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SOLANGE P AD ILHA

AMATIWANÃ TRUMAI

UNIVERSO E PINTURA

DOUTORADO/CIÊNCIAS SOCIAIS

PUC-SP
2001
SOLANGE PADILHA

AMATIWANÃ TRUMAI

UNIVERSO E PINTURA

DOUTORADO/CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à . Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Doutora em Ciências
Sociais (Antropologia), sob a orientação da Prof.
Doutora Carmen Sylvia de Alv. Junqueira.
BANCA EXAMINADORA
Em Memória

Olívia, Maria José e Sylvia

Aos

AMATIWANÃ TRUMAI E TATAWARI KAMAYURÁ


AGRADECIMENTOS

Agradeço ao CNPq pela a bolsa de estudo


Ao Departamento de Pós Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo

Carmen S. A. Junqueira que orientou e abriu caminhos

Ao meu pai Mário


Virgínia pelo carinho e atenção
Carmen Ribeiro Moura Lima e José Moura Lima
Aos amigos Ricardo Vale, Jair de Sousa, Naumi Vasconcelos, Joãozinho Merê, Dudu,
Josephina Bacariça, Cristina, Teresinha
Ao Pierre
Yakutá, Kumaru, Pedro e demais Trumai
Wandir Weidler e Cida pela força na exposição no :MNBA

Ao MINC e Sr. Otávio Elísio e Elisa Leonel


Ao Museu Nacional de Belas Artes ( RJ) Sra. Heloisa Lustosa, Xico Xaves, Marta
Maranhão, Guilherme Sarmento e a equipe que ajudou na realização da exposição de
Amatiwanã
RESUMO

Amatiwanã é um pintor indígena do Alto Xingu. Pertence ao povo Trumai, um pequeno


povo de 170 pessoas aproximadamente, que fala uma língua isolada sem parentesco
com as outras línguas que existem no mundo. Amatiwanã, também conhecido como
Amati, criou um estilo próprio de pintura e adota o figurativismo. O trabalho busca
atingir os significados de seus quadros, aliando suas narrativas e imagens. Mito e
Pintura, individualidade e coletividade são os traços de união desta tese.

A metodologia desenvolve o recurso de apresentar primeiro as interpretações e visões


dos Trumai elaboradas por pesquisadores. Em seguida, toma como eixo narrativo, as
palavras, lembranças e memórias de Amatiwanã. E afinal apresenta a integração dos
mitos e quadros, privilegiando análises plásticas e a linguagem visual da cosmologia do
Xingu.

Busca com suas palavras abranger o universo Trumai nos vários níveis de experiência:
conflitos, mitos, rituais, conformidade e diversidade cultural. Discernir a complexidade
de sua elaboração plástica seguindo o fio que entrelaça imaginário do artista e a
memória coletiva. Compreender nos elementos plásticos da pintura, ritmo, composição,
contrastes, cores, a memória instrumental que enriquece a linguagem dos mitos.
ÍNDICE

APRESENTAÇÃO ...........................................................................................................1

1. CONFORMIDADE CULTURAL E DIVERSIDADE TRUMAI NO ALTO XINGU


Primeiros Registros ........••....•.•.......•.•.••...............................•....••.....•••..••.........••..•..•...•..... 02
1.1. Os Trumai na visão de Karl von den Steinen.................•...•........•..•.....•............••....05
1.2. Buell Quain e os Trumai da aldeia Anariá •...........•.......•..••.•...........•.....•.............•••25
1.3. A Chegada dos irmãos Villas Boas e a criação do Parque Nacional do Xingu....•38

2. AMATIWANÃ TRUMAI: EXPERIÊNCIA, MEMÓRIAS E NARRA TIVAS...•.48

2.1. Amati : Experiência e Lembranças•.•.......•......•....•.•...•................•.........•..•.......••.....•50


2.2.A migração ..................................................................................................................62
2.3.Arranhaduras do corpo e do espírito: a doença de Amati.........•...........•...........•.....68

3. O PODER DO SOBRENATURAL ........••..........•...•.............................•...•....•..•..•••. 78

3.1. O pensamento mítico de Amati........•....................................•...............••.....•........... 79


3.2. No mundo dos mamaé e dos kut......................••...................................•..•........•..•• 107
3.3. O mito do Jawari..................................................................................................... 125

4. A ARTE DO XINGUE DOS TRUMAl...........•.....•...•.............••..........••......•...•...... 139

4.1. A Visão do século XIX.•....•...•••••..........•...•.......•.....................•.....•............•......••...••.. 141


4.2.Características da arte do Alto Xingu e dos Trumai............................................... 147
4.3.Um corpo enfeitado e pintado
....•....•.......•..•.•..........•..•••..........••....•..............•.............................................................•........ 154

5. O PINTOR E A PINTURA DE AMATIWANÃ TRUMAI.............•..............•.........• 166


5.1. O Pintor.••..•••..•.•..•.................•.....•.•......•..............•..•...............•..........•................•........ 169
5.2. Quadros e outros Mitos.......................•...............•............................•....•...•......••...•... 180
Conclusões.......................................................................................................................... 214

6. AN'EXO 1.......................................................................................................................219
7.BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 227

N . fliblioteca
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APRESENTAÇÃO

É o pensamento que manda, tem um desenho que eu ponho a flauta, aí é


bom, eu vou viajando.... o pensamento....

Amatiwanã Trumai, 1997


Amatiwanã pertence ao grupo indígena Trumai, de língua iso lada., que hoje vive em três
aldeias 1 na região do médio Xingu. Ele tem entorno de 57 anos, é casado, tem filhos e
netos. Ele e seus irmãos Ararapã e Kumaru, são os descendentes diretos do último grande
cacique Trumai, Nituari, morto há aproximadamente 5 anos. Nesse momento ele vive em
Canarana, cidade mato-grossense próxima ao rio Kuluene. Nesse últimos 30 anos, suas
informações serviram de fonte à diversas pesquisas. Mas pela primeira vez sua pintura é
alvo de um trabalho.

Meu interesse pela sua obra começa antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente, pela
impressão causada por reproduções de seus quadros. Eles ativaram questões da
individualidade artística e suas relações com o universo social. De maneira mais ampla,
questões do universo indígena na atualidade.

Quando em 1977 iniciei a pesquisa de doutorado em Antropologia no Departamento de


Ciências Sociais, sob a orientação da Professora Doutora Carmen Sylvia A. Junqueira., o
primeiro passo foi encontrá-lo na cidade de Canarana (MT) onde mora com a família desde
1996. Nas cinco viagens a campo, registrei depoimentos, acompanhei o desenvolvimento
de seu trabalho, vi a movimentação Trumai naquela cidade, o processo de adaptação, as
dificuldades e suas estratégias. Enfim coletei um vasto material de campo que soma mais
de vinte horas de imagem em vídeo, quinhentas fotografias aproximadamente, fitas K7
com entrevistas, principalmente de Amati. O conjunto das entrevistas mostraram diferentes
linhas de informação. Elementos biográficos e da trajetória Trumai foram narrados
revelando as tensões com os Suyá, Kamaiurá e Ikpeng. As narrativas míticas são em alguns
pontos semelhantes à aquelas contadas por seu pai e ele mesmo em 1975, à lingüista
Aurore Monod Becquelin. Dados sobre a sua pintura, desígnios e alcance, se recortam com
a trajetória dos Trumai e suas experiências urbarias.

1
- Terra Preta, Boa Esperança e Steinen. Também há muitos Trumai vivendo em aldeias de outros grupos,
com um número significativo, cerca de 20 pessoas, de acordo com dados de 1993 da lingüista Raquel
Girardello, na aldeia dos Txikão. Também na aldeia Kamaiurá existem parentes de Amati, pela relação com
sua mulher que é Kamaiurá.

11
Em duas viagens, (1998/99) estive na aldeia Terra Preta do Alto Xingu onde vivem sua
irmã e dois ele seus filhos mais velhos. Conheci outra aldeia Trumai, Boa Esperança.
Algumas das observações do universo Trumai são leituras e releituras de narrativas das
pesquisas de Karl von den Steinen, Buell Quain e Robert Murphy, Orlando e Cláudio
Villas Boas, Eduardo Galvão, Aurore Monod Becquelin. Minhas observações dos Trumai
passam por esses filtros e pelo recorte, essencial, de minha convivência com Amati: suas
lembranças e interpretações de seu grupo. Nem todo o material de campo foi utilizado' na '
tese e as narrativas do passado que se relacionam com a vida na cidade foram
praticamente deixadas de lado. O mesmo aconteceu com grande parte do material visual.

O esforço maior do trabalho que vocês vão ler conjuga o pintor e o narrador tendo em vista
a preocupação de pontuar a visibilidade da expressão artística de Amatiwanã: criatividade
que embora em processo de mudança se identifica com os Trumai de maneira dialética.
Imaginário e referências coletivas emergem historicamente em conseqüência de uma
invisibilidade de situações criadas pela desorganização de traços da identidade individual
e social, na invenção de um novo corpus de representação da tradição. Esta pintura que
resulta em tradição dinâmica, se inventa para tomar vivas as referências antigas. Por isso
podemos falar da arte de Amati relacionando-a a urna conduta de fidelidade à memória
tradicional o que nos remete ao relacionamento entre coletividade e iru;lividualidade e ao
diálogo entre o presente e o passado no campo da imaginação criativa.

Criado no contexto xinguano dos anos 40, a história de Amatiwanã foi marcada pelo
contato progressivo entre índios e brancos no Alto Xingu. Sua vida foi também marcada
pela fatalidade da doença, cujas causas são colocadas por ele de maneira complexa,
flexível e abrangente, sendo que ora, ela é explicada como conseqüência de feitiço, ora da
malária, ora do sarampo ou como reumatismo progressivo, que parece corresponder ao mal
que o aflige, mas que também aparece como resultado de urna vingança ao seu avô, da qual
ele teria sido a vítima. Ele era ainda criança quando foi para o Rio de Janeiro com o desejo
ardente de curar-se e voltar a ser o menino de antes. Tinha a personalidade xinguana
formada. Sua amiga Rachel de Queirós conta que era um menino cheio de vivacidade,
exigia que lhe cortassem o cabelo em cuia como fazem os xinguanos e suportava a dor com

ll1
muita dignidade. Ele fica talvez um ano naquela cidade e retoma ao Xingu. Volta a ter vida
normal. Mas aos vinte e poucos anos fica doente 'novamente. É tratado em Goiânia,
Brasília, São Paulo. Retoma ao Xingu. A vida nos hospitais torna-se uma constante, mas
desde que ele melhora vive intensamente os problemas Trumai, pensa, busca encontrar
soluções e participa como liderança, se esforçando para manter o elo com o espaço
convencional, também através da representação.

Como os demais xinguanos, a arte para Amati fez parte de sua vida desde cedo. Ele
desenhava, fazia artesanato e outras atividades criativas. Porém, sua pintura se distingue do
grafismo indígena, para adotar, via de regra, o figurativismo, em pinturas a óleo sobre tela
ou guache sobre cartão: um mundo de cores e composições de cenas e arquétipos da
cultura xinguana. Por esta ruptura com os padrões gráficos, ele se constituiu em uma
individualidade artística. O universo de Amati, passa pelo filtro de sua imaginação, mas
está imerso nos mitos e conhecimentos da cultura Trumai: a liberdade de expressão se
circunscreve à personalidade social, fortemente enraizada no seu trabalho. Sob esse
aspecto, ele é o intérprete do universo indígena, que se expressa, além das fronteiras da
linguagem da figuração e traduz os mitos para o universo da pintura.

Amati se define autodidata. Foi aprendendo aos poucos, experimentando sua maneira de
pintar para caracterizar a expressiva presença do desenho, a importância da cena rituai o
enredo ou a narrativa do cotidiano, paisagens e mitos. O auto didatismo "desenquadra" do
mesmo modo, os paradigmas da "boa" pintura e do grafismo tradicional. Porém, enquanto
pintor, está longe de busca. situar-se no campo dos especialistas da arte, e o esforço
intelectual contempla o amplo leque da memória que abre nas janelas do imaginário
sensível e poético, o diálogo com a matéria prima de sua criação, a matéria viva Xingu.

O artista vive as ambigüidades do encontro de dois mundos. Em 1972 fez a primeira


exposição em São Paulo expondo um total de, 43 quadros. Malgrado o sucesso que foi esta
exposição, Amati não se torna um pintor profissional. Sua produção é inconstante,
interrompida por aspectos contingentes que englobam a trajetória dos Trumai, a
inadaptação à cidade grande, ou a simples vontade de viver, maior que a de pintar. Mas,

iv
embora ele não se torne um artista nas cidades, a intermitência de seu trabalho, apenas
corresponde alimites conjunturais, pois a pintura torna-se para ele o propulsor que ele
lança para alcançar o que não pôde usufruir na vida, arma que lhe dá possibilidade de
conviver com os seus próprios limites. O resultado é que nestes últimos 30 anos, Amati é
:l pintor. Produziu em tomo de 80 pinturas e desenhos. Isso lhe confere uma identidade

1 artística a meio caminho entre dois mundos, entre a desordem de um trajeto oblíquo, e
'
pinceladas que ordenam o mundo.

Não é possível separar a vida e a obra de Amati. Elas se completam. Seu modo de pintar
também não pode ser rotulado simplesmente em um ou outro estilo. Se, de certa forma ele
se aproxima dos primitivistas naifs, fugindo às convenções clássicas- claro-escuro,
perspectiva, volume etc- de outro, recorre à memória coletiva como fonte e raiz de sua
imaginação. Como tal, encontrar a profundidade de significados deste mundo requer à
aproximação com a mitica poética original e ir além do estilo ou da classificação estética.
Sua pintura amplía nosso diálogo com a tradição e nos envia a reflexão dos conteúdos e
continentes estéticos de seus quadros como parte de um forte argumento, da visibilidade de
sua história cultural

Eu o conheci na rua Palmeira das Missões na cidade de Canarana, próxima ao Kuluene.


Uma casa de madeira com dois cômodos sem divisória de cozinha, onde o único móvel
existente, além de camas e redes era uma prancheta de desenhista. Na simplicidade da casa
pobre, quase miserável, ouvi sua voz. Uma voz macia e rouca. Surpreso e contido, ele
colocou seus óculos. Tatawari sua mulher, uma pequena mulher, de extrema delicadeza e
simpatia, me cumprimentou mostrando a beirada da cama onde me sentei e começamos
nossas conversas. Fazia apenas urna ano que eles moravam naquela cidade. Durante os
quatros anos seguintes, ele mudou-se seguidamente de casa, mas foi melhorando suas
condições de vida Sua familia aumentou, nasceram netos. Ele pintou muitos quadros nesse
período, com o enorme esforço de vencer a imobilidade do corpo, que se agrava desde que
contraiu sua doença. Vi seu neto começar um trabalho de pintor. Embora eu saiba que o
envolvimento afetivo nem sempre dá bons resultados acadêmicos, não pude me privar de
gostar e admirar Amati desde o primeiro momento. Nem sempre os caminhos da pesquisa

V
r foram simples. Mas, se existem falhas neste resultado, elas são, sem nenhuma dúvida,
devidas às mlnhas limitações.

A tese está dividida em cinco capítulos. O primeiro, aborda o encontro dos povos do Alto
Xingu a partir da narrativa de Karl von den Steinen e pela pesquisa de Buell Quain. São
dadas algumas informações sobre a formação do Parque Nacional do Xinfu e o
indigenismo daquele momento.

O segundo capítulo inicia os depoimentos de Amatiwanã. Suas falas abordam memórias


herdadas, memórias dos Antigos que seu pai lhe transmitiu. São relatos de contato, guerras
e conflitos. Elas tratam a memória da migração Trumai para o Alto Xingu.
Por último, suas palavras tocam as lembranças de sua doença.

O terceiro capítulo se desenvolver ainda em tomo da narrativa de Amatiwanã. Ele trata dos
mitos numa seqüência de três movimentos. No primeiro, são narrados mitos básicos dos
xinguanos: a chegada do Sol e da Lua outros mitos. A seguir, os mitos estão agrupados
pelas relações com as práticas mágicas e conhecimentos dos pajés. E, finalmente, um
terceiro item aborda e analisa a importância do mito Jawari para a identidade Trumai. A
narrativa de Amati é complementada por narrativas de seu pai e dos Kamaiurá. A
comparação entre elas e referências adicionais fornecidas por Amati, levam à discussão das
rivalidades e traços de distinção cultural Trumai.

O quarto capítulo, retoma a Karl von den Steinen e às suas análises da arte, a partir dos
esquemas evolucionistas do homem primitivo. O capítulo abrange os aspectos da arte
Trumai tratados na pesquisa de Buell Quain e por Aurore Monod Becquelin. As
"descrítividades" têm a intenção de avivar ·a memória de práticas Trumai e propõe a
discussão sobre a arte do Alto Xingu a partir e aspectos sociológicos, características dos
objetos, (aspectos formais) e relações com os mitos e rituais.

VI
O quinto e último capítulo, aborda o pintor e a pintura de Amatiwanã. Trata de sua
condição de pintor, seus sonhos e projetos. Seus quadros são analisados a partir de duas
fases. A primeira de 1977/ 1978 e, a segunda de 1997 a 2000. Os quadros são discutidos
em seus aspectos formais e em relação com os mitos. Nesse capítulo é apresentado o
conjunto de quadros com os textos no procedimento da pesquisa que reuniu as duas
linguagens, dando a possibilidade de visualizar uma cosmologia visual.

O:~H·:-t~ ~:l
Nadir Gouv.~;a Kfourl
PUC/SP

Vll
1

DIVERSIDADE E CONFORMIDADE CULTURAL TRUMAI NO ALTO XINGU


1.1. PRIMEIROS REGISTROS

Começar esse trabalho pela aproximação histórica da região e arte do Alto Xingu e
dos Trumai tem o propósito de mostrar referências sociais da vida e arte de
Amatiwanã. O capítulo aborda a complementaridade e diversidade Trumai a partir
das pesquisa de Karl von den Steinen e Buell Quain, e uma visão critica da imagem
dos Trumai construída por essas pesquisas. Aspectos dos primeiros contatos,
contingências e convivência dos índios com os brancos a partir da chegada dos
irmãos Villas Boas na região, a política indigenista da época, criação do Parque
Nacional do Xingu, hoje Parque Indígena do Xingu e características gerais e
sociológicas da vida dos xinguanos de hoje.

A região do Xingu, que hoje constitui o atual Parque Indígena do Xingu,


corresponde a uma área de 32 000 km2, situada ao norte do Estado do Mato Grosso,
num complexo de rios e lagoas que formam um ecossistema faunístico e botânico de
transição entre o Planalto Central e a floresta Amazônica. O ciclo das estações
oscila, como em toda a região central, entre as estações de chuva e seca. Em tomo
deste ciclo, se movimentam a fauna, a flora e as atividades sociais e produtivas dos
índios.

Nesse complexo cultural, que mais tarde será cunhado por Eduardo Galvão de área
do uluri1, a extensa rede de relações e semelhanças toma visível traços comuns entre
os 11 grupos formadores da conformidade cultural: Trumai, Kamaiurá, Waurá,
Yawalapití, Mehinaku, Aweti, Nahukuá, Aipátse ou Tsuva, Matipu, Kalapalo,
Kuikuru, representantes das famílias lingüísticas aruak, caribe, tupi e língua isolada.
Ao longo dos últimos sessenta anos se integraram à área outros grupos, Suyá, Yucija
(Juruna), Txucarramae, Txikão(Ikpeng) Kayabi, que embora com tradições menos

1
- área do uluri é o conceito empregado por Eduardo Galvão para definir o complexo de mitos e rituais
comuns aos povos do Xingu e que é adotado pela maioria dos que trabalham no Alto Xingu. u/uri é
também o nome tupi da vestimenta feminina JICp.guana, considerada o menor biquíni do mundo, feito de
embira e colocado JlCima do púbis da mulher e cujo uso está relacionado a uma série de rituais.

2
convergentes, ·vivem mais ao norte, também influenciados pelo sistema cultural
descrito por Galvão.

A ocupação desse território parece remontar ao século XI e excetuando os Trumai, a


migração e origem dos grupos caribe e aruak foi assinalada como vindo do norte,
possivelmente do Tapajós, pelas afinidades culturais que eles mantêm com os grupos
amazônicos. Os irmãos Villas Boas registram aldeias ancestrais em forma de arco ou
círculos com 10 a 15 metros de diâmetro, que não se diferenciam mais das matas
primitivas. Sinais de ocupações milenares, valas por vezes ocupando dimensões de
dois metros e meio de profundidade, com três a quatro metros de largura e 1.000
metros de cumprimento.(1970:22) Esses montes e valetas são visíveis nas regiões do
Jacaré e Tuatuari, territórios tidos como tradicionalmente Trumai e Kamaiurá,
correspondendo à localização destas antigas aldeias próximas a lagoas e pequenos
afluentes do rio Kuluene e Xingu, às aldeias contemporâneas, fato que converge para
a contínuidade do processo de ocupação. As elevações circulares, que ínicialmente
pensou-se terem funções defensivas, parecem tratar-se de acúmulo progressivo de
detritos, corroborando a idéia de aldeias muito populosas.(Pierre
Becquelin:1993:228) Eduardo Galvão já havia assinalado nos anos 50, depois de
escavações de enterratórios na região de confluência entre o Kuluene e Kuliseu, a
existência de urna cerâmica antiga na região, com características diferentes e
semelhantes da que fazem atualmente os Waurá (28/10/1953:9), povo da familia
aruak especialista na arte da cerâmica do Xingu. Por volta dos anos 60 são também
assinalados sítios arqueológicos próximos à aldeia Kuikuru(Lamacuca).
Posteriormente, estudos arqueológicos encontram objetos e cacos de cerâmica pré-
colombiana, que Mário Simões classifica em duas fases, Diauarum e a Ipavu, com
datação entre os século XI e XIII.(1965-66:vol6:129-151) As duas se diferenciam
pelo estilo, técnica e o lugar de ocupação, e no Alto Xingu está convencionada como
estilo Ipavu, de tradição "incisa e ponteada", de origem amazônica, com traços
semelhantes à cerâmica Waurá contemporânea: grandes panelas de bordas
extravertidas, placas para torrar beiju (jameo), suportes, o que supõe preparo e
cozimento da mandioca. (P .Becquelín:idem:230) A partir desses vestígios, os
arqueólogos situam o início e progressivo povoamento, entre os séculos XI e XIV,
e

3
T
dependendo da região, o que parece confirmar a opinião dos Villas Boas de que
nesse lugar, um processo de construção gradativa, com transmissões de traços e
tradições para povos de origens lingüísticas diversas, resultou na grande
conformídade da cultura existente, sem que houvesse "substituições radicais" de
culturas. (1970:22)

Os Trumai são o único grupo de língua isolada vivendo nesse complexo cultural.
Suas aldeias estão hoje situadas no médio Xingu, não muito distante das antigas
aldeias ao norte do Parque, próximo a sítios arqueológicos. A origem permanece
incerta e, ao contrário dos aruak e caribe, a migração é tida como originada ao leste
ou sudeste, provocada talvez pelo avanço da civilização ou guerras com povos que
no século passado se movimentavam intensamente naquela direção. Estimou-se que
chegaram à região no final do século XIX, mais ou menos na mesma época que
realizou-se a expedição de Karl von den Steinen, que fuz os primeiros registros
sobre os Trumai, os povos do Alto Xíngu e sua arte.

4
1.1. Os Trumai na visão de Karl von den Steinen

O explorador alemão Karl von den Steinen percorreu pela primeira vez o curso
inteiro do rio Xingu, e é considerado o precursor da etnografia da região. Formado
em medicina e com especialização em psiquiatria, ele muda o rumo de sua vida
quando encontra AdolfBastian, considerado pai da etnologia moderna, na Polinésia,
entre 1879/81. No final do século XlX, o evolucionismo dominava a antropologia
visando atingir os primórdios da humanidade para descrever, o mais seguidamente
possível, os estágios do processo evolutivo que levaram à civilização. Isto acarretou
pensamentos de linha evolutiva tendo por centro a desigualdade da capacidade
humana ou a progressiva evolução psíquica do homem. Porém, para Karl von den
Steinen e Bastian, os desníveis técnicos e culturais encontrados nas diferentes
culturas resultavam do contato com o meio fisico e não de uma maior ou menor
capacidade de pensar dos seres humanos. O processo de evolução fora determinado
por um conjunto orgânico de condições climáticas e geográficas que, agindo sobre
as culturas, formava com elas verdadeiras "províncias geográficas". Por essa razão,
as relações entre idéias e meio fisico se dinamizavam com os novos estimulos e o
aparecimento de novas províncias geográficas, ao passo que a harmonia total entre
idéias e meio fisico acabava imobilizando o processo de mudança. De maneira
interessante para a época, estagnação e mudança não são interpretadas
conceitualmente como frutos da análise de um plano sucessivo de unidades
unilineares coerentemente ordenadas, mas se engendravam a partir de uma
multiplicidade de estágios paralelos para, conjugando o contato entre as culturas,
chegarem ao surgimento da história e do desenvo lvirnento tecnocultural
propriamente dito. Tanto Bastian quanto Karl von den Steinen buscaram
compreender as determinações psicológicas e histórico-culturais que relacionam
origens, migrações e transmissões de elementos· culturais, com detalhes preciosos
das formas e manifestações artísticas. Em Entre os aborigenes do Brasil Central2,

2
- Os resultados das expedições de von den Steinen estão registradas em dois livros. No primeiro, O
Brasil Central (1942), ele cuida fundamentalmente de aspectos geográficos e a experiência com os
indios se limita aos encontros com os Bakairi, Manitsauá, Juruna, Sl!Jlá e Trumai. A partir desta última,
von den Steinen produz seu segundo livro, Entre os Aborígenes do Brasil Central ( Separata
renumerada da "Revista do Arquivo Municipà. de São Paulo" nº XXXIV a L VIIL 1940). Além de
Wilhelm e Ehrenreich, fazia parte da segunda expedição, o geógrafo VogeL

5
ele descreve minuciosamente os grupos que viviam às margens do rio Xingu, e
inventaria as manifestações da arte xinguana, tecendo considerações com
preocupação e cuidado etnográficos na descrição precisa dos hábitos e costumes dos
seus habitantes. Em suas expedições, Steinen se fez acompanhar de duas pessoas
importantes para o registro da arte no Xingu: seu primo Wilhelm von den Steinen,
artista de Düsseldorf e Paul Ehrenreich, fotógrafo e etnólogo, que já tivera
experiência com os Botocudos do Espírito Santo e empreendeu posteriormente
expedições aos rios Araguaia e Purús, além de ter trabalhos sobre os índios norte
americanos, que Franz Boas considerou como um dos primeiros a debruçar-se sobre
o simbolismo na arte indígena.(1947:97)

A primeira expedição partiu de Cuiabá em fins de maio de 1884 para alcançar em


setembro o Pará Seu plano "consistia em descer o rio Xingu, desde a cabeceira até a
foz." E, pela importância do projeto para a comunicação do Mato Grosso com o
Pará, recebe auxílio do barão de Batoví, então presidente da província do Mato
Grosso.(H.Baldus: apud Karl von den Steinen: 1940:5) A política brasileira, desde
então, dedicava um grande esforço para integrar as regiões do centro oeste ao país,
colonizar a grande região amazônica e do centro oeste, ocupando territórios e
íncorporando, contigentes indígenas como mão de obra necessária aos projetos de
comunicação que Cândido Rondon inicia um pouco depois daquela data. Por outro
lado, o Brasil do século XIX é um grande ponto de encontro de cientistas e
pesquisadores europeus que, a partir da mudança da família real portuguesa ao
Brasil, chegam em busca de documentar regiões virgens ou semí virgens e homens
com pouco ou nenhum contato com a civilização. Karl von den Steinen se inscreve
na tradição dos grandes expedicionários que iniciaram na primeira metade daquele
século o inventário da flora e fauna e cultura de um Brasil longinquo, adentrando o
seu interior. Totalmente convencido da importância de coletar "documentos de
imensurável valor para a história da humanidade", e reunir amostragens
significativas das culturas "remanescentes", se inspira no modelo das ciências exatas
e parte para sua exploração. As dificuldades do curso do rio e notícias de que por ali
viviam tribos indígenas perigosas fizeram com que o Xingu se mantivesse
preservado e desconhecido até no final do século XIX. Foi com essa dificuldade, ou
movido por ela, que ele empreende a pr~eira expedição em 1884.

6
Quando em 1887, ele retorna para a sua segunda e mais importante viagem, contava
com a experiência da expedição anterior, e se propunha objetivos múltiplos e
ambiciosos se consideramos o período de tempo que dispunha para realiza-los. Em
duas semanas, empreende a correção de dados para o mapeamento dos rios; faz
medições e fotografias para aferição dos caracteres raciais dos "selvagens" como era
praxe entre os evolucionistas; inventaria os costumes: danças, músicas, modos de
viver etc; procede pesquisas lingüísticas com dicionários nas quatro línguas dos
povos da região, além da Bakairi. O sistema evolucionista e as bases humanistas de
seu trabalho, tornavam a coleta de objetos um dos métodos mais eficientes e
cobiçados da pesquisa científica, na medida que esses objetos representavam um
número significativo de testemunhos de culturas "remanescentes". Mas o
colecionismo aqui se alinha à urgência primordial do resgate de elementos essenciais
ao esclarecimento das passagens do estado selvagem para o das culturas civilizadas.
Em 84 ele já havia colecionado cerca de 270 objetos entre os Bakairi, Custenau,
Trumai, Juruna e Suyá. Desses primeiros objetos, 44 eram de origem Trumai. Na
segunda expedição, a coleção monta a 1235 objetos, urna diversidade de peças da
arte xinguana que irá compor urna coleção do Museu Etnológico de Berlim,
instituição dirigida por seu amigo Adolf Bastian. A realização de seus objetivos é
pontuada por acontecimentos imprevistos, que iriam permitir cotejar as impressões e
o discurso sobre a região e seus habitantes, a arte e a realidade singular que viviam
os Trumai. As descrições do que se passa com os grupos, embora pontuadas pelo
impacto da chegada desses estrangeiros, ao mesmo tempo que nos revelam uma
série de situações em que a expedição parece passar ao largo, e outras que chegam a
beira de atritos pela dificuldade de entendimento de certos aspectos culturais, como
é mais evidente em relação ao comércio e posse dos objetos, de maneira geral,
sublinha a conformidade cultural e a riqueza das expressões artísticas xinguanas. A
expedição vive a experiência sem grandes traumas, excetuando a relação com os
Trumai. Desde o primeiro contato, à seqüência de notícias sobre as violentas guerras
que ocorriam entre eles e os Suyá, até o último encontro, fica-nos a impressão que os
Trumai são um grupo desorientado, com características à parte, inadaptados àquela

...
realidade que transmite harmonia. A escolha de transcrever parte do roteiro de von

7
den Steinen, o que será encaminhado a segurr, procura situar brevemente a
especificidade e particularidade Trumai e, contemporaneamente, as características
gerais dos costumes e da arte xinguana, por considerar essas, primeiras impressões
importantes para a constituição da representação da identidade Trumai. Uma
abordagem mais analítica dos conceitos básicos de von den Steinen, em relação à
arte, será retornada no capítulo sobre a arte dos povos do Xingu.

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" OS ARCOS ERAM MUITO BONITOS E FORTES, SENDO QUE UM
ESTAVA DESTROÇADO POR UM TIRO(...)"
Karl von de Steinen 1884

A primeira descrição dos Trumai para a lústória ocorre no dia 31 de agosto de 1884.
E pela importância do relato, comecemos por ela.

Karl von den Steinen e seus expedicionários acabavam de finalmente achar a entrada
para o rio Xingu que tanto procuravam. Era o dia 31 de agosto de 1884.
Encontravam-se na junção do rio Ronuro com o Xingu, quando deparam com os
Trumai pela primeira vez. Uma longa fila de canoas descia o rio vagarosamente.
Dois índios mantinham-se de pé, com seus arcos de metro e meio armados e um
feixe de flechas coloridas na mão esquerda. Contaram 14 canoas e 43 úidios com o
corpo pintado em preto e vermelho, alguns cobertos de fuligem. Em seguida eles
param e irrompem uma tremenda barulheira. Gritavam serem os Trumai batendo no
peito e fazendo mesuras com a parte superior do corpo. Os expedicionários gritavam
palavras, as que lhes vinham na cabeça, em português e alemão:

"Apesar de acenarmos convidativamente batendo palmas procurando inspirar-lhes


confiança, nada adiantou até que lembrei-me de dois vocábulos que um chefe Waurá me
ensinara: "apiri (amigo)" e "meiju beiju ( pão de mandioca). O efeito foi ótimo. Buscaram
beijus do fundo das canoas e braniram no ar em sinal de paz. Finalmente aproximaram-se
da praia e desembarcaram. Cada um de nós pegou um camarada daqueles pela mão e
caminhamos fraternalmente abraçados até o acampamento.

O contato parecia favorável e bem sucedido. Súbito,

"(.. ) ouço um tiro atrás de mim. O primo Wilhelm está ali sem chapéu gesticulando. Seu
amigo índio sentado na areia a espernear agitando os braços. Depois levanta-se furiosamente
e ocorre o pânico. Acham que manejamos o relâmpago e o trovão. Aos pulos e em poucos
segundos já estavam em suas canoas, afastando-se aos berros, só sossegando um pouco
quando chegaram ao meio do rio. Súbito, vejo uma _de nossas canoas com quatro homens
indo atrás deles: queriam retomar-lhes os nossos objetos dos quais, em pouco espaço de
tempo, eles se apoderaram: chapéus, espingardas e pistolas e o nosso ferro de soldar. Um
trumai envia uma flecha em direção à nossa canoa e logo se ouvem os tiros dos nossos
soldados. Os índios pulam esbaforidos para fora das canoas e nadam até a margem mais
próxima, desaparecendo por entre as árvores. ( .. ) Os soldados possuídos pelo fervor da
batalha continuam a atirar muito, apesar de Castro, da praia ordenar: descansem as annas".
Por fim, silêncio(.. )

9
von den Steinen nos descreve a cena dramática, com pinceladas da linguagem
romântica da época,

"(.. ) as canoas jazem à margem do rio como um quadro pacífico, somente aqui e ali bóia na
superfície das ondas um dos seus enfeites de penas, semelhante a um pássaro morto.( .. )

Ele entende então o que havia acontecido. O índio parceiro de seu primo Wilhelm
em seu entusiasmo disparara sem querer um tiro, assustando todo mundo e levando
os trumai a partirem desordenadamente. Em seguida à fuga, a perseguição dos
homens, que partem atrás dos índios, para recuperar os objetos trocados. Malgrado o
estorvo da situação, os expedicionários retornam com urna rica coleção etnográfica:

"(.. ) os arcos eram muito bonitos e fortes, sendo que um estava destroçado por um tiro( .. )um
enfeite de penas era extraordinariamente bonito: as penas brancas, verdes e alaranjadas,
dispostas verticalmente numa espécie de rede para a cabeça, tinham a particularidade de
poder meter as penas para dentro(.. ) uma panela cuja extremidade superior era recortada em
bicos, cordões de algodão que alguns Trumai usavam amarrados em volta do corpo ou das
pernas enfeites de penas, panelas e cuias e cordões de algodão.( .. )

O incidente iria render, como conseqüência, o início da coleção de artefatos Trumai


e uma inimizade. Para os índios, os dividendos foram bem desvantajosos. No pânico,
abandonam suas trocas pelo meio do caminho para salvarem a pele, restando-lhes
apenas dois chapéus que, observa von den Steinen, ao invés de dois escalpes, se
mantiveram enterrados em suas cabeças como mais um testemunho daquele
acontecimento.

Independente do tom anedótico desse comentário, as observações sobre os Trumai


irão criar a identificação deles com aspectos de desordem social.
Contemporaneamente, os argumentos Bakairi são desde o início ferinos e se referem
aos Trumai como homens perigosos, com uma série de características de crueldade,
animais aquáticos que inspiravam repugnância. Einbora certo que os Trumai fossem
seres traiçoeiros, "que arrancavam os braços dos inimigos de suas articulações, "poc
poc poc" amarravam as mãos deixando assim o corpo indefeso" como diziam os
Bakairi; e os homens se regozijassem do que acabara de acontecer, von den Steinen
fica preocupado, mas seguro que nenhuma bala atingira os Trumai. Inviabilizado o
contato, Steinen continua descendo o ~· Um pouco mais adiante, ele encontra os

10
Suyá, com quem convive alguns dias. Talvez no oportunismo do incidente, os Suyá
pedem a von den Steinen ajuda para levar adiante o plano de dominarem os Trurnai.
Três anos depois, a inimizade que se estabeleceu entre estes índios, coincide com o
logro do ataque dos Suyá.

Retomado o contato com Bakairi em 1887, esses índios contam o que aconteceu
depois que os Trurnai fugiram assustados,

"um Trumai foi atingido por tiros estupidamente descarregados pelos nossos camaradas,
apesar da informação destes de terem atirado para o alto. Não havia mais possibilidade de
sermos bem recebidos aí."( 1940:80)

Agregam-se a este acontecimento, informações dos conflitos e fugas provocados


pelos Suyá, onde ora os Trumai aparecem entre os Aweti, ora nos Yawalapití, ou nos
Karnayurá, mas sempre se esquivando de um contato direto. Mas, vamos
interromper as observações sobre os Trurnai, para iniciar a abordagem dos aspectos
gerais da expedição.

Quando Karl von den Steinen percorreu o curso do rio Xingu, ali encontrou povos
que praticamente não tinham contato com a sociedade envolvente. Seu trabalho
sobre os xinguanos traça um perfil de povos alegres, educados, com regras de
etiqueta estritas para atos comuns como o comer, um alto sentido da receptividade e
discrição no comportamento geral. Segundo os Bakairi, as tribos se dividiam em
kúra (boas) e kurápa (ruins), para caracterizar o grau de hospitalidade: as que
ofereciam boas quantidade de beiju e pücerego, e as que não. As aldeias circulares
abrigavam casas similares às que existem no Alto Xingu, em forma elíptica com um
diâmetro aproximado de 15 metros, com nove metros de altura, suportada por dois
postes, e uma cúpula ao centro de palha, sustentáda pelo madeiramente formado de
anéis horizontais de bambu, nas quais se entrava por duas pequenas entradas,
situadas à frente e atrás da casa. 3 Casas de flauta para cerimônias masculinas
interditadas às mulheres e crianças, e grandes gaiolas em cones para aprisionar
hárpias, foram encontradas em quase todas as aldeias e completam as características

3
- idem, p. 85

11
gerais desse cenário. Dentro das casas, objetos artesanais de uso ritual e cotidiano
em palha e cerâmica, armas, plumária, eram dispostos de maneira que
impressionavam pela harmonia. Nas aldeias Bakairi do Kulisehu, comia-se peixe,
como é costume na dieta xinguana. Por toda parte comeram beiju, mangabas, grãos
de milho tostados, palmito, formiga, a larva de "iwakulukulu ", bebida de pürserego.
Os Bakairi cantavam cantigas que falavam de olhos, ywali nawi, e incluíam nas
letras de música palavras em aruak káme (sol) e, yawali, nome do dardo e da dança
de dardos dos tupi ( .. ).(idem:88) As mulheres usavam o uluri, enfeitando-se com
colares de conchas ou sementes. Os homens traziam em tomo da cintura colares com
conchas ou, simplesmente, urna corda; faixas de cortiça ou algodão nos braços, e
abaixo do joelho ou do tornozelo. Às vezes usavam penas na orelha. Em festas
mascaradas, as indumentárias eram trançadas em folha de palmeira, e as crianças
brincavam com bolas de palha e enfeitadas com penas. O pudor se limitava
fundamentalmente ao ato de comer, mas não qualquer comida. Quando comiam
peixe, viravam-se de costas, ao passo que as regras eram menos severas para o beiju
ou outra refeição. Ehrenreich notou a mesma etiqueta de comer sozinho, dando as
costas, entre os Karajá. A origem de tal pudor era, para von den Steinen remota, sem
relação com a pouca comida que tinham Na seqüência da viagem eles visitaram
primeiramente as três aldeias Bakairi do Kuliseu, "(.. ) A elas seguiam-se uma aldeia
"Nahuquá '', duas "Mehinaku ", uma dos "Auiti ", uma dos "Yaualapihü" e duas
aldeias Kamaiurá. Não se encontram com os Waurá, que viviam distante, entre o
Kuluene (Xingu) e o Tamitotoala- Batovi Por último se defrontam com os Trumai,
num pequeno acampamento entre os territórios Kamaiurá, Yawalapití e Aweti.

Os aspectos culturais observados nas aldeias Bakairi de Maigéri, Iguéti (aldeia dos
gaviões), Kuyaqualiéti (aldeia das harpias) são muito próximos aos que aparecem
nas dos outros grupos. As aldeias estavam organizadas em grandes casas de
habitação familiar ampliada. Situavam-se próximas as cachoeiras ou lagoas, a uma
certa distância do rio. Na aldeia lguéti, moravam 40 pessoas e três caciques. Além
das três casas, era hábito construir uma casa de flautas e uma gaiola em cone para
abrigar uma harpia, que os Bakairi chamavam, o senhor dos macacos, mégo-

...
zóto(idem: 118). Os caminhos eram batidos com machados de pedra e a casa do

12
cacique estava construída magnificamente, decorada com muitos objetos, cestos
empilhados, aves esculpidas em espiga de milho, frisos,

" Entre as colunas centrais estavam empilhados muitos cestos com provisões, e da cúpula
pendiam numerosas "aves" de milho e espigas. Interessava-nos, porém, em primeiro lugar,
um friso de desenhos toscos em toda a parede, a uma altura de dois metros acima das portas,
com um comprimento total de 56 cm. Sobre estreitas pranchas de cortiça enegrecida
estavam desenhados, com barro branco, pontos, anéis, desenhos lineares e, entre outros,
figuras de peixes."(idem: 120)

von den Steinen observa os desenhos nesses objetos e se surpreende com seus traços
abstratos, característica que irá impressioná-lo e se constituirá um dos pilares de sua
teoria sobre a arte desses povos.

Os Bakairi carregavam em suas viagens cestos cargueiros mayaku e redes de


algodão. Usavam uma série de indumentárias de folhagens para as danças. No
espaço masculino da casa de flautas, os homens dançaram o que eles chamavam
makanari,

"(.. )três homens começam a cantar, chegando até bem perto da casa de flautas e de costas
para nós; dois faziam soar chocalho(.. ) os três cantavam irai, irai, irai huxó, ihai ohuhuxó ..
Era o makanari," de canções sérias ·e melancólicas.

A terceira aldeia contava uma população mais numerosa, em torno de 100 pessoas,
entre homens, mulheres e crianças. A casa de flautas era grande e via-se diante dela
um enorme tronco apoiado sobre traves transversais:

"Era uma árvore morcego, pintada com figuras humanas e espinhas dorsais de peixes. No
interior da casa belas máscaras e indumentárias de dança, com dez metros de roda coberta
de palha, koalú, que eram presas aos ombros por um anel."

Nesta aldeia encontraram também trajes de dança em palha que imitavam


verdadeiras casas:

"duas criolinas enormes, com 1O metros de roda, coberta de palha, comparáveis a pequenos
ranchos que o dançarino, koálu, prendia ao ombro com um anel."(idem:123)

O propósito de coletar objetos para a coleção do Museu Etnológico de Berlim,


dirigido por seu amigo e parceiro de°'1:abalho Adolf Bastian, dava às trocas uma

13
grande importfulcia Com os Bakairí, trocaram adornos de penas de arara azuis,
esteiras, diademas de taquara amarelo - preta, outros com penas dispostas em forma
de raio, flautas grandes, remos com desenhos, cacos de cerâmica em forma de
discos, varas cilíndricas ornamentadas para festas que eles carregavam nas costas.
Esses índios possuíam cerâmica e machados de pedra, artefutos que não produziam
A cerâmica em forma de tartaruga e novelos de algodão muito bem fiados eles
trocavam com os Mehinaku. Os machados de pedra, assim como gorros de penas,
com os Trumai, embora estes últimos também fossem de origem Suyá.(Idem)

As medições dos caracteres fisicos dos Bakairi rendem os primeiros regateios. Ao


invés de três pérolas o homem queria tantas quantas tivessem sido as medidas
tornadas: as pérolas equivalentes às partes medidas de seu corpo e somente a
precisão na equivalência sossegou-o. Dessa experiência von den Steinen concluiu o
quanto os intercâmbios comerciais desenvolvem talentos matemáticos!(idem:l24)

Nessas primeiras aldeias von den Steinen coleta com os índios dados da localização
geográfica das tribos. Mas de imediato ele não consegue localizar a aldeia principal
dos Trumai.

A quantidade de objetos importados que havia na última aldeia Bakairi tomava


evidente a proximidade dos povos xinguanos. O território Nahukuá vinha em
seguida.

Os Nahukuá viviam em uma grande aldeia afastada do rio, com doze casas e uma
casa de flautas, dispostas em círculo. Em volta do terreno, plantações de frutas e de
piquí. Esses índios, de origem Tupi, enfeitavam-se com colares de conchas e
talhavam nas árvores figuras humanas com longas orelhas. Karl von den Steinen
chega à aldeia e ninguém vem para recebê-los. Ele, o cacique Bakaíri e os outros
brancos começam a gritar que são bons, kura, kura, até finalmente aproximarem-se
40 índios pintados no corpo com círculos, triângulos, trazendo nas coxas desenhos
de linhas sinuosas. Um deles usava tatuagem no rosto em forma de ângulo reto. Eles
lhes ofereceram grande quantidade ~ beiju, piquí, e, "charutos de 40 cm de

14
comprimento"-. Tapavam a boca e o nariz para mostrar admiração e espanto. Ele
observa que uma velha ceramista Mehinaku trazia o braço tatuado com três linhas
horizontais. Os objetos tinham desaparecido, retirados da aldeia e levados para o
mato. Estavam desconfiados. Possivelmente temessem um ataque. Já pela manhã, os
Nahukuá mostram impaciência e desejo que Karl von den Steinen e seu grupo se
retirem. Eles permanecem um pouco mais e assistem a duas danças. Na primeira,
dois músicos tocam um chocalho e urna cuia comprida para acompanhar três
bailarinos. Estes usavam diademas de plumas, saias de palha de buriti na altura dos
joelhos e enfeitavam os braços com folhagens, repetindo movimentos que
acompanhavam os sons, enquanto urna mulher velha ensaiava passos para frente e
para trás. Na segunda parte da música, os movimentos eram rápidos e os sons
diferentes. Apenas os homens participavam. Na segunda dança, dois músicos,
também com cuia e chocalho, sentaram-se no centro do pátio. Em tomo deles 16
homens se movimentam em semi - círculo, afastando e aproximando as duas
metades uma da outra, ritmando batidas de pé com sons de "ho ho ho". (idem:l30)

Chega o final da dança e a hora da tradicional troca de facas, miçangas e outros


objetos pelos objetos rituais. Mas os mais belos deles permaneciam escondidos na
floresta. O que tinham para trocar, os Nahukuá confeccionaram às pressas,
simplesmente para mostrar as danças e não tinham a qualidade dos objetos
cobiçados. Karl von den Steinen se dá conta do risco que corre a coleção para o
Museu de Bastian. Reflete sobre isso e chega a conclusão que precisa diminuir o
número de expedicionários, que seguramente assustava os índios. O grupo dividi-se
em dois, ficando seu primo Wilhelm e Ehremeich na aldeia, enquanto ele com dois
Bakairi partem para a próxima aldeia dos Mehinaku. Ehremeich faz fotos e o medo
parece desaparecer: mulheres e objetos retomam à aldeia. As trocas são feitas:
adornos por fotos. Panelas de grandes proparções, com desenhos na superfície
externa em linhas verticais e o fundo pintado em dois semi círculos, dispostos um
em frente ao outro. Nessa aldeia provam pela primeira vez o sal do índio, que depois
verão preparar na aldeia Mehinaku. É entre os Nahukuá que eles podem apreciar o
peixe mereshu, que eles identificam com um dos padrões mais importantes da arte

15

- - - - -- - -~- --=------
xinguana. Também nesta aldeia encontram uni índio se dizendo Yamurikumif que dá
as primeiras informações da localização geográfica das aldeias Trumai e Kamaiurá.
Informações confumadas posteriormente.

São três Kuikuru que trazem a notícia de terem os Suyá atacado os Trumai. Tinham
conseguido subjugá-los. Afundaram canoas, atingindo com flechas os sobreviventes.
Cumpriam o plano que em 1884 haviam transmitido a von den Steinen.(idem:132- 11
11

33)

Como o Nahuquá, o território Mehinaku exibia troncos de árvores com desenhos


geométricos gravados. Como detalhe, na areia ele observa o enigmático desenho de
um círculo, com uma figura no seu interior, que os guias identificaram como sendo
atulua, explicando que os índios faziam danças ao seu redor.

Os Mehinaku eram o grupo mais rico da região. A alimentação era farta, também os
objetos. Comiam batatas doces, mangabas, frutas, assavam bichinhos voadores, que
chegavam com os iças; formigas com beiju. Viviam em uma grande aldeia com 14
casas construídas e duas em construção e uma casa de flautas. A chegada dos
estranhos provocou alvoroço e curiosidade. As pessoas saiam das casas falando e
gesticulando, oferecendo -lhes cuias de mingau de mandioca, uma boa quantidade
de beijús e sal sobre folhas verdes. Os estranhos são levados à casa de flautas onde
se sentam em bancos de madeira em forma de ave; as mulheres, com os corpos
pintados de preto ou recobertos de fuligem, se escondem atrás dos homens. A
entrada da casa de festas com dois palmos de abertura, forçava os estranhos a
entrarem arrastando-se pelo chão. No seu interior a profusão de máscaras de madeira
com pinturas coloridas, algumas com enormes barbas de buriti pintadas de
vermelho. A casa de flautas era poderosa com seus 5 metros de altura por 22 de
comprimento, o madeiramento do telhado sustentado por três postes e, ao logo deles,
urna estrutura de onde pendiam 20 máscaras, mantos em palha e um zunidor em
forma de espada. No chão, dois relevos em pele representavam liguanas.(idem:l35)

4
- nome que hoje denomina um ritual feminino •
16
Os Mehinaku ·se mostravam ansiosos pelas trocas, reclamavam seguidamente as
miçangas e outros objetos. Se comportaram de maneira agitada, ao contrário dos
Yawalapití, Kamaiurá, Nahukuá. Foi preciso que o cacique Bakairi interviesse
explicando "as regras do comércio europeu", para que se estabelecesse critério
compatível com a expectativa da troca.

Nessa aldeia, o primeiro incidente com os objetos europeus. Some da bolsa de Karl
von den Steinen uma bússola, tesoura, pastilhas etc. Ele exige seus objetos de volta.
A situação torna-se tensa. Os Mehinaku contestam. Para assustá-los von den Steinen
atira de revolver no poste central. Instala-se o pânico. Aos poucos os objetos são
devolvidos, menos a bússola. Durante a noite cai urua chuva com trovoadas,
violenta, von den Steinen é acusado de pedir a tempestade. Os discursos se
multiplicam. Porém, aos poucos, as relações se normalizam e ele se dá conta que
nem mesmo trouxera sua bússola. (idem:l37)

Novas narrativas descrevem batalhas Trumai, desta vez nas palavras de um


Mehinaku que conta conflitos deles com os Nahukuá.

A notícia da chegada dos expedicionários se espalha pelo Xingu. Os Kamaiurá que


visitavam a aldeia Mehinaku, comunicam aos Aweti. E, quando eles chegam ao
território Aweti, havia uma grande quantidade de pessoas reunidas que procurava
sentar-se por todo lado. Mas, num canto do pátio, um terreno cercado por estacas
pequenas presas por um entrançado, indicava um sepultamento. O cacique sai de
uma casa situada em frente à casa de flautas, adornado de colar de unhas de onça e
diadema da pele desse mesmo animal, segurando em urua das mãos o arco e flecha.
Senta-se no centro da aldeia, distante dos visitantes e faz um discurso. Em seguida,
dirige-se a eles e repete o que disse. Eram amáveis e não pressionaram para receber
presentes.
•1;
iv
Jj
·'i Entre os objetos da aldeia, numerosos dardos, as máscaras que ao invés de
~
'~ entalhadas, vinham trabalhadas em tecido com revestiruento em cera para modelar
;,iÍ:\
~: os olhos e o nariz. Os utensílios se cobriam de desenhos gravados ou pintados de
• e
:~~
l:f
f,

17
:~
:.•1,\·., preto. Os artistas alegravam-se do interesse pela sua arte. Era grande o número de
~· visitantes de outros grupos nesta aldeia: Waurá, Kamaiurá, Yawalapitf, Mehinaku,
~;I

í~ Bakairi. Também Trumai que se escondem com medo. Uma luta cerimonial
\( masculina entre rapazes de origem Waurá e Yawalapití é posta em ação. Com os
corpos untados de urucum e jenipapo, acocoraram-se em pares, girando em tomo um
do outro, gritam ameaças, tentam pegar a cabeça um do outro para abaixa-la. Depois
se abraçam. A platéia assiste silenciosa, manifesta seus gritos apenas uma vez
quando um dos rapazes consegue agarrar a perna do outro por baixo do joelho, como
é costume atualmente na luta cerimonial huca-huca, do Kwarup.

Embora invisível, a presença dos Trumai vai num crescendo. Era grande a comoção
causada pela guerra com os Suyá. Depois do conflito, eles tinham se refugiado entre
osAweti, e não é de todo improvável que a cerimônia que se passava ali, semelhante
ao Kwarup pela descrição da luta cerimonial, tivesse referência neste conflito. O
cacíque Aweti faz um discurso veemente. Ele conta que os Suyá tinham atacado os
Manitsauá e depois os Trumai. Tinham matado muita gente. Levado muitas
mulheres. No final, ele pede a von den Steinen que ajude os Trumai contra os Suyá.(
140)

Para chegar à aldeia dos Yawalapití, eles passaram por urna rede de canais revestidos
de vegetação de palmas do buriti e pântanos, que tornavam o caminho dificil e
sinuoso. Pelos canais laterais, chegava-se pelo lado esquerdo aos Mehinaku, pelo
direito, aos Trumai. Ao final do canal, deixam a canoa e caminham cerca de uma
hora por urna região de arbusto, atravessando um canal estreito com outra canoa que
veio encontra-los. Ali depararam com uma lagoa de água límpida, cercada de buritis.
Meia hora de travessia e estavam entre os Yawalapití. Era urna aldeia pobre e sem
casa de flautas, ao menos aparentemente. O cacique chegou apoiado em um bastão
para conversar com eles. Sentou-se atrás de von den Steinen, fumando. Trocaram
apresentações formais. Presentes: uma faca, um charuto. Os Yawalapití não estavam
interessando em facas e, apesar de pobres, preferiram as miçangas às lâminas.
Viviam em duas aldeias, pouca farinha, torravam nozes de bocaiúva, e em armações
de madeira repousavam peixes pequenos e magros. A plantação do ano tinha sido
e.

18
destruída pelos·porcos. Dos poucos objetos encontrados, sobressaíam-se pás de virar
beiju, colares de pedras, fusos e adornos de plumas. A aparêncía das pessoas não era
das melhores. Mulheres e homens com pele escamosa. Mas eram conversadores e
falavam baixo. Tinham um grande pajé, Moritona. O velho cacique cego
Mapukayáka, sentado em frente de von den Steinen, explicou-lhe que tinham sido
muito poderosos, até serem oprimidos pelos Manitsauá. Mas na roda da fortuna,
estes terminaram subjugados pelos Suyá. O velho se queixava dos Trurnai, dizia que
os Suyá eram ricos e possuíam o machado de pedra.( 146)

Os Trurnai mais uma vez cruzam o caminho de von den Steinen. Tinham passado
por ali e fugido em seguida Mas permanecem por perto, rondando e assustando um
dos guías Bakairi, que os chamava de animais aquáticos.( 147)

A aldeia Karnaiurá foi a última que os expedicionários visitaram. Esses tupis vivíam
em quatro aldeías. A primeira distava 3 horas e um quarto da última aldeia
Yawalapití, andando pelo mato. Em tomo do centro, quatro casas e uma gaiola com .
uma enorme harpia Tiveram de esperar. Sentaram-se em bancos: uns em forma de
onça, outros de pássaros, " em nenhum lugar encontramos ornatos tão bem
confeccionados(.. )". Aguardaram pacientemente, até que homens e mulheres
chegassem da plantação. Os discursos foram longos e pausados. Ofereceram-lhe ao
final, bebida, charutos e mangabas em quantidade. Não viram casas de flautas onde
em geral se hospedavam e os Karnaiurá desalojaram uma parte de urna das casas
para abrigá-los. Comiam beiju e formigas voadoras tostadas, saborosas, também
para o gosto alemão. Mais a oeste ficava uma segunda aldeia, com sete casas,
próxima de uma grande lagoa. No interior das casas, máscaras em madeira e
entrançados em algodão, diademas de plumas, mantos de penas, cajados para
danças, enfeitados com dentes de peixe. (idem)

No día seguinte, chegam dois Trurnai. Os Karnaiurá relatam as novas desventuras,

"Os Suyá tinham atacado os Arumá, que parecem morar mais para o interior do que aqueles
(Trumai), tendo travado luta; oito Arumá - número indicado por oito dedos contados um a
um tinham sido feridos no joelho, com flechadas, de modo que eram obrigados a andar
curvados; era esse, talvez, um processo dos Suyá (.. ) de transportarem , com segurança, os
seus prisioneiros." (149) «

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destruída pelos porcos. Dos poucos objetos encontrados, sobressaiam-se pás de virar
beiju, colares de pedras, fusos e adornos de plumas. A aparência das pessoas não era
das melhores. Mulheres e homens com pele escamosa. Mas eram conversadores e
falavam baixo. Tinham um grande pajé, Moritona. O velho cacique cego
Mapukayáka, sentado em frente de von den Steinen, explicou-lhe que tinham sido
muito poderosos, até serem oprimidos pelos Manitsauá. Mas na roda da fortuna,
estes tenninaram subjugados pelos Suyá. O velho se queixava dos Trumai, dizia que
os Suyá eram ricos e possuíam o machado de pedra.( 146)

Os Trumai mais uma vez cruzam o caminho de von den Steinen. Tinham passado
por ali e fugido em seguida Mas permanecem por perto, rondando e assustando um
dos guias Bakairi, que os chamava de animais aquáticos.( 147)

A aldeia Kamaiurá foi a última que os expedicionários visitaram. Esses tupis viviam
em quatro aldeias. A primeira distava 3 horas e um quarto da última aldeia
Yawalapití, andando pelo mato. Em tomo do centro, quatro casas e urna gaiola com 1
urna enorme harpia. Tiveram de esperar. Sentaram-se em bancos: uns em forma de
onça, outros de pássaros, " em nenhum lugar encontramos ornatos tão bem
confeccionados(.. )". Aguardaram pacientemente, até que homens e mulheres
chegassem da plantação. Os discursos foram longos e pausados. Ofereceram-lhe ao
final, bebida, charutos e mangabas em quantidade. Não viram casas de flautas onde
em geral se hospedavam e os Kamaiurá desalojaram uma parte de urna das casas
para abrigá-los. Comiam beiju e formigas voadoras tostadas, saborosas, também
para o gosto alemão. Mais a oeste ficava urna segunda aldeia, com sete casas,
próxima de urna grande lagoa. No interior das casas, máscaras em madeira e
entrançados em algodão, diademas de plumas, mantos de penas, cajados para
danças, enfeitados com dentes de peixe. (idem)

No dia seguinte, chegam dois Trumai. Os Kamaiurá relatam as novas desventuras,

"Os Suyá tinham atacado os Arumá, que parecem morar mais para o interior do que aqueles
(Trumai), tendo travado luta; oito Arumá - número indicado por oito dedos contados um a
um tinham sido feridos no joelho, com flechadas, de modo que eram obrigados a andar
curvados; era esse, talvez, um processo dos Suyá (.. ) de transportarem , com segurança, os
seus prisioneiros." (149) e.

19
O cacique Kamaiurá apoiado em um maça Suyá e outros Kamaiurá descrevem os
misteriosos Arumá , índios que usavam penas de yapú na orelha, a tonsura habitual e
no rosto pintavam, ou tatuavam, um traço que ia dos olhos à boca, e outro da boca à
orelha, além de se adornarem com penas ou ossos. Eles se admiravam do brincos
"itapú" que em tupi quer dizer tinir de pedra ou metal. Os Kamaiurá possuíam
flechas e um pedaço e maça vindos desta tribo, semelhantes às Karajá que obtivera
dos Juruna em 84.( idem:150)

O convívio com os Kamaiurá foi um dos que mais agradaram von den Steinen:
homens simpáticos, paisagem de grande beleza. Eles se reuniam em rodas de
fumantes e ensaiaram partes de rituais para mostrar-lhes um pouco de suas festas.

Um novo incidente com os objetos cobiçados pelos indios atrapalha a calma. Somem
alguns pertences de von den Steinen. A acusação recaiu sobre um Trumai que havia
passado por ali às escondidas, dizem os Kamaiurá.

Com este grupo Steinen discutiu o incidente com os Trumai. E fica sabendo que os
Kamaiurá estavam entre eles naquela data:

"O cacique Takzmi tinha a voz de contrabaixo, narrou, com gestos expressivos, as suas
aventuras de então. Wilhelm está até convencido de que foi justamente ele quem tirou o
chapéu e que, num gesto infeliz, para apoderar-se da espingarda, fez disparar a mesma,
provocando a fuga de todos. Com a pressa da fuga, os índios levaram vários objetos. Uma
canoa, com soldados, persegui-os e, como um Trumai atirasse uma flecha, eles dispararam
vários tiros, na outra margem do rio, apesar de nossas ordens em contrário. Embora os
soldados afirmassem que só tinham atirado para o alto, fo~ infelizmente, morto um índio
naquela ocasião, e, pelas informações obtidas, tratava-se de um Kamaiurá e não um Trumai.
Takuni contou que fugiram até à aldeia dos Nahuquá, no Kuluene; que, em seguida, levaram
três dias para voltar para casa, onde ele chegou doente e completamente exausto." (150-51)

Da aldeia Kamaiurá eles retornam ao porto dos Aweti, enquanto o outro grupo já
havia seguido mais ao norte, para o Koblenz com Vogel, para continuar a pesquisa
geográfica dos rios. Os Kamaiurá vão acompanha-los até a segunda aldeia
Yawalapití, no começo do canal que leva ao porto Aweti. Na passagem pela primeira
aldeia Yawalapití, os índios tentam dissuadi-los de continuar viagem, mas não
conseguem. Então, lhes dizem que os T71f1ai se encontram na aldeia dos Aweti. Von

20
den Steinen prossegue. No caminho, o pajé Yawalapití Moritona, outra vez insinua
que os Trumai andam por perto. Eles continuam o caminho. Em seguida, encontram
um acámpamento com vestígios de fogueira. Finalmente:

"Duas mulheres atravessaram o atalho, começaram uma gritaria tremenda e desapareceram,


na mata, com rapidez de um relâmpago. A seguir ouviram-se muitas vozes gritar
desordenada e agudamente e, entre as árvores, divisamos, de todos os lados, indivíduos que
corriam alvoroçados de um ponto para o outro. Estávamos entre os Trumai."(154)

Estava estabelecido o temido contato com os Trumai que ao longo do percurso


ambas as partes, ao que parece, buscavam evitar. Agora era impossível retroceder e
Karl von den Steinen nada mais pode fazer senão observar e anotar:

"A distância, as mulheres e crianças gritavam ensurdecedoramente; os homens pegaram em


armas e juntaram-se num aglomerado delirante e frenético, sacudindo os arcos, a flechas e
os dardos. Caminhamos passos firmes, um atrás do outro, contra esse grupo desorientado.
Dirigi-me a um homem de pequena estatura, que parecia ser o chefe. Pus-lhe a mão sobre o
ombro e fiz o que em situações semelhantes sempre surte o melhor efeito, isto é: ri. (.. )
Cumprimentou-me, com a maior amabilidade"(idem:idem)

Os Trumai estavam desorientados, mas eram gentis e solícitos, nada do que se diz
podia antecipar vestígio de perigo ou de ataque. Era um grupo de 50 pessoas, que
deve ter chegado em canoas: fugitivas de guerra, medrosas, e cujas aldeias haviam
sido destruídas em combate. Era uma gente pequena e magra, assustada e de
aparência selvagem. "As mulheres usavam o uluri e também uma faixa de cortiça
cinto branca que cingia os quadris em forma de pequeno rolo."(idem:idem) Os
homens vestiam na cintura uma tira de algodão tinta de urucum, para prender a
extremidade do pênis, o que não era comum aos outros grupos do Xingu, e
mantinham os cabelos cumpridos, ao invés do típico corte de cabelo em forma de
cuia, hoje totalmente generalizado entre os Trumai. Como os Suyá, eles
confeccionavam gorros de penas, como aquele perdido entre as águas do Kuluene,
construíam suas aldeias à beira das margens direita do rio do Kuluene. O monopólio
do machado de pedra era uma de suas especi.àlidades. Nas anotações lingüísticas,
von den Steinen sublinha no vocabulário o uso de um número importante de
palavras aruak e tupi para designar as plantas, objetos e letras de músicas,
concluindo em relação a isso que a agricultura era uma prática recente no grupo. A
língua pareceu-lhe, de início, semelhante a dos Suyá, mas, depois, ele vai classificá-
«

21
la como isolada Naquele último encontro, reinava a desordem, o improviso que
indicava, provavelmente, que eles recém chegavam a aquele lugar.

"(.. )Numerosas fogueiras pequenas ardiam ao lado de redes pardas. Feixes de toda espécie
estavam espalhados pelo chão e pendurados elas árvores. Os ranchos de abrigo, dos aweto,
achavam-se vazios. Os índios tinham vindo em parte, pelos canais. Uma pequena flotilha de
canoas, das quais muitas em mau estado e consertadas provisoriamente com barro,
aproximara-se pelas águas pantanosas."(idem: 156)

Ao primeiro sinal de von den Steinen, eles solicitamente afastam galhos, limpam o
chão, trazem dois banquinhos para que esses estrangeiros se sentem. Ali, sentado na
mata, von den Steinen observa o terror e o aspecto selvagem. As coisas pareciam
caminhar para um simples desfecho. Porém, esse último encontro não dissipa
totalmente as antigas impressões, e um novo incidente se agrega à seqüência dos
mal-entendidos. Nesse ambiente, que pode-se sentir o alto nivel de tensão dos
Trumai, ocorre o desaparecimento de um vidro de arsênico, veneno perigosíssimo.
von den Steinen que, diz ele, daria tudo para não se indispor com estes índios, se
preocupa com a fatalidade das conseqüências e exige a devolução do remédio. Novo
alvoroço entre os índios que em parte fogem e desaparecem na mata e não voltam
nunca mais, mesmo depois que um Yawalapití traz para ele as pilulas de arsênico
dizendo ele havia deixado cair de seu bolso no caminho.

Por fim, são trocados os últimos objetos com os Trumai. Von den Steinen observa as
relíquias: ornamentos de penas, colares de contas de pedra, um machado de pedra,
dardos, maças, máscaras, flautas grandes. Aquilo eram seus bens mais valiosos, tudo
que haviam salvado da guerra com os Suyá.( 155)

Momentos conclusivos, o incidente e a pressa da partida levam os expedicionários


de volta aos Aweti. Quanto aos Trumai, quatro deles conduzem von den Steinen ao
porto. Quando interrogados sobre suas aldeias, lhe respondem que suas aldeias estão
longe, muito longe: eles teriam de dormir três vezes antes de alcança-las.

Do lado de baixo do rio, retomava Vogel, o geógrafo da expedição. Depois de


verificar o ponto de encontro entre o rio Kuluene e o Kulisehu, e, em seguida, a
confluência entre o Ronuro, a oeste, e a.rio que vinha do sudeste, que fora indicado

22
como sendo o Kuliselm em cujo ponto de confluência, Xingu-Koblenz, apareceram
os Trumai pela primeira vez. Ali, ele faz o levantamento do que acontecia na aldeia
Trumai situada ao norte:

"Não tinham visto um índio sequer, mas abaixo da embocadura do Kulisehu, no Kulcuene,
encontraram , no barranco do rio, com 5 metros de altura, uma aldeia Trnmai com oito
casas. Um quilômetro a leste dessa aldeia viram uma segunda, com cinco casas, em parte
destruídas recentemente. Os Suyá haviam incendiado todas as casas e quebrado todos os
potes grandes e outros utensílios, que os Trumai tinham abandonado. Nas imediações das
aldeias, grandes plantações, muito bem cuidadas. Foram notadas cerca de dez sepulturas
novas. A julgar pela forma circular das covas, os cadáveres tinham sido enterrados em
'1 j
posição sentada e pareciam bem mais profundos, pois que, pelo menos, não podiam ser
postos a descoberto por meío de uma escavação superficial."( 15 7)

A descrição de VogeL dá a dimensão do conflito. A localização geográfica dos


Trumai naquele momento conturbado se restringia ao acampamento, "no final do
Tsahuku onde uma rede de pequenos rios e lagoas se estende paralelo ao rio
Kuliseu" e, a ·aquela aldeia abandonada, cujo cenário de destruição completa o
cenário de um grupo tendo suas aldeias lirrasadas e, pelo menos, 1O mortos recentes
para enterrar. Pelas conseqüências dessa guerra, é possível supor que o Alto Xingu
vivesse aquele momento mobilizado por esse fato. Afinal, embora os Trumai
tivessem características "selvagens", eram os Suyá os intrusos.

Homem Trumai Homem Suyá

23
No final do século XIX, a situação de guerra marca a primeira visão apreendida dos
Trumai. Com base naquele primeiro e último encontro, von den Steinen define um
perfil que a grosso modo irá representa-los com um olhar diferenciado pelo conflito,
o aspecto selvagem, a ansiedade e as observações Bakairi. O que vai sendo
registrado transmite a sensação mista de subordinação e fragilidade. No entanto, os
desenhos de Wilhelm não registram os traços dos caracteres "selvagens" Trumai (
maneira de prenderem o pênis, cabelos longos etc.)o que é compreensível, pois nem
sempre as ilustrações correspondiam à realidade, mas inviabiliza visualizar as
características fisicas que os faziam tão diferentes, ao passo que a ilustração Suyá
mostre as particularidades deste grupo. Por outro lado, os objetos artesanais
coletados dos Trumai tinham as mesmas características da arte xinguana, sendo
notado serem mesmo, por vezes, até mais elaborados. Ora, se a noção de povo
selvagem e categoria à parte, remete- nos à origem e recém - migração dos Trumai
ao Xingu, a habilidade de sua arte e suas características similares nos aproximam do
contexto da uniformidade cultural da área. São esses dois polos contraditórios que
circundam o povo Trumai.

24
1.2. Buel Quain E Os Trumai Da Aldeia Anariá

Dez anos depois da expedição von den Steinen, a expedição de Hermann Meyer (1896),
não aponta em seu mapa a aldeia Trumai assinalada por Vogel, mas ela reaparece em
1901 no mapa de Max Schmidt. Em 1932, Vicente Petrullo se encontra com os Trumai
provavelmente na aldeia do sul, a oeste do Kuliseu, entre as aldeias Nahukuá e
Mehinaku. Um pouco mais tarde, em 1937, o missionário Moenich sobe o Kulisehu mas
não nota nenhuma aldeia Trumai na localidade. Novas notícias sobre os Trumai vão
surgir quando Buell Quain em 1938 5 faz a sua pesquisa entre eles. Naquela época eles
se agrupavam em uma única aldeia, situada no rio Xingu, próximo ao local em que os
tnlmtários deste rio despejam suas água formando um único fluxo e onde von den
Steinen encontrou-os em 1884, não muito distante do Morená, conhecido lugar de
referência dos mitos Kamaiurá.

Quain chega à aldeia Anariá, levado pelos Aweti. 6 Ele trazia duas canoas, depois que
saindo de Cuiabá alcançou o Posto Simões Álvares no Paratininga, terra dos Bakairi,
atravessou o vasto planalto mato-grossense por seis dias, e de canoa chegou a uma
missão norte-americana então instalada na região, seguindo até a aldeia dos Kamaiurá e
de lá indo buscar onde moravam os Trumai. Eram raros os estudos etnológicos
desenvolvidos no Xingu. O contato com o grupo se limitava a esporádicos encontros
com alguns indivíduos e eles pareciam determinados a fugir de relações mais próximas
com os brancos. Provavelmente, e isso é apenas uma suposição, o contato com von den
Steinen, ou mesmo outros anteriores, noutras regiões, repercutiam em suas memórias e
os afastavam de um convívio prolongado.

A aldeia Anariá situada ao norte, ficava próxima a uma lagoa, não muito distante do
Kuluene, numa região de pequenos lagos guarnecidos de pântanos. Quain descreve a
aldeia com quatro casas e uma em construção, situada a meia milha de uma lagoa, na

5
- Buell Quain é o primeiro etnólogo a viver entre os Trumai e a dedicar-lhes um estudo. Nos quatro
meses de experiência que teve na aldeia Trumai, ele escreveu inúmeras anotações e um diário. Porém, sua
pesquisa é interrompida quando no Rio de Janeiro lhe negam a permissão para retornar ao Xingu. Depois
uma estadia entre os Krahó, ele se suicida em 1939. Seu trabalho é ordenado por sua mãe e
posterionnente redigido por Robert Murphy na forma da monografia The Trumai Indians of Central
Brazil. New York, J.J. Augustin Publisher Lovust Valley, 1955.
e.

25
mesma forma tradicional, embora algumas fossem de menor porte. Duas áreas de
plantações, a noroeste e nordeste eram divididas em plantações individuais e recebiam
nomes de aldeias ancestrais: Nariatan, Waniwanitan, Anariatan, Tan Toreake e
Tandatake.(1955:21) Plantavam mandioca, milho, feijão de duas qualidades, batata,
cana de açucar, banana, mangaba, tabaco, algodão, urucum, batata doce. As principais
atividades femininas, além do preparo da comida e mandioca, eram o cuidado com as
crianças, a colheita e o transporte de víveres para a aldeia. Homens e mulheres viviam
principalmente da pesca e cultivo da mandioca. Conheciam uma grande variedade de
peixes e técnicas pesqueiras que incluíam a linha, o arco e flecha, veneno, armadilhas,
rede, barragem. No dia a dia, a pesca era ou individual ou em dupla, sendo as lagoas
parte do território do grupo e muito piscosas. Quanto a pesca coletiva, a atividade
levava dois ou três dias de canoa, com pescarias de grande quantidade de peixes que
com grande regozijo eram partilhados e festejados pela aldeia. A metade dos Trumai
possuía canoas, construídas por quase todos os homens, com uma ou outra exceção. Na
culinária tinham preferência pelos ovos de tracajá, frutos de piqu~ formiga, grilos,
frutos. Caçavam anta, queixada, veado, macaco, onça, cotia, paca e uma ampla gama de
roedores. Comiam apenas a paca e o macaco, mas evitavam comer a caça da capivara
que, segundo Quain, chamavam tsimo, nome também atribuído a urna raiz venenosa
que utilizam na pesca. Nessa aldeia Trumai não existia casa de flautas, embora eles
mantivessem uma águia presa numa gaiola cônica que o mesmo pesquisador adianta,
fornecia-lhes as penas que usavam em rituais. Como costume, em tomo da praça da
aldeia girava a vida social masculina, as cerimônias e os jogos intertribais.

Embora Quain presumisse que o último ataque dos Suyá aos Trumai tivesse acontecido
vinte anos antes de sua chegada, quando o irmão de um cacique Trumai foi assassinado,
eram constantes as manifestações de pãnico de conflito com os Suyá, cujas aldeias
localizadas às margens do rio Suyá Missú .não muito distante da aldeia Anari. 7 Os
Trumai viviam também aterrorizados por outros vizinhos, principalmente aqueles do
norte, além dos Suyá, Junma, Kaiabí e Kayapó, grupos cuja origem selvagem eles

6
- informação de Arnatiwanã.
- - Segundo Quain, a animosidade com os Suyá transpunha os limites do enfrentamento entre os dois
grupos, sendo praticamente unânime entre os xinguanos, fato que ocasionou um ataque comum de
Trumaí, Kamaiurá, Mehinaku e Waurá, que .-im "vinte canoas invadiram e queimaram a aldeia Suyá_
começando um novo ciclo de ataques e contra ataques." ( Buell Quain/ Robert Murphy, 1955, p. 11)

26
reconheciam como os descendentes de "cobra." Conflitos com os Yudja (Juruna) são
i'.
pouco comentados, mas no Anariá, existiam dois Trumai, Aloari e seu irmão Tun, que
haviam sido prisioneiros desta tribo. Com os Kamaiurá, a relação era nitidamente
';.
'i ambivalente, alternando momentos que Trumai e Kamaiurá parecem aliados
incontestáveis e, outros, quando a rivalidade se manifestava abertamente com ataques
ou simulações de ataques, pilhagem, ou por meio de ameaças veladas de feitiçaria e
roubo de mulheres, práticas comuns entre os grupos que mantinham laços de
solidariedade. Sendo os Kamaiurá um grupo abertamente mais articulado politicamente
e de grande influência no Alto Xingu, é por vezes difícil dizer o que é parte de uma
apreensão mitificada ou representada, e no que a ameaça dos Kamaiurá abalava a
própria estrutura social Trumai. AB mesmas acusações de perversidades imputadas aos
Trumai pelos Bakairi, eram repetidas pelos Trumai para os Kamaiurá. 8 Fantasia ou
realidade, Quain registra na simples presença dos Kamaiurá, a inquietação dos Trumai,
fato visível quando esses visitavam a aldeia. A união de opostos entre os dois grupos já
aparecia pontuada naquele encontro do Kulisehu - Koblenz em alguns detalhes: uns
cobertos da pintura vermelha, os outros da pintura preta; uns querendo a aproximação,
outros contrários. A morte de um índio Trumai ou a de um Kamaiurá? O que aparece
claramente é a inabalável segurança dos Kamaiurá e a .insegurança dos Trumai.
Entretanto, a percepção da diferença ostensiva no comportamentos de ambos, parece
advir de modelos de personalidades genéricas e arquetípicas que, como veremos
'
adiante, têm fundamento inclusive na mitologia. De toda maneira, relações preferenciais
entre mulheres Trumai e homens Kamaiurá e vice versa são comuns e uma das causas
dos atritos e aproximações entre os dois grupos. A mulher Kamaiurá e as outras
mulheres de outros grupos que viviam entre os Trumai, as vezes eram alvo de ·
reprimendas que aludiam à origem, 9sem que, no entanto, houvesse discriminação no
cotidiano da aldeia. Quain descreve as relações de animosidade como parte de um teatro
complementar em que, ao mesmo tempo que. são vítimas, os Trumai alimentavam com
revides a seqüência de um jogo de perpétuas hostilidades. Poderia se supor que algum
tipo de prestígio fosse conquistado nesses conflitos, embora o mesmo Quain salientasse

8
- "One of them spoke at length in the men "s e ire/e on how the Kamayurá lorlured their captives by
piercing theirs arms and legs wilh arrow points(.) Buell Quain/Robert Murphy, 1955, p. 12
9
- "There were threeforeign women in the community in 1938: a Suyá, a Mehinaku, anda Kamayurá.
Their status was lower than that of the Trumf111.women, and they were ai limes launted because of their
foreign origin. "BuellQuain/Robert Murphy, 1955, p. 13

27
BibF~ti;ca
Nadir G:. 1\1 Kfouti
PUC/S?
que nenhum prestígio social derivava da guerra.(idem: 15) Quando se referiam aos
conflitos, as narrativas mostravam os fatos como provas de crueldade contra os Trumai
e não como glórias de suas vitórias. Desse modo, o leque de adversidades e conflitos,
incluindo catividade de homens e mulheres em outros grupos, como foi o caso de Aloari
e Tun entre os Juruna, não tinham por resultado o acréscimo de status na hierarquia
local.

Quain apontou o declínio da população e a tendência para a desintegração dos Trumai


antes de 1938. A densidade demográfica na região do Xingu nunca foi alta, e o sistema
de grupos e cooperação estimula a estabilidade de grupos pequenos. Porém, a queda de
metade da população tomava-se preocupante. As duas aldeias registradas pela
expedição Karl von den Steinen somavam um total de 68 homens e trinta e uma
mulheres. Aproximadamente cinqüenta anos depois, eles eram ao todo 43 pessoas, 17
homens, 16 mulheres e 1O pré adolescentes e entre estes, oito meninos e duas meninas
apenas. O pequeno número de meninas somado ao elevado índice de mulheres mais
velhas, os constantes raptos e a importante taxa de mortalidade infantil comprometia o
crescimento populacional. Por outro lado, o pesquisador supôs que as práticas de
controle da natalidade (interrupção da gravidez e infanticídio) deviam incidir mais sobre
as meninas que sobre os meninos. A taxa de doenças pulmonares devastara várias tribos
e entre os Trumai a depopulação foi sem precedentes. Isso provavelmente repercutiu na
maneira deles partilharem da vida social e cerimonial do Xingu e, determinados
momentos, pode ter-lhes faltado pessoas para as competições rituais, meninos e meninas
em idade de iniciarem-se na vida social, ou mulheres para a realização de casamentos
com outros grupos, o que pode também ter influenciado na fluidez, notada por Quain,
das relações dos Trumai com os rituais. O desdobramento da fragilidade numérica,
somada às ameaças mútuas de feitiçaria, podem ter sido uma das razões da aproximação
ou o afastamento de grupos mais fortes como os Kamaiurá.

Antigas Aldeias, Aldeias Novas: Um Mesmo Território

Quain contava que Matiwanã, avô matemo de Amati, se lembrava ainda dessas terras ao
sudeste, onde existia a aldeia Trumai ~ de quando no contato com as outras tribos do

28
Xingu eles mudaram o corte de cabelo, as formas de prender a genitália e a vestimenta
feminina, atestando uma memória recente da mudança.

Os conflitos com outros grupos, a diminuição da população e a ocupação do território


aparecem nos relatos como causas de um processo de desestruturação dos Trumai
Porém, a eles podemos contrapor a organização sociológica e ecológica do espaço e as
relações com a mitologia como formas que, ao inverso, articulam uma estruturação. As
pesquisas até então registravam a constante organização de uma ou duas aldeias
Trumai: uma ao norte e outra ao sul. Guiando-se pelos nomes das aldeias, Quain
procurou as localizações para estabelecer a projeção e a cronologia da ocupação do
espaço, mas logo ele entendeu que, constantemente, eles retomavam para as aldeias
recém inauguradas os nomes das antigas, o que dificultava encontrar as "exatas
localidades das aldeias abandonadas e seus períodos de ocupação (.. )"10 Mantinha-se a
organização em uma ou duas aldeias e aquilo que parecia indício de uma expansão, e
desdobramento das aldeias, simplesmente constituia a reprodução de modelos
anteriores. E isso foi interpretado como parte da vertiginosa desorganização social, o
que parece corresponder, apenas em parte, ao processo que envolve a definição de um
espaço vital. Consideradas as casas de seus ancestrais as antigas aldeias Anariá,
Waniwani, Yacaré, Morená, Karajaja, Kranhãnhã, Jawpew, Wahldat, mesmo quando
abandonadas como espaços de convivência cotidiana eram mantidas como território
Trumai. A mobilidade no espaço que refere às brigas com os Suyá e outros conflitos
resultou, no primeiro caso, da disputa de territórios onde existiam as pedras para a
fabricação dos machados de pedra, ou o urucum, que estavam no domínio Trumai. Nos
outros conflitos, corno assinalado acima, há diversos futores que englobam a feitiçaria, .
mulheres, necessidade de alianças com grupos que eles estabeleciam relações
preferenciais: Kamaiurá, Yu!.fja (Juruna) Ikpeng. Mas, se os conflitos forjam a urgência
nos deslocamentos, a movimentação também sustenta razões de ordem econômica,
conforto ou desconforto propiciado pelo ecossistema, como a quantidade de mosquitos,
as atividades sazonais e, provavelmente, necessidade de liberdade e autonomia do
grupo. Desse modo, os laços com o espaço geográfico fazem parte de uma organização
que trás em seu bojo a concepção de território onde se incluem antigas aldeias, lagos ou

29
lagoas nas quais tradicionalmente eles pescam, florestas, moradias ancestrais, novas
ocupações. Os lugares em que eles pescam, colhem frutos, caçam, lhes pertencem por
direito adquirido desde muito tempo e que é reconhecido pelos outros grupos que em
conjunto se orientam pelo conhecimento da longa existência comum.
Consequentemente os ecossistemas de atividades temporárias, os centros políticos e as
aldeias míticas formavam um mesmo território unificado por parâmetros que se
prendem à tradição. As velhas aldeias eram tornadas constantemente como referência e
nomeavam até mesmo as suas plantações, permanecendo incorporadas ao sistema do
,,,, · grupo. Os Trumai que hoje residem na aldeia Adat tan, seguem tendo plantações na
aldeia do Pato Magro onde residiram na década de 80. A ocupação do espaço, fora do
espaço propriamente cotidiano, é flexível e expandida. Os territórios enquanto
referência de auto reconhecimento estão ligados à origem e à história do grupo. Desse
modo, os deslocamentos que tiveram como causas fatores desfavoráveis estão, no
entanto, também vinculados a uma organização espacial. Isso propõe entender a
mo bitidade como parte de mecanismos alinhados por um princípio de ordem, sendo o
mais importante, o que une o território e a maneira de relacionar-se com ele e a uma
tradição atuante. Fazendo parte da dispersão, as guerras tomam o sentido dado por
,j!..

Pierre Clastres de mecanismo que mantém a autonomia do grupo, impede a unificação


dele com os outros grupos, mas incentiva a interdependência política entre as
comunidades.(1982:203)

Se esse sistema se organiza desta maneira, as práticas mágicas são para ele de grande
importância. Porém, Buell Quain considerou que os Trurnai eram despojados de crenças
sobrenaturais, embora verificasse o grande número de pajés e de um feiticeiro (Oirupa) ·
na aldeia. Robert Murphy faz um comentário, considerando como provavelmente
equivocadas essas considerações de Quain:

"(.. ) As crenças, que constituem a parte mais encoberta da cultura, são particularmente dificeis
para o etnógrafo ao qual falta familiaridade com a língua e é compreensível que as notas de
Quain sejam quanto a esse aspecto deficientes." 11

IO - "Unfortunately, the exact locations of the abandoned sites and their periods of occupation are not
well known."( 1955, p.9)
11
-"Beliefs, which are a more covert pari of culture, are particulary difficult for na athnographer who
lacks familtartty with lhe language to /earn ahfrlit, and it is understandable that Quain 's notes are waek
on this point"(Buell Quain/Robert Murphy 1955, p. 72)

30
Apesar da opinião desfavorável, Quain presenciou, participou e anotou urna série de
práticas de pajelança, rituais e mitos. A atividade dos pajés era muito atuante. A arte da
cura, praticada por todos os adultos homens da aldeia, tinha as mesmas características
descritas por Oberg para os Kamaiurá.( KO:I953:60;apud:l955:62) Porém, dado
singular, os poderes dos pajés entre os Trumai não se limitavam à cura. Eles eram
dotados de extra-visão, adquirida com o treinamento que consistia em engolir uma
quantidade grande de tabaco durante o dia. Isso conferia ao pajé o poder de detectar o
inimigo, além de curar doentes e ver o mundo depois da morte. O pronunciamento do
pajé freqüentemente versava sobre a proximidade e o perigo dos ataques de outros
grupos. 12 O procedimento era simples: quando o círculo masculino levantava a
possibilidade de um ataque à aldeia, o pajé era chamado a "enxergar'. Ele consumia o
tabaco e com seus objetos se concentrava profundamente e, em seguida, pronunciava o
diagnóstico.(63) A crença em suas palavras era incontestável. Enxergar era atributo que
se desenvolvia com a idade, os mais velhos eram os grandes visionários. O acesso a
esses atributos era possivelmente hereditário, já que o filho de um pajé era tido como
alguém que futuramente iria enxergar. As mulheres eram excluídas das práticas
xamânicas e, inclusive, vetada sua participação nas seções de cura(idem: 64) Naquela
época haviam três pajés na aldeia Anariá: Matiwanã, Yakuma e Tun e um feiticeiro
confesso, cunhado de Aloari. Dizia-se que aprendera a feitiçaria entre os Nahukuá que,
com os grupos caribe, eram temidos pela magia negra. Oirupa era o homem mais
odiado da aldeia, mas nada se fazia contra ele.

O feitiço aparecia como a primeira causa da doença. Depois vinha a quebra de tabus ou
a contaminação. Dor de cabeça, estômago, inchaço eram sintomas de enfeitiçamento. A
doença causada por infeção, em caso morte, passava a ser atribuída à feitiçaria. Os
Trumai sabiam que os brancos transmitiam-lhes· as doenças pulmonares e ficaram
especialmente apreensivos com a possibilidade de Quain passar sua tosse e febre
quando começou a chover. Eles chamavam de tun, uma influência maligna que existia
entre povos doentes ou lugares com perigo de contaminação, o mesmo nome que

12
- Coisa semelhante acontecia com os xamã<ilPs povos Mataco e Toba do Grande Chaco. Alfred
Métraux, Réligions et Magies andiennes de L' Amerique du Sud, Paris, Ed. Gallimard, 1967, p. 115

31
Amatiwanã designa os "Aweti e os bichos do pé". 13 A palavra okei referia-se a
feitiçaria, sob certas condições, sendo também o termo genérico para os medicamentos
ou conhecimentos medicinais. Vários tipos de okei (remédios) eram usados nos
diferentes estágios da vida ritual e em várias indisposições: raízes, marukuyu(
maracujá), para pingar nos olhos. Os Trumai eram sujeitos a muitos tipos de ferida ou
doença de pele cujo tratamento cabia às mulheres, que se encarregavam de curá-las com
técnicas de perfuração. As outras curas eram prerrogativas masculinas. Todos os
homens sabiam usar as ervas e metade deles tinham sido iniciados por Matiwanã. Só
podia tratar de um doente quem fosse seu parente próximo e, dependendo dos laços de
parentesco, os serviços eram ou não pagos. A doença era tratada em seções individuais
ou em cerimoniais de grupo, a prática do pajé consistindo na técnica de fumar tabaco e
soltar a fumaça na direção da parte em que se situava o mal e, com ruídos de respiração
forte, sugar a parte onde se localizava o mal, sem que nenhum objeto fosse extraído.(
66) Quain assistiu à cerimônia de cura da mulher do cacique Maibu. Depois de esforços
infrutíferos do marido, reuniram-se em sua casa quase todos os homens da aldeia, sendo
Matiwanã o principal responsável pela cura. Ele permaneceu num banquinho distante
do centro entoando cantos enquanto os outros homens dançavam e sacudiam os
chocalhos. Cada um deles tinha o chocalho numa mão e na outra um galho com folhas e
se aproximavam da rede da doente com os braços estendidos, batendo com o calcanhar
no chão e sacudindo o chocalho e as folhas, dando passos para frente e para trás em
direção da doente. Depois, Matiwanã passou o chocalho e as folhas da cabeça aos pés
da doente e bateu palmas sugerindo que estava retirando o mal indesejado. Matiwanã
era o maior conhecedor dos rituais e tinha forte ligação com a iniciação:

"Todos os não iniciados jovens Trumai sabiam fumar e ocasionalmente o faziam. Mas, para os
adultos isso era um "falso fumar", "lying smoking". Como norma para o verdadeiro fumar, era
necessário que a cerimônia fosse desempenhada por Matiwanã." 14

Um dos traços da personalidade Trumai reflete a disputa que parece existir pela
legitimidade do cacique e as diferenças que alegam entre eles. Na época de Quain, o aek

13
- informação de pesquisa
14
- Ali of the uninitiated Trumai yonths knew how to smoke and occasionally did so, but lhe adults
referred to this as "lying smoking". ln order<i(/{l "really"smoke it was necessary to have a ceremony
permormed by Matiwana. (Quain& Murphy, 1955, p. 86)

32
Maibu tinha como subchefes Katauaká e Matiwanã, cujas atributos Quain atribuiu a
simples função de substituir Maibu no cargo quando este viajava para fora da aldeia.
Porém, seu próprio trabalho mostra que tanto Matiwanã quanto Katauaká exerciam
consistentes funções mágico religiosas. As rivalidades entretanto opunham, na sua
opinião, Maibu , o cacique trurnai, e a casa de Aloari.

De acordo com Robert Murphy, Maibu era filho da irmã do chefe que von den Steinen
conheceu, o que revelava uma descendência matrilinear e fluidez na hereditariedade
patrilinear, caso o chefe não tivesse um descendente homem. Sua principal prerrogativa
como aek, termo que designava o cacique, era a palavra. Através dela ele exaltava as
responsabilidades coletivas e também o sentido dos interesses particulares. Maibu era
mais respeitado pelos de sua casa do que pelo resto da aldeia, não tinha poder de mando
sobre sua mulher, principalmente para obrigá-la a fazer alguma coisa, ou sobre os outros
homens. Para os homens da casa de Aloari, ele não era um "verdadeiro aek:'. As duas
personalidades se opunham e quando solicitados por Maibu, Aloari e Tun, se negaram a
construir a casa de Quain e a terminar uma casa para a estação das chuvas, insistindo na
mudança da aldeia, para outro lugar com menos mosquitos.(idem:57) O grupo de Aloari
se mantinha distante dos projetos comuns à aldeia e das disputas esportivas. Pelo menos
''
' urna vez, Quain presenciou manifestações que para ele traduziam rivalidades entre
Maibu e Aloari. Embora eles não chegassem ao enfrentamento aberto, procuravam, um
e outro, derrubar o adversário, o que, nesse caso, podia muito bem significar o
treinamento de lutas cerimoniais.

Para Quain, faltava autoridade a Maibu. Ao contrário dos caciques Kamaiurá, ,


caracterizava o aek Trumai sua negação ao trabalho de plantio, se bem que ele
cumprisse as demais obrigações masculinas. O cacique Trumai, diziam, não plantava
porque era o chefe, mas também não era um inativo: pescava, participava de atividades
coletivas e ajudava a mulher na coleta, além de fabricar flechas e lanças. Mas, o negar-
se ao plantio, o que significa? Ao que relacionar? Modelos de identificação dos chefes
com entidades mitológicas? Mera suposição sem provas.

33
Os comentários de Quain sobre a frágil autoridade de Maibu, embora provavelmente
não fosse sua intenção, estão desgastados por preconceitos. O enfoque que ele usou para
medir a autoridade ou o prestígio do chefe, alia à palavra o binômio ordem e obediência,
que Pierre Clastres nos diz ser, com muita sabedoria, a marca primordial do poder,
irredutível e irreversível, que separou-se do conjunto da sociedade e se exerce sobre
muitos,( 1978:107) realidade que evidentemente não se aplica a Maibu e à sua
sociedade sem experiência com o Estado. Ao inverso, se analisadas as descrições das
palavras desse aek Trumai com o modelo descrito por Clastres para as sociedades
primitivas, a fala de Maibu mostra a sua coerência. O etnólogo chama-nos a atenção
para a palavra, corno importante atributo do chefe: ele é aquele que detém a fala como
Maibu que usava a palavra, para exortar a comunídade. Falava à noite, no círculo dos
homens e, pelas manhãs, antes de começarem os trabalhos, ocasiões que a audiência
espantou Quain com a sua desatenção:

(.. )a atitude de sua audiência ia do interesse à indiferença aborrecida até a ridicularização." 15

Ora, Clastres outra vez explica muito bem que se entre nós a palavra "é direito do
poder", nas sociedades sem Estado, ao contrário, a palavra do poder, é dever. Um dever
do chefe, que repetidamente deve provar à sociedade, que sua palavra não é poder:

"o dever de palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia que ele deve à tribo,
é a sua dívida infinita, a garantia que proíbe que o homem de palavra se tome homem de
poder." (idem:l09)

É isso que constitui uma palavra ritualizada que prescinde de escuta, e guarnece sua
força de atenção, no inconsciente da escuta

"(... ) nenhum recolhimento, com efeito, quando fala o chefe; não há silêncio, cada qual
tranqüilamente continua, como se nada houvesse, .a tratar de suas ocupações. A palavra do chefe
não é dita para ser escutada."(idem: 108)

Ao lado dessa palavra vazia, que é dita para ser escutada enquanto hegemonia social, há
também outros níveis de palavras que aproximam do chefe o poder moderador que

34
administra os conflitos mais proeminentes da comunidade sem fazer uso de violência e
"autoridade." Carmen Junqueira caracteriza o comportamento do chefe Kamaiurá como
aquele que não dá ordem, mas serve de modelo para aquilo que deve ser feito. Da
mesma forma que sua generosidade e pobreza se explicam como traços de incessante
despojamento dos bens, o que alimenta a dependência dos mais fracos e aumenta o
poder de adesão à chefia. (2000: 1O)

Um comportamento semelhante seguiam os Trumai: autoridade sem mando,


despojamento de bens, oratória como contrapartida da violência que, com outras formas,
se exercia no profano e sagrado. No primeiro caso, em seções públicas de insultos e
dramatizações de conflitos, semelhantes às práticas terapêuticas ou escatológicas, onde
cada um desabafava ódios e raivas de desafetos, num jogo incentivado por Maibu. Em
outro segmento, nos cânticos dos pajés em rituais e cerimonias de cura, que tinham na
figura de Matiwanã a autoridade maior, tem-se a autoridade da palavra incarnando na
esfera explicita do sagrado, a chave da comunicação com o sobrenatural.

Lado a lado com a fala, o despojamento da autoridade e dos bens, a representação dos
conflitos, as entidades mitológicas que ordenam plantações, aldeias, o mundo; a forte
presença das práticas magico - religiosas dos pajés mostram o grau de importância
desses mediadores espirituais para o relacionamento entre os espíritos vivos e entre
esses e os que já morreram. Mais do que isso, o atributo de "enxergar" e diagnosticar
diferentes graus do constrangimento da vida social, que vão desde a doença e a receita
devida, aos feitiços e a ameaça à comunidade de um ataque inimigo, mostram o grau de
mobilização das forças esotéricas ressaltam a importância do pajé nas instâncias mais
importantes da vida comunitária, e a força oracular que ele tem na sua aldeia. Desse
modo, ao contrário do que propôs Quain, nós poderíamos supor que a atividade ritual
entre os Trurnai, sem mostrar exuberância nos detalhes, tinha grande apelo para o
convívio social. As atividades mais mobilizadoras mostram a importância das práticas
mágicas: pajelanças, rituais, atividades de pesca coletiva, entre outras, levavam a
comunidade a estreitar sua coesão interna e demonstram a forte dependência entre a

15
- "The attitude of his audience rangedfrom interest to bored indijference and outright ridicule "'. {Buell
Quain & Robert Murphy, 1955, p. 56) «

35
comunidade e· o pajé, que intervinha também nos momentos de conturbações tribais
internas ou externas, mobilizando a esfera mágico -religiosa. Os rituais mais freqüentes
na aldeia Anariá relacionavam espíritos malignos, muito temidos, que eram cultuados
para que, sob a liderança de um pajé, se mantivessem afastados. Podemos suspeitar que
esses rituais também tivessem laços de relação com os conflitos intertribais, tanto nos
conflitos abertos, a guerra, quanto nos conflitos simulados e diferentes níveis de
agressões e feitiçaria.

Por outro lado, nesse sistema fechado, as múltiplas atitudes integram um mesmo fim.
As manifestações de humores não são um detalhe à parte. Elas pertencem ao código que
entrelaça os aspectos da vida social a um pronunciado sistema de ritualizações.
Tornando este viés para as demonstrações de pânico, repetidas incessantemente pelas
mulheres. Embora refletissem a memória de fatos passados, evocando entes perdidos,
essas manifestações acionam sistemas de alarme de um povo aturdido por conflitos, não
apenas como sintomas de dores mas, possivelmente, como categorias de ritualização
que evocavam, no presente, a interferência do aparato sobrenatural Dores, perdas,
fluxos de sentírnentos e memória dos conflitos, externados na forma de performances no
campo profano, dão sustentação à autoridade religiosa que ordena o social na esfera
esotérica. Desse modo, as lamentações femininas tomam a forma de um coro com papel
complementar àquele do círculo dos homens: de chamamento da ação do pajé para abrir
as portas do mundo da magia e vislumbrar as suas soluções.

Quain foi extremamente pessírnista em relação aos Trumai. Em carta a Ruth Benedict ,
ele diagnosticou contradições internas "uma cultura em extinção" prestes a ser
assimilada pelos Kamaiurá. Não é írnpossível que tenha ocorrido uma ascensão desses
índios sobre os Trumai, embora seja mais plausível, pensando em termos de
conformidade, auscultar os ecos de empréstírnos em duplo sentido. É possível também
que com sua morte prematura, a retomada de sua pesquisa para a publicação em um
momento crítico da vida dos Trumai, cujo número em 1946 estava reduzido a 24
pessoas, sem que houvesse um novo trabalho de campo com a profundidade do seu, já
que Charles Wagley esteve superficialmente entre eles em 1953 e Robert Murphy, co-
autor do livro de Quain, serviu-se p1if.1cipalmente de informações dele e Eduardo

36
Galvão que convivia com os Trumai através dos Kamaiurá para complementar os
dados; somando-se o fato desta segunda etapa da pesquisa coincidir com a enorme
mudança que operou-se entre os xinguanos com a chegada da Fundação Brasil Central
na região, é possível que tenha-se fortalecido o estereótipo de comportamento que por
obra do destino marca a identidade Trumai aos nossos olhos, pelas suas características
negativas e de deteriorização. Mas não é meu propósito assinalar a este quadro
acréscimos signíficativos além destas interrogações que espero, sejam consideradas por
pesquisadores que dediquem trabalhos futuros aos Trumai. 16Malgrado tudo isso, o
trabalho de Buell Quain tem o grande mérito de ter registrado uma gama considerável
de manifestações da vida dos Trumai. Ele constitu~ nesse sentido, um parceiro para
qualquer que seja a observação que se queira fazer sobre eles.

Quinze anos depois das observações de Quain na aldeia Anariá, Eduardo Galvão relata
que Aloari se tornara chefe dos Trumai. E sobre isso, o comentário de Robert Murphy é
no mínimo pertinente:

"O que aconteceu entre 1938 e 1947 não é sabido mas, aparentemente, Aloari tomou o posto de
chefe pela sua personalidade e não por meio de uma sucessão regular."(idem:56-57)

Mas se Aloari em 1947 dominava todo o grupo, já em 1950 os Trumai vivendo no


Jacaré tinham como chefes Aloari e Nituari, sendo que Nituari já mostrava sua
ascendência, pelos atributos do trabalho e poder de liderança, possuindo mais
"camarás" .(Galvão: 1996:263)

16
- Duas pesquisas na área da lingüística vêm sendo realizadas nessas últimas décadas. O trabalho de
Aurore Monod Becquelin desde a década de 60, com interrupções; e, de Raquel Guirardello, desde os
anos 80. Porém, pelo conhecimento que tenho desses trabalhos, eles estão mais voltados para os dados
lingüísticos do que para os dados sociológic<llC. embora sejam importantes contribuições, principalmente
no primeiro caso, para o registro dos mitos Trumai e, no segundo, para a área educacional .

37
1.3. A Chegada Dos Irmãos Villas Boas No Xingu E A Criação Do
Parque Nacional Do Xingu

Quando os irmãos Villas Boas chegam ao Alto Xingu, tinham se passado oito anos
da partida de Quain. O Xingu tinha se mantido em condições semelhantes àquelas
encontradas por Karl von den Steinen, embora, salientasse um pouco mais tarde
Eduardo Galvão, no seu relativo isolamento, os índios tivessem mantido contato
com a ação de elementos da cultura brasileira que se infiltra entre eles através das
tribos que viviam no extremo sul da área, principalmente os Bakairi.(1996:251) Os
Trumai, nessa época, ainda moravam no Anariá, Waniwani, mas fazem freqüentes
incursões aos territórios Kranhãnhã e Jacaré, duas de suas antigas aldeias. A
importância da gerência dos Villas Boas para a história da região e dos índios do
Xingu e a formação do Parque são de grande complexidade. Nesse item proponho
um breve histórico de acontecimentos pontuais dessa longa trajetória. 17

Por volta de 1940, o esforço de integrar as regiões do oeste e a Amazônia ao resto


do Brasil levou o governo brasileiro ao empreendimento da expedição Roncador-
Xingu, com o projeto de desbravamento e colonização da mesopotâmia entre os rios
Tapajós e Xingu. A responsabilidade do projeto foi entregue ao ministro de Getúlio
Vargas, João Alberto Lins de Barros, que para dar base ao projeto cria a Fundação
Brasil Central, à qual se integram os irmãos Leonardo, Cláudio e Orlando Villas
Boas. Do mesmo modo que a implantação dos telégrafos por Rondon, a expedição
teve conseqüências importantíssimas para a ocupação do centro oeste e norte do
território brasileiro e possibilitou que anos mais tarde se implantasse Brasília.

Em 1945 a Expedição Roncador chega ao rio das Mortes e entra em contato com os
índios Xavante. As primeiras impressões são registradas pelos Villas Boas:

"Foi o verdadeiro início da expedição. Entramos então na zona dominada pelos Xavante, a 6
quilômetros da margem do rio. Encontramos um acampamento de caça. Os Xavante
costumavam fazer acampamentos de caça nas várzeas para surpreender melhor os animais.

17 - Sobre o assunto, cabe ressaltar os livros dos próprios Villas Boas, os Diários de Eduardo Galvão e
Berta Ribeiro, os livros de Maureen Bisilliat C. Maria Lucia Pires Menezes- este último, com vasta
indicação bibliográfica sobre os tramites institucionais da evolução histórica da criação do Parque.

38
Suas aldeias eram extensas. Uma delas ficava em torno de uma lagoa: 22 casas em forma de
cone, muito bonitas, numa área seca e alta. Os Xavante não tem mais essas terras: ali é hoje
uma fazenda." 18

Mas o primeiro contato com os mdios do Xingu veio um pouco depois (1946). Os
primeiros mdios contatados são os Kalapalo :

"(.. )Já havíamos alcançado o rio Sete de Setembro. Bastava descê-lo para chegar ao
Kuluene, um rio caudaloso. Kuluene abaixo, surgiram na barranca alta da direita os índios
Kalapalo. Gritos e correrias marcaram o nosso primeiro encontro com eles. Nem tínhamos a
intenção de atraí-los. O objetivo da expedição era desbravar a mata, localizar os rios e abrir
campos de pouso para exame posterior da área. Mas nosso primeiro contato com os índios
do Xingu foi assim: o índio que chefiava o grupo, Yakumba, aproximou-se com sua mulher
Kerezo. Quando Yakumba se acercou, mais índios foram chegando, devagarinho,
ressabiados e prevenidos. Tornamo-nos amigos( .. )"(idem:26)

Um ano depois dessas observações, com a Expedição Roncador Xingu instalada na


área, os Villas Boas erguem o primeiro campo de pouso de avião no Xingu, na
localidade do Jacaré. Teriam sido os Kalapalo ou os Kamaiurá ou, segundo Amati, o
próprios Trumai que mostram essas terras Trumai aos Villas Boas, como lugar ideal
para abrir o campo de aviação. Além de frente de atração de grupos indígenas, a
Expedição Roncador Xingu e a Fundação Brasil Central propunham a ocupação do
território por núcleos iniciais de colonização que pudessem abrigar os colonos e suas
famílias, além de presos; ao mesmo tempo se agregavam objetivos estratégicos de
abertura de estradas, controle de minérios e de suporte logístico ao projeto de
ampliar conexões e rotas nacionais e para o exterior da Aviação Brasileira. É dentro
desse último objetivo que foi criado o campo de pouso do Jacaré, que mais tarde virá
a ser base da FAB. Com a obra concluída, o Jacaré integra-se à rota de Manaus, ao
mesmo tempo que, pouco depois, expedições suplementares adentram o vale do
Teles Pires e o Alto Tapajós, com o objetivo de construir outro campo de pouso na
Serra do Cachimbo, viabilizando a rota aérea, Rio - Manaus - Miami.(Pires
Menezes:2000:36-37)

Os convênios com o Correio Aéreo Nacional tomam regulares os vôos para a base
do Jacaré e intensificam os contatos de xinguanos com toda sorte de pessoas vindas

18 - Entrevista de Orlando Villas Boas a Josáit.1arquez. Revista Visão ( 10 de fuvereiro de 1975) apud,
Maureen Bisilliat, São Paulo, Empresa das Letras, 1995, p. 23

39
de fora, com ·conseqüências danosas de epidemias e hábitos alheios aos costumes
tradicionais. Os ainda escassos instrumentos de metal introduzidos pelo contato
tinham afetado pouco a maneira de viver desses povos, mas em termos
demográficos, uma alteração considerável, reduzia de quase a metade o número de
seus habitantes. Se em 1887 eles eram estimados por von den Steinen em 3.000
habitantes, por volta de 1947, somavam 800 pessoas. Para os irmãos Villas Boas,
isso ocorreu com os primeiros surtos de gripe, disenteria e doenças infecciosas
adquiridas nas andanças pelo Paratininga. Nas décadas de 40, 50 e 60, muitos índios
morrem pelo contágio de doenças respiratórias, gripes e epidemias de sarampo,
acarretando a diminuição de quase a metade da população. Entre 1946 e 1950,
registram-se óbitos entre Kalapalo e Kamaiurá de ao todo 37 pessoas, numa
população de 258 pessoas e, em 1954, a situação chega ao auge, com uma epidemia
de sarampo que mata 114 pessoas. (idem:259) Nessa nova realidade torna-se cada
vez mais urgente uma política indigenista que, indo contra a integração dos índios à
sociedade brasileira, pudesse preservar as áreas habitadas por eles. A missão da
Expedição Roncador Xingu se limitava a abrir frentes de colonização, picadas na
mata e pacificação dos índios, preparando o terrenos para os que viriam depois. Aos
poucos, os Villas Boas vão encontrado nesses desbravamentos, outros índios além
dos xinguanos: Juruna, Kaiabi, Txukarramãe, Suyá, esses últimos de origem Jê. Em
1956, contatam os índios Txikão que vivem no rio Jatobá e que, como os outros
serão trazidos para dentro do Parque, quando este é criado. No convívio com os
índios, os indigenistas adquirem a visão de serem aquelas lonjuras povoadas e não
terras desocupadas prestes a serem colonizadas.

"(.. ) Compreendemos que essas tribos, seus habitantes, seus costumes e suas terras,
deveriam ser preservadas. Toda a margem esquerda do Xingu já era habitada por índios de
boa índole, que ali viviam praticamente desde o Descobrimento. Seria um crime contra a
humanidade acabar com a civilização indígena, roubando suas terras, corrompendo e
destruindo toda uma estrutura social".(apud Bisilliat: 32)

Desenvolvia-se com a prática indigenista, a necessidade de preservar a terra dos


conflitos latentes entre índios e brancos:

"Os irmãos Villas Boas, chefes da Ex~dição Roncador-Xingu, têm evitado, a todo
custo, interferência direta sobre os indrgenas e situações que possam redundar em

40
choques e conseqüente desmoralização elas sociedades nativas. A influência mais
flagrante desses contatos faz sentir-se na introdução, entre os mdios, de utilidades,
como ferramentas, roupas, rapadura, etc .. "(1996:251)

No Xingu o ecossistema social se amálgama à natureza vivendo a intimidade dos


lugares sagrados com os espaços cotidianos. Aldeias, rios, animais e homens
formam com a humanidade ancestral um mesmo sistema, razão pela qual era
importante repensar a integração e as conseqüências desastrosas apontadas por Noel
Nutels,

"Um índio integrado é um índio trazido de uma sociedade onde ele ocupa o primeiro lugar,
para ocupar o último lugar na nossa."19

Já no final da década de 40 vão se opor os Villas Boas e os objetivos de colonização


da Fundação Brasil Central

"Com a assunção de Arquimedes Pereira Lima à presidência da FBC (Fundação Brasil


Central), em 1950, uma 'serie de problemas é enfrentada pela ERX ( Expedição Roncador -
Xingu). Opositor ferrenho da ação indigenista dos Villas Boas, Pereira Lima, em conluio
com o governo do Mato Grosso, irá atacar duramente a presença da ERX no Alto Xingu,
favorecendo a iniciativa colonizadora da FBC, através de um convênio firmado com o
estado do Mato Grosso. Por este convênio, áreas atravessadas pela ERX passam a ser alvo
de projetos de colonização."(Pires Menezes:35)

Nos anos 50, acirram-se os interesses econômicos e políticos na área:


"O ano de 1954 foi de grandes transtornos para oós. Não bastasse a nossa preocupação com
os índios, surgiram os brancos gananciosos, aventureiros sem escrúpulos, apoiados por
políticos da pior espécie.( .. ) O governo de Mato Grosso, por razões que prefiro não citar,
começou a vender áreas do Alto Xingu. Um ano depois, novos conflitos com os brancos
invasores. "(apud Bisilliat:32)

Villas Boas, Nutels, Galvão fazem denúncias públicas dos interesses econômicos na
região. A criação do Parque em 1961, vinha sendo cogitada desde 1948. Os
principais mentores dessa idéia eram, além dos irmãos Villas Boas, Gama Malcher,
os antropólogos Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão, o médico sanitarista Noel Nutels e
o próprio Rondon que com o passar do tempo mudara seu ponto de vista
integracionista.

19
- Entrevista do médico indigenista para OIÇornal Folha de São Paulo ( 30/07/1966) transcrita em
Maureen Bisilliat, 1995, p. 96

41
A idéia de um Parque era completamente nova em relação ao que propunha
anteriormente o Serviço de Proteção aos Índios. Criado em 1910, o SPI pautava sua
política em relação aos índios, a partir do reconhecimento da posse das terras
ocupadas, as reservadas a eles pelo Estado e os domínios adquiridos por doação,
troca ou compra. Por detrás dessas imagens jurídicas, estava a idéia de serem os
mdios e suas culturas um estágio transitório de desenvolvimento, que a
regulamentação e fixação em pequenas áreas permitiria integrar à sociedade
brasileira. Era-lhes garantida a sobrevivência tisica, mas não se reconhecia a eles
legitimidade cultural A política de criar pequenas reservas, ao mesmo tempo que
promovia a sedentarização dos úidios, liberava parte de seus territórios para que
fossem ocupados por colonos, ao mesmo tempo que criava urna reserva de mão de
obra para um mercado em expansão. Um parque com um amplo território, dando
primazia ao elemento cultural fugia a esses propósitos. Mas as idéias do
indigenismo emergente tocava toda urna geração de jovens etnólogos, ao mesmo
tempo que o próprio Rondon, sensível à questão, revia seus pontos de vista
anteriores. Desde o final dos anos 40, os Villas Boas se aproximam de Rondon e a
idéia de instituir um parque de grandes dimensões territoriais têm o apoio do SPI, ao
menos de parte de seus funcionários. Em 1950, Darcy Ribeiro, ligado ao SPI,
elabora um estudo apresentado como anteprojeto de lei, onde ele defini como terras
indígenas, além daquelas cedidas, concedidas, adquiridas e as reservadas, ou vindo a
sê-las, também aquelas que, embora adquiridas por particulares, fossem
tradicionalmente áreas indígenas com ocupação ininterrupta superior a 20 anos. No
artigo 7 do documento, o patrimônio coletivo torna-se inalienável, não podendo ser
nem vendido, nem fracionado a outros, salvo aos indios e seus descendentes. Ribeiro
constituía a idéia de território indígena, pela ocupação extensiva da terra,
reconhecendo a predominância do elemento· cultural para a definição das
demarcações. Por outro lado, há de se destacar, cabia agora ao SPI, intervir nas
infrações, antecedendo à ação judicial.( Ribeiro: 1951 :400-402; apud Pires Menezes:
99/100)

42
A necessidade de preservar a terra como elemento essencial para as cosmovisões
indígenas partia da compreensão dela ser muito mais que um fator econômico, a
unidade indivisível da cultura desses povos, lugar de convivência de criatura e
criador, passado e presente, origem dos primeiros seres e o das ações cotidianas.
Como unidade da cultura e do pensamento indígena, torna-se objetivo primeiro da
ação contra os predadores, a preservação da terras e de seu ecossistema onde os
índios passam a viver de acordo com os seus hábitos e costumes, constituindo-se a
possibilidade de o ecossistema social continuar a desenvolver-se não só no presente,
mas no futuro. A idéia , segundo consta em alguns autores, era semelhante à das
reservas florestais indígenas da experiência norte-americana. Porém, ao que me
consta, se diferenciava no traço de serem as culturas dos povos indígenas vivendo no
Brasil ainda vigorosas e o fato desses territórios serem instituídos para a ocupação
dos índios e não como reservas ecológicas intocadas. O processo constituía a figura
do índio como gerente da natureza, pelo seu conhecimento e capacidade de preservar
o equihbrio ambiental.

Essas eram idéias de um indigenismo emergente, completamente renovado. No final


dos anos 50 a formação do Parque toma-se urgente frente ao grau de ameaças
circundantes. No final da década, o SPI liderado pelo coronel Guedes (1957-61),
declara-se contrário a um parque de grandes dimensões. A Fundação Brasil Central
propõe a criação de uma reserva com l 8.600km quadrados com um traçado que
excluí do Parque os habitantes das cabeceiras que formam a área do Uluri, o Posto
Capitão Vasconcelos (Leonardo Villas Boas) e a base aérea do Jacaré. (idem:301)

Por outro lado, o SPI propõe


"fracionar o Alto-Xingu em cinco áreas com cerca de 500 mil hectares para cada, sendo a
proposta acatada pelo governador do Mato Grosso que vinha atacando o projeto de criação
do Parque."(Pires Menezes: 304)

Essa proposta era coerente com a velha política do SPI, de reservar


" uma área maior e à medida que se procede à pacificação, e nucleando o grupo indígena -
em tomo, geralmente, do posto indígena de assistência-, libera-se a área em redor e reserva-
se o núcleo como área de posse indígena."(idem:idem)

Opinião semelhante tinha Orlando VilasJ oas em relação ao SPI:

43
" enquanto esteve diretamente ligado ao marechal Rondon, cumpriu seus objetivos. Depois,
com o tempo, passou a ser controlado mais por políticos do que por indigenistas e conheceu
sua fuse negra." (apud Bisilliat:33)

Finalmente em 1961, o Parque Nacional do Xingu, 20 é criado por decreto pelo


governo Jânio Quadros, com a inclusão das áreas deixadas de fora pela proposta da
FBC. Or Jando Villas Boas passa a ser o administrador. Segundo ele, a iniciativa do
governo brasileiro tinha o objetivo de

"( ... ) construir uma reserva natural onde a fauna e a flora intocadas guardassem, para o
futuro, um testemunho do Brasil do Descobrimento; e, sobretudo, fazer chegar diretamente
às tribos da região sua ação protetora, prestando-lhes assistência e defendendo-as de
contatos prematuros e nocivos em as frentes de ocupação da sociedade brasileira."(
idem: idem)

O desfecho tornava vitoriosa urna visão diferente dos índios para o contexto
brasileiro e a proposta de urna reserva ecológica corno um sistema íntegrado. A idéia
acalentada por 20 anos, se concretiza. O Parque concebido para ser Nacional pôde
proteger os grupos que ali viviam, e também abrigar povos de outras origens que
estavam em situação de ameaça de sobrevivência. Alguns desses, antes inimigos,
como os Suyá, hoje completamente integrados, os Ikpeng, Juruna e os legendários
homens gigantes Krenhacãrore, atraídos em 1973, Txukarramãe, além dos Kaiabi,
passaram a conviver com os xinguanos, o que levou a que aos tup~ aruak, carib,
trumai se unissem a fumília lingüística dos jê numa convivência atual de 16 povos.

A idéia do Parque, embora tivesse gerado polêmicas sobre seu aspecto Nacional, não
apenas no período de sua formação, a dependência dos índios em relação ao Estado e a
ingerência indigenista nos assuntos dos índios, buscando com sua prática neutralizar as
rivalidades entre os grupos e valorizar suas semelhanças, foi no entanto inovadora e sob
diversos aspectos positiva para os povos do Alto Xinga, que hoje vivem a possibilidade
de gerir suas terras com a gradativa autonomia. Avaliar o que foi a gestão de um vasto
território não é dificil se conjugamos a ela o poder dos donos das terras e suas extensões

20 - O Parque Indígena do Xingu foi criado por lei federal, oomo Parque Nacional em 1961. Em 1968 teve sua área
aumentada para 26.000 quilômetros quadrados, CQl(orme informação de Orlando Villas Boas. Em 1978 ele é
transfurmado em Parque Indígena do Xingu, medindo atualmente 32 .000 lan quadrados.

44
políticas. Sem a ação dos Villas Boas e o vigor de um indigenismo nascente, é provável
que a experiência do Parque tivesse malogrado ou se rendido às questões fundiárias.

Pode-se dizer que foi contido, relativamente, o avanço selvagem dos interesses das
riquezas de minérios, petróleo, madeira, caça, etc. e processa-se a capacidade de
viabilizar novas e melhores condições econômicas e sociais. Sendo assim, o direito
inalienável e originário sobre suas terras tomou mais tangível às populações
administrarem suas escolhas tecnológicas futuras, ao invés de se verem a mercê das
pressões dos interesses mais violentos e imediatos do "desenvolvimento" e
"civilização". Passada a fase de dizimação, hoje os Trumai e xinguanos voltaram a
crescer, girando sua população, em torno de 3000 pessoas, o mesmo número do final
do século XIX. Quanto aos Trumai, eles agora somam em volta de 175 pessoas.
Mas, embora o desafio do extermínio tenha se neutralizado, ainda são inúmeros os
obstáculos que devem ser enfrentados. O principal deles continua sendo a
preservação das terras da ganância dos fazendeiros e grandes investidores, e o
desenvolvimento de atividades produtivas compatíveis com a tradição e a
necessidade do mundo contemporâneo.

Dentro do parque, alguns projetos são pensados hoje na área da educação, no sentido
de lidar com a dificuldade de continuidade. Os programas de alfubetização bilingüe
conduzem o esforço de instrumentalizar o conhecimento da cultura oficial e ao
mesmo tempo o de registrar as gramáticas e grafias das linguas indígenas,
cumprindo um calendário escolar compatível com a sociedade tradicional. O mesmo
esforço de equipar intelectualmente e profissionalmente para a vida nas aldeias é
feito no sentido de formar agentes de saúde entre os indios da nova geração, de
forma a que o binômio medicina de branco e pajelança - medicina tradicional, que
durante esses anos permitiu coexistir positivamente as duas maneiras de cura- seja
agora e no futuro assumida cada vez mais por profissionais indios.

A convivência de mais de 40 anos amadureceu as idéias indigenistas, não apenas nas


aldeias:

45
"( ... ) Sabeis com certeza o que são os índios semi-integrados - aqueles que já foram
envolvidos pela sociedade civilizada e que hoje gravitam em tomo dos postos mantidos pelo
órgão encarregado da sua tutela. Conservando a própria língua e, eventualmente, algum
resquício ou traço mais ou menos apagado da antiga cultura, esses índios representam, a
meu ver, um testemunho vivo dos erros cometidos no passado. Erramos quando supusemos
que a aldeia poderia ser imediatamente substituída por um posto indígena; erramos quando -
desprezando os ensinamentos da antropologia - atribuímos pouco ou nenhum valor à
cultura; erramos, finalmente, quando preocupados em transformar os postos indígenas em
locais de trabalho e produção, não cuidamos de preencher o grande vazio subseqüente ao
desaparecimento da cultura local. Entendo que esse vazio - terreno em que vicejam males
sem conta, desde o alcoolismo até a ociosidade e a indiferença- deveria ser inteligentemente
ocupado ou preenchido com alguma coisa nova. E entendo por coisa nova, neste caso, a
implantação de uma política indigenista sensível e ajustável à situação particular de cada
grupo em processo de integração."(Orlando Villas Boas, apud Bisilliat:86)

A facilidade dos meios de comunicação estreitam os laços dos xinguanos com a


cidade, sendo ·crescente o número de meninos e meninas das novas gerações que
freqüentam as escolas, acarretando mudanças de comportamento que influem como
faca de dois gumes nos destinos que buscam a capacitação para fugir das condições
de que falava Noel Nutels em texto acima, correndo, ao mesmo tempo, o risco de
com isso perderem a língua e as referências da cultura tradicional. Por outro lado, as
mudanças pelas quais passaram os povos indígenas e o Brasil nesses 50 anos pede a
progressiva reelaboração das políticas indigenistas. Nesse momento, opera-se a
transição da política do governo gerida pela FUNAl para urna de maior autonomia
dos índios na gerência de seus destinos. Nisso estão envolvidos uma série de
aspectos contraditórios. De certa forma, muitos índios gostariam de ser autônomos,
enquanto outros são ainda nostálgicos da proteção do governo. Por outro lado, nas
cidades, as opiniões sobre os índios e seus direitos, ainda que tenham evoluído, são
bastante semelhantes àquelas de meio século atrás: o índio não gosta de trabalhar,
não cultiva sua terra e não deixa que outros a cultivem, tem terra demais, é um
obstáculo ao desenvolvimento nacional etc. Por isso, parece-me importante a criação
de urna série de mecanismos que permitam a regência de um futuro, o que amplia
nossa atenção para a convivência com · os brancos nas áreas urbanas, o
desenvolvimento de esforços para amadurecer os mecanismos de ascensão,
escolaridade e chances de emprego, proteção ambiental e direitos extrativistas e
maneiras dinâmicas de produzir, capazes de desbloquear as condições desvantajosas.
Isso torna fundamental, esclarecer a sociedade brasileira sobre a questão indígena,
e.

46
como realidade e desafio que inclua, no ·futuro de nossa diversidade, os povos
sobreviventes de 500 anos de dominação e exterminio.

Os Villas Boas, Orlando e Cláudio, já que Leonardo morre ainda em 1962, registraram
em diversos livros os costumes e mitos dos povos Alto xinguanos. E, também desse
ponto de vista, contribuíram para um melhor conhecimentos desses povos. Os dois
incentivam a pintura de Amatiwanã, que conhecem quando os Trumai moravam na
aldeia Waniwani, próximo ao Anariá. Amati era pequeno, um índio como qualquer um
de sua idade, corria, pescava, brincava, fazia arcos e flechas e ouvia as histórias e lendas
que contavam os pajés.

"Um dia, na praia, sentiu uma dor, uma pontada fina, nas juntas. Não deu importância. As
dores foram se repetindo até que um "reumatismo" incurável, o imobilizou( .. ) A doença o
foi tirando do movimentado ocarip ( pátio da aldeia)( .. ) A primeira viagem a um centro
maior de recursos encheu o índio de esperanças. Os resultados contudo foram momentâneos.
Por outro lado, as grandes ausências da sua terra, tão distante, traziam-lhe saudades e
melancolia. Foi ai ·que a pintura passou a ser a distração maior de Amati." (apud
Bisilliat:48)

47
2

AMATIWANÃ TRUMAI: EXPERIÊNCIA, MEMÓRIAS E NARRATIVAS

48
O capítulo propõe reunir a experiência Trumai e de Amatiwanã nas suas próprias
palavras. Se manifestam nas recordações e lembranças herdadas e vividas, imagens e
elo afetivo que une o passado e o presente. As narrativas abrangem os contatos com os
brancos, conflitos, lembranças do tempo de seu avô e da migração Trumai para o Alto
Xingu, o início de sua doença. Temas extremamente complexos que a narrativa de
Amati conduz e meu texto busca interferir apenas para complementar suas palavras.
Suas falas foram editadas para uma melhor compreensão do texto.

49
2.1. A matt. : E xpenenc1a
·~ . e Lem branças 21

"Meu nome, Amatiwanã, Tatupewá, Kayarimá, Yawaripá. Nomes dos


meus avôs. Matiwanã é por parte de minha mãe. Tatupewá é o nome do
meu avô, parte do meu pai. Meu pai não pode chamar o meu nome, da
parte da minha mãe, é proibido falar o nome do sogro. E, minha mãe,
também a mesma coisa, dava um outro nome por causa do sogro. Então,
por isso, minha mãe dá o nome do pai dela e meu pai o nome do pai
dele. Daí, vem meu nome.

Meu avô Matiwanã, esse nome que eu estou usando, não cheguei
conhecer. Meu pai contou dele. Só conheci minha avó, mãe do meu pai.
Meu avô era Trumai, minha avó, Wayerú, Kamaiurá. Agora, minha
outra avó, minha avó mesmo, não conheci22 • Chamava Mayaku, era
Trumai. Minha mãe também não conheceu a mãe. Eu sempre fui
curioso. Antes do meu pai morrer, eu fui perguntando o nome dos tios.
Eu já pus esses nomes meus, nos meu netos. Acabaram-se os meus
nomes Mas descobri um outro, Tuerap, que é nome do meu avô
também. Esse agora vai ser o meu nome.

Os nomes, são importantes marcos da memória da comunidade afetiva dos Trumai.


Eles são regidos por regras de doação que passam pelas relações de parentesco, cujo
exame foge aos propósitos desse trabalho. Nessas referências, cabe sublinhar a
maneira como eles são reapropriados por Amati através da herança herdada que
quando se esgota, ou quando foge nos esquecimentos, ele procura reencontrar
através da apropriação de novas fontes de conhecimento e, quando necessário, na
invenção, que mesmo assim são delimitadas pelos quadros sociais originais. É o caso
de seu nome atual Tuerap ou de outro nome, Yanum, ao qual ele faz referência como
mais uma possibilidade de nominação e que nos remete à memória imemorial dos
.
mitos. Para os nomes femininos perdidos,

"os nomes das mulheres, das tias, não deu tempo de saber, eu pensei
tarde. Mas dá para recuperar nomes de Trumai antigo. Tem muitas
21
- Todas as narrativas de Amati transcritas, são fruto da pesquisa e foram registradas nas viagens de
campo entre 1997/2000 na cidade de Canarana.~Suas fulas estão convencionadas pelo corpo 14 da
letra
22
- quando Amati diz, "minha avó mesmo," ele se refere à sua avó de origem Trumai.

50
pessoas que quando morrem, esquecémos o nome, fica muitos anos sem
lembrar. Mas, não esquece não."

A intenção manifestada de recuperar os nomes, sem explicações maiores, não


significa que isso se dará pelas regras tradicionais do parentesco ou de maneira
totalmente aleatória. Antigos nomes masculinos, citados por Quain, hoje são usados
por mulheres, com ligeiras modificações. Isso leva a entender que o mais importante
é manter atualizada a ligação com os quadros de referência social, nos limites do
possível, com reelaborações que supõem o que Jean Duvignaud assinala corno urna
memória que reinventa o passado para reconstruir os dados no presente.( 1990:14)

Memórias incluem simultaneidade de tempos e espaços que o depoimento situa nas


diferentes e/ou divergentes interseções de aspectos vivos no presente, a
individualidade fortemente atada à "comunidade afetiva", para usar um conceito
desenvolvido por Halbwachs, apesar do afàstarnento que implica o ato de
rememorar.

Eles contam que no tempo do meu avô, existia a aldeia muito grande,
aldeia enorme. Depois que eles chegaram no Xingu, tinham três aldeias:
Anariá, Kurukutú, Waniwani. Nesse tempo, meu avô mandava nas
aldeias. Mas não era só ele que mandava, tinha três ou quatro caciques:
meu pai, outro chamado Maibu, outro cacique que eu não lembro mais.
Meu pai, naquele tempo,(época Quain) tinha duas mulheres: Tapare, a
outra, minha mãe. Quando Tapare morreu, meu pai casou com outra
irmã legítima da minha mãe, Kuiavi. Quer dizer, meu pai tinha três
mulheres. Naquele tempo, o cacique tinha sempre duas ou três mulheres.
Mas, no tempo do Quain, no tempo do meus avos, só os cacique tinham
direito de casar com três ou duas pessoas. As mulheres dão comida, dão
beiju, fazem mingau. Então é bom sempre duas ou três mulheres.

Nessa memória tecida entre lembranças que se distanciam, converge o insistente


sentimento de aproximar um conhecimento do passado, urna interrogação constante
das origens e dos rumos dos Trurnai.
Desde cedo eu perguntei ao meu pai: " Porque Trumai está aqui no
Xingu? De onde nós viemos? Porque nós estamos tão poucos? Só somos
daqui mesmo?" Ele falava que nós éramos briguentos. Faz tempo, só
usava machado de pedra que levava muito tempo para derrubar árvore;

51
não quebrava, só machucava assim para roçar. Meu pai conta dizia que
com o machado de pedra, corta o pau, deixa lá ainda, noutro dia corta
metade, são quatro, cinco dias para derrubar a árvore. Demora, não corta
como machado de hoje.

Eu, eu sempre vou guardar essas histórias na memória, as canções do


Jawari, alguma coisa que meu pai sabia também cantar. Eu também uso
as gravações, elas servem de recordação. Estou preparado. Não somente
eu, também meu irmão Ararapã.

Essa geração Trumai que está ai hoje, nós não somos nem parente, nem
nada: somos o mesmo sangue, todos. Tá tudo ai. Só tem essa família que
sobrou.

As lembranças de Amati são além de memórias da experiência e adquiridas,


herdadas e vividas, memórias históricas de sucessivos eventos. Embora não fosse
ainda nascido, ele menciona a chegada de Quain na Anariá e épocas anteriores,
quando os índios iam ao Paratininga ou Batovi para comercializar com os brancos, e
começaram os surtos de epidemia de gripes.

Antes de Quain chegar, o pessoal já subia esse rio Kuluene. O pessoal


Trumai, Kalapalo, Kuikuru, Mehinaku, Waurá, essas pessoas já vinham
para cá nesse rio Batovi: subiam atrás de miçanga, anzol, facão, linha.
Eles já conheciam os brancos. O pessoal conta que branco estava
morando no Batovi e ai eles começam a agradar. Muitas pessoas que
subiam para o rio, traziam doença, ai os Trumai morriam. Não só
Trumai como as outras tribos daqui, os nossos vizinhos.

Nós Trumai estávamos morando no Anariá. Essa aldeia tem um riozinho


que vai até lá. Lá eu já vivi, mínha mãe, minha avó. Ali que chegou esse
antropólogo chamado Quain, primeiro branco que apareceu lá. Quando
chegou Quain, eles contam, o pessoal não queria mostrar onde que os
Trumai moravam, mas uma tribo Aweti falou, "não os Trumai moram lá
embaixo.. " Os Aweti levaram ele lá no Anariá. Foram dois Aweti
acompanhando Quain. Parece que o Quain tinha prometido canoa para
os Aweti. Quain deu só alguns colazinhos, uns· qualquer coisa em
pagamento dos que foram levar ele na aldeia dos Trumai. Aí Quain
ficou lá, conheceu o pessoal. O Quain foi embora, não sei se foi antes ou
depois, os pescadores, os Kamaiurá, encontraram outro branco pra baixo
do Anariá, no Boa Esperança, onde o pessoal está morando agora

52
Agora já é nascido, ele se recorda de Charles Wagley indo à sua aldeia para
completar a pesquisa de Quain.

Eu lembro daquele Charles quando ele foi no · Kranhãnhã, era rapaz


ainda. Ele contou que Quain tinha uma doença no corpo, pensou que não
tinha cura, se matou.

As memórias históricas e coletivas se transportam nas múltiplas experiências no


espaço. Os Trumai vivem intensamente os deslocamentos de suas aldeias como
espaços ampliados onde eles se dividem entre residir e passar temporadas. No
Anariá eles viviam, emAruparahu

"Mora um pouco, depois volta. Não tem roça, ninguém mora lá. "

Essas vivências nos espaços são tecidas na própria simultaneidade do tempo-espaço.


Aruparahu guarda em seu nome a referência de uma aldeia ancestral e projeta um
deslocamento no tempo que se reencontra no espaço do presente

Aruparahu é perto do Morená. Mas esse nome é nome de um lugar,


não é ali. É lá em cima de onde eles vieram. O nome vem de lá.

As recordações da ocupação das aldeias, remontam ao tempo em que os Trumai


estavam residindo próximo aos Kuikuro. Elas trazem reminiscências da disputa com
os outros grupos, tendo como causa as suas mulheres. Enumera também guerras
antigas com os Suyá, como conseqüência da disputa pelo urucum. Esse último dado,
apresenta uma versão diferente daquela dada por vón den Steinen, que referiu-se ao
machado de pedra como a causa dos conflitos.

Meu pai me contou que primeiro eles moravam aqui no Kuluene, o dia
que eles chegaram. Ficaram pouco tempo ali. Os Kuikuro queriam casar
com algumas mulheres. Mas era dificil os Trumai deixarem as mulheres
deles morarem na tribo dos outros, eles tinham muito ciúme, para não
dividir num é? Dizem que eles viram essa raposa ( ·maneira de referir-se à
mulher Trumai) queriam casar com ela, levá-la para as aldeias. Eles não
gostaram desse lugar. Aí foram descendo, descendo. Ficaram um pouco
no Anariá, no Kranhãnhã, do Kranhãnhã desceram para esse lugar,

53
Anariá. Lá eles cresceram, aumentaram muito. Ali começou a encrenca
com os Suyá por causa do urucum. Teve briga, guerra, acho que Suyá
não pagou urucum. Começou mata-mata.

Tanto o machado de pedra, quanto o urucurn, têm de forte conotação mágica. O


machado de pedra é atributo dos poderes de Amesh, entidade relacionada com a
força, a guerra e a sexualidade; e o urucum um elemento mágico por excelência,
ligado ao mundo sobrenatural e dos mortos.

Na narrativa dos ataques de outros grupos, Amati assinala uma aliança dos
Kamaiurá com os Suyá, contra os Trumai. E ao mesmo tempo, conta que seu pai foi
raptado e viveu em catividade entre os Kamaiurá. Não só seu pai, como mulheres
Trumai. A narrativa desse fàto não é formulada, com clareza, mas Amati explica a
catividade de Nituari, uma antiga rixa dos Kamaiurá com seu avô Matiwanã.

Meu pai contou, que os Kamaiurá eram muitos. Nunca eles tentavam
brigar com Trumai, quero dizer que eles não queriam briga. Mas, assim
o velho conta, do jeito que meu avô contou, disse ele que com essa briga
Trumai - Suyá, foram lá no Kranlumhã, não foi muito tempo isso, já
estava acabando a briga com os Suyá, os Kamaiurá foram lá atacar os
Trumai, foram lá com os Suyá. Flecharam minha tia, uma menina assim
de três anos. A flecha entrou bem aqui na barriga da menina. A menina
agüentou muito tempo, mas deu infeção, ela morreu. Eles foram lá pra
acabar com a vida do meu avô Matiwanã, mas ninguém conseguiu, nem
Juruna, nem Suyá. Então, meu pai foi raptado lá. Eles pegaram meu pai,
raptaram meu tio, irmão do meu pai. O próprio tio, os Kamaiurá mesmo
que mataram. Por que, meu pai, quero dizer, a mãe do meu pai, já é
Kamaiurá.

Meu pai ficou muito tempo na aldeia dos Kamaiurá como prisioneiro.
Ficou trabalhando lá, pescando lá. Tinha uma parente, prima dele, minha
tia, ela foi raptada. Metade dos Trumai fugiram lá para um lugar
chamado Utawanã, morar perto dos Mehinaku, Waurá. Eles não fugiram
dos Kamaiurá, eles não queriam briga com os Kamaiurá. Foram
embora. Mas, metade da mulherada ficou nos Kamaiurá. Uma dessas
Trumai que eu falel era prima do meu pai. Ela tinha uma filha pequena
também, assim de um ano. Dizem que o pai, o marido da mulher,
mandou matar, envenenou a menina. A menina morreu sem ficar doente
O pessoal com dó, falou assim: " envenenaram sua filha, sua filha

54
morreu. Foi o próprio homem que está com você, que mandou fazer
isso". Aí ela pensou, "vou fugir". Meu pai que também estava com essa
idéia de fugir, pegou a flecha, o arco, foi embora. Quando ele estava
partindo, um Kamaiurá perguntou, "Onde você vai?" "Vou dar uma
volta ai, matar papagaio .. " Meu pai foi. No meio da estrada, ele viu as
mulheres que foram buscar a prima que se encontrou com ele lá no meio
da estrada. A prima falou para ele, "Onde você vai?""- Vou dar volta."
Aí ela falou assim, "Será que você pode ajudar a gente?" Meu pai falou,
"Ah, conforme, o que vocês querem?" Elas contaram: "Tá sabendo que
a minha filha morreu? " "- É, fiquei sabendo. Fazer o quê? Nós estamos
na aldeia dos outros, sem poder fazer nada!" Aí a prima dele falou,
"Você não está com vontade de fugir?" "Não fala isso, que eu já estou
partindo ..." "É mesmo?" "É, já estou indo embora, não quero mais viver
nessa vida não. Eu tenho pai e mãe, eu preciso ajudar, trabalhar para os
outros como prisioneiro, quero não, quero escapar." "Eles tão sabendo?"
"Não, só uma pessoa que viu eu vindo para cá." Aí ele falou assim,
"pega suas coisas." "Deixa as coisa pra lá, ela respondeu." Eles fugiram
de lá mesmo, foram embora. Pararam lá na aldeia dos Yawalapití.
Dormiram no pé da aldeia. Ai aquelas mulheres apareceram, fizeram
beiju, mingau. Eles se mandaram. Andaram o dia todo até esse local
Utawanã, ai ele chegou a ver a morte da irmã dele. Ela estava
cicatrizando, meu pai ficou contente. Mas ela pegou malária e morreu.
Ai eles ficaram lá, ficaram, ficaram. Ficaram muitos anos lá( ..)"

Por volta de 1947, os Trumai moram próximo ao Jacaré, lugar onde são encontrados
vestígios de aldeias muito antigas e que é considerado um território tradicionalmente
Trumai. Nessa época, E. Galvão relata que eles se mantinham afastados, quando
chegam os Kamaiurá, o que demonstra a rivalidade das relações dos dois grupos.
Aloari era o cacique dos Trumai que viviam com pouca comida e enciumados
porque os Kamaiurá tinham ganho uma casa dos brancos. Um pouco mais tarde,
(1950) os Trumai moram próximo ao Posto Leonardo e já eram dirigidos por dois
chefes, Nituari e Aloari. Tinham maior fartura de comida, mas, moravam numa casa
23
Kamaiurá. A narrativa que segue de Anlati pode estar próxima dessa época.
Segundo ele, os Kamaiurá ameaçam ataca-los. Rondava a aldeia os rumores quando
um deles vem advertir do perigo e se dirige a Amati:

23
- Segundo Eduardo Galvão, os Trwnai nessa época estavam ocupando casas construídas pelos
Kamaiurá, que desocuparam quando esses chegam ao Posto Leonardo e se mudam para uma clareira.
Eduardo Galvão, Diários de Campo, Rio de Janeiro, Ed UFRJ, Museu do Índio-FUNAI, 1996, p. 263

55
- Os Kamaiurá são muitos. É melhor vocês irem embora, os caras vêm
aí brigar com vocês ..
Brigar sem motivo.
Quando eu estava falando assim, eu vi Sapain, que hoje é pajé, ele era
rapaz novo ainda. Ele me chamou e disse, "o Amati, vem cá," ele me
chama de primo, "primo, vem cá."
- Teu pai, nosso pai, tá aí?
Eu disse "tá"
- Chama ele pra mim.
Eu voltei de novo pra casa. O Sapain tá te chamando pai.
- Ele tá com quem?
~ Ele tá sozinho. Disse que quer falar com você urgente.
- Urgente?
Aí meu pai foi com a minha mãe. Sapain falou com o meu pai, quem me
contou foi a minha mãe, pois a mãe do meu pai é Kamaiurá. Esse rapaz
contou que vinha um pessoal acabar com os Trumai, que só ia sobrar a
família do meu pai. O resto ia morrer tudo. Aí o meu pai respondeu..
- Vocês vai acabar com quem? Nós não temos homem, só temos pouco.
Então, já que vocês vem matar eles, mata eu também. Eu também vou
entrar no meio deles, nós vamos brigar juntos, vocês matam a mim
pnmeiro.
Ai ele foi embora. Só vendo você acredita. Meu pai chegou lá me
abraçou, "O que tá acontecendo," eu falei
- Os Kamaiurá. Eles estão tudo do outro lado. Eles vem acabar conosco.
Nós temos que ir embora agora.
Aí nós fomos donnir no mato. Debaixo de chuva. Começou a chover as
sete horas da noite. Foi, foi, foi assim. Parou três da manhã. Não tinha
fogo, nada! Chuva direto. Aí nós perdemos um Trumai , meu primo
Yanain - morava no Jacaré- ... Nós acabamos de enterrar ele,
subimos ...Quer dizer, morreram dois ..( .... )eles mataram Aweti também..

Essa memória herdade, desta vez de sua mãe, mostra essas brigas como disputas
quase familiares. Os índios são parentes, existem uns que tentam ajudar os outros.
Ao mesmo tempo, na transferência da memória ela não é mais adquirida de pai para
filho, mas de mãe para filho pela interferência, pode-se supor, das origens Kamaiurá
de seu pai. Se relacionamos esse acontecimento com aquele qt.ie Nituari é raptado
pelos Kamaiurá, é rutida a ambivalência da relação entre os dois grupos, embora
isso não esclareça as razões mais profundas das aproximações o u disputas entre
Trumai e Kamaiurá.

8ib!iotr:,c.~
Nadir Gcuvi~:l :<fouri
PUC/SP 56
Por volta de 1965 os Trumai se instalam ao norte, no posto indígena Diauarum, em
conseqüência do medo dos Kamaiurá. Esses lhes atribuíam feitiçarias e ameaçavam
de morte Nituari, ainda cacique. Jawaritu e Sauku dois outros caciques Trumai,
lideravam aldeias próprias; mas, a maioria vivia na dependência dos Postos do
Serviço de Proteção ao Índio. Pouco depois da mudança para o Diauarum, acontece
um fato importante na história recente do grupo. Dois trumai são assassinados,
Jawaritu e Kuluêne. Segundo Galvão, o primeiro foi morto por um Kayabi, sob
suspeita de feitiçaria, vingança e ciúme. O outro, por um Juruna, tendo como causa
o feitiço, sonhos e maus tratos de mulheres(E. Galvão: 1996:334) Esses
acontecimentos abalam as relações entre Trumai e Juruna, complicando a situação
que já era tensa entre os Kamaiurá. Mas, ao que parece, a grande perda mais sentida
foi a morte de Jawaritu, filho de Aloari. Galvão enumera três possibilidades para
esse último acontecimento. Anos antes, morrera uma moça sob suspeita de feitiço
por parte de Jawaritu. Tapiorap o acusado do crime, teria sido mandado para vingar
essa morte. Uma segunda versão fala de ciúmes das relações entre Jawaritu com a
mulher de Tapiorap. E, a terceira, dá como causa, uma velha rixa entre Kaiabi e
Kamaiurá que teria provocado a vingança em Jawaritu, por suas relações com os
Kamaiurá. Com esses fatos, a família de Amati retoma para o Posto Leonardo e vão
viver próximo aos Waurá. Eles somavam cerca de 40 pessoas, 12 homens, 11
mulheres e 17 crianças.

Nós estávamos morando no Diauarum, onde ficava Cláudio Villas


Boas. Antes eu morava aqui no Posto Leonardo. Aconteceu uma coisa
horrível Uma coisa horrível aconteceu conosco. Eu perdi meu primo,
meu tio. Então, nós éramos obrigados a vir de novo para o Posto
Leonardo. Como não tínhamos casa, alugamos a casa dos Waurá. Meu
tio, irmão de Kaiulu, Kuluenê. O Kayabi matou. Foi mandado matar. O
pessoal daqui de cima desceu lá porque nós tínhamos muitas moças e
eles mandaram ele para trazer as moças de volta. Nós estávamos
morando perto do Diauarum. Como nós éramos muito poucos, eu tinha
medo de nós acabarmos. Eu fiz o possível para isso não acontecer, para
não dividir nada, para não carregarem as nossas meninas. Para mim era
mais seguro morar no Diauarum, onde estava o Cláudio Villas Boas.
Jawaritu tinha um problema, eu não sei se é sistema nervoso que branco
fala, ele sempre corria para o mato. Corria, acalmava. Ele tinha esse

57
problema ai, Mas era um cara muito bom, não tinha maldade nenhuma,
nunca vi ele falar mal de ninguém, tinha só amor por todo mundo. Eu
tenho certeza que se ele não morresse, ia tomar conta de Trumai, porque
ele era um cara assim que juntava, ajudou muito o pessoal, festa toda
tarde era com ele. Depois que mataram ele, os meninos eram pequenos,
nós voltamos para o Posto Leonardo. Aconteceu lá um outro problema,
mataram o avô do meu cunhado. Disseram que meu pai estava
envolvido, meu primo, eles queriam matar todos os Trumai. Ai, a gente
saiu de lá.
Para Amati, os ataques Kamaiurá tinham como pano de fundo as suas mulheres e
essa foi uma forte razão deles viverem no Diauarum. O "pessoal de cima" aparece
por detrás das mortes. Eles retornam ao Posto Leonardo e depois de período, voltam
para as aldeias ao norte . Por sugestão de Cláudio Villas Boas, então chefe de Posto
Diauarum se mudam para próximo aos Suyá que agora não lhes apresentava mais
perigo.

Lembranças e histórias dos Trumai mostram o quanto seu pequeno número tornava-
os frágeis aos ataques. Mais uma vez, as razões se dividem entre disputa de
mulheres e as acusações de feitiçarias, que são "esquecidas" nos relatos de Amati.
Mas, ligação de Nituari com os Kamaiurá e sua posição de influente conhecedor das
tradições, como hipótese podem ter constituído uma forte razão para os
enfi:entamentos. Ao mesmo tempo, Galvão assinala um detalhe que me parece
importante. Malgrado a doença de Amati, ele foi em muitos momentos a verdadeira
liderança dos Trumai. Isso torna mais visível a preocupação que ele demonstra em
não dividir o seu povo, a sua forte personalidade para tomar decisões.

Durante duas décadas, aproximadamente entre meados das décadas de 50 e 70,


alguns grupos de fora da área do Parque são levados a conviver com os grupos
existentes na área delimitada pelo então Parque Nacional do Xinguem 1961. Os
Txikão (Ikpeng) que viviam próximo do rio Jatobá são transferidos no período de
1964-67, e incorporados com o plano de abrigar grupos que; embora com aldeias
fora da área do Parque, viviam em sua periferia e não eram.desconhecidos dos índios
xínguanos. A transferência se deveu à situação limite que eles viviam em seus

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- _- _ _ _- _________ ---------------
territórios com os garimpeiros. Além dos eilfrentamentos CÓm os Suyá e Kamaiurá,
a proximidade das aldeias Trumai e Txikão também provocaram fricções entre eles.

Apareceram os índios, Txikão. Os índios Txikão pegaram a filha do


cacique Maibu e roubaram, foram roubar a filha do cacique, uma
menina, filha do Tucunaré. Aí os Trumai foram atrás tomar a menina.
Nada. Ai eles matam uma mulher. Por vingança, mataram uma índia
Txikão, pegaram também uma mulher lá. Só que essa mulher tinha
aquela doença na pele, Trumai chama iaut 'rut iauthurt. Essa índia ficou
lá com os Trumai, no Utawanã. Quando essa índia Txikão, quando ela já
estava quase acostumando, o homem que estava com ela, começou a
maltratar dela, mandar ela trabalhar, plantar mandioca, buscar lenha. Ela
fugiu. Mas ela não sabia falar Trumai, só Txikão ainda....Essa índia foi
sozinha. O pessoal avisou, ela pode fugir. Fugiu, fugiu. A mulher foi
embora. De lá, pegou o rumo e encontrou os parentes dela. Foram
embora. Quer dizer, os parentes dela foram atrás dela pra atacar os
Trumai, mas encontraram ela no meio do caminho e de lá mesmo eles
voltaram. Aí o chefe não quis ficar mais lá, só fazer vingança nos
Txikão. Eles foram para o Anariá, para baixo do Jacaré, acima um
pouquinho do Morená.

Da história recente, o possível conflito entre chefias, que para Robert Murphy
tomava obscura a maneira como Aloari, antagonista do cacique anterior Maibu,
acedera ao cacicado, Amati apenas menciona Aloari de maneira superficial; e se
refere ao modo enigmático como viveu Maibu seus últimos anos:

Depois que Quain foi embora da aldeia, Maibu ficou muito estranho.
Ele estava com a mulher que ele ficou casado apenas dois dias, e sentiu
alguém agarrar o pé dele com a mão. Ele riu, pensou que fosse a mulher,
não era. Então ele começou a ficar meio transtornado. Fumava, fumava,
fumava, e depois saia correndo com o cigarro e tudo na boca, caia no
rio, na Lagoa. Sumia, desaparecia. Depois ele saia, voltava para aldeia,
sequinho, nem parecia que tinha caído na água. E assim foi, assim foi,
foi. Ele mergulhou... mergulhou... mergulhou e encontrou uma cerâmica
muito antiga. Depois que ele voltava ao normal, na aldeia ele contava
que na vida lá debaixo da água, os peixes que a gente come, não são os
mesmos que têm lá. Um dia, ele trouxe urucum, chocalho, dois
chocalhos - os chocalhos são peixes que se movimentam que nem gente.
Pendurou na parede os chocalhos mas depois devolveu para a água. Por

59
último, ele disse que ia trazer os espíritos pequenos, os Yamurikumã,
mas ele foi ficando doente ... Morreu. Morreu, não conseguiu trazer esses
espíritos.

Aloari, era o filho ou neto dos verdadeiros caciques Trumai. Mas meu
pai era muito bom para o povo, sustentava todas aquelas aldeias,
pescava, trabalhava

Aruavi, filho de Aloari, tem mais ou menos a mesma idade de Amati pouco se
lembra d@ pai,

"'Aloari era irmão do pai de Amati. Eu conheci ele como uma visão. Eu era pequeno no colo
da minha irmã Kumalu quando ele morreu. Ele foi roubado pelos Suyá, mas não furaram o
beiço dele. Depois, ele foi recuperado pelos Trumai. "24

Nituari substitui Aloari Além de chefe e trabalhador, era considerado grande


conhecedor das canções rituais do Jawari e Olé, festa dos espíritos, muito
importante dentro do sistema dos pajés e das curas mágico - religiosas.

A dispersão e divisão de chefias dos Trumai do passado se repetem, "dois chefes,


duas aldeias". As razões podem ser inúmeras, mas uma delas, a conduta pessoal do
aek (cacique) Trumai, explica melhor essa sociedade como exemplo de grupos cujos
procedimentos caracterizam a forte tendência a se subdividir em pequenos
fragmentos.

Nós falamos Aek se foi filho do chefe. Se for ela é Aekpeksá, se casar
com o chefe é também chefe. Chefe da aldeia. Só que nós chamamos
Aek todas as lideranças. Tem um m6do de reagir, de dar ordem para o
pessoal. Branco não, com aquela nervosia! Fica brabo! Mas nós não.
Indio sai, explica a situação, quem está disposto vai, não é obrigado.
e Tem gente que está com preguiça, outro que vai pescar, trabalhar a roça,
não são obrigados. Aek dá sempre ordem assim: conforme, de acordo.
Agora branco não, eu já vi muito. Faz aquilo, faz aquilo outro! Não,
índio não. Se ele dá esculhambação ele não é Aek. Vem através da
fanu1ia. Ou o filho mais velho ou outro. Só um. O outro, é camará, só
ajudante. Mas toda comunidade tem Aek, tem outro assessor para tomar
conta da aldeia que é dono do aldeia, tem aqueles que recebem as visitas
24
- Aruavi, Aldeia Boa Esperança, 1998 (informação de pesquisa)

60
para a festa, tem outro que toma conta só do trabalho. Não tem mais,
acabou. Acabou de 70 pra cá. Os velhos, os antigos mesmo, os Aek,
morreram. Não tem mais. Só Txkarramae ainda tem. Os Kayapó têm,
aqui no Xingu. Tem bastante antigo no Xingu, mas não é Aek. Orlando
chegou a ver Aek sair lá fora todo dia de manhã pra discurso: fala, fala,
fala ...E todo mundo quieto, lá ouvindo.

Por volta dos anos 70 os Trumai vivem na aldeia do Pato Magro subindo em seguida
para Adat tan. Nesta última aldeia, ocorre uma nova divisão. O irmão de Amati
muda-se com a farm1ia e funda uma aldeia própria no rio Steinen. A aldeia da Terra
Preta se desorganiza. O problema parece ter relação estreita com a falta de liderança
do atual cacique Trumai para unir todo o grupo. A liderança de Ararapã é criticada
não apenas por Amati, mas pela irmã, sobrinho, por Aruavi, Sucuri e demais
parentes e mesmo por alguns Kamaiurá.

As lembranças do passado de brigas aparecem como uma das mais fortes razões para
os deslocamento dos Trumai na área do Parque. Mas elas não são a única razão.
Aquilo que se distingue como inconstância é para Amati um costume Trumai muito
antigo:

Isso ai já vem dos bisavós. Quantas aldeias velhas por aí? O primeiro foi
esse lugar aqui perto dos Kuikuro, dos Kuikuro descemos, do Jacaré
para o Kranhãnhã, dai para o Anariá, do Anariá-lá para o Waniwani, do
Waniwani para o Mukuretê, do Mukuretê ... Não, do Anariá nós fomos
para Utawanã, do Utawanã voltamos de novo para o Kranhãnhã, do
Kranhãnhã para o Anariá. Do Anariá, veio Orlando e o Cláudio, pegou
sarampo, nós desistimos, mudamos de novo para o Kranhãnhã. Do
Kranhãnhã nós mudamos para o Diauarum, Posto Leonardo, Pato
Magro, Terra Preta. O Trumai tem esse costume mesmo. Não é só hoje

61
2.2. A Migração
A importância da história da migração Trumai para o Alto Xingu, tem início nos
primeiros relatos de Karl von deu Steinen. É ele que certamente legou aos etnólogos
a curiosidade pela origem de um povo cujas características singulares destacavam-se
dos traços comuns aos da conformidade cultural, sugerindo a recém-chegada do
grupo na área Fosse ou não movido dessa curiosidade, Buell Quain registra o
primeiro depoimento Trumai sobre essa chegada. Ele não é minucioso e, apenas
confirma, superficialmente, no depoimento que lhe teria dado o velho Matiwanã,
cujas lembranças atingiam o tempo em que os Trumai eram ainda semelhantes à
descrição de Karl von den Steinen. Na época de Quain, essas antigas características
já haviam desaparecido e apenas as mulheres mantinham o costume de usar o desnit,
sobreposto ao uluri. Complementarmente, os costumes comuns aos outros grupos e o
hábito de usar palavras de outras linguas (tupi e aruak) para certas plantas, objetos e
nas letras de canções, fizeram crer à Quain, o declinio da cultura original que se
assimilava àquela que eles encontraram no Xingu. Uma coisa parece ser unânime,
mesmo hoje entre os Trumai, o trajeto que eles fizeram partiu de algum ponto do
sudeste. E a suposição parece confirmar-se com a semelhança que existe entre rituais
de origem Trumai e Karajá. Porém, apesar de conexões com o Araguaia e com os
índios Karajá, que são levantadas desde o final do século XIX, a origem Trumai
permanece ainda nebulosa.

São os irmãos Villas Boas que procedem ao esforço maior ~e esclarecer a questão.
Segundo eles, os Trumai, teriam sido os últimos dos onze' grupos formadores da
cultura xinguana a chegarem naquela região. Para esse dado eles se apoiavam nas
palavras dos próprios Trumai que lhes contaram duas versões do trajeto percorrido.

Na primeira, "seus antepassados residiam ao norte do ponto onde hoje eles se


encontram, nas margens de um imenso lago ao qual dão o nome de Pararrú."
Atacados violentamente pelos Aussumadí tomaram o rumo "do pôr do sol", guiados
por dois chefes: Auaturí e Jaquanarí, chegando às margens de um rio Kuluene.
Nessa caminhada, a briga entre os dois chefes pela divisão das carnes de urna ema,
resultou na divisão dos rumos Trumai. Jaquanari retorna às suas aldeias com um
grande número de pessoas, ao passo que Autuarí sobe o rio com grande número de

62
canoas e acampam primeiramente em um local que não permanecem muito tempo,
pela enorme quantidade de mosquitos. Sobem então em direção à margem direita do
rio Kuluene, pouco acima da junção do Ronuro e o Batoví, criando a aldeia Anariá.
Ali, crescem bastante e criam outras aldeias- Urucutú, Waniwani, Yacaré,
Kranhãnhã, Uaupép, todas à margem direita do rio.

Mas, uma segunda versão da migração, contada por uma velha Trumai aos mesmos
Villas Boas, narra a caminhada como vinda de um afluente à margem esquerda do
Kuluene e não do baixo Xingu. A separação do grupo tendo como razão a partilha de
uma ema foi confirmada por ela. E, como esta ave não existe no Xingu, os
indigenistas acreditaram que a segunda trajetória explicava melhor os passos dessa
caminhada. A probabilidade deles se originarem do leste ou sudeste, território
dominado pelos Xavantes, então em constantes deslocamentos, também fazem eco
nos relatos Kuikuro, no encontro que eles tiveram com os Trumai. Segundo os
Kuikuro, como prova satisfatória da acolhida que esses lhes deram, os Trumai
dançaram a festa Tawanarã, muito semelhante a grande festa Aruanã dos Karajá.
Este seria mais um indício da possibilidade de conexões entre o Araguaia e o Xingu
via os Trumai. Segundo os Villas Boas, "não é impossível que tenham sido os
Xavantes que expulsaram os Trumai de seus antigos domínios a leste do Alto-
Xingu." Eles seriam os Ausmadi ou Assumadi que atingiram o rio das Mortes e.ª
Serra do Roncador mais ou menos há um século e meio, época provável da migração
1

Trumai. (Villas Boas:1970:27-28)

Apesar desses traços confirmarem uma origem Trumai fura do Xingu, muitas vezes
os Trumai do Anariá disseram a Quain, que eles não vinham de fora, mas que suas
origens eram do Xingu. A mesma coisa diz Arnati. Segundo ele, os Trumai já viviam
no Alto Xingu. Eles teriam migrado para outras terras, e teriam regressando, não
muito antes da primeira viagem de Karl von den Steinen.

"Meu pai já contava de outra maneira. Eu perguntei a ele como é que os


Trumai sabiam desse lugar, o Xingu. Então, através do meu avô
Matiwanã, do avô dele, ele contava que há muitos anos, anos, anos, já
existia os Trumai aqui no Xingu. Mas com a briga com os índios, não
sei quais, e eles foram embora para cá, subindo o rio. Pegaram uma

63
-
caminhada longe, longe. Eu acredito que deve ser esse rio Araguaia.
Então, nas histórias que o meu avô contava para os Trumai, para o meu
pai, ele falava que eles foram embora do Xingu para esse lugar longe.
Viveram lá muitos anos, anos, anos, mas a metade ficou aqui no Xingu,
uns poucos. A aldeia cresceu lá. Ai teve de novo briga. Mas não era
mais com os índios, mas com os brancos, os brancos mataram muitos
índios. Nessa época tinha o chefe, Jawanari e Autuari. Esses ai parece
que eram parentes próximos. O Jawanari tinha a turma dele. O outro
também. Duas aldeias, dois chefes. Esses dois irmãos viram muita morte
lá, os brancos judiando. Eles tinham medo do branco com arma. Tinha a
briga com os Xavante também. Então eles disseram, vamos embora
voltar de novo para essa aldeia de onde nós viemos. Os dois
concordaram. Foram embora. "Será que eles vivem ainda?" eles se
perguntaram. "Não sei se vivem." Eles voltaram até chegar esse rio
Kuluene. No meio da caminhada - eles comiam plantas que eles
conheciam, dessas plantações do mato: palmito, tassit, (um tipo de
inhame), faziam caça. Ai, esses chefes deles, no meio do caminho, um
desses dois chefes falou que estava com saudade da namorada - porque
também, alguns ficaram, não vieram tudo embora. No último
acampamento, não tinha nada para comer, eles foram obrigados a comer
yanu ema. Um deles falou,

- Tem ema lá carregando o ninho.


- Você tem de localizar onde é o ninho dela. V amos vigiar.
Ai, parece eles pegam dai um pouco, a ema. Estava no ninho.
Começaram a agarrar a ema. Puxa para cá, puxa dali.
Os Awardat também vinham misturados.

Amati e Pedro, seu filho mais velho, se referem ao povo Wahldat ou Awardat, que
vieram com eles para o Xingu, como gente "quase igual a Trumat', mas um pouco
diferente na maneira de falar, "é quase igual Trumai, são aqueles que vivem
na aldeia Boa Esperança." 25 A diferença no falar entre os Trumai da Terra Preta
e da Aldeia Boa Esperança, é um forte argumento das constantes discussões com
lingüistas, sobre a maneira correta de registrar a língua. Os A wardat foram
assinalados por Quain e os Villas Boas falam dos Aualatá, de existência obscura,
que desapareceram em conseqüência das guerras entre Trumai e Suyá. Com uma

25
- Uma das três aldeias Tnnnai que existe atuahnente.

64
língua semelhante, falavam com ligeiras diferenciações, e viviam à sombra dos
Trumai, como "um fenômeno singular de grupos geminados".(idem: 33)

A língua, patrimônio essencial da cultura, mais ainda por sua exclusividade, é um


bem muito valorizado por Amati e constitui uma forte argumentação para distinguir
a maior ou menor legitimidade do ser Trumai.

Eu só lembro que os Trumai falavam:


- Faz força, faz força
A ema começou a imitar o Trumai.
- Ué? Tá falando nossa língua?!
-Ah! Mata logo! Faz força, força.
- E a ema imitava:
- Faz força, faz força!
Ficou nessa história. Um pedia: eu quero a perna, eu quero o braço ... os
chefes distribuíam. Um dos chefes não recebeu o que queria. Ele não
gostou, ficou triste um pouco. Ai, mais tarde depois de comer, ele foi
deitar. Naquele tempo não tinha rede, todo mundo dormia na esteira. Aí,
ele falou para o outro chefe que ele não ia seguir mais em frente. Por
que? O outro perguntou.
- Porque eu vou voltar para o umbigo do mokó (murici)
A namorada dele, o umbigo dela é assim fundo, igual mokó.
- Não dá mais para eu seguir, estou morrendo de saudade!
- Tá bom
Aí, um cacique voltou, o outro veio. Chegou aqui nesse Kuluene.
Chegando nesse rio começaram fazer caça, roça. Fizeram muita canoa.
Ai, começaram a pesca. Eles já conheciam pelas histórias os Kalapalo,
Kamaiurá, essa turma :x:ínguana. Mas já fazia muitos anos ... Antes de
plantar, não tínha nada! Não tinha mandioca, nada. A única esperança
era encontrar com o pessoal do Xingu.

Até que apareceu os pescadores, eles estavam mesmo precisando de


contato com eles. Quando eles aproximaram, eles estranham. Fugiram.
Chegam perto do acampamento. Não era aldeia ainda. Ai eles falam para
o cacique que tinham encontrado o pessoal de cabelo vermelho. O
cacique falou para eles não atacarem e tentar ter contato com eles,
conversar. Outra pescaria, encontraram eles de novo. Nessa altura os
Kuikuru ficaram sabendo que tinha uns índios morando para cá. Era
dificil pescar para esse lado, os Trumai iam sempre lá olhar, até que eles
encontraram de novo os pescadores. Conforme o combinado, eles

65
deixam os pescadores passar. Cercam eles. Eles não podem escapar. Ai
os Trumai acalmam eles, imitam língua xinguana, tupi, aruak, até esses
índios entenderem um pouco o que Trumai quer. Eles conversam, os
outros dão beiju. Ai eles soltaram esses dois pescadores. Foram embora.
Eles contam que tinham índios estranhos. Foi outra turma lá olhar.
Ofereceram para tirar mandioca. Ficaram em contato. Foi ai que Trumai
foi descendo. Mas Trumai acredita que esses índios Trumai vivem ainda
em algum lugar. Tem muito índio que não tem contato ainda.

Amati cita ainda dois povos obscuros, provavelmente de origem mítica. Os Oí e os


Payetã. Os Oí, era um povo vermelho que os Trumai seguiam com suas canoas e dos
quais eles adotaram as canções do Canõa que hoje fuz parte do ritual do Jawari.
Eram grandes e se aproximavam cantando em coro, mas nunca atacaram os Trumai.

O relato de Amati, traz algumas questões novas em relação as história e memória


coletiva desse acontecimento. Ao mesmo tempo que ele mostra um quadro coerente
com o que diz a história oficial, ele aponta outros marcos, não registrados, onde a
história se atualiza, pontuada de metáforas, e se opõe às versões anteriores. Duas
oposições afirmam, de um lado, que seus antepassados já viviam no Xingu, e, por
outro, o confronto com os brancos como a principal causa do retomo dos Trumai
para o Xingu. A nuança inicial é importante para a noção de alteridade e
conformidade que está no centro do mito do Jawari, o mais importante mito Trumai.
Amati polemiza com tons de crítica à sociedade envolvente, dando ao confronto com
os brancos a responsabilidade maior da fuga e retomo ao Xingu. De todo modo, a
constância de conflitos, a discordância entre chefias com conseqüências para a
divisão do grupo somadas às dificuldades de sobrevivência e relações amorosas,
reaparecem como causas da dispersão e, provavelmente, são álibis que explicam a
razão deles serem tão poucos assim. A maneira como ele conta a repartição de um
animal, a ema, que serviu para identificar um espaço e um percurso, aqui nos reporta
ao yanu ema, um animal sobrenatural que fala e repete palavras trumai enquanto é
esquartejado e comido. Possíveis conexões com o canibalismo? Ou pura fantasia?
De todo modo, essa divisão marcada por um ato de devoração, provoca a
insatisfação de um dos chefes que com a razão amorosa da saudade de um amor
antigo, tomam-se suficientes para dividir o grupo. Na fala de Amati, a construção

66
alerta para a superposição de tempos, onde o sobrenatural escapa ao enquadramento
da história ou à divisão entre realidade e imaginário, nos eventos que são marcos
projetados pelo narrador que concebe e destaca na sua subjetividade, o que quer nos
transmitir, deixando em aberto a possibilidade de novos recortes interpretativos que,
nesse caso, pontua as idas e vindas, divisões e perdas com a possibilidade do
reencontro do tempo passado, dos parentes perdidos em alguma parte do mundo. A
significação de alto teor existencial que adicionada à consciência social e aos
argumentos políticos de urna imbricada rede humana onde fuga e amor, massacre e
fome, são facetas de igual importância do universo que se debate entre o pesadelo e
o sonho: perda ou complemento do semelhante.

Eu acredito, que o Brasil é grande, eu acredito num resto de Trumai


ainda. Um índio Jawaré, falou que tem um lugar lá para onde eles
moram, rio Bananal, rio das Mortes, nessa cabeceira, tem uma mata que
é muito dificil branco entrar. Tem uns índio bravos lá...Quem sabe esses
índios são Trumai?

67
• i
2.3. As Arranhaduras Do Corpo e Da Alma : A Doe1wa De Amati

Cada um de nós tem um inimigo. Eu não sei qual é o pensamento dos


outros.
Amatiwanã 1999

Para os xinguanos, a doença e a morte não são casualidades, mas conseqüências de


desafetos e interferência de forças sobrenaturais. Um dia, eu estava em Canarana e
vinha pensando como abordar assunto tão delicado e penoso. Com muita sorte, isso
se deu espontaneamente. Chego a sua casa da rua Palmeira das Missões, ele está
deitado na rede, conversando sobre sua doença com a prima Yakutá.

Nesse tempo nós morávamos no Waniwai. Eu era menino normal.


Andava, brincava, pintava urucum quando tinha festa lá, eu já imitava
gente grande, pintava o corpo também. Um dia acho que apareceu
sarampo. O Orlando estava lá no Jacaré, estava morando lá. Isso,
demorou ainda, o sarampo chegar. A~ Orlando estava começando a
fazer pista no mato. Naquele tempo, eu me lembro, tinha uma casa, era a
casa do Orlando, uma casa do telegrafista, a casa dos trabalhadores. Eu
sempre vejo no sonho, toda vez que tem um dia de sonho, tem esse
destacamento, essa casa dos trabalhadores. A casa não existe mais, mas
no sonho existe ainda. Então, foi assim, lá na aldeia Kamaiurá, Trumai,
Orlando vai, Antônio, eu sempre recebia uma caixa de rapadura. Isso ai,
é o começo da conquista dos índios lá .. Dá facão, machado, rapadura,
rapadura, rapadura... A~ Takumã viajou para Xavantina, eu ia no Jacaré,
fizeram muita festa no Jacaré, Jawari, pessoal fazia festa lá no começo
do Jacaré, para Orlando e Cláudio verem, para agradar Orlando e
Cláudio. Pode ser que pessoal Trumai, roubou também, peixe que o
peão de Orlando pegava, pegava peixe, Trumai foi lá roubar. Ai,
Orlando mediu o pé, chamou todo o pessoal, até chegou no certo, no pé
do meu tio. Meu tio levou bronca. Màndou os Trumai embora. Ai, a
gente viu o começo de Orlando e Cláudio, era assim, tratava do jeito dos
índios. Veio pessoal da FAB e Orlando saiu de lá. Foi para o Cachimbo.
Ai, pessoal Yawalapití, mostrou o lugar onde existe agora o Posto
Leonardo. Orlando foi para lá, fez o Posto lá e, ficou esse Posto do
destacamento da F AB lá no Jacaré.

68
Ai, nem demorou, Takumã saiu para, não sei se Xavantina, lá ele pegou
sarampo. Takumã chegou, eu era menino ainda, tinha muito trabalhador,
muito pessoal branco, eu não sabia nem falar ainda a língua. Aí Takumã
chegou da cidade, tá mal, com febre. Ai, chegou sarampo. Chegou
sarampo, sarampo. Ai, eu fui lá no destacamento, eu fui lá na FAB,
passei lá onde os trabalhadores estavam. Nessa época, só tinha ele só e
mais um trabalhador, o resto era pessoal da FAB. Takumã doente,
passando mal. Meu pai, meu tio, os outros Trumai estavam fazendo
pajelança junto com os Kamaiurá para o Takumã. Aí, o cearense foi lá,
viu que era sarampo. Ele me chamou:

" Amati! Fala para o seu pai, fula para o capitão, pode ir embora, isso não é doença
não, essa não é doença de índio não, é doença de branco! Isso é sarampo! Você vai
morrer, fàlou desse jeito para mim: vai acabar com todos os Trumai, vai acabar
Kamaiurá, vai acabar Waurá, vai morrer muita gente!"

Mas, pessoal cabeça dura, não acreditou, ficou lá mesmo. Ai meu tio foi
lá, já sabia falar um pouco português, ele falou assim para o meu pai,

"O cearense fàlou que isso é doença de branco! Vai morrer muita gente! Nós vamos
acabar!

Que nada, pessoal continua lá.

"Pessoal já fàlou que vai tudo morrer de gripe, acho que pessoal está inventando,
não quer que a gente fique aqui. Pode ser isso também."

Continua lá no Jacaré. Amanhã, assim que Takumã melhorou um pouco,


já pegou outro Kamaiurá. Depois que passou no outro, foi rápido. Ai
começou, pegou todo mundo. O avião nesse tempo chamava Bit,
transporta o pessoal doente para o Posto Leonardo. Ai, foi também
muito engraçado. Meu pai conta assim

Pessoal, prepara as coisas que hoje vão para cidade, Orlando está mandando para
cidade. Vocês tem que aprender a comer comida de branco

E, eles pensando que é verdade, vai Kamaiurá, depois vem nós Trumai.
Quando chega lá no Posto Leonardo, aqueles que estavam lá, pegaram
lá, morreram lá mesmo. Não adiantou nada não. Morreu muita gente!
Yawalapití, Kalapalo ....

Eu peguei essa doença. Ai, morri um pouquinho. Também, eu não fazia


xixi, porque a barriga inchou, eu desmaiava. Ai, vinha Cláudio, com

69
seringa, eu urinava. Orlando e Cláudio me ajudaram muito nesse ponto.
Antes de eu pegar sarampo nós moramos lá embaixo, perto do Anariá,
Mukuretê. Waniwani, onde Yacutá nasceu. Depois do sarampo, morreu
muita gente. Minha tia, meu irmão pequeno.... Meu pai resolveu morar
no K.ranhãnhã. Yacutá adoeceu e foi para a cidade. Depois chegou
pessoal Kalapalo. Nós descemos para o Diauarum. Depois, voltamos
para o Leonardo.
Nessa época, mais ou menos uma década depois que começou a experiência da
Expedição Roncador - Xingu, os Trumai estavam no Kranhãnhã. Isso deve ter sido
por volta de mil novecentos e cinqüenta e poucos. Charles Wagley encontra-os em
1953 nesse lugar.

"Nesse tempo em que eu estava doente, eu tinha esse sonho muito


esquisito: uma pessoa chegava, dizia:

"você não está doente, está enfeitiçado. Agora você vai morrer. Você está vendo isso
aqui assim? Eu coloquei isso aqui, você vai morrer."

Eu acordava assustado. Eu acordava, me debatia, queria fugir, falava


uma língua estranha, pode ser febre, via meu pai, minha mãe, meu tio
chorando ...Então, um homei:n chegou assim e falou assim:

"você tá vendo aquele negócio lá? Daqui a pouco vai chamar você." Ai eu
escutava a pessoa gritar, "vem para cá!"

Dava vontade de correr, eu ficava assustado. Ai eu acalmava. Só depois,


só no final, veio um homem, eu me lembro muito bem isso ai, o cara me
mostrou, falou assim:

"aqui está tudo o que você usou. Tem pedaço de corda, cigarro, urina, urina que
você urinava, espinha de peixe, tem tudo seu. Tá tudo ai, o que você comeu, o que
você usou. Tem tudo seu, o que você usou, o que você comeu. Só que você não vai
viver mais, vai morrer. Se o seu pai ajudar, se ele. conseguir tirar isso ai, ele é pajé,
você vai ser salvo. De outro jeito, você vai ser morto."

Um dia, eu falei a minha mãe, "é a última vez. Chegou uma pessoa
dizendo isso, eu vou morrer. Ele trouxe uma lata, uma lata de leite em
pó. Esse homem falou que é meu, coisa tirada de mim, urina, espinha, de
peixe que eu comi, cigarro .. "

O feitiço estava no Jacaré e quem colocou ele ali foi um Kamaiurá que já morreu:

70
"( .. )estava lá no posto do Jacaré, lá tem uma pedra, no lugar onde ficava
Orlando. Eu falei para a minha mãe: eu gostaria que o meu pai fosse lá
tirar. Eu apaguei. Minha mãe falou que fiquei dois dias lá sem falar
nada. (.. )"
Eu já vi muita coisa estranha na minha vida. Peguei sarampo. Eu vi essa
pessoa, só que não via, eu só ouvia a voz do cara dizendo assim: você
vai morrer. Eu respondia tá. Meu pai e minha mãe diziam que eu
desmaiava. Minha mãe perguntava o que eu estava sentindo. Orlando e
Cláudio me contaram que a bexiga ficava inchada e eu desmaiava. E
quando eu desmaiava eu via muitas coisas. Eu estava enfeitiçado, aquele
que estava fazendo o mal no meio do caminho. Meu pai fumava e tirava.
Antes de eu viajar essa voz falou, a única chance é o seu pai tirar
aquelas coisas. O seu xixi, urucum, está tudo na lata debaixo do buraco
da pedra. Se ele tirar, você está salvo, senão, vai ser morto.

Depois disso ele foi para o Posto Leonardo, e em seguida para o Rio de Janeiro.

Aí eles me mandaram para a cidade, Rio de Janeiro, vi aquela luz toda.


Foi lá que eu acordei. Acordei, tinha uma pessoa me jogando assim para
o alto, igual peteca. O cara falou para eu não ficar com medo. De
repente eu via, estava em outro lugar, no porto, um caminho longe, rumo
o por do sol. Estrada. Vi minha avó Wayerú morrer, vi meu tio, meu
irmão Depois, voltei normal, fiquei bom. Voltei com Noei2 6Só que essa
viagem, eu nunca vou esquecer, essa viagem que eu fui para o Rio de
Janeiro. Lá, fiquei no Hospital Paulino Wemeck. Sou capaz de chamar
os nomes de todas as pessoas que eu conheci. Essa viagem com Noel, eu
nunca esqueci. Nós paramos num lugar, quatro dias aplicando vacina,
depois fomos no Bananal, aldeia Txukarramãe. Tinha aldeia Kayapó,
tinha igreja lá. Nós demos uma volta assim, desenha um grande círculo
no ar, até chegar no Leonardo. Eu vi esse lugar estranho, aldeia enorme,
só Kayapó. Nesse tempo eu não chamava Matiwanã, chamava
Tatupewá, nome agora do meu neto. Amanhã, dia seguinte, eu estava lá
com os meninos Kayapó brincando. Kayapó era bravo, mais eu não
tinha medo. Aldeia muito grande! Eu me lembro Noel falou assim, "essa
é a última vez que nós vamos ficar aqui. Amanhã nós estamos no Posto
Leonardo, você vai ver seu pai, sua mãe."

Cheguei no posto Leonardo. Lá encontrei Kayabi, outro, Juruna. Esse


Kayabi falou que meu pai estava no Anariá. Só que no Xingu existe
26
- Noel Nutels, médico sanitarista e pneumologista.

71
isso, notícia corre rápido. Tá sabendo hoje, amanhã o outro já espalhou.
Dois ou três dias, chegou a minha mãe. Ai eu perguntei: "E aquilo que
eu falei? Negócio do sonho, era realidade? Foi verdade a lata com
feitiço?" Ela respondeu: "Ah, foi! Assim que você seguiu para a cidade,
no mesmo dia, nós descemos. Seu pai fumou lá no Jacaré. Ele tirou,
debaixo da pedra, urna lata. Tava tudo que você falou. Ele desmanchou
tudo. Quem sabe por isso você ficou bom?" No dia em que eu viajei, o
meu pai desceu com a minha mãe e tirou essa lata. Tinha cigarro,
algodão, pintura, corda, xixi. Venci minha morte.

Ele via a pessoa que tinha feito o feitiço em sonho:


Ele já morreu, os Kamaiurá estavam em nome dele no sonho, no
pesadelo. Eu não sei se era pesadelo, não sei. Eu vi a pessoa, mas não
via a pessoa, mas via a lata. Eu via urna pessoa, urna figura, só assim a
figura (silhueta), mas não dava para reconhecer. Eu vi o sujeito caindo
na água, essa pessoa mostrava essa que estava fazendo mal contra mim.,
o okeyá que está cuidando de você, ele falava o nome da pessoa, mas eu
não tenho coragem de contar, o cara morreu, é um Kamaiurá. Eu me
lembro muito bem, ele colocou na água e disse, pronto já está feito,
agora você vai morrer, boiou e foi embora. Todos esses objetos que eu
usava gemiam de dor, como se fossem a pessoa. Ele falava, você está
gemendo de dor, é você que está gemendo. Dentro de urna pedra. A
pedra é grande no rio, têm várias pedras no Posto do Yacaré. Essa pedra
eu conheço muito bem, ela fica no fundo, urna pedra enorme, onde tem
um buraco. Quando eles me colocaram no avião é como se eu tivesse
morto.

Amati muitas vezes culpou esse feitiço como vingança ao seu avô. Mas, ou1ras
vezes, não sabe explicar porque isso aconteceu,

Cada um de nós tem um inimigo. Eu não sei qual é o pensamento dos


outros. No porto, onde estava a lata, fazia um barulhinho de cachoeira...
'

Todo o tempo em que eu desmaiei eu vi muitas coisas. Era um lugar,


igualzinho esse pasto aqui enfrente a casa. No meio desse lugar tem um
caminho só que no começo eu sentia que me empurravam assim para
cima, que nem peteca. Batia assim, eu ia para cima e voltava. Mas o
lugar era assim um mato bonito, tinha um córrego e esse homem falava
se você escorregar, está morto, desaparece para sempre. Eu lembro
minha avó, ela segurou o braço assim, me apoiando até eu sair do outro

72
lado. No meio do caminho eu vi assim muito fogo. Tinha um lugar certo
para pisar até chegar a esse lugar. Ali tinha muita gente, eu não via, só
escutava fular. Tinha até gente jogando futebol! Tinha meu tio, eu não
sabia que meu tio tinha morrido, o pai de Kaum, Kamaiurá, minha avó,
meu avô, eles estavam junto comigo nessa estrada. Aí, no meio dessa
estrada, quando chegou nesse lugar onde tinha muita gente, meu avô
falou assim para o meu tio: leva esse menino e volta que ele está dando
muito trabalho só chorando, até o irmãozinho dele não chora! Quando
eu cheguei no porto, acordei. Vi só gente de roupa branca, os médicos,
eu estava com oxigênio. Só lembro isso. " 27

Anos depois ele vai ter novas crises.

"demorou um ano, dois, aí, veio essa dor, esse reumatismo. Começou a
dor, o joelho, a mão, começou. Dói punho, dói cotovelo, não foi rápido,
demorou muitos anos. Ai já começa ficar inchado, inchado, inchado...
Por isso que' eu tenho um pouco de raiva. Orlando sabe que estou
doente, podia ter providenciado. Demorou muito! Chegou uma estação,
eu não andava mais, minha perna começou a pesar. Passou Dr. Leão, fui
parar de novo no Hospital Paulino Werneck. Eles falam que é
reumatismo, artrite, reumatismo crônico. Eu fui bobo, abusei muito! Eu
lembro o médico falou assim, "Olha, não vai mais para o Xingu. Lá
você vai morrer ou fica paralítico. Mas ai, você sabe como é .. Ai, passou
o Leão visitando o hospital, eu vi que estava bom, o irmão dele falou "Ô
Amati, tô indo para o Xingu. Você quer ir lá? Nós voltamos. Ai, depois
você volta de novo. Eu já estava morando na casa da Helena Até hoje
não esqueci dela. É a segunda mãe que eu tenho. Eu considerava muito!
Me tratou bem, como fosse filho. Fez um quartinho, banheiro. Ela não
tinha filho. Eu queria ficar lá, o resto da vida com ela. Mas não deu
certo. Ai, volta para o Xingu. Depois que vi minha mãe, meu pai, meus
irmãos, não tinha jeito de eu voltar. Ai, passou Dr. Leão,

''vamos embora Amati? Vamos voltar para o Rio de Janeiro?"


"Vou mais não.''

Fiquei aqui mesmo. Passou ano, ano, ano, a doença voltou. Ai, passou
esse outro Leão, Cláudio estava no Diauarum, morando lá. Ele
perguntou a um rapaz Kamaiurá,

"Cadê Amatiwanã?"

27
- Amatiwanã Trumai ( out. 1997)

73
"Amati está doente de novo"
"Ah, então vai lá avisa ele, que eu vou lá no Cachimbo. Sexta feira tô passando, ele
vai comigo."

Eu estava morando no Jacaré, o rapaz não quis ir lá me avisar.


Assim que eu voltei do Rio de Janeiro, meu pai deu um dgarro para
mim. É nosso costume, depois que fica doente, eles dão cigarro. Não é
todos os doentes, não."28

Se as pinturas corporais servem ao espírito para glorificar um corpo realizado, ou em


vias de realização, as escarificações fazem no corpo as marcas de sua incompletude, de
sua finalidade de tomar-se forte, saudável, belo. As escarificações são o exercício do
devir do corpo e do espírito. Nas anotações de Quain e complementares de Robert
Murphy, nenhuma observação sobre essa prática.

"Quando eu comecei a sentir febre, dava dor de barriga, também


diarréia, eu me lembro que eu arranhava, arranhava a testa para sarar,
arranhava todo o corpo, pedia para o meu pai: "arranha aqui". Ele
arranhava. "Me arranha o braço, me arranha a perna...", ele arranha. Eu
pedia meu pai arranhar, um em cima do outro. Meu pai não queria
arranhar, eu chorava, ai meu pai era obrigado. Eu falava de morte, meu
pai arranhava. Isso minha mãe que conta.

Muito embora eu não tenha tido a experiência de ver esse tipo de tratamento, na
minha primeira viagem a Canarana, um dia quando meu tornozelo inchou
desmesuradamente, Tatawari trouxe um instrumento triangular feito de cabaça, com
dentes pontiagudos de peixe cachorra, urna arranhadeira t 'at 'alakad. Era para
desfazer a dor que eu sentia. Me recusei ao tratamento. Não sei se Amati percebeu
meu receio, mas falou-me em seguida, desse arranhar que só os homens e os velhos
podem fazer,

Só eles que sabem arranhar. Os velhos. que sabem, rapaz não. Só para
fortificar, pra ficar forte. Sangra o corpo assim, (fez o gesto de riscar
com as mãos e com os braços o corpo) para ser mais disposto. Na luta,
eles arranham perna, o braço. É pra não tem cansaço. As mulheres, eles
arranham porque.... elas andam pra-lá-pra-cá-pra-lá-pra-cá...

Biblioteca
ª - Amatiwanã Trumai, outubro 1997
2 Nadir Gouvôa Kfourt
PUC/SP

74
Amati, talvez em função da doença, não passou o ritual de furar a orelha que para os
meninos representa uma das etapas para tornar-se adulto

Minha mãe queria que eu furasse orelha quando eu ficasse grande.


Depois, sabe como é, eu não queria mais. Furar tem de furar desde
pequeno. Depois de grande, eu já sofri, minha doença, não quero mais
sofrer. Aí eles concordaram

Quando é criança brinca ainda. Quando fica grandinho já aprende a


fazer arquinho, o pais ensina, o pessoal que sabe fazer cesta, aprende
com o mais velho. Aí depois coloca rapaz para fica adulto. Fica muito
tempo, os homem fica um ano, dois anos, fica isolado no quarto, preso,
pode aprender muitas coisa, as pessoas que sabem vão ensinando.
Mesma coisa mulher, depois da primeira menstruação aprende a fazer
trançado, rede, fiar algodão, fazer esteira.

O mundo sobrenatural está presente em vários momentos, não apenas nas dificuldades.
Amati fala do nascirii.ento de seu pririi.eiro filho, de maneira singular. Na gestação, o pai
fica de resguardo, faz a couvade, sentindo as mesmas dores que sua mulher e depois
repousa. Eles estavam morando no Diauarum.

Quando Tatá pariu lá no Diauarum, eu peguei a rede, fui lavar no rio. Eu


estou ali lavando sangue. Ouvi um barulho, rum, rum. Ai, fui falar com
meu pai: será sucuri? será peixe? Nós, quando a mulher tem uma
criança, ficamos de resguardo: o cheiro do sangue atrai muito os bichos.
Vamos lá, disse meu pai, você sobe no pau, fica quieto, não mexe. Ai,
saiu da água um cascudo, pulou na pedra. Ele pegou a vara, mexeu no
cascudo: não era cascudo, era pedra. A pedra borbulhou, sumiu.
Amanhã nós vamos lá. Chegou na praia, o pai acendeu um cigarro
grande, fumou, fumou, fumou. "Tá vendo pai?" Espera, disse o pai. Ele
pegou um segundo cigarro, fumou, fumou, fumou. Nisso a água fez um
barulho assim de pressão, aparece panela enorme! A tampa voou na
pedra. Saiu primeiro a onça preta, a fêmea, a pintada, a fêmea, a parda,
os tipos completos de onça, todas elas ali. O pai fumou, fumou. Elas
vieram onça mesmo, rondaram, rodaram. Então o pai falou, "eu sou seu
dono" e elas foram indo, entrando na panela. A panela sumiu na água.
Eles foram embora. Aí, o pai falou, "nós vamos voltar lá. Você tem que
fazer o que eu fizer. O pai pegou o arco, a flecha, o peixe. Não, a
espingarda. Eu peguei um vinte e dois. Chegamos na praia, o pai fumou,

75
fumou, fumou. Agora tem de ficar do jeito de criança engatinhando,
com as mãos atrás do pescoço, na areia, bem de frente assim: o peixe e a
arma. Ai, vem as onça, rum, rum (imitando barulho de onça). Mas antes,
o pai perguntou: "Você num fez sexo hoje?" Não! "Nem ontem? Não!
"Então tá bom." Aí vem a onça, veio, dá a volta e pula em cima de você,
para atacar. Você só sente ela apertar por dentro, ela penetra você. Aí
quando você vê, já está na aldeia Suyá! Mas você não sente mexer. Você
fica lá. Ai eu perguntei o meu pai. "Como é isso? É onça de verdade?
"Não!" "Mas eu pensei que ela tinha um buraco na bunda que
passava... " Não, é só couro, é onça dos antigos, só couro, é sempre
couro. Meu pai pegou uma vara e cutucou uma das pernas e, paf, ela
caiu. Você vê assim a costura dela aqui no meio" Amati aponta para o
meio do seu corpo, " só que dentro tem algodão e formiga ... Você sente
macio e uns formigamentos, mas não machuca. É só isso que tem
dentro, algodão e formiga. Aí outro dia esqueci a onça, passei na aldeia
e estava o pai todo pintado. Eu falei, "Chegou pai?" "É, amanhã nós
vamos lá na praia, vamos, vamos lá no Ipavu. "Lagoa Ipavu? Mas é
longe!" "Não. Nós não fomos nos Suyá?" "Mas os Suyá é perto!"
Cedinho eles pegaram canoa. Chegaram lá, mesma coisa: o pai fumou,
fumou, na metade do 2º cigarro, ouviu barulho feito vidro quebrando.
Foram chegando, mas igual, igual a de verdade. Passa assim em volta e
pula. Você só sente aquela coisa por dentro apertando, mas é macio. E
você não sente, mas já tá no Diauarum, no Ipavu. É assim que os
antigos faziam. É que nem televisão, você vê, mas ninguém te vê. Os
antigos faziam isso para atacar as aldeias.

O existência no limite do desaparecimento está presente em muitas narrativas, onde,


os Trumai, os "verdadeiros" Trumai, os "puro" de antigamente, que viviam entre os
animais da água e eram valentes guerreiro's, desapareceram; ou, no tempo nostálgico
em que eles eram muito numerosos.

"Esses índios andavam por toda a lagoa. Eles procuravam alimentação


para comer só mergulhando. Faz tempo, não tinha ferro para fazer flecha
para pegar tracajá, os homens mergulhavam. Qualquer lagoa estranha
assim eles conversavam com os espíritos para eles não mexerem. Eles
faziam preparação para ter fôlego. O tratamento deles era com fumaça:
hoje um pouco, até eles agüentarem. Muita gente não acredita, num é?
Mas o pessoal Kuikuru já viu, eles acreditam. Os antigos sabiam muita
coisa. Tem dia eu fico pensando. Qualquer lugar que desmata o mato,
você vê cerâmica.... Antigamente existiam muitos índios ... Quando eu

76
estava no hospital em São Paulo me perguntaram, é verdade que os
Trumai mergulhava? Como é que Trumai pegava tracajá na água?

Um dia, isso aí aconteceu lá no Jacaré, diz que o Awardat, Trumai né?


entrou lá pra pegar tracajá, mas ele ficou preso. Como esse Trumai tinha
muito fôlego, os homem que saíram perguntaram: cadê fulano? Ele está
preso lá embaixo, jacaré pegou ele. "Vamos esperar. Se ele escapar, tudo
bem. Senão escapar, vai morrer." Esperam, esperaram, até que ele,
escapou. Agora não mais, não tem mais Trumai!

Ao colocar as falas de Amati no centro desse trabalho, tive a intenção de realçar suas
narrativas como fonte de conhecimento de sua própria história. Nas narrativas desse
capítulo, ele mostra sua participação ativa na vida Trumai. Embora doente, não se
furta a intervir nos destinos de seu povo. É assim que Galvão deu-nos notícias de
estar ele liderando o grupo, quando seu pai ainda era vivo. Suas falas mostram seu
diálogo contínuo com a memória de seu pai e seu avô. A já assinalada importância
dos conflitos com os Kamaiurá e outros índios do Ato Xingu. Mostram como ele
sublinha a diversidade Trumai, ao mesmo tempo que se iguala, como Trumai, aos
outros povos do complexo cultural xinguano e, caracteriza as constantes mudanças
dos Trumai como traço cultural São notórias suas críticas aos brancos, embora
relevem ambigüidade de sentimentos em relação aos irmãos Villas Boas. Sua doença
é colocada por ele de maneira complexa, um misto de forte elo com os costumes
tradicionais naquilo que eles nos indicam na morte a ação de inimigos, mas também,
como a conseqüência do contato e das doenças que se propagaram no Parque a partir
de então.

77
3
O PODER DO SOBRENATURAL

78
3.1. O Pensamento Mítico De Amati

O capítulo se desenvolve em tomo de narrativas do mundo sobrenatural. A fala de


Amati resguarda a sua principalidade. Comentários ou esclarecimentos e mitos
semelhantes produzidos por outros povos, servem de referência. Alguns mitos
escolhidos se reportam aos seus quadros, que serão objeto de análise posterior. As
narrativas foram agrupadas a partir da palavra de Amati em três segmentos que
reúnem mitos de criação da vida e os feitos de Sol e Lua; a intervenção de outros
heróis com poderes semelhantes aos poderes da natureza, e mitos ligados às relações
entre homens e mulheres; mitos e rituais dos poderes sobrenaturais do pajé e, por
último, o mito e ritual do Jawari, cuja interpretação parte do binômio conformidade
e diversidade cultural

Nas narrativas de Amati, a vida transcende os limites humanos, em tempos


primordiais quando tudo era escuro e a luz atributo do gavião.

A criação do homem Trumai acontece quando Mavutsinin criou Awalanaxe Kute,


um ser que vivia na água e se assemelhava mais ao peixe que ao homem. O criador
diante da criatura sente-se insatisfeito com sua forma e decidi transforma-la.
Mavutsinin prepara um anzol feito de fumo e depois de pescar o homem -peixe,
modela seu corpo na forma de um Trumai.(Bue11Quain&Murphy:l955:74) Coisa
semelhante acontece quando Lua é engolido por um grande peixe.

Isso aí foi o começo. Na história, o peixe enorme tinha engolido Lua. O


irmão Sol fica a noite toda pescando, pescando, até que ele encontrou
esse peixe. Pescou. Abre sua barriga e lá dentro encontra a espinha do
irmão. Ele pega tudo e cobre com folhas, Lua volta a viver novamente.
Eles falam que naquele tempo, muito tempo, muitos anos, anos, anos
atrás, o índio vivia no escuro.

O mundo acontece nos primórdios desse tempo sem luz, quando o gavião dono da
luz sobrevoando o céu, carregava consigo a luz para onde fosse. Era sempre noite e

79
dificil a pescaria. Nesse tempo, vivem na superficie os seres anões que com a luz
fogem para uma vida subterrânea e aquática:

Os Kajaú moravam debaixo da terra e moram para baixo, sempre em


direção norte, para onde vão os rios da bacia do Amazonas

Os Kajaú de Amati, pode-se supor de origem amazônica, como o povo antigo de


Mawayaka dos Kamaiurá e o neunê-kumã dos Mehinaku, são os seres que se
transformaram com a chegada da luz. No ritual de iniciação Kamaiurá eles
correspondem, para Etienne Samain, ao "gesto primitivo que permite "nascer
Kamaiurá adulto". Sol e Lua fazem duas pombas de cera e colocam dentro de suas
barrigas algumas piranhas. Em seguida dão às pombas duas cuias com as raízes que
elas vomitam com as piranhas sobre a aldeia de Mawayaka, provocando o
transbordamento das águas e a morte de todos da aldeia. Mawayaka, o herói desse
povo, continua vagando por um tempo até tornar-se "bicho", mamaé. Samain
conclui na morte do povo de Mawayaka, o ato necessário ao nascimento simbólico
da sociedade Kamaiurá.(1991:106) Versão semelhante de Pedro, filho de Amati,
conta que duas pombas vomitam a lagoa que se encontra perto do Morená e por isso
os índios bebem essa água para ficarem fortes e lutadores. Por detrás das palavras de
Pedro, as pombas são os ancestrais dos povos morando próximo ao Morená.

Os tempos mudam quando Sol e Lua passam a viver no Alto Xingu e roubam com
artimanha a luz do Gavião, criando a estabilidade do dia.

Veio essa invenção. Sol e Lua fazem armadilha com a massa de


mandioca, do jeito da anta, anta morta, para atrair esse pássaro poderoso,
para chamar o dia e o urubu descer. Mas Atlehá e Atetlpák (Sol e Lua)
ficaram dentro dessa massa. Anta ajuda a pegar o urubu. Veio saracura,
saracura atendeu, ajudou eles também. Até que chegou o todo poderoso,
eles raspam a cabeça dele na pedra, ai surgiu o sol. Antes de sol e lua
irem embora, eles fàlam: "fomos embora daqui da terra, mas vocês vão
nos ver sempre." É isso que nós acreditamos.

Uma versão de Nituari mais detalhada, foi registrada por Aurore Monod Becquelin.
O que segue é um resumo que traduzi do original.

80

---- -- ~ - ---
Sol e Lua prepararam a mandioca e colocaram na carne de uma anta que eles tinham
preparado. Deixaram madurar. Juntam moscas, parasitas, larvas e Sol e Lua entram
dentro. Eles ficam assim escondidos, a imersos pela metade na água Quando o mau
cheiro fica muito forte, eles dizem às moscas para elas irem onde moram os
pássaros, Já em cima, dizer-lhes que tinha comida embaixo apodrecendo. Elas foram.
Mas, os pássaros não entendem bem o que dizem as moscas, mandam chamar o
xexéu que compreende a lingua de todos os povos. Mas o pássaro traduz que as
mangas estão apodrecendo. Eles chamam então um pássaro preto com as costas
vermelha e este traduz o que dizem as moscas acertadamente. Pegam o sal para dar
gosto à comida e descem. Primeiro os pequenos gaviões que tentam bicar os olhos
da massa, mas Sol e Lua abrem os olhos. Eles estão vivos! Os gaviões vão embora.
Chegam outros: o urubu do peito branco, um outro urubu de asas pequenas, as aves
da água de pernas finas. Com eles chega um pouco de luz. Eles bicam um pouco o
estômago e Sol e Lua pegam o urubu pelas pernas. Os pássaros voam. Sol e Lua
saem de dentro da massa, pegam uma pedra e juntam a cabeça ou as cabeças do
urubu C()m uma corda vermelha e esfregam na pedra. Eles ordenam aos saracuru
buscar aquele que faz a luz. Os dois saracuru voam e voltam com a pena do
papagaio. A luz vem, mas escurece muito rápido. Mandam de novo buscar outra
pena. Eles voltam com a pena do xexéu. A luz vem, mas se vai. Eles continuam
esfregando a cabeça de cada uma das aves na pedra. Vem a pena do recongo.
Experimentam pena de papagaio, arara, até que os saracuru voam lá em cima e
pegam a pena e, no momento que eles abrem o twavi (esteira para espremer a
mandioca), começa a clarear. É esta? Pergunta o Sol para Lua É, ele responde. Eles
esfregam a cabeça com força e começa a ficar claro, claro, claro, mais claro. A luz
não volta a escurecer. Então eles liberam o urubu e ele voa.(Monod Becquelin:
1975:53-56)

Com os gêmeos Sol e Lua, o mundo se alterna entre o dia e a noite. Os anões fogem
para a água com suas famílias, mulher e filhos. Os anões ainda podem ser vistos
pelos pajés que são também os únicos a criarem os gêmeos que quando nasciam
antigamente, um deles era sacrificado.

81
· "O pajé coloca neles colar de caramujo e esconde-os no pote chamado
urumash. Eles ficam lá guardados, não crescem, ficam sempre
pequenos."

É da rivalidade entre Mavutsinin e Onça que aparecem as primeiras criaturas. Numa


versão registrada por Orlando e Cláudio Villas Boas(l975:55), um dia, Mavutisinin
estava andando no mato e onça ia comê-lo. Ele então promete uma de suas filhas em
casamento caso fosse poupado. Onça aceita. Porém, nessa época Mavutsinin não
tinha filhas, nem filhos. Cumprindo a promessa, ele inicia seus trabalhos. Na floresta
recolhe troncos de madeira, carrega-os para casa e começa a esculpi-los. Depois de
muitas tentativas vãs, finalmente consegue talhar nos troncos a furma de oito
mulheres. Em seguida sopra, canta, até que elas começam a mexer-se. Elas estão
vivas, mas só se tornam verdadeiramente mulheres, depois do casamento. As irmãs
vão ao encontro da aldeia de Onça, mas depois de uma série de peripécias apenas
duas sobrevivem. Da relação de uma delas com Onça, nasce o Sol e Lua. Em outra
versão, nos mesmos autores, a mãe de Sol e Lua é uma concha. Depois dos gêmeos
nascerem, Mavutsinin pergunta a ela se é homem ou mulher. Sabendo que é homem,
ele carrega o filho consigo, enquanto a mulher retorna ao fundo da lagoa. Passamos
à narrativa de Amati:

Mavutsinin, Sol e Lua moram no Morená. Nessa história, tem a família


do passarinho e de onça. O filho onça casa com a mulher da família do
passarinho. Dai que surgiu a Lua e o Sol Muitos anos eu escutava essa
história. Para você entender melhor, a filha do passarinho, uraawor,
passarinho azul, casou com onça. A mulher do onça, já estava
barriguda, esperando os gêmeos. Quando ia completar, assim já perto do
nascimento, a sogra onça, pediu para a nora procurar piolho aí na cabeça
dela. A nora dela foi lá. Catou, catou. Mas ai, a sogra dela foi e soltou
peido. O peido da sogra dessa mulher era muito forte! Matou ela.
Morreu a mãe de Sol e Lua. Enterram a mulher. Mas antes, tiram os
meninos. O marido todo dia todo ia no tananá (túmulo). Otê , a formiga,
falou para esse marido, "é, eu sei que é triste, a gente dá um jeito de tirar
os meninos ali do buraco .. ""Como você vai tirar?" "Eu dou um jeito.. "
A formiga otê cavou e tirou as crianças do buraco. A onça que matou a
mãe, fugiu. Avó fugiu.

82
A maneira como é morta a mãe de Sol e Lua chama atenção por seu aspecto quase
anedótico dentro de nossa maneira de pensar. Sobre isso, o mau cheiro do peido traz
a associação que fazem os povos entre os animais e propriedades que são para
Claude Lévi-Strauss (1985: 15)29 ao mesmo tempo objetivas, pelo valor de
experiência e, simbólicas. O cheiro não eqüivale à simples percepção sensorial, mas,
nesse caso, ao atributo que afasta e expressa repugnância.

A tia criou os dois meninos. Só que eles não sabiam que a tia não era
mãe deles. Os meninos cresceram lá, ficaram grandinhos, começam
fazer arco e flecha pequenos, matavam os pássaros. A tia aconselhava
"não, não mata, esse aqui é seu parente, seu vovô." Aí eles respondiam
"Não, isso aqui não, nós vamos comer." Eles comiam tudo que eles
matavam Um dia, eles foram visitar a plantação da avó deles. Eles
foram lá, foram indo, indo. Eles tiram amendoim do pé, aparece a perdiz
vovó, "ah!, vocês estão roubando .... " Esculhambou os meninos. Aí eles
pegaram essa velha aí e esfregam as costas dela, ela fica toda cheia de
terra nas costas, ela voava assim, caia. Ela com raiva começa a cantar....
"-o menino que não tem mãe ...."
Um deles pergunta para o outro o que a ave estava dizendo. Atetlpak
(lua), também não tinha entendido "É, também não ouvi direito". Eles
resolvem cercar a velha para escutar. Pegam a velha e enchem as costas
dela de barro. De novo ela solta a voz. Canta outra vez: "- os meninos
que não têm mãe ... "Um deles entende: "Ela está dizendo que nós não
temos mãe." Aí, eles mandam ela contar a história . Eles escutaram a
história:

"Sua mãe morreu, foi morta pelo peido da sua avó. O peido matou a sua
mãe, na hora que ela estava catando o piolho na sogra." Eles não sabiam
de nada, se espantaram de saber que não tinham mãe. A perdiz explica
que a mulher que cuidava deles era tia, "irmã do passarinho... " Eles
foram embora. Entraram na casa e a tia pergunta o que aconteceu, se
houve briga. Eles respondem que ela está fingindo ser mãe deles. A tia
se espanta: "Quem contou?" Eles respondem que foi a avó perdiz..

29 - O mesmo autor fez complexas associações entre relações oral e anal, o ciúme e a qualidade de certos
animais, para falar da cerâmica e wn combate cósmico entre os animais do céu e da água. Porém,
preferimos adotar uma atitude mais simples, também semelhante a desse autor. ( Claude Lévi-Straus:
1985: 66-79)

83
Sol e Lua decidem matar a avó. De manhã cedo eles combinam de ir.
Para ninguém chegar na casa dela, ela plantou muito espinho em volta
da casa. Eles andaram, andaram, chegaram perto: "É aqui?" "acho que é
aqui.. " Eles se disfarçam e se transformam primeiro em calango. Vão lá
perto da casa, atrás da casa.

Em seguida, eles se transformam em crianças pequenas e entram na casa. Lua vai


primeiro e a avó pega ele no colo. Ele começa a pular, pular.

Depois ele desce, vai o outro irmão. Como eles já tinham combinado, o
menino pisa no estômago e mata a velha. Morreu.

Depois de vingarem a morte da mãe, os meninos decidem encontrar o lugar onde está
enterrada a mãe deles, no intuito de traze-la de volta à vida.

Eles perguntam onde era a aldeia da mãe para a tia e a formiga. Uma
delas fala, "o enterro de sua mãe está aqui." Todas as noites os meninos
vão lá chamar a mãe. Nada. Até um dia que ela começa responder.

Eles conversam e tentam reanimá-la Mas, por mais que se esforcem, a mãe não
consegue levantar. Um dia quando ela já estava quase conseguindo, eles refletem e
ponderaram que embora fosse bom para eles que a mãe voltasse, isso iria assustar as
pessoas, seus olhos já estavam deformados. Eles se decidem pelo certo, deixá-la
onde ela estava.
Mais tarde nos podemos encontra ela em outro lugar. Não aqui na
terra.

Nascimento e morte são dois termos constantes da narrativa. Nas peripécias dessa
morte e nascimento, a rivalidade entre as duas falill1ias. A ajuda dos animais é
fundamental para que Sol e Lua possam viver. A formiga cavando consegue salvar
a vida dos heróis, que no mito Bakairi são .salvos pelos outros filhos da sogra
assassina, Kuará e Zuapányua, onças com poderes de cura, que abrem a barriga de
Nimagakaniro e praticam a cesariana. A temática Bakairi é antropofágica e cruel.
Onça estava ausente, caçando, quando a sua mãe Mero mata a sua mulher. Quando
ele retorna, os médicos feiticeiros, claramente descritos nos poderes dos seus irmãos,
colocam os restos da mulher em duas cabaças e dão para ele que come sem suspeitar

84
o que acontecia Sabendo o que houve, furioso ele próprio procura matar a mãe, mas
não consegue, pois ela é o seu próprio sangue. O jaguar cria os dois meninos.
Ensina-lhes a usar o arco e a flecha, mas é a tia Ewald que pertencia ao grupo dos
Bakairi, conta o que fez Mero. Os meninos matam a avó. Mero não é enterrada, mas
queimada. Sol e Lua fazem uma fogueira que ainda hoje é visível no fogo da grande
nuvem de Magalhães. Nessa versão, os meninos também matam o pai. Pedem que
ele lhes fabrique flechas e depois, fincam as flechas no chão em círculo e sopram
(Steinen: 1940:478).

Derrotado o todo poderoso gavião, Sol e Lua fazem os rios, conquistam a água boa e
tantas outras coisas que existem hoje. Depois de tudo criado, eles voltam ao lugar de
onde vieram, e ai começa a existência humana atual, ainda habitada pelos
sobrenaturais do céu, águas, matos e florestas.

A Conquista Da Água Limpa

O desenho acima, Kutan, corresponde à· forma da libélula que os heróis


civilizadores Sol e Lua adotaram para conseguir a água limpa. 30 Amati nos conta
como isso sucedeu:

.IO - Esse grafismo tradicional feito por Amatiwanã é uma exceção em sua obra que se manifesta de
maneira figurativa. Ele antecede à narrativa do mito e só pode ser identificado a partir do relato.

85
t
"Waniwani e o irmão dele Yanamá moravam em frente do Morená,
onde viviam Sol e Lua, o avô deles Mavutisnin, Kanaretê e outras
pessoas. Sol e Lua não tinham rio naquela época, era água suja, suja. Ai,
as mulheres deles Kanutzcipé, duas sobrinhas dos Anu, reclamavam que
elas tomavam banho de água suja, enquanto o pessoal delas tinha banho
de água limpa. Então, Sol e Lua perguntaram onde fica esse lugar. As
duas mostram o rumo. Sol e Lua partem para procurar essa água. Mas
antes, eles consultaram Mavutsinin, fazem máscaras, uruá, kuarrá,
jakuikatú e levaram. Mavutsinin falou que eles tem também de levar o
sapo. Eles vão.
Essas águas estão em várias panelas que são de Kanutzcipé ou Kowou ..
Eles chegam lá nessa aldeia e são bem recebidos. O pessoal dos anu, os
sobrinhos, perguntam o que eles estão procurando:

- Fazer visitar. Parece que vocês tem água ai.


- Ih!! nós estamos pior que vocês
- O que vocês comem então?
- Ah, nós vamos longe para pescar! Só lá, a gente consegue pegar
peixe. Nós comemos peixe feio: pacú, peixe-elétrico..

Eles falaram só dos peixes que têm muita espinha. Sol e a Lua
respondem que não tem importância, eles podem comer assim mesmo.
Mas, alguns Anu da aldeia, os mais velhos, já sabiam o que eles queriam
e pensaram, "eles são sabidos". Então os Anu falaram para Sol e Lua
que eles iam pescar.

A casa secreta dos índios ficava bem no centro da aldeia. Era lá que
estavam as panelas com a água e também os Kut, os bichos grandes que
vivem nas águas. Para despistar, os Anu deram uma volta em volta da
casa dos homens. Sol e Lua ficaram desconfiados e pensaram, "onde
será que está essa água? Será que foram pescar mesmo?" E eles mesmos
respondem, "não, eles estão ali". Yã (Lua) falou ao seu irmão: "Você
está vendo aquela casa no centro?" É lá que tem água. Eu acho que os
homens estão lá. E para chegar lá, nós temos de primeiro nos
transformar." Então, um dos irmãos mandou o outro se transformar em
beija-flor, o pássaro que fica sempre onde estão essa panelas. O irmão se
transformou e entrou lá na casa secreta Mas o pessoal Kowou pensou
quando viu ele entrar, "isso não é beija flor, é Sol e Lua!" O beija flor
ficou batendo as asas na porta, sobrevoou várias panelas e saiu. Eles
tentaram agarrar ele mas não conseguiram. Quando ele voltou, o seu
irmão perguntou:

86
-E ai?
- Eles estão pescando lá mesmo, o pessoal está todo lá.
Então, o outro irmão se transformou em kutan e disse:
- Agora vou eu
Partiu. Na volta ele confirmou que a água estava ali mesmo
Depois disso, os Anu voltaram para as suas casas e levaram peixe para o
Sol e Lua. Mas os peixes tinham muita espinha. Sol e Lua colocaram
então garganta de walatu 31 para não se engasgarem. Depois de comerem,
se despediram e foram embora para a aldeia deles. Lá fizeram as
máscaras Kuruá, Kuahahá, Sarakura, máscaras de espírito. Quebraram
as panelas de água e destruiram os Kut e a água limpa surgiu.

Na conquista da água boa, a água está associada aos recipientes e ao povo que
esconde essa água na casa secreta dos homens. Tanto a mulher, quanto a cerâmica,
são menções veladas, aparentemente sem importância nas ações marcadas pelas
disputa entre povos. Mas, por detrás das ações, figura a busca, o roubo de mulheres,
o encontro entre o masculino e o feminino. A mitologia do Xingu transborda o
elemento água e, embora os mitos aqui não mencionem nem a agricultura, nem a
cerâmica propriamente ditas, o equihbrio ecológico entre estação das secas e das
chuvas, tornam compatíveis o manuseio do barro e da terra, como assinala Lévi-
Strauss para os povos da Amazônia.( 1985 :36)

Como A Lua Foi Engolida Por Yakunaum E Perdeu Um Dedo

Depois que Sol e Lua quebraram as panelas e destruíram os Kut, cada


peixe veio trazendo rio, chiuuuu. Atlehá o Sol, se transformou em
cabaça e Atetlpak em coco. Quando o rio se acalmou, se espalhou todo,
cada peixe do rio, tracajá, cágado também, vinham acompanhando as
águas. Foi assim que existiu o rio. Agora tem água que não acaba mais ...
No meio do caminho estava o Morená e o Sol foi o primeiro a chegar lá.
Ele voltou de novo a ser pessoa. Mas Lua se perdeu e foi engolido por
um peixe. Quando Sol chegou, o avô perguntou pelo o irmão e ele
respondeu que tinha se perdido. Como o avô deles era um sábio, ele foi
carregar massa de mandioca e jogou na água para que ela se transformar
em pedras e fez uma barragem no Morená para esse peixe grande não
passar. O pessoal fez armadilha, ia pescar de flecha mas nada de

31
- walatu- sapo preto grande, associado 'aquele que cura

87
encontrar o· irmão do sol. Até que um dia, Atlehá encontrou xiiXff
(ruirui) vocês chamam a pororoca, o peixinho, nós chamamos também,
hortl owak. Ele ia flechar quando esse peixe falou:
- Ô meu neto, não me mata. Você está precisando de ajuda?
- Meu irmão se perdeu, respondeu o Sol
hortl owak disse:
- Olha, aquele que engoliu está lá no fundo do rio. O seu irmão foi
engolido pelo peixe Yakunaum, Yakunau.
- Como eu poderia pegar esse peixe?
- Isso é muito simples. Você faz um cigarro primeiro. Esse Yakunau
depois que almoça ele sempre gosta de fumar. Você faz um cigarro e
anzol.
- E o anzol como eu vou conseguir?
- Você pega taperá, a andorinha preta do campo, passa uma peninha no
nariz dela e na hora que ela espirrar, sai o anzol. Ai, você pega o anzol
dela.
O Sol fez o que o peixe mandou e foi para a beira do rio. Hortl owak
levou cigarro e disse:
- Eu vou fumar, quando ele sentir o cheiro você puxa a linha e pega ele.
Ai foram, o Sol e o ajudante fumando cigarro. Assim que eles chegaram
lá, Yakunaum sentiu o cheiro do fumo, fez hum, hum, e perguntou:
- De onde eu estou sentindo o cheiro do cigarro?
O peixinho respondeu
- Sou eu que estou fumando
O peixe pede uma tragada para desfazer sua minha barriga que estava
muito cheia. O peixe concorda. Conforme o combinado, na hora que o
peixão estava botando o cigarro na boca, hotl owak deu sinal para o Sol
que puxou e fisgou o peixe. O peixinho se mandou, é claro!
Atlehá então arrastou Yakanaum para o seco e abriu a barriga dele.
Retirou todos os ossos do irmão e foi colocando-os no lugar. Pegou as
folhas de fidaxusak ou ik'adaxudak3 2 • Deixou um tempinho enquanto
Lua estava deitado. Depois, ele tirou as folhas, pegou um mosquitinho
bem pequenininho, nós chamamos de meyot e colocou no nariz dele. Ele
espirrou e acordou sem saber o que se passava.
- Ué? Onde eu estou?
O Sol explicou que foi engolido pelo peixe. O único problema é que Lua
tinha seis dedos, perdeu um. É por isso que nós temos 5 dedos.
Inandé. (Acabou a estória)

32
planta usada pelos homens na resta de Tawaranã para espantar os espíritos.

88
Convivem lado a lado de Sol e Lua, Waniwani, sobrenatural cuja morada está no
firmamento. Para chegar à sua aldeia é preciso primeiro atravessar a Via Láctea que
é a morada permanente do Onça e cujo caminho ladeado de várias onças, torna-se
perigoso. Depois de atravessá-lo, o morto chega na aldeia onde residem muitos
Trumai e abundam os peixes que com o veneno de tawasi, eles pescam
coletivamente.(Buell Quain&Murphy: 1955:73) Waniwani é também aquele que
roubou a mulher do Sol para viver com ela em sua aldeia.

Para entender essa família, de um lado do rio morava Mavutsinin, Sol,


Lua, a sobrinha Iamanaí. Do outro lado do rio, os primos do Sol e Lua:
Waniwani Ianamá. Waniwani também fazia muitos trabalhos, sabia
fazer arara...Mas, acontece o roubo da mulher de Atelpak . Waniwani
roubou a mulher do Sol. Eles então colocam muitas ilhas nos rios para
Sol e Lua perderem o caminho. Um dia, enquanto Sol e Lua estavam
trabalhando na casa dos pássaros, Waniwani e Ianamá foram lá e
roubaram a mulher deles. O papagaio falou "roubaram minha tia!" Lua
escutando aquilo perguntou: O que você está gritando ai? E o papagaio
respondeu de novo: "O pessoal levou nossa mulher!"

Sol e Lua pegam a canoa e vão atrás da mulher. Fazem um funil com
uma folha, colocam cuspe. Lá embaixo, encontram uma grande ilha, um
rio com dois braços. Fazem um outro funil para saber como chegar nesse
lugar onde estão as mulheres. Elas estavam lá, dando risada com
lanamá. Então eles mandam mutuca, até que uma delas morde debaixo
do seio e pega um pouco de sangue dela. Eles vão embora. Eles mudam
do Morená e desse sangue fazem mulher de novo. Ficaram lá.

O mito refere as rivalidade entre as famílias de Sol e Lua e Waniwani com dois
motes principais: de um lado, a disputa que iguala os dois em termos de poderes de
criação; e, de outro lado, a disputa pelas mulheres.

Kawixu, sobrenatural meteorológico correspondendo à chuva, embora citado por


Quain (idem: 1955: 72-74) como importante e temido deus dos Trumai, não é
comentado por Amati, que se refere ao sobrenatural meteorológico Walátê e Amesh,
que dominam trovões e raios e controlam a eficácia do trabalho e a sexual. Os mitos
são apresentados juntos, na seqüência original em que foram ditos. Eles parecem

89
manter relações, embora o primeiro apareça de maneira interrompida e de difícil
decifração.

Como Sol E Lua Conseguem O Machado De Pedra Para Suas


Mulheres

Parece que o sol e a lua não têm vontade de fazer sexo com mulher.
Mulher deles reclama e manda eles irem na casa do avô delas. Lá na
casa do meu avô que tem isso aí, vocês sempre vão ter vontade.... " Sol e
lua decidiram tentar. Eles consultam Mavutsinin que confirma. Eles vão
lá na casa do Walatê, esse Walatê gosta de sexo. Trabalha um
pouquinho, já tem vontade. Vai fazer negócio, já tem vontade. Sol e lua
estão lá esperando, esperando. Ele chegou jogando lenha,
-Ô velha..
A mulher escutou...
- Prepara ai, abre a perna logo, não estou agüentando não
A mulher do calango, ela falou assim,
- Nossos netos estão aqui
Eles entraram e explicam porque vieram. Eles conversam, depois vão
embora..

Chega amanhã, amanhã, a mulher reclama que está cansada de tirar


lenha e manda eles irem falar com o dono do machado de pedra. Eles
ficaram com vergonha da mulher. Eles foram lá perguntar pra
Mavutsinin que respondeu que existia esse lugar, só que esse cara é
perigoso. Tem que levar arco, aquele arco de assobio, flecha e pica-pau.
De manhã eles foram embora. Foram até chegar nesse lugar. Mavutsinin
falou também, "vocês tem que contar piada que vai morrer de dar risada.
Vocês contam bastante piada até que ele vai ri até desmaiar. Primeiro,
segundo, terceiro desmaio assim, vocês caem fora ... " "Tá" Chegaram lá
na casa desse Amesh. Demorou veio ele, BÁ!( a casa dele é toda
quebrada, pedaço de pau por todo canto) Chega Tupã, cumprimenta, eles
começam a contar piada

- É, nós viemos aqui visitar você. Meu avô mandou visitar, "meu primo
tá lá rachando lenha só para ele, namorada.. " Contaram mais piada.
Dizem que ele ria e queria saber mais "O que mais que ele falou?
"Falou que você tem uma vida boa, mulherada, você está aí arrancando
os orkôs das mulheres." "Ah, ele falou isso? Caiu na gargalhada." Cada
vez que eles contavam uma piada, ele desmaiava. Ai, o irmão pegou o

90
machado. Correu, correu, correu. Quando eles estão bem no meio da
estrada, Amesh acordou, a mulher dele conta que os netos já foram. Ele
foi atrás jogando relâmpago. Então, Sol e Lua se escondem no buraco do
pica-pau. Com arco e flecha eles espantam Tupã, e vão embora. Eles
conseguiram machado. Só Mavutsinin é que não anda. Fica lá mesmo.

Os Matipú - Nahukuá consideram Enutikía e seus parentes, Amarí (possivelmente a


estrela d'alva) e Jébe (a nuvem) entidades malignas pelo perigo do raio e da
ventania. Os Trumai também tinham esse pânico e mostravam-se temerosos das
chuvas que se transformam em tempestade quando o poderoso Kawixu era
enfrentado. Ao contrário deles, os Waurá e Mehinaku, vêm esses sobrenaturais
como benignos porque trouxeram a chuva no tempo em que a terra era seca,
possibilitando a colheita. (Maria Heloisa Fénelon Costa: 1987:252-3). Nem os
Trumai, nem os Matipú são ceramistas, atividade limitada às mulheres dos povos
aruak, principalmente às Waurá.

Durante a estação das chuvas, acontecem as festas para Jakui, ao mesmo tempo, o
espírito e as flautas sagradas que não podem ser vistas pelas mulheres.

Jakui

Jakui tem várias histórias. Há muitos anos, haviam três aldeias Waurá.
Mais para lá outra, mais para lá, outra. O pessoal gostava de pescar a
noite usando fogo para pescar. Eles foram, foram até chegar nesse lugar.
Pegaram uma pessoa lá em cima, na segunda aldeia ela estava tocando
flauta jakui. De lá de cima mesmo eles começam a pescar. Pescam,
pescam, encontram um peixe, pintado. Eles vão atrás com a flecha,
acompanhando até chegar um lugar de água suja. Lá, o pintado se
esconde. Eles continuam, mas sem perceber, eles já estavam indo para
outro mundo, lugar desconhecido, sem perceber, eles já estavam nesse
mundo. De repente, eles ouviram tocar jakui debaixo da água. O pessoal
da aldeia fala para eles, "volta! Volta! ·
Eles escutam e perguntam:
- Onde nós estamos?
O fogo foi acabando, eles quebram lenha. Eles encostam. Vêm um pau e
o pau grita:
AI!
Eles querem fazer xixi, mas água fala:

91
- Vocês estão fazendo xixi em cima de mim!
Eles contam que então encontram um porto estranho, o lugar das
pessoas que já morreram.
- Vamos subir, vamos nessa aldeia
O espírito levou eles para essa aldeia grande. Eles viram muitas pessoas
que cumprimentaram eles dizendo:
- Papai! Papai! Você trouxe presente para mim? Enfeite? Você não
está me reconhecendo? Eu sou a gaivota que você criou!
Os animais que eles tinham criado chamavam eles de pai. Acaba a festa,
o periquito vai levar eles no porto. Aponta assim e eles chegam na
aldeia. Conseguiram voltar. O pessoal pergunta:
Vocês estavam lá em cima? Um risco no céu estava andando no
caminho do céu.
Eles ouviram contar da festa de furar orelha

Tem outra história. É assim.

Existiam os Kamakuaká. Do outro lado da aldeia do Sol, eles também


furavam a orelha. Sol e Lua não gostaram. Fizeram Sucuri muito grande
para comer os Kamakuaká. Comiam só gente. Mas tinham poucos
kamakuaká. O pessoal pensou:
- O que nós vamos fazer?
-Temos que fugir dessa cobra
A casa deles era de pedra. Eles pediram para a irmã torrar milho para
atrair o espírito. O cheiro se espalhou e os piriquitos começaram a abrir
buraco na pedra. Eles cavam buraco para os Kamakuaká fugirem. Um
deles diz assim para a irmã:
- Assim que a cobra grande vier, você pega essa concha, amola bem e
vai cortando essa cobra. Os piriquitos acabam de fazer o buraco, os
Kamakuaká sobem no teto. Jogam uma corda cheia de nos e flechas. Aí,
chega a cobra grande. Eles começam a subir. A irmã continua lá no
buraco. Ela corta o rabo da sucuri, vai cortando, até que ela corta toda a
sucuri.
Então, os Kamakuaká dizem para a irmã:
Se você precisar de água, é só chamar

Quando ela precisou de água, ela cantou com a cigarra. Eles ficaram
sabendo que a sucuri grande morreu toda. Os kamakuaká voltam e se
tornam espíritos. Nessa casa que os Kamakuaká moram tem uma panela
com desenho de sucuri, macaco, mutum, tucano. Fica perto do Batovi.

92
Esses dois mitos que Amati associa às flautas Jakui, fàzem furtes alusões a um
sobrenatural poderoso vindo da água. No primeiro ele toma o aspecto do pintado que
sendo seguido conduz os pescadores ao outro mundo, ao mundo dos mortos que fica
em algum lugar no céu. E, no segundo, da cobra sucuri feita para devorar os
Kamakuàká com os poderes de Sol e Lua. Os dois mitos colocam o ritual de
iniciação dos meninos como marco dos acontecimentos mágicos e da proximidade
com o mundo dos mortos nas ameaças dos poderes aniquiladores da cobra pela
devoração e, no distanciamento do mundo usual, pela ação de um peixe que se
esconde na lama sem que eles percebam a passagem para o mundo dos espiritos. A
entrada no sobrenatural pontuada por uma natureza animada se manifesta com
queixas contra das ações humanas sobre ela, e, ao mesmo tempo, pela paternidade
reconhecida a esses homens, pelos espiritos animais. No segundo mito é clara a
relação entre a cobra da água e poderes inimigos e o estratagema executado pela
irmã que mata a cobra pelo esquartejamento, no único mito de Amati onde uma
mulher, embora conduzida pelos heróis, é responsável pelo feito heróico. Num mito
Waurá, a origem da cerâmica está ligada ao sobrenatural cobra que transporta vários
tipos de recipientes e finalmente chega a um manancial de argila e ali se instala. Para
retirar a argila desse lugar, os cuidados devem ser redobrados para não despertar
essa cobra que devora quem extrai a argila. (idem:38) A associação da água com o
céu, a iniciação masculina, a desorientação que leva à aldeia de Waniwani, trajeto
que os aqui embaixo reconhecem no desenho que foi traçado no céu, leva a supor
nesse sinal aéreo, a presença do arco iris da pacificação da guerra ou o perigoso e
maligno espirito do fundo das águas que, assinala Lévi-Strauss, reverbera o
sobrenatural cobra das águas, iniciadora da cerâmica dos povos amazônicos,
aludindo o combate cósmico que essa atividade envolve entre o céu e a água
(idem:42).

Nituari contava uma outra história de Jakui que gira em tomo da proibição das
flautas às mulheres:

No Tempo Que Kuyamaru E A Irmã Eram Donas Da Flauta Jakui

"Existiam duas meninas, duas Kuyamaru, as duas têm o mesmo nome.


Essas irmãs tocavam jakui, elas sabiam tocar as cantigas das flautas.

93
Quem sabe tocar essa flauta, toca durante a noite. No dia seguinte, o
dono da flautajakui faz motap (comida) peixe, beiju, mingau e leva no
centro da aldeia para os flautistas comerem. Foi ai que descobriram.
Chegou cedo, nada de ninguém aparecer. Ai o dono do jakui foi lá
perguntar, quem tocou a flauta e os homens que sabiam tocar a flauta
responderam: eu não fui, eu não fui. O dono do Jakui pensou, quem
estava tocando essa flauta ....

Mas, as meninas tocavam a flauta e dormiam pela manhã até tarde. O


irmão desconfiou. De noite ele ficou vigiando. Elas estavam enfeitadas
como os homens, com a mesma pintura, igual aos homens. No outro dia,
o irmão viu a mancha de carvão da pintura assim atrás da orelha da irmã
e contou para os homens que a irmã é que estava tocando a flauta. Ai
eles pensaram, o que nós vamos fazer com elas?

- Vamos castigar ela, vamos fazer sexo com ela

Depois pensaram, não. Vamos enterrar ela viva. Os homens fizeram


festa. Primeiro cavaram um buraco. Só que, a mãe de Kuyamaru
arrumou uma conchinha assim muito pequena, para ninguém perceber.
Na hora da dança, quando foram enterrar as irmãs, ela colocou a
conchinha debaixo do uluri das meninas, colocou o uarasha. Eles
enterraram elas. Morreram. Mas, como tinham combinado com a mãe,
elas começaram a cavar um pouco debaixo da terra. Só que uma, o sapo ·
comeu, morreu mesmo. A outra escapou e fugiu para uma outra aldeia
onde morava um tio dela.

Jakui representa um espírito. Quando os homens vão pescar eles tocam a


flauta jakui. Eles tem direito de fazer o que quiserem com as mulheres,
de qualquer tribo. O marido não pode falar nada.
A interdição das flautas às mulheres não existe apenas no Alto-Xingu. O trabalho de
Berta Ribeiro sobre os índios do Alto rio Negro, se reporta aos rituais de iniciação
masculina devotados ao herói civilizador Kowai entre os grupos de lingua Tukano e,
de outro ritual, da maturação de frutas e cocos entre os índios do Orenoco, chamado
ritual do jurupari, que representa o detentor das flautas sagradas proibidas às
mulheres dos mdios dos rios Uapés e lçana. Ribeiro cita inúmeras fontes que
relacionam esses tipo de mito ao pajé.(B. Ribeiro: 1995:23) Egon Schaden
comparou-os à " revolução social" destinada à aterrorizar as mulheres e explicar o

94
domínio político dos homens e a instituição da casa dos homens.(idem:35) De
manerra semelhante, Robert Murphy registrou entre os Munduruku a relação
antagônica entre poder femínino e masculino no mito de três mulheres que ouvem o
som das flautas e apanham três peixes que se transformam nas flautas. Com a posse
das flautas elas exercem o poder sobre os homens. Porém, o poder feminino é frágil
já que as flautas se alímentavam de carne, e os homens permaneciam os únicos
caçadores. Sem poder alimentá-las, as mulheres devolvem as flautas e, doravante
ficam proibidas de vê-las. A simbologia sexual do mito apresenta um confronto
violento entre o feminino e o masculino, oposição de gênero que permeia as
dimensões individuais e coletivas e nos reenvia ao antagonismo entre os grupos
com proeminente poder feminino, em grande parte associados aos grupos ceramista,
e aqueles com poder masculino hegemônico quem sabe, pode se supor, responsável
pelas conquistas das casas sagradas, a água boa e os potes que esses últimos
conquistam auxiliados pelos espíritos e máscaras. Suposição, e não afirmativa, que
brotou influenciada pelas palavras de Amati, que por sua vez, trazem a visão parcial
desses mitos Waurá de complexa elaboração.

Outros mitos anunciam a disputa de poder entre os sexos.

Três mitos apresentados em seguida, YAMURIKUMÃ, AKAIKUNI E O COLAR


QUE VIROU ONÇA, foram interpretados por Amati em seus quadros. As exposições
seguintes, restringem-se às narrativas. A relação entre eles e os quadros será apresentada
no capítulo sobre sua pintura.

Yamurikumã

O mito de Yamurikumã, ou na canção por ve.zes; Yamor ikuma, pode ser considerado
como a contra partida do mito Jakui, e a tentativa de reverter o poder dos homens sobre
as mulheres, uma revolta feminina. No ritual, as mulheres se apropriam dos caracteres
masculinos usando diademas de penas e pinturas; se enfrentam como os rapazes em
lutas cerimoniais e abandonam os caracteres femininos .rejeitando as crianças e se
desfazendo do uluri. Apenas uma mulher mais velha canta as canções da flauta Jakui

95
que, sendo perigosas para as mulheres, podem ser interpretadas por ela que não corre
mais certos riscos de violência sexual.

Os homens estavam fazendo festa de furar orelha. Nessa festa, os


meninos ficam de repouso e o homem que furou a orelha dos meninos
diz a eles : vocês não podem sair agora. Eles só comem passarinho,
quando a mulher passa eles flecham a mulher. Passa muito tempo até
eles poderem comer peixe outra vez.

O mito começa quando os homens vão pescar.

Eles demoraram muito, um mês, dois meses, três ... Não voltavam. As
mulheres estavam lá esperando, sem comer nada, só esperando. Então,
elas combinaram: nossos maridos não vêm, vamos nos transformar em
bicho. Elas começaram a dançar, deixaram os meninos. Um homem que
tinha ficado na aldeia se preocupou, foi avisar os pescadores. Chegando
lá falou com eles que as mulheres estavam indo embora para o mato, se
transformando em bicho. Eles voltaram. As mulheres já estavam no
caminho, indo embora. Eles tentavam agarrar elas, elas sumiam,
apareciam em outro lugar, sumiam outra vez. Foram embora, subiram
esse no.

Nas versões Kalapalo e Kuikuro de Yamurikumã, a transformação das mulheres em


bicho é uma reação à transformação dos homens que se afastando demasiado de suas
funções de alimentarem as mulheres e os jovens recém saídos da reclusão, tornam-se
porcos selvagens e é interpretado como a revolta ao poder estabelecido. Aurore
Monod Becquelin, partindo de versões Trumai de Nituari, conclui sobre o amor e o
temor da solidão (1987:131-32) Mas, aceitando a sugestão de C. Junqueira que
considera o mito como modelo de comportamento que utiliza o recurso de uma
narrativa do que é errado e condenável, para mostrar o que é o certo, (1999:150-158)
o antagonismo de Yamurikumã é também advertêrtcia de o que acontece quando
homens e mulheres fogem das suas categorias de gênero: os dois viram bichos,
mamaés. Esse é um aspecto do mito que mantém relações estreitas com as canções
do Jakui e do Jawari. Trabalhos mais específicos terão certamente a oportunidade de
tratá-lo de maneira mais profunda.

96
Ao tema dos antagonismos ou prerrogativás dos modelos masculino e feminino,
soma-se o da mulher que ameaça a sexualidade masculina. O mito da mulher sapo é
exemplar de um tempo em que os humanos eram animais e os animais gente. Um
homem se relaciona sexualmente com várias espécies e se apaixona por uma moça
que está em reclusão por já ter tido sua primeira menstruação. Na iniciação
feminina, a mulher tabu, como o rapaz em fase análoga, está proibida do ato sexual.
No rompimento dessa regra, sucede de sua vagina destruir o arakwen do homem.
Akaikuni não ouve os preceitos tradicionais e faz sexo com a iniciada mesmo assim.
Em seu gozo ele geme da dor que estraçalha seu arakwen. Ele então coloca seu
membro despedaçado em duas sacolas e parte para pedir ajuda aos ancestrais para
consertá-lo. O mito põe em contato o erotismo e os tabus sexuais.

Akaikuni

"A filha do sapo, nós Trumai chamamos ela de onmalktaketake, o que


quer dizer, olhos de caroço, o olho do sapo é cheio de carocinho assim.
Todo mundo queria namorar com ela, ela era muito bonita. Para
ninguém mexer nela, os índios antigamente faziam um cesto enorme
para mulher ficar lá dentro quando chegava a menstruação. A mulher
ficava prisioneira lá em cima no teto da casa, no cesto arukuru. Toda
vez que a mãe saia colocava ela lá pendurada. Um dia veio um rapaz,
era Akaikuni. Ele veio e encontrou ela sozinha, pulando, pulando ..
- Pode entrar.
Já que não tinha ninguém, ele entrou. Pegou a corda, desceu a menina
do cesto. Começou a conversar que queria casar com ela. A menina sapo
explicou,

- Eu tenho problema, senão eu mato você, você morre de tesão.


- Não, não morro não, não vou morrer.
- Morre.
- Como é que você sabe?
- Eu sei. Sou mulher sapo
Dizem que o homem tentou, tentou., até que a moça se entregou para
ele. Na hora que ele fez sexo com ela, ela tem a vagina que agarra, ele
começou a berrar, esticou o arakwen 33 dele: Ai, ai, ai

33
- o nome Trumai para saco de homem é iawtaf

97
Saiu muito sangue, saiu tripa quando ele estava gritando de prazer. A
mulher ficou com vergonha e levantou.
- E agora?
- Eu não falei para você? Agora, leva isso na cesta.
Ele fez a cesta, colocou aquele membro, o pênis no cesto. Levou dois
cestos. Ai a mulher sapo falou:
Você vai lá no meu avô, ele está pescando na lagoa. Você tenta falar
com os pássaros, os pombos, vê se eles fazem uma reza para você
voltar normal.

Arakuni foi embora. No meio do caminho, o passarinho que nós


chamamos tilauxá, igual ao pardal, rezou, rezou. Nada. Ele foi andando.
Mais para lá, ele encontrou o juriti, asulunipti, rezou, rezou, nada. Foi
no outro irmão dele, asulu rezou, nada. Continuou. Então alguém falou,
- Vai lá no meu avô.
Ele foi, foi, foi. Encontrou com Akutake, veio a garça, nós chamamos
toho, dasauek3 4• Juntaram todas as aves para curar ele. Nada de curar.
Até que eles falaram,
- Tenta falar com seu avô Tuiuiuíu, quem sabe ele tem resultado? Ele
foi. O Tuiuiuiu rezou, rezou, rezou. Conseguiu.

A proibição do tabu é ainda maiór pelo encanto da beleza atnlmída a proibição e seu
poder de "castrar" o homem. .Mas, nesse mito a transgressão não tem conseqüências
irremediáveis, não sucede o drama ou tragédia de uma masculinidade destruída. A
ameaça é momentânea e a interferência dos ancestrais e os poderes mágicos
solucionam a bom termo, recuperando a força e masculinidade de Akaikuni. O mito
foi narrado duas vezes por Amati. Na segunda vez ele acrescentou à narrativa
anterior o momento posterior, quando Akaikuni procura novas companheiras. Depois
de muitos relacionamentos ele encontra a onça que vai ajuda-lo a vencer e enganar o
pai onça nas provações pelas quais ele deve passar para vencer todos os parentes
onça e casar-se com ela.

O sangue da mulher menstruada é comumente tabu e o sexo, parte dos itens mais
importantes, senão o mais, das proibições dos iniciados homens e mulheres. O tabu

34
- No levantamento de nomes feito por Aurore B Monod, consta desauek para garça e o mais
semelhante a toho é pitoho que é dado ao bem-te-ví. (Monod, Aurore 8.- La Pratique Linguistique des

98
da menstruação, não é apenas relativo ao sangue, mas também ao cheiro. Também a
suspensão do sangue na gravidez, cria proibições de certas atividades, como a
cerâmica ou banhar-se no rio. O cheiro e o sangue atraem os peixes e os
sobrenaturais carnívoros como as onças. É o caso narrado por Arnati sobre a
gravidez de seu primeiro filho. Alguns mitos Mehinaku, fazem associações poéticas
com o sangue menstrual quando um morcego arranca o órgão sexual feminino para
colorir as aves com o seu sangue. Da mesma maneira que este sangue é associado a
ação de piranhas na barriga da mulher. (Fénelon Costa: idem:246) Na manifestação
desses fenômenos da natureza, as proibições alimentares também são fortes: o peixe
é substituído ou pela mandioca ou pelas aves; as mulheres devem manter-se longe
do Sol e tecer; os homens ingerem raízes e preparem-se para se tomarem bons
lutadores, além de aprenderem práticas artesanais e saberes ancestrais. Akaikuni é
também um poderoso mito da fertilidade que se espalha na criação de todas as
espécies. Ele "transa" com a "humanidade", deixando múltiplas formas de vida,
para a final encontrar a parceira onça O recorte entre a mulher proibida e a onça
permite esboçar o amadurecimento de um feminino que, embora felino e selvagem,
aprimora a astúcia de Akaikuni e realiza a complementaridade do casal.

O Colar Que Vira Onça

Uma moça em fase de reclusão usava um colar de concha. Ela não podia ver
ninguém, só o pai e a mãe. Um dia ela comenta com a mãe.

- Tem dia que me dá a impressão que esse colar, essa pedra, faz barulho,
estoura! Rosna! Eu estou achando que essa pedra está querendo se
transformar.

Toda vez que a menina menstruava, fazia o barulho. A mãe, aconselhou


ela tirar e guardar o colar. Guarda. Quando ela banhava, tirava o colar.
Depois ela usava. Mas ela sempre sentia alguma coisa nessa pedra. Um
dia, o colar se transformou em onça mesmo e matou ela. Ai a onça foi
matando toda a família, depois outra casa, outra casa, as outras aldeias

indiens Trumaí.Les aventures de solei/ e/ /une et autres mytes Trumai. Paris, CNRS, vol II, 1975, p.21-
22)

99
ficaram sabendo que a pedra que se transformou em onça estava
acabando com o pessoal. Eles preparam dois meninos. Todo dia eles
treinam os meninos. Dão várias ervas para eles ficarem corajosos. Eles
ficam bons de flecha e prepararam um buraco no centro da aldeia.

A onça veio no caminho da aldeia. Ela estava se aproximando, os


meninos estavam esperando. Quando ela chegou perto assim, os
meninos já tinham preparado o buraco, a onça acendeu um cigarro e
fumou. Na hora que ela acendeu o cigarro, pegou fogo. Todo mundo viu
e comentou: "a onça vai morrer."
Ai, eles deram o sinal para os meninos flecharem a onça. Eles mataram
ela. Fizeram festa.
Toda vez que eles matam uma onça, eles dançam. Depois tira o couro da
onça, enterra.

Este felino sobrenatural que Arnati representa fumando um enorme cigarro em seu
quadro, se aproxima do personagem da sogra, mãe de onça que mata a mãe de Sol e
Lua, ancestral de características canibais. Sua aparição ameaçadora, transmite o
perigo para a moça que está pronta para o casamento e rememora o perigo de certas
relações matrimoniais, ritualizando os primórdios dos tempos que os meninos Sol e
Lua matam a onça. No registro de vou deu Steinen da versão Bakairi, a gravidez da
mãe de Sol e Lua acontece quando ela engole dois ossos de dedos bakairi que o
jaguar guardava em casa para usar como pontas de suas flechas. Cada um deles se
origina de um dos ossos Bakairi que entra no estômago da mãe. Sua morte, foi
cometida pela sogra que não pode suportar que seu filho estivesse casado com uma
Bakairi, tribo com a qual os Onça guerreavam e comiam. Ela arranca com as garras
os olhos de Nimaguakaniro e vai-se embora.(Steinen:l940: 478)) O mito trata em
complementaridade, a iniciação feminina e masculina nesses tempos primordiais.

Noutro mito, Arakuni é um sobrenatural da água com poderes meteorológicos, tido


como de origem Waurá. O inicio começa com a pratica do incesto com a irmã. O ato
transgressivo é descoberto porque o desenho que cobre o corpo do rapaz, diferente
dos demais, se decalca sobre o corpo da irmã. Da proibição à passagem para o outro
mundo, pode-se entender a fertilidade com a chegada das chuvas, ao mesmo tempo
que a celebração funeral em memória do sobrenatural. Arnati reconhece nesse mito,
a origem do Kwarup, para ele, uma invenção Waurá.

100
ARAKUNI
Um rapaz chamado Arakuni tem uma irmã. Na nossa lei, depois da
primeira menstruação, eles prendem a menina para passar ser mulher.
Aquela que é prometida fica só um ano. Quem não é prometida fica
muito tempo: um ano, dois anos, três anos. Esse Arakuni namorava a
irmã de noite, sem a mãe saber. Um dia, a mãe acordou, ouviu aquele
zumzumzum a noite . Ai perguntou para a filha:
- Quem veio ai a noite?
- Não, não veio ninguém, acho que eu estava sonhando.
A mãe ficou desconfiada, desconfiada, desconfiada. Nessa época estava
tendo uma festa, cada um pintou o seu corpo. Ele tinha a pintura
especial, só Arakuni tinha. A mãe não falou nada, ficou só observando
as pinturas das pessoas. A noite, a tinta passou para a pessoa. Ai, a mãe
viu o corpo da filha, perguntou:
- Você... Quem dormiu com você?
A filha disfarçou,
- Tem um namorado ai .. " Ela mentiu," fulano de tal."
A velha foi sentar na porta para observar as pinturas da rapaizada. Só
tinha Arakuni com aquela pintura. Ela voltou para dentro e falou:
- Não tem essa pintura do seu corpo no rapaz que você falou. Só no seu
irmão
Ela mandou a filha conversar. A filha contou quem era.. (silêncio)
A mãe falou que aquilo não é coisa de gente, é um espírito quem faz
isso, Mamaé. Mamaé é diabo. (o tom intimista do relato muda completamente,
assumindo uma furma mais rápida e brincalhona de dizer as coisas.)

Existia a casa dos homens no centro. O rapaz sempre dormia na casa dos
homens, ele tem muitos amigos. Comia beiju na casa do amigo dele, se
alimentava. Um dia o amigo perguntou para ele porque " não dorme na
tua casa?" Ele respondeu que a mãe brigou e ele ficou muito magoado
não quer voltar para casa, vai ficar lá mesmo. Ai dizem que o amigo
dele disse assim, "Você fica na minha casa." "Não, fico aqui mesmo.
Só vou comer na sua casa." Arakuni falou.

No outro dia Arakuni convida o amigo para caçar. O amigo concorda e eles vão.

Então vamos caçar amanhã. Eles foram caçar. Foram embora. Entraram
no mato, foram andando, assobiando, mataram jaó, filó, jacu.... Foram
imitando macaco, macaco, macaco, macaco até que lá no meio do mato,
o macaco começou a assobiar, assobiou, veio o banda de macaco.
Arakuni assobiou de novo, macaco respondeu, soltou a voz assim:

101
- O homem que faz sexo com irmã.

O amigo não sabia, pede a confirmação do que ouvia, olhando fixo para Arakuni.
Pede para ele assobiar de novo, mas desiste e ele mesmo assobm. O macaco não
respondeu nada. Ele então, volta a pedir que Arakuni assobie.

- Agora você amigo, assobia aí.


Arakuni assobiou, o macaco respondeu
- O Homem que faz sexo com irmã
Ai, o cara ficou sem jeito.
- Vamos voltar?
- Vamos
O amigo queria saber se era verdade.
- Escuta, é verdade o quê macaco está falando?
Arakuni contou:
- Já que macaco contou.... Realmente, eu me apaixonei pela minha irmã,
- a irmã dele era muito, muito bonita - eu só estou contado para você
porque você é meu amigo.
O amigo ficou pensativo. Foram embora.
Sem o amigo saber, sem ninguém sabia, ele foi fazer a roupa dele, o
vestiário para ele se transformar. Só que a roupa dele é desenho, tudo
desenhado no corpo dele. (Amati olha para um quadro que ele fez do Kwarup e
diz que o desenho é mais ou menos aquele) mas em seguida diz: mas essa roupa é
feita de taquarinha.

Arakuni foi tomar mingau na casa do amigo dele


- Olha, eu quero que você encontre comigo a tarde.
- Onde?
- Lá onde eu costumo ficar.
De dia ele sempre desaparecia da aldeia, ninguém sabia onde ele andava.
Mas ele estava no mato.
Ai, Arakuni levou o amigo dele ...
- Só que você não aparece, fica quietinho. Fala nada, não conta para
ninguém. Eu vou me despedir de vocês, ai ó pessoal saberá!
- Para onde você vai?
- Ah, eu vou embora...
- Embora onde?
- Ah, depois você vê.
- Não vai embora não! Isso acontece mesmo. Já que você gosta da sua
irmã, casa então ...
- Não. Vou embora Estou errado. Eu não devia fazer isso. Fiz.

102
O amigo conversou muito com ele, disse que não tem pessoa
perfeita...Mas ele insistiu,
- Estou errado, vou vestir a roupa.
Foi lá, pegou a borduna, o chocalho. Começou a cantar, cantar, cantar.
No começo, quando ele começou a vestir a roupa, ele soltou a canção
dele. Fez um barulho igual trovoada. O pessoal ouviu, mas pensou que
era chuva. Mas era ele. Arakuni cantou, cantou, cantou. Chegou bem
perto assim, diante do amigo dele, tirou a roupa assim e disse,
- Guarda lá. De manhã estou passando por aqui para me despedir dos
amigos.
O amigo ficou muito triste, pediu para ele,
- Não vai, não faz isso!

Ele foi se despedir. Parece que cinco horas da manhã Arakuni foi lá no
vestiário dele, colocou a roupa. Foi cantando lá para a aldeia, despedir
do pessoal. O pessoal ficou assustado! "O que está acontecendo?"

Ele estava cantando essa canção de Kwarup. Cantou, cantou, cantou,


deu a volta em toda a aldeia assim... A mãe estava lá na roça. Ele
despediu de todos os amigos, ele estava pessoa ainda, igual pessoa. Ele
falou,
- Ciao, vou embora.
Começou a ficar tarde, foi embora. Foi andando até um ponto. De lá ele
foi cantando, foi assim na superficie da água, a pé.

O pessoal amigo, parentes dele, foram atrás de canoa O amigo dele já


descia o rio, lá embaixo, esperando ele. Ele foi parando, até que chegou
no Kuluene. Lá ele tinha um amigo verdadeiro. Ele parou, tirou a roupa,
tomou mingau, despediu e foi embora. Alguns dos amigos dele queriam
cercar ele de canoa, só ele tinha poder assim de andar na superfície da
água, ai pessoal tentou cercar ele, ele matou alguns dos amigos dele.
Parece que cortou o pescoço de um rapaz. Morreu. Arakuni continuou
descendo. Os Kamayurá contam que foi parar no Morená, os Trumai
também contam que foi no Morená. Lá no Morena ele foi afundando,
afundando, afundando, desapareceu.

Eu perguntei para os Waurá se algum dos velhos sabiam contar a


história do Arakuni. Um rapaz Waurá me contou o seguinte: a história
que eu contei é verdade, ele namorou a irmã, o macaco contou. Agora,
ele não mora no Morená. Esse Arakuni seguiu o rio abaixo.

103
Ele falou para o pessoal:

- Vou embora rio abaixo. Quando eu chegar onde eu pretendo ficar, eu


ainda eu vou voltar, "eu venho visitar você. Trago presentes para você."
O amigo perguntou:
-Ah, onde você vai então?
- Eu vou onde você nem deve ir, só eu mesmo. Assim que eu chegar lá
dou um sinal. Você vai saber.

Eles acreditam que é lá no Amazonas, naquele rio grande. Esse Arakuni


desceu, fez aquele barulho de trovoada. Só o amigo dele ficou sabendo.
Todo mundo perguntou, "O que é isso? o que é isso?"
Tremeu a terra assim. Só amigo dele sabia que ele chegou naquele local.
Antes ele avisou ao amigo:
- Se eu não voltar mais, vocês pode fazer essa festa que chama Kwarup.
Ai foi passando ano, ano, ano, muitos anos. Eles contam assim: " acabou
essa chuva, outra chuva passou, essa chuva veio, outra chuva, ele
apareceu de novo na aldeia. Durante a noite choveu muito. Ele chegou
assim na entrada da casa, chamou o amigo
- "fulano, fulano ... "
- Oi
-... vem aqui, dá uma saída, quero falar com você.
Aí ele trouxe uma esteira cheia de penacho, pena de arara, tacho, não sei
se urucum também, pena de gavião, pena de arara.
O amigo dele levou susto! Eles se abraçaram.
- Vamos entrar lá dentro.
- Não. Vim só entregar o que eu prometi.
O amigo ficou espantado ..
- Como é que você veio?
- Com essa chuva. Eu pedi essa chuva, vai chover muito, para ninguém
me ver
Dizem que a chuva estava tiusss, direto. Conversaram, conversaram.
- Agora eu vou embora para sempre, nunca mais eu vou voltar. Antes de
ir ele perguntou
- Vocês fizeram a festa?
- Não, vamos fazer agora.
- Você já sabe cantar?
- Sei
- Então, canta então.
Amigo dele cantou, cantou, cantou. ...
- Tá certo, você tem memória boa. É isso mesmo. É minha cantiga.

104
Despediu o amigo ... Foi embora. Morreu.

O Kwarup surgiu com os Waurá. Também tem um Kwarup que foi feito
por Mavutisinin, para ressuscitar as pessoas. Ele queria criar essa lei
para o pessoal fazer o Kwarup para aqueles que já morreram voltar.
Morreram quatro pessoas o ano passado, aqueles que morreram o ano
passado, muitos anos depois, esse Kwarup ia ressuscitar de novo essas
pessoas que morreram há muito tempo. Mavutisinin queria fazer isso.
Ele fez o Kwarup, mas na hora que a pessoa já apareceu transformada
igual gente, alguns desses que ficam junto com ele, queriam ver como
era esse Kwarup. Mas esse Kwarup era para ninguém ver. Era Kwarup
sagrado, ninguém podia ver. Mavutsinin não conseguiu. Ele queria um
Kwarup perfeito, isso que ele queria fazer. Mas o povo da aldeia queria
ver logo ...... Aí, desapareceu para sempre. Morreu, morreu mesmo. ·

Arakuni traz a chuva e relaciona a colheita, abundância, às trocas e a festa. Nesse


aspecto o mito mantém relações com as entidades da chuva, do raio e do trovão.

Nesse item cuidei de mostrar como Amati interpreta sua própria mitologia. Seus mitos
dão importância particular às situações de reclusão e práticas de iniciação: a mulher
reclusa e as aventuras dos meninos cujo modelo é o comportamento de Sol e Lua Nos
relatos das aventuras desses heróis, Amati anula os detalhes mais terríveis e dilui os
traços canibais da versão Bakairi. A intriga maior deixa de ser a aventura da familia dos
pais para centralizar-se na vida de Sol e Lua com ênfase na diferença entre as duas
familias. Sendo os heróis, Sol e Lua vingam a morte da mãe mas são incapazes de faze-
la viver outra vez, como fez a formiga, de maneira semelhante, para que eles nascessem.
Afinal, ele mostra sua antipatia pela figura da avó, e, sem maiores detalhes, toma parte
desses mitos a fabulação da aceitação das regras da vida, aceitação que presente em
muitas outras narrativas, como nas tentativas de Mavutsinin de criar a imortalidade. O
certo é que os mortos não devem retomar.

Nas narrativas de Sol e Lua e dos outros deuses meteorológicos, as mulheres têm
intervenção coadjuvante embora sejam determinantes para as ações. É a partir de suas
demandas que os heróis buscam e conquistam soluções às insatisfações. Elas mostram
onde encontrar a água boa, o machado de pedra para um trabalho menos penoso e como
podem Sol e Lua melhorar a eficácia do prazer sexual.

105
A narrativa de Amati sublima a força com a astúcia, para obter o que deseja do inimigo.
O mundo dos mortos é referência constante, assim como a forte presença da dádiva
ritual em relação aos espíritos. É perceptível a importância dada à cultura Waurá, o que
podemos relacionar com a própria experiência Trurnai e ao momento que eles viveram
próximo às aldeias aruak; a influência de sua mulher filha de Waurá e, a vontade de
equilibrar a influência Kamaiurá ou, simplesmente pela real importância da cultura dos
Waurá. Embora as narrativas sejam por vezes simplificadas, com perdas de detalhes em
relação aos relatos de seu pai, ele guarda em sua subjetividade, urna essência que
transmite o prazer especial de colocar em seus diálogos a importância do pequeno para
o grande - são os pequenos animais que têm maior capacidade de revelar e auxiliar- seu
protesto contra a violência do homem, no sentimento filial perante a natureza e, os
constantes conflitos de farm1ias ancestrais que são revividos na sociedade do cotidiano,
além da importância da complementaridade e rivalidade entre os sexos como parte de
um conflito ampliado.

106
3.2. No Mundo Dos Mamaé E Dos Kut

"/\. história dos Trumai começa quando os velhos mergulhavam. Tinham


!()lego. Sumiam..... Eles sumiam nas águas antes do sol nascer. Voltavam
só depois do meio-dia. Era o fôlego "treinamento" feito com fumaça,
muita fumaça de cigarro. Mas eles eram velhos e não tinham mulher.
Então, tinha um só Trumai. Ele cria Capivara, cria Capivara... Faz sexo
com a Capivara....
Tem menina (com a Capivara).
Nasce uma menina. Então, acontece que ele mata Capivara.
Assim começa os Trumai.
Assim contam os Kamayurá"
Amatiwanã Trumai, outubro de 1997

Esse pequeno mito pode nos levar à discussão da natureza selvagem do feminino, às
dificuldades de realizar trocas matrimoniais ou mostrar no namoro entre humanos e
animais "a prova da concepção de mundo onde os seres estão constituídos pelos
mesmos fundamentos"(Junqueira:2000:3). O que podemos ver no enunciado dessa
origem Trumai, são as semelhanças que unem humano e não humano e os poderes
sobrenatural.

A relação amorosa entre humanos e bichos também estão inúmeras vezes


relacionadas a certos tabus, entre os quais se destaca os de ordem sexual. Nas duas
narrativas abaixo, dois tipos de animais foram associados à quebra do tabu sexual
pela viúva.

AS VIÚVAS E OS MARIDOS QUE VIRAM BICHO

Uma mulher ficou viúva. O marido morreu e ela foi embora com o filho pra
outra aldeia. O irmão mandou ela ir embora para a aldeia velha dos Trumai.
Um dia ela estava varrendo a casa e apareceu um sapo. Apareceu o sapo e
mulher pensou uma maneira do menino ficar quieto. Deu uma vara para ele
e ele começou a bater no sapo. Ela foi para o rio pescar. Quando voltou
escutou a voz de homem batendo na porta. Ela pensou que fosse o irmão, e
como ela estava chateada com o irmão, não abriu a porta. Mas ele falou
"abre a porta, eu estou todo machucado" ela abriu e apareceu um homem.
Conversou, conversou, conversou até que o sapo fulou que era o marido

107
que tinha morrido. Ai ele ficou lá, dormia na cama com ela depois ia
embora. Até que chegou o irmão pra buscar ela e o filho. Ela acabou
contando que o marido tinha voltado porque o irmão olhou para cima e viu
que no cesto arakuru tinha peixe matrixã, não é fácil de pescar para uma
mulher. O marido chegou do rio e o irmão da mulher dele disse que ia levar
ele e a irmã para aldeia de volta. Ele disse ao cunhado que ainda não tinha
mais forma de gente e precisava de ficar mais tempo pra voltar a ser gente.
O cunhado insistiu e ele acabou aceitando"- então tá bom. Somente, ele
avisou, que eu não posso botar o pé no chão." Ele foi nas costas do
cunhado. Mas, no meio do caminho o cunhado cansou no caminho, foi
descansar. Quando o marido pôs o pé no chão, ele virou cobra fugiu e
nunca mais voltou.

A analogia entre a sociedade mítica e a humana aparece na repetição do episódio com


as mulheres da aldeia, no tempo que mito e história se misturam

Eu aprendi que teve um caso aí que os índios têm medo até hoje. Um caso
lá no Anariá, isso meu pai chegou ver, aliás, meu pai ajudou eles cavarem o
buraco. Ele matou esse bicho.

Meu pai conta que uma mulher ficou viúva. Era avó de Kaiulú. A~ muitos
anos, a viúva arrumou um namorado, antes de terminar o luto - os Trumai
levavam muito tempo para tirar o luto. Os homens que cuidavam dela
ficavam sempre de olho. A~ ela falou para o irmão dela Makurauá,
"Vamos tirar mandioca?" Foram. Ai no meio do caminho ela disse vou
fazer necessidade, demorou. Outro homem que estava vigiando foi atrás,
viu que a irmã tinha ido atrás do namorado. Aí a tarde ele perguntou ao
Makurauá,
- Escuta, sua irmã desapareceu um pouco? Sumiu um pouco?
- Sumiu
- Foi fazer o quê?
- Foi fazer necessidade.
O homem pensou" Então era isso mesmo."
- Porque? Você viu alguma coisa?
- Não, só curiosidade.
Esse rapaz que viu, falou lá no centro da aldeia,
- Parece que eu vi alguma coisa estranha.
- O que você viu?
- Eu não sei, não tenho certeza ainda, na hora que a mulher foi na roça com
o irmão, o irmão seguiu, a mulher entrou no meu rumo, eu vi aquela
mulher, parou lá, surgiu um sujeito. Um sujeito lá, conversaram lá, fizeram

108
um "servicinho" 35 lá. Depois o sujeito foi embora assim, do outro lado
dentro o limbo, sumiu só naquela mata.
- É mesmo? Mas você não viu para onde ele foi?
-Não.
Aí mataram outra pessoa, mataram meu primo. Esse homem falou para
Ynhanaí vigiar essa mulher.
- Você faz favor, vigia essa pessoa.

No outro dia a mulher já estava toda enfeitada, pintada, levou beiju,


mingau. Mas antes, aquele homem que viu primeiro foi mostrar o lugar
onde ele viu. Ele falou, "você fica escondido. Bem aqui eles fizeram o
" serviço".
- Será que eles não vão fazer noutro lugar não?
- Não sei, mas o caminho dela é esse.

O cara ficou lá vigiando. Daqui a pouco veio a mulher, trouxe uma esteira,
beiju, peixe assado e mingau. Daqui a pouco chegou o homem daquela
mata, igual gente, aquele que está vigiando, tentou reconhecer quem é esse
homem, ele pensou, "é realmente, alguém está namorando com ela. Essa
mulher já está namorando antes de tirar luto." Ficou só pensando.

O homem comeu primeiro, mingau, milho, de novo "serviço". Terminou, a


mulher foi embora. Quando a mulher saiu daquela mata, demorou um
pouco o homem foi embora também. O Trumai que estava vigiando,
chegou mais perto, nada, não reconheceu. Ele foi, foi devagarzinho atrás.
Tinha assim um capim, capim gordura, lá o homem desapareceu. Ele olhou
para lá, para lá, não tinha mais mato. Ele pensou, " ué! como é que ele
desapareceu no capim gordura? Vou lá ver, alguma coisa está errada." Ele
foi exatamente onde ele desapareceu, viu um buraco lá, viu lá um jibóia. "
Não é possível!"

O Trumai voltou para a aldeia. Chegou lá na casa, a noite quando pessoal


faz cigarro lá no pátio, ele falou para o rapaz que viu primeiro, "você tem
razão, agora acreditei. Só que eu não sei como explicar, não sei o que está
acontecendo com a mulher." "O que você viu?" Ele contou tudo do jeito
que viu. Então, "Para eu acreditar, vou ver lá. Eu é que vou falar com esse
homem agora." Foi mais um espiar. Esse rapaz foi a tarde nesse lugar, viu
realmente o homem, a mulher deu mingau, outro "serviço." ·A mulher foi
embora, ele foi atrás do homem. O cara percebeu que estavam perseguindo

35 - "servicinho" ou "serviço'', são aqui sinô nimos de ato sexual.

109
ele, andou depressa. Quando aquele que foi atrás olhou, ele viu o sujeito
todo enfeitado, igual uma pessoa, brinco, colar, braçadeira, pintura - não
era uma pessoa comum. Ele viu aquele lá, ele pensou, "esse cara não é
daqui não, pode ser de outro lugar." Ele tentou falar com ele, "Ei, espera
aí!" O cara sumiu. Mas o vigiador era teimoso, procurou de todo lado. Viu
aquele buraco, cutucou um pouco com a vara assim, é jibóia. Não tem mais
dúvida, "é jibóia." Ele voltou e contou. Aí os homens falaram o seguinte,
"vamos matar esse cobra, pode ser que a cobra está se transformando em
pessoa."

Sabe como é aldeia xinguana, as pessoas espalham a notícia. Chegou ao


ouvido da mulher, a mulher começou a chorar.
- Fala para o pessoal o favor de ninguém fazer nada, se pessoal fizer, eu
também vou morrer. Não é jibóia, esse é meu marido.
- Não é seu marido não, seu marido já morreu.
- Não, ele não morreu não, é meu marido.
Eles vão fazer flecha. De manhã cedo vão lá matar a jibóia. Os caras
chegaram, muita gente, muita gente para assistir, muitas mulheres, muitas
crianças. Igual televisão. Quando acontece essas coisas todo mundo tem
vontade de ver. Tiraram a jibóia, uma jibóia enorme. Mataram a jibóia,
deixaram lá para o urubu comer. A mulher, aquela mulher viúva, já estava
esperando filho, com a barriga grande. Quando o menino nasceu, assim
contou minha mãe, meu pai, já nasceu uma jiboinha. Como a mulher tinha
avisado o pessoal, assim que o menino nasceu, não levou muito tempo, ela
morreu.

Na conclusão dessa sua fala, situação semelhante aconteceu com suas avó e esposa.
As duas narrativas mostram com clareza o grau de rigidez das regras que se impõem à
viúva: o controle do masculino sobre o comportamento da mulher da aldeia A relação
entre mulher e cobra aparece em mitos amazônicos e outros de origem Waurá como foi
citado no capítulo anterior. O mito da cobra Boiúna ( identificada ao arco-íris na
Amazônia)conta que as mulheres ceramistas criavam cobras machos em recipientes que
elas iam aumentando conforme o crescimento das cobras que depois de grandes, elas
soltavam nos lagos. De tempos em tempos, elas chamavam essas cobras de volta, para
imitar os seus desenhos nos potes de seus "filhos" e também amantes: Paralelamente,
também os homens eram amantes de cobras de rara beleza. (Claude Lévi-Strauss:
1985:37) O mesmo autor agrega à atividade da cerâmica o ciúme, sentimento explicado

110
pelo temperamento da senhora da argila. Embora nada nos autorize aproximar os mitos
acima com a cerâmica, as situações onde os maridos retornam em furma de cobra a uma
viúva e a constante tentativa de um espírito masculino sedutor, que não escolhe as
mulheres pela idade, nos permitem falar, nesses casos, do ciúme masculino. No
primeiro mito, a referência ao espaço de uma aldeia antiga, para onde vão mulher e filho
segregados pelo irmão da mulher, sornada ao comportamento inquieto do filho e à
sugestão de uma mulher muito próxima da água que torna urna cobra (o marido morto)
por amante, criam paralelos entre mulher, água, cobra e possessividade dos sentimentos.
Já o segundo relato associa a sexualidade e a morte como ameaças à mulher e à aldeia, e
distingue na índole maligna deste sobrenatural, o espírito da terra e aquele de origem
aquática.

Entre os Trumai, a relação com a água vem do tempo em que os antigos faziam
tratamento com fumaça de tabaco, prática iniciadora do fülego quase ilimitado e da
capacidade deles se ambientarem à água como verdadeiros peixes. Um tempo
Trumai em que eles estavam próximos da origem de Awanalaxe.

A origem mágica do tabaco se revela em diversos momentos de rituais de cura. Esse


estimulante da imaginação e remédio eficaz que conduz ao sobrenatural, é o canal
que propicia aos Trumai o poder deles pescassem sem serem atingidos pelo perigo.
O fogo do tabaco e a terra das águas se amalgamam conduzindo-os às
transformações e conhecimentos que lhes abrem o acesso às metamorfoses e aos
poderes do mundo da magia.

Meu pai me contava que eles mergulhavam na água, no fundo da água


pra pegar tracajá. Não morre lá embaixo no fundo da água, eles tinham
tratamento: fumaça. Eles tinham uma coisa assim, conversavam com os
espíritos... Meu pai conta,(longo silêncio) que eles andavam para
qualquer lado, sem piranha, sem nenhum bicho atacar eles,
atravessavam o rio, ficavam no meio do rio, qualquer rio,
Tuatuari... Esses rios do Xingu até o Auirkukça, os Trumai já
mergulharam. Eles falam que o lugar mais fundo que eles acharam é lá
no Jacaré. Quando eles mergulhavam ai, quase não viam a claridade do
rio, fundo assim, só um pouquinho, bem pequena a luz do sol. Agora

111
todas as lagoas; Uawi, Morená, davam pra ver a claridade. Mas o morro
do Jacaré era muito, muito fundo ..

Ao mundo dos espíritos pertence toda sorte de seres da natureza e de coisas criadas
pelos pajés. Certos animais, plantas ou objetos rituais possuem o poder de curar,
enquanto outros provocam as doenças e aflições humanas. Sendo bons ou ruins, os
sobrenaturais se classificam pelo caráter, além de estarem ligados aos elementos:
água, ar e terra ou, em caso de objetos manufaturados, barro, argila, madeira Em seu
imaginário, Amati tem uma maneira própria de classificar os sobrenaturais: os
mamaé, os kut e os Anãnu. Os primeiros habitam todas as esferas e regiões do
mundo. Os kut, que provavehnente é uma categoria que ele criou inspirado nas
flautas que é designada em sua lingua com a mesma palavra, estão ligados a água e
aos monstros não identificados que habitam rios e lagoas. Os Afíanu, vêm do mato e
tomam formas similares às que Karl von den Steinen encontrou gravadas nas árvore
nos território Nahuquá, com orelhas desproporcionais, tronco estreito e comprido, se
parecendo com as máscaras de cabaça usadas pelos Trumai no ritual Olé. Amati
delega aos sobrenaturais do mato, uma maior grau de perigo e responsabilidade
pelas doenças. Nem sempre os animais foram amigos dos homens. Houve época que
eles eram antagônicos e Sol e Lua passavam parte de sua existência buscando a
vingança de males do passado. Com o passar do tempo, isso se transforma, mas
Amati não identifica como isso ocorreu, e, diz apenas que os indios deixando
escapar um exemplar de cada espécie, estabeleceram um acordo mútuo, embora os
mamaé de mau caráter tenham continuado suas ações.

Sol e Lua perguntavam porque existia tão pouca gente. Mawutsinin


contava...

"Naquele tempo, todos animais eram nossos inimigos. "Tá assim vazio,
porque muitos anos atrás existia muita gente, os animais brigavam.
Bicho era inimigo do pessoal. O índio acabou com essa briga. Os dois,
Sol e a Lua ficavam fazendo vingança, matavam Eles iam na aldeia
Anãnu, matavam Anãnu. Mas, eles sempre deixam escapar um. Passado
isso aí, num outro lugar, escapou o macaco aranha. Depois ·foram os
bichos da água."

112
A relação de solidariedade e aliança entre homens e marnaé têm como contrapartida
o antagonismo e inveja que os homens despertam em certos espíritos. Isso acontece
pela diferença que existe entre a essência espiritual dos homens e a dos outros seres.
Os homens não possuem a essência mamaé e são dotados de outra manifestação: a
alma ou sombra, yankatu, para os Truma~ lhan. Com essa lembrança, Junqueira
fala-nos dos conflitos que geram doenças e mortes como resultado da cobiça que
certos mamaé têm da alma, cuja fragilidade se deve à falta da essência mamaé. Essa
dialética cósmica toma o ser humano vulnerável e, ao mesmo tempo, dependente da
ação e aliança com o reino animal e sobrenatural(l999:150-159)

A colaboração entre os homens e os espíritos permitiu que embora os mamaé


malignos subsistissem, os homens pudessem encontrar em certos animais a ajuda
aos males que os afligem Os bons marnaés são aqueles que se convertem em
ajudantes do pajé. No mesmo texto, Junqueira dá os exemplos das plantas, flautas,
mandioca e os tabaco, piqu~ algumas espécies de beija flor, peixes e pássaros.
Enquanto os macaco guariba, veado, porco do mato e certos peixes, são, entre
outros, os mamaés perigosos.(idem)

O encontro com os mamaé não é somente o privilégio do pajé. Quando Amati era
pequeno, antes dele ficar doente, ele próprio teve vários contatos dessa ordem:

Quando nós estávamos morando no Mukuretê, eu era pequeno ainda, eu fui


com minha prima, meu primo que foi morto pelos Juruna, e o pai dele, tirar
cana. Meu tio mandou eu amarrar a cana e foi embora na frente. Nós
amarramos a cana e fomos. Andamos um pedaço, minha prima ouviu
barulho, ouviu uns passos de pessoa atrás dela. Eu pensei que era meu
primo que gosta de brincadeira. Eu pensei que ela estava com medo. Gritei
meu tio, ele respondeu, nós continuamos. M.inha prima foi na minha frente,
eu fiquei para atrás, senti alguma coisa puxar meu cabelo, eu vi um cara. Ai
eu disse a prima, "tem gente mesmo." Continuamos andando, senti de
novo. Quando eu olhei assim, eu vi igual gente, mas era igual macaco. Eu
comecei a gritar, ele gritou também, nós cortemos. De longe, meu tio veio
espantado, quando ele chegou, eu contei, minha prima contou. Ele disse
assim, "pode ser anta." Eu falei o que vi, "tem cara de macaco." Quando
nós chegamos na aldeia, meu pai perguntou o que aconteceu. Eu contei.

113
Como ele era autoridade, ele disse, "vamos ver, vou fumar um pouco." Os
dois fumaram, meu pai e meu tio. Aí, eles viram: era um boneco de cera,
um rnamaé, igual urna pessoa Só que dentro do boneco tinha só cabelo,
cabelo de macaco. Foi o cabelo, a cera, que se transformaram em pessoa.
Eles pegam o cabelo do macaco, botam a cera por cima e fazem o boneco.
É isso que se transforma em gente. Os pajés e os feiticeiros têm os poderes
deles.

Amati explica o procedimento dos rnamaé perigosos:


Eles pegam a pessoa e carregam ela nas costas com ele. Judiam, derrubam,
batem. Quem está na aldeia, nem se tem uma pessoa com você, ela não vê,
só escuta a pessoa gritar de dor. Somente os pajés podem fazer a pessoa
voltar. Se não tiver pajé, a pessoa fica lá no mato mesmo. Eu lembro
também que todas as vezes que eu ia no Jacaré, tinha umas andorinhas,
urna ave rara, difícil, sempre no porto nós encontrávamos com elas, elas
estavam todas doentes.

São inúmeros os tipos de mamaé gavião, urubu, que povoam o imaginário de Amati.

Mamaé é um espírito, ninguém vê, só quem anda de noite enxerga

Quando o pessoal Trumai fala mamaé, é um espírito, ninguém vê ele.


Lua e Sol eles vêm porque eles primeiro falaram, nós somos Lua e Sol.

A noite, a gente tá dormindo, a gente não vê os bichos da noite. Bicho


da noite então aparece. Quem tá acordado ... É uma coisa muito difícil de
compreender. Tem muitas pessoas que falam, acreditam em sereia, as
pessoas que moram no sertão, nas florestas, fazendeiro, caminhoneiro,
seringueiro, já viram, o índio também já viu. Se eu perguntar, tem onça
da água? O cara vai falar, não tem nada! Ele não viu! Mas o indio já
viu. Tem um bicho que anda, assobia, o pessoal fala que é feiticeiro da
noite, tem um gavião que é feiticeiro da noite, nos chamamos gavião. A
cabeça dele é igual a nossa, mas na asa você vê todos os feitiços aqui, na
asa dele. A frente e a asa dele alumiam igual a estrela. Quem fica
acordado, anda muito a noite, vê. O índiO já matou esse ai, os Waura
também. Já conhecem. Urubu de duas cabeças, Deniktê pessoal acredita
também. Só aparece de noite. De dia não. Urubu de duas cabeças. Os
Kaiabi conhecem, Suyá conhecem, o pessoal que gostava de viajar a
noite é que via isso aí. Viajar, ir para a guerra. Inclusive tem um indio
Suyá que me contou que ele via um bicho que andava à noite, Yaw

114
hon,36 nós chamamos os olhos também. Suyá dá outro nome, Trumai
via Yaw hon: só tem o corpo, não tem braço, não tem perna, só tem o
corpo barrigudo. Ele aí anda mais que avião a jato sti, de repente você
vê, ele já está lá longe. Rápido! Os Trumai viam isso, os Suyá contam a
mesma coisa. Um dia, eles vinham atrás dos Trumai e viram assim uma
luz no meio do caminho, uma luz igual fogo, eles pensaram "o pessoal
está ai, os Trumai ou os Kamaiurá". Mas a luz era diferente: "pode ser
esse bicho que anda à noite. Vamos passar assim mesmo? Não, vamos
esperar ele levantar o vôo." O pessoal que tinha coragem disse, "não,
vamos chegar mais perto para ver." Eles chegavam mais perto, mas não
chegavam muito perto porque era tão quente que a luz dele era a mesma
coisa que o fogo. Viram só a cabeça em forma de pessoa. Ele falou que
acende e apaga. Ninguém pode chegar perto, é quente. Ai de repente, ele
tsiii. É assim. Nesse mundo aqui, vamos dizer assim, é dificil da gente
entender. O urubu com cabeça de onça, Tamusxo, o Urubu Rei,
Urucut 'kê, o Urubu que come bicho grande, gente também, Uxuot 'kê.

Em um mito Junma, um Gavião revela a um velho o poder de certas plantas para que
ele tenha boa pesca.

O Gavião Ensina Ao Velho O Poder Das Plantas que dão a fartura

Eu encontrei um Juruna no Diauarum uma vez, faz tempo, ele contou


essa história pra mim.

Tinha um velho, mulher dele faleceu, ficaram as crianças, duas filhas,


ele tinha parente, neto, sobrinho, muita gente. Só que ninguém ligava
para ele, depois de muita idade, ninguém quer cuidar mais. Ele tinha
duas cabacinhas para pegar água. Ele ia sempre tomar banho na beira do
rio. Um dia de repente ele ficou assim sentado, pensando na vida dele,
pensando que ele ia morrer, já devia ter morrido, velho, sem poder fazer
nada .. Aí ele avistou de repente um gavião. O gavião veio voando lá de
baixo. Tem um gavião que pega peixe, quase igual gaivota, só que é
gavião, Trumai chama marlotsin. Ele viu aquele pássaro vindo, vindo,
vindo bem no rumo do pacú. Voou no rumo, chegou perto, viu que era
pacu, era pacu mesmo. O velho pensou, " Ah, se eu pudesse, esse gavião
podia dar esse peixe para mim" Parece que o gavião adivinhou. Quando
chegou bem no rumo dele assim, soltou o pacu, escapuliu. O velho
pegou o pacu. Ele pensou "hoje eu tenho sorte, peguei o pacú; talvez o

36
- yaw hon em Trumai significa nosso olho. (consulta ao dicionário Trumai que estã sendo elaborado
pela lingüista Rachel Guirardello.

115
gavião ouviu o que eu falei." Foi embora. Chegou na aldeia, a filha
falou: "Ah! Você pegou peixe!"
- Ganhei peixe.
-De quem?
- Ah, o pássaro deixou esse peixe pra mim..
- Que pássaro?
- Gavião
- Gavião? Gavião mesmo?

Começou a rir na cara do velho, "olha só, diz que gavião que deu,
· gavião deu peixe para ele ... "
- Ué, você não está acreditando não? Quem que vai dar peixe pra mim?
Quem que tem coração para dar peixe para mim. Só mesmo o gavião ...

Aí a filha preparou beiju, peixe, todo mundo comeu. Dia seguinte o


velho foi lá de novo. Foi lá na beira do rio, apareceu de novo o
gavião ...Ele deu a volta, pegou o peixe bem na frente dele de novo, era o
pacu de novo .... Aí ele pensou, "eu tenho tanta sorte mesmo! Ou então
gavião tem dó de mim " Quase todos os dias, sempre o gavião pescava
para ele. Dia certo, ele foi de novo, não apareceu gavião, outro dia ele
foi de novo na beira do rio, encontrou gavião de novo. Gavião pegou
outro peixe, era matrixã. Ele pegou matrixã. Levou. No dia seguinte,
pegou mais um matrixã. De repente, surgiu essa pessoa, falou igual, bem
igual a língua de Juruna. Ficou conversando com o velho. Perguntou
como ele estava vivendo? Perguntou tudo da vida dele. O velho contou,
pensando que era outro Juruna. Aí depois, o velho ficou olhando duro
para ele:
- Quem é você?
- Ah, sou eu mesmo.
-Quem?
Ai ele falou então
- Vamos lá embaixo um pouco, ali na sombra. Vamos ficar conversando

- Você não está me enganando por causa do. peixe ?
- Não, é seu.
O gavião falou, "Fui eu que dei pra você."Foram lá embaixo, arrumaram
um cantinho lá na beira do rio assim, foram abeirando o rio abaixo, mais
adiante, para lá, mais para baixo eles sentaram lá, ficaram conversando.
Gavião contou para ele:
"Eu sou gavião, foi meu irmão que deu o primeiro peixe para você."

116
Ele foi mostrando todos os irmãos dele, contou que o pai dele já morreu,
só tinha mãe, ele fala que a mãe pesca. "E seu pai morreu de que?" "O
inimigo dele matou." Só não contou qual o bicho que matou o pai dele.
Conversaram, o gavião falou assim "vou levar você de volta" O velho
falou assim:
-Tem muita gente agora, tem muita gente na beira do rio ..
- Não tem problema não. Vamos assim mesmo que o pessoal não vai
me ver, só você me vê, mas os outros não vão me avistar..

Ele deixou o velho lá com o peixe. À tarde, o velho foi, o gaviao


também foi atrás dele. Pegou a flauta, era muito bonita a cantiga, ele
nunca tinha ouvido também. Aí o velho estava cortando lenha, ouviu
aquele tom de flauta, "Ué, quem que vem atrás?" O velho foi, ficou
rachando lenha lá. Daqui a pouco, esse rapaz veio tocando, tocando até
chegar bem perto dele e falou:
- O rapaz está cortando lenha?
(o velho não gostou)- Rapaz não menino, me respeita. Não estou para
brincadeira.
- Ué achou ruim? Tô brincando com você. Deixa que eu ajudo você.
Diz que o gavião começou a ajudar. Só que o velho não reconheceu ele,
pensou que é pessoal dele, Juruna. Ele cortou lenha para ele. Mas parece
que o velho sentiu, nunca pessoal fez isso para ele, ele perguntou:
- Quem é você?
- Você não tá me reconhecendo?
-Não.
- Olha bem pra mim.
Diz que o velho tentou olhar, nada.
- Não conheço você. Quem é você?
- Eu mesmo. Eu não estava conversando com você na beira do rio?
O velho ficou olhando duro,
- Aquele, todo enfeitado, igual pessoa, igual Juruna, o enfeitado que
ajudou e tudo. Vou ajudar levar essa lenha até perto da sua casa. De lá
você leva.

Aí esse rapaz gavião falou para o velho, você leva só flautinha. Quando
chegou perto da casa, combinaram de encontrar na beira do rio,
conversar. De manhã, outro dia, o velho foi à tarde. Pegou aquela
cabaça, foi para a beira do rio. Encontrou com gavião lá, gavião pegou
peixe, soltou peixe para ele, chamou de novo:
Agora vamos de canoa lá embaixo.

117
Mesmo lugar onde eles ficaram no primeiro dia. Lá o rapaz começou a
falar para ele,
- Você faz doze caxirí, eu vou embora, nunca mais vou aparecer ...
- Vai embora? Vai embora pra onde?
- Para aldeia.
- Você mora aonde?
- Eu moro lá embaixo, longe...
-Ah, é?
- No final daquele rio?
- É ...
~ Então vamos mandar fazer caxiri.
Combinou tudo com o velho. "Você me avisa assim que tiver caxiri
pronto. Quando chegar quase no ponto, nós temos que pegar muito
peixe, vamos ajuntar muita gente." O velho foi embora Chegou lá na
aldeia ele contou para as filhas. Elas tiraram mandioca, puseram na água
para a mandioca amolecer, fizeram caxiri. Quando estava toda a canoa
pronta37, começou a fermentar. O velho tomou à beira do rio, sentou lá,
ficou olhando, olhando, nada de gavião. De repente surgiu esse rapaz
assun,
-É você?
Sou eu mesmo. Agora nós temos de descer mais um pouquinho, vou
mostrar um negócio. Vou contar alguma coisa para você.

O velho não queria ir, ficou com medo do rapaz ...


- Temos de ir, eu sou seu amigo. Você é meu avô. Eu considero você.
Não vou fazer nada, quero só contar história para você e você conta
história para mim também. Você num é velho?
- Eu sei poucas coisa.
Ele pegou o velho desceu, desceu, desceu, arrumou limpo, "vamos parar
aqui mesmo." Aí, subiu assim num barranco, ficaram sentados. Lá, ele
falou assim,

- Ninguém pesca pra você?


- Não. É duro mesmo. O caxiri já está quase pronto, já está fervendo.
- Ah, então vou pegar peixe agora. ·
- Como a gente vai pegar?
- Vou te mostrar..
Aí, ele puxou o arco dele, arco e flecha assim pequenos, igual de
menino. Ele sentou, tirou uma folha, começou a explicar. ..

37 - Os Juruna preparam a bebida caxiri em canoas.

118
- Você está vendo essa folha aqui? É muito significado. Cada folha
representa um bicho: macaco, cobra, onça, mutum, jacu, vários animais
O velho não entendeu
- Vou mostrar para você ...
Jogou uma folha assim, apareceu a cobra.
- Não usa essa folha, essa folha é perigosa para você, cobra pode até
morder, você morre. ( Dizem que esse gavião estava carregando muitas
coisas). Ele tirou outra folha, folha seca, muita folha seca da bolsa. Foi
mostrando macaco, onça...
- O que você quer que a gente mate?
- Matrixã
O Gavião jogou assim as folhas na beira do rio, juntou matrixã.
- O que você quer mais?
- Pode ser pacú também?
- Pode.
Ele tirou a folha, matou pacú. O velho gostou.
- É bom. Por isso é que quando você voa é fácil de pegar!
- É, a gente solta essa folha, fica esperando lá no ar. Quando o pacú, ou
qualquer peixe apanha, a gente pega ele.
Eles pegaram muito peixe, vários tipos: tucunaré, piau, pacu, tudo
variado. O gavião falou para ele
- Está bom?
- Tá bom, esse peixe já vai sobrar.

Na volta, o Gavião pede ao velho que não conte nada. O velho chega na aldeia e fala
para a filha ajudar a trazer o peixe. Ele pede que ela leve uma cesta. Mas o pessoal
duvida do velho. A filha confirma que na beira do rio está cheio de peixe. O pessoal
chega lá e se espanta: "como esse velho pegou isso tudo?" Os meninos que também
foram lá avistar confirmam:

- É mesmo, tem peixe lá.


Juntou todo o pessoal que mora na aldeia para pegar peixe, dividir o
peixe como o velho. O velho falou então, para deixar a metade para a
festa. O gavião tinha falado também que tem caxiri para tomar. "Mas
você não vai sozinho, vem comigo. Primeiro vai dar o cacirí para eles."

Pessoal ficou divertindo lá, brincando, dançando, até noite já muito


tarde. O gavião então falou,

- Agora é nossa vez, vamos lá.


Apareceu o dono da festa. Ele entregou cacirí para o dono.

119
- Isso é para você.
Eles começaram. Tomam, tomam, tomam. O velho começa a ficar ruim.
O rapaz estava lá dentro falou,
- Não toma muito mais. Deixa comigo. Você pega cacir~ o pessoal vai
pensar que é você que está tomando, mais sou eu que vou tomar
O pessoal olhava assim, pensa que ele está ruim, está falando sozinho.
Mas ele estava conversando com o rapaz. "Leva mais cacirí para o
velho ..." Nada de velho cair, ele estava sempre firme, conversava,
andava, falava todo alegre. Acabava outro canoa de cacir~ pega outra
canoa, até que acabou todo o cacirí. Ele foi despedir do velho:
- Agora você já sabe como é pesca. Você conta para o pessoal o segredo
que você me encontrou, que eu ajudei você. Só que não posso mais
ajudar, eu vou embora. A única coisa que eu quero pedir é que se vocês
me encontram voando, se eu sentar num galho o pessoal quiser me
matar, pode até me matar, só não põe a mão, me enterra lá mesmo.
- Como é que pessoal vai matar você? Não pode me matar...
Pois é, você diz assim, mas os pessoal não pensa isso. Se eles me
matarem avisa que não pode por a mão. Me deixa lá, faz pequena
roça, marca bem aonde eu cai, queima lá. Lá eu vou nascer, essa
folha que eu te expliquei.

Amati explica que quando eles matam o gavião, eles deixam ele morto lá e juntam
muita lenha para a onça não carrega-lo. Fazem uma pequena roça, colocam galhos por
cima e deixam secar as folhas que secas podem ser queimadas. Mas eles marcam bem o
lugar onde o gavião morreu. Com o tempo, o mato nasce, as folhas nascem.

A pessoa que matou o gavião vai lá experimentar as folhas, arranca uma


por uma, vai experimentando. Aquela folha daqui um pouquinho, você
encontra onça. Você marca que você é dono do onça. Cada dia, você
experimenta, até chegar no peixe,' matrixã. Então você sabe tudo, só
você mesmo que sabe, os outros não sabem. Dizem que Juruna até hoje,
eles usam muito essa folha ...

A escolha de determinada pessoa para a funçãÓ de pajé pode ser feita através dos
sonhos, visões ou doenças. Dependendo de como se deu a transmissão dos
ensinamentos, o pajé tem mais ou menos poderes, e são considerados mais
completos aqueles adquiridos diretamente dos mamaé que se manifestam em visões
ou nos transes. A iniciação com um pajé é menos importante. No caso acima, o
mamaé Gavião escolhe pessoalmente o velho para ensiná-lo os poderes das plantas,

120
fazendo-lhe, ao mesmo tempo, as exigências da celebração de um ritual em sua
memória. A escolha é solidária com a fragilidade causada pela idade. O Gavião age
por compaixão e estabelece a aliança na qual ele e o velho tomam-se duplos,
malgrado a vitalidade de um e a fragilidade do outro. Alias, são elas que vão
frutificar a escala de conhecimento dos perigos e o segredo da abundância - união
vegetal/animal - cujo símbolo é o peixe matrixã.

O pajé quando recebe a revelação da escolha, deve passar por uma série de práticas
de purificação do corpo para que os conhecimentos lhe sejam transmitidos par e
passo com a evolução de seu espírito. Isso supõe dietas alimentares, tabus de ordem
sexual, práticas de escarificação, ingestão de certas bebidas fermentadas e ervas.
Para ver aquilo que os outros não vêm, ele usa nos olhos uma raiz que aumenta sua
capacidade de "enxergar" e sonhar. Entre os seus conhecimentos estão a capacidade
de diagnosticar a origem, o mamaé responsável ou o feitiço que causou a doença
Nas seções de pajelança entre os Trumai, o pajé procedia a cura inalando fumo e
entoando cantos acompanhados pelo som dos maracás e extraindo o mal do corpo do
doente através de sucção. Essa técnica vinha da crença de ser o corpo do pajé ímune
aos poderes do marnaé que ao ser retirando do doente retornava ao seu lugar. Porém,
mesmos os pajés mais conhecidos têm poderes limitados frente à morte, cujo
principal articulador é o feiticeiro. Embora ele saiba identificar o feitiço e a pessoa
responsável por ele, o pajé é ímpotente diante dele. Os feitiços conhecidos pelos
pajés (mohãe-aiat) são aqueles preparados com restos de cabelos, unhas, flechas ou
qualquer pertence da pessoa a quem se deseja o mal. Mas, os feiticeiros possuem
poderes ocultos que disseminam o medo pela eficácia de causar a morte.

O uso do tabaco é :fundamental para proceder uma cura. Chamado para curar, o pajé,
sozinho ou em conjunto com os outros pajés, evoca os espíritos que irão controlar as
forças que ameaçam o corpo e a alma. O poder do pajé Trumai incluía além das
diferentes especializações e funções de curar e enxergar as ameaças à aldeia, a posse
de rituais e canções, que pressupõem-se eram transmitidos hereditariamente.

121
OLÉ : A FESTA QUE FOI FEITA NO SONHO

Um dos rituais mais importantes dos Trumai é o Olé. Durante o tempo que Quain
conviveu na aldeia Anariá, era freqüente a sua prática. A cerimônia durava 3
semanas entre o meio de agosto ao final de setembro e com o ciclo Ole, começava
uma série de pequenas canções e danças. Vários dias antes do ritual na praça da
aldeia, os homens traziam troncos da mata para uma clareira próxima a aldeia. Ali
eram retiradas as cascas dos troncos que depois de recobertos com argila branca e
desenhos coloridos, eram levados nos ombros com cantos e danças, sendo enterrados
em parte nos buracos que haviam sido cavados antes. No centro eram erguidos três
postes, aos quais se oferecia comida. Cada poste era dito ter o seu aton, animal
particular, provavelmente o seu mamaé. Nas duas últimas semanas, os homens
comiam junto a esses postes. Um deles merecia atenção especial, Nukekerehe, que
diziam ser maligno. As crianças ajudavam as mulheres a passarem urucum na base
dos postes, enfeitando-os com tufos de algodão. Colocavam beijus em forma de
peixe enfrente aos postes como oferendas. Os músicos cantavam canções diante das
casas e a cada mudança de casa, o cantor começava uma nova série de cantos,
acompanhado somente de um chocalho. Nitvari era o bailarino mais importante e
sua indumentária muito cuidada, com um diadema de pele de onça e ó corpo
pintado. Matiwanã e Nitvai eram os "donos" das danças e canções do ritual.

122
6661
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Olé é festa para doente. Os pajés fumam e vêm os espíritos do doente.
Eles vêm o espirito Olé que está fazendo mal. A Festa é para sarar.
Trumai chama Ontare, que significa A festa que foi feita no sonho. O
paciente conta o que viu no sonho: "eu vi uma festa assim ... muita gente,
muita criança, velhos. Daí eles dançam durante a noite. Nessa festa,
ninguém da aldeia pode fazer pipi lá fora, andar sozinho no mato, senão
o espírito Olé pega essa pessoa, some com ela. Olé é o nome do espírito.
A mandioca também chama Olé. O espírito Olé é o dono da mandioca. É
o espirita da mandioca que chama Olé, não é a mandioca. Nessa festa, se
canta, se chama os convidados. No começo eles cantam falando mal dos
outros. Se eu tenho um inimigo, esse meu inimigo não vai cantar a raiva
de mim. não vai diretamente chamar o meu nome, mas vai chamar assim
o nome de outras pessoas. Mas a gente entende, sabe que ele está
cantando para ele. Antes de chegar o sarampo eles estavam fazendo a
festa. Foi a última vez que eu vi. Eu me lembro o irmão do Aru. Isso
também já aconteceu com meu pai, eles falam que é Olé. Um dia esse
meu tio foi para o mato com .a mulher dele, foi fazer necessidade, o
rapaz levantou assim foi embora andando. Aí a mulher dele perguntou,
"onde você vai?" Ele nem respondeu, foi embora, sumiu. Eu me lembro
quando eu era garotinho, todo mundo falando que foi o espírito Olé que
fez isso. Aí demorou um pouquinho uma coisa que eu nuncà vi, ele
gritava, gemia de dor, corria. Daqui a pouco você escutava o grito dele
aqui, não levava nem um minuto, ele já estava gritando lá em outro
lugar. É uma coisa rápida, tsitsi. O homem que está gritando assim, é o
espírito do Olé carregando. Esse espírito Olé é muito ruim, ele mata as
pessoas. Por isso que a pessoa fica gritando de dor. Esse rapaz corria pra
lá, corria pra cá, aí o pessoal cercou, agarrou ele, deram banho, ele
voltou normal. Pessoal não faz muito essa festa, eles têm medo. Só serve
para ajudar os doente. Todos os troncos têm nome: Kikirié, é o mais alto
de todos, Anietsi, olé no meio. O cantor usa o chocalho e o sino. Come-
se peixe, mingau, beiju, perereba, mingau doce, Trumai chama maisaura

Com esse espírito, a pessoa se desnorteia, - sofre, torna-se violenta, mas não se
machuca, mesmo quando adentra a mata. O pai de Amati um dia foi carregado para
o mato pelo mama.é Olé:

Aconteceu com meu pai lá nos Juruna. Ele e minha mãe foram fazer
himhim (necessidades fisiológicas). Votou minha mãe sozinha, veio

123
correndo. Ela contou que meu pai sumiu, "ele estava bom ainda, acho
que está voltando de novo esse espírito." (Quando meu pai era jovem
vivia dormindo só no mato. O pessoal dizia que ele estava com espírito
Olé.) Eu fui procurar ele no lugar do himhim. Não encontrei. Meu tio,
aquele mesmo da outra hístória (quando ele viu o mamaé do cabelo), foi
fumar. Ele me disse "eu vou ver direitinho, vou ouvir. Eu sei como
chamar seu pai de volta." Ele mandou pessoal fazer molho de pimenta e
mingau doce para o meu pai. Só isso mesmo. Quando ele começou
fumar, desmaio, caiu. Quando ele voltou, falou assim: "seu pai está lá no
córrego, longe. Ele está com Olé. "Ele falou isso de noite. Eu fiquei com
raiva do Olé. Meu tio juntou todos nós para fazer uma dança ali. Só
assim ele pode voltar. Meu tio pegou chocalho e começou a cantiga de
pajé. Foi indo, foi indo, cantou, cantou. Quando ele parou, ele disse
assim, "agora vamos cantar a cantiga Olé, seu pai vai vir." Nós
cantamos e os Juruna cantaram junto. Ele fumou outra vez, meu pai já
estava perto, "ele está chegando". A~ nós ouvimos meu pai gritando.
Corre para lá, corre para cá, nós cercamos meu pai. Meu filho já estava
no colo de Tatá, não na barriga. As mulheres ficaram com medo porque
o espírito bate, machuca. Meu pai veio correndo entrou e foi direto no
molho de pimenta. Deram um banho nele, jogaram fumaça. Ele ficou
bom.

Para concluir. Quain encontrou na cerimônia Olé o propósito de assegurar a safra de


mandioca e o simbolismo da fertilidade. Não é improvável que o ritual servisse a esse
fun ou de homenagem ao deus da mandioca e ao afustamento das forças agorentas que
prejudicam seu florecimento. O que está obscuro em seu texto e Amati esclarece na
festa Olé, coloca em cena a feitiçaria e o pajelança na globalidade da aldeia, na sua
dimensão integradora. Seja qual for o ritual, seu apogeu reúne o máximo da capacidade
de fartura que aquele povo pode produzir de mandioca, milho, piquí, peixe ou outros
alimentos. O Olé de Amati evoca os poderes contra a doença pela iniciação no sonho:
pão e espírito. Mundo da comunicação com o sobrenatural cuja complementaridade
reúne forças antagônicas, pajés e feitiçaria; natureza, espíritos, povos que, lado a lado,
se aliam e rivalizam, participam de vinganças do morto no sacrificio do feiticeiro, ao
mesmo tempo que liberam a alma aprisionada e refazem o novo equilfürio entre os
vivos e os mortos. Deuses e espíritos da compaixão que iluminam os caminhos da
fartura. Cadeia vital de manifestações que permutam papéis e fantasias refletidas na
memória coletiva interpretada por Amati.

124
3.3. O Mito Do Jawari

38
O Jawari é considerado por Amaiwanã o ritual mais importante para o grupo
Trumai. O mito gira em tomo da aquisição do ritual e conta a migração de
Kulelerchuch e seus irmãos para o Alto Xingu com a finalidade de explicar na
celebração de um funeral e no jogo cerimonial com dardos, flechas e propulsores
que simboliza as rivalidades intertribais dos povos do Alto Xingu, a diversidade
do povo Trumai.

O herói Kukelerkut é um homem jovem, de cabelos queimados. Seus cabelos foram


queimados quando ele se esconde do tio debaixo de ramas de mandioca para fugir
das conseqüências do incesto que praticava com a mulher de seu parente. O terna do
incesto motiva a migração e ele e seus irmãos partem em busca de novas terras,
passam muito tempo viajando pelo mato, bebendo apenas água e comendo muito
pouco. Um dia eles encontram os Payetã. O povo Payetã, fala a mesma língua dos
Trumai e a característica aparece no mito dando a possibilidade de estabelecer trocas
favoráveis. Na aldeia desses ancestrais, o personagem dos cabelos queimados e os
irmãos casam, dançam e aprendem o Jawari. Tempos mais tarde, retomam ao lugar
de origem e em contato com os grupos do Xingu, eles lhes ensinam o ritual que
toma-se um bem simbólico comum a essas tribos.

O ritual, que se origina no mito, car.acteriza-se pela disputa cerimonial com o uso do
propulsor39 , dardos, e flechas, e a celebração do luto de um morto. Nele se
desenrolam cantos de aves que são, com as onças, os dois principais animais que se

38
- Karl von den Steinen comentara a origem desse nome como vindo da palmeira tucum, yauari, cuja
madeira é talhado o propulsor. Ele registrou o nome yawuari amomoáp, que em Kamayurá significa
"tucum que despedaça à distância" dando idéia da potência da arma. Os Karajá do rio Araguaia
relacionam macacos que matam homens à distância com as flechas de arremesso, nos dando a noção que
os mdios fazem do propulsor, como arma eficiente e mortal. (Karl von den Steinen, 1940, pp. 286-87)

39
- Eduardo Galvão registra o uso do propulsor entre os habitantes do Alto Amazonas, Alto Xingu e rio
Araguaia(Karajá). Até o século XVlll, a arma foi muito difundida Alto Amazonas. Hoje seu uso é
exclusivamente cerimonial-esportivo entre os alto xinguanos. ( E. Galvão, in Revista do Museu Paulista,
volume N, 1950, p. 353)

125
enfrentam na figura dos guerreiros rituais. O gavião e o séquito de aves dão os
primeiros acordes para iniciar a disputa entre o grupo que convida e seu convidado.
Os dois animais opõem os poderes mágicos no duelo entre pássaros e onças sob a
mira do propulsor carregado de flechas e dardos violentos. Outro componente
importante é o hy-ang, ou lhan, representado por um boneco feito de embira, que os
participantes tentam acertar com grande alarido. Segundo Eduardo Galvão, o mesmo
boneco é levado ao peito do doente para tirar o mal e, representa, o espírito dos
mortos(1996:353). E, parece-me, também identifica o mamaé do bicho feiticeiro ou
sua sombra.

A narrativa do mito do Jawari será primeiro transcrita na versão de Amati e depois,


nas versões registrada por Quain, na narrativa de Nituari à Aurore Monod Becquelin
(1993/94: 97-112), na versão Kamaiurá relatada sucintamente por Eduardo
Galvão(1950:353-67) e em outra versão Kamaiurá feita a Menezes
Bastos(1989:182-83;apud Aurore Monod Becquelin:idem:102). Nosso ponto de
partida é a rivalidade intertribal e a justificativa Trumai da conformidade e
diversidade e, os enunciados paralelos ou complementares à essa finalidade.

126
O JAWARI: MITO TRUMAINAS PALAVRAS DEAMATI

Na versão do mito que vai ser apresentada, os antigos Payetã são os verdadeiros
donos do Jawari. São eles que transmitem esse conhecimento aos Trumai. Isso
ocorreu, há muitos e muitos anos atrás. E é assim que Amati conta como foi:

"Existiu os Trumai que eram os irmãos. Um desses se chamava


Kulerlekuch. Eles deram esse nome porque o cabelo dele foi queimado e
ele ficou com o cabelo enrolado. Esse Kulerlekuch estava namorando a
mulher do tio. Ai um dia o tio descobriu. Ele foi na roça e viu
Kulelerkuch conversando junto com a mulher dele. Então, a mulher do
tio falou assim para o sobrinho:
- Deita aqui.
Jogou rama de mandioca, cobriu o rapaz. O marido disfarçou, fez de
conta que não viu nada, ficou lá sentado.
Tirou mandioca?
Tirei
Você veio cedo, só tirou esse tanto assim?
É, a mandioca não deu muito ...
Então pode continuar arrancando mandioca aí, pode continuar.
Enquanto você arranca, eu vou queimar o lixo.
Não queima ai não!
Porque?
Porque ai tem neshakdá, (o pau de tirar mandioca)
Tem nada não, tira lá que eu vou tocar fogo.
Tô ocupada
Ele não quis ouvir. Tocou fogo. O rapaz está lá. Ficou, ficou, ficou, mas
o fogo foi muito e ele saiu correndo de lá de baixo, tchounn ..."

Diante da descoberta do tio, o rapaz se envergonha e resolve ir embora. Os irmãos


vão com ele

- Para onde?
- Eu vou procurar o lugar de onde nós viemos

Ai eles pegaram o rumo do Kranhanhã. Foram embora, foram a pé.


Dormiram lá no mato. Amanhã andaram, sem comer sem nada. Dormir,
beber, só comer beijuzinho. Amanhã encontram um córrego, tomam
água, mataram macaco, se alimentam. Amanhã, amanhã, acharam uma

127
roça. Encontraram uma roça, era capoeira, acompanham a capoeira,
encontram a roça mesmo. Chegando lá, eles ouvem aquele zumzumzum,
pra lá e pra cá, crianças: "Ah, tem gente aí! Algum de nós tem de ir lá
escondido para ver... " Foi um lá escondido. Viu uma velha lá tirando
batata, viu os outros meninos, tudo menino ..
Surpresos, eles constatam que a velha fala uma língua semelhante a deles

"Ela falou, "tukunawi, tukunawi ( ... )falava igual Trumai. Ai ele pensou:
"Ué? Igual Trumai!" Quando ela falou, ele falou igualzinho a ela. Ai ela
perguntou: "com quem você veio? "Com os meus irmãos", ele
respondeu.

Nessa aldeia velha, eles vão festejar o Jawari:

"Nós estamos em festa, vai sair pareát40daqui cinco dias(... )"


Kulerlekuch foi avisar aos irmãos. A velha fica contente e lhes dá de
comer batatas assadas. Depois eles encontram os homens. Visitam a
casa do chefe.
- Vocês conhecem a festa Jawari
-Não
- Vocês vão ver, é muito bonita

Eles ficam lá vendo toda a preparação do Jawari, foram pescar,


chegaram os convidados. Todo esse tempo que eles ficaram lá, eles
casaram lá. Depois eles voltaram para o lugar de onde saíram. Voltaram
para o Kranhãnhã, onde eles moravam. Lá eles começaram a festa.
Explicaram.
Os Kamaiurá foram aprender, os Waurá, Kalapalo ..."

Assim é que surgiu o Jawari. Foi trazido pelos Trumai."

A interpretação do pai de Arnati feita à Aurore Monod Becquelin, mostra alguns


detallies que são omitidos na sua narrativa e que. parecem importante para certas
- .
relações do mito. Eis o que se conta. Quando Kulelerkuch parte com seus irmãos, ele
diz que vai longe para encontrar os índios selvagens. Nos dias que ele fica no mato,
apenas bebe água e dorme. No quinto dia, os irmãos avistam urna aldeia e uma vellia
muito feia e crianças horríveis. Por outro lado, as crianças escutam o barullio dos

40
- o mensageiro encarregado de difundir para as outras aldeias o comunicado de uma festa.

128
Trumai e perguntam à avó, se ela está vendo os índios selvagens. Há um medo
mútuo, mas Kulelerkuch se aproxima e escuta a velha falar a mesma língua que ele.
Ela é gentil e lhe oferece batatas, o que dissipa o medo inicial. Mas, a aldeia Payetã
fica mais longe e a velha vai conduzi-los até ela. O caminho muito longo provoca
medo entre os Trumai. Kulelerkuch vai espiar a aldeia Payetã. A aldeia Payetã é
muito grande, eles estão celebrando o Jawari. A velha leva o sobrinho à casa do
chefe Payetã. Eles são levados à casa das flautas. O chefe mostra a dança e os
diferentes canto do Jawari : canto da flecha quebrada, da palmeira buriti, mutum, do
pelo pubiano, da concha do dardo, do gavião, do tucano etc. Os Trumai aprendem
todos os cantos. Chegam à aldeia os Arawaian e flecham O Trumai dorme. Depois
eles retomam à aldeia inicial e ensínam o jawari às outras tribos.(1993:99-101) Em
outro relato de Nituar~ são quatro irmãos que partem. E na aldeia Payetã, a velha
avisa que eles não devem ter medo dos Trumai porque um deles tem o cabelo
queimado.(idem: 102)

Essas narrativas do mito, colocam a presença do herói cultural e o aprendizado


ritual, categorias da tradição oral que atribuem aos Trumai a legitimação autoral da
prática cerimonial No conflito inicial, que opõe tio e sobrinho, o incesto
desencadeia ações que conduzem aos ancestrais Trumai e à aquisição do Jawari pelo
sobrinho e herói Kulelerkuch, com subsequente distribuição do ritual para as outras
tnbos do Alto Xingu. Esses temas agrupam segmentos que colocam tio e sobrinho
como categorias opostas, que se manifestam também com sentimentos de ciúme e
raiva no tio, e vergonha de Kulelerkuch. A caracteristica fisica adquirida pelo herói,
seus cabelos queimados pelo fogo, é também atributo de aproximação com os
Payetã. A migração dos irmãos, embora desencadeada pelo incesto e a vergonha
provocada com a rivalidade, foi também instigada pela busca das origens, lugar de
onde eles vieram. Na narrativa de Nituari, aparece uma outra razão importante,
aquela movida pelo desejo de encontrar os índios selvagens. A quebra de regras
desencadeia nesse tempo mitico, a vida no mato, que é vivida nos hábitos dos irmãos
que se alimentam pouco, comem macaco e ingerem água, que pode-se associar à
práticas de iniciação. A superação de conflito entre Kulelerkuch e Payetã dá-se

129
através da língua, e permite a Kulelerkuch comunicar-se e aprender os cantos rituais
com os Payetã. A língua, a magia e os cantos rituais são as suas armas.

De maneira semelhante, no mito de Jemenary e seu sobrinho Kelenewary, registrado


por Buell Quain, o filho da irmã de Jemenary comete o incesto com a mulher do tio.
A rivalidade entre os dois homens leva o mais velho a colocar uma série de provas
para derrotar o rival. Este, deve tirar fruto de uma árvore onde foi colocada uma
cobra. Mas ele se livra dela fazendo um desenho de cobra na sua perna com uma
tinha que tira a cobra da árvore. Jemenary manda o sobrinho atravessar o rio no
lugar que certamente um peixe irá comê-lo. Ele leva dentadas, mas cura-se untando-
se com uma outra tintura vegetal. O tio furioso o envia a casa de Chuva, primo
cruzado de Kelenewary, para roubar um objeto de madeira muito importante que
Chuva escondia. Kelenewary chega na aldeia de Chuva e incita-o, repetidamente, à
ter relações sexuais com sua mulher. Depois de muitas noites, o casal exausto
adormece. Kelenewary rouba a madeira e retorna à casa de seu tio, onde continuará
tendo relações com a mulher dele. Mais tarde, os dois personagens estão construindo
a gaiola de urna águia, quando Kelenewary, sentado no alto, diz maliciosamente ao
tio que a águia não era maior que um fio de cabelo pubiano da sua mulher! O tio
enraivecido com a insolência do sobrinho, quebra as varas verticais da estrutura da
gaiola e arremessa o sobrinho pelos ares, para o galho de uma árvore. Kelenewary
ferido é levado por Nane, a criatura com forma humana, mas capaz de voar, para a
sua aldeia. O sobrenatural para curá-lo fuz ele beber ervas medicinais e, ao mesmo
tempo, aumenta seu tamanho desmedidamente. O tio desesperado cria um cervídeo,
na esperança que ele possa matar o sobrinho. Porém, Kelenewary lança seus dardos
contra o animal, que atinge e mata o tio de forma fulminante. Com o fim da
rivalidade, o sobrinho retorna aos braços da mulher do tio morto.(Buell
Quain&Murphy:l955: 76)

As características dos heróis Kulelerkuch e Kelenewary, são análogas às da entidade


Dinitkê que vive nas aldeias do céu, tem o corpo negro e cabelos calcinados pelo sol,
voz do trovão e a borduna do raio. Também se aproxima de Enutíkia dos Mehinaku
que possui o fogo, a voz de trovão, enunciados da chuva e das possibilidades de boas

130
colheitas e da fertilidade, junto com dois outros sobrenaturais, Amaiíi e lêbe (
nuvem). Essas mesmas entidades são no entanto, consideradas malignas pelos
Matipú-Nahukuá por causarem o raio e a ventania.(Maria Heloisa Fénelon
Costa:l987:252-53) Ora, na aventura narrada por Arnati, embora ele encubra os
sinais da relação com o sobrenatural, há indícios de aproximação na rivalidade entre
o tio e o sobrinho, na dieta alimentar, nos cabelos queimados pelo fogo, provável
resultado do arremesso de urna flecha do Jawari, o que aproxima o herói
Kulelerkuch do sobrenatural do céu. O que porém, fica mais nítido no mito que
Quain apresenta, é a relação entre a rivalidade e o esforço sobre-humano de urna
relação homem e mulher e o poder transgressor, sobre as regras de parentesco. Isso
sugere criar ligações entre a disputa pelas mulheres e a rivalidade que na mitologia
relaciona sexualidade e fertilidade, e entidades do no céu das aves que se opõem,
como os vivos e os mortos.

Urna outra aproximação é possível no espectro da mitologia relatada, pois a língua


se associa para Amati ao código da linguagem ritual dos cantores e à comunicação
entre passado e presente. Desse ponto de vista, é possível admitir que ela se
apresenta como metáfora da voz do trovão, com o sentido de fertilidade e inovação
de práticas rituais de seu povo. A palavra ritual é o dom que celebra o vôo e o transe
de um pássaro.

Situação Conflito Conformidade


Aldeia original Rivalidades de
Trumai parentesco, disputa de
mulheres
Vivência do mato Procura das ori2:ens Iniciação
Aldeia velha Incerteza entre mansos e Língua, Ritual
Kulelerkuch + selvagens Jawari, casamento,
Payetã fartura
Retomo ao Xingu Difusão do Jawari
pelos Trumai

A VERSÃOKAMAIURÁ DOJAWARI

131
Nos anos 50, Galvão registrou entre os Kamaiurá uma versão do Jawari. Kwát, Sol,
neto do criador Mavutsinin, desafia o filho de Panhetá, "dono do Jawari", do grupo
Kawahyb. Mesmo desconhecendo a arma e suas regras, Kwát torna-se vencedor do
duelo, e com um lance certeiro do propulsor, mata o filho de Panhetá. Os vitoriosos
Kamaiurá dizimam os Kawahyb, e instituem posteriormente o uso da arma como
jogo, adotando por convenção a restrição dos arremessos à parte inferior do corpo,
na coxa, para evitar que por sua vez eles sofressem o mesmo fim que os Kawahyb. 41

Uma interpretação diferente foi registrada por Menezes Bastos, também entre os
Kamaiurá.

Antigamente, na aldeia Trumai Waniwani, um chefe surpreendeu Cabeça de Mutum


fornicando com suas duas esposas. Ele, furioso, lançou o propulsor contra Cabeça de
Mutum ferindo-lhe no pescoço. Cabeça de Mutum foge para o mato, mas o chefe
toca fogo e queima sua cabeleira Envergonhado, ele e seus irmãos vão embora para
a terra dos mdios selvagens. No mato eles passam fome, dormem à beira da água,
enfrentam animais selvagens. Em seguida, acontece mais ou menos a mesma coisa
que foi narrada por Amati: o encontro com Payetã e o aprendizado do jawari pelos
Trumai. O detalhe a acrescentar sublinha, no entanto, a categoria selvagem dos
Payetã e seus convidados, Anumania, ancestrais canibais dos Aweti.(1989: 182-83;
apud Aurore Monod Becquelin:1993: 102)

A comparação das versões Trumai e Kamaiurá, mostra a diferença que existe entre
elas na primeira versão, e, a semelhança que a segunda estabelece. Para salientar
dois traços diferentes: os ancestrais e a divisão entre mdios mansos e bravos. Para os

41
- "(•• ) ao tempo de Kwat e lay, os gêmeos filhos de Mavutxinin, o herói civilizador, o iawari era
conhecido apenas pelos Kawahyb, tribo tida como muito IJrava. Panhetá, lider ou herói desses Kawahyb
era "dono do iawan''. Kwát, um dos gêmeos Kamayurá jogou iawari com o filho de Panhetá. Embora
desconhecesse o manejo do propulsor, foi bem sucedido e matou o filho de Panhetá, acertando-lhe um
dardo na cabeça. Kawahyb opáp - os Kawahyb acabaram-se, comentam os Kamayurá. Kwat, trouxe o
iawari para os companhell:os da tribo e lhes ensinou o jogo. Estabeleceu, porém, que os dardos somente
poderiam ser atirados na altura da coxa dos adversários para evitar o que sucedera ao filho de Panhetá,
isto é, golpes mortais. Na base dessa lenda, os Kamayurá se declaram introdutores do iawari entre as
demais tribos xinguanas. ( .. )" Galvão considera a festa do Jawari como a manifestação de rivalidades
intertribais nos termos de uma competição cerimonial - desportiva. Ela era então praticada pelos Waurá,
Aweti, Kamayura e Trumai. Eduardo Galvão, Q uso do propulsor entre 'l,'! tribos do Xingu. in Revista do
Museu Paulista, vol. IV, 1955, p. 355 e 365

132
Kamaiurá, o mito ocorre no tempo do heróicivilizador Sol ou, na aldeia Trumai do
céu, esfera dos mortos, Waniwani. A primeira versão, enaltece a natureza do duelo, e
o êxito de Kwát celebra a supremacia Kamaiurá e a ordem simbólica sobre os
conflitos de guerras, com a eliminação dos mdios selvagens.

Donos do Jawari Herdeiros do Herói cultural


Jawari
Payetã Trumai
Kulerlekuch
Panhetá Kamaiurá
Kawahib Kuát

Eduardo Galvão coloca o ritual do Jawari como "um mecanismo estabilizador das
relações intertribais ", que canaliza as atitudes de rivalidade e as tendências
agressivas para uma expressão social e culturalmente sancionada, que se realiza na
competição esportiva simbólica de atividades guerreiras."(1950: 365) Ao mesmo
tempo, ele define a posição Kamaiurá dentro do mito, como resultado da "posição
evidentemente etnocêntrica" desse grupo. (idem:355) Ao invés, os Trumai propõem
para o centro da cena, o herói Kulelerkuch. Na versão de Amati, o aprendizado de
Kulelerkuch, o jovem do "cabelo queimado'', não enaltece vencedores ou vencidos.
Mas o gancho com o ritual de lutas se mantém. Para o herói Trumai a conformidade
é dada no processo ritual, na iniciação dos cantos, e não na disputa guerreira, embora
Kulelerkuch seja também um ser da guerra, com conotações de trickster astuto, ele é
propiciador da conformidade estabelecida entre o tempo do sobrinho e um tempo
mais antigo, dos Payetã.

Acho interessante comentar na comparação entre as diferentes versões, como


Trumai e Kamaiurá se vêm e vêm o "outro". Partindo do início.

As observações dos habitantes do Alto Xingu sublinham a integração cultural no


núcleo de heróis e mitos comuns. Essa convergência permitiu aos onze grupos
iniciais viverem em harmonia entre si criando uma verdadeira sociedade da área do
uluri. Mas, a integração define também uma nítida distinção entre:
xinguanos x não xinguanos.

133
povos mansos x bravos, "descendentes de "cobra", os grupos inimigos, e os
descendentes do herói civilizador

Para os Trumai, a categoria de oposição manso e bravo, é por vezes ambígua, e por
outras vezes ausente. Os Payetã parecem bravos, os Trumai parecem bravos, um e
outro parecem bravos, mas são mansos. A categoria selvagem é inválida ou
disfarçada. E para isso, contribui o argwnento que os Trumai tratam de sancionar
com o mito, sua eficácia simbólica na esfera da cultura do Alto Xingu. Do lado dos
Kamaiurá, .ao contrário, trata-se de frisar a oposição entre mansos e bravos, e
destacar a supremacia dos primeiros e a descendência do herói Sol. Sol, que vence
os selvagens e com isso instaura a ordem ritual e o tempo de paz. Isso remete, ao
mesmo tempo, à associação entre: inimigo selvagem e prática do canibalismo. Isso é
dito na referência aos ancestrais dos Aweti, os Anumania.(Menezes Bastos apud
AMB idem:102-103) Esse é um dos aspectos que brotou na superficie.

Outra questão, refere-se à rivalidade própria aos Trumai e Kamaiurá. Esta é uma
realidade histórica, provavelmente recente, e não é surpresa que no espectro de
representações da rivalidades ·seja-lhe dada atenção especial. Ela contrapõe
linhagens ancestrais: Sol e Lua x Payetã e, nos envia a conformidade cultural e a
identidade do grupo e aos aspectos da história e inserção Trumai no Xingu.
Passamos a um breve comentário, antes de encerrar.

O sistema de relações que produz a troca de bens comuns pela colaboração e


interdependência de especializações de cada um dos grupos para a existência
conjunta, propicia, por um lado, a uniformidade do estilo de vida, por outro,
estimula elementos com função de mecanismos adaptativos. A complementaridade
entre aquilo que é comum e o que é peculiar, forma o paradigma das alianças e
rivalidades. As particularidades mantêm a distinção e impedem a pura e simples
diluição de urna cultura na outra. O mecanismo é explícito no sistema que organiza
as trocas de objetos artesanais. Para Carmen Junqueira, ele tem importância visível
para o equilíbrio entre as partes, não por serem resultado de elaborações técnicas
maiores uma que as outras, já que técnicas e recursos naturais são conhecimentos

134
comuns, mas como especializações que, passando pelo crivo seletivo das tradições
culturais de cada grupo, foram incorporadas à proposta de conjunto das diversidades.
É o que acontece com o arco talhado em madeira escura que os Kamaiurá
mantiveram como especialização nos vínculos econômicos com os outros grupos,
definindo para eles um lugar preciso nas relações de trocas, ao mesmo tempo,
propiciando o equilíbrio adaptativo do grupo.(1975:25) O mesmo acontece com os
Waurá em relação à cerâmica ou com o colar de concha dos Kalapalo e Kuikuru.
Para os Trumai, ao longo dos anos admitiu-se duas especializações: o machado de
pedra e os bancos de madeira na forma de uma ave bicéfala ou de três cabeças. Em
outras ocasiões falou-se também na produção de sal. Porém, essas habilidades não
chegam a constituir-se como parte do sistema de trocas. Isso parece vir a acontecer
no âmbito do simbólico, com o ritual do Jawari. Desse modo, o mito representa
importante aparato de interlocução com a cultura xinguana.

Na construção de um relato, os mitos associam representações produzidas em


processos de socialização do imaginário coletivo com aventuras de heróis, sistemas
de aquisição de poderes extra humanos, situações de como nasceram os homens,
rivalidades, mortes ou guerras que se socializam nas encenações rituais. Mitos e
rituais são básicos para a eficiência das regras e responsabilidades sociais. Fora da
pauta da escrita, as narrativas de Amati perfilam a galeria de "histórias verdadeiras"
de origem sobrenatural, conceito que define para Mircea Eliade, os glossários que
explicam o que nos preocupa, entristece ou apazigua com linguagens e metáforas
que, soam por vezes como o emaranhado de idéias confusas. Encontrar a
comunicação com os sentidos encobertos dos mitos, requer a princípio saber quem
são os agentes dos discursos e quais os processos de sua transmissão. Isso provocou
inúmeras teorias dos mitos na antropologia. Para citar dois exemplos que podem nos
servir de referência para a mitologia dos Trumai, Joseph Campbell e Lévi-Strauss,
são parâmetros diferentes. O primeiro toca a temática das mitologias americanas
como resultado de estágios socio-cosmológicos e arquetípicos de pensamentos que
foram transmitidos e modificados no decorrer de longos percursos e tempo. Mitos
do mundo neolítico e paleolítico com construções de pensamento diversos que
Campbell retoma de Mircea Eliade para ressaltar a influência dos caçadores que

135
chegam às Américas, o livre trânsito da personalidade esotérica com o sobrenatural
no transe do pajé e o vôo de urna ave. Esse é um ponto de contato importante para os
mitos Trurnai e o do Jawari.

De outro modo, Lévi-Strauss fala dos mitos e rituais como reflexões mito poéticas
elaboradas pelo modus operandis de técnicas de bricolagem. São nessas aparentes
colchas de retalho que repousam o equihbrio das significações simbólicas.(1970:37-
43) A ciência do concreto constrói seu conhecimento como ordenação do caos e
desejo de manter estável o conteúdo sagrado das coisas. Mito e a arte oferecem com
palavras, objetos e imagens, experiências com o sobrenatural que se remetem ao
tempo onde todos os tempos se igualam As narrativas são matérias trabalhadas da
mesma forma que os objetos: em sintonias do sagrado, e não com o sagrado. A
estética é a ordem visível do sentido, a satisfação intelectual que permutou
elementos e ritmos de sistemas expressivos de modelos sociais.(1993:158) A
montagem da estrutura formada por imagens - signos toma a forma residual na
composição de fragmentos que refletem modos de pensar elaborados como diversos
livros sobrepostos na memória, cuja leitura pode ser feita em várias direções. Essa
técnica de bricolagem permite as costura e a leitura dos pontos de contato entre
culturas, a partir de urna exaustiva comparação das analogias e mudanças existentes
nos vários mitos, e nos permite tomar o mito como fonte de novos conhecimentos. A
bricolagem pressupõe um sistema fechado e limita-se a condição das imagens aos
signos. A junção incidental toma a forma complexa, mas dela é possível extrair
diversas associações. Com o signo, opera-se a elaboração contínua de novos
uníversos que renascem de escombros: fins se transforma em meios, significados em
significantes. É a própria organização estrutural do discurso que traz a "leitura" dos
signos com a comparação dos elementos entre si, ou com paralelos comparativos de
vários mitos, que dessa forma mostram o invariável e variável das construções,
permitindo o entendimento particular e uníversal do pensamento codificado. O
pensamento mágico comanda o espetáculo que, periodicamente, é posto em
movimento pelos rituais. O aspecto das sobreposições de imagens como resíduos de
sentidos está presente nos mitos Trumai e em alguns quadros de Amati que vamos
mostrar posteriormente. Porém, nossa perspectiva não é estrutural. O que tentamos

136

,,
'
foi dar ao Jawari uma interpretação sociológica, partindo de estudos que
tradicionalmente enveredam nessa direção. Nesse aspecto, a análise de Lévi-Strauss
que aborda a relação entre mito e história nos é mais cara, sobretudo quando ele
pergunta onde acaba a mitologia e começa a história nas narrativas indígenas
transcritas. No caso de dois livros tsiamshian, os relatos testemunham "histórias sem
arquivos, sem documentos escritos, que como tradição oral aparecem ao mesmo
tempo como história." Sobre isso, a narrativa de Amati é exemplar.

No relato do mito registrado em outubro de 1997 na casa de Amati em Canarana, ele


concluiu a narrativa com a observação que compara a preparação do Kwarup - ritual
dos mortos dos grupos tupi, caribe e aruak celebrado anualmente - com a preparação
do Jawari que, embora com fins semelhantes, leva muito mais tempo para acontecer.
Os antigos vão contabilizando esse tempo através de nos que eles dão em suas
cordas, até chegar finalmente a época da celebração. Observa-se sua intenção de
sublinhar os laços dos Jawari com o mundo dos antigos com uma pitada de crítica
ao ritual do Kwarup. A afrrmativa se pauta na diferença assinalada por Junqueira
que identifica o Kwarup com a conformidade pela integração dos grupos "acima de
suas peculiaridades e de suas oposições ( .. )" "tendo por centro Mavutsinin, herói
cultural e criador."(1975:28) Essa observação se complementa quando Amati
informa que os Trumai não participam desse ritual. Privilegiando o ritual do Jawari,
em todos os seus sentidos, Amati coloca a fricção ente conformidade e rivalidade na
esfera ritual. Aprender com os Payetã, além das afinidades entre Trumai e Payetã,
vencidos pelos Kamaiurá, apresenta-se como argumento que homologa no convívio
social a identidade diversa. Tempos míticos do Jawari e da migração se confundem
na premissa da superação da origem exógena. Sejam eles de origem brava ou não,
essa criação é paradoxal: inclui-os na categoria mansos na contribuição simbólica
que celebra rivalidades. Com os relatos da migração e história no Alto Xillgu, Amati
reporta dois momentos da escala de representações políticas da identidade. Sobre
isso, o Jawari iniciado com a desordem, é o resultado da trajetória do clã de cabelos
queimados, que atravessou uma série de provações e ao final coloca uma saída, e
não um fim desastroso, na recompensa simbólica. Para os Trumai isso contrabalança
os aspectos espinhosos que marcaram a sua identidade e autoridade. A raiz mítica

137
permite enfrentar a conformidade na história; E na luta ideológica, eles parecem
finahnente não serem mais tão perdedores, prova disso, a versão posterior dos
Kamaiurá que, embora com reservas, admite caber -lhes a difusão do ritual na
região.

Dentro do grupo Truma~ Amati é o herdeiro intelectual de seu pai e assume o lugar
de primeiro narrador das tradições Trumai. Formador da memória coletiva, fermenta
com engenhoso bricolagem os mitos historiados e construção imaginária Memória
herdada e atualizada. Imagens, sons, fragmentos, sentidos aparentemente simples
que são pontas de icebergs de práticas mágicas, história de rivalidades e afeto entre
os sexos. Formas que reconstroem caminhos e referências significativas para ele e
os Trumai, se inspirando de musas sapos, capivara, onças, pássaros, que trazem ao
presente, forças de ser e do dar a ser, na linguagem que Jaa Torrano define como
"palavras que decidem sobre a revelação e o esquecimento do mundo." (1981: 35)

Os mitos são fundamentais para que se entenda a pintura de Amati. Esse capítulo
termina quando vai iniciar-se a abordagem da arte.

138
4. A ARTE DO XINGU E DOS TRUMAI

139
O capítulo retorna à Karl von den Steinen, com o propósito de expor seus argumentos
teóricos e observações do grafismo e objetos, e, formula, em concordância com Franz
13oas, a contribuição e limitações de suas análises. Os doi s únicos trabalhos sobre a arte
'li-umai, as anotações das atividades artesanais de B.Quain (1955), e um artigo de A .
M. Becquelin(l 993) engendram descrições e relações entre padrões, pinturas e
significados da arte no corpo e nos objetos. As duas referências buscam avivar a
memória das práticas Trumai e, ao mesmo tempo, discutir certas articulações da arte
com os mitos. A problemática do "modelo animal", inaugurada com Karl von den
Steinen, articula-se, nas expressões materiais, aos seus conteúdos indistintos. A arte é
tratada como manifestação do sobrenatural, nas cores, objetos e corpo. Significativa e
simbólica nos objetos; no corpo, elemento de integração e, portadora de poderes e
conhecimentos mágicos. Por fim, na abordagem dos poderes de metamorfose dos
antigos, afirma-se o pensamento mágico-religioso, como matriz da criatividade que
transforma objetos em coisas vivas .
Sit.;:~\•::wa
Nadir Gouvêa r·:fouri
PUC/SP

140
4.1. A Visão Do Século XIX
A abordagem da organização mental levou Karl von den Steinen a uma série de
comparações das possibilidade de variações e multiplicações das manifestações
culturais, e a distinguir as origens da psique humana e as causas psicológicas comuns à
humanidade. Um dos aspectos importantes desse processo evolutivo, está a atitude de
representar. A imitação visual, a reprodução sonora e o gestual resultam da necessidade
de comunicação e do prazer de expressar. O desenho encerra diferentes facetas .da
comunicação e é fator importante na vida dos caçadores, cujas técnicas de imitação de
animais durante as caçadas, e nas narrativas posteriores, explicavam as particularidades
dos bichos ou os feitos da caçada ou da pesca.(1940:299) De certa forma, a
comunicação foi fruto da necessidade deles tornarem mais eficazes a vida produtiva e
cotidiana, e significou um conjunto de atitudes que permitiram aos homens viver
melhor. Por outro lado, sem o prazer que a imitação ou o gesto causam no mais íntimo
do ser humano, não existiria a expressão.

Na relação entre a comunicação espontânea e a representação se encontra um dos


fatores da transformação do processo de elaboração das técnicas de comunicação, em
técnicas de expressão. A transmissão das idéias sofre limitações e cria contingências
que acabam sendo transpostas, diversificando o gestual na expressão do traço. Dá-se
então o processo de ampliação das categorias, que o enriquecimento de descobertas
técnicas aliam à facilidade de imprimir em certos materiais, no prazer de descobrir
possibilidades de manuseá-los. Os materiais fornecidos diretamente pela natureza são
apropriados não apenas como aparato técnico, mas como parte de mecanismos que
engendram o prazer na psique. Da simples indicação ou sinalização que comunica um
conhecimento, nasce o desenho como expressão artística. Extensão do gesto, ele é
também o resultado estético inerente ao ser humano, embora se aprimore com as
mudanças das bases materiais e mentais dos homens. Consequentemente, a atividade
artística não decorre como simples resultado do maior desenvolvimento das sociedades.
Prova disso é a primorosa elaboração estética dos caçadores que muitas vezes
ultrapassa, nos desenhos explicativos, os desenhos de povos que atingiram a
agricultura. Essas primeiras expressões não se limitam a gestos toscos e já se revelam

141
como parte do sentimento estético que anirria os homens. Comparando os traços dos
Bororo com os dos povos do Xingu, von den Steinen identifica, nos modelos de
explicações dos primeiros,. dons artísticos que em desenhos de diferentes partes dos
animais eles preenchiam com cinzas ou outros materiais para dar-lhes mais contraste e
vida. Em seu exemplo, os Borôro ignoravam as artes representativas e ornamentais em
seus artefatos, e os desenhos não tinham se convertido em meio de expressão artística
ou de ornamentação de formas plásticas. Contrariamente, no Xingu, os desenhos
explicativos eram menos elaborados, embora os caçadores e pescadores, vivendo de
maneira sedentária, tivessem intensificado suas atividades artísticas, e seus artefatos e
utensílios fossem ricamente ornados. Consequentemente, na expressão estética, Borôro
e Xinguanos não se distinguiam por um maior ou menor grau de desenvolvimento da
habilidade manual, mas pela atividade produtiva que levara esses últimos ao
amadurecimento técnico, sistematizado na vida sedentária alcançando, entre os
xinguanos, o sentimento puramente estético, desvinculado da comunicação.

Karl von den Steinen não visava apreender nos desenhos relações com os mitos ou
parâmetros sócio-culturais, recusando-se à leitura simbólica da arte xinguana Mais do
que isso, sustenta que, no Brasil, nem os desenhos rupestres, nem os dos índios do
século XIX, tão pouco traduziam códigos duradouros de linguagem. Seu trabalho busca
a explicação adequada ao método de análise que propunha entender porque os desenhos
abstratos do Xingu retinham as referências concretas dos modelos de animais. A esse
questionamento ele responde conjugando a expressão artística ª convivência de
múltiplos estágios da evolução da vida de caçadores e pescadores, que embora tivessem
adotado a estabilidade sedentária, que permitiu-lhes lazer e desenvolvimento da arte
nos diferentes objetos, nem por isso deixaram de pensar com a referência do sistema
mental dos caçadores. Assim, a percepção psicológica preservara a referência original
do modelo original, embora as formas tivessem perdido o poder de verossimilhança e a
raiz da imitação. Convivendo com estágios ulteriores de desenvolvimento, a temática
dessa arte, permanecia sob o comando da psique de "homens da idade da pedra."

142
Os desenhos encontrados na areia suscitaram perguntas sobre as possíveis
correspondências com um código de linguagem embrionário. Representavam ou não
um alfabeto?

Em duas situações, von den Steinen percebeu os diferentes alcances dos desenhos. Uma
vez, passando por um lugar onde alguns índios da expedição tinham parado pouco
tempo antes e desenhado na areia o peixe matrinchã, ele pescou essa espécie de peixe,
razão pela qual deduziu na indicação gráfica um valor de palavra ou de sinal
iconográfico. Porém, mais adiante, encontrou fixado na areia os desenhos de uma arraia
e de um pacú, mas a mesma pesca não se repetiu. E dessa vez deduziu que o mais
provável era que os desenhos indicassem o passa tempo de alguém que por ali passou.
Se, no primeiro exemplo, o desenho remetia claramente ao uso de uma linguagem
gráfica, no segundo, a atitude de lazer parecia desprovida de outra intenção que a de um
simples gesto de lazer e estética.

Os desenhos xmguanos eram explicados de maneira não sistemática pelos índios,


dificultando a compreensão simbólica ou ideográfica. Quando um Suyá desenhou na
areia o cursos de rios, localizações de tribos, acidentes geográficos, aldeias e
disposições de casas e praças, a linguagem gráfica não correspondia posteriormente às
mesmas referências ou a identificação com o real, ou a algo que lhe parecesse ir além
da manifestação pessoal. Freqüentemente, outros índios desenhavam um mesmo objeto
de várias maneiras, ou diferentes pessoas representavam com várias formas uma mesma
referência. Isso criava dificuldade de interpretá-las como sinais gráficos de uma
linguagem elaborada. Do que pôde depois observar nos objetos, von den Steinen
deduziu na falta de sistematização entre forma e sentido, uma comunicação gráfica que
as vezes se manifestava, mas que, no entanto, não chegara a adquirir o valor
correspondente ao de uma linguagem ideográfica propriamente dita.
Consequentemente, os desenhos espalhados pelo espaço geográfico não apresentavam
significados especiais, e sem a continuidade da comunicação era impossível identificá-
los a um código que unisse sinais e certas referências ou objetos. Mas, apesar de não
constituírem uma escrita ideográfica, os desenhos se referiam ao esquema de um objeto

143
bem definido, "( .. )desenhados tendo · diante dos olhos, um modelo
determinado. "(idem:34 l)

Steinen, identifica o primeiro passo do ato de representar com aquele que transforma as
imagens do imaginário do artista em formas exteriores. No contexto de um processo
evolutivo, as imagens do imaginário transformam-se em imagens externas,
conceituando a "noção de figura," sugerindo que a forma realista apareceu em primeiro
lugar, pela conformidade entre a forma e o modelo. Ele e Ehrenreich pensaram o
grafismo como derivado de formas identificadas com a morfologia de animais, a
imitação da textura de suas peles ou partes de seu corpo. O processo de mudança do
estilo ocorre nos aprendizado técnico e contato com o objeto e os meios de produzi-lo,
que desenvolvem o jogo entre representação e modelo, provocando as modificações na
representação. Na observação das semelhanças e nas variações do modelo original,
surgem outras relações que aliadas à impossibilidade de deter a interferência da técnica,
criam formas geométricas mais simples que acabam se impondo às mais complicadas
no prazer de " .. desenhar um peixe com poucos traços."(idem:333) Porém, a maneira
estilizada de representar não libera o artista do modelo original, pois ele mantém-se
ligado aos esquemas mentais do mundo dos caçadores e pescadores. As formas
abstratas e a tradição convencional do desenho decorativo passam a predominar, sem
que se crie um pensamento abstrato, permanecendo o significado das formas atado aos
seus modelos concretos anteriores. 42 von den Steinen explica a mudança por meio da
classificação dos desenhos, pela maior ou menor identidade entre padrões e modelos
originais. Uma escala progressiva de mudanças coloca em um extremo a figura
verossímil e, no outro, a representação abstrata, no intuito de verificar até que ponto a
representação manteve a identificação entre forma e modelo, comprovando a
permanência ou distanciamento da identidade entre ambos. Assim, o xmguano ou o
homem "primitivo" quando desenha um triângulo.' não o faz por um poder de abstração,

42
-" Dessas cópias concretas, finalmente se formou, com uma tradição sempre mais distanciada do
original, em sentido artístico sob a influência do respectivo método em material de trabalho, a obra de arte
estilizada, que, no espírito de nossos índios ainda está intimamente ligada à cópia antiga. No domínio da
pintura topamos tais produtos em forma de ornamentos geométricos. Pontos e traços podem ser
equivalentes às marcas antigas. Mas já as figuras "simples", como triângulos e quadrados, que seria
permitido julgar também o artista mais primitivo pudesse construir livremente, só se formaram, por
estilização, de cópias anteriores. Como se impunham por si mesmos à técnica, como tipos, facilmente
venceram a concorrencia das formas mais complicadas"

144
mas chega à abstração inspirado no modelo existente. A geometria xmguana não
decorre dos mesmos princípios que a do homem ocidental, que chega a ela por
conceitos nascidos de sua imaginação. Von den Steinen considera então, o uluri, "um
arqueopteryx da matemática"(idem)

A estabilidade sedentária permitira desenvolver a arte nos diferentes objetos mas, ao


mesmo tempo, os xinguanos permaneceram fiéis à referência do mundo animal e ao
sistema mental dos caçadores. Consequentemente, a abstração do modelo significava
que a percepção psicológica do homem primitivo preservara nas formas representadas a
referência do modelo original, embora elas tivesse perdido o poder de verossimilhança
e a raiz da imitação. Ele faz intervir também, nesse recorte, a relação com o meio (a
natureza), e os processos que remetem o homem às técnicas adquiridas. O que acontece
depois, é o abandono do sentido inicial pelas gerações seguintes, ou um esquecimento
completo do sentido inicial, sob a influência da diferenciação lingüística existente no
Xingue as trocas dos vocábulos que passam a ser usados como termos técnicos.(idem)
O princípio universal do sentimentos estético, aquilo que Darcy Ribeiro chamou de
Vontade de Beleza, comprova-se como atributo da espécie humana, ao mesmo temo
que a particularidade da expressão artística, conjuga, em seu resultado, os estágios
diferentes da evolução.

O aspecto descritivo e histórico da pesquisa que von den Steinen iniciou na área do Alto
Xingu tem um valor inestimável. O inventário dos costumes, das línguas, formas
plásticas e grafismo, artefatos e objetos rituais, tornam seu trabalho imprescindível até
os dias de hoje. Diz Hebert Baldus, citando Erland Nordenskiõld, na introdução à
tradução do segundo livro de von den Steinen:

"(..) Como seriam os nossos conhecimentos da história da civilização da América


infinitamente mais pobres, se qualquer outro explorador tivesse percorrido em pnmeiro
lugar o rio Xingu(..).(apud Karl von den Steinen: 1940:6)

Porém, sua pesquisa sofre as limitações de seu tempo ao submeter a relação dinâmica da
arte ao modelo evolutivo, se afastando da complexidade simbólica dos objetos e de suas
relações com os mitos e o contexto social. Seguindo a ordem formal, von den Steinen
explica a escolha e preferência dos xinguanos por certos padrões, pela morfologia do

145
animal - forma, tamanho, cor - que facilita a transmissão de suas propriedades "fisicas"
à matéria. O ideal, colocado na relação de semelhança entre figura e modelo, vêm da
filosofia clássica, que em Platão imita a aparência sensível dos corpos, mantendo-se fiel
ao modelo e às suas exatas proporções.(Panofsky: 1994:ll)Mas, o modelo de Steinen,
parece próximo dos principias da Renascença, das leis da perspectiva que o artista,
diante de sua própria imaginação deve seguir na anatomia do modelo vivo, harmonia
das cores e relação de volumes. Seu trabalho tem grande repercussão, mas é criticado
por Franz Boas (1947) nos aspectos da morfologia, pela instabilidade da relação entre
forma e modelo. Já distanciado do evolucionismo, Boas coloca a relação dos elementos
da linguagem estética como resultado da cultura. É ela que induz a formulação de um
tipo de forma fixa, a estabilidade formal que associada à imaginação engendra o estilo.
O sentimento estético manifesta-se mesmo quando a maturidade técnica não se
desenvolveu. Mas é essencial distinguir, como fontes do efeito estético, as formas e as
idéias a elas associadas.

146
4.2. Características Da Arte do Alto Xingu e dos Trumai

A observação da arte do Alto Xingu define a escolha plástica de inspiração no mundo


animal e vegetal. Os mesmos padrões observados por Karl von den Steinen conservam-
se ainda hoje como os preferidos dos artistas xinguanos. Os merexu e uluri,
caracterizados, os primeiros, por losangos, e os segundos, por triângulos, ainda são os
mais populares. O que foi mudando ao longo do último século refere-se, de um lado, á
perda de certos suportes e grafismos e, de outro, às interpretações que se fez dessa arte.
As técnicas da cerâmica, os artefatos de caça e pesca, os entalhes em madeira,
principalmente os bancos, a utilização de conchas, sementes e coquinhos de palmeiras
na confecção de colares; a plumária nos adereços de cabeça e corpo, os trançados, os
instrumentos musicais, enfim, uma infinidade de outros bens são ainda encontrados
com freqüência. Outros, como as pinturas em casca de árvores, as esculturas figurativas
em madeira, certos adereços feitos de embira para os rituais, os zunidores, os paus de
desenterrar mandioca de punhos entalhados e com decoração, tortuais, figuras em
palha, cera e espiga de milho que adornavam casas e cabeças ou simplesmente serviam
de brinquedo às crianças, se não desapareceram completamente, são muito raramente
encontrados. Algumas características técnicas se simplificaram, não necessariamente
pelo gosto de simplificar, mas pelas transformações vindas do contato prolongado com
os objetos industrializados. Novos elementos se agregam ao gosto local.

Quando Mavutsinin criou a humanidade, ele deu a cada um dos grupos do Alto
Xingu um objeto. No moitará, os grupos se encontram para o comércio, e trocam
entre si esses e outros objetos ou alimentos. De maneira semelhante aos grupos do
Alto rio Negro na Amazônia e na região das Guianas (B.G. Ribeiro: 1995),
conservam-se particularidades e as especializações artesanais identificam-se aos
povos. Os Trumai dão a essas trocas o nome kawiliho, que é o mesmo nome da
andorinha que gosta de voar na estação da chuva:

"Kamaiurá chama de Moitará, Trumai de Kawiliho, a andorinha que gosta


de voar no tempo da chuva também. Então nós demos o nome dela para

147
quando vamos trocar. Cada um leva suas coisas. Mas existe troca na aldeia,
só no tempo da chuva. Se chover bastante, amanhã eles trocam, qualquer
coisa, objeto, comida, " O que você quer trocar?"

Com essa maneira simples e singela, as especializações estabelecem a relação de


identidade entre grupo e objeto e, ao mesmo tempo, mantêm a diferenciação e
.
a11mentam os 1aços comuns. 43

Considerando de maneira genérica, o artista são todos os homens para certos tipos de
especialização e todas as mulheres para outras. A divisão sexual demarca campos
distintos de atividades, mas não distingue, entre as mulheres e entre os homens, os que
fazem porque sabem ou os que não fazem porque não sabem: a arte é conhecimento de
todos; e desenhos e pinturas no corpo, objetos e artefatos se incorporam práticas rituais
ou ao uso cotidiano. Aos homens cabem os entalhe na madeira (bancos, instrumentos
musicais, máscaras, instrumentos de pesca e caça, viradores de beiju) conchas (colares
rituais), penas ( adornos de cabeça, braço) e palha (cestos, instrumentos de pesca). Às
mulheres compete o barro (utensílios, instrumento ritual), tecelagem (redes e tecidos),
trançado (esteiras twavi), e, acrescente-se, colares, anéis, pulseiras de sementes,
coquinhos de palmeira, esculpidos em formas animais, trabalhos em miçanga
enfileiradas de maneira simples ou em formas de desenhos geométricos.

Aspectos estéticos envolvem com grande riqueza não apenas a ampla gama de
manifestações, mas os atributos particulares aos objetos. No campo de particularidades
convém retomar a von den Steinen. Dos objetos observados, alguns mais claramente
que outros, expressa a relação entre forma-e função, na característica do animal que nele
é representado plasticamente ou no grafismo. Dois tipos são muito claros em suas
proposições: os paus de desenterrar mandioca e os pentes.

Os paus de desenterrar mandioca, medindo entre 60 a 65 cm, eram talhados em madeira


dura, pontiaguda e adornados com motivos merexu, e trançados em palha. Alguns
exibiam esculpidos na sua parte superior e mai: "o.sa a cabeça e ·.na formiga que

43
- No capítulo 3 (Capítulo3.3), as especializações sãc :adas em persp' _- om as tensões e
complementaridade entre os grupos.

148
levanta areia", ou, vespas, o que estabelece de imediato a relação entre o animal que
cava e o objeto que também foi feito com esse fim.(1940:364-65) Os pentes são outro
exemplo. O artesão dispõe varetas de madeira e trançados em losangos para dar maior
firmeza ao objeto. Entalhando figuras zoomorfas representou preferencialmente a onça
e o agutí. De forma semelhante ao exemplo anterior, o ato associa a beleza dos pelos
destes animais, o hábito deles se alisarem, e a função do objeto feito para
pentear.(idem:366) Por analogia, propriedades do animal são transmitidas ao objeto que
cumpre, ao mesmo tempo, a função prática e simbólica.

Pá de virar beijn
As pás de virar beiju, quase sempre recobertas com desenhos, no passado tiveram
formas omitomorfas que hoje foram simplificadas. Do corpo do objeto em meia lua,
correspondendo ao corpo do animal, saia um punho superior onde é entalhada a cabeça
de uma ave. Não se pode dizer que haja semelhança entre características animal e
função do objeto. Porém, as formas talvez evocassem correspondências entre astro,
animal e vegetal: lua, ave e mandioca. O grafismo aplicado ao campo gráfico na parte
central é semelhante ao de outros objetos, com grande difusão do mereru. Entre os
Waurá, o dono do instrumento, o animal aquático Kukuhi, inspira tanto a decoração do
objeto, quanto daquele que o fez. (Schultz e Chiara, 1967; apud A.M. Becquelin:
1993:548 )E, nesse caso, as associações vinculam desenho, sobrenatural e o mediador
entre o objeto e o sobrenatural, o artista.

149
Banqueta numaí com urul;111 de duas cabCÇ3S> Comprimento total; 61 cm; altura: :ZS cm; as-
sento: 22 cm x 33 crn; nUmero de callilogo: VB 2835.

Banco de madeira - ave bicéfala

Os bancos entalhados em um bloco de madeira pelos Trnmai, Kamaiurá e Mehinaku


são hoje confeccionados essencialmente pelos Kamaiurá, Kuikuru, Kalapalo e
Mehinaku_ Peças obrigatórias do mobiliário das casas dos caciques, quase sempre têm
formas de aves: cegonhas, jaburus, urubu branco e águia de duas cabeças e pescoços
duplos, que von den Steinen associou ao homem e a mulher, e tido como especialidade
Trumai. Esses bancos, provavelmente de origem ritual e hierárquica são elaborados de
maneira semelhante a dos outros objetos, correspondendo o corpo do animal ao assento
em forma plana e retangular, recoberto de padrões do peixe pacú. A cabeça, rabo ou a
cauda se destacam da forma útil, enquanto o apoio do banco e os pés ou garras do
animal se confundem. Muitas vezes, os bancos adquirem também formas de sapos e
onças, animais que como o gavião guardam analogias com as práticas de pajelança. As
analogias criadas entre bancos, formas de gavião e mito logi<t, não se contentam com a
transmissão de características funcionais do animal ao objeto, mas, de maneira
semelhante às pás de virar beiju, acionam propriedades sobrenaturais dos chefes
religiosos. A relação entre as entidades do céu e a ave bicéfala se relacionam a esses
poderes.

Cerâmica ' ' ''nÍ

150
O exemplo mais interessante da relação entre modelo e forma plástica aparece na
cerâmica. Ela vem a ser o artefato que apresenta maior possibilidade de identificação
com modelos, e também aquele com maior diversidade de formas significativas.
Alguns animais- tartarugas, tatus- emprestam suas formas ao recipiente, sobrepondo-se
claramente o sentido dobrado dado por Lévi-Strauss ( 1970:48). Noutros recipientes, a
associação entre forma animal função do objeto não é clara como atribuição, e o campo
plástico toma-se significativo de animais muito distantes da utilidade ou dos atos de
estocar alimentos ou água com formas de morcego, sapo ou carrapato. O morcego, não
é uma alusão descabida. Ao contrário, um mito de criação conta que os Waurá,(Vera
Penteado Coelho:l981:71) surgem da relação sexual entre um morcego e a filha da
árvore jatobá, a árvore de onde retira-se a madeira das canoas. O sapo é um
sobrenatural com poderes de cura Quanto ao carrapato, um Waurá sabendo que seus
antepassados reproduziam carrapatos na cerâmica, achou cômico, e, mesmo
incorporando a idéia ao seu repertório (idem:73), não é impossível que tenha ocorrido
erro de comunicação. Do ponto de vista formal, permanece na cerâmica a
correspondência entre corpo do objeto e do animal representado, servindo as bordas
para destacar uma característica marcante do animal. O aspecto significativo não
impede dela ter um pronunciado sentido figurativo e plástico. Também o grafismo toma
aspectos interessantes. Em grande parte, reproduzem os inúmeros padrões dos outros
objetos e passam por renovações, modas e apropriações de formas. Os recipientes são
recobertos de pigmento preto no interior, deixando a parte externa na cor do barro ou
recoberta por um pigmento de cor avermelhada. O grafismo aplicado ao fundo externo
das panelas desaparece, curiosamente, quando em contato com o fogo. As
possibilidades de sentidos são enormes. E para serem avaliadas há de considerar-se, no
conjunto das relações, aquela que envolve as restrições da ceramista grávida ou a mãe
de recém-nascidos de exercer a atividade.

Todos os objetos referidos mostram uma mesma semelhança. A forma plástica de um


animal que . se amálgama à plástica do objeto, um campo decorativo geométrico,
características que dão aos objetos um valor simbólico e significativo. Alguns elementos
apontam vinculações entre atividades religk: .'S e manifestaçô rtísticas, posição
social e arte. Em certos objetos, as inforrnaçc: dos índios inó a pensar que o

151
animal representado tem origem na cosmologia, concede poderes e torna o sobrenatural
visível e material. Na cerâmíca, a forma plástica adapta características significativas que
formulam a possibilidade da presença de um símbolo, semelhante ao processo descrito
por Boas (217). AE características dos objetos são mais claras quando se afere a relação
entre a arte e o artista: as interdições, atribuições ou para quem foi feito e usará o objeto.
A idéia de significativo reconhecida na presença do signo está presente em Jakobson (in
B.G.Ribeiro: 1987), e utiliza o conceito de comunicação que leva o signo adquirir o
sentido mais abrangente de veículo de comunicação e mensagem : "todo signo pode
adquirir o sentido mais abrangente de veículo de comunicação e mensagem"(idem:19)
A função dobrada do objeto, seu sentido prático e aquilo que ele evoca como símbolo de
um mito, está apresente na sua forma

Dos objetos referidos acuna, apenas as pás de virar beiju, os bancos e um tipo
específico de cerâmica, foram registrados por Buell Quain, fazendo parte das atividades
as quais se dedicavam os Trumai. Manifestações similares às dos outros grupos, deram-
lhe a ímpressão de um empobrecimento da cultura Trumai. Quain assinala os mesmos
bancos de madeira com a ave bicéfala, a construção de canoas, o desaparecímento do
machado de pedra e da clava para guerra e o uso do propulsor de dardos apenas nos
eventos cerimoniais. Confecção de ornamentos de plumas, canoas, cestaria, têxteis,
peças de decoro, um tipo de cerâmica para cozinhar o beiju e certos acessórios para
armas. A plumária enfeitava as cabeças com diademas de vários tipos, uns em forma de
anel de algodão tecido com penas atadas ao cocar formado por longas penas de vários
pássaros; outros, usando as penas como topetes, atavam a um fio de algodão. As canoas
à maneira típica da floresta tropical, com uma peça retangular cortada do tronco do
jatobá, e depois queimada para receber a forma: a popa em arco, proa com curvatura
para cima e o centro da parte traseira curvada para o interior adicionando ao conjunto a
popa para melhor flutuar na água depois de recobrirem bem as fendas com musgo do
rio ou argila. Os remos e varas faziam a propulsão.(1955:34) A cestaria era atividade de
ambos os sexos. Os homens faziam trançados com tiras de buriti em cestos fundos,
semelhantes a gamelas e outros para estocar e transportar a ma·,clioca, além de um
cesto menor. As mulheres se dedicavam, como hoje, às esteiras •trançadas com
varetas de buriti, com a qual preparam a mandioca, e faziam o « . Outros cestos

152
eram trocados no comércio com os outros grupos. Redes de buriti, no tear apoiado em
duas estacas e braçadeiras e fàixas para as pernas, tecidas no algodão. A cerâmica usada
para estocar mandioca, cozinhar e guardar comida, vinha do comércio com as Waurá,
sendo Trumai apenas o jameo, recipiente de barro cru, que lhes serviam para cozinhar
o beiju. (idem) O entalhe em madeira, pás de virar beiju, grelhas para mandioca, pilão e
instrumentos para amolecer a mandioca seca eram atividades masculinas. Adquiriam
seus arcos dos Kamaiurá, mas eles mesmos fàziam a corda para envergar o arco, com a
fibra de uma árvore que chamavam de patacy. Adornavam com plumas, as flechas
feitas de cana, e na extremidade inseriam uma seta fina de madeira, fixada com resina
de awalitsu. Usavam lanças de arremesso para matar peixes e pássaros e o xopep
(propulsor) de madeira de palma, apenas nos jogos cerimoniais. (idem:35) Quain ainda
notou esboços de desenhos em um tronco, semelhante ao que registrara von den Steinen
entre os Aweti e Mehinaku.(idem:36)

No grafismo, o pacu e o uluri, são os padrões mais comuns. O primeiro, combina a


furma losangular com cantos preenchidos por triângulos e identifica não apenas o peixe
do mesmo nome, mas qualquer peixe, como metáfora ou valor simbólico da espécie. O
uluri, a composição de triângulos pretos, dispostos isoladamente ou na horizontal,
sugere o modelo feminino, e, na comparação de von den Steinen, da mesma maneira
que os ocidentais representam o modelo anatômico, os xinguanos idealizaram nesse
triângulo preenchido o feminino com sua graça e beleza que tudo revela sem fazer uso
da descrição. A estilização nesses casos não são meros ajustes formais e, concordando
com Boas, decorre da necessidade simbólica que reduz a representação às suas mais
sutis indicações.(143)

Padrão merexu (pacú) !Iluri

153
-
4.3. Um corpo enfeitado e pintado

Marcel Manss conceitua as técnicas de manipulação e ornamentação de eficácias de um


mundo que adapta o corpo a certos usos. (1993:385) No Alto Xingu, uma gama de
comportamentos caracteriza os povos pela discrição, o desenvolvimento muscular do
corpo masculino, o corte de cabelo em cuia, os cabelos longos com franjas e a pintura
vermelha cobrindo a testa da mulher, a delicadeza do andar com passos curtos e rápidos;
a concentração com a qual os homens se aplicam na pesca, a precisão relacional com o
objeto de interesse; a paciência para ensinar os primeiros passos da socialização às
crianças, a maneira como essas se articulam com a sobrevivência, a autonomia de suas
iniciativas. Os caracteres diferenciais Trumai, uso do cabelo comprido, a maneira do
homem prender o pênis, já são extintas. A relação entre o que é limpo e o sujo traz a
forte relação com a água, e o banhar-se com freqüência, usando ervas para limpar os
cabelos e o corpo, ou produtos industrializados. Escarificações purificam o corpo nos
rituais de passagem, atividades curativas ou de embelezamento, pelo uso da
arranhadeira, instrumento feito de cabaça com dentes de peixe cachorra fixados na
superficie côncava. O uso de faixas apertadas abaixo do joelho e tornozelos, modela
artificialmente a batata da perna das mulheres para toma-las volumosas com as que
vemos nas esculturas Karajá. 44 Com o mesmo sistema, os braços dos homens criam
bíceps avantajados. Há também, entre as mulheres do chefe, o costume de tatuar nos
braço e pulso três linhas paralelas, como usam Tatawari e suas filhas, sem informações
precisas de suas associações.

Complementar ao mundo vivido compassadamente, manifestam-se cores e formas e as


idéias consensuais da cosmologia. Colares de miçangas e sementes ou de plaquetas de
conchas entrançadas em algodão; cintos e presilhas, tiras de algodão ou fibra em tomo

44
- fotos publicadas por A . M. Becquelin reproduzem esse costume.( 1993: 521)

154
45
dos tornozelos, bíceps, e joelhos. Nas orelhas masculinas, brincos de penas nas cores
amarelo, preta e vermelho atadas a um pedaço de madeira com o auxilio de urna resina
escura, Também a plumária dos diademas de vários tipos: uns verticais fixando as penas
sobre hastes trançadas, outros em fonna de anel de algodão tecido, com penas coloridas
atadas ao cocar formado por longas penas, ou usando as penas como topete, atadas a um
algodão. Os corpos adornados com desenhos e pinturas agitam pernas, braços e cabeças
recobertos de urucum e jenipapo. Danças e lutas, imitações animais, flautas, maracás,
sons guturais, passos sincopados, penas de pássaros, fibras, cordões, algodões e outros
pigmentos se entrelaçam para a integração social e simbólica.

46
Desenhos (k'ad chachxo) e pinturas (p'itan) Trumai seguem padrões que entre as
mulheres decora a parte superior da coxa usualmente com o motivo merexu (peixe) ou
katedash (espinha de peixe) e no rosto o utinapaná. Os homens cobrem-se com padrões
de onça, águia, cobra e outros. Entre os jovens a pintura é criativa e mais livre,
principalmente nas lutas cerimoniais, como no huca-huca.

As pinturas corporais obedecem aos critérios da divisão sexual e membros de cada sexo
aplica entre si as pinturas. Os padrões mais usados incluem sinais gráficos - triângulos,
losangos, pontos, meio circulos, círculos, ziguezagues, linhas retas e combinações de
linhas. As diferentes combinações dos sinais recebem dos índios definições diversas,
mas, no corpo, existe atualmente uma fixação por sexo e partes do corpo. Os padrões
descritos por Quain não são diferentes dos atuais:

O rosto só pinta um pouquinho (ele mostra os cantos dos olhos), pintura de


gavião. O que eles usam no corpo é só bicho. Também no rosto. Os
Kamaiurá chamam Tutuin, nós chamamos utinapamá Peixe tucunaré tem
aquilo. A pintura nas costas, só os homem pintam, são várias pinturas,
lesidash, jibóia, awar, sucuri... Quando é meio tortinho, curvado, é sucuri.
Agora, se tiver desenho no meio também, redondo assim, vermelho, umas

45
- Quain assinala uma quantidade de chapéus e camisas trocadas, provavelmente, no comércio com os
missionários Thomas Young e sua mulher, dado que atesta o contato que o gr ""'· embora arredio, já
vinha desenvolvendo, direta ou indiretamente, com a cultura branca. (1955: 37)

46
- dicionário da lingua Trumai pp24 e 59 de Raquel Guirardello. A grafia do no; , o é diferente daquela
de Aurore M. Becquelin ( sasxo) que também não cita a palavra pitan para a pintura. ( 1993: 511)

155
manchas pretas no meio, é jibóia, igual jibóia mesmo, igual pintura de
jibóia mesmo.

Padrão sucuri

Os padrões de cobra podem ser usados nas coxas, pelas mulheres ou, nas costas e
pernas, pelos homens, com exclusividade, por razões que permanecem obscuras para
mim. É interessante assinalar que é nas costas, que o sobrenatural Olé, inimigo do
homem, carrega aquele que ele quer possuir. É também a maneira como aquele cunhado
morto, transformado em cobra ( Capítulo3:p.107 ) é carregado pelo irmão da esposa.
Cobra, são os grupos ininúgos. De todo modo, pinturas comuns ao Kwarup e nem
sempre fazem a cena no Jawari. A pintura dos olhos, gavião, Trumai, peixe Kamaiurá.
Vale interrogar nos dois animais forças que se identificam aos grupos?

Os riscos nas maçãs do rosto em forma de ângulo reto são pinturas pretas com os
vértices para dentro, de carvão nústurado à resina íhík, considerada protetora, usada
tanto pelos homens, mulheres, quanto as crianças. Berta Ribeiro explica sua difusão em
todas as classes de idade, principalmente nas crianças, citando Agostinho que atribui ao
cheiro da resina a propriedade de desagradar "(.. )aos marnaé, mantendo-os afustados e
evitando contatos perigosos."( 1993: 579)

Os homens usam tawariri, urucum, carvão e, torerekê i, uma planta que dá


na beira do rio também. É meio marrom, meio amarelo. É cheiroso, têm
perfume. Tawariri é ainda mais. Nas festas usa penacho de tucano, arara
vermelha, gavião, recongo. Papagaio não. Papagaio só na guerra, na hora
que eles vão brigar, eles usam penacho de papagaio, gavii!.

156
Algumas pinturas são também usadas no tórax do homem. Elas podem coincidir com
meia luas em cada lado do peito, pontos, círculos ou manchas na cores preto e
vermelho. Quain observou padrões simbólicos e outros que ele não identificou o
sentido. Observando uma vez um desses homens, com dois semi círculos pintados no
peito, perguntando-lhe o que significava, o Trumai respondeu que representava uma
vagina De outra vez, um desenho em meia elipse no flanco masculino com pontos no
centro foi identificado como correspondendo à cascavel; o desenho no mamilo, pintado
em preto forma de anel à jibóia construída. No ritual Olé, um outro padrão de cobra era
usado também em um dos postes erguidos para a cerimônia e um padrão em ziguezague
preto ornava o corpo de um dos cantores. Alguns meninos usavam o rosto pintado
também de preto e traziam pontos no tórax ao passo que as meninas por vezes tinham o
rosto pintado com os ângulos já descritos.

O merexu foi associado por B. G. Ribeiro aos rituais como elemento socio-econômico e
atributo da fartura, "multiplicação dos peixes" (1993:570), condição sine qua non para
a realização das festas. Com Thomas Gregor os desenhos entre os Mehinaku tornam-se
insígnias dos homens de status, campeões de lutas e xamãs (1982:165). Em exemplo
citado por B. Ribeiro, Agostinho Silva associa o merexu com a casa dos homens, e aos
sobrenaturais da água, sinalizando a percepção do homem xinguano como descendente
dos peixes. A correspondência entre desenhos, água, peixes e sobrenaturais foi
identificada por Amati ao mito da conquista da água boa pelos heróis civilizadores Sol e
Lua. Kutan, o desenho formado pela composição de dois triângulos unidos pelo vértice,
manifesta a libélula, o inseto que Lua se transformou para roubar a água boa que
reclamavam suas mulheres. O mito envolve os mesmos argumentos citados
anteriormente: água, peixes, casa de flautas, sobrenaturais. Porém, a narrativa de Amati
possibilita relacionar não apenas o elemento e o desenho, mas a cadeia de metamorfoses
que chega à correspondência entre desenho e herói mítico, e ao enredo no qual
acontecem as identificações.

O urucum, o pigmento, tem seu mito de origem.

157
O urucum é do mato também. Eles experimentaram urucum. A gente não
sabia urucum. Parece que o dono do urucum é passarinho, esse passarinho
dono do urucum chama arawá.

Amati conta que urna mulher ficou viúva e ainda estava de luto quando apareceu atrás
da casa dela um pássaro vermelho, enquanto ela estava tomando banho. Ela pede ao
filho para matar o pássaro. Ele vai, mas sua flecha não atinge o pássaro. Quando já tinha
andando bastante na direção norte, para baixo como eles dizem se referindo ao curso do
rio, o pássaro se transformou no pai do menino. Passou um tempo, o pai deu-lhe o
urucum, dizendo que ele o passasse todos os dias, que isso o ajudaria a crescer. Depois,
o pai disse também que vai levá-lo com ele para a aldeia do céu. Ele avisa a mãe:

(.. )"vou embora para sempre, vou embora para o nanedé... "
Sempre quando dava eclipse, terpatkakó, alguém grita lá no céu. Isso já faz
muitos anos. Ai, tocavam aquela cabaça: pra lá, pra lá. Meu pái contou que
meu avô chegou a ouvir isso aí. Sempre que dava eclipse tocava aquela
cabaça lá em cima. Assim é que a gente foi aprendendo as plantas.

O pigmento vermelho comumente retirado do matdot (urucum) vinha do próprio


território Trumai. Preparado em pasta e misturado ao óleo ou gordura de peixe, era
aplicado com os dedos ou espátula de buriti. Também usavam no corpo a resina
tawariri misturada com fuligem e corante atdot. Associado à vida social, aos ritos de
passagem, a sexualidade, aos mensageiros, orna os corpos masculinos em quase todos
os rituais, com exceção do Jawari. Semente do mato, aparece como propriedade do
pássaro e do pai, que transmite ao filho para faze-lo crescer. Aparece também associado
ao maracá, ao fundo da água e às forças de metamorfose, como na narrativa de Amati
sobre os momentos que precederam a morte de Maibu. O urucum é também causa de
uma guerra com os Suyá. Elemento cerimo_nia~ associa-se ainda a entidades
meteorológicas.

Cores e traços adquirem personalidade e significados em contato com o sobrenatural: o


vermelho do urucum, o fogo que queima as flechas, o sangue que procria e ameaça, a

158
piranha e a mulher, as escarificações que fortalecem o guerreiro, à masculinidade
destruída pelo sangue menstrual, o sangue do recém-nascido que atrai os bichos, o luto,
a consumação, o mundo que chegou com a luz, Sol e Lua. O branco retirado da argila é
mais raramente usado e no Jawari enfeita os guerreiros do ritual dos mortos. O preto do
jenipapo, mais comum nas pinturas femininas, é usado pelos homens nos olhos e no
tórax ou nas guerras.

Entre os Trumai é grande a quantidade de animais sobrenaturais do céu. No Jawari o


patxsó. Nas atividades artesanais dos Trumai, ficou marcada a relação deles com os
bancos de duas cabeças, Deniktê.

A partir das observações de von den Steinen, sobre a ausência de certos anuna1s
importantes nas representações gráficas, A M. Becquelin (1993) elabora seu trabalho
sobre o grafismo nos objetos e no corpo Trumai. O estudo parte da classificação das
formas gráficas, pela recorrência e correspondência entre desenhos e nomes. Sublinha
analogias entre animais e portadores de pinturas. Considera, diferentes relações entre os
objetos e o nmndo sobrenatural, e esses e o corpo humano. Nos resultados, os padrões
nos objetos guardam vínculos menores com as funções e as crenças, enquanto no corpo,
eles têm papel funcional por pressão analógica (idem:543) As pinturas rituais
identificam os referentes míticos no Jawari: pinturas branca e preta que cobrem os
corpos dos lutadores e representam na luta entre o gavião e o felino, os animais com
pontaria, enquanto no Kwarup, os padrões de peixes sobrepõem os "donos do urucum,
símbolo da vida".(idem)

No Jawari, nem sempre as pinturas querem dizer alguma coisa dentro do processo
ritual. Apenas as pessoas que têm função no seu desemolar, tem uma pintura certa, que
se adequa ao corpo como uma segunda pele (Tetence Turner: 1980) Nessas categorias
estão, além dos primeiros guerreiros que se opõem, usando pinturas do patxsó e da
onça, o cantor que vem a ser o personagem mais importante do ritual, aquele que
através dos cantos guarda a memória e rege a sucessão dos eventos. As pinturas nesse
ritual, não são apenas atributo do.bem, existem também aquelas perigosas, como certos
cantos.

159
A correspondência de qualidade humanas e animais no Jawari identifica a pontaria.
Porém, os padrões não são mecanicamente funcionais. Desenho e natureza humana se
misturam e mostram, como nas máscaras, o "visível do sobrenatural"(Darcy
Ribeiro:1987:57). Indo além da representação animal, ou de seus atributos, as pinturas
no corpo têm ene memórias e escalas.

A diferença entre os laços da pintura com o sobrenatural, nos objetos e corpo, encontra
sua razão no agrupamento de formas, procedimento formal comum. Nos objetos, eles
passam por, disse A . M. Becquelin, "arranjos formais", que leva os informantes
indígenas identificarem o agrupamento de padrões com sentidos contraditórios.
(1993:545) ,!

A relação entre padrão e objeto tem uma série de implicações formais: ajustamento ao
objeto, ao campo decorativo, exigências de simetria, e ajustes que modificam as formas
representativas ou o próprio grafismo. Mas, bem lembrando Boas, mais do que os
valores estéticos, o ajuste ou mudanças da forma vêm do poderoso poder simbólico que
se mostra nas indicações significativas das formas plásticas com muita clareza ou nas
pinturas corporais e no grafismo dos objetos. Acrescente-se, que a maior interferência
dos fatores formais pela dinâmica do suporte, não definir o afast'!ffiento do mundo
mítico. O argumento de Lévi-Strauss, quanto à experiência do artista com o
sobrenatural, ajuda a refletir. O artista índio produz urna arte significativa pela própria
experiência com o "modelo". Em sua imaginação interior, habita o produto da
experiência sui generis com o so brenaturai "que escapa por essência aos meios físicos
de representação( .. ) (1993:123)

A pintura corporai cores e formas, é um forte domínio da relação social com o


sobrenatural. Nos mitos, associam os momentos de transformação intra-mundos na
pintura de corpo de Arakuni( capítulo 3 )que transferida para o corpo da irmã denuncia
o ato de transgressão; nos momentos de preparação do corpo - pintura e vestimenta -
que precedem sua passagem para o mundo sobrenatural; ou, quando o deus é revivido
no ritual criado em sua memória. Também os mitos de Jakui e Yamurikumã, as

160
mulheres usam a pintura de homem ou do sobrenatural que governa um princípio
masculino, quando passam a incarnar o espírito mamaé.

A arte dos antigos, para os Trumai, é a arte da metamorfose de propriedade dos


pajés.

O meu avô mesmo, ele mesmo, assim meu pai me contou, meu avô tinha
cobra, foi ele quem fez, meu avô. Fez um banco, com uma porção de cacos
de panela, só que esses cacos têm muitos significados lá dentro: desenho
de cobra, macaco, tucano, vários desenhos de animais nessas panela. Uma
vez ele pegou no Waniwani, um dia quando ele estava fazendo roça, sem
querer, ele atolou e tirou uns cacos, mas os cacos com os desenhos já vêm
feitos, é de pedra mesmo: tucaninho, beija-flor, arraia, peixe. Isso aí já vem
feito de muitos anos, ninguém sabe da onde veio esses desenhos. Meu avô
catou lá os cacos, fez essa cobra. Só que ele, transformou igual cobra,
quando está no chão, dá impressão que tá andando. E tá andando mesmo.
Tá no Jacaré. Só que ninguém pode tocar, só o dono. Só meu avô tinha
direito de cuidar. Onça também. Só que onça não somente os Trumai, mas
os Kuikuro, os Waurá, eles falam que onça, foi Mavutsinin que fez.

A magia como criação de vida, não distingue níveis de realidade, e é significativa para a
importância do pensamento mágico - religioso na arte. A arte dos pajés, iguala-se ao ato
criador de Mavutsinin que com troncos de uma árvore fez as criaturas mulheres. Do
inanimado ou de vestigios do passado (cacos/cerâmica), o avô de Arnati habitou seu
mundo imaginário. Como Mavutsinin, modela no inanimado a vida e, também como ele,
falha na conclusão da imortalidade, pela limitação de seus poderes de cura. Urna
diferença se apresenta, no entanto, entre o demiurgo e o criador de espécies: no seu
caso, a criação anima um domínio próprio, que não foge ao seu controle e alicerça seus
próprios poderes. É arte? Sim, como filha da magia.

Nem sempre é possível estabelecer correspondências claras entre fonnas gráficas e


conteúdos míticos. Mesmo quando as formas se repetem, as interpretações divergem, e
certas passagens e enredos são, ora conjugados à ação de um animal, ora, a outro, ou,
sofrem alterações com novos elementos narrativos. Sobre isso, Lévi-Strauss propôs a

161
leitura em larga escala horizontal e vertical de mitos de diferentes regiões, tomando as
variações para encontrar as invariantes que deles se destacam, e chegar à estrutura
comum, e ao sentido que se esconde detrás das modificações. O caminho das formas de
fato não se restringe a uma simples tradução do dito, e cabe acrescentar a bem lembrada
reflexão de Boas quanto ao prazer que o artista retira da criação. Embora siga modelos
preestabelecidos pela tradição, nos ritmo do trabalho e dinâmica da forma produzida na
repetição e regularidade, articula-se o prazer que o ato de conceber proporciona ao
artista que, muitas vezes, deixa-se levar mais por esse impulso que por aquele de exibir
suas habilidades a outra pessoa. Nesse processo, a relação com o objeto ora desune os
impulsos criativos de forma plástica e desenho, como é o caso das franjas decoradas da
Colúmbia Britânica e das caixas de couro Sauks e Foxes( Boas:l947:168); ora, aumenta
os ritmos complexos e a superposição de cores, como na tecelagem peruana. Isso não é
tudo, interfere também a capacidade maior ou menor do estilo desenvolver traços
diferenciais e a estabilidade dos costumes em relação à função dos objetos, o apego às
formas e aos instrumentos usuais que causam o conservadorismo e limitam o número de
criadores. (idem: 149)A relativa autonomia da forma passa pela interferência do artista
que toma dinâmicos os aspectos formais e seus desdobramentos. Elementos de inovação
e diferenciação de um mesmo repertório dependem também, por outro lado, e de
maneira não dissociada da mecânica formal, do exame de idéias que formula um
conhecimento e uma história do grupo. Assim, embora o grafismo no Alto Xingu prime
pela estabilidade dos desenhos que são encontrados no decorrer do tempo, que une os
cacos cerâmicos aruak aos nossos dias, cabe a articulação entre os vestígios e , a
transmissão de caracteristicas dessa arte para povos com artes e mitologias diferentes a
variedade de interpretação dos elementos de urna memória comum que, ao mesmo
tempo, nos traços de memórias, estimula o diálogo dos grupos que são motivados por
conflitos e pela eficácia ou interesse das trocas intertribais, que podem ser urna das
fortes razões para a variedade de interpretações da forma.

A convenção dos padrões gráficos e desenhos significativos da arte xinguana veicula a


materialidade formal e técnica de significados culturais que suplantam os aspectos
morfológicos que propunha Karl von den Steinen. Entende-la requer aproximar formas
e significações, sem fragmentar as duas qualidades, como nas interpretações que

162
igualam os objetos ao que Boas define de "similaridades típicas" ou, veículos de
mensagens. O último autor, enriquece a abordagem da arte, ao substituir o modelo e a
verossimilhança pelas idéias e conteúdo das formas. Dcsst: modo, a forma é insuficiente
para se entender um significado, ou um símbo lo, quando não existe a unanimidade em
relação à sua comunicação. Mesmo exemplos c l{1ssicos, como "a cruz, a suástica, a
bandeira"(106), as idéias e o estímulo emocio nal são fundamentais, e fatores de
conhecimento prévio. Ora, acontecia no Xingu, de uma mesma forma ser explicada de
maneiras diferentes, ou de várias formas serem explicadas com um mesmo significado.
E, desfazendo o equívoco de von den Steinen, Boas propõe, ao invés da relação simples
entre forma e designação (nome), que se recorra a associações vindas da cultura do
grupo em questão. No caso das culturas da Costa do Pacífico que ele estudou, também
não existia um consenso sobre o significado das formas, mas dava-se a muitas formas
''um significado de acordo com a filiação totêmica de seu dono". (112)

A questão tem desdobramentos. De um lado, influências históricas que a


impossibilidade de comprovação levam aos métodos de difusão cultural e às variações
do fenômeno. Por exemplo, não apenas uma raiz figurativa do desenho convencional,
também, no sentido inverso, unia raiz geométrica que desenvolveu-se até o realismo,
guardando no padrão geométrico "um significado, de onde se originaram formas
significativas."(117) Como provar isso? Boas sugere a combinação entre o método de
verificação gradual dos desenhos em longas extensões. Se uma mesma interpretação
cobre vastas extensões, com formas mais realistas na parte central do território e mais
convencional nas áreas mais distantes, possivelmente, houve a evolução do figurativo
para o abstrato. Mas no caso de uma distribuição irregular das duas formas, que, "(.. )
ademais não coincidem"( 119) o mais provável é as figuras convencionais não terem
raiz figurativa, ou ter a forma difundido-se gradualmente pela região, recebendo

"( .. )de cada povo um significado independente - em outras palavras, um significado que
deve ter-se lido no padrão -, ou pode ter ocorrido que um estilo dominante impôs uma
diversidade de representações realistas aos mesmos desenhos geométricos." (idem: 120)

A identificação dos diferentes significados da forma resulta do que pode advir dessa
leitura. Sendo a forma mais resistente das duas propriedades, por vezes ela se mantém

163
inalterada por séculos, ao passo que as idéias são maleáveis e transformam-se ou
adquirem repertórios novos e diversos, com maior facilidade. Vendo dessa maneira, as
formas geométricas não são o resultado de um processo que decorre da degeneração do
desenho, ou má execução do mdio que, servindo-se de recursos ornamentais corrige um
erro inicial fragmentando as formas, até tomá-las cada vez mais distantes do modelo
original. Contra argumenta e reaviva nossa memória para o cuidado dedicado pelos
artistas à confecção dos objetos, o quê dificilmente permite a atitude de descuido. Seja o
estilo realista ou convencional, a mudança ocorre em ambos os sentidos, podendo,
inclusive, haver convivência dos estilos em um mesmo espaço - tempo. As variações de
interpretação, tanto de grupos, como de indivíduos, resultam da característica constante
da forma e o significado variável que acompanha o tempo e as influências recebidas,
em maior e menor grau, de outras culturas. A dinâmica não pertence apenas a arte, mas
também a mitologia.(130)

A participação ativa da técnica e os significados culturais promovem na estilização a


experiência do artista. Há de se levar em conta também aspectos inconscientes e
sentimentos articulados aos princípios de ritmo, simetria e composição. Dentre eles,
aquele apontado, também por Boas, na mtirna relação que o artista devota, em primeiro
lugar, ao seu próprio prazer de realização. Em analogia com os exemplos já citados, o
grafismo aplicado ao fundo externo das cerâmicas Waurá que se extingue de imediato
em contato com o fogo. A imaginação tem lugar destacado na relativa autonomia da
forma e complementa aspectos emocional e simbólico da cultura comunal. Para o
Xingu, pesquisas arqueológicas atuais comprovam a estabilidade do grafismo que
remonta a padrões já existentes no período da ocupação da região (séculos XI-XIV), de
acordo com o que está dito na apresentação.

Das elaborações formais de animais e dinâmica interna de alguns artefatos, grafismo e a


pintura corporal, partiu a base empírica, para relacionar a diversidade e identidade que
articula arte e cosmologia, com aspectos simbólicos e significativos. Dai decorre a visão
integral da arte e de um ideal que, apesar das assimilações e incorporações de elementos
adquiridos em contato com grupos de outras regiões e a cultura envolvente, ou da
dinâmica formal, articula-se com religião e aos laços com outras manifestações,

164
inalterada por séculos, ao passo que as idéias são maleáveis e transformam-se ou
adquirem repertórios novos e diversos, com maior facilidade. Vendo dessa maneira, as
formas geométricas não são o resultado de um processo que decorre da degeneração do
desenho, ou má execução do índio que, servindo-se de recursos ornamentais corrige um
erro inicial fragmentando as formas, até torná-las cada vez mais distantes do modelo
original Contra argumenta e reaviva nossa memória para o cuidado dedicado pelos
artistas à confecção dos objetos, o quê dificilmente permite a atitude de descuido. Seja o
estilo realista ou convencional, a mudança ocorre em ambos os sentidos, podendo,
inclusive, haver convivência dos estilos em um mesmo espaço - tempo. As variações de
interpretação, tanto de grupos, como de indivíduos, resultam da característica constante
da forma e o significado variável que acompanha o tempo e as influências recebidas,
em maior e menor grau, de outras culturas. A dinâmica não pertence apenas a arte, mas
também a mitologia.(130)

A participação ativa da técnica e os significados culturais promovem na estilização a


experiência do artista. Há de se levar em conta também aspectos inconscientes e
sentimentos articulados aos princípios de ritmo, simetria e composição. Dentre eles,
aquele apontado, também por Boas, na íntima relação que o artista devota, em primeiro
lugar, ao seu próprio prazer de realização. Em analogia com os exemplos já citados, o
grafismo aplicado ao fundo externo das cerâmicas Waurá que se extingue de imediato
em contato com o fogo. A imaginação tem lugar destacado na relativa autonomia da
forma e complementa aspectos emocional e simbólico da cultura comunal. Para o
Xingu, pesquisas arqueológicas atuais comprovam a estabilidade do grafismo que
remonta a padrões já existentes no período da ocupação da região (séculos XI-XIV), de
acordo com o que está dito na apresentação.

Das elaborações formais de animais e dinâmica interna de alguns artefatos, grafismo e a


pintura corporal, partiu a base empírica, para relacionar a diversidade e identidade que
articula arte e cosmologia, com aspectos simbólicos e significativos. Daí decorre a visão
integral da arte e de um ideal que, apesar das assimilações e incorporações de elementos
adquiridos em contato com grupos de outras regiões e a cultura envolvente, ou da
dinâmica formal, articula-se com religião e aos laços com outras manifestações,

164
resguardando o sentido de unidade dos objetos. A flutuação das idéias nas formas está
mais próxima do frescor criativo, do que a rígida estrutura que decalca um nome a uma
forma, como parece desenvolver-se atualmente. Por influência das interpretações
exógenas? Difícil responder. A arte dos antigos dá o sentido abrangente dessas
manifestações e complementa a esfera ritual no corpo dos homens. São pinturas em
analogia com poderes de proteção. Mitologias em cores. Pinturas associadas à
hierarquias construídas na guerra? Distinção de padrões - cobra, como distintivos de
povos? Provavelmente tudo isso. Homens e mulheres fazem suas crias e delas são
íntimos. Embelezam e se embelezam, se esforçam pelo melhor, e com isso evitam o erro
maior, desacreditar a magia.

165
5. O PINTOR E A PINTURA DE AMATIWANÃ TRUMAJ

166
Esse último capítulo irá tratar o processo de trabalho, projetos, anseios e a pintura de
Amatiwanã. A dificuldade da discussão inicia com os níveis complementares e
contraditórios que alia uma tradição viva e características individuais, na reflexão da
arte dos índios no contemporâneo. Vamos investigar os procedimentos do pintor, nos
termos de urna concepção de espaço - tempo para a construção de urna cosmologia
visual Os valores afetivos que ele atribui ao seu trabalho que, além de mante-lo
próximo à origens, inspira urna reflexão plástica. Também será abordada na atividade
de pintor, a dualidade entre a condição que vincula artista e criação e aquela que aliena
o artista de seu trabalho pelas leis da mercadoria.

Um segundo segmento, mostra o quê pretende ser o maior esforço da pesquisa: a


conjugação dos textos dos mitos com as imagens. A idéia foi construída ao longo dos
quatro anos de trabalho, com o desenvolvimento paralelo das pinturas e das entrevistas,
sem intenção à priori de tornar os dois procedimentos dependentes. Minha intenção
inicial era entender e estimular o seu'. ·trabalho e discutir cada um deles com
profundidade. Com o desenvolvimento da pesquisa, o aprofundamento das relações
entre temas e pintura foi aproximando-os. O resultado alcançado é a complementação
de imagens e textos e cerca de 20 horas de gravações em vídeo que abrangem o
processo de realização dos quadros. A intenção não foi a de provocar a ilustração dos
mitos com imagens ou vice-versa, mas unir as linguagens corno dois universos que se
confundem numa mesma raiz. A idéia de discutir de maneira mais profunda a relação
criativa das duas linguagens, foi tentadora. Porém, o terna foi deixado de lado pela
complexidade de aspectos que o envolve.

Considerar a pintura nos termos da construções de um pensamento unitário, frisa o


valor social de seu trabalho para a atualização da memória social e, o valor estético de
seus quadros. O que se propõe afinal é a demonstração da expressividade da pintura de
Amatiwanã. Elaboração plástica, intensidade afetiva e imaginação mágica

167
Amati não é o único artista índio que adotou o figurativismo e a fazer um trabalho de
resgate dos mitos através de uma linguagem visual. Existem muitos outros, e de grupos
diferentes, que hoje praticam as artes gráficas no papel com transposição de desenhos
geométricos ou, nos moldes do desenho figurativo tradicional. Todos esses trabalhos
são registros importantíssimos e tentativas de manter vivos os laços desses artistas com
as suas tradições. Nas concepções figurativas para o papel, o exemplo dos desenhos
significativos coletados por M.H. Fénelon Costa entre os Mehinaku (1987;1988) e os
desenhos Ticuna, presente no trabalho de Jussara Gomes Gruber (1992) aparecem
como os mais plásticos e elaborados. No último exemplo, os artistas recriam desenhos
tradicionais e mostram inovações de grande criatividade gráfica. Além disso, a
experiência Ticuna do Museu Magüta (auto denominação do grupo), tentativa Ticuna
de gerir sua memória e seus bens culturais, é um ato de vanguarda e de importância
atual e futura.

Grande parte dos artistas que elaboram novas formas :figurativas estão em contato com
pesquisadores ou atividades que estimulam de fora a produção. Mas a demanda de
registro dos mitos por parte dos grupos, é cada vez maior. Os trabalhos dos artistas
Desâna Luiz e Feliciano Lana são os que mais se aproximam aos Amati, desenhos que
"contam" mitos de criação do povo Desâna. Berta Ribeiro, que ajudou a produzir e fez
a introdução do livro escrito e desenhado pelos dois artistas, 47 faz reflexões que
serviram às reflexões do meu próprio trabalho. Porém, a produção de Amatiwanã se
distancia da produção dos Desâna, pois se prevalecem as raízes profundas do
inconsciente coletivo, ele não se limita a uma "narrativa gráfica". Se difere o seu
trabalho pelo seu desenvolvimento independente de um estúnulo de pesquisa, embora
ele mantenha laços de dependência com pesquisadores ou visitantes e amigos para
adquirir pincéis, tinta e telas.

47
- Nomes cristãos dos autores do livro. Kamu, Umúsin Panlõn ; Kenhíri, Tolomãn. Antes o mundo não
existia. A mitologia heróica dos índios Desâna. São Paulo, Eci Cultura, 1980

168
5.1. O pintor

É o pensamento que manda, tem um desenho que eu ponho a flauta, aí é


bom, eu vou viajando ... o pensamento ...
Amatiwanã Trumai, 1997

Quando Amati começou a pintar, ele estava morando com a família no Posto Leonardo
já casado com Tatawari Kamaiurá e os seus dois primeiros filhos: Akaikiru e Pedro. A
mãe Kamihã era viva e o pai Niturari exercia o cacicado do povo Trumai. Orlando e
Cláudio Villas Boas administravam o Parque desde a sua formação em 1961. Seus
primeiros desenhos datam de 1969. Uma vez, ele encontra o seu tio Aruwavi que estava
pintando no rancho de Orlando. Pergunta se pode pintar. Ali ele começa Pelo PI(Posto
Indígena) passam antropólogos, médicos, enfermeiros, pilotos, pessoas amigas que vão
tornando conhecimento de seu talento e lhe dão material de desenho. Amati se angustia
com a doença que não retrocede, pensa em desistir, mas não desisti. As questões
levantadas por ele sobre o seu trabalho são marcadas pela experiência de vida e dão a
dimensão das razões e sentidos que ele atribui à pintura. A consciência social se
amálgama à história em conseqüência do sentimento de medo causado pela
possibilidade do Xingu acabar: finitude dos índios e de um modo de viver e pensar.
Com esse argumento, busca na arte a ação que suplante aspectos contingentes. Uma
consciência social assimila preceitos que davam à existência indígena a possibilidade
precária de sobrevivência, no encadeamento das políticas etnocêntricas. Esse é um dos
fatores que converge os conhecimentos tradicionais para o processo criativo.

Desenhar, desenhava desde pequeno, dentro dos moldes estabelecidos pelo grafismo
tradicional usado no corpo ou nos objetos. Mas não chegou a desenvolver a prática do
desenho corporal. Ele não se lembra exatamente qual foi o seu primeiro trabalho no
papel. Acha que pode ter sido um homem todo enfeitado (Arakuni)ou uma mulher.

Sempre assim já gostei de pintar. De início fiquei muito desanimado, eu


pensei, perdi. Eu pensei que eu perdi totalmente. Aí, para me distrair um
pouco, pegava lápis, a enfermeira me arruma papel e lápis para eu rabiscar.
Lá no Posto Leonardo, eu não sabia ainda. Tinha um índio, esse meu tio

169
Aru, ele me chamou e eu fui no rancho do Orlando. Eu perguntei, o que
você está desenhando"? Era um Tuiuiú, um jaburu. "É mesmo?" Eu vou
desenhar também. Ai, fui desenhar. Se não me engano, eu fiz primeiro uma
mulher ou Arakuni, um homem com chocalho, todo desenhado, todo
enfeitado.

Amati não aprendeu a desenhar e seu interesse pela arte está ligado ao Xingu ou aos
mdios. Auto didata, aprendeu por conta própria, pintando

Ninguém me ensinou, eu aprendi por mim mesmo. Para saber, eu


experimentava as cores misturando na hora de pintar, para não ficar
perdido.
Eu não sei quanto quadros eu fiz. Eu sei que fiz muito.

Em seu processo de trabalho, ele inicia a pintura fazendo primeiro um desenho com
lápis sobre a tela. Pinta devagar e várias telas ao mesmo tempo. A primeira vez que
estive em Canarana (1997) ele já havia esboçado quase todos.os quadros que finalizou
no ano passado, 2000. Sua lentidão parte da reflexão sobre o temas e linútações fisicas.
Revelou serem essas as razões dele trabalhar com a técnica a óleo: seca mais lentamente
que a tinta acrílica ou o guache· e dá maior margem às correções. Pintar vários quadros
ao mesmo tempo amplia seu poder de interferir em qualquer um deles e, também,
aproxima o método ao acompanhamento do desenvolvimento visual da idéia de
conjunto, no projeto de construir uma pintura em mosaico.

Na hora de começar o desenho, tem que imaginar alguma coisa. Tem que
pensar o que vou colocar. Faço um pouco a história, o modo de viver, como
é que o pessoal pesca, a festa, a dança Quando eu lembro eu faço a
história. Faço um pouquinho cada um, para andar mais rápido. Primeiro eu
faço assim.( mostra com a mão), faço só o risco, depois o desenho. Depois
eu paro um pouco, vou ver qual o defeito. Ai vou pintando. Primeiro pinto
o fundo, gosto de colorir o céu, o sol da parte da tarde. Depois vêm os
pássaros. Amarelo primeiro, depois o cocar. Primeiro leve, conforme for,
eu vou dando retoque por cima, até sair a cor que eu gosto.

A idéia sofre modificações. O registro de alguns quadros mostram a evolução, fases


pela qual passa a elaboração. Dois deles dão-nos a possibilidade de acompanhá-las. O
quadro da mulher sapo e o da festa do Jawari.

170
O TEMA DE ARAKUNI

/
Amatiwanã Trumai
Esboço do quadroAkaikuni e a mulher sapo
Lápis sobre papel

Amatiwanã Trumai
Akaikuni e a mulher sapo
óleo sobre tela (70cmx50cm)
Esse esboço do quadro sobre o mito de Akaikuni mostra no desenho as características
animais da mulher que irão desaparecer no quadro definitivo. Corpos desenhados com a
preocupação realista, a floresta densa e selvagem. Cotias que aparecem em vários mitos
de Mavutsinin, são depois substituídas por um anímal sobrenatural. Há entre o esboço e
o quadro acabado a depuração de elementos que torna o resultado final mais
"domesticado" em relação ao espaço, com maíor definição entre fundo e figura, na
presença ordenada da natureza, com nova correlação entre as formas e os sentidos de
suas relações.

Os quadros reproduzem as pinturas corporais, cujo exercício só aparece quando torna-se


pintor, e reúne duas maneira de pintar, doís conhecímentos.

As pinturas de corpo que os indios usam, eu não tenho muita prática


Também, não é qualquer um que sabe pintar o corpo das pessoas. É um
homem que já sabe desenhar, faz igual desenhista, só quem sabe pintar
mesmo. No corpo é um homem que pinta outro homem também. Pinta com
jenipapo, urucum, uma cenoura selvagem, waniwanifa:xlo, que dá a cor
amarela, outra fruta com uma cor assim azul, anat, é uma planta que dá
mais no brejo, perto do rio. Tem também casca de pau para pintar o banco,
o barro para panela, a terra vermelha que também serve para pintar panela,
ela tem assim uma cor marrom teneumat'. O barro branco ieukat' serve
para pintar corpo no tempo do Jawari. Antigamente também faziam
tatuagem com cinza de palmeira.
Eu aprendi o corporal com a pintura, porque o corporal vai na minha
pintura.

Os quadros mostram vários tipos de pintura corporal. Para os homens, a mais comum é
aquela usada nas costas e coxa, que imita a sucuri. Para as mulheres, o katedash na
perna e o utinapaná no rosto

Ultrapassar as limitações, significou o primeiro impulso em direção à pintura. E,


também, a maneira dele manter-se próximo ao Xingu.

171
Ai comecei a fazer as pinturas, comecei a pintar. Assim eu não estou mais
sozinho, parece que eu participo. Eu acho que é saudade, fica mais fácil, é a
mesma coisa que estar vendo a festa, as pessoas, os animais. É quase
sempre meu divertimento esse ai. Já que não vou participar da festa, estou
isolado, sem poder ir a lugar nenhum... É a única coisa para eu me divertir
é isso ai. É a mesma coisa que participar da festa. Eu sinto saudade do
Xingu, eu sinto saudade

A nostalgia e a saudade do Xingu, o medo de os índios e a maneira deles viverem


desaparecer, são argumentos que justificam e sustentam sua criação. Esse argumento
afetivo não se aplica a pessoas. Elas não são objeto de seu trabalho e ele não imagina na
pintura a referência do modelo vivo ou, a reminiscência dos que já morreram. Como na
cultura tradiciona~ os mortos pertencem ao mundo que deve ser mantido à distância:
não devem retomar sob nenhuma forma. A proximidade é perigosa. Sonhar com eles
significa ameaça à própria pessoa que sonha ou aviso que haverá morte. A separação
entre mortos e vivos é fàtor de equilfürio e o morto quando enterrado leva consigo todos
os seus pertences. A proximidade com eles é uma atitude condenada socialmente e
julgada fàlta de respeito e de sentimentos. Mesmo quando Amati escuta as gravações de
cantigas rituais gravadas por seu pai, ele o faz com parcimônia, para que não se abale a
ordem estabelecida, mesmo fora do Xingu.

"Não pode, eles faleceram. Morreu, morreu. Não pode, os outros vão
dizer, "esse cara não tem sentimentos". Morreu, não pode nem ter as
coisas, que vão ser enterradas com a pessoa . Eu gosto de ouvir gravação
do meu pai, mas não posso ouvir muito, é desrespeito.

Coisa semelhante acontece com os sonhos que permanecem impregnados dos poderes
de extra visão. Mesmo assim, duas vezes ele "recebeu" a pintura através de um sonho

Nesse tempo que eu estava morando em São Paulo, eu tive esse sonho.
Nesse sonho, saiu uma árvore, uma árvofe bem grande, no meio do rio.
Começou a brotar, saiu, saiu, saiu... Só que essa árvore não tem olhos, só
boca. Essa árvore falou assim para mim, quando ela ficou bem de pé no
meio do rio:
"Eu sou uma árvore que não morre. Seu pai me viu, muitos anos, anos, anos, anos atrás, seu pai
já me viu. Agora, eu estou saindo para você me ver. Leva muito tempo para adoecer, quando a
pessoa me vê. Agora, já que você gosta de desenho, você tem que me desenhar agora."

172
Ela se mostrou todinha. Falou isso, eu vi a árvore cair, tuk, tuk,
desapareceu. Eu acordei, gravei bem essa árvore. Levantei, peguei lápis,
papel, desenhei. Agora eu não sei onde está.

Entre artistas da Costa do Pacífico da América do Norte, era comum que as inovações
fossem atribuídas aos sonhos. Boas registrou o depoimentos de artistas que haviam
recebido "desenhos sonhados". Esse desenho, que Amati também recebeu de um poder
sobrenatural, aparece relacionado ao poder da cura, mais aos seus anseios de curar-se do
que aquele de tomar-se um artista inovador.

Dois outros sonhos colocam seus anseios na pintura. No primeiro, urna pessoa lhe dá
uma medalha e um desenho dizendo-lhe que correspondiam à sua pintura Embora ele
negasse mostrando, em contrapartida, o seu desenho, na realidade, a pirarara que lhe foi
dada no sonho é um dos seus primeiros desenhos: um peixe nas cores amarelo, laranja
vermelho e preto, com forma figurativa e de simples composição 48 não apresenta
maiores detalhes. No segundo sonho, alguém promete-lhe riqueza, mas, ao mesmo
tempo se reporta ao simbolo de urna aldeia velha dos Trumai , fonte dessa riqueza,
contraditoriamente, simula a dúvida do valor de seu trabalho, que aparece ora, como
possibilidade de conquistar a riqueza, ora como um simples papel sem valor e de pouca
duração.

No início de 1970, começam a surgir sugestões para ele fazer uma exposição, evento
que ele realiza em São Paulo, entre abril e agosto de 1972(Jomal O Globo 21/07172),
expondo 15 guaches e desenhos. Nessas, pinturas, ele usou técnicas mistas: guache e
elementos naturais Genipapo e urucum), retratando cenas do ritual do KWARUP, O
RITUAL ANHÃ.NU, A FESTA OLÉ, A LENDA DO ÍNDIO QUE SE
TRANSFORMA EM MACACO. Dessa época; há o registro de 43 trabalhos
realizados entre 1969-1975.

48
- o desenho não será reproduzido, pela baixa qualidade da fotografia

173
Ele guarda boas recordações da exposição. O relacionamento com as pessoas e sua
descoberta de existirem profissionais que vivem da pintura Inicia, o que os amigos lhe
dizem ser, sua carreira como pintor.

O pessoal vinha me explicar como é pintura. Esclareceu mais. "Ô Amati,


isso ai já é o início da sua carreira, cada um tem a sua pintura. Então, você
tem essa. Falaram que é muito bom, que tem muitas pessoas que vivem de
pintura.

Por volta dos anos 80, produz cartões postais com o grafismo tradicional do Xingu e a
reprodução de um quadro do ritual do Kwarup, editados pela Fundação Kwarup,
dirigida por Aritana Yawalapiti.

Nos anos 90, uma pessoa lhe propõe comercializar os seus trabalhos. Pinta cerca de 22
quadros para uma exposição 49 organizada pela mesma Fundação para a ECO 92 (Rio
de Janeiro). Porém, na sua idéia, esses quadros eram para ser apenas emprestados. Abre
ação judicial através da FUNAI, sem no entanto reaver os quadros ou parte do dinheiro.

A dificuldade da relação comercial, é vivida inúmeras vezes. Em parte, ela resulta, no


meu entender, da ambigüidade de expectativas que ele projeta na relação com a criação.

Tem dia que eu tenho vontade de vender, tem dia que não tenho. Eu penso
assim, eu queria deixar isso ai para o meu povo, uma lembrança, assim um
tipo museu. Isso ai é para recordação, mesmo que eu morro, deixo para os
meus filhos, minhas filhas. Ai, não sei se papel atura, tinta... Esse é meu
pensamento. Ai depois eu penso, preciso vender os quadros, fazer
exposição. Tem hora que eu quero ter condições, não ficar dependente.

Por detrás de suas imagens, Amati acalenta o projeto de fazer

49
- Um catálogo publicado pela Flllldação Kwarup, que tem sede no Rio de Janeiro, explica os objetivos
da organização. Nela estão reproduzidos 8 quadros de Arnati, feitos em 1991, os quais ele assina ainda
apenas como Amati. Os quadros são: A dança do Kwarup, A luta huca-huca A festa do Jawari, A festa
Yamurikumã, A festa da mandioca, A dança das máscaras Apasha. Os indios pescando. Q sonho do
doente com os pajés macacos. Infelizmente nllllca tive acesso a esses quadros,

174
... assim, pequenos quadros só história, igual gibi. Vamos dizer assim, eu
penso história Mavutsinin, ai pego do começo e faço um quadro, vai saindo
conforme a história, as figuras. Eu queria assim, fazer um quadro do
começo, faz primeiro um, segundo, terceiro ... Cada figura uma história. Ao
invés de contar história, vê figura.

Essa pintura em seqüência, foi também comparada ao cinema, ao filme. Uma maneira
que expressa a vontade de contar urna história, e aproxima o conteúdo a - temporal
mágico do cinema à linguagem dos mitos. Na comparação, as duas linguagens
aproximam o sentido processual, e formaliza-se a idéia de transmitir o conjunto da
cultura do Alto Xingu. Ao nosso olhar, o entendimento dessa intenção só é completa na
medida que conhecemos os mitos, e tendo à vista o conjunto de seu trabalho: resgate de
sentidos que recupera a idéia de conjunto, que os quadros isoladamente nos limitam à
observação dos fragmentos de mitos e rituais.

O ato de pintar aparece, de outra forma, como resultado de consciência social e


individual

Ao mesmo tempo, eu vi que a minha pintura, pretendo fazer alguma coisa


para o meu povo. Sei lá, se um dia desaparecer, de um dia para o outro ...
Eu não sei se os índios vão morrer todos, perder a cultura, os
costumes ...Realmente, 'é isso que está acontecendo. Os velhos estão
morrendo, os que sabiam das coisas. Minha preocupação é com isso. Eu
mesmo vejo assim as minhas pinturas, porque eu estou pintando? Eu acho
que.. Quem sabe daqui muito tempo, a minha pintura já é uma pintura
daquilo que mais ou menos já existia. De um dia para o outro, pode os
índios desaparecerem. Morre todo mundo, não ter mais festa. Então, o meu
quadro, já apresenta que isso já existiu. Vou continuar pintando até o dia
que eu puder.

Independente do cinema, do quadrinho ou das narrativas, ele trabalha com princípios de


justaposição de linguagens (figurativa e gráfica) e arranjos significativos, que faz cada
quadro ter por si próprio qualidade estética de grande valor. Entretanto, no
desenvolvimento da inlaginação afluem, pelo menos, dois mecanismos: convergência e
repetição. A cena ritual é o ponto central da estratégia de sua composição. Cada uma

,',
175
dessas cenas, nos exemplos do Jawari e Kwarup, cria relações com outros quadros, com
o propósito de formar a seqüência de acontecimentos que antecedem o apogeu da festa
ou o seu próprio desenvolvimento. São, por exemplo, cenas de famílias viajando de
canoa, homens pescando que aos nossos olhos são simplesmente cenas cotidianas, que
quando ele descreve, se explicam como parte do conjunto: "Aqui são os convidados que
estão indo para a festa;" ou, "esses são os pescadores que estão pescando para a festa";
ou, ainda, "as mulheres estão preparando a mandioca para o dono da festa". A qualidade
dessas ações ganha então o sentido mais amplo de continuidade desejada, "vasos
comunicantes", cenas intermediárias ou entre-cenas, que nos remetem à simultaneidade
de ações e aspectos que dão ênfase ao quadro correspondente ao ícone rituai de forma
semelhante à montagem de filmes, cuja evolução leva à somatória de imagens,
reforçando uma emoção. O tema ritual constituído em eixo criativo, agrupa em tomo de
si facetas da seqüência que envolve o apogeu da ação primordial. O procedimento
constitui a idéia de movimento indo além do quadro.

Por outro lado, o processo das imagens trabalhadas mostra os diferentes ritmos do
processo de criação: lembranças e memória realizadas na unidade dos fragmentos.
Enquanto projeto, a pintura guarda a dimensão dos acontecimentos da esferas da vida, e
conjuga o pensamento mítico e recriação plástica como um mosaico de informações
temáticas e sensoriais. Não obstante, o tempo que liga um quadro ao outro é ditado pela
maturação do processo imaginário e se articula aos elementos herdados pela experiência
e memória coletiva e do próprio tempo de aproximação das imagens: imaginário e
tempo modificados, distanciam e aproximam o artista do ideal projetado. Embora o
nível consciente queira incorporar as imagens ao conjunto como força de linguagem
construída coerentemente como projeto, suas idéias vêm do ato espontâneo, desejo
pessoal que une a ele as imagens de seu interior, Não sendo cópias, elas amadurecem
no fluxo relacional. O projeto e a realização de uma pintura que "conta" uma história
acontece, mas não pela consciência, mas pela força despertada no imaginário. E, por
essa razão, as imagens-lembranças não são ilustrativas e somam dois tempos
acumulados que progridem além do simples documento da realidade.

'
176
O aspecto afetivo da construção das figuras segue também o ritmo da repetição, mas
não se realiza como ato mecânico. No processo de trabalho, encontraremos os paralelos
do movimento que se desenvolve pelo envolvimento com a comunidade afetiva,
conceito de Halbwachs que propõe como condição para a reconstrução de lembranças
coletivas, a existência de laços que "tanto no nosso espírito como no dos outros," fluem
incessantemente de uns para outros."( 1990:34) Isso para dizer que a arte toma o lugar
do modelo (Xingu) e toma-se indispensável ao artista, não apenas nos termos de
realização da imaginação criadora, mas como imagem do modelo que vive: tanto pela
convergência de forças da emoção, quanto no desejo do artista retornar aos temas dos
quadros que ele se desfaz, como quem retoma ao cotidiano e ritual real que estão
vetados à sua participação. Com sua arte, Amati dá asas à imaginação e só não voa mais
alto, porque o seu vôo tem objetivos determinados. Quero dizer que ele não pinta por
pintar, ou apenas para ganhar seu sustento. Pintar as figuras, é reaver imagens de
realidade, e um modo de manter-se próximo do universo que lhe é caro e indispensável
à sua vida. Por outro lado, esta é a maneira dele resistir à idéia de separar-se dos
,quadros e perder o controle sobre suas telas. Elas se vão e como no mito de Sísifo, ele
volta a refaze-las, no exercício de imaginar e criar.

Em diferentes trabalhos, Darcy Ribeiro (1980; 1987) faz distinções básicas entre o que
nos leva ao reconhecimento da arte e o que caracteriza a manifestação estética na arte
indígena. A distinção primordial reside em ser a arte para nós, resultado de um
segmento especializado e que se destina a um mercado que organiza um olhar sobre os
objetos em museus, galerias e coleções privadas, urna arte de mercado de um mundo
concorrencial que separa os criadores de suas criações, ao passo que nas sociedades
indígenas, arte e artista estão integrados entre si e a quaisquer outra manifestação de seu
grupo: os objetos fazem parte da vida de toda a comunidade e de todos os seus
segmentos. O aspecto não classista desse mundo social ordena a estética sem distingui-
la do restante das manifestações existentes de forma oposta ao que inaugura o segmento
moderno da arte que abandona a visão integral e particulariza mais e mais suas
manifestações. Se na arte índia o talento maior ou menor de cada um permite
reconhecer o talento individual, isso não cria individualidades cuja sensibilidade se
desprendem dos critérios comuns ou sociais, nem a separação entre os fazedores da arte

'
' '
177
e seus apreciadores ou hierarquias de · poderes que separam o público e o
privado.(1987:30)

Vista desse ângulo, a maneira de Amati viver a arte coloca a tensão entre as duas
formas opostas da relação do artista com o seu produto. De um lado, o desejo de
totalidade artista - arte que se manifesta, e, de outro, como profissional que não pode
fugir das regras fragmentárias do mercado que ele deve enfrentar. Desse modo, duas
lógicas projetam o registro e testemunho do mundo animado simbolicamente como
parte da vida. Na primeira, ele vive a arte como parte indistinta do mundo e de seus
bens, se apega aos princípios que regem o artista na arte convencional, resiste ao
mercado, arquiteta documento-imagens para o futuro, nega a dispersão de seu trabalho
no mundo da mercadoria De outro, resvala para a fluência da postura de pintor
profissional, necessidade de sobrevivência na cidade, e sonha usufruir os bens
materiais. E, nesse último caso, ele perde o controle de sua arte e de um bem inalienável
que se torna pura mercadoria

Complementarmente, associa sua pintura à nostalgia que causa a distância da vida no


Xingu. No sentimento de saudade, revela-se também a perda do modelo de um homem
cuja essência de vida é o movimento e a forma :tisica que se desenvolvem muito cedo e
criam o sentimento de independência. A doença é uma barreira ao pleno exercício do
corpo e, no sentido metafürico da saudade, torna-se expressão da limitação do exercício
de formas de viver. Porém na cultura do Alto Xingu a doença é um código complexo e
não um efeito mecânico. Nos ·mecanismos internos de aquisição e transmissão de
poderes magico - religiosos, ela tomar-se signo de conhecimento, porta de entrada para
o mundo da percepção. A enfermidade não é um estado totalmente humano, mas
manifestam-se a partir dela conhecimentos criativos e inovadores, forças que colocam
para o homem o mágico e o naturalmente constituído. O homem atingido pelas forças
da natureza torna-se capaz de melhor curar de decifrar códigos dessa mesma natureza,
desenvolvendo técnicas aperfeiçoadas para lidar com o perigo e a ameaça à vida. Pela
doença, se "morre um pouquinho", mas vencida a morte ela também toma mais
próximo o conhecimento.

178
Essas considerações buscaram traduzir os níveis de relação entre a doença e a
imaginação ampliada do artista. O processo de desordem pessoal, limitou para ele o
exercício do cacicado Trumai, sua participação na vida produtiva e ritual, intensificou o
distanciamento das origens, nos longos períodos que ele passou nos hospitais da cidade.
Todos esses fatores foram suficientes para desenvolver a atitude do observador e
contribuíram para constituir um determinado olhar sobre a cultura. Suponho o simples e
ingênuo exercício de distração desenvolvendo aos poucos o sentimento estético e um
novo conhecimento técnico, que amadureceu fontes, idéias e interpretações novas da
cultura do Alto Xingu. A partir da percepção incomum das coisas que só um artista é
capaz de desenvolver de maneira ampliada (Leopoldo e Silva: 1996: 141) a tensão e o
relaxamento de seu olhar sobre o mundo finalizou por dotá-lo da capacidade de ver mais
que os outros. Vendo tudo, revela aspectos insuspeitáveis da realidade. As figuras
criadas a partir da ordem dos mitos, se constituem de maneira diferente das figuras
mágicas criadas pelos pajés. Elas não são portadoras de cura, não são veículos. Porém,
como nos mitos, suas imagens concedem o poder de transformar o inanimado em
animado, formas inertes em probabilidade de vida. Corno faz toda e qualquer arte.

179
5.2. QUADROS E OUTROS MITOS

180
Todo o corpo que a gente desenha imita uma coisa: as cores do jabuti,
a asa da borboleta....

Amatiwanã Trumai, 1998

As analises dos quadros levam em consideração a técnica, o sentido estético das


composições e a relação entre pintura e expressividade dos temas. Nem todos os
quadros virão apresentados nas análises. Alguns já reproduzidos em outros capítulos
não serão abordados no material aqui proposto. Aqueles que tive contato apenas por
reproduções também estão ausentes, pela dificuldade de avaliar, cores, textura etc.
Apenas um desenho do Kwarup, o único trabalho de Amati em branco e preto, foi
inserido nesse conjunto, pela força de sua expressão e clara relação com os demais
quadros sobre o tema.

Os quadros, a seguir, pertencem a duas fàses que foram distinguidas por elementos
plásticos e técnicos. Os primeiros quadros datam de 1977 e 1978 e os últimos, de
1997 a 2000. Com todos tive convívio e intimidade. Onze entre eles fizeram parte da
exposição promovida pelo Museu Nacional de Belas Artes em novembro de 2000,
da qual fui curadora. Alguns outros foram somados por manterem laços de
convergência com os temas propostos ou por alguma particularidade que merece ser
esclarecida A análise inclui narrativas que se articulam às imagens. As imagens são
espontâneas, fruto do trabalho desenvolvido naturalmente por Amatiwanã. Os textos
foram narrados em circunstâncias diversas. Alguns estimulados pelas imagens,
outros não. De todo modo, eles não têm papel de legenda. O cruzamento da
linguagem visual com a expressão oral foi o caminho natural da pesquisa e também
correspondeu ao desejo do artista. Muitas vezes, as imagens serviram a dar
informações sobre a pintura corporal, ou a esclarecer dados históricos, épocas,
lugares e detalhes plásticos etc.

Os desenhos anteriores a essas duas fàses (1969-1972) são comentados apenas como
referência. Um deles será abordado pela singularidade da composição.

181
Técnicas, formas e temas

Tive acesso à alguns de seus primeiros trabalhos de propriedade de um amigo seu


pintor, em 1997. São desenhos que mostram o interesse pelo mundo animal com
composições figurativas, muito diferentes de o utros trabalhos de artistas índios que
transpõem figuras sobrenaturais para o papel ( f énclon Costa: 1987; 1988).
Composições com equilíbrio de proporções, sem sublinhar dimensões significativas no
uso das forma e cor, abrangem temas de animais em grande parte tratados iso ladamente.
Nessa época já aparecem os primeiros tratamentos do tema do ritual Kwarup.

Amatiwan.ã Trumdi
Arara Azul
Guache sobre papel

Dessa época, muito interessante é a elaboração de figuras de pássaros em sobreposição:


Chama atenção a maneira como ele trabalhou o espaço. Com a multiplicação de
ângulos, o recorte espaço - movimento das figuras criou o efeito plástico do ritmo, que
ressalta o universo animado pelos pássaros. Os diferentes níveis: em cima de árvores, no
chão, próximas ao rio, são de tal forma estilizados que foram aproximados. As figuras
se comunicam por pares, com inversão de sentidos entre os pássaros do lado/esquerdo e
direito, e, entre eles, o espaço central ocupado por três aves de perfil, cujo recorte

182
espacial não propõe um centro, uma hierarquia de interesse ou proximidade. O
equilíbrio distribuí o movimento como a coreografia de uma dança. O rio se confunde
com a linha do horizonte e separa os pássaros, da outra margem. A direção múltipla das
figuras permite isola-las, mas o conjunto se refaz pela linha sinuosa do rio.

Amatiwanã Trumai
Pássaros
Desenho ã lápis sobre papel

O jogo de fragmentos espaciais, guarda analogias com o bricolagem, dando a liberdade


de leituras com diferentes ordenações, e transmite a sensação de terem sido as figuras
retiradas de momento diferentes. Ao mesmo tempo que o espaço criado pela
horizontalidade do rio circunscreve e limita, a linha equilibra e acrescenta ao
movimento aleatório da aves a graça do conjunto da composição e o ritmo circular.

Na mesma coleção, já aparece um de seus temas mais caros, o da mulher xinguana,


como arquétipo de bela ideal. Mas o trabalho de Arafcuni, que ele cita sendo um de seus
primeiros desenhos, só vai aparecer mais tarde, em 1977, numa de suas mais belas
composições.

183
Um primeiro conjunto de 5 quadros (1977/78), pude aprecw inúmeras vezes. São
desenhos sobre papel cartão, usando técnicas que combinam o guache, pigmentos
naturais e óleo em dimensões de 37cmx47cm. Os quadros apresentam cenas rituais e
figuras simbólicas. Exprimem espontaneidade de traços e magia de grande beleza.
Nessa primeira fase, a imobilidade das figuras remete dois tipos de sensações: a
estabilidade no tempo, e figuras humanas como máscaras arquetípicas. O figurativo dá
indicações da realidade, como nos detalhes das pinturas corporais. Na ausência de
movimento, o tempo paira absoluto.

Os trabalhos, O ÍNDIO NA PAISAGEM AZUL E A MOÇA COM A PINTURA


DE ESPINHA DE PEIXE, representam, respectivamente, um homem e uma mulher.
Nessa mesma fase foram tratados outros temas: UM MENINO QUE SE PREPARA
PARAJAWARI, TRÊS FLAUTAS (JAKUI)AFESTADO YAMURIKUMÃ. Todos três
fazem referências aos mitos e representam cenas ou partes de rituais. Essas pinturas
caracterizam a tendência gráfica acentuada, figuras planas ocupando a parte central do
,quadro. Linhas do desenho que serviram de guia são por vezes visíveis. Há muita
emoção. A presença da natureza envolve e realça a composição da figura. Não há
conotações decorativas ou acessórias. Ao contrário, o equilíbrio do conjunto segue o
ritmo cumulativo causado no efeito das cores, e integra o em torno e modelos arquétipos
do ideal de beleza do Alto Xingu. O singular é símbolo. Os seres, destituídos de
prosaico, realizam atmosferas de sonhos. A composição sem detalhes desnecessários é
depurada e elegante. A tensão vem da relação entre cores e linhas, proximidade e
afastamento, que torna os quadros, ao mesmo tempo, simples e solenes.

O MENINO SE PREPARA PARA O JAWARI foi elaborado com as mesmas


características técnicas precedentes. A composição, representa um personagem, e
símbolos da ação ritual. Embora seja o Jawart uma luta ritual violenta, a figura
masculina é infantil. O menino vestindo tanga, tem as orelhas furadas e enfeitadas com
o fa, adorno de penas que é adquirido no ritual de iniciação para a vida adulta. Ele traz
uma faixa na cintura, tornozeleiras, dash e na cabeça usa um capacete coroado por um
pássaro preto e branco que Amati chamou de ut'. O capacete é originalmente

184
confeccionado de embira, buriti e penas de arara, com penas de mutum, kut'mut ', que
representam os cabelos.

O MENINO SE PREPARA PARA O JAWARI

Amatiwanã Trumai

Plasticamente, O MENINO é um exemplo da sup~rposição de linguagens: gráfica e


figurativa. A figura está envolvida pelo desenho gráfico, com linhas que formam
ondulações e cuja composição é marcante ao primeiro olhar e nos instiga com uma
interrogação. O grafismo que aparentemente poderia desequilibrar a idéia de conjunto,
produz o efeito contrário pois estabelece uma tensão plástica que caracteriza o efeito
estético do quadro. Aparentemente arbitrário, o elemento gráfico contradiz a linguagem
descritiva da figura, cria a tens&o de elementos - linguagem gráfica e figurativa - e
introduz na composição a força da relação entre: as cores e as linhas, o fundo azul noite
' /
chapado e a figura em primeiro plano. A tensão das linguagens, soma-se a tensão criada

185
com a sobreposição de cores e camadas de superfícies planas. A relação das cores aliada
à oposição entre figura e grafismo resulta no efeito de tensões díspares onde o menino
parece ser submetido a forças que opõem dois movimentos: um para cima e outro que
mantêm o personagem na superfície. O movimento vertical causa um efeito inesperado
na rigidez da figura, atribuindo-lhe leve:.w. Os detalhes dos adereços se aproximam de
uma linguagem descritiva ao mesmo tempo que a estática da figura se equilibra
simetricamente com o desenho gcometrizantc. A rigidez do menino e a sua postura
heráldica é suavizada e reelaborada plasticamente pelos contornos dos frisos maleáveis,
causando a sensação de deslocamento do espaço fixo. Ou, se preterirmos, a relação
entre a figura e o grafismo sugere o deslizamento de uma canoa que segue rio abaixo.
Os elementos plásticos adquirem um sentido simbólico nas linhas que sugerem a
codificação de uma canoa, e a relação entre forças em oposição, aproxima o
procedimento plástico do conteúdo do mito do Jawari. Embora em proporções diversas
da "fabulação visual" e do sentido onírico da pintura de Marc Chagall, realiza - se
nesse quadro coisa semelhante àquela que Giulio Argan sublinha na obra do pintor
russo: imaginação como fonte de linguagem que ''possui uma estrutura própria e cumpre
uma função "construtiva".(1993:473)

ESBOÇO DO QUADRO FESTA DO JAWARI

Amatiwanã Trumai
A FESTA OOJAWA RI

O quadro da Festa do Jawari (óleo sobre tela com 90 cm x 60 cm) foi terminado no ano
2000. A narrativa de Amati e de outros autores, estão transcritas e analisadas no
Capítulo3 e podem ser consultadas nas páginas 125-141 .
A maneira de Amati representar o tema ritual não trata da luta cerimonial, mas da
harmonia da dança de casais que nos leva a identificá-los a cordialidade e identidade do
grupo Trumai, nos tempos em que eles conviver~ com os ancestrais Payetã. A
memória comum inspira os adornos: capacetes com penas de arara azul e vermelha e do
gavião patxsó. Corpos pintados de branco, dardos e propulsores. Mas a imaginação é
mais forte na recriação dos detalhes dos da~çarinos que se movimentam no espaço
aberto. O fundo recebe tratamento em tons pastéis, terra, ocre. Uma massa escura
acompanha a linha do horizonte, criando a divisão entre céu e terra, para acrescentar
intensidade ao sol que surge lentamente. No cenário despojado se destacam os humanos.
O espaço da aldeia é apenas sugerido nas casas que margeiam o lado esquerdo e direito.
/
A complementação entre fundo e figura realça a simetria dos perfis, tornando-os

187

- ------ -------- - - - -- - - - - ------ ----- -


- -- -- -
semelhantes aos da arte egípcia. As figuras são animadas pela ordem do mito e pelos
procedimentos de uma nova convenção.

O ÍNDIO NA PAISAGEM AZUL

A floresta, o rio e as pedras enquadram o cenário perfeito para o índio que suave e
solitariamente toca sua flauta. No O ÍNDIO NA PAISAGEM AZUL, (técnica mista
sobre cartão) a atmosfera de sonho criado pelas cores nos envolve ao som da flauta, que
toma-se imaginariamente audível. As cores são elementos chave. O vermelho intenso
do corpo do rapaz, os verdes e azuis do fundo, tencionam integram de maneira
complementar a figura e o rio. Os adereços de orelha, a pintura em urucum sobre a
cabeça e os traços no tórax são as insígnias do personagem sobrenatural. A imagem se
conjuga a dois textos.
/

188
As duas narrativas se enquadram na plástica do desenho para definir os traços do
personagem mítico. No primeiro texto, o homem sapo na beira do rio está em guerra
com outros índios que invadem o seu território.

Os de antigamente eram assim. Faz muitos anos, muito tempo, todos os


bichos eram iguais a gente, falavam, conversavam ... Então, essa pintura que
eu fiz, é Petew. Esse rapaz é o sapo.

Petew morava perto desse rio Tuatuari, para baixo um pouco, onde
moravam os awitiano antigos. Os Trumai dão o nome de aldeias do sapo.
Ele e o pessoal dele levantava, tocava flauta para tomar banho. Os bichos
do pé, Tun, eles não aparecem no quadro, moravam mais lá embaixo. Esses
Tun, nesse tempo são gente também, eram guerreiros. Todas as manhãs
eles iam lá. Eles atravessavam o rio e iam guerrear. Passavam pelo
território do Petew. O sapo gostava de sair cedo e tomar banho, gostava de
tocar sua flautinha na beira do rio de madrugada, ficava tocando kulataí,
nos chamamos kut pat, flauta feita de bambu. Ele ficava lá na beira Todos
os dias de manhã Petew encontrava os Tun lá. Primeiro ele falou:
- Ô guerreiros onde vocês vão?
- Vamos trocar
- Trocar aonde?
- Mais longe
Outro dia de manhã, a mesma coisa...
- Guerreiros vocês vão onde?
- Vamos fazer guerra...
Todo dia a mesma coisa. Até que o sapo pensou, "esses caras não param de
passar por aqui! Dessa vez, ele não chamou mais eles de guerreiros, e falou
assun:
- Ô bicho do pé, Tun, onde vocês vão?
Eles acharam ruim e xingaram o sapo de tudo quanto foi jeito. Então o sapo
ficou com raiva:
- Ah é? Vocês querem briga?
Os Tun não sabiam nadar, e o sapo pulou no meio deles e eles afundaram.

189
Um outro texto pode ser relacionado a esta figura, o mito de Arakuni (Capítulo 3; p.101)
Segue abaixo alguns comentários suscitados pela associação da figura do quadro e este
mito de Arakuni narrado por Amati.

No mito, o desenho que Arakuni trás no corpo é a marca singular que revela seu incesto
com a irmã A pintura corporal que o distingue dos demais índios, sinaliza sua força
sobrenatural, ao mesmo tempo que representa o masculino que penetra o corpo
feminino tomando visível a cumplicidade e transgressão fraterna que a mãe e o espírito
da floresta anunciam ao longo da narrativa. O corpo pintado está elaborado para a festa
e para o amor. Mas também é o sinal da passagem de Arakuni para um outro estado do
ser, metamorfose e interpenetração dos mundos, terra e água, migração do mundo dos
irmãos para o mundo dos espíritos. O sobrenatural anfibio anda sobre as águas com
rapidez e nenhum humano pode alcançá-lo, mesmo seus amigos que tentam dissuadi-lo
de ir rio abaixo. Com o corpo aparamentando, Arakuni ruma para longe, como quem
caminha em seu elemento natural Ainda com a aparência humana, vai pouco a pouco se
transformar. Isso dura um tempo, não é uma mudança abrupta, mas um processo com
despedidas, rituais, oferendas, objetos, que se tomarão distintivos da celebração de sua
festa. No processo de metamorfose, um estado intermediário entre uma forma ainda
humana, que já é a de um ser da água, traz a fertilidade com a chuva que anuncia a sua
chegada, os presentes, adornos, paramentos corporais e a música que ele traz para que
os homens se recordem e se consolem da ausência de seu corpo que enfim, vai viver
debaixo das águas, na terra da água, como diz Amati. Sua cantiga, sua lembrança, ele
mesmo, habitara os outros corpos. Com as canções, os homens lembrarão sempre.

O guache, TRÊS FLAUTAS, apresenta três homens que oficiam o ritual do Jakui. As
cores predominantes são o vermelho e o marrom. Estão presentes referências ao
contexto: aldeia, casas o súnbolo do ritual está explicito nos três músicos que tocam as
flautas sagradas. As figuras estão representadas de frente e a composição das pinturas
corporais são ricas e imaginativas. 50As narrativas do mito Jakui não foram suscitadas
por essa imagem e estão reproduzidas (Capítulo 3; páginas 91-94).

50
- o quadro não pode ser mostrado pela baixa qualidade da reprodução.

190
Os quadros que se referem ao ritual do Kwarup, somam um conjunto a parte. O trabalho
realizado em 1997 vai ser relacionado com duas outras concepções anteriores do
Kwarup. Um primeiro (1978) é um desenho em preto e branco, com a técnica de
nanquim. O segundo (1990) corresponde a fase de sua produção para a Fundação
Kwarup. Os quadros são abordados em relação aos referentes míticos e aos climas
emotivos que transmíte o artista em cada um deles. A análise formal busca o fluxo da
imagem de um tempo que se move através da composição e como o pintor representa
seu próprio sentimento em relação ao Xingu. Nessas pinturas, o tratamento técnico é
formal, principalmente no último trabalho. A composição, as cores e a relação das
figuras dentro do ritual, apresentam um certo esquematismo. O tratamento plástico
associa idéia de estático e a iniciação de movimento, ao drama da mortalidade e
imortalidade do homem.

AS REPRESENTAÇÕES DO KWARUP

Para a representação de seus quadros Amati se inspira fundamentalmente na memória


dos mítos e dos rituais. Esse conjunto de pinturas elaborado ao longo de 20 anos de
forma descontínua, (1978/1990/1997), retrata, de forma diversa, a situação ritual dos
xinguanos diante dos troncos Kwarup. O ritual rememora a cerimônia dos mortos, a
cordialidade entre os grupos, o desejo de imortalidade e a aceitação da perenidade no
mundo criado por Mavutsinin. Depois de criar os homens, ele quis que os mortos
voltassem a viver. Foi ao mato, cortou três toras de madeira kwarip e levou para a
aldeia. Chegando lá, pintou e enfeitou os troncos, mandou que os troncos fossem
fincados no centro da aldeia e distribuiu peixe e beiju para todos. Em seguida chamou
dois sapos cururu e duas cotias, para que eles cantassem sem parar e sacudissem o
chocalho com a mão direita junto aos troncos até que eles criassem vida. No meio do
primeiro dia os cantos dos maracá-êp cessaram um pouco e os xinguanos quiseram
chorar seus mortos, mas Mavutsinin respondeu que era preciso esperar, não deveriam
chorar porque os troncos iam virar gente. No dia seguinte, continuou. No meio da noite
desse segundo dia, os troncos começaram a se mexer. Todos os enfeites, as braçadeiras,
as penas, os fios de algodão dos cintos, tudo começou a tremer. Os troncos mexiam para
sair do buraco onde foram fincados. O sol começou a nascer. Quando o dia clareou os

191
kwarup já tinham virado gente da cintura para cima, mas a metade de baixo continuava
pau. Mavutsinin continuou pedindo para que ninguém olhasse, que esperassem. Os
cantadores seguiam cantando. Os braços dos troncos cresciam, uma das pernas já tinha
came ...Mavutsinin pediu que todos fechassem as portas. Concentrou-se. Ficou apenas
ele, os cantores e os paus, ninguém mais. Quando a translormação estava quase
completa, Mavutsnin falou para o pessoal sair, gritar, comemorar junto aos kwarip. Mas,
ele recomendou também que aqueles que tivessem tido relação sexual durante a noite,
que esses não viessem. Somente um tinha tido relações sexuais. De inicio ele ficou em
casa. Mas, não agüentou a curiosidade e saiu. No mesmo instante, os kwarup
começaram a voltar a ser pau de novo. (Orlando&Cláudio Vilias Boas: 1970: 52)

192
Amatiwanã Trumai
guache sobre cartão

2. A Natureza Celebrada
A segunda pintura do Kwarup (1990) descreve uma natureza exuberante, com um
magnífico nascer do sol, engalanado por florestas e flores. Aqui, a natureza do Xingu
revela seu conteúdo mágico. Nele, o ciclo da vida parece se completar. As figuras
choram seus ancestrais e o olhar frontal do artista ocupa o espaço para revelar quatro
troncos funerários ao invés de três. No centro do quadro, um homem, ainda de cabeça
baixa, está ladeado por duas mulheres, uma delas carregando nos braços uma criança.
Essas figuras transmitem o ritual e o esforço narrativ~ através do sentimento de perda
e observação. Mas ao contrário do quadro anterior, seus rostos estão descobertos, as
pinturas que recobrem seus corpos são menos importantes e os troncos estão
aparamentados ricamente mas sem traços ant~opomorfos. Além do deslocamento do
olhar, nesse quadro, o que se admira é a integração dos elementos da vida e da morte.
Nele a circularidade do mito se completa. Ao lado do homem que chora, dos troncos
inertes, a mulher e a criança, o sol que se levanta atrás com toda a pujança toma no
espaço a indeterminação do vôo de Mavutsinin, para anunciar a continuidade do ciclo.
/

194
1. O Vôo De Mavutsinin

De primeiro, os homens estão recolhidos ao seu próprio sentimento. Com os corpos


ornamentados eles são olhados por alguém que se situa do alto. Neste Kwarup (1978),
os troncos funerários estão despertos mas ainda imóveis. Porém parece mais
significativo a visão exterior que olha do alto, para imprimir à cena a indefinição de
um tempo ou de um espaço.

A terra está recoberta por veios de rios, matas indiferenciadas na sua grandeza,
homens, envoltos por elas, estão cuidadosamente paramentados e trazem no peito as
insígnias da águia e do morcego e as pintas da onça mítica, pinturas mais próximas do
Jawari do que do Kwarup. A posição das figuras, encobre os rostos e transmite na
posição cabisbaixa de tristeza. Poderia se dizer que esse olhar distante representa a
visão do alto de Mavutsinin. Esse desenho do Kwarup é o mais antigo sobre o tema
que conhecemos. A técnica de nanquim sobre papel é bastante elaborada. Nessas
figuras, um ponto de vista externo e visto à distância sugeriu o título que foi dado por
mim. É dos Kwarup o mais solene e o que melhor transmite um sentido de luto que
causa a morte de entes queridos.

193
3. O Kwarup Do Pintor

Amatiwanã Trumai
Sobre esse quadro, Amati fez a seguinte narrativa: óleo sobre tela

O K warup começa quando os homens tiram os troncos das árvores. Eles


deixam eles na beira do rio. A pessoa morre, eles fazem a cerca primeiro
onde está enterrado o morto. Depois, preparam o pequi, tiram a castanha do
pequi, guardam e, no outro dia, eles pescam, pescam. Tiram os troncos do
K warup, depois pintam a madeira, depois chamam os convidados para a
festa. Na hora que os convidados vêm, eles pintam os Kwarup: colocam no
centro da aldeia, os parentes de quem morreu representam os mortos, ficam
chorando, cantam a noite inteira, acompanhando os troncos enfeitados. No
dia seguinte tem a luta. Eles dançam um pouco, comem peixe.
Eles cantam um pedacinho da música do Arakuni quando fazem a cerca.
Mas só na hora que eles pintam a madeira que eles cantam para valer
mesmo todas as cantigas do Arakuni.

Nesse último Kwarup (1997) Amati introduz mudanças substanciais em relação aos
quadros anteriores. A primeira, na atitude m~nos solene dos personagens. A segunda,
pela representação menos exuberante da natureza e, a terceira, no tratamento exemplar
dos desenhos corporais das figuras.

O sol se levanta no horizonte distante, mas irradia luz pela extensão do céu. Entre ele e
a praça ritual, na linha de perspectiva do quadro, aparecem as casas que/ se alinham

195
acrescentando um novo elemento de transformação da natureza. O espaço central é
ocupado pelos troncos funerários que esboçam movimentos animados pelos pintores
que executam a pintura. À imobilidade das figuras se contrapõe a mobilidade animada
dos troncos. Ele traduz o momento do mito em que os troncos quase atingem a
imortalidade: eles já estão ressuscitados da cintura para cima. Os homens e as mulheres-
dois casais estão em cena - criam a intimidade com os troncos. Segredam com seus
mortos? Pintam? Preparam os troncos para a cerimônia ? A imaginação permite pensar
todas essas possibilidades. Todas as figuras estão rigorosamente de perfil, em atitude
que noutras épocas ou culturas traria o mal estar, por vezes fatal, pelo medo da perda de
identidade, nessa metade escondida. Mas, aqu~ a característica da composição traz em
si a identidade do pintor, para conjugar os diversos momentos do ciclo mítico com seu
próprio aprendizado e ato de pintar. A pintura nesse quadro é o elemento que devolve o
esplendor da vida aos personagens. O ato de desdobrado, de figurativismo e grafismo
corporal, a pintura torna-se tema complementar à criação da vida. Grafismo corporal, a
relação de cada um dos elementos do quadro com o ato de pintar, leva-nos a considerar
a complexidade da composição como fusão do gesto do pintor com o momento de
imortalidade do mito por ele apresentado. O confim da tristeza e o esplendor da
natureza mostrados anteriormente dão lugar a um rigorosíssimo exercício de memória
que integra o grafismo indígena ao espaço da figuração de maneira exemplar. No
recorte das duas linguagens, mais uma vez o encontro da linguagem figurativa e gráfica
atuam sobre a criação humana, e tomam-se instrumentos equiparados aos do criador no
mito.

Ao representar esse mito, Amati busca aquilo que ele mesmo chamou de pintura gibi.
Exprimir sentimentos com o sobrenatural: o espanto, a alegria, a beleza, a tristeza,
traduz os climas reverentes além dos limites da unidade do quadro. Segue a referência
da tradição oral, e procura multifaces do mito recorrendo a formas imaginárias que
possam distinguir o ciclo da vida e da morte pelos estados de sua alma.

Os quadros do Kwarup podem ser compreendidos como um mosaico em três tempos,


onde as imagens ícones se fixam pelo viés da subjetividade. A cronologia de diferentes
momentos da relação do ser com a natureza, com o sobrenatural e consigo mesmo,

196
completam o projeto que não se contenta com a fixação de uma cena como
representação do todo, mas que adota uma idéia mais abrangente, mesmo que o núcleo
emotivo mantenha-se inalterado no lema vida e morte. O procedimento estético,
enfatiza(l 997) a pintura como elemento de conhecimento tradicional do pintor, fruto,
podemos argumentar, de duplo diálogo interior com a arte e origem. A fidelidade ao
mito adota no centro da representação a referê ncia iconogrúlica do alo da criação mítica
de Mavutsinin. Imaginário artístico, habilidades técnicas dão à memória conhecida o
gosto da realização pessoal. Na relação espacial entre o céu e a terra, através dos
diferentes enfoques da temática, surgem as mudanças de visão de mundo. No primeiro
desenho, situa-se pela presença(ausente) daquilo que pode vir a ser o olhar do criador,
pela perspectiva de um olhar de cima, torna possível comparar na situação o
pensamento metafisico exposto por Joseph Campbell, para os Sioux ( 1997 : 102-103),
de um movimento que projetado fora do quadro alcança no quadro seguinte, o céu e o
sol que ilumina a cena e o desabrochar da natureza e, transcorrendo no espaço vazio,
finaliza no terceiro quadro, na convergência entre mito e criação plástica e estética.
Pintura do Xingu que se funde ao desejo criador do pintor.

HUCA-HUCA

Amatiwanã Trumai Tatupewá Trumai


Óleo sobre tela Óleo sobre tela
Incompleto, 1998 2 000

197
Os quadros mais recentes de Amati, usam a técnica a óleo sobre tela. São trabalhos que
variam entre 60cmx80cm, os maiores e os menores 37cmx47cm.. Eles apresentam três
tipos de temática: Cenas de rituais: A FESTA DO JAWARI, A DANÇA DO AMOÉ, O
KWARUP, A LUTA CERIMONIAL DO HUCA-HUCA, A FESTA OLÉ, JOKOKO, A
DANÇA DE FURAR ORELHA. Nas cenas do cotidiano: OS PESCADORES, OS
VIAJANTES, A CERAMISTA WAURÁ, AS DUAS MENINAS COM ULURI, AS
MULHERES QUE PREPARAM A MANDIOCA. Narrativas de mitos: O COLAR
QUE VIROU ONÇA, AKAIKUNIE A MULHER SAPO.

198
Os quadros de cenas do cotidiano, ao mesmo tempo que mostram atividades ou aspectos
da cultura, podem ser considerados, dentro da construção da cosmologia plástica, cenas
de ligação e intermediárias que fluem para enfatizar o cenário da festa.

MUNDOS COMPLEMENTARES

Amatiwanã Trumai
óleo sobre tela
50cmx80cm

Mulheres e Homens se dedicam a atividades diferentes e complementares


As mulheres tem como principal atividade o cultivo e o preparo da
mandioca

Amatiwanã Trumai
óleo sobre tela
50cmx70cm

Os homens passam grande parte de seu tempo na pesca. As duas


/
atividades são muito importantes para os rituais.

199
IOKOKO

Amatiwanã Trumai
óleo sobre tela (inacabado )

Jokoko é a dança da festa de furar a orelha do menino. Leva muito tempo para preparar
e dança a noite toda. Primeiro se passa sobre as orelhas dos meninos sucos vegetais para
amolecer os lóbulos. De manhã cedo, fura a orelha5 1No dia da cerimôniafaptyfat/a, os
meninos são levados por homens que são seus pru:entes, diante da casa das flautas.
Depois de entoarem cantos, os homens desatam cintos que têm na cintura, para darem
de presente aos iniciados. Depois, o cabelo dos meninos é cortado e eles podem comer
uma refeição leve de peixe. Novos cantos e em seguida, o menino é levado diante da
casa do dono da festa, e pintado com um desenho de águia para que se torne um bom
atirador. Finalmente, ele tem a orelha furada e é levado para uma rede, onde permanece
em repouso por muito dias.

/
51
- Os responsáveis por furar a orelha dos meninos são os homens adultos. No quadro, a presença
feminina é uma criação do imaginário do pintor.

200
UNIVERSO FEMININO

óleo sobre tela DUAS MOÇAS XINGUANAS


27xm37cm

óleo sobre tela


37cmx47cm CERAMISTA WAURÁ

201
A MOÇA COM A PINTURA DE ESPINHA DE PEIXE

" Os peixes estavam dançando o Tawaranã"

Amatiwanã Trumai

Essa moça vai dançar Tawaranã. Essa pintura que ela tem sobre a coxa,
nós chamamos de katedash, espinha de peixe, peixe pacu, parké. No rosto,
ela tem duas marcas pretas. Homem também usa essa marca. Trumai
chama esse desenho de utinapaná.

A história conta que existia um jovem que se casou muito cedo, mas a sua mulher não
gostava dele. Um dia ele foi pescar. Depois de esperar um pouco, ele pescou um peixe
pacú. Em seguida, veio um peixe pequeno, branco, ianokyra e disse para ele: /

202
- Eu sou uma pessoa, você não pode me matar. É verdade que a tua mulher não te ama?
- É verdade. Quem te disse?
- Eu escutei falar. Daqui a dois dias eu vou voltar. Você me espera.
Ele foi embora. Ele voltou no dia seguinte, e no horário que se traz a mandioca, o peixe
chegou:
- Agora, você vai vir comigo na aldeia dos peixes.
- Ele passou-lhe urucum nos cabelos e jenipapo no corpo. Eles mergulharam. Todos os
peixes estavam dançando. As moças também.
O peixe disse:
- lritu, esse era o nome do rapaz, você vai casar com a filha do chefe dos peixes
cachorra.
- Ele foi então na casa do chefe. O pai mandou chamar sua filha. Ele pegou a sua rede.
- Você vai casar com esse rapaz.
Os peixes estavam dançando a festa do Tawaranã. 52

52
- A narrativa foi feita pelo pai de Amatiwanã, Nituari, a lingüista Aurore Becquelin Monod, 1975

203
O quadro A MOÇA COM A PINTURA DE ESPINHA DE PEIXE (técnica mista sobre
cartão) apresenta uma mulher ornada com desenhos katedash (espinha de peixe). Ela
está pronta para a festa Tawaranã. Para Amati, a beleza, a maior delas, é a mulher. Mas,
a mulher para ser verdadeiramente bela tem de estar enfeitada com adornos corporais e
pinturas. Esta é a maneira como ele concebeu o quadro. A torção do corpo privilegia a
elegância plástica da nudez e o conjunto das formas femininas, enfatizando na
composição a cristalização da ação que fixa nosso olhar sobre o rosto e as pinturas sobre
a coxa que identificam a mulher com o Alto Xingu. Ao fundo, no alto do desenho, as
montanhas desvendam o horizonte. É interessante, seu estilo de usar o pontilhamento
sobre a superficies para acrescentar textura e movimento. A qualidade principal do
quadro é a maneira que ele escolheu para realçar a beleza feminina criando um
equilíbrio plástico entre a onduiação das formas do corpo em posição vertical e a
ondulação horizontal das montanhas e do horizonte. O conjunto transmite com
simplicidade a carga emotiva e permanência a-temporal do modelo arquetípico do
feminino. É dos mais belos trabalhos de Amati. Embora Amati tenha relacionado este
quadro com o ritual Tawaranã, ele não fez um relato deste ritual. A narrativa de
Niturari foi usada para complementar o quadro de Amati.

204
YAMURIKUMÃ

Yamurikumã é considerado o mito mais importante do poder feminino. Nele as


mulheres se revoltam contra a ausência prolongada dos homens que foram pescar e se
transformam em bichos sobrenaturais da água e do mato. A somatória de situações e
estereótipos míticos sobrepõem categorias da mulher guerreira - amazonas e inverte os
papéis dos gêneros masculino e feminino. Este mito foi narrado por Amati em
diferentes ocasiões e uma das versões se encontra registrada no capitulo dos mitos
(capitulo 3; página 96).

Yamurikumã, também pertence a série de quadros realizados entre 77/78, quando Amati
não usava ainda a tela para as suas pinturas. Plastica~ente, ele apresenta figuras frontais
de mulheres que festejam o ritual. A lua, as casas e as mulheres formam o conjunto
simbólico do ritual que está sendo celebrado. A composição superpõe as figuras ao
fundo e a falta de volume ou de perspect~vas clássicas destacam a relação entre o
primeiro plano das mulheres. Plasticamente isso acontece através das cores, na
intensidade do vermelho dos corpos em contraste com o fundo escuro. As figuras foram
elaboradas em arco, e o simbolismo do feminino é conseguido pela proporção plástica
que representa desde a menina à mulher adulta, as casas e a lua. Esse é também, um dos
/
trabalhos mais gráficos de Amati.

205
A CERAMlSTA WAURÁ

A tratamento técnico da A CERAMISTA WAURÁ (2000) envolve particularidades


estéticas singulares. Nesse quadro óleo sobre tela(37cmx47cm), uma figura feminina
ocupa o centro do quadro, traz na cabeça a cerâmica inacabada, que ela segura com uma
das mãos. Não há no quadro as referências que em geral acompanha a mulher: a casa, as
pinturas, a criança ou o trabalho. A composição integra-se ao conjunto de elementos da
natureza: a lagoa, a mata, o caminho de terra. Se, ant~riormente, a mulher aparece como
arquétipo de beleza, com a leve torção do corpo que esconde a nudez e realça a
harmonia do corpo com pinturas de peixe, a ceramista, em posição frontal, despida de
pinturas e de outros enfeites destaca a rigide~ da imagem, a sutil perspectiva de baixo
para cima, a marcante presença da natureza, a ausência dos bichos, atribuindo-lhe um
caráter de figura antiga, anterior aos tempos. O despojamento é o traço marcante do
clima criado. O tratamento plástico da nudez, a expressão técnica adquirida no óleo,
dilui o desenho, em detrimento das massas de cor. O pote inacabado, proporções,
/
embora harmônicas, subtilmente desproporcionais em relação ao resto dos elementos do

206
quadro, dando-lhe dimensão totêmica. /\ dúvida sobre a intenção ou não do artista
deixá-la inacabada, não compromete o impacto da figura, nem dão motivo a comparar o
inacabado com o desleixo, ou gesto trivial com senl ido de incompletude. Ao contrário, a
forma adquire, no despojamento, uma incrível altivez que reforça traços de um caráter
construído a partir de reminiscências. O inacabado da imagern, u aspereza do tratamento
técnico que não busca perfeições, enriquece a idéia de imagem trazida de um tempo
longínquo. Como em Gaugin, a primazia da imaginação sobre a reulidude foz a imagem
brotar da memória e não da captação do instante de fügacidade de uma imagem
fotográfica ou do modelo vivo convencional da pintura "culta". O que propõe o tema,
em termos de profundidade, é a percepção de um tempo interior que comunica a
memória pela força do imaginário. Tempo interior, integridade moral, inocência
indígena e origem de sensações, são na ceramista as reminiscências de uma matriz
cultural.

AS MOÇAS COM O ULURI

207
O COLAR QUE VIROU ONÇA E AKAIKUNI: PRESENÇAS SIGNIFICATIVAS
E SOBRENATURAIS

Amatiwanã Trumai

Na arte tradicional do Xingu, as figuras sobrenaturais são reconhecidas pelas


características anatômicas significativas. Nas pinturas de Amati, este tipo de tratamento
está praticamente ausente. Humanos e animais guardam proporções realistas e o
reconhecimento da presença do sobrenatural é adquirida no jogo e tensão de cores e
formas. Porém, os quadros, O COLAR QUE VIROU ONÇA e AKAIKUNI, são
exceções. No primeiro, o sobrenatural onça é mais· facilmente identificado pelos que
conhecem o mito.

Existia uma moça que estava "presa" 5 ~. Quando uma mulher fica presa, ela
fica sozinha. Ela tinha um colar de pedra. Um dia ela falou para o pai e a
mãe:

53
A menina menstruada fica reclusa por um período. Os Trumai dizem então que ela está presa.

208
- Tem dias que me dá a impressão que esse colar, essa pedra, faz barulho,
estoura! Rosna! Eu estou achando que essa pedra está querendo se
transformar.
Toda vez que a menina menstruava, a pedra fazia o barulho. A mãe, disse
então, "Tira o colar, guarda."
Toda vez que ela banhava, ela tirava o colar, depois usava. Ela sempre
sentia alguma coisa nessa pedra. E um dia, o colar se transformou mesmo
em uma onça e matou ela. Depois, a onça foi matando toda a família.
Depois, outra casa, outra casa. As outras aldeias ficaram sabendo que a
pedra que se transformou em onça estava acabando com o pessoal. Ai, eles
preparam dois meninos. Todo dia eles treinavam os meninos. Deram várias
ervas para eles ficarem corajosos. Eles ficaram bons de flecha, prepararam
um buraco no centro da aldeia. Um dia, um pouco no caminho da aldeia, a
onça veio. Quando ela estava se aproximando, os meninos já estavam
esperando. A onça chegou perto assim, eles já tinham preparado o buraco,
acendeu um cigarro e fumou. Na hora que ela acendeu o cigarro, ele pegou
fogo. Todo mundo viu e comentou: "a onça vai morrer". Ai, eles deram o
sinal para os meninos flecharem a onça. Eles mataram a onça.

O Quadro Akaikuni, um óleo sobre tela de 90cmx 60cm que Amati terminou de pintar
no final do ano passado, e fez parte da exposição do Museu Nacional de Belas Artes
(RJ, ano 2000) interpreta um mito de criação e um tabu. Nele, a mulher sapo tece wna
rede, enquanto Akaikuni parte levando seu araken, destroçado no ato sexual, para que os
ancestrais restaurarem sua eficácia. A natureza, espécies de pássaros e animais
completam a cena do mito. A composição figurativa conjuga elementos de proporções
semelhantes, mas, ao lado da figura feminina, uma Capivara foi representada em
proporções maiores. A proporção diferenciada da figura do animal solitário de perfil,
manifesta a presença sobrenatural nas proporções plásticas. A identidade da Capivara,
não está referida no mito de AKAIKUNI (Capítulo 3; página 97)mas no :fragmento de
um outro mito narrado por Amati ( Capítulo 3; página 107), onde existindo apenas um
Trumai, ele casa-se com uma capivara, tem com ela uma filha e depois do nascimento
da menina, mata a capivara e segue o seu caminho. A inclusão do sobrenatural no
quadro, nos revela na pintura de Amati procedimentos que sobrepõe elementos de dois
mitos, ao mesmo tempo que, utiliza a linguagem significativa para destacar
plasticamente a entidade sobrenatural. Essa inovação criativa, permite inúmeras
interpretações. Pode-se ver na relação que o quadro cria entre a Capivara e a mulher,

209
AKAIKUNJ

poderes femininos associados por uma assimetria de sentidos que conjuga o poder de
reprodução da Capivara ancestral e os poderes da mulher-sapo que ameaçam a potência
mascu lina. Por outro lado, a atitude do sobrenatural também nos permite assemelha-lo
ao admirador de o utras esferas que contempla atentamente a moça tecendo a rede, nos
levando a identificar a relação amorosa que existe entre os sexos. O conhecimento dos
dois mitos enriquece nossa leitura da pintura e amplia nossa compreensão da

imaginação artística.

210

~ -
As análises apresentadas no capítulo tentaram aferir o processo de elaboração da pintura
em termos de procedimentos de trabalho. Buscou-se discutir a condição do artista diante
de dois mundos e dois objetivos contraditórios.

Foi abordada a construção de uma pintura como re-criação da cosmologia visual do


Alto Xingue, apresentado o resultado dos procedimentos da pesquisa que permitiram
somar as linguagens, oral e visual, arte e mito. Imagem e texto formam em alguns
quadros uma continuidade e unidade e, em outros, enriquecem nosso conhecimento da
cultura de Amatiwanã. O pintor desenvolve seu oficio para transmitir temas e nos
comover com o mundo dos mitos do Alto Xingu.

O ponto de vista plástico, apresentou os resultados maduros e a elaborada percepção


formal de Amati. Procedimentos técnicos que são usados por ele como instrumentos de
captação dos mitos e na composição, jogo de cores e contraste de linguagens, mostram
sua sensibilidade aprofundando a temática e os climas devocionais. Na primeira fase de
seu trabalho, destacam-se o jogo do vermelho e o azul, a composição gráfica, as massas
de cor em oposição ao detalhamento do figurativo. Nas pinturas a óleo, os tons pastéis,
ocre, amarelos e terra, a elaboração complexa de cenas rituais, a depuração de tons
intermediários, projeção do espaço complementando a presença mais acentuada do
movimento. O desenho a nanquim do KWARUP, mostra a interferência de signos
Trumai na composição das pinturas corporais do ritual. No último quadro sobre o
mesmo tema, o preciosismo e a presença do grafismo tradicional é marcante.
Superficies planas e sem textura, horizontalidade de linhas, perspectivas de um olhar
exterior sublinham o tempo de finitude/infinitude; superficies pontilhadas ou recortadas
por verdadeiras cartografias emotivas, formam mapas e texturas míticas que no
cruzamento de linhas que dão ao tratamento gráfico e à superficie do desenho, a
dimensão espacial infinita. Humanos arquetípicos ou ~quétipos humanos. O uso da cor
como recurso aglutinador de formas, ausência do uso simbólico tradicional da cor.
Recursos plásticos e estéticos que modulam climas sensoriais da composição. Coisa
semelhante pode dizer-se das proporções figurativas e do equilíbrio dos termos da
composição. Termos complementares da nova técnica à óleo com a pintura de corpo.
Justaposição de formas tradicionais e inovação figurativa.

2í 1
De maneira semelhante ao que B. G. Ribeiro pontua para os artistas Desâna (1992:36),
a pintura de Amati guarda seu aspecto de "iconografia religiosa" na interpretação
gráfica do "invisível". Nessa medida, a referência aos mitos, para alguém de outra
cultura, torna-se fundamental para a compreensão do universo tratado. Não apenas por
isso. Pois esse esforço de tornar visível o invisível, não é simplesmente uma tradução,
mas uma criação plástica De modo que podemos entender o universo tratado pelo viés
de duas linguagens complementares. Do ponto de vista mais essencial, a cosmologia é
exercício de interação com os valores tradicionais e esse é o seu maior mérito, nos
termos do que se pode entender na arte do artista, uma ação elaborada em concordância
com a sua sociedade.

Quando nos familiarizamos com a mitologia e história de seu povo, podemos então
entender nos elementos puramente plásticos, a reflexão que alia conhecimentos técnicos
diferentes e reflexão do artista dos significados ocultos e centrais dos mitos: a magia
que transforma o inanimado em animado e cores e formas em coisas vivas.
Formalização visual de uma visão de mundo, sua arte suplanta a descrição, ao mesmo
tempo que traz, o DNA da cultura dos mitos. Por outro lado, também em outros
quadros, o tratamento plástico aproxima Amati de outros pintores. No O INDIO NA
PAISAGEM AZUL, a complementaridade do jogo de cores, o verde e o azul do fundo
em tensão com o vermelho da figura, provoca a emoção recuada no tempo, como a
pintura de Paul Gaugin. Com a Ceramista Waurá, também se nota a presença de um
tempo remoto que ressurge. Porém aqui, por um olhar que ausculta o símbolo, como
raiz primordial, com o esforço de captar o tempo primevo de todos os tempos
representado na mulher Waurá. A preocupação com as pinturas corporais, um dos
elementos mais descritivos de seus trabalhos, poderia encontrar ressonância no pintor
peruano, ou em Matisse, por uma qualidade decorat.iva; Mas, se esses maravilhosos
pintores dão aos padrões a exuberância de uma linguagem sensual, em Amatiwanã eles
aproximam citações, pintura dentro da pintura, bricolagem dos tempos, e modo de
expressar o vínculo com o mundo tradicional. Ao invés de acessório puramente plástico,
as pinturas corporais são exercícios da memória antiga, reelaboração de convenções e
incentivo ao uso. A angústia de Gaugin de reencontrar o sensível, também pode

212
aproximá-lo dos sentimentos de perda de Amati. Porém, no nosso pintor, a busca
sensível é também conduta interativa para um diálogo e intercâmbios com a linguagem
tradicional e a arte convencional e, tentativa de contribuir para a permanência dos mitos.
Seus resultados se despem do exótico.

Pode-se dizer, que a incorporação sensível de novas técnicas inova o repertório de


compreensão do mundo dos mitos. Ao contrário de uma ruptura, ela aprofunda um
conhecimento, provoca uma intimidade. Nesse aspecto, o substrato da raiz Trumai
permanece intocada na pintura de Amati. Ela apresenta-se mais próxima da
possibilidade de uma inovação do que da diluição das raízes. Ledo engano dos que
pensam que uma nova técnica pode simplesmente reduzir e apagar um tempo e memória
construída durante séculos. A pintura de Amati é uma fonte significativa de
conhecimento e diálogo entre o antes, o agora e o depois. Imagem e texto organizam
conhecimentos e linguagens expressivas.

2i3
CONCLUSÃO

A abordagem da pintura de Amatiwanã constituiu para mim um desafio. Isso porque, o


estudo das artes índias esbarra em dificuldades de delimitação do campo atual de
inserção dos artistas índios, que empreendem caminhos plásticos e linguagens diversas
dos estilos gráficos convencionais. Essas elaborações estéticas, por vezes ingênuas,
muitas vezes suscitam certa indiferença, com tendências a julgá-las simples exercícios
de memória ou descaracterizações com perda de sentidos culturais. Vista por wn
público de fora, em sua maioria ignorante ou indiferente aos seus símbolos, contesta-se
que foi profundamente atingida pela globalização. Isso não é wn equívoco, ao
contrário, desde à ocupação européia das terras ameríndias, a arte índia vem sendo
usurpada e distanciada de seus povos e artistas. No entanto, podemos dizer que o gosto
tradicional pela arte tradicional, nem sempre se expressa com clareza nos termos do
significado da arte para os índios. O fio que conduziu ao outro lado do oceano a arte
dos artistas indígenas, integrou objetos rituais aos gabinetes de curiosidades e aos
museus especializados, como troféus de vitória, "coisas fora da vida" como expressou-
se Berta B. Ribeiro (1992: 103-112). Coleções de peças configuradas por wn olhar
distante vão gradualmente modificando e atribuindo novos conceitos e objetivos aos
objetos dos povos ameríndios. De exóticos, os objetos passam, no século XIX, a
objetivos de conhecimento. Já sob essa ótica, Karl von den Steinen constitui a coleção
da arte do Alto Xingu para o Museu de Berlim, com peças de valor etnográficos, as
quais se atribui sentidos de testemunhas de culturas remanescentes e em extinção. Com
o propósito de encontrar as raízes primevas do homem, e mecanismos de pensamentos
humanos, o evolucionismo sofre as limitações conceituais e, nessa medida, dá a arte
indígena, um menor grau de importância. Os "objetos etnográficos" são apreciados por
sua beleza e, ao mesmo tempo, catalogados e classificados pela ciência da evolução do
homem. São belos, mas não como os objetos de arte. Seu território é delimitado. O
olhar sobre os objetos indígenas muda com a crise aterradora pela qual passava a arte e
os valores sociais do final do século XIX e início do século passado. Os grandes
responsáveis por uma nova visão da arte dos índios não são nem os museus, nem os
antropólogos, mas os artistas modernos. Aparecem as primeiras aproximações da arte

214
européia com a dos artistas "primitivos'', quase no mesmo instante que as populações
indígenas estão nos termos de uma extinção irremediável. Mudanças radicais, colocam
o artista do Ocidente frente a frente à oposição que passa a existir entre a sua
criatividade e uma sociedade que restringia o poder da imaginação e, ao mesmo tempo,
adquiria conhecimento de técnicas com grande eficácia mimética ( fotografia, cinema).
O artista é arrastado por convulsões sociais e filosofias de transformação
revolucionárias. Essas mudanças desencadeiam a fragmentação entre arte e sociedade;
e, o propósito da arte como conhecimento do mundo atinge linguagens cada vez mais
ousadas e particulares. A arte ganha novos sentidos e perde seus sentidos habituais, faz-
se tabula rasa do passado, busca-se fontes que inovem o repertório gasto da cultura
culta. Mário Pedrosa (Otília Arantes: 2000) crítico e pensador brasileiro, a quem
devemos a formulação de uma arte brasileira como resultado de nosso multi -
culturalismo e sintonizada com as influências indígenas e afro-brasileiras, destaca,
também na prática dos museus, a aproximação que tiveram os artistas modernos com
os artistas primitivos, e o fascínio que exerceu sobre eles a vitalidade formal das
sensibilidades primitivas, suas atitudes de criação e comwricação que desenvolvem
com os demais setores de suas sociedades. São inúmeros os exemplos de artistas e
obras influenciadas pela arte dos primitivos: seja nos temas, nos comportamentos
radicais e negação de modelos de conduta socia~ seja em tomo de uma estética
revolucionária, (Paul Gaugin, Wassily Kandinsky, Paul Klee, Picasso etc). As
manifestações indígenas, africanas, asiáticas ganham a partir de então seu estatuto de
arte. A mudança de ótica é fundamental, porém ela é ainda limitada naquilo que a arte
do Ocidente tangência da alteridade social.

No confronto com a avalanche multiplicadora dos efeitos provocados pelos sistema de


comunicação e, ao mesmo tempo, pela própria condição de sobrevivência dos povos
indígenas, seria impossível pensar a arte como forma inalterada ou sem as influências
nefastas que são difundidas. Se entendemos nessas artes apenas a manifestação da
estética baseada nos princípios subjetivos do gosto artístico, então podemos ficar
fechado s nos museus para apreciá-las. Se entendemos as formas fixas inalteradas e o
grafismo, como único parâmetro de definição dessas expressões, só nos resta opor o
legítimo primitivismo do passado às novas formas de manifestação. Porém, como todo

215
processo de mudança, as perdas radicais nem sempre são o único resultado. Para os
índios, a arte não é apenas aqueles objetos que nos comovem nos museus. Seus
significados são dados amplamente pelos processos socioculturais. O que acabo de
dizer, não é novidade. A antropologia tem buscado em suas pesquisas atingir a
realidade intrínseca dessas artes. Minha intenção foi frisar que embora os modelos
mudem, as estéticas se transformem com perdas e aquisições, o continente social
permanece o critério dos critérios, para se entender o que nos estão dizendo as novas
elaborações das artes dos índios. O momento é muito particular. Depois do prolongado
processo de alienação de direitos e da vida, os povos indígenas retomam o crescimento
demográfico, freqüentam escolas, criam uma escrita, se reestruturam em termos de
diversidades culturais dentro de novas realidades. Parece finalmente a idéia mais
persistente e conservadora que nos legou o evolucionismo, de serem as populações
indígenas "vestígios" humanos do passado no presente, ai afinal sair da cena da
história. Quem sabe pela primeira vez na história das Américas, depois da ocupação do
século XVI, se produza a possibilidade deles novamente criarem destinos próprios? O
momento é delicado e incerto. Já dizia no meu primeiro relatório de pesquisa que reli
casualmente enquanto escrevia essas conclusões, é preciso escutar os índios. Na minha
opinião, os objetos nem sempre falam por si. A aproximação foi fundamental para
minha compreensão de sua arte. No campo das artes a "terra de ninguém" que se instala
na convivência de processos e pensamentos diametralmente opostos, emergem
manifestações de sensibilidades individuais que muitas vezes constituem-se como
verdadeiros documentos históricos. Exercícios de memórias, tentativas de elaboração
de novos valores no quadros da memória tradicional. Nesse domínio a pintura de
Amatiwanã é exemplar. Elemento aglutinador de sua personalidade e elo com a cultura
de origem - rica e viva não só na pintura como no cotidiano - a pintura faz a passagem
entre os conteúdos ancestrais e a memória futura de novas gerações. Ele é o primeiro a
mostrar seu esforço pessoal. Cabe a ele o mérito de tornar visível o seu trabalho com a
intenção de criar formas de conteúdos invisíveis.

Suas observações foram muito importantes para que entendesse a diversidade Trumai.
Não nos termos da imagem construída de povo remanescente, com costumes
decadentes que levava à diluição em outras culturas, e ao processo de extinção tisica,

2 16
mas pela capacidade de transformar a fragilidade em contribuição simbólica para a
cultura do Alto Xingu, notadamente na distribuição do ritual do Jawari. Foi a
inexistência de Amati em me mostrar os Trumai como capazes de criar e influenciar
outros grupos com contribuições simbólicas, que desenvolveu na pesquisa o
distanciamento do modelo de povo limitado por contingências intransponíveis.
Revelação de um universo sensível em íntima relação com anseios de "defender" a
integridade Trumai, me fez entender também o afastamento das convenções gráficas
da pintura de Amati não como a ruptura com o mundo tradicional, mas incorporação de
novas técnicas que ele usa sem para isso demover-se do propósito da construção de
urna Cosmologia visual das tradições do Xingu.

Muito se pode falar sobre a pintura de Amati tal a complexidade dos prismas que se
deslocam com ela, semelhante ao condensado de influências tradicionais e novos
paradigmas: criação de urna memória visual, pintura em linha descendente das artes do
pajé, por seu poder de tomar verosimilhante o Xingu das tintas e telas, linguagem
plástica expressiva de uma imaginação ampliada.

No primeiro aspecto a demonstração foi feita com o cruzamento das imagens com os
textos, que nos asseguram de maneira límpida a fonte de sua imaginação. As imagens
não dependem de textos para nos transmitir os climas emotivos. Porém, os textos são
fundamentais para a compreensão das fontes imaginativas e para a complexidade do
enunciado dos quadros. O segundo aspecto, pode ser notado nos próprios
procedimentos técnicos de convergência e repetição, que se revela na própria obra.

A análise de seus quadros mostraram na cosmologia visual o desenvolvimento de um


pensamento estético apurado, que trabalha as emoções e transmite sentidos
sobrenaturais nos próprios procedimentos plásticos. Embora ele trabalhe com técnicas
da tradição Ocidental, e utilize-as como um artista ocidental desenquadrado da pintura
"culta" poderia fazer, sua pintura se distingue da deles na medida em que o campo de
sua imaginação se delimita pelo imaginário coletivo. Nesse sentido a pintura não se
constitui em simples registro de cotidianos ou de emoções, pois suas fantasias não estão

217
disponíveis para qualquer estímulo. As imagens que são criadas pela pintura de
Amatiwanã contribuem de forma relevante para a continuidade da cultura xinguana.

218
AN IEX CO n

A IEXU»OS~<ÇÃO DE AMAll"O\\WANÃ lr llHJMAO J\10 fWVSKOJ O ~~ HIE:.t.AS


A IRll'IES -RU

( novembro «Ue 2000-janeiro ele .'!00 1,b


UM AlRT~STA 00 AILTO XHNGUJ

Curadoria, Produção e Montagem


Solange Padilha
Ministério da Cultura
Secretaria do Pa1rimõnio, Museus e Artes Ptãsticas
lnstiMo do Patrimõnio His1órico t Anistico Nacional
Museu Nacional de Belas Artes

convidam para abenura da exposição

lü!natfvifal1ã Trumai
Um a rtista do Alto-Xingu

Expos i ção d e p inturas

D e 29 de nove mbro a 2 de jane iro


lna ugu~c;ão 29 de n ovembro às 18hs
~ ' .~ . -
AR T-E I~N D1 G. t -. N. .A'
·· ·. . .

Mostra rara e rica no Rio, apresent~rido


20 - pintl,Jras de ~m · índio ·brasileiro .
Amatiwánã; da tribo Trum·a i ;. : no "Âlto
Xingu, retrata .cenas do cotidiano-· :elas .
tribos ·xinguanas usando" téchi·c~~ ·e ·ma-·
teriais tra.d icionais da í5intura ocidental.
o aútênticci ·trabalho· térri ·-apoio dà~·se­
éretaria do· Pat'rimônfo~ Museus-.e ·Artes
Plásticas do. Brasil. Museu Nacional ·de
.Belas Artes. "Até :dia 25 .-

" Início da fes ta do Quarup"

PI NTU R-A COLAG. EM


;ALBERTO NICOLAU .- Pinturas do ar- CARU MOORE PORTELLA- I ndivid ual da
.tista na individual " Diário da Normandia ". artista na mostra "Colagem: 3 proces-
~1;aleria de Arte Vil la Riso. Até dia 10. sos". Ga leria de Arte UNIRIO. Até di a 15.
~

:tOLETIVA - Mostra de pinturas de Ana


',Maria Boltshauser, Elvira David, Paulo Raad
3~ Zilla Mars. Espaço Cultural da FES P.
[~ernissage dia 5, às 19h. Até dia 20.
~
-~ZEQUIAS- Pinturas do artista na mos~
. _;,___ . . ·' . . . .- '' ; --

/
.;·

f EXPOSICÕES
Cristóvão (568-1314). 3' a dom.. das 10h às 16h.
Agenda cuhural com Leila Richers. RS 3. Crianças até
10 anos e maiores de 65 não paga.
l>Xingu. ane e história. Através de fotos, desenhos e A poética da compaixão - Dez pin-
Objetos a antropóloga Bruna Fancheno faz um retrato
dos povos do Aho Xingu.
turas da anista plástica Betty Pereira
integram a exposição A poética da
MUSEU NACIONAL DE BELASARTES - Av. Rio B ranco. compaixão (foto à esquerda), em
199. Centro (240-0068). 3' a dom:. das 10h às 18h.
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cartaz no Museu da República. Ma-
anos não pagam. . térias-primas corno cascas de árvore.
l>Laboratório!Adriana Barreto. Desenhos modelados folhas e terra - recolhidas pela anis-
com massa.
l>Ponais da criação li. Trabalhos dos internos do H os·
ta - e a prática da meditação relacio-
pital de Custódia Henrique Roxo. nada ao budismo tibetano são as fon -
l>Enleitando o marac.á. M ostra individual do artista tes de criação de Betty. "Trabalhar
plástico alagoano.
l>lmagens da lê!Celita de Azevedo Machado (Tiita).
com a natureza é uma continuação
Acnl ico.sobre tela com inspiração religiosa. das minhas orações meditativas·',
o
l>O Aleijadinho. que i-emos e o que sabemos. Es· · diz. Rua do Catete, 153, Catete (558-
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bro. 48. Centro (533-4207). 31 a dom.. das 12h às
18h30. Grátis. .
turas do índio do Xingu Amatiwaiia,
l>A imagem do som de Gilbeno Gil. Obras de 80 ar- aberta esta semana no Museu Nacio-
tistas inspiradas em canções de Gilbeno Gil. nal de Belas Artes. O trabalho retra-
l>Georg Baselitz. Pinturas e gravuras do anista ale-
mão.
ta um mundo isolado e primitivo.
sempre representado por cores vi-
brantes. MNBA, Sala Ubi Bava.
PINTURA Avenida Rio Branco, 199, Centro. 3ª
..... __ ... ,......... .. .... ~ --
a dom., das lOh às 18h. RS 8 (no do-
. e. :., "'--- ........ <:> ,.."'" " m~;<:
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Estética indígena
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.. Anis~ ddos mais ~anc!i·~dos recantos do País vê~ I'.de-


O produzm o cenas m genas e seu povo. A part!.r o
dia 29, às 18h, o Museu Nacional de Belas Artes
(MNBA) abre mais uma exposição com o mesmo
tema. Mas com uma düerença significante: o artista
é oriundo do Alto-Xingu. O índio Amatiwaoã, um dos principais
líderes da tribo Trumai, é autodidata, e usa a sua arte, segundo
ele, para promover entre os outros brasileiros a ·compreensão da
vida e do modo de-pensar indígenas. Entre as telas da mostra,
. está A Ceramista (foto). Ao invés de se expressar pelo traço con-
vencional; gráfico, dos índios, Amatiwanã adota ·o figurativis-
mo. O MNBA fica na Av. Rio Branco, 199, Cent;ro. A exposição
fica em cartaz até o dia 2 de janeiro.
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