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S0Erzo WT SROISTFRIDU SIQSEITPIYN] sayredsaq] guUay Descartes expde nesta obra sua doutrina sobre as ‘questdes de Deus e da alma de modo mais amplo € completo do que no Discurso do método, onde ele se contentou em expor apenas alguns principios. Nas “Meditagdes" a filosofia cartesiana ¢ exposta nao segundo um esquema autobiogréfico como no “Discurso” mas com um tom propria € sistematicamente filos6fico; isto porque as “Meditagdes” estavam destinadas aos fil6sofos € unicamente a eles. As Meditagées metafiscas exerceram uma influéncia decisiva. Elas ndo s6 introduziram um novo critério da verdade e colocaram a razio no centro da intuigo da vida, insurgindo-se contra as pretensGes e a autoridade da tradigio e do costume, mas também levantaram alguns dos mais importantes problemas da metafisica para os ‘quais nem sempre era possivel propor solugdes. Seja como for, elas foram um fermento ativo para © pensamento filos6fico posterior, suscitando adeptos ¢ adversirios ardorosos. Projo rfc. Kata Harun Tera Inge Test Tad geno, Voge (eae). Muses Doeesino, One MEDITAGOES METAFISICAS Incluso no Acervo da UNIFESP Campus Guaruthos 24575 MEDITACOES METAFISICAS René Descartes Inodueio enous HOMERO SANTIAGO Tradugio, MARIA ERMANTINA GALVAO ‘Traduglo dos textes introdutérios HOMERO SANTIAGO. Martins Fontes ‘So Paulo 2005 Tid orignal: MEDTATIONS MAPHISIQLES. Cori © 300, iar Mari Pte Etre Lae ‘Sl abs, para pron ei. Mate fr 00 “edie ut es ean emia Dé AlieiDA PRADO GAL evi ein a traagio (nde PAPE Pang de prs a Pepi do Erde eS Pols) Praag don using do Seer Revises rear Mari Sine Lat rusia dnFattes as enc de Cal Poa) (Ciara Beara ir Sr Docaie Rel OE, etnies metas / Ret Dexa ita (Gahran dost tes ame Saag De Si Plo: Mie Pn, 2005 (Cc) “Thal cei Mésain dptss 1. Mente Sige Hamer Th. Se, Tins pra ean semi Todos os dicios dest edi para a tngueportiguesaresrvadot Lrari Martins Fonts Esto Lia. ‘Rua Contig Ramah, #30 01335-00) Sv Panto SP Bras Tek (11) 2413677 Fax (11) 31011082 ‘emails infe@martingontes comb. hip wnmarinsfontescombr para Hanfang Indice Introducao Cronologia .... Meditag6es telativas a primeira filosofia Preficio a epistola dedicatoria.... Preficio ao leitor... O livreiro ao leitor Resumo das seis meditagdes seguintes Meditagdo Primeira Meditacao Segunda Meditagao Terceira Meditacao Quarta Meuitayay Quinta Meditagao Sexta : Principios da filosofia de René Descartes demons- trados 4 maneira geométrica Bibliografia Indice analitico 109 135 147 153 Introdugao Em carta de setembro de 1640, enderegada a Marin ‘Mersenne, amigo que cuidava da edicdo das Meditacées, Descartes aventava a hip6tese de fazer imprimir duas ou és dezenas de exemplares da obra, designada como “meu pequeno tratado de Metafisica”, e distribui-los a alguns tedlogos com o objetivo de solicitar-lhes uma opiniao so- bre 0 contetido e, se fosse 0 caso, fazer imprimir no mes- mo volume trés, quatro ou até mais aprovagdes cesses primeiros leitores. Movido pelo mesmo intento de prudén- cia, planejava o autor dedicar a obra “aos Sis. da Sorbonne em geral, a fim de rogar-Ihes serem meus protetores na causa de Deus”. Esta segunda parte do projeto foi realmente levada a cabo, ¢ por isso desde a primeira edicao em latim, de 1641, © volume das MeditagGes € aberto por uma epistola dedi- cat6ria que da conta dos planos gerais da obra e trata de pedir a aprovacao e protecao ca mais prestigiosa univer- sidade do mundo catélico de entao. Por muito tempo, negou-se a obtengao da aquiescéncia da Sorbonne a obra € tanto a dedicatoria quanto 0 pedido foram vistos mais como ardil de um filésofo precavido e consciente do teor de suas inovacées do que como deliberacao de bom gra- _—Descartes___ do. Pesquisas mais recentes, entretanto, fundadas em do- cumentos, sugerem coisa diversi: no s6 a aprovagio foi concedida como havia inteira coeréncia entre a obra e a solicitacdo a universidade, pois que as Meditacées verda- deiramente intentavam langar as bases de um novo siste- ma de saber para todo 0 mundo cristianizado, e para tanto era incontornavel o trato com temas contiguos aos da teo- logia, ciéncia em que a Universidade de Paris tinha maxi- ma autoridade! Quanto ao outro ponto expresso na carta, a distri- buicao de exemplares prévios a tedlogos, a coisa nao se deu bem assim. A pedido de Descartes, o padre Mersen- ne enviou o manuscrito da obra a alguns “homens dou- tos” que the julgariam © valor, adiantando dtividas ou discordincias para que © autor pudesse respondé-las Jas ao texto inicial. Nao eram todos teGlogos, nem am vinte ou trinta; nao obstante, dai nasceram seis, séries de objegdes: a primeira de um tedlogo catélico ho- landés, Johannes Caterus; a terceira de Thomas Hobbes filosofo e matemiatico inglés; a quarta e a quinta de dois fi- lésofos franceses, respectivamente Antoine Arnauld ¢ Pier- te Gassendi; enfim, a segunda ea sexta série sto devidas 4 téalogos ¢ fildsafis andnimos Na segunda edicia 4 obra, amsterdamesa, em 1642, 0 ciclo fecha-se com 0 actés- 1. tim primeiro de agosto de 1640 a assembicia universtiia vecebeu a ‘obra de Descartes e designou uma comissto para avals-la; na sessdo seguinte «da mesma assembléia, todas as disposicées da seseio anterior slo dias "lias ‘eaprovadas",o que dia entender que pagina de esto da primeira ediga0 das Meditagdesestava correta a0 aowuncias 3 obra cum... approbatione Doctoram, ‘ou seja, 0 texto contava com a aprovagio dos doutores da Faculdade de Teo logia de Paris. CL Jean Robert Armogathe, “Lapprobation des Meditationes par la Faculté de théclogie de Paris (641), Bulletin canésienne XX, Archives de philesophie, 57, 1, 994 Meditacdes metafsicas cimo de uma sétima série de objegdes feitas pelo jesuita Bourdin. Descartes respondeu as objecdes todas e com acrescentou 4 sua obra um sem-namero de preciosa ginas de esclarecimentos que permitem um vislumbre do diilogo filos6fico na época classica, pois ai o pensamen- to cartesian passa pelo crivo de objetores representan- tes das diversas tendéncias filos6ficas de entao. corre porém que, mesmo presa 4 época como tudo © que é hist6rico, elas, as Meditacdes, lograram combinar as circunstancias de seu tempo com uma dose acentua- da daquela perseveragao subjetiva que costumamos cha- mar genialidade; de modo que mesmo destacado de sua hist6ria, da trajetria do autor, e da soma de explicacdes exigidas pelos contemporneos, nao chega ela a perder © essencial de seu vigor, cujos componentes intelectuais € culturais podem ser apreciados pelo leitor de qualquer época, As intengdes cartesianas de formulaciio dum comple- to sistema do conhecimento, cujo cume pode-se dizer as Meditagées, tiveram precedentes importantes, € no con- ‘vém esquecé-los. £ o caso de um texto abandonado in- completo perto do final dos anos 20 do XVII, as Regras para a direcao do espirito?. Neste opisculo é propugna- 2, Numa traduso mas rente ao latin, Regras para a direedo do engenbo (Regulee ad directionem ingensd, ou ainda, como jé se prop6s 2 partir de uma ‘wadigio de manusertos nem sempre concordantes, Ragras tes e caras para 4 divegio do engenbo e a busca da verdade. Sobre a data de composicao do xi Descartes. da a marcha rumo a sabedoria universal (universalis sa- pientia), 0 que tem por fim uma ciéncia matemética da rea- lidade, dita mathesis universal, que tudo considera pela 6tica da ordem e da medida; ademais, para a emissao de “juizos s6lidos € verdadeiros sobre tudo 0 que se lhe depara’, as Regras exigiam antes de tudo 0 mais a consi- deracao do entendimento humano, seu funcionamento limites. Outro marco importante do itinerdrio cartesiano que leva 4s Meditagdes foi, em 1637, a publicagao de tés en- saios cientificos (A didptrica, Os meteoros, A geometria) precediclos pelo conhecido Discurso do método. Ai o Des- cartes cientista apresenta importantes frutos de seu mé- todo na fisica e na geometria € precedentemente cuida de fundamentarthe a validade ¢ alcance mediante um ver- dadeiro relato de conversao (© desinimo com a ciéncia estabelecida, que Descartes conhecera nos anos de apren- dizaclo no colégio jesuita de La Fléche, engendrando uma nova) e uma ripida exposi¢io metafisica, portadora de inovagdes de monta na fundagio da ciéncia a partir de principios certos ¢ a delimitacZio de um campo seguro pa- ra 0 conhecimento de tudo 0 que o homem pode saber. Houve também outros escritos, em especial 0 Tralee do mundo, 0 Tratado do homem ¢ um ou outro esboco de metafisica; no entanto, € nas Meditacées que se tem bela a exposicio acabada e amadurecida de quase tudo 0 que ‘optsculo (controversa) © sou aporte tebrico, wejam-se a biografia de Gene- viewe Rodis-Lewis 0 estudio de Jean-Luc Marion, ambos indicados na biblio- ‘graf inal. & observvel que das verses em portugues nenhuma se baseia sobre a mais recente ediglo enti, devida @ Giovanne Crapalli (texto critica acompaniado da versio holandesa do sfcalo XVI, Haia, Marinas Nihof, 1966), ‘o que pode chegar a comprometera leitura mats refinaa x Meditagdes metapisicas Descartes fizera até ent no tocante a metafisica; s6 en- contrando elas concorrente nos Principios da filosofia, publicados em 1644 com vista a ser uma “suma” do cat- tesianismo: livro de grande divulgacao e uso escolar, que ‘em quatro partes (dedicadas respectivamente aos “ Gipios do conhecimento humano”, aos “das coisas mate- riais”, ao “mundo visivel” e a “Terra”) expde niio s6 a me- tafisica como também a fisica, a astronomia, etc., quase todos os intimeros ramos do saber a que Descartes se de- dicara desde a juventude. De modo geral, 0 que se pode apreender com toda nitidez dessas obras é 0 escopo maior do cartesianismo: fundar uma nova ciéncia, um novo sistema do saber a substituir o antigo. Com efeito, se Descartes tantas vezes através de suas obras serve-se da metifora do recomecar pelos fund: mentos a construgio do edificio do saber € porque com feito jé existia uma inteligéncia estabelecida pelos sécu- os e muito bem assentada nas salas de aula, aquela que desde 0 século XII se formara no Ocidente cristio e rece- bera o nome de “escolistica”, estribada principalmente no rin aristotelismo*, Contra este saber institucionalizado e impe- rante, as Meditagées propdem uma refundagao radical, ja que parte exatamente da raiz da arvore da filosofia tal como alhures descritas pelo proprio Descartes: “toda a fir losofia € como uma drvore cujas raizes so a metafisica, © tronco € a fisica € os ramos que saem deste tronco so todas as outras ciéncias, que se reduzem a trés principais, a saber, a medicina, a mecdnica ¢ a moral; entendo a mais 3. Sobre a flosofa escolistica, vide Btienne Gilson, flosfia ma Idade ‘Média, Sio Paulo, Martins Fontes, 1995, notadamente capitulos VIFIX, xt Descartes alta e mais perfeita moral, que, pressupondo um inteiro conhecimento das outras ciéncias, € 0 tltimo grau da sa- bedoria” ‘A primazia do enfrentamento, porém, para falar com mais justeza, nao cabe a Descartes € tampouco ao século XVI, mas sim a cultura renascentista, Pela descoberta de novos textos da Antiguidade greco-latina e o trabalho de- votado de eruditos humanistas entre os séculos XV € XVI, a cultura escolistica vai de pouco em pouco perdendo algum terreno para os novos homens de letras. O movi- mento, pode-se dizer, culmina na portentosa obra de Eras- ‘mo; espécie de pedagogo dos novos tempos, cujos traba- Ihos dardo argumentos de sobra para 0 remodelamento da formacao escolar, inclusive dos colégios jesuitas, que, estabelecidos a partir de meados do século XVI, ocasio- nario renovado impulso ao ensino € nfo raro topam com uma série de teses erasmianas difusas*. Ainda que fidelis- simo a Igreja romana até a morte, 0 trabalho de Erasmo. era fruto de uma nova €poca que comecava a livrar-se dos estreitos limites do catolicismo de Roma, cuja conseqiién- cia mais vistosa sera a reforma protestante impulsionada por Martinho Lutero e Jodo Calvino. O certo é que em meados do décimo sexto século a cena era completa para a ruina da hegemonia imposta pela orem apostlica ro- mana na Europa, o que arrasta 0 antigo continente a de- “i. Principas da flsofia, “Cara do autor aquele que waduatu © veo 5. Gf, jacques Chomarat, “Paice et rhétorique chee frasme”, Bulletin de FAssctation Guilaume Bude, 0? 1, 1986, Pierre Mesnard, "Comment ls thologiens de Louvain lstent I loge de la foe’, Bulletin de Vassocatton Guillaume Budé, 3, 196%; Jean-Clayde Margolin, “La fortune

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