise in
their own way ”.
25
“What relationships may there be between the older tolerance and contemporary forms of the
idea of freedom, between the older group-sense and modern democratic egalitarianism and
between (paradoxical though it may seem at first) the older sense of the need to live in the
present with the newer progressivism? In what ways may tolerance help the activities of the
newer entertainers?... Can the idea of ‘aving a good time while y’ can because life is hard
opens the way to a soft mass-hedonism? Can the sense of the group be turned into an arrogant
and slick conformity?...”.
massa para manter a audiência receptiva a suas abordagens (cf. Ibidem:144). Esse apelo
não se faz, entretanto, sem que essas idéias passem por um processo de modelagem com
fins de se tornarem mais adequadas aos propósitos da cultura industrial.
26
“They tend towards a view of the world in which progress is conceived as a seeking of
material possessions, equality as a moral levelling and freedom as the ground for endless
irresponsible pleasure”.
27
“... desire to lay their hands on the glittering products of a technical society”.
28
“It is always freedom from, never freedom for; freedom as a good in itself”.
“Liberdade eqüivale a permissão para prover tudo que melhore as vendas” (Ibidem:198)
29
.
“...Há algo acolhedor no sentimento de que você está com todo mundo.
Ouvi pessoas darem, como razão para ouvir um popular programa de rádio, não
o fato de que ele diverte, mas de que ele ‘lhe dá algo sobre o que conversar
depois’ com as pessoas no trabalho” (Ibidem:156) 32.
A discussão sobre o igualitarismo traz uma das passagens mais contraditórias de
The Uses of Literacy. Segundo Hoggart, a tendência ao igualitarismo coopera para a
emergência de um agrupamento cultural quase tão amplo quanto a soma de todos os
outros grupos, daí sua compreensão de que caminhamos rumo a uma sociedade
culturalmente sem classe. Mas tal agrupamento tão amplo “seria um grupo apenas no
sentido de que seus membros compartilhavam uma passividade... Os olhos registrariam
mas não conectariam aos nervos, ao coração ou ao cérebro” (Ibidem:157) 33.
29
“Liberty equals licence to provide what will best increase sales”.
30
“a simplifying and distorting sieve”.
31
"a callow democratic egalitarianism".
32
“ ...There is something warming in the feeling that you are with everyone else. I have heard
people give, as their reason for listening to a popular wireless programme, not the fact that it is
amusing, but that it ‘gives you something to talk about’ with everyone else at work”.
33
“...It would be a group only in the sense that its members shared a passivity...The eyes would
register but not connect to the nerves, the heart and the brain”.
mesmos romances, as mesmas publicações ilustradas, os mesmos programas de rádio,
os mesmos hits musicais. O prazer é decorrência da partilha.
1.1.3. Contigüidades...
Cada uma das partes do livro de Hoggart foi escrita com a linguagem e as
inquietações do seu tempo e, analisadas isoladamente, quase nada as afastaria do
pensamento canônico sobre a cultura de massa. A inquietação básica é aquela já nossa
velha conhecida dos primórdios dos estudos de comunicação:
34
Ver Parte I, capítulo 3, em especial item 3.1.1. Usos e gratificações.
35
John Fiske é quem, dentro dos Estudos Culturais (americanos), mais tem desenvolvido a
hipótese de que o prazer que o receptor tira da sua relação com os media é a prova de que a
recepção é um processo ativo. Ele parte dos desenvolvimentos de Barthes sobre O prazer do
texto (BARTHES. 1993b), para fazer uma investigação sobre a televisão. Ver FISKE. 1987.
36
“...that we are moving towards the creation of a mass culture; that the remnants of what was
at least in parts an urban culture ‘of the people’ are being destroyed; and that the new mass
culture is in same important ways less healthy than the often crude culture it is replacing”.
tecnologia e produção em larga escala. Mesmo a linguagem é aquela, dos efeitos, das
atitudes, da massificação. Analisado nesses termos, The Uses of Literacy faria parte,
tranqüilamente, do leque de obras que analisam as produções da cultura de massa e se
assustam com o que nelas encontram. Pode-se mesmo, sem muito esforço, identificar
certa combinação de nostalgia e pessimismo, nostalgia de um mundo livre da
tecnologia, da industrialização e da urbanização; pessimismo quanto às conseqüências
dessas mesmas tecnologia, industrialização e urbanização sobre a natureza humana.
37
Ver Parte I, capítulo 3, item 3.2. A teoria Crítica.
38
“he was not, and never had been, a marxist”.
em Hoggart essa compreensão está presente e se evidencia sobretudo quando ele
descreve os processos de centralização da produção e quando, tal como Adorno, assume
que o mercado é a categoria que distingue tanto a cultura popular autêntica quanto a
cultura erudita da cultura de massas. Aqui também se assume que o elemento
determinante na configuração da cultura de massas é a “especulação sobre o efeito”, é
“a motivação do lucro” 39.
39
É muito pouco provável que Hoggart tivesse conhecimento das investigações conduzidas
pelos pensadores ligados ao Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt quando escreveu The
Uses of Literacy. Os textos de Frankfurt, majoritariamente escritos em alemão, receberam
traduções tardias para o inglês, particularmente a partir da década de 70 (cf. INGLIS.1993: 57-
8). Raymond Williams fala explicitamente, em Marxismo e Literatura, do seu acesso tardio às
obras da Escola de Frankfurt e de como sua leitura dos frankfurtianos, em especial de Walter
Benjamin, e de outros investigadores marxistas conduziu ao compromisso do seu trabalho com
a vida da maioria da população (WILLIAMS.1979:10).
40
Ver Parte I, Capítulo 2, Efeitos limitados: mediação, seletividade e reforço. Ver
especificamente o item 2.2. Líderes de opinião e grupos primários.
41
Original de 1958.
lança mão do conceito de subcultura e dos métodos de investigação etnográfica. Mas,
diferentemente das investigações americanas, Hoggart não se preocupa com as
influências a curto prazo. Ao contrário, é o processo de mudança social, um processo
necessariamente lento, que atrai seu interesse.
Se nas investigações americanas dos anos 40 a ênfase acabou por ser posta nas
mediações individuais, ou seja, nas características psicológicas, na estrutura cognitiva e
nos processos perceptivos e mesmo quando se pensava na força dos relacionamentos
pessoais o destaque ia para os líderes de opinião, Hoggart parece se aproximar mais dos
desdobramentos das investigações de Lazarsfeld sobre os grupos de referência. São os
grupos familiares ou comunitários que mais freqüentemente aparecem em The Uses of
Literacy como intermediando a relação entre a cultura e a comunicação de massas e os
indivíduos. A classe social aparece como o principal fator de mediação para Hoggart,
ainda que ele leve em consideração também outras características socio-estruturais e
culturais dos membros da audiência, tais como a faixa etária ou o grau de instrução.
De todo modo, uma questão se põe: o que pode haver num livro que
freqüentemente transita entre o saudosismo e a desesperança; num autor que acredita
que a cultura de massa atua como uma combinação de forças para embotar o poder de
discriminação da mente, incapacitando-a para todo exercício voluntário até “reduzi-la a
42
um estado de quase selvagem torpor” (HOGGART.1957:171) ; que acredita, enfim,
que os meios de entretenimento de massa são uma anti-vida (cf.Ibidem:277); o que
pode haver aí que justifique considerá-los, obra e autor, como fundadores de uma
corrente de investigação que definirá o processo de construção de sentido como um
processo ativo e consciente, que afirmará a atividade e a criatividade do receptor-sujeito
e chegará mesmo a saudar a cultura de massas?
42
“...to reduce it to a state of almost savage torpor”.
efeitos de uma sobre a outra só podem ser considerados a partir da sua inter-relação.
Ou, dito de outro modo, os
43
“...The effect... is checked and neutralised again and again by other forces. People are not
living lives which are imaginatively as poor as a mere reading of their literature would suggest.
We know this, simply from day-to-day experience. Most contemporary popular entertainment
encourages an effete attitude to life, but still much of life has little direct connection with it.
There are wars and fears of war; there is the world of work, of the relations, the loyalties and
tensions there; there are the duties of home and the management of money; there are
neighbourhood ties and demands; there are illness and fatigue and birth and death...”
Se em alguns momentos Hoggart afirma que a cultura de massa pretende
submeter seus consumidores a um “processo de enfraquecimento” (Ibidem:198)44; se
fala da passividade dos consumidores diante das produções de massa; se identifica nas
publicações e nos entretenimentos populares uma certa inclinação por “manter seus
leitores num nível de aceitação passiva, no qual eles nunca realmente questionam, mas
45
alegremente aceitam o que lhes é dado e não pensam em mudança” (Ibidem:196) ;
Hoggart não deixa de reconhecer que essa aceitação é freqüentemente apenas aparente e
quase sempre limitada ao presente. As classes populares possuem uma forte habilidade
para silenciosamente ignorar aquilo que não lhes interessa, “para sobreviver às
mudanças adaptando ou assimilando o que elas querem do novo e ignorando o resto”
(Ibidem:31) 46.
E o que lhes garante esse jogo de cintura, o que, em outros termos, possibilita às
pessoas resistirem às investidas da cultura de massa, são as “ainda consideráveis
47
reservas morais da gente da classe trabalhadora” (Ibidem:266) , reservas que as
capacitam a ignorar muita coisa que pode ser descartada, mas, sobretudo, as capacitam a
colocar sua própria visão de mundo na interpretação que fazem dos produtos culturais
que recebem e, neste processo, chegar mesmo a transformar e melhorar muito do que
recebem da cultura de massa. É claro que toda essa energia para resistir pode mostrar-se
desprezível diante da força e da amplitude dos processos de massificação, mas –
acredita Hoggart - foi essa mesma energia que possibilitou que as pessoas da classe
operária sobrevivessem “à mudança de uma vida rural para uma vida urbana sem se
tornarem um lumpem proletariado amorfo...” (Ibidem:269) 48.
44
"process of softening-up...".
45
“...To hold their readers at a level of passive acceptance, at which they never really ask a
question, but happily take what is provided and think of no change”.
46
“...to survive change by adapting or assimilating what they want in the new and ignoring the
rest”.
47
“...the still considerable moral resources of working-class people”.
48
“Working-class people survived the change from a rural to an urban life without becoming a
dull lumpen-proletariat”.
49
“...An all-pervading culture..”.
não subestimar seu efeito no presente” (Ibidem:266)50. O poder de persuasão da cultura
de massa é muito forte, mas não é irresistível: ainda há muitos âmbitos da vida comum
onde se pode exercer uma ação livre51.
Assim, por exemplo, se uma idéia propagada pela cultura de massa parece ser
bem acolhida entre a classe trabalhadora é porque essa idéia de algum modo remete à
cultura própria dessas pessoas; é porque parece estar “em concordância com certas
idéias chaves “que elas têm tradicionalmente conhecido como idéias orientadoras do
52
desenvolvimento social e espiritual” (Ibidem:282) . Ao mesmo tempo em que pode
funcionar como uma espécie de antídoto ou barreira para a penetração da cultura de
massa, a cultura tradicional também é a responsável por permitir que ela exerça seus
efeitos:
50
“The question, of course, is how long this stock of moral capital will last, and whether it is
being sufficiently renewed. But we have to be careful not to underrate its effect at present”.
51
Hoggart sugere que é sobretudo em alguns âmbitos da vida privada que essa ação livre se
verifica mais largamente. Nos hobbies e nas artes manuais, por exemplo, os homens da classe
trabalhadora ainda exercitam a escolha pessoal, agem livre e voluntariamente
(cf.HOGGART.1957:145, 267).
52
“...which they have traditionally know as the informing ideas for social and spiritual
improvement”.
condições modernas, elas têm sido afetadas nos pontos nos quais suas antigas
tradições as tornaram mais abertas e suscetíveis” (Ibidem:321) 53.
O que Hoggart fez, concretamente, em The Uses of Literacy, aquilo que tornou
este livro tão decisivo para a fundação dos Estudos Culturais foi explorar um certo
leque de atitudes próprias das classes populares de modo a mostrar que elas
representavam não o resultado de um processo simples de massificação, brutalização e
lavagem cerebral das massas, mas eram mais matizadas, ambíguas e até incorporavam
valores positivos que encontravam expressão na vida cultural da classe operária. Em
outras palavras, Hoggart mostrou como a classe operária cria, no seu encontro com os
processos de industrialização e urbanização, formas culturais específicas e, ao fazê-lo,
mostrou que a produção e o consumo culturais expressam as relações sociais básicas, as
formas de vida de uma dada sociedade. O pressuposto que guia The Uses of Literacy é
o de que a cultura é expressão dos processos sociais básicos.
54
Não pretendemos aqui discutir o tom moralizante que boa parte da obra de Williams adota,
nem sua aposta em que os Estudos Culturais requerem uma abordagem histórica, nem, muito
menos, discutir sua clara opção pelo socialismo de Estado. O que nos interessa é o conceito
amplo de cultura com o qual ele trabalha, conceito que será fundamental para os Estudos
Culturais até os dias de hoje e, sobretudo, para as análises de recepção que essa corrente de
investigação engendra.
nos particularmente explorar Cultura e Sociedade enquanto uma obra fundadora
específica.
Mas é a definição de cultura dada por Matthew Arnold que confere à tradição do
século XIX “uma senha e um nome” (Ibidem:131). A cultura assume com Arnold todas
as conseqüências da noção de cultivo. A ênfase é posta na cultura do intelecto, que deve
ser cultivado de modo a atingir a perfeição. É essa busca da perfeição que Arnold
chamará cultura e que, naquele momento, se coloca contra uma acepção de cultura no
sentido utilitarista que concebia a educação e a cultura como um treinamento do homem
com fins de capacitá-lo para cumprir determinadas tarefas.
Essa concepção de cultura como busca da perfeição é uma reação aos efeitos da
industrialização e do conseqüente movimento da classe trabalhadora em meados do
século dezenove: cultura, como busca da perfeição, é colocada como oposta a anarquia
(a anarquia que Arnold via nos movimentos operários da Inglaterra, sobretudo em
1848). Arnold vai “propor a cultura como forma de nos salvarmos das dificuldades
atuais; considerando a cultura a busca da nossa perfeição mais completa, a ser
conseguida por meio do esforço por saber, em todas as questões que mais nos
interessam, o que de melhor for pensado e dito no mundo” (ARNOLD apud
WILLIAMS.1969:131) de modo a reagir à vulgaridade produzida pela industrialização
e pelo enriquecimento das classes médias e populares e, ao mesmo tempo, reagir à
instabilidade social que a Inglaterra vivia naquele período diante da organização das
classes trabalhadoras. As classes trabalhadoras são concebidas como desordeiras,
vulgares, populacho.
É nas “opiniões do século XX”, título da parte final de Cultura e Sociedade que
Williams vai encontrar, entretanto, alguns dos elementos que conformarão sua teoria
cultural. Nessa parte ele analisa as contribuições de D.H. Lawrence, sobretudo em sua
obra de ficção, mais que em seus ensaios ou em suas correspondências, de T.S. Eliot,
nos críticos literários I. A. Richards e Frank Raymond Leavis e no marxismo.
Essa idéia de cultura como um modo inteiro de vida vem mostrar que a mudança
social nunca é parcial: a alteração em qualquer elemento de um sistema complexo afeta
seriamente o conjunto. Depois, na medida em que permitiu pensar, com o apoio da
Antropologia Social que se desenvolvia à época, em vários modos de vida, esse
conceito terminou por implicitamente afirmar que o modo de vida das sociedades
européias modernas não era universal nem permanente, não era a única possibilidade de
vida.
Dentre “as opiniões do século vinte”, Williams explora ainda uma tradição de
estudos literários de cunho liberal, associada a F. R. Leavis, a Queenie Leavis e a
Denys Thompson 55, e que dominou a Inglaterra durante quase três décadas, dos anos 30
aos anos 50. Nesse sentido, Raymond Williams ajuda os Estudos Culturais a se
constituírem na Inglaterra como um campo de investigação fora do “leavisismo” (cf.
DURING.1997:02),
55
Ver Parte I, Capítulo 1, item 1.2. A metáfora da agulha hipodérmica.
com Leavis a compreensão de que a cultura de massa é perniciosa para a formação dos
indivíduos, que os textos canônicos são mais ricos que os textos da cultura de massa e
que a cultura deveria ser avaliada de acordo com sua capacidade de aprofundar e
ampliar as experiências humanas; mas, por outro lado, entende que os Leavis
desconsideravam as formas de vida comunitária nas quais o consumo da cultura
industrial se dava e que o levaria a apostar no potencial de resistência das pessoas
comuns face aos efeitos dos media.
A crítica que Williams faz ao leavisismo nesse momento será a pedra de toque
dos estudos de recepção a partir dos anos 80. Enquanto Williams dirá que Leavis e seus
colegas cometem uma “falha intelectual básica” que é a de estender um juízo válido
acerca das obras (no caso, obras literárias) a um retrato da vida contemporânea, os
pesquisadores da recepção irão denunciar as análises de conteúdo que posteriormente
têm suas conclusões extrapoladas para o âmbito da recepção e que já trazem
implicitamente a concepção do receptor como tabula rasa. E mais, a concepção de que
o receptor é uma tabula rasa advém justamente de não se fazer referência aos seus
“modos de viver”. Ou, como poderia ter dito Hoggart, de não se fazer referência à “vida
densa e concreta”.
Mas Williams só tinha, então, condições de dizer que esse uso inadequado era
decorrente da própria tentativa de Marx em esboçar uma teoria cultural a partir das
relações entre infra-estrutura e superestrutura; era decorrente, sobretudo, da
interpretação posterior que se fez desses termos, considerando-os como categorias de
descrição da realidade e não como “uma sugestiva analogia”.
É claro que Williams estava em busca de uma teoria cultural que permitisse
abordar aquilo que lhe parecia ser uma questão fundamental: a cultura da classe
trabalhadora; e somente um conceito largo de cultura, que não reduzisse a cultura a seus
artefatos ou a um corpo de trabalho imaginativo permitiria isso. Já que a classe
trabalhadora, por sua própria posição, não produziu uma cultura no sentido mais estrito,
caberia então buscar uma formulação que permitisse considerar outras contribuições da
classe trabalhadora. E Williams encontra:
É claro que Williams retomou esse conceito de cultura como todo um modo de
vida de T.S.Eliot (cf. Ibidem:240-255). É claro também que já havia um esforço da
antropologia para pensar a cultura nesses mesmos termos. Mas esse conceito, despido
do liberalismo da crítica cultural, adquire com o marxismo uma maior envergadura.
Modo de vida não implica apenas a forma de morar, a maneira de vestir ou de
aproveitar o lazer; implica, sobretudo, formas de conceber a natureza da relação social.
Cultura e Sociedade formula, de maneira ainda mais explícita que The Uses of
Literacy, uma das premissas básicas dos Estudos Culturais: qual seja, a de que a cultura
não pode ser pensada fora de suas relações com a sociedade. As instituições e práticas
sociais da cultura não podem ser vistas como distintas do conjunto de instituições e
práticas sociais mais amplo, em geral reconhecido como sociedade. No caso das
sociedades contemporâneas, dizer isso significa pensar a longa revolução57, as
transformações históricas, sobretudo aquelas implicadas pela Revolução Industrial, e
que podem ser traduzidas pelos significados das palavras indústria, democracia, classe,
arte e cultura. Para os cultural studies, então, compreender a cultura implicará
compreender as “relações entre os elementos de um sistema geral de vida”
(Idem.1969:12).
57
Ver WILLIAMS.1961.