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FLÁVIA Instruções para montar Instrucciones para armar

PÉRET mapas, cidades e quebra-cabeças mapas, ciudades y rompecabezas


FLÁVIA PÉRET

Instruções
para montar
mapas, cidades
e quebra-cabeças

Buenos Aires, Argentina

/ Belo Horizonte,Brasil

2020
Para as Madres e para as Abuelas da Praça
de Maio.

Para Haydeé Fernández (Em memória), Ana


Romay, Elsa Drucaroff, Cecilia Pavon e Aída
Bortinik (Em memória).
Nota da autora

Em 2005, vivi em Buenos Aires. Durante essa curta –


porém intensa – experiência, um dos aspectos da cul-
tura argentina que mais me marcou foi compreender
como os argentinos, de todas as classes sociais, idades
e regiões do país, lidam com a questão da memória
coletiva e das múltiplas histórias acerca da ditadura
militar que o país viveu entre os anos 1976 e 1983. Tal-
vez essa seja nossa principal diferença. Arrancaram
de nós, brasileiras e brasileiros, o direito à memória.
O povo argentino, no entanto, conhece seus traumas
e a importância do não esquecimento. Em Buenos Ai-
res, ouvi pela primeira vez a expressão terrorismo de
Estado. É assim que movimentos sociais, estudantes,
professores universitários, grupos de defesa dos Di-
reitos Humanos, jornalistas, escritores e intelectuais
nomeiam o genocídio organizado pelo regime militar.
Uma catástrofe histórica ainda muito recente, assim
como as catástrofes brasileiras, do passado e as atu-
ais. Na Argentina, milhares de pessoas foram presas,
torturadas e assassinadas, centenas de crianças fo-
ram sequestradas pelo Estado, houve perseguição e
censura a jornalistas, intelectuais e artistas, totalizan-
do um número estarrecedor de 30 mil desaparecidos Este não é um livro sobre o Brasil, embora talvez o
políticos. O trabalho de reescrever a história a partir seja, já que a escrita é uma espécie de jogo de espe-
do testemunho dos sobreviventes, das narrativas dos lhos. O que podemos ver refletido nestes textos para
familiares dos desaparecidos e da literatura é uma ta- além da história argentina? Meu desejo é que possa-
refa incansável e cotidiana. Os textos que compõem o mos aprender com os argentinos algo tão urgente e
livro e que abordam temas variados – e não apenas a essencial: jamais esquecer, sempre se lembrar.
memória da ditadura militar – foram escritos entre
2014 e 2015, alguns anos antes da chegada de Jair Bol- Por último, gostaria de agradecer à minha amiga
sonaro ao poder. A partir de 2019, instalou-se no Bra- querida Silvia Renzetti, com quem morei em uma
sil um projeto ultraliberal de desorganização social, residência estudantil, na rua Bolívar, bairro de San
econômica e política. A ideologia fascista desse grupo Telmo/Buenos Aires, em 2005. Silvia realizou uma
ataca sistematicamente e de forma abominável nossa pesquisa sobre as crianças desaparecidas durante
memória coletiva. Ao negar fatos históricos e pregar o a ditadura. Tive o privilégio de acompanhar de perto
retorno da ditadura militar e do AI-5, o governo Bol- seu trabalho. Essa convivência afetou minha vida, meu
sonaro agride a democracia, os diretos humanos, a pensamento e, consequentemente, minha escrita.
Constituição e a história do país. A tarefa de lembrar,
testemunhar, narrar, escrever e reescrever as histó- Flávia Péret
rias é ainda mais urgente. O relatório da Comissão
Nacional da Verdade traz uma citação de Universindo
Rodríguez Díaz, historiador uruguaio e sobrevivente
da ditadura militar em seu país: “Somos também so-
breviventes da repressão. Perdura em nós a memória
e estamos eticamente obrigados a defendê-la, a nos
reencontrar com ela, ainda que seja doloroso. Tive a
possibilidade de sobreviver. Levo comigo a obrigação
de não esquecer.”
Ida19

Instruções para carregar malas pesadas  20

Golpe de sorte 21

Ambiente climatizado   23

Cartão-postal25

Big Bang From My Heart  26

Casa tomada  29

A espuma dos dias 30

História oficial 1   37

Acidente geográfico  38

Instruções para montar mapas,


cidades e quebra-cabeças 39

Sobre as pessoas que provocam medo 40

Formas de extravio  41

Cidade partida 46

Sob neblina, não ultrapasse  47

As marxistas também usam minissaia 48


Jesus te ama  50

Um corpo 51

História da sexualidade  53

City tour  56

Fantasmas  57

Rituais59

Respiração artificial 60

Mama, yo quiero un novio  61

É isso um homem? 62

Arquiteturas coletivas  63

A la mierda 65

Anotações66

Aguante los pibes 67

História oficial 2 69

Errata72

Os ofícios terrestres   73

Língua menor 74
Las Malvinas son argentinas  75

Cenas de um casamento argentino  77

Santíssima Trindade  78

Cumbiera intelectual 79

Contra o silêncio   81

Made in Brazil  82

Conexão aeroporto 83

Sueño de Amar 84

Imanência85

Lição de resistência 86

Hecho en Buenos Aires 87

Belleza y Felicidad 88

Ponto cego 89

Anticartão-postal  90

Volta91

Pós-escrito ou a última pergunta 92

Posfácio por Paloma Vidal97


Tudo que pode ser imaginado pode ser sonhado,
mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um
quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então
o seu oposto, um medo, ainda que o fio condutor
de seu discurso seja secreto, que suas regras
sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas
e que todas as coisas escondam uma outra coisa
(...). De uma cidade não aproveitamos as suas
sete ou setenta maravilhas, mas as respostas que
nos dá a nossas perguntas.

As cidades invisíveis, Italo Calvino


Ida

No livro Uma breve história do tempo, Stephen Hawking


explica que, quando um corpo se movimenta, a força
que atua sobre ele provoca um deslocamento que afe-
ta a curva de espaço-tempo do universo. O contrário
também acontece, a curva de espaço-tempo influencia
a forma e a intensidade como os corpos se movimen-
tam. O ônibus saiu do Brasil há dois dias. Desloca-se a
80 quilômetros por hora em direção ao futuro. Dentro
dele, 42 pessoas afetam-se por coisas tão minúsculas,
nosso mínimo múltiplo comum. Toda viagem é uma
fuga? A mulher da cadeira 27 comprou apenas a pas-
sagem de ida e uma mala grande com fundo falso.

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Instruções para carregar Golpe de sorte
malas pesadas 

Era verão. Fazia um calor insuportável. Os telejornais


Em situações de sobrepeso, o equilíbrio da mala tor- anunciavam que a onda de aquecimento permaneceria
na-se complicado. Nesse caso, a estratégia está em até o fim da semana, um fenômeno climático bastan-
desfazer-se do excesso, assim como das frases. te comum em Buenos Aires, conhecido como “golpe de
calor”. Eu estava confusa, já que não sabia muito bem
porque tinha decidido viver em outro país, abandonar
emprego, casa, amigos, família. Passei os primeiros
dias de janeiro tentando compreender o sentido das
minhas decisões, procurando uma explicação lógica
nos acontecimentos aparentes, mas também uma ex-
plicação oculta nos acontecimentos incompreensíveis.

Um dia, depois de sair da linha vermelha do metrô,


decidi fazer o restante do percurso a pé. Andei quase
30 quarteirões. Exausta, entrei numa pequena livra-
ria que encontrei no caminho. Peguei um livro de
poesia, uma coletânea de poetas latino-america-
nos, e abri aleatoriamente numa página onde havia
um poema tão bonito que tudo instantaneamente
começou a fazer sentido: a caminhada no calor de
40 graus, a viagem de ônibus de Belo Horizonte a
Buenos Aires, a solidão, o calor, o galope incessante
dentro da minha caixa torácica. Eu tinha atravessa-

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do tantas coisas apenas para descobrir aquele poema Ambiente climatizado  
e me lembrar dele toda vez que a vida se abrisse sob
meus pés como se embaixo deles algo muito violento
começasse a se movimentar. Fui buscar o nome do po- O turista profissional desembarca em Ezeiza e pega
eta no canto página para anotá-lo em meu caderno e um táxi até o hotel. A corrida custa 400 pesos. Ele
não esquecer jamais. O nome dele era Carlos, já havia desconhece a informação – estrategicamente negada
morrido, tinha nascido em uma cidadizinha do inte- ao turista profissional – de que ao lado do Aeroporto
rior de Minas chamada Itabira. Internacional existe uma estação de trem, com em-
barques regulares para Buenos Aires. O turista pro-
fissional toma café da manhã no hotel. No primeiro
dia, estranha a ausência de frutas tropicais como
mamão, manga e goiaba, mas depois se refestela
comendo  medialunas de manteiga e doce de leite. O
turista profissional tem algum dinheiro, mas pou-
co tempo. Ele compra artigos de couro na calle Flo-
rida, come a legítima parillada porteña em algum
restaurante em Puerto Madero, toma um expresso
no Café Tortoni e compra alfajores Havanna para le-
var para os parentes. O turista profissional observa a
sujeira da cidade. Outra informação que é negada
ao turista profissional é que Buenos Aires é uma ci-
dade suja, poluída, barulhenta e caótica. No entanto,
como turista profissional que é, sabe direcionar seu
smartphone para os cartões-postais oficiais. É impor-
tante ressaltar que o turista profissional organiza de
forma bastante profissional sua viagem. De dia, o tu-

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rista profissional caminha bastante: Obelisco, Casa Cartão-postal
Rosada, Bosques de Palermo, Caminito, Delta do Rio
Tigre, Cemitério da Recoleta, Teatro Colón, La Bom-
bonera, Praça Dorrego, Museu de Belas Artes, Feira Vista de longe, Buenos Aires é só paisagem. 
de Artesanato de San Telmo. Na sua última noite na
cidade, o turista profissional bebe várias garrafas de
vinho e assiste a um show de tango em que a dan-
çarina se equilibra em cima de um salto altíssimo. O
turista profissional acorda na manhã seguinte com
ressaca, mas feliz. Volta para o Brasil com a mala
cheia de compras e continua sem saber onde fica 
Lomas de Zamora. 

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Big Bang From My Heart Buenos Aires. Quando nos aproximávamos da Plaza
San Martín, disputamos corrida para ver quem conse-
guiria sentar-se primeiro no balanço e se lançar lá de
Juan Miguel foi o primeiro amigo que fiz, assim que cima sem medo de cair. Assim seguíamos nossos dias,
cheguei a Buenos Aires. Colombiano, de Medellín, ele conversando sobre tudo, atrás do vento e da fumaça,
estava morando na cidade há alguns meses. O projeto do medo e do amor, atrás daquela cidade que não era
era estudar cinema, mas ele preferia passar as tardes nossa. Um dia ele chegou em casa assustado, tinha nas
fumando maconha no terraço da nossa casa. Também mãos uma carta do departamento de imigração na-
gostava de mastigar a semente de uma flor azul cha- cional que informava que ele tinha uma semana para
mada morningglory que ele encontrava facilmente deixar o país ou seria expulso. Precisava voltar para a
nas floriculturas locais e que, segundo ele, era leve- Colômbia e regularizar a situação do visto. Às pressas,
mente alucinógena. “Como é que eu vim parar aqui” arrumou as malas e partiu, deixou um post-it verde
era a pergunta que eu mais me fazia, e a única pessoa colado no armário do meu quarto onde estava escri-
que escutava minhas confusões era Juan Miguel, meu to apenas: hasta siempre! Às vezes me escrevia. Certa
amigo de 20 anos.Ele fumava muito e me ensinou coi- vez, disse que estava trabalhando como guarda-flo-
sas importantes, como as gírias, sem as quais eu nun- restal em Medellín. Depois, disse que estava morando
ca conseguiria pedir cigarros. Também me ensinou na praia e trabalhava num bar fazendo drinks. Uma
um método controverso para tirar o sabor amargo do vez contou que estava apaixonado e que tinha escri-
mate, bastava misturá-lo com refrigerante de limão. to um poema para a garota: my love is with you, my
Quando o conheci, ele tinha os cabelos na altura dos heart is empty of pain and full of good remembers with
ombros, muito pretos, um pouco anelados, mas um you all mornings (especially) and in the day walking
dia chegou em casa com o cabelo totalmente raspa- for this incredible space, our images, like flashback &
do. Não deu explicações, subiu no terraço e ameaçou the people ask, the people ask, the people ask... e termi-
pular lá de cima. Numa noite, fomos assistir a um fil- nava com a frase big bang from my heart. Eu adorava
me do Pasolini – cineasta preferido de Juan Miguel aquele coração destrambelhado, falando coisas que
– e voltamos caminhando pelas ruas silenciosas de eu não entendia, o sentido escapava, mas o ritmo e a

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intenção jamais, numa alucinação contínua que era Casa tomada 
causada por qualquer coisa pequena ou grande que
ele experimentava. Eu adorava o fato de ser amiga de
Juan Miguel e de me relacionar com ele de um modo Eles achavam que a casa estava desorganizada. Movi-
profundo e direto. Depois o tempo foi passando. Ele dos por uma incumbência divina, decidem, contra os
parou de escrever. Ele não voltou mais para Buenos legítimos proprietários do lugar, reorganizar a casa.
Aires. Eu parei de escrever. Eu voltei para o Brasil. Ao chegar, encontram a porta da frente trancada. Uti-
lizam um pé de cabra e arrombam a porta. Depois, co-
locam um tapume na fachada e prometem reparar os
prejuízos. Eles mentem o tempo todo. Eles começam
o processo de reorganização: modificam a ordem das
coisas, deslocam móveis, portas e janelas, derrubam
paredes, somem com os vidros trincados, reformam
cômodos, distribuem bananas para os animais, in-
ventam o desaparecimento. Mas eles se esquecem das
pessoas. As mulheres não são dóceis. Os homens não
são dóceis. As pessoas são um entulho que eles em-
purram para debaixo do tapete. O entulho é volumoso.
Eles resolvem, então, descartar parte desse entulho
no rio – as águas não têm memória, pensam. No rio,
os corpos não afundam. De manhã, cedinho, é possível
observar grandes quantidades de material orgânico em
decomposição flutuando nas margens do Rio da Prata. 

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A espuma dos dias na cabeça, um pano branco amarrado. Vestido dessa
forma, as tatuagens que tem por todo o braço e tam-
bém nas mãos, chamam, ainda mais, minha atenção.
Quando entro na cozinha do restaurante, Matías já está Em uma delas, num coração que já foi vermelho, mas
posicionado em seu local de trabalho: a pia. Matías agora está desbotado, está escrito com letra cursiva
é bachero. Bacha em castellano falado na Argentina o nome de uma mulher: Marta. Além do coração, ele
significa pia. Em Buenos Aires, quem trabalha lavando tem outros desenhos espalhados pela pele: o escudo
pratos é chamado de bachero. Eu sou garçonete, anoto do clube de futebol Boca Juniors, a imagem de um
os pedidos, sirvo as mesas, recolho os pratos depois puma, a imagem do cantor de música romântica
de usados, abro dezenas de garrafas de vinho, nego- Sandro, uma cruz de malta estilizada e alguns símbo-
cio com os cozinheiros pequenas ou grandes altera- los que não reconheço.
ções nos pedidos e, depois, renegocio com os clientes
a substituição de alguns ingredientes. Também escuto Depois de guardar minha bolsa no escaninho do ba-
muitas reclamações e repasso os escassos elogios à nheiro feminino e voltar para a cozinha, Matías abre
equipe que prepara os pratos. Sorrio, e falo sempre, a porta de uma das geladeiras e me estende um prato
porque eu gosto do som dessa frase: bom provecho! com três pedaços de tortillas frias. As tortillas de cho-
rizo são as minhas favoritas e Matías sempre guarda
Matías é um homem robusto. Deve medir no máxi- um pouco para mim.
mo 1,65 m de altura. A baixa estatura faz com que ele
pareça ainda mais forte, os ombros largos e os ante- Trabalho nesse restaurante há apenas dois meses,
braços grossos. Os olhos são azuis e o cabelo, que está mas tenho a sensação de que estou lá há muito mais
começando a ficar grisalho, é liso e escorrido, pentea- tempo. Quando estou servindo os clientes, penso que
do para trás com bastante gel. Tem 52 anos e também nunca mais na vida vou ter outro trabalho, nunca mais
usa uniforme, mas seu uniforme é branco, da cabeça vou me sentar na frente de um computador, abrir um
aos pés: calça de brim branca, botas brancas, camise- arquivo no Word e salvá-lo em meus documentos.
ta de malha branca, um avental de plástico branco e, Nunca mais vou participar de uma reunião e nunca

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mais vou me angustiar porque tenho medo de não viu dobrando guardanapos em pé, Matias disse, de
conseguir escrever um texto. Mas, tirando o cansaço forma bastante seca: “Sentate! ”, “Não, obrigada, estou
físico do fim da noite, gosto de trabalhar como gar- bem assim”. “Sentate, te digo! ”. Um pouco constrangi-
çonete: não pensar, só fazer as coisas, uma depois da da, obedeci. Só no meio da noite fui entender o conse-
outra e tudo de novo mais uma vez na noite seguinte lho. Depois de trabalhar 10 horas em pé, andando de
repetidamente.Trabalho apenas de quinta a sábado, um lado para o outro, servindo mesas e carregando
que são os dias mais movimentados. Por 10 horas de bandejas pesadas, correndo sem sequer conseguir
trabalho, que, em alguns sábados, chegam a 12 horas parar para fazer xixi, descansar as solas do pé por
ininterruptas em pé, andando de um lado para o ou- trinta minutos é uma atitude inteligente.
tro, recebo diariamente 15 pesos, mais as gorjetas. É
um subemprego, obviamente. Mas gasto relativamen- Matías fala pouco, mas eu levo minha pilha de guar-
te pouco. Com o dinheiro que recebo como garçonete, danapos para a bancada que fica ao lado da pia onde
compro comida no supermercado, pago minhas pas- ele lava os pratos e faço muitas perguntas, que é meu
sagens de ônibus e de metrô e pago ainda o cinema, modo de conhecer essa cidade e as pessoas que vivem
os cigarros, os alfajores, as garrafas de Vasco Viejo e nela. Ele me diz que não gosta de trabalhar na capital,
os xerox da faculdade. O aluguel do quarto pago com gasta quase uma hora e meia do bairro onde mora,
o dinheiro que trouxe do Brasil e está guardado em em Lomas de Zamora, na grande Buenos Aires, até a
uma conta bancária. Também com o dinheiro que está estação do Retiro, que é a principal estação de ônibus
guardado no banco pago despesas maiores, como as e de trens metropolitanos da Capital Federal. Depois,
aulas de dança e as consultas com Raúl. do Retiro a San Telmo, onde está localizado o restau-
rante em que trabalhamos, vai caminhando a pé para
Eu chego ao restaurante às 17h30, mas os clientes só economizar dinheiro. Há 23 anos veio com um primo,
começam a chegar por volta das 20 horas. Duran- também da província de Corrientes, procurar trabalho
te esse período, realizo outras atividades, como, por em Buenos Aires. O primo se casou com uma moça de
exemplo, arrumar as mesas, dobrar guardanapos ou Bahía Blanca e se mudou para lá, nunca voltou. Eu per-
lustrar as taças de vinho. No primeiro dia, quando me gunto: “Quem é Marta?. Ele me responde: ninguém.

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Durante quase 18 anos, Matías trabalhou como operá- silhames sujos de gordura de costela de porco, bata-
rio em uma fábrica de meias, localizada em Quilmes tas fritas e molho chimichurri, suas mãos tatuadas
(grande Buenos Aires). Em 2001, com a crise econômi- passam horas imersas em uma espuma espessa, às
ca, ele e todos os companheiros de trabalho foram de- vezes branca, às vezes marrom. Quando, no fim da
mitidos e a fábrica foi fechada. Desde então, sobrevive noite, olho para as mãos de Matías, elas se parecem
fazendo bicos. Já foi entregador de pizzas, ajudante com as mãos do homem que trabalhava no açougue
de pedreiro, trabalhou como vendedor ambulante na onde minha mãe comprava carne quando eu era
estação de Lomas e, atualmente, como bachero. Às criança. Dentro das unhas, o excesso de água e sa-
vezes, durante nossas conversas, o gerente da noite, bão cria uma pequena superfície inchada que pode
um homem mal-educado chamado Gustavo, entra se romper a qualquer momento, e aquela imagem
abruptamente na cozinha. De imediato, Matías para me causa aflição.
de conversar comigo e olha para baixo fixamente, fin-
gindo não ter percebido a entrada de Gustavo. Quando O trabalho acaba por volta das três da madrugada,
o gerente sai da cozinha, Matias sempre me diz mo- quando, enfim, deixo o salão e me sento num banco
vendo os lábios sem que saia nenhum som: “pelotudo na cozinha, para descansar um pouco. A essa altura,
de mierda!”. meus pés estão tão doloridos que eu prometo para
mim mesma que vou mudar de trabalho, que vou
Quando são 19 horas, ele me fala: “Andate a cenar!” E avisar para o gerente que no dia seguinte não volto
mais uma vez obedeço aos seus imperativos, que é a mais. Procuro Matías com os olhos, mas ele já está
forma tradicional como os argentinos falam uns com no banheiro se trocando para ir embora. Todas as
os outros. Termino de comer, escovo meus dentes, noites, antes de voltar para casa, ele toma banho e
coloco meu uniforme, que, ao contrário do uniforme passa perfume. Limpo, com o cabelo penteado para
de Matías, é completamente preto, e vou para o salão. trás, tênis, calça jeans larga e uma jaqueta de frio
A partir desse momento, não converso mais com ele, verde-musgo, fechada até o pescoço, não reconheço
mal o vejo. Matías passa a noite lavando e enxugando o homem bravo, tatuado e que fala comigo como se eu
pratos, copos, talheres e toda uma variedade de va- fosse uma criança, alguém que precisa de orientações

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o tempo todo, para sobreviver no ambiente hostil que História oficial 1  
é a cozinha de um restaurante, um lugar sobretudo
masculino. Ele carrega uma mochila jeans muito ve-
lha que segura em um dos ombros, como se fosse uma A década de 1920 na Argentina foi um período de
bolsa. Assim, disfarçado, Matías é apenas um homem prosperidade econômica. Naquele ano, o produto
de meia-idade, um trabalhador, morador da periferia interno bruto do país superou o de nações desen-
de Buenos Aires. Um homem como tantos homens com volvidas, como Canadá, Itália e Austrália. Em 1924,
quem cruzo diariamente nas ruas da cidade, mas com a prefeitura de Buenos Aires doou ao Ministério da
quem nunca troco olhares porque esses homens não Marinha uma área de 17 hectares situada na região
me interessam. Um homem comum que já fez tantas norte da cidade. O arquiteto Raúl Álvarez e sua equi-
coisas na vida e que não precisa ficar pensando nelas pe iniciaram a construção do complexo de edifícios
ou lembrando-se delas o tempo todo para saber que que iria abrigar a Escola de Mecânica da Armada
tem uma existência. Meus pés ainda estão doloridos, (ESMA), inaugurada oficialmente no dia 12 de outubro
agora dormentes, formigam dentro do tênis e eu so- de 1928. O pavilhão central é uma edificação de es-
nho com a hora em que chegarei em casa e poderei tilo neoclássico, com quatro imponentes colunas de
tirar os sapatos. Ao contrário de Matías, moro a 10 mármore branco. Além do prédio principal, a escola
minutos de distância do restaurante e volto cami- abrigava alojamentos para oficiais e suboficiais, re-
nhando sozinha pelas ruas desertas do bairro. Matías feitórios, padaria, pavilhão de armas e aviação, en-
se despede de mim com uma levantada de sobrance- fermaria, escritórios, cozinha, oficinas, um polígono
lha. Antes de sair pela porta da cozinha, num ritual de tiro, piscinas, lavanderia, depósitos, uma gráfica,
humilhante e que se repete diariamente, ele abre a laboratório fotográfico, casa de máquinas, salas de
mochila para o gerente conferir se não roubou nada tortura, celas de parto e até uma pequena capela com
daquele restaurante de merda onde Matías trabalha uma bacia de água benta.
há um ano e quatro meses, todos os dias, exceto às se-
gundas-feiras, 15 horas, em pé.

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Acidente geográfico  Instruções para montar
mapas, cidades
e quebra-cabeças
Paloma nasceu em Buenos Aires, em 1975, um ano
antes do golpe militar. Dois anos depois, seus pais
se mudaram para o Brasil. Primeiro, moraram num O escritor argentino Jorge Luis Borges imaginou
apartamento da rua Domingos Ferreira, em Copaca- um mapa que era do tamanho da própria cidade. Nes-
bana. Quando chovia, Paloma sentia medo. Durante ta cidade-mapa viviam mendigos, reis, leopardos, al-
toda a sua infância teve pesadelos com água: um barco faiates, aranhas e begônias. Infelizmente, pensamentos
atravessa o oceano lentamente, a viagem não termina improváveis como o de Borges são raros nos dias de
nunca. Como todas as crianças da sua idade, Paloma hoje, quando as crianças argentinas são criadas assis-
aprendeu a nadar. A menina também sonhava que o tindo à Floricienta no canal 13. Para o viajante ocasio-
mar invadia seu quarto e todos os seus brinquedos nal, a cidade é um quebra-cabeça: centenas de peças
morriam afogados. Os pais tentavam interpretar o que às vezes se encaixam, outras não.
imaginário onírico da filha. Um psicanalista, amigo
do casal, foi categórico: uma criança de cinco anos
não tem condições simbólicas para compreender a
dimensão do exílio. Alguém tem?

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Sobre as pessoas Formas de extravio 
que provocam medo

Observo uma senhora chorando na esquina das ruas


Quando não estão provocando medo, as pessoas que Bolívar com México. San Telmo é um bairro de velhos. 
provocam medo escovam os dentes, cortam as unhas Antes que pudesse me esquivar, a mulher avança em
do pé, retiram os pelos que nascem no nariz e dentro minha direção. Tem os olhos azuis, um azul muito
das orelhas, jantam com seus filhos, almoçam na casa claro, quase transparente – água-marinha –, os ca-
dos pais, brigam por causa de futebol, compram belos são brancos e ralos e a pele do rosto é tão fina
xampus contra caspa, queda de cabelo e seborreia, que parece ter sido feita com pó de arroz. Ela também
telefonam para as esposas e dizem que vão se atra- está perdida. Não se lembra do próprio nome, nem
sar, comem medialunas no café da manhã, fazem seu endereço, nem o que faz sozinha na rua ali parada.
sexo, compram sexo, marcam consulta com o dentista Apenas chora, muito. A velha carrega uma bolsinha de
e depois faltam à consulta com o dentista, esquecem mão, peço autorização para abri-la na expectativa de
datas de aniversário, derramam café na roupa, com- que possa descobrir alguma informação sobre ela, um
pram remédio para o fígado, assistem à TV, colocam a número de telefone, um documento de identificação,
correspondência em dia, pagam contas, alimentam os mas só encontro quatro notas de dois pesos. 
bichos de estimação, enchem a garrafa de água, usam
meias sujas, compram o jornal, trancam as portas de Ficamos ali paradas, enquanto uma pequena aglome-
casa antes de dormir, vão à igreja, acreditam que sua ração de bisbilhoteiros começa a se formar em torno
conduta pública é um exemplo público de conduta, de nós duas. Um curioso diz: “neste caso, convém le-
dormem, mas, antes de encostar a cabeça no traves- vá-la à delegacia de polícia mais próxima”. “A polícia
seiro, as pessoas que provocam medo sempre lavam tomará conta dela até a família aparecer”, alguém diz.
as mãos.  Rejeito essa proposta. De onde venho, a polícia não
toma conta das pessoas, penso. A senhora continua
a chorar, o tempo passa e ela em nenhum momento

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solta minhas mãos. Alguém insiste que a delegacia fica sendo interrogada por aquele homem vestido com
a poucas quadras dali, na rua Peru. Decido levá-la até uniforme de polícia. Nunca tinha conversado com
lá. Vamos caminhando de mãos dadas. um delegado antes. A certa altura, ele me sugere que
vá embora, diz coisas como: “tarde demais, perigo-
Chegando lá, explico detalhadamente a história ao so, você está sozinha. Assim que a família aparecer
delegado de plantão que escuta e diz, me tranqui- eu te aviso, me dê um número de contato”. Concordo,
lizando um pouco, “já devem estar procurando por estou cansada e faminta. A senhora já havia se alo-
ela, não se preocupe”. Enquanto espero, o policial me jado numa pequena sala com outros policiais, juntos
faz muitas perguntas. Sim, sou brasileira, estudo li- tomavam mate e assistiam a um programa na tele-
teratura, moro em uma residência estudantil na rua visão, ela não chorava mais e, quando me aproximo
Bolívar, trabalho como garçonete três noites por se- para me despedir, ela olha para mim como se nunca
mana, gosto da cidade, acho os argentinos passionais tivesse me visto antes. Os olhos dela agora estavam
e aguerridos, admiro o fato de que muitos argentinos secos: azul-escuro.
dedicam suas vidas a desconstruir a história oficial do
país para que uma outra história, violenta, assusta- Poucas horas depois, o delegado telefona para minha
dora, cruel, mas, no entanto, real, possa emergir. Nós casa. Diz que o filho da senhora acabou de buscá-la.
brasileiros fazemos exatamente o contrário, explico. “Ela tem alzheimer, se chama Vania, já se perdeu ou-
Gosto de chinchulines fritos e de berinjela napolita- tras vezes. Ele pediu para te agradecer.” Naquela noite
na, não gosto de mate, é muito amargo. Vou ao cinema na hora do jantar, tomo três taças de Vasco Viejo, um
quase todos os dias, tenho uma carteirinha que me dá vinho barato que compro no mercadinho perto da mi-
descontos, pago apenas 40 centavos de peso, gosto da nha casa, e durmo profundamente.
comida que meus amigos peruanos fazem, domingos
e feriados sinto um pouco de saudade do Brasil, sau- Dois dias depois, recebo uma nova ligação do delega-
dade é uma palavra portuguesa, sim, o fado é mui- do. Eu deveria comparecer à delegacia para assinar
to triste mesmo, o tango não, o tango é trágico e sigo o boletim de ocorrência. “Amanhã à tarde”, de pre-
falando de mim sem perceber que, sutilmente, estou ferência. Concordo, mas desligo o telefone levemente

42 43
preocupada, inicia-se ali um mal-estar que me acom- pergunta se eu gostaria de sair para jantar. Respondo
panhará até o final da tarde do dia seguinte. E se aque- que não. Agradeço o convite. Depois desse telefonema,
la conversa tivesse sido um interrogatório disfarçado? o delegado desaparece. 
E se a curiosidade do delegado sobre a jovem estu-
dante brasileira fosse, na verdade, um pretexto para
investigar pessoas que vivem ilegalmente no país, um
número bastante significativo, principalmente de la-
tino-americanos. Oficialmente, não tenho autorização
nem para estudar, nem para trabalhar. Possuo apenas
um visto de turista que renovo a cada três meses em
visitas regulares ao Uruguai. Naquela noite, não dur-
mo bem. Sonho que estou num lugar pouco iluminado,
com o teto rebaixado, minhas mãos estão amarradas
a uma cama de ferro. Grito, vou parir, mas, depois que
meu filho nasce, não consigo ver o rosto dele.

Na tarde do dia seguinte, chego à delegacia na hora


marcada. O policial está me esperando. Ele está ner-
voso, age com estudada formalidade, sem a esponta-
neidade do primeiro encontro. Observo que as mãos
dele tremem um pouco. Leio o boletim de ocorrência,
assino o papel e vou embora. 

Dias depois, recebo uma nova ligação. Acho ainda


mais estranho quando o delegado se identifica. Será
que faltava assinar mais algum papel? Ele é direto, me

44 45
Cidade partida Sob neblina,
não ultrapasse 

Ao colocar uma placa de vidro sobre o mapa da ci-


dade de Buenos Aires e golpeá-la com um martelo, é O limite entre o rio e o céu é largo. Do barco, é possível
possível descobrir itinerários insólitos. O cotidiano ver a cidade em modo cartão-postal, distante da sua
é uma gaiola, é preciso olhar demoradamente para intimidade barulhenta. Há 10 anos, um homem atra-
cada lugar, pessoa ou coisa a fim de que ela perca sua vessa o rio. Não tem o visto de trabalho, assim como
natureza familiar e encontrar nas fissuras do banal milhares de sul-americanos que vivem e trabalham
o bilhete do homem que iria se jogar da ponte, mas ilegalmente no país. A cada três meses é preciso viajar
desiste um minuto antes do salto. até Colônia do Sacramento, no Uruguai, para renovar
o visto de turista. Ele leva na mochila uma garra-
fa térmica com chicha morada e dois sanduíches de
queijo. Ao chegar na aduana, os guardas uruguaios
perguntam se o passageiro transporta alimentos. O
homem conhece as regras: é proibido atravessar a
fronteira levando comida. A viagem dura em média
3 horas. O tempo de uma decisão: voltar para Lima.
Não mentir nunca mais. Quando, à noitinha, o barco
atraca no porto de Buenos Aires e as pessoas come-
çam a desembarcar, o homem acorda. 

46 47
As marxistas também e Rodolfo Walsh. Ao meu lado, uma aluna estrangeira
usam minissaia tira uma pequena tupperware de plástico da mochila
e de dentro da vasilha dois ovos cozidos enrolados em
Uma mulher magra e alta, de cabelos compridos, papel-alumínio. Enquanto escuta a professora falar
usando meias finas pretas, sapato de salto e minissaia coisas que, assim como eu, a jovem entende parcial-
de veludo distribui entre os alunos o programa do cur- mente, ela come os dois ovos cozidos.
so que dará todas as quartas-feiras de manhã, até o fi-
nal do semestre, na sala 204 da Faculdade de Filosofia Simultaneamente, o mate circula pela sala até chegar
e Letras da Universidade de Buenos Aires. nas minhas mãos. Constrangida, bebo o líquido quente
e amargo queimando a ponta do meu lábio superior,
Antes de se apresentar, a professora comunica que a dias depois aquele pequeno machucado se transfor-
leitura dos capítulos 1 e 2 do primeiro volume de O Ca- maria em uma afta.
pital são parte obrigatória da bibliografia do curso e,
caso algum aluno matriculado na disciplina ainda não Eu nunca tinha lido Karl Marx, detestava mate sem
tivesse lido Marx, deveria providenciar a leitura para açúcar e o cheiro do ovo cozido me provocou enjoos.
a próxima aula. Durante aquelas quatro horas, eu não disse nenhuma
palavra. Quando a aula acabou e fui caminhando sozi-
Depois, a professora se dirige até sua mesa e retira de nha até o ponto de ônibus, eu estava confusa, mas pela
dentro da uma bolsa de couro uma garrafa térmica de primeira vez isso não era ruim. Desde que decidira
metal. Prepara o mate, suga o líquido quente e amar- viver em Buenos Aires, intuía que uma modificação
go, enche novamente a cuia com a água da garrafa tér- profunda estava em trânsito, mas ela ainda não se
mica e a entrega para o estudante que está sentado na revelara com nitidez. Eu desistiria definitivamente
cadeira mais próxima a ela. do jornalismo? Estudaria literatura? Escreveria li-
vros. Seria professora? Mas, antes, precisava ler os
A professora começa então a falar de modo comovente primeiros capítulos de O Capital em espanhol.
sobre Mikhail Bakhtin e Robert Arlt, Pierre Bourdieu

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Jesus te ama Um corpo

Os paraguaios começaram a chegar ao país em 1947. Alguns anos depois, Joannes, um amigo alemão que fiz
Atualmente, 600 mil vivem em Buenos Aires e região quando vivia em Buenos Aires, me escreveu. Ele estu-
metropolitana. Em Villa 31, maior favela da capital dava ciências políticas e nos conhecemos nas classes
portenha, mais de 40% dos moradores são de origem de espanhol avançado. Joannes dizia que o Movimento
paraguaia. Filhos de paraguaios nascidos na Argen- dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) era a ex-
tina são considerados paraguaios. Netos de italianos periência comunitária mais importante e bonita da
nascidos na Argentina são considerados argentinos América Latina. Eu tentava explicar que, no Brasil, a
legítimos com dupla nacionalidade: argentinos e eu- maioria da população havia sido levianamente mani-
ropeus. O mercado de trabalho informal “protege” pulada e que o movimento era visto como oportunista,
esse contingente de pessoas da expatriação. Traba- arruaceiro e violento. Meu amigo alemão também não
lham, majoritariamente, como pedreiros, caixas de entendia porque a polícia brasileira era tão violenta
supermercado, empregadas domésticas. Pessoas que e me fazia muitas perguntas sobre os livros de Jorge
sobrevivem entre o subemprego e o desemprego; en- Amado, como se pudesse encontrar naqueles textos,
tre catar moedas ou passar fome; entre dividir um que ele tanto admirava, alguma explicação para a ori-
quarto com oito pessoas a não ter um lugar para dor- gem da nossa violência.
mir. Talvez um dia voltem. Os telejornais ensinam
como reconhecê-los: uma gente brava, barulhenta e No e-mail, Joannes me perguntava se eu ainda tinha
suja, falam uma língua que ninguém entende. contato com Juan Miguel – meu amigo colombiano
–, que ele conheceu certa noite numa festa na minha
casa. Respondi que não. Alguns dias depois, Joannes
escreveu novamente: “Querida Flávia, recentemente
encontraram em Berlim o corpo de um homem den-
tro de um rio, ele estava morto, tudo indica que estava

50 51
bêbado, caiu no rio e não conseguiu se levantar, não História da sexualidade
havia marcas de espancamento nem de violência, no
entanto, não conseguiram identificar o corpo porque
a polícia não achou nenhum documento. A polícia co- María Laura estuda na Faculdade de Filosofia e Le-
lou vários cartazes com uma foto do rapaz pelas ruas tras da Universidade de Buenos Aires e trabalha como
da cidade e esta semana conseguiram descobrir que garçonete no mesmo restaurante que eu e Matías. Ela
se tratava de Juan Miguel, seu amigo colombiano. Ele é de Santa Fé, uma cidade de 400 mil habitantes ao
estava morando em Berlim há alguns meses, morava noroeste de Buenos Aires. Divide com duas amigas e
com a namorada que está grávida. A família dele já foi o namorado um apartamento de dois quartos no bair-
avisada e está vindo da Colômbia. Sinto muito”. ro Caballito. É uma típica estudante do interior: tem
pouco dinheiro e nenhum medo. María Laura também
faz parte de uma banda punk feminista chamada Soy
Otra. Ela descobriu o que significa ser mulher quando,
na adolescência, seus primos mais velhos começaram
a passar a mão na sua bunda. Ela reclamava com as
tias, que defendiam os filhos. “Estão apenas brincan-
do, que menina mais chata você é!” Na universidade,
María Laura leu os dois volumes da História da Sexu-
alidade, do filósofo francês Michel Foucault, xerocou
algumas partes e levou para que suas amigas da banda
também lessem.

Com as companheiras de faculdade, conseguiram um


ônibus para levá-las ao Encontro Nacional de Mulhe-
res que iria acontecer em Mar del Plata. Dormiriam
em uma escola pública e tocariam de graça no último

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dia do encontro. O problema passagem/hospedagem ticiparia de um congresso de mulheres em Mar del
estava resolvido, mas María Laura precisava conse- Plata, ela e as amigas já tinham conseguido trans-
guir uma liberação no trabalho. porte e hospedagem. Além disso, ela e sua banda
iriam se apresentar lá. Enquanto María Laura falava,
Uma noite, ela chega ao restaurante e vai conversar Roberto segurava uma pequena xícara de porcelana
com Gustavo, o gerente pelotudo de mierda. Cinica- branca nas mãos. Olhava fixamente para dentro da
mente, ele diz que não tem autorização para liberá-la xícara. Piscou as pálpebras e viu seus próprios olhos
e que ela precisará conversar com Roberto, o dono do refletidos na superfície negra e lisa do café. Os olhos
restaurante. É mentira, Gustavo pode, se quiser, au- de Roberto eram cansados e marrons. Os olhos de Ma-
torizar mudanças na escala dos garçons, mas Gustavo ría Laura eram muito pretos. Ele autorizou a viagem.
é o tipo de pessoa que prefere não facilitar as coisas. Uma semana depois, quando retornou ao trabalho, a
garçonete foi demitida.
O dono do restaurante é um homem sério, que não
bebe álcool e que, segundo a mitologia interna, nun-
ca conversa com os funcionários. Mesmo quando
flagrou com suas câmeras de vigilância um garçom
bebendo uma dose de uísque enquanto trabalhava,
ele não disse nada. Naquele dia o restaurante estava
lotado, e Fabían, o garçom, trabalhou a noite toda.
No fim do expediente, antes que fosse embora, Gus-
tavo o demitiu. Ainda exigiu que ele abrisse a mochila
para ter certeza de que Fabián não levava nenhuma
garrafa de RedLabel para casa. María Laura decide
conversar com Roberto, ele está encostado no balcão
tomando um café expresso quando ela se aproxima.
Ela conta que é estudante de antropologia e que par-

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City tour  Fantasmas

Em 1930, Polo Lugones criou a picana elétrica, método Ñata e Pablo se conheceram no final na década de
de tortura inspirado na ferramenta usada para assus- 1940, em Avellaneda, cidade da grande Buenos Aires.
tar e amansar o gado. Em seres humanos, a picana elé- Começaram a namorar, depois noivaram e se casa-
trica é usada em gengivas, mamilos, órgãos sexuais, ram. Tiveram dois filhos: um homem e uma mulher.
abdômen e orelhas. Provoca dor intensa, seguida de Vivem, desde que se casaram, na mesma casinha sim-
tremores, desmaios e, em alguns casos, pode levar à ples no final de uma rua de terra, em um bairro de
morte. Lugones era filho do escritor Leopoldo Lugo- trabalhadores na região sul de Avellaneda. No fundo
nes, que por sua vez era filho de um grande proprie- da casa, existe um pequeno quintal onde Ñata plan-
tário rural da região de Córdoba e é também nome de ta camomila, alface e salsinha. A porta que separa o
uma importante avenida na capital federal. Com seis interior da moradia desse espaço tem uma cortina
quilômetros de extensão, a avenida Lugones passa por de tiras de plástico coloridas. Esse tipo de cortina é
importantes pontos turísticos da capital portenha, bastante comum em algumas residências na Argenti-
como o Estádio Nacional, os Bosques de Palermo e a na, assim como a garrafa de soda na hora das refei-
Escola de Mecânica da Armada (ESMA). ções. Os utensílios domésticos que Ñata coloca todos
os domingos em cima da mesa para servir a família
são como pequenos monumentos da história daquela
casa. Com o tempo, o plástico da cortina perdeu a cor,
é translúcido e puído como a memória de Ñata: uma
mulher que nunca fala de si, nunca fala do período em
que escondeu um sobrinho em sua casa ou dos pesa-
delos que tinha, diariamente, naquela época. Quando
os netos e os filhos começam a fazer certas pergun-
tas, Ñata atravessa a cortina de plástico para ver se

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as costeletas de porco já estão prontas. Depois de um Rituais
tempo, volta com um prato cheio de carne assada na
brasa. Em cima da mesa, o pão, a salada de alface e
tomate e o molho chimichurri completam o almoço de O homem tem medo do bicho que é, feroz. Por isso,
domingo em família. Enquanto os filhos e os netos co- inventou a monogamia, a religião e a propriedade pri-
mem, Ñata respira aliviada; assim, com a boca cheia vada. Nas touradas, depois que o touro era abatido, a
de comida, eles não conseguem fazer perguntas que só carne do animal era vendida nos açougues da cidade.
servem para tirar sua paz. Como prêmio máximo, caso a performance do tourei-
ro tivesse sido excepcional, ele recebia as orelhas e o
rabo do bicho. As corridas de touro foram proibidas
na Argentina em 1899, mas o touro – enquanto símbo-
lo de fertilidade e força – ainda permeia o imaginário
popular. Segundo a cosmovisão mapuche, o homem
se sente mais forte à medida que consegue imolar sua
natureza animal. Antigamente, os mapuches sacri-
ficavam um touro quando precisavam de paz. Esses
rituais não existem mais, foram substituídos por outro
tipo de adoração: o asado.

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Respiração artificial Mama, yo quiero un novio 

Em Fedro, Platão nos coloca diante de um problema. No primeiro dia, ele levantou o braço esquerdo e a
Thoth – criador da geometria e das artes plásticas abraçou com o direito. Ela recuou. Ele tinha olhos
– gostaria de presentear o rei do Egito com outra in- tristes. A tristeza é como um tigre faminto, pensou.
venção: a escrita. Thoth promete ao rei que assim ele Todos os dias, ele trazia presentinhos. À noite, fecha-
poderia conservar a memória do seu povo. O rei não vam e abriam seus corpos. Ela não dormia nunca. Aos
concorda. Ele diz que quando tudo estiver escrito nin- domingos, ele levantava-se cedo e saía para comprar
guém mais se lembrará de lembrar e que os homens laranjas, medialunas e o jornal. Todos os dias, ele di-
perderão a memória. Comigo acontece exatamente o zia que seu único propósito na vida era fazê-la feliz.
oposto: só me lembro porque escrevo, como se ao es- Em alguns dias, ele quebrava garrafas, cadeiras. Um
crever – sobre essa cidade movediça que tenho sob os dia, arrebentou uma porta. Te quiero más que mi vida,
pés – voltasse temporariamente a respirar. dizia nesses dias. 

60 61
É isso um homem? Arquiteturas coletivas 

Em 24 de março de 1976, instaurou-se no país o que Os operários que trabalhavam nas redondezas da es-
o escritor Rodolfo Walsh qualificou como o terror tação de trens do Retiro não tinham dinheiro para o
mais profundo que a sociedade argentina conhe- aluguel, muito menos para comprar um terreno ou
ceu. Durante oito anos, uma junta militar aliada a uma casa em algum bairro afastado. Os primeiros
instituições internacionais e grupos econômicos barracos foram construídos na década de 1930. Eram
contrários ao intenso movimento de organização construções simples, feitas de madeira e sucata. Os
popular que emergia na Argentina, assim como homens catavam o material durante o dia e erguiam
aconteceu alguns anos antes em outros países da suas casas nos fins de semana, coletivamente. Alguém
América Latina, implementou um regime de violên- emprestava uma ferramenta, outro tinha conheci-
cia que tinha no tripé sequestro–tortura–desapa- mento em marcenaria, e juntos construíram uma das
recimento sua principal forma de organização. De maiores favelas de Buenos Aires – Villa 31, localizada
1976 a 1983, existiram na Argentina cerca de 500 em uma região altamente valorizada pelo mercado
centros clandestinos de detenção que eram os imobiliário, ao lado do requintado bairro da Recoleta. 
dispositivos do Estado para executar sua política
de extermínio. A Escola de Mecânica da Armada A Villa 31 já teve inúmeros nomes e inúmeras são as
(ESMA) tinha uma particularidade. No prédio, foi nacionalidades que atualmente vivem lá, paraguaios,
montada uma pequena “maternidade” onde nasce- bolivianos, peruanos e argentinos das províncias do
ram pelo menos 34 bebês, filhos de mulheres presas Norte, estrangeiros neste país chamado Buenos Aires.
e, posteriormente, mortas. A maioria desses recém- Com o tempo, algumas famílias conseguiram cons-
-nascidos foi sequestrada de suas famílias. De to- truir casas melhores: dois pavimentos, reboco e pin-
das as práticas de violência implementadas pelo tura nas paredes. Os jornais começaram a informar
regime militar argentino, a mais abjeta foi a tortura que a arquitetura evoluiu e a especulação imobiliária
de crianças na presença das suas mães. chegou também às villas miserias. Os jornais sempre

62 63
se esquecem de informar o essencial: pode ser ho- A la mierda
mem, mulher, velho ou criança, todos servem para o
trabalho escravo. 
Eu sempre ficava gripada. Um dia, minha garganta es-
tava começando a doer. Mesmo assim, fui trabalhar.
Chegando ao restaurante, Gustavo avisou que naquela
noite eu ficaria no segundo andar. Expliquei que minha
garganta estava doendo e que como o ar-condicionado
lá em cima era muito forte, eu preferia ficar no salão
principal. De forma irônica, Gustavo me explicou que
os funcionários não têm o direito de ter preferências.
Minhas bochechas começaram a arder. Calmamen-
te, tirei meu avental, desci as escadas, peguei minha
bolsa no armário e, sem me despedir de ninguém,
atravessei a porta do restaurante, enquanto Gustavo,
transtornado, corria atrás de mim, implorando para
que eu voltasse porque os clientes já estavam come-
çando a chegar. Acendi um cigarro e fui caminhan-
do até minha casa. Cheguei a tempo de jantar com
meu namorado.

64 65
Anotações Aguante los pibes

“Hay una cercanía muy grande entre el narrador y la Gustavo, Matías, os homens desconhecidos que tomam
superstición. Las personas supersticiosas o las su- cerveja na porta do kiosco que fica em frente a minha
persticiones siempre trabajan con las coincidencias, casa, mas sobretudo Maradona – Diego Armando, aque-
con las rimas de la realidad. Y así también trabaja la le que com ajuda divina fez um dos gols mais importan-
novela. En una novela, a través de esas coincidencias tes da indústria do futebol – são o protótipo daquilo que
se va creando la sensación de destino o de fatalidad, aprendi a identificar como o macho argentino.
que es tán esencial al género. A través de estas ideas el
género da una Idea de orden.” Pablo de Santis, escritor O macho argentino é profundamente machista, pro-
argentino, no ciclo de debates “La cultura argentina fundamente homofóbico, profundamente apaixonado
hoy”, que aconteceu no dia 25 de outubro de 2005, no por futebol, profundamente ligado ao corpo e suas
Museu Nacional de Belas Artes. marcas. Cicatrizes e tatuagens contam a seguinte his-
tória: viver é lutar, sobreviver. O macho argentino
não tem a ginga do macho brasileiro, são espécimes,
embora hegemônicas em seus respectivos países,
completamente diferentes. O macho argentino não
coloca sua masculinidade em dúvida ao beijar outro
homem na bochecha ou chorar em público. O choro,
aliás, é um componente estético dessa subjetividade
permeada por uma expressão que Maradona simbo-
liza com precisão: el aguante.

Segundo a mitologia local, esta expressão que vejo


pichada por toda a cidade, aguante los pibes, e demo-

66 67
rei meses para compreender tem a ver com suportar História oficial 2
o insuportável, a derrota moral e a derrota política,
mas sobretudo a derrota física, a violência dos cam-
pos de futebol, a violência da polícia e do Estado con- Algumas famílias guardam tão bem seus segredos
tra os homens trabalhadores pobres das periferias de que é como se de fato eles não existissem. Mas não é
Buenos Aires, essa espécie que me dá medo, principal- verdade. Todas as famílias possuem segredos impro-
mente quando volto sozinha para casa, à noite, mas nunciáveis, sujos, gastos pelo tempo como os gestos
que também me dá pena. que fazemos diariamente, as manias, os tiques, o som
de determinadas palavras pronunciadas por um cor-
po que sente raiva. Alejandro nunca se reconheceu
nos olhos da mãe, não identificava nas próprias mãos
o desenho das mãos do pai e não havia, em casa, fo-
tografias da época em que era bebê. Isso não era um
problema. Às vezes, como muitas pessoas, sentia que
não fazia parte daquela família. No entanto, era ama-
do, e este sentimento – o amor – atestava sua filiação.

Quando era adolescente, Alejandro foi a um show de


uma banda de rock muito famosa na Argentina. Em
um momento do show, o grupo estendeu uma grande
faixa branca e nela os seguintes dizeres: “30 mil de-
saparecidos: Manuel Gonçalves Granada é um deles”.
Ao lado do texto, a imagem de uma criança de qua-
tro anos, um menino moreno de cabelos lisos e pretos,
olhos muito grandes, também pretos.

68 69
Em 1977, um grupo de mulheres, mães que viram seus Mas aquelas avós não desistiam e exigiam informa-
filhos e netos desaparecerem à luz do dia em várias ções. Semanalmente, junto com outra associação
cidades do país, criaram uma associação para tentar formada por mulheres – mães de desaparecidos
recuperar essas crianças e devolvê-las às suas famí- políticos –, marchavam em torno da Casa Rosada exi-
lias de origem. Essas mulheres iniciaram uma luta gindo explicações, estabeleceram contato com orga-
quase impossível: descobrir para onde tinham sido nizações internacionais de direitos humanos e des-
levados seus netos. Algumas crianças foram retira- cobriram, por exemplo, que algumas crianças foram
das dos braços das mães logo após o nascimento, já vendidas para famílias europeias; outras estavam
que muitas mulheres presas deram à luz em salas es- mortas, assim como seus pais, e algumas ainda viviam
trategicamente montadas em alguns dos principais no país. Era preciso encontrá-las, reconhecer a pater-
centros de detenção do país. Ao longo dos oito anos nidade por meio de exames de DNA e assim iniciar um
de ditadura militar, cerca de 500 centros clandestinos longo processo judicial de restituição familiar. Ao lon-
de detenção funcionaram no país. Muitas mulheres, go da história da associação criada por essas avós, 125
enquanto pariam seus filhos, tinham os braços pre- crianças (hoje adultos) foram encontradas e tiveram
sos por algemas, eram amordaçadas, os médicos que suas identidades e histórias de vida restabelecidas.
acompanhavam o procedimento retiravam o filho de
dentro da mulher e o entregavam imediatamente a Alejandro estava feliz naquela noite, realizava um
um militar que esperava do lado de fora da cela de sonho: ver de perto sua banda favorita, Los Peri-
parto. Algumas mulheres nunca tiveram o direito de cos. Ao ver a faixa em cima do palco, reconheceu-se
saber se o filho era menino ou menina. Outras crian- imediatamente naquela fotografia.
ças, alguns irmãos, foram sequestradas em suas
próprias casas, de madrugada, mas também à luz do
dia, já que os militares não poupavam esforços para
prender, torturar e fazer desaparecer pessoas consi-
deradas inimigas do país.

70 71
Errata Os ofícios terrestres  

Fui um pouco impulsiva quando disse que o futebol é Susana cuidava da limpeza dos quartos. Uma vez por
uma indústria. Acho que não me expressei bem. O fu- semana, trocava os lençóis puídos e sujos por lençóis
tebol não é uma indústria, o futebol é uma máfia. puídos e limpos. Além dessa função, chefiava uma rede
subterrânea de informações que envolvia toda resi-
dência, interceptando e produzindo toda sorte de bo-
atos e maledicências. Susana morava longe, acordava
de madrugada para chegar ao trabalho, onde passava
o dia limpando os quartos sujos de cerveja, vômito e
sorvete de doce de leite da classe média latino-ameri-
cana e europeia. Estudou apenas o fundamental e, em-
bora soubesse ler e escrever, nunca gostou de anotar
os recados, Susana preferia transmiti-los oralmente
acrescentando aos seus relatos fatos imaginários e
fantasiosos. Certa ocasião, me contou que, ao entrar
no quarto do meu namorado, encontrou ao seu lado,
na cama, outra mulher. “Te lo juro”.

72 73
Língua menor Las Malvinas son 
argentinas 

A língua é também um território político onde ocor-


rem disputas violentas e simbólicas de poder. A língua Gonzalo é uma criança de cinco anos.  No seu último
é tanto um dispositivo de afirmação de uma identida- aniversário, a avó paterna fez o tradicional bolo de
de coletiva – os argentinos – quanto de sua negação. O doce de leite com cobertura de pêssegos em calda.
lunfardo é um dialeto local, resultado do intenso pro- Antes de soprar as velinhas, todos comeram canapés
cesso de hibridização entre o espanhol e outras lín- de maionese com ovo cozido e matambre de carne de
guas, sobretudo o italiano. Ao chegar a Buenos Aires, porco. “Que los cumplas feliz, que los cumplas feliz,
muitas palavras com as quais eu estava habituada a que los cumplas, Gonzalito, que los cumplas feliz”, can-
me comunicar nas aulas de espanhol que fiz no Brasil taram. Os adultos brindaram com cidra, um costume
não faziam mais nenhum sentido. Onde eu morava, local. Gonzalo brindou com Coca-Cola.  Na Argentina,
ninguém conversava usando as palavras do dicioná- as crianças pequenas são proibidas de tomar café por-
rio espanhol e eu precisei reaprender a falar: guita que tem cafeína, mas podem tomar Coca-Cola. Neste
(dinheiro), pucho (cigarros), laburo (trabalho), fiaca ano, a namorada do irmão mais velho de Gonzalo deu
(preguiça), morfa (comida), pibes (meninos) eram as de presente para ele um quebra-cabeça de 30 peças
palavras do meu novo vocabulário e foi com elas– es- com o desenho do mapa-múndi. Com a ajuda do ir-
preitando cada expressão pichada nas ruas da cidade mão, montaram o brinquedo.  A família, reunida em
ou na boca dos portenhos– que comecei a entender torno do mapa, começa a explicar à criança: “Aqui é a
que ser argentino é um movimento complexo de ser e Argentina, essa parte azul é o oceano Atlântico, esse
negar o que se é. pedacinho pequeno de terra são as Malvinas, ilhas que
pertencem ao povo argentino, mas os ingleses foram
lá e nos roubaram, muitos argentinos morreram na
guerra, o seu tio-avô Norberto, irmão da vovó. Nun-
ca se esqueça disso, as Malvinas são argentinas”. Mas

74 75
Gonzalo não presta muito atenção porque ele tem Cenas de um
apenas cinco anos de idade e só quer saber de tomar casamento argentino 
mais um copo de Coca-Cola.

O marido passa a manhã escutando músicas românti-


cas no rádio do computador. A esposa passa a manhã
na cozinha, lava os copos, seca os pratos, prepara as
milanesas para o almoço. Estão casados há 40 anos.
Dividem inúmeras coisas: o silêncio, a cama, a pas-
ta de dentes, a erva-mate, o medo dos filhos ficarem
desempregados, a carteirinha de sócios do clube onde
jogam tênis com os amigos no fim de semana, os dó-
lares guardados – uma obsessão da classe média na-
cional, fruto da crença de que o dólar é uma moeda
forte e segura e o peso uma moeda jodida. Dividem
também, em silêncio, o arrependimento de terem vo-
tado em Carlos Menem em 1989. 

76 77
Santíssima Trindade  Cumbiera intelectual

Em Buenos Aires, as mães, a igreja e os psicanalistas A cumbia é um estilo musical de origem colombiana
têm sempre razão.  e paraguaia, bastante popular em países sul-ameri-
canos como Bolívia, Peru e Argentina. Os argentinos
das províncias do Norte, como Salta, Jujuy, Tucu-
mán, Chaco e Formosa sempre escutaram e dançaram
cumbia. Com a migração dessas populações (majori-
tariamente rurais) para a capital portenha, a partir
da década de 1940, houve também uma migração de
costumes, sotaques e de uma intensa e rica cultura
sonora. Pronto, já estava criado o estigma. Para os
portenhos, a cumbia era música de “gente de pro-
víncia”, ou “gente de bairro”, como são chamadas as
pessoas que vivem nas regiões periféricas e humildes
da grande Buenos Aires, música de los cabecitas ne-
gras, termo bastante popular utilizado para deno-
minar de forma racista os descendentes dos povos
indígenas. O insulto é usado sobretudo por pessoas
da classe média e alta, especialmente da cidade de
Buenos Aires.

As primeiras canções falavam do amor e todas as


suas variáveis (paixões, ilusões, desilusões, traições) e
do cotidiano severo dos imigrantes que escutavam e

78 79
dançavam cumbia nos fins de semana como única al- Contra o silêncio  
ternativa de lazer numa cidade que não foi feita para
eles. Quanto mais a mídia criticava o gênero musical,
mais ele se tornava popular. No final da década de As  villas miserias, também chamadas de villas de
1990, jovens que cresceram escutando cumbia com emergencia, são assentamentos informais de pessoas,
suas famílias acrescentaram instrumentos mais constituídos por moradias precárias e infraestrutu-
fortes e dançantes como o teclado e a guitarra. As ra básica inexistente. A luta de classes existe em to-
letras falavam de sexo, drogas, álcool e  do cotidia- dos os lugares, mas na Argentina ela tem contornos
no urbano dos bairros pobres onde a violência pós- mais nítidos. Villeros é uma expressão depreciativa e
-Menem crescia exponencialmente. Segundo alguns violenta, usada contra as pessoas pobres. Contra os
jornalistas,  as canções eram explícitas e vulgares. “ricos”, essas pessoas têm algumas armas. O barulho
A mídia batizou essa versão mais contemporânea de é uma delas. 
cumbia villera, acusando os artistas de fazer apologia
ao crime.  A partir desse momento, o ritmo explodiu.
A  cumbia villera tocava nas rádios. Cantores e gru-
pos vendiam milhares de discos, lotando ginásios com
bailes que reuniam até 10 mil pessoas, transformando
a cumbia em dos maiores fenômenos culturais da Ar-
gentina nos dias de hoje.

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Made in Brazil  Conexão aeroporto

Na estação do Retiro, uma senhora comenta com a Quando Moly – a estudante norte-americana – voltou
amiga: “Quem tira bandido da rua não é a polícia, são para os Estados Unidos, acompanhei-a até o Aeroporto
as igrejas brasileñas”.  Internacional de Ezeiza. Fomos de ônibus conversando
e prometendo que nunca deixaríamos de ser amigas e
de nos falar e de escrever e-mails. Chorei muito quan-
do ela desapareceu pelo portão de embarque. Voltei
para Buenos Aires sozinha, no ônibus, com o coração
apertado. Era a segunda vez que levava uma amiga a
Ezeiza. Eu ainda tinha muitas dúvidas naqueles me-
ses. Eu não sabia dizer se queria voltar para o Brasil
(quando?) ou se queria ficar (por quê?), mas tinha cer-
teza de que meu retorno não seria por via aérea. Eu
chegara naquela cidade de ônibus, atravessando o sul
do Brasil e a região dos pampas, impressionada pela
vastidão, pelo nada e pelo céu que compõem essa pai-
sagem, e voltaria para o meu país assim, preenchida
por aquele vazio.

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Sueño de Amar Imanência

Quando criança, Pablo escutava cumbia na casa dos Cortázar escreveu que ser argentino não tem cura.
tios. O pai – caminhoneiro que fazia distribuição de
refrigerantes – vendeu o micro-ondas da família e
com o dinheiro comprou um teclado para o filho. O ga-
roto aprendeu a tocar sozinho, de ouvido, e com um
amigo do bairro Esperanza (San Fernando/Grande
Buenos Aires) montou seu primeiro grupo de cumbia.
Nessa época, ele tinha apenas 12 anos. Os dois come-
çaram se apresentando em festas familiares. Depois,
foram convidados a tocar em eventos organizados por
escolas e clubes locais. Aos 14 anos, Pablo passou a in-
tegrar o grupo de cumbia Sueño de Amar. Nunca mais
parou de tocar cumbia. Chega a fazer oito shows em
uma única noite. Os ingressos são vendidos a preços
populares. Ao longo dos 20 anos de carreira, Pablo já
fez mais de 15 mil shows. Ganhou muito dinheiro. Pri-
meiro reformou a casa dos pais, trocou o chuveiro que
sempre dava choques. Depois comprou um Mitsubishi.
Atualmente, investe em seu principal hobby: relógios
de ouro e armas de fogo. 

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Lição de resistência Hecho en Buenos Aires

Os argentinos nunca se esquecem. Os chineses são muitos. Os chineses não falam es-
panhol. Os chineses torcem para o Boca Juniors. Os
chineses não deixam suas esposas conversarem com
os argentinos. Os chineses matriculam seus filhos
em escolas bilíngues. Os chineses dominam o ramo
de supermercados. Os chineses não são confiáveis.
Os chineses são sujos. Os chineses exploram seus
funcionários. Os chineses vendem vinho misturado
com água. Os chineses – para economizar energia –
desligam os refrigeradores de seus supermercados.
Os chineses sonegam impostos. Os chineses vendem
carne estragada. Os chineses acham as mulheres
argentinas vulgares. Falar mal dos chineses é uma
espécie de cacoete local.

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Belleza y Felicidad Ponto cego

Cecilia e Fernanda nasceram em Buenos Aires no início No mesmo dia em que tomei a decisão de voltar para
da década de 1970. Nos anos 1990, queriam ser poetas, o Brasil, comecei a ter pesadelos. A informação prin-
artistas, revolucionárias: “no soy dark, soy intensa”. Es- cipal contida naquelas mensagens que minha cabeça
creviam poemas estranhos, vagos e autorreferenciais. produzia repetidamente era que Belo Horizonte não
Misturavam versos de Shakira com trocas de mensagens existia mais. Em um dos sonhos a cidade havia desa-
pelo Hotmail e anúncios que encontravam colados nas parecido, em outro se desmanchado e havia apenas um
paredes da faculdade: “Ya leíste Adorno? Guadalupe te barro muito cinza e pegajoso em cima de tudo. Uma
lo explica: 4374 – 0247”. Cecilia e Fernanda não queriam vez sonhei que Belo Horizonte não era mais a mesma
ganhar dinheiro, queriam que a vida fosse divertida, cidade e, porque não a reconhecia – uma nova e estra-
cheia de desejo, beleza e felicidade. Primeiro, criaram nha paisagem –, não conseguiria viver ali. Nos sonhos,
uma editora para publicar os livros que reproduziam eu sempre estava tensa e muito aflita: onde eu iria vi-
em máquinas de xerox e vendiam em bares e festas da ver agora, já que minha cidade não existia mais? O que
cidade. Depois, abriram uma galeria de arte onde além mais me assustava nesses pesadelos é que, mesmo de
de vender os próprios livros, liam poemas em voz alta manhã, depois de me levantar da cama, lavar o rosto
e comercializavam alguns objetos que compravam ba- e tomar uma xícara de café, eu continuava acreditan-
ratinho no Once – bairro judeu de comércio varejista. do que tudo aquilo era verdade: eu estava destinada
Na galeria, organizavam festas, performances, come- a nunca mais voltar pra casa?
moravam o aniversário dos amigos. Depois, criaram
uma escola de arte para crianças. A galeria e a editora
Belleza y Felicidad não existem mais, nem a escola de
arte em Lomas de Zamora. Cecilia guardou o pequeno
açucareiro de vidro onde elas jogavam as guimbas de
cigarro como uma lembrança daquela época.

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Anticartão-postal Volta

Aos domingos, pegávamos um ônibus na aveni- Cinquenta e duas horas depois, chego à rodoviária de
da Independiente, na região sul de Buenos Aires, e Belo Horizonte, o corpo suado e dolorido parece to-
atravessávamos a ponte sobre o Riachuelo, o rio que mar a forma de uma lagarta, retorcida em si mesma
separa Buenos Aires de Avellaneda, para comer asado dentro do casulo. Começa a amanhecer nesta parte do
na casa da avó do meu namorado. Antigamente, essa hemisfério sul e as manhãs são sempre menos densas
viagem era mais longa, havia espaços vazios onde hoje de poluição e calor. Olho através da janela do ônibus a
existem pontes, viadutos, edifícios e grandes avenidas, cidade, a primeira coisa que vejo é a placa em neon do
uma paisagem cinza e industrial. O progresso – mas Hotel Madri e descubro que tudo – quer dizer, quase
principalmente a pobreza, que é o seu avesso – redu- tudo – continua no mesmo lugar.
ziu a distância e as diferenças entre as duas cidades.
Resta o rio Riachuelo, seu cheiro desagradável e sua
poluição persistente, nesse último cartão-postal.

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Pós-escrito ou a esquecer o desenho das ruas com seus prédios, suas
última pergunta casas, as lojas, o comércio em geral, os cafés, os ci-
nemas, os edifícios públicos e toda variedade de esta-
belecimentos e edificações que compõem a paisagem
Quando eu morava em Buenos Aires, em uma residên- urbana e que revelam que a história de uma cidade ou
cia estudantil localizada em um antigo sobrado no bair- de um país é feita também dos seus restos e dos seus
ro San Telmo e dividia, entre muitas outras coisas, os escombros. Em Buenos Aires, com exceção de bairros
cigarros, as panelas, os banheiros e a máquina de lavar muito pobres ou de algumas cidades da Grande Bue-
roupas com 40 pessoas de nacionalidades diferentes, eu nos Aires, as ruas são arborizadas, os galhos das ár-
era jovem. Embora fosse uma das pessoas mais velhas vores crescem com liberdade entrelaçando-se sobre
da casa, eu tinha apenas 27 anos. Em alguns dias da se- nossas cabeças, desenhando em algumas ruas túneis
mana, para ir à Faculdade de Filosofia e Letras, onde verdes que protegem as pessoas do calor intenso do
eu estudava literatura latino-americana, pegava o 69 A, verão. Uma das árvores mais comuns na cidade são
um ônibus que passava na porta da minha casa. Mes- os álamos, uma planta nativa da Europa que se adap-
mo a viagem de metrô sendo significativamente mais ta em locais de temperaturas amenas e muda de cor
rápida, eu preferia andar de ônibus. A viagem durava conforme as estações. O chão das ruas fica coberto
cerca de 45 minutos e eu adorava aquilo: olhar para a por centenas de folhas amarelas, no outono. Enquanto
cidade. Eu olhava a cidade o tempo todo. O que eu que- observava tudo isso, da janela da linha 69 A, escutava
ria descobrir? em meu discman um álbum que uma amiga do Brasil
tinha mandado de presente. Ao me deslocar dentro
O céu em Buenos Aires é azul, quase sempre muito daquela paisagem, me desligava temporariamente da
azul, com poucas nuvens, um azul tão intenso como o minha grande preocupação. Eu não sabia o que queria
céu de Belo Horizonte no inverno. Eu me lembro disso da vida, se queria ficar ou voltar, e continuava fugin-
ou isso é mais uma memória que inventei? Eu olhava do desse assunto: eu precisava decidir? Eu não con-
para o céu todos os dias e sempre pensava que eu não seguia imaginar o que fazer com os dias que viriam e
podia esquecer a cor daquele céu. Também não queria eu pensava bastante neles. Eu teria um destino? Um

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futuro? Eu suportaria esperar isso acontecer? Por
que as pessoas mudam de país? Por que elas abando-
nam uma vida organizada e se lançam nessas rotas de
fuga? Para não pensar, eu escutava, todas as manhãs,
dentro da linha 69 A, aquelas canções vagas e tristes,
mas também alegres. Aquilo era como a minha vida.
Eu olhava para o céu, para as casas, para as folhas
de álamos no chão e pensava coisas também vagas:
eu não sei ficar, eu nunca sei quem sou. Ainda hoje,
12 anos depois, quando meu filho de dois anos e meio
me pergunta numa manhã de domingo: “quem é você,
mamãe?”, eu não consigo responder.

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Posfácio
por Paloma Vidal

“De uma cidade não aproveitamos as suas sete ou


setenta maravilhas, mas as respostas que nos dá a
nossas perguntas”. Assim termina a citação de Italo
Calvino que Flávia Péret escolheu para abrir seu livro.
Ao ler a frase, pensei que isso também pode ser dito da
literatura. E quais são as perguntas destas Instruções
para montar mapas, cidades e quebra-cabeças ? Para
começar: “Toda viagem é uma fuga?”. Uma jovem
mulher que ainda não completou 30 anos compra
uma passagem de ônibus, só de ida, Belo Horizon-
te–Buenos Aires. Assim começam textos que transi-
tam entre o diário, o conto, a crônica, o romance, que
acompanham a viagem, tornando sua a economia
dela: carregar o mínimo necessário. Tentar a leveza,
apesar do peso da incerteza e da precariedade. Confiar
na sorte, nos encontros, nos acasos. Deixar-se levar
por essa cidade estrangeira que poderia facilmente se
tornar um lugar-comum de turista brasileira, porque
são muitas as referências que antecedem a viagem:
livros, livrarias, cafés, passeios. Mas experimentar
outros roteiros é a condição de quem viaja com pouco
dinheiro, tendo que trabalhar, andar de ônibus e me-
trô, e assim conhece lugares e pessoas invisíveis para um congresso de mulheres na cidade de Mar del Plata;
os que já sabem o que querem encontrar. Matias, que também trabalha no restaurante, lavando
pratos, que veio para a capital, da província de Corrien-
A situação econômica não é menor no livro, pois cria tes, à procura de emprego e trabalhou 18 anos em uma
entre Brasil e Argentina uma contiguidade que vai além fábrica de meias, até ser demitido durante a crise de
da vizinhança geográfica, cultural ou linguística. Há 2001; Paloma, uma menina filha de argentinos que se
muito em comum entre os dois países quando se trata exilaram no Brasil que tem pesadelos com água: “um
de formas de exploração e exclusão. O que se busca, en- barco atravessa o oceano lentamente, a viagem não
tão, nesse parecido diferente? Fugir de algumas deter- termina nunca”. São personagens que Flávia vai recu-
minações que parecem inescapáveis, relacionadas com perando e recriando, a partir de um arquivo pessoal,
ser mulher e com o desejo de ser escritora. “Desde que histórico e literário, peças de um quebra-cabeça latino-
decidira viver em Buenos Aires, intuía que uma modi- -americano que somos convidados a montar com ela.
ficação profunda estava em trânsito, mas ela ainda não
se revelara com nitidez. Eu desistiria definitivamente A literatura e a cidade são as protagonistas deste livro
do jornalismo?Estudaria literatura? Escreveria livros. tão valente quanto amoroso. A cidade não é a dos lu-
Seria professora?” O encontro com uma marxista de gares pré-fixados pelo turismo, mas das bordas invisi-
minissaia é uma das cenas que marcam no livro uma bilizadas – da cumbia, dos expatriados, das villas, dos
reflexão sobre a política dos corpos. Sobre a política nos velhos –, a cidade que se aprende a olhar com as os-
corpos: os corpos explorados pelo neoliberalismo e os cilações, os percalços e as lacunas com que nos apro-
corpos desaparecidos pelas ditaduras militares. O livro ximamos de quem amamos. A literatura não está na
é feito de suas histórias: um homem peruano, traba- instituição literária, mas na vida, nos corpos, na rua,
lhador ilegal, que há dez anos atravessa o rio de Bue- na prática cotidiana, no caderno de viagem, no exer-
nos Aires a Coloniadel Sacramento para poder renovar cício de rememoração do passado e de imaginação de
seu visto de turista; Maria Laura, garçonete no mesmo futuro. Quando há tantos que querem nos deixar sem
restaurante que a narradora, estudante universitária, um nem outro, Flávia nos confia suas instruções para
abusada durante a adolescência, que quer participar de continuarmos resistindo.
Texto © Flávia Péret Sobre a autora

Flávia Péret publicou também Imprensa Gay no Brasil,


Capa e projeto gráfico 10 Poemas de Amor e de Susto, A Outra Noite, Uma Mulher,
Estúdio Guayabo Os Patos e Mulher Bomba. Vive e trabalha em Belo Horizonte.

Leitura e preparação de originais flaviaperet@hotmail.com


Laura Cohen e Paloma Vidal

Revisão Português
Diogo Rufatto

Tradução Agradecimentos
Paloma Vidal

Revisão Espanhol
Ana Romay

No texto em português, mantivemos todos os nomes


próprios com a grafia em espanhol.

INCENTIVO

N o DO PROJETO: 0623/2017

Este projeto foi realizado com recursos da Lei Municipal


guayabo.com.br de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte.
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