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A aura da ironia I, II e III,

David Forster Wallace

20/12/2010

Como presente de Natal aos leitores do Todoprosa, publico esta semana, em três partes, o
trecho de um longo e brilhante ensaio de David Foster Wallace sobre as relações entre a televisão e a
nova ficção americana que traduzi para a revista “Serrote” – e que teve apenas um pequeno naco
aproveitado. O ensaio integral, E unibus pluram, encontra-se na coletânea A supposedly fun thing I’ll
never do again, ainda não lançada no Brasil. O presente trecho foi batizado pelo próprio DFW de “A
aura da ironia” e contém seu argumento central: o de que a ironia da ficção pós-moderna foi
apropriada e esvaziada pela TV. Certos nomes de atrações televisivas à parte, o texto parece-me não
ter envelhecido substancialmente desde os anos 90, quando o ensaio foi escrito. Espero que o
aperitivo sirva de estímulo a quem quiser correr atrás do livro em inglês (disponível aqui) ou a
editoras que se disponham a lançar a obra no Brasil.
É fato amplamente reconhecido que a televisão, com sua bateria de estatísticos e
pesquisadores de aros de tartaruga, sai-se terrivelmente bem na tarefa de discernir padrões no fluxo
das ideologias populares, absorvendo-os, processando-os e em seguida reapresentando-os como
estímulos para assistir e comprar. Anúncios dirigidos aos filhos do pós-guerra que prosperaram nos
anos 1980, por exemplo, ficaram famosos por usar versões processadas de melodias da cultura rock
dos anos 60 e 70, tanto para evocar o desejo que acompanha a nostalgia quanto para atrelar o
consumo de produtos àquela que, para os yuppies, foi uma época perdida de convicção genuína.
Vans esportivas da Ford são anunciadas como “Esta é a aurora da era de Aerostar”; a Ford
recentemente envolveu-se com Bette Midler num litígio sobre a apropriação indébita de seus velhos
vocais em Do you wanna dance; as passas de argila animada da California Raising Board dançam ao
som de Heard through the grapevine, etc. Se a reutilização cínica das canções e dos ideais que elas
costumavam simbolizar parece de mau gosto, não se pode dizer que os músicos pop sejam eles
próprios epítomes do não-comercialismo, e de todo modo ninguém jamais disse que vender era
bonito. Os efeitos de qualquer caso isolado de absorção e trivialização de símbolos culturais pela TV
parecem razoavelmente inócuos. A reciclagem de tendências culturais como um todo – e das
ideologias que as informam – é outra história.
A cultura popular americana é exatamente igual à cultura americana séria num aspecto: sua
tensão central sempre se deu entre a nobreza do individualismo e o calor do sentimento comunitário.
Em seus primeiros vinte anos, parecia que a televisão buscava apelar sobretudo para o lado grupal
dessa equação. Comunidades e laços eram exaltados na infância da TV, embora a própria TV, e
especialmente sua publicidade, tenham desde o início se dirigido ao espectador solitário, João Bobão,
de forma isolada. (Os anúncios televisivos sempre apelam a indivíduos, não a grupos, um fato que
parece curioso à luz do tamanho sem precedentes do público telespectador – mas só até ouvirmos
vendedores talentosos explicarem que as pessoas estão sempre mais vulneráveis, portanto assustadas,
logo passíveis de persuasão, quando são abordadas sozinhas.)
Os comerciais clássicos da televisão eram todos sobre o Grupo. Tomavam a vulnerabilidade
de João Bobão – sentado lá, olhando para uma peça de mobília, solitário – e a capitalizavam,
relacionando a compra de determinado produto com a inclusão de João B. em alguma comunidade
atraente. É por isso que aqueles que têm mais de 21 anos nos lembramos de tantos velhos anúncios
intercambiáveis estrelados por turmas de gente bonita em algum contexto festivo, todos se divertindo
muito mais do que qualquer pessoa tem o direito de se divertir, e todos unidos como Grupo Feliz
pelo fato conspícuo de que tinham nas mãos certa garrafa de refrigerante ou marca de salgadinho – o
apelo altissonante, aqui, é que aquele importante produto pode ajudar João Bobão a se integrar:
“Somos a Geração Pepsi…”.
Mas desde os anos 80, pelo menos, o lado Individualista da grande conversa americana tem
predominado na publicidade televisiva. Não estou bem certo de por que ou como isso ocorreu. É
provável que haja grandes correlações a serem traçadas – com o Vietnã, a cultura jovem, Watergate,
a recessão e a ascensão da Nova Direita – mas o que importa é que grande parte dos mais eficazes
comerciais de TV dirige-se agora ao espectador solitário de modo dramaticamente distinto. Os
produtos são frequentemente louvados como capazes de ajudar o telespectador a “expressar seu eu”,
afirmar sua individualidade, “destacar-se da multidão”. O primeiro exemplo dessa tendência que eu
vi foi o de um perfume do início dos anos 80, ardorosamente anunciado como capaz de reagir à
“química corporal única” de cada mulher para criar “sua própria fragrância individual”. O comercial
mostrava uma fila indiana de modelos lânguidas que, amuadas e sem expressão, aguardavam o
momento de, uma a uma, terem seus pulsos borrifados, cada modelo aspirando então seu pulso
individual úmido com uma espécie de revelação bioquímica e se afastando do borrifador numa
direção que uma tomada de cima revelava ser diferente das demais. (Podemos ignorar as óbvias
conotações sexuais, o borrifamento e tal; algumas táticas nunca mudam.) Ou pense naquela série
recente de anúncios de Cherry 7-Up, rodada num preto e branco excessivamente sombrio, em que os
únicos personagens que têm cor e se destacam do ambiente são as pessoas rosadas que se tornam
rosadas no exato instante em que se embebem do bom e velho Cherry 7-Up. Exemplos de comerciais
do gênero “destaque-se” são hoje praticamente onipresentes.
A não ser pelo fato de serem mais tolinhos (produtos alegadamente capazes de distinguir os
indivíduos da multidão são vendidos para imensas multidões de indivíduos), esses anúncios não são,
na verdade, mais complicados ou sutis do que os velhos comerciais do tipo Entre-para-o-Grupo-Feliz
que hoje parecem tão antiquados. Contudo, a relação do gênero Seja-Diferente-da-Manada com sua
massa de espectadores solitários é mais complexa e mais engenhosa. Os melhores comerciais da
atualidade ainda são centrados no Grupo, mas agora o apresentam como uma coisa temível, algo que
pode engoli-lo, anulá-lo, impedi-lo de “ser notado”. Mas notado por quem? As multidões ainda têm
importância vital nas teses sobre identidade dos comerciais individualistas, mas hoje a multidão de
um determinado anúncio, longe de ser mais atraente, segura e vivaz do que o indivíduo, funciona
como uma massa de olhos idênticos e sem personalidade. A multidão é hoje, paradoxalmente, tanto
(1) a “manada” em contraste com a qual a identidade distintiva do telespectador deve ser definida
quanto (2) o grupo de testemunhas cujo olhar, e só ele, pode lhe conferir tal identidade distintiva. O
isolamento do espectador solitário diante de sua mobília é implicitamente aplaudido – é melhor e
mais real, insinuam esses anúncios solipsistas, seguir em voo solo – e ao mesmo tempo tem
implicações ameaçadoras, confusas, pois no fim das contas João Bobão não é um idiota que, sentado
ali, ignore ser culpado, como espectador, dos dois graves pecados que o anúncio condena: ser um
observador passivo (da TV) e fazer parte de uma grande manada (de telespectadores e compradores
de produtos Seja-Diferente-da-Multidão). Tudo muito estranho.
Na superfície, os comerciais Seja-Diferente ainda apresentam o recado “compre isto” em
estado relativamente puro, mas a mensagem profunda da televisão no que diz respeito a esses
anúncios parece ser a de que o estatuto ontológico de João Bobão como mais um na massa reativa de
espectadores é, em algum nível primordial, periclitante e contingente, e que a verdadeira realização
do ser consistiria em última análise na transformação de João numa daquelas imagens que são
objetos da audiência de massa. Ou seja, o verdadeiro discurso da televisão nesses comerciais é o de
que é melhor estar dentro da TV do que do lado de fora, assistindo.
Isso quer dizer que a nobreza solitária do Seja-Único não se limita a vender produtos. Ela é
capaz de garantir de forma brilhante – mesmo em comerciais que a TV cobra para veicular – que no
fim das contas seja a própria TV, e não qualquer produto ou serviço específico, que João Bobão
tomará como árbitro definitivo do valor humano. Um oráculo que deve ser consultado sem parar. O
estudioso de publicidade Mark C. Miller formula isso de forma sucinta: “A televisão foi além da
celebração explícita das mercadorias para promover o reforço implícito da postura de espectador que
exige de nós”. Anúncios solipsísticos são uma das formas pelas quais a TV acaba por apontar para si
mesma, mantendo ao mesmo tempo alienada e dependente a relação do espectador com sua mobília.
No entanto, talvez a relação do espectador contemporâneo com a televisão contemporânea
seja menos um paradigma de infantilismo e vício do que da familiar postura dos Estados Unidos
diante de toda tecnologia, que equiparamos a liberdade e poder e, ao mesmo tempo, a escravidão e
caos. Porque, assim como ocorre com a televisão, podemos adorar pessoalmente a tecnologia, odiá-
la, temê-la ou todas as alternativas acima, mas ainda é a ela que recorremos sem cessar em busca de
soluções para os problemas que a própria tecnologia parece causar – vejam-se p. ex. os catalisadores
contra a poluição do ar, a “Guerra nas Estrelas” contra os mísseis nucleares, os transplantes contra
diversos tipos de decadência física.
Assim como a tecnologia, a Gestalt da televisão também se expande para absorver todos os
problemas a ela associados. As pseudocomunidades de telenovelas do horário nobre como Knots
Landing e thirtysomething são confortáveis para o espectador por serem produtos do mesmo meio
cuja ambivalência a respeito do Grupo contribui para erodir o sentido de inserção comunitária das
pessoas. A edição sincopada, as frases de efeito dos entrevistados e o tratamento sumário de questões
intrincadas são a forma como o noticiário televisivo acomoda uma Audiência cujo arco de atenção e
apetite pela complexidade encolheram um pouco, naturalmente, após anos de doses maciças de
assistência. Etc.
Mas a TV tem seus próprios problemas provocados pela tecnologia. O advento do
consumidor de TV a cabo, frequentemente dono de pacotes de mais de quarenta canais, é uma
ameaça tanto para as redes quanto para suas afiliadas locais. Isso é mais verdadeiro ainda quando o
espectador está armado com uma engenhoca de controle remoto: João B. ainda consome suas seis
horas totais de televisão por dia, mas o tempo que suas retinas dedicam a cada opção encolhe, pois
ele cobre remotamente um espectro muito mais amplo. Pior ainda, o gravador de vídeo, com suas
temíveis funções de avanço e zap, ameaça a própria viabilidade dos comerciais. A solução
inteiramente sensata dos publicitários? Torne os anúncios tão atraentes quanto os programas. Ou pelo
menos tente evitar que João B. desgoste tanto dos comerciais que sinta vontade de mover seu dedão e
conferir dois minutos e meio de Hazel no Superstation enquanto a NBC vende um protetor labial.
Faça anúncios mais bonitos, mais animados e cheios de suficiente informação visual rapidamente
justaposta para que a atenção de João não chegue a se perder, mesmo que ele corte o volume. Como
diz eufemisticamente um executivo publicitário: “Os comerciais estão ficando mais parecidos com os
filmes de entretenimento”.
Existe uma forma inversa, claro, de tornar os comerciais parecidos com os programas. Faça
os programas se assemelharem a comerciais. Dessa forma os anúncios parecem menos interrupções
do que marcadores de ritmo, metrônomos, comentários sobre a teoria da atração principal. Invente
um Miami Vice, em que há bem pouca trama para irritar e distrair, mas uma ênfase sem precedente
na aparência, no visual, na atitude, num certo “estilo”. Faça videoclipes com a mesma levada
anfetamínica e as mesmas associações arquetípicas oníricas dos comerciais – ajuda bastante o fato de
videoclipes serem basicamente longos anúncios musicais, de qualquer forma. Ou inaugure um
híbrido de informação e publicidade bancado pelo patrocinador que finja ser, de forma
despretensiosa, um noticiário leve, como Amazing Discoveries ou aquelas reportagens sobre queda
de cabelo apresentadas por Robert Vaughn que assombram as horas mortas da TV. Apague –
exatamente como fez a literatura pós-moderna – as linhas divisórias entre gêneros, interesses, arte
comercial e comercial artístico.
No entanto, a televisão e seus patrocinadores tinham uma preocupação de longo prazo ainda
maior: suas delicadas relações diplomáticas com o psiquismo do espectador individual. Como a
televisão precisa girar em torno das contradições básicas do ser e do assistir, da fuga da vida
cotidiana, o espectador medianamente inteligente não tem como ficar lá muito feliz com sua vida
cotidiana e seus altos teores de assistência. Talvez João Bobão seja até bem feliz quando está
assistindo, mas é difícil imaginar que se sinta terrivelmente feliz por assistir tanto. Com certeza, lá no
fundo, João fica desconfortável por fazer parte da maior multidão da história da humanidade, vendo
imagens que sugerem que o sentido da vida consiste em se destacar visivelmente da multidão. O
ciclo de culpa/complacência/conforto da TV dá conta dessa preocupação num certo nível. Mas não
haveria um jeito mais profundo de manter João Bobão firme no meio da multidão de espectadores,
associando de alguma forma sua própria assistência à superação dessa multidão de espectadores?
Mas isso seria absurdo. É aí que entra a ironia.
Eu já afirmei – por enquanto de maneira um tanto vaga – que o que torna a televisão tão
resistente às críticas da nova Ficção da Imagem é o fato de que ela cooptou as formas distintivas da
própria literatura cínica, irreverente, irônica e absurdista do pós-Segunda Guerra que os novos
Imagistas usam como pedras de toque. Ocorre que a reciclagem, pela TV, do cool pós-moderno
evoluiu como uma solução inspirada para o problema de manter-João-ao-mesmo-tempo-alienado-da-
e-integrado-à-multidão-de-um-milhão-de-olhos. A solução implicou uma gradual mudança de
expressão, do excesso de candura para uma espécie de irreverência de menino mau, na Grande Face
que a TV nos exibe. Isso por sua vez refletiu uma transformação mais ampla na percepção americana
sobre como a arte deve funcionar, uma transição da arte como representação criativa de valores reais
para a arte como rejeição criativa de valores fajutos. E essa transformação mais ampla, por seu lado,
caminhou em paralelo ao desenvolvimento da estética pós-moderna e a certas mudanças graves e
profundas no modo como os americanos optaram por encarar conceitos como autoridade, sinceridade
e paixão em termos de nosso desejo de satisfação. Não apenas a sinceridade e a paixão estão hoje
“fora de moda” no que diz respeito à TV, mas a própria ideia de prazer foi minada. Como diz Mark
C. Miller, a televisão atual “já não solicita nossa absorção enlevada ou concordância fervorosa, mas
– como os comerciais que a financiam – na verdade nos congratula pelo próprio tédio e pelo próprio
descrédito que nos inspira”.
Deride and Conquer (Ridicularize e Conquiste), de Miller, de 1986 – de longe o melhor
ensaio já publicado sobre a publicidade das grandes redes – detalha vividamente um exemplo de
como funciona o tipo de apelo que a TV contemporânea exerce sobre o espectador solitário. Refere-
se a um anúncio de 1985-86 que ganhou o prêmio Clio e ainda vai ao ar de vez em quando. Trata-se
daquele comercial da Pepsi em que um carro de som especial da Pepsi estaciona junto a uma praia
lotada sob o sol escaldante e, dentro dele, um rapaz de ar maroto liga um luxuoso sistema de som
antes de abrir uma Pepsi e virá-la num copo perto do microfone. Quando o denso som efervescente
do líquido gasoso se espalha no ar ressequido da praia, as cabeças voltam-se na direção da van como
se fossem puxadas por cordinhas, enquanto os ruídos do rapaz que bebe, seus goles e aaahs de
frescor, são transmitidos pelos alto-falantes. A tomada final revela que o carro de som é também um
caminhão de venda, ao redor do qual a bela população da praia está agora inteiramente reduzida a
uma massa ululante, todo mundo pulando e implorando para ser servido primeiro, enquanto o ponto
de vista da câmera recua para uma tomada de cima da multidão e o slogan é enunciado em tom
neutro: “Pepsi: a escolha de uma nova geração”. Sem dúvida, um esplêndido comercial. Mas será
preciso dizer – como faz o ensaio de Miller com certa medida de detalhismo – que o slogan final é
uma gozação? Há tanta “escolha” envolvida nesse comercial quanto no canil de Pavlov. O uso da
palavra “escolha” é uma tirada de humor negro. Na verdade, toda a peça de trinta segundos é
gozadora, irônica, autodepreciativa. Como argumenta Miller, não é uma escolha que o anúncio está
vendendo a João Bobão, “mas a completa negação das escolhas. Na verdade, o próprio produto é, no
fim das contas, incidental no discurso vendedor. O comercial não exalta a Pepsi em si, mas a
recomenda ao sugerir que muita gente foi convencida fraudulentamente a comprá-la. Em outras
palavras, a mensagem central desse anúncio de sucesso é que a Pepsi foi anunciada com sucesso.”
Há coisas importantes a se compreender aqui. Em primeiro lugar, esse comercial é
profundamente informado pelo medo do controle remoto, do zapping e do desdém do telespectador.
Anúncio publicitário sobre anúncios publicitários, ele usa a autorreferência como forma de parecer
descolado demais para que o odeiem. Protege-se do desprezo que os iniciados televisivos de hoje
devotam tanto aos comerciais de venda direta com locução acelerada que Dan Aykroyd parodiou à
exaustão no Saturday Night Live quanto aos anúncios quixotescos que associam o consumo de
refrigerante com romance, beleza e inclusão comunitária, anúncios que o espectador antenado de
hoje considera antiquados e “manipuladores”. Em contraste com um despudorado “compre isto”, o
comercial da Pepsi vende a paródia. O anúncio é inteiramente escancarado a respeito daquilo que
leva os anúncios televisivos a serem desprezados, i.e., lançar mão de apelos primais enganadores
para vender lixo açucarado a pessoas cuja identidade não vai além do consumo de massa. O
comercial consegue simultaneamente rir de si mesmo, da Pepsi, da publicidade, dos publicitários e
da grande multidão americana de consumidores. Na verdade, é untuoso na bajulação de apenas uma
pessoa: o espectador solitário, João B., que mesmo tendo um cérebro mediano não pode deixar de
discernir a contradição irônica entre a “escolha” do slogan (som) e a orgia pavloviana ao redor da
van (imagem). O comercial convida João a “ver através” da manipulação que a horda praiana engoliu
furiosamente. Demanda cumplicidade entre sua própria ironia espirituosa e o reconhecimento cínico
dessa ironia pelo veterano espectador João, que não é homem de se deixar enganar tão facilmente.
Convida João a compartilhar de uma piadinha interna às custas da Audiência. Parabeniza João
Bobão, em outras palavras, por transcender a própria multidão que o define. Multidões inteiras de
Joões corresponderam: o anúncio impulsionou o crescimento da participação de mercado da Pepsi
por três trimestres consecutivos.
A campanha da Pepsi não é um caso isolado. A Isuzu Inc. descobriu um bom filão no fim dos
anos 80 com a série de comerciais “Joe Isuzu”, estrelada por um vendedor melífluo de aparência
satânica que mentia deslavadamente sobre o estofado de pele de lhama do Isuzu ou sua capacidade
de rodar com água da bica no tanque de gasolina. Embora os comerciais nunca dissessem quase nada
sobre por que os Isuzus são de fato bons carros, as vendas e os prêmios se acumularam. Eram bem-
sucedidas paródias dos melífluos e satânicos anúncios de automóveis. Convidavam os espectadores a
parabenizar os anúncios da Isuzu por serem irônicos, parabenizar-se a si mesmos por entender a
piada e parabenizar a Isuzu Inc. por ser suficientemente “destemida” e “irreverente” para reconhecer
que a publicidade de carros é ridícula e que a Audiência é idiota de acreditar nela. Os anúncios
instavam o espectador solitário a dirigir um Isuzu como uma espécie de manifesto anti-publicidade.
Associavam com êxito a compra de um Isuzu ao destemor, à irreverência e à capacidade de
desmascarar fraudes. Hoje, para qualquer lado que se olhe, é possível encontrar comerciais de TV
bem-sucedidos que zombam das convenções da publicidade televisiva, dos anúncios de Settlemeyer
para o Federal Express e o Wendy’s, com seus personagens publicitários mofados de fala
burlescamente acelerada, àquelas peças espertinhas de Doritos à base de colagens de locutores
comerciais e clipes ironicamente cafonas de Beaver e Mr. Ed.

Além disso, pode-se ver essa tática de zombar das pretensões à virtude da autoridade e da
sinceridade exibidas por aqueles velhos comerciais – desse modo (1) blindando contra a zombaria o
autor da zombaria e (2) felicitando o decodificador da zombaria por se destacar da massa que ainda
acredita nessas pretensões fora de moda – empregada com grande êxito em muitas das atrações
televisivas que os comerciais financiam. Programa após programa, há anos, tem sido uma de duas
coisas: uma suposta celebração pós-moderna de alusões e poses, imagética e vazia, ou, o que é ainda
mais comum, uma guerra discursiva desigual entre algum ineficaz porta-voz da autoridade oca e seus
filhos precoces, sua esposa mordaz ou seus colegas sarcásticos. Compare-se o tratamento televisivo
dado a figuras de autoridade nos programas pré-irônicos – Erskine de The FBI, Kirk de Jornada nas
Estrelas, Beaver de Ward, Shirley da Família Dó-Ré-Mi, McGarrett de Havaí 5-0 – ao retrato que a
TV faz de Al Bundy em Married… with Children, do Sr. Owens em Mr. Belvedere, de Homer nos
Simpsons, de Daniels e Hunter em Hill Street Blues, de Jason Seaver em Growing Pains, do Dr.
Craig em St. Elsewhere.
O sitcom moderno, em particular, baseia quase inteiramente seu humor e seu tom no ataque
feroz – inspirado em M*A*S*H – a algum porta-voz caricatural de valores hipócritas, pré-
descolados, empreendido por insurgentes de língua afiada. Do mesmo modo que Hawkeye foi
atacado ferozmente por Frank e depois por Charles, Herb é atacado ferozmente por Jennifer e
Carlson por J. Fever em WKRP, o Sr. Keaton por Alex em Family Ties, o chefe pela equipe de
secretárias em Nine to Five, Seaver por toda a família em Pains, Bundy por todo o planeta em
Married… (sitcom que é a paródia definitiva do gênero sitcom). Na verdade, pode-se dizer que os
únicos personagens de autoridade que retêm alguma credibilidade nos programas pós-80 (além
daqueles como o Furillo de Hill Street e o Westphal de Elsewhere, acossados de forma tão
incansável por pressões e todo tipo de sordidez que o simples fato de se aguentarem semana após
semana os torna heroicos) são aqueles que, sendo bastiões de valores, conseguem comunicar alguma
medida de auto-ironia, rindo de si mesmos antes que algum Grupo impiedoso lhes pule em cima –
como Huxtable em Cosby, Belvedere em Belvedere, o agente especial Cooper em Twin Peaks, Gary
Shandling da Fox TV (cujo show tem uma música-tema que diz: “Esta é a música-tema do show do
Gary”) e o verdadeiro Anjo da Morte dos anos 80, o irônico Sr. D. Letterman.
A institucionalização do cinismo diante da autoridade trabalha a favor da televisão em
diversos níveis. Em primeiro lugar, na medida em que consegue ridicularizar convenções antiquadas
e varrê-las do mapa, a TV é capaz de criar um vácuo de autoridade – e adivinhe o que o preenche
depois disso. A verdadeira autoridade num mundo que agora vemos como construído, e não mais
retratado, passa a ser o meio que constrói nossa visão de mundo. Em segundo lugar, na medida em
que consegue se referir apenas a si mesma e expor os padrões convencionais como ocos, a TV fica
invulnerável aos críticos que atacam seu conteúdo como superficial, grosseiro ou ruim, uma vez que
tais julgamentos remetem a padrões convencionais e extratelevisivos de profundidade, gosto e
qualidade. Além disso, o tom de ironia autorreferencial da TV significa que ninguém pode acusá-la
de tentar impor nada a ninguém. Como aponta o ensaísta Lewis Hyde, a autodepreciação é sempre
“sinceridade com um motivo”.
Ademais, para voltar ao argumento original, quando a televisão consegue atrair João Bobão
para dentro dela pela porta das piadas cifradas e da ironia, alivia aquela dolorosa tensão entre a
necessidade que João sente de transcender a multidão e sua condição inescapável de membro da
Audiência. Na medida em que a TV é capaz de congratular João por “enxergar através” da pretensão
e da hipocrisia dos valores antiquados, consegue induzir nele precisamente o sentimento de
superioridade astuta em que o viciou, mantendo-o dependente de uma assistência televisiva que
detém a exclusividade na indução de tal sentimento.
Na medida em que consegue adestrar os espectadores para rir dos intermináveis foras que os
personagens dão uns nos outros, para encarar o ridículo como modelo de interação social e forma de
arte definitiva, a televisão reforça sua própria e estranha ontologia da aparência: para o telespectador
bem condicionado, a perspectiva mais ameaçadora passa a ser abrir o flanco ao escárnio dos outros
pelo uso de expressões que traiam valores, emoção ou vulnerabilidade. Os outros viram juízes; o
crime é a ingenuidade. O espectador treinado fica então ainda mais alérgico às pessoas. Mais
solitário. O exaustivo treinamento de João nas angústias da impressão que pode provocar nos outros,
de como será visto por olhos vigilantes, torna ainda mais assustadores os encontros humanos
genuínos. Mas a ironia televisiva tem a solução para isso: assistir mais TV começa a ser quase como
uma pesquisa obrigatória, aulas sobre as expressões faciais vazias, entediadas, já-vi-de-tudo-neste-
mundo que João precisa decorar para usar amanhã em sua viagem penosa no metrô fortemente
iluminado, onde multidões de pessoas de expressão vazia e entediada têm pouco a fazer além de
olhar umas para as outras.
O que a institucionalização televisiva da ironia descolada tem a ver com a ficção produzida
nos Estados Unidos? Bem, em primeiro lugar, a literatura americana de ficção sempre tematizou a
cultura do país e as pessoas que o habitam. Em termos culturais, será que devo gastar muito do seu
tempo apontando o grau de influência dos valores televisivos sobre a atmosfera contemporânea de
entediada melancolia, materialismo autodepreciativo, indiferença apática e ilusão de que o cinismo e
a ingenuidade são mutuamente excludentes? Seremos capazes de negar as conexões entre, de um
lado, um meio de comunicação de poder consensual sem precedentes que sugere não haver diferença
real entre imagem e substância e, do outro, a ascensão de presidentes Teflon, a consolidação de
mercados nacionais para o bronzeamento artificial e a lipoaspiração, a popularidade de um estilo
“Vogue” cinicamente sintetizado na ordem “faça pose”? Acaso diremos, sobre a arte contemporânea,
que o desdém televisivo por retrovalores “hipócritas” como originalidade, profundidade e integridade
não tem nada a ver com aqueles estilos de “apropriação” e recombinação em arte e arquitetura nos
quais o “passado vira pastiche”, ou com as solmizações repetitivas de um Glass ou um Reich, ou
com a catatonia contrafeita de um batalhão de sonhadores de Raymond Carver?
Na verdade, a postura de tédio anestesiado e sem expressão – aquilo que um amigo meu
chama de cara-de-garota-que-está-dançando-com-você-mas-obviamente-preferia-estar-dançando-
com-outra-pessoa” – que se tornou a versão da minha geração para o cool tem tudo a ver com a TV.
“Televisão”, afinal, significa literalmente o ato de “ver longe”; e nossas seis horas diárias não só nos
ajudam a sentir proximidade e envolvimento pessoal com os Jogos Pan-Americanos ou a Operação
Escudo do Deserto como, inversamente, nos adestra para lidar com aquilo que é realmente pessoal e
próximo da mesma forma que lidamos com o distante e o exótico, como se estivesse separado de nós
pela física, por uma chapa de vidro, válido apenas como performance, aguardando nossa resenha
cool. A indiferença é na verdade, para os jovens americanos, apenas a versão anos 90 da frugalidade:
cortejados muitas deliciosas horas por dia em troca de nada além de nossa atenção, consideramos tal
atenção nossa principal mercadoria, nosso capital social, e relutamos em gastá-la. Da mesma forma,
considere-se que, nos anos 90, a neutralidade apática e a postura cínica tornaram-se formas claras de
transmitir a atitude televisiva de “destacar-se e transcender” – neutralidade e apatia transcendem o
sentimentalismo, enquanto o cinismo anuncia que o sujeito sabe como as coisas são e, se um dia foi
ingênuo, isso deve ter ocorrido pela última vez ali em torno dos quatro anos de idade.
Mesmo que você não considere a cultura jovem dos anos 1990 tão desoladora assim, nós
certamente podemos concordar num ponto: o de que a ética pop da cultura, conforme definida pela
TV, aplicou um estupendo golpe mortal na estética pós-moderna que queria originalmente cooptar e
redimir o pop. A televisão virou do avesso a velha dinâmica de referência e redenção: hoje é ela que
pega elementos do pós-moderno – a metalinguagem, o absurdo, a fadiga sarcástica, a iconoclastia e a
rebelião – e os remodela para fins de assistência e consumo. Isso vem ocorrendo há algum tempo. Já
em 1984, um crítico do capitalismo como Frederic Jameson alertava que “o que começou como um
espírito de vanguarda foi ganhando corpo e virou cultura de massa”.
Mas o pós-modernismo não “ganhou corpo” na televisão de um momento para o outro em
1984. Tampouco foram de mão única os vetores de influência entre o pós-moderno e o televisivo. A
principal conexão entre a televisão e a ficção contemporânea é histórica. Ambas têm raízes comuns.
A ficção pós-moderna – escrita quase exclusivamente por jovens brancos do sexo masculino e de
alto nível educacional – evoluiu claramente como expressão intelectual da “cultura jovem rebelde”
dos anos 60 e 70. E como toda a Gestalt da rebelião jovem americana foi possibilitada por um
veículo nacional que apagou as fronteiras de comunicação entre regiões e substituiu uma sociedade
dividida em localidades e etnias por aquilo que os críticos do rock batizaram de “consciência
nacional estratificada por geração”, o fenômeno da TV teve tanto a ver com a ironia rebelde do pós-
modernismo quanto com as passeatas de protesto dos Peaceniks.
Na verdade, ao oferecer a escritores jovens de alto nível educacional uma visão abrangente do
quão hipócrita era a imagem que os Estados Unidos tinham de si mesmos por volta de 1960, a
televisão dos primórdios ajudou a legitimar o absurdismo e a ironia não apenas como recursos
literários, mas como respostas sensatas a um mundo ridículo. Pois a ironia – a exploração do
descompasso entre o que é dito e o que se quer dizer, entre o que as coisas parecem ser e o que elas
realmente são – é o velho e respeitável modo pelo qual os artistas tentam expor e detonar a
hipocrisia. E a televisão de 1960, com seus faroestes de pistoleiros solitários, seus sitcoms
paternalistas e seus policiais durões, celebrava o que àquela altura era uma auto-imagem americana
profundamente hipócrita. Miller descreve bem como os sitcoms dos anos 1960, a exemplo dos
faroestes que os precederam, negavam a progressiva impotência dos homens de classe média com
imagens de força paternal e individualismo viril. No entanto, no momento em que esses sitcoms
foram produzidos, o mundo dos pequenos negócios [cujas virtudes eram, à la Hugh Beaumont,
“contenção, probidade e capacidade de julgamento”] havia sido… superado por aquilo que C. Wright
Mills chamou de “demiurgo gerencial”, e as virtudes personificadas por… Papai estavam na verdade
ultrapassadas.
Em outras palavras, a TV americana dos primeiros tempos fazia uma apologia hipócrita de
valores cuja realidade tornara-se atenuada num período dominado por grandes corporações,
entrincheiramento burocrático, aventureirismo além-fronteiras, conflito racial, bombardeios secretos,
assassinatos, escutas telefônicas etc. Não se trata de nenhum acidente que a ficção pós-moderna
tenha ajustado sua mira irônica sobre o banal, o ingênuo, o sentimental, o simplista e o conservador,
pois essas eram precisamente as características que a TV dos anos 60 parecia celebrar como
distintamente americanas.
A ironia rebelde da melhor ficção pós-moderna não era apenas plausível como arte; parecia
ter plena utilidade social em sua capacidade de fazer o que os críticos da contracultura definiram
como uma “negação crítica que deixasse evidente para todos que o mundo não é o que parece ser”. A
sombria paródia dos hospícios feita por Kesey sugeria que os árbitros de nossa sanidade eram
frequentemente mais malucos que seus pacientes; Pynchon reorientou nossa visão da paranoia,
promovendo-a de desvio psicológico marginal a fibra principal no tecido corporativo-burocrático;
DeLillo expôs a imagem, o signo, a informação e a tecnologia como agentes do caos espiritual e não
da ordem social. As doentias investigações de Burroughs sobre o torpor americano detonavam a
hipocrisia; a denúncia de Gaddis do papel deformador do capital abstrato detonava a hipocrisia; as
repulsivas farsas políticas de Coover detonavam a hipocrisia.
A ironia da arte e da cultura do pós-guerra começou da mesma maneira que a rebelião jovem.
Era algo difícil, doloroso, mas produtivo – o soturno diagnóstico de uma doença longamente negada.
As premissas por trás daquela primeira ironia pós-moderna, por outro lado, ainda eram francamente
idealistas: supunha-se que a etiologia e o diagnóstico apontassem para a cura, que a exposição do
cativeiro conduziria à liberdade.
Então como foi que a ironia, a irreverência e a rebeldia se tornaram debilitantes, em vez de
libertadoras, na cultura sobre a qual a vanguarda de hoje tenta escrever? Uma pista pode ser
encontrada no fato de que a ironia ainda está aí, maior do que nunca, depois de trinta anos como
modo dominante de expressão dos artistas antenados. Não é um recurso retórico que envelheça bem.
Como diz Hyde (de quem eu obviamente gosto), “a ironia tem uso apenas emergencial. Estendida no
tempo, é a voz do prisioneiro que passou a gostar de sua cela”. Isso se deve ao fato de que a ironia,
embora prazerosa, tem uma função quase exclusivamente negativa. É crítica e destrutiva, boa para
limpar o terreno. Com certeza era assim que nossos pais pós-modernos a viam. Mas é
particularmente inútil quando se trata de construir alguma coisa para pôr no lugar das hipocrisias que
expõe. Eis por que Hyde parece acertar ao dizer que a ironia renitente é cansativa. Eu acho
perversamente divertido ouvir o discurso de ironistas talentosos em festinhas, mas sempre saio com a
sensação de ter sido submetido a várias intervenções cirúrgicas radicais. Sem falar em atravessar o
país de carro ao lado de um ironista talentoso, ou ler um romance de trezentas páginas em que não há
nada além de sarcasmo espertinho, experiências que nos deixam não apenas vazios mas, de alguma
forma… oprimidos.
Pense, por um momento, nos rebeldes do Terceiro Mundo e seus golpes de Estado. Rebeldes
do Terceiro Mundo são ótimos na tarefa de denunciar e por abaixo regimes hipócritas e corruptos,
mas parecem consideravelmente piores no trabalho mundano e não-negativo de estabelecer em
seguida uma alternativa superior de governo. Rebeldes vitoriosos, na verdade, parecem se sair
melhor quando usam seus talentos de força e cinismo para evitar que outros se rebelem contra eles –
em outras palavras, tornam-se apenas tiranos mais competentes.
E não resta dúvida: a ironia nos tiraniza. A razão pela qual nossa difusa ironia cultural é ao
mesmo tempo tão poderosa e tão frustrante é que é impossível saber com clareza o que quer um
ironista. Toda a ironia americana se baseia num argumento implícito: “Na verdade eu não quero
dizer o que estou dizendo”. Mas então o que a ironia como norma cultural quer dizer? Que é
impossível querer dizer o que se diz? Que talvez seja mesmo uma pena ser impossível, mas acorde
para a vida e pare de sonhar? Acredito que no fim das contas a ironia de hoje está provavelmente
dizendo o seguinte: “Que coisa absolutamente banal você me perguntar o que eu quero dizer”.
Qualquer um que tenha a petulância herética de perguntar a um ironista o que ele na verdade defende
acaba por parecer histérico ou careta. Eis o caráter opressivo da ironia institucionalizada, do rebelde
bem-sucedido demais: a capacidade de interditar a questão sem se reportar a seu conteúdo é, quando
exercida, tirania. Trata-se da nova junta de governo, usando a própria arma que devastou seu inimigo
para se encastelar.
É por isso que o uso do cinismo entediado feito por nossos amigos viciados em TV como
tentativa de parecerem superiores à TV é tão patético. É por isso também que o cidadão que escreve
ficção em nossa cultura televisiva está tão, mas tão ferrado. O que fazer quando a rebeldia pós-
moderna vira uma instituição cultural pop? Aí está, é claro, a segunda resposta à questão de por que a
ironia de vanguarda e a rebeldia perderam potência e se tornaram malignas. Elas foram absorvidas,
esvaziadas e reaproveitadas pelo mesmo sistema televisivo que originalmente buscavam combater.
Não que a televisão seja culpada de alguma maldade aqui. Apenas de ter feito sucesso tão
desmedido. É isso, afinal, que a TV faz: identifica, suga e então reapresenta o que imagina que a
cultura americana quer ver e ouvir sobre si mesma. Ninguém e todo mundo tem culpa pelo fato de a
televisão ter começado a coletar exemplos de rebeldia e cinismo como imago populi dos filhos
antenados do pós-Segunda Guerra. Mas foi um colheita macabra: as formas de nossa melhor arte
rebelde tornaram-se meros gestos, bordões, não apenas estéreis mas perversamente escravizantes.
Como poderia a própria ideia de rebelião contra a cultura corporativa conservar algum sentido
quando a Chrysler Inc. anuncia caminhões invocando “A rebelião Dodge”? Como ser um iconoclasta
genuíno quando o Burger King vende anéis de cebola com o slogan “Às vezes você precisa quebrar
as regras”? Como um autor de Ficção da Imagem pode ter esperança de aguçar o senso crítico das
pessoas para a cultura televisiva por meio de paródias da TV como um empreendimento comercial
voltado para os próprios interesses, quando as paródias da Pepsi, da Subaru e da FedEx sobre
comerciais voltados para os próprios interesses rendem tanto dinheiro? É quase uma lição de história:
estou começando a entender exatamente por que os americanos da virada do século 20 temiam o
anarquismo e os anarquistas acima de tudo. Se a anarquia chega a vencer, se a falta de regras vira a
regra, o protesto e a mudança se tornam não só impossíveis, mas incoerentes. Seria como votar em
Stalin: um voto para acabar com todos os votos.
Eis, assim, o quebra-cabeça diante do escritor americano que respira nossa atmosfera cultural
e, ao mesmo tempo, vê-se como herdeiro do que quer que houvesse de bacana e valioso na literatura
de vanguarda: como se rebelar contra a estética televisiva da rebelião, como fazer os leitores
acordarem para o fato de que nossa cultura televisiva se transformou num fenômeno cínico,
narcisista e essencialmente vazio, quando a televisão celebra com regularidade precisamente essas
características em si e em seus espectadores? São as mesmas perguntas que o pobre popologista
idiota de DeLillo já se fazia em 1985 [em “Ruído Branco”] sobre a América, o mais fotografado dos
celeiros:
“Como era o celeiro antes de ser fotografado?”, disse ele. “Qual era sua aparência, em que
aspectos ele diferia dos outros celeiros, em que pontos era semelhante aos outros celeiros? Não
podemos responder essas perguntas porque lemos as placas, vimos as pessoas tirando fotografias.
Não conseguimos nos colocar fora da aura. Somos parte da aura. Estamos aqui, somos agora.”
Ele pareceu imensamente satisfeito com isso.

WALLACE, David. Forster. E Unibus Pluram: a televisão e a ficção nos Estados Unidos;
tradução Sérgio Rodrigues. Disponível em https://todoprosa.com.br/a-aura-da-ironia-final/. Acesso
em 13 de Outubro de 2021

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