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Tradução Lauren Moon

FLORENCIA BONELLI
Índia Brancas II
A Volta do Ranquel

Tradução Lauren Moon


Em 1879, Buenos Aires vive seu momento
mais conturbado. Roca prepara a campanha para o
deserto a fim de concorrer à presidência da Nação.
Laura Escalante, mulher de destaque da vida cultural e
política de sua cidade nunca esqueceu o índio
Nahueltruz Guor, convertido no excêntrico Lorenzo
Dionisio Rosas, volta a sua terra depois de seis anos
para vingar-se de quem o traiu e quebrou seu coração.
Este encontro irá perturbar a ambos. Eles nunca mais
serão os mesmos.

Tradução Lauren Moon


Tomás, dediquemos este livro a sua mãe,
a melhor pessoa que conheço.
A minha irmã Carolina, então.
Eu a quero profundamente.

Tradução Lauren Moon


Os índios jamais esquecem uma ofensa recebida...
A vingança entre os índios é coisa sagrada.
Tudo que eles têm de agradecidos e humanos,
Eles têm de rancorosos e vingativos.

Memórias do ex-cativo Santiago Avendaño


De MEINRADO HUX

Tradução Lauren Moon


Árvore Genealógica da Família Montes

Tradução Lauren Moon


Capítulo I

A amante do doutor Riglos

A missa recém começava e as vozes se elevavam para cantar o


Kyrie eléison1. Laura Escalante o entoava com vontade, movida mais por
sua inclinação ao canto que por sua devoção religiosa. O coro de meninos e
os dramáticos acordes do órgão, que inundavam as naves da Catedral
Metropolitana, levaram-na a aceitar que, apesar de tudo, dona Luisa del
Solar tinha razão ao se opor em comemorar o segundo aniversário da morte
de Julián Riglos na capela da baronesa, como era conhecida a capela da
casa de La Santíssima Trinidad, construída a mando da bisavó de Laura,
Pilar de Mora y Aragón, esposa de Abelardo Montes, barão de Pontevedra.
Embora a rua já levasse o nome de San Martín, na mansão dos Montes os
portenhos2 ainda a chamavam de La Santíssima Trinidad.

- Querida - havia interposto dona Luisa dias atrás - como você


pensa reunir todas as pessoas que participarão do aniversário de Juliancito
na capela da baronesa, que, apertados, só admite umas vinte pessoas? Sabe
quão querido e apreciado ele era, todos seus amigos vão querer estar ali,
além dos seus parentes, dos meus e dos dele.

Apesar de Julián Riglos ter voltado a se casar depois da morte


de Catalina del Solar, para dona Luisa ele continuava sendo Juliancito, seu
adorado genro. Que ele o tivesse feito com Laurita Escalante só exaltou o
carinho e grande respeito que ela tinha por ele. Por isso, a matrona portenha
se acreditava com direito de fazer e desfazer quando se tratasse de honrar a
memória de Juliancito, e Laura permitia. Dona Luisa del Solar, sentada
junto a ela no primeiro banco, entoava as estrofes de Gloria com a voz
estridente e desafinada, pronunciando pessimamente o latim, sem se
intimidar, ao contrário, demonstrava a segurança e superioridade de uma
soprano. Laura levou o leque à boca para esconder um sorriso, afinal de
contas, ninguém aprovaria que a viúva risse na missa de seu finado marido.

De fato, as amizades e conhecidos de Laura Escalante já


estavam curados do espanto, e se a jovem viúva começasse a rir às
gargalhadas enquanto o sacerdote pronunciasse o sermão, não teriam se

1
Kyrie eléison é uma oração da liturgia cristã. Existem expressões similares em alguns salmos, e nos Evangelhos, mas o
testemunho mais antigo de seu uso litúrgico remonta ao século IV, entre a comunidade cristã de Jerusalém, e, no século V,
na missa do rito romano, como prece litânica e resposta a determinadas invocações. (N. da Tradutora)
2
Natural de Buenos Aires (N. da tradutora)

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surpreendido. Da Escalante esperavam qualquer coisa. Por acaso ela não
tinha dado o que falar, exatamente há dois anos, ao se negar a usar luto
quando faleceu seu esposo Julián? Todos atribuíram a decisão à frieza com
que sempre o havia tratado. A verdade é que Laura achava absurda a
imposição e o preto, mais do que desagradável.

- O preto nunca me vestiu bem e não vou andar mal arrumada


porque a sociedade decidiu que esta é a cor com que se honra aos mortos.
Eu honro Julián em meu coração, pelo carinho que tive por ele e lembrarei
sempre dele em minhas orações, apesar da tormenta que foi nosso
casamento - manifestou no dia em que suas tias e avó propuseram mandar
tingir seus vestidos.

De qualquer maneira, evitou usar as cores deslumbrantes que


seus amigos estavam acostumados, limitando seu guarda-roupa a
tonalidades discretas de malva, cinza e marrom. Também não usou joias
caras, apenas as clássicas pérolas. Essa tarde, para a missa, escolheu
cuidadosamente o vestido, em tafetá de seda púrpura, com pescoço e
punhos de renda preta. A pedido de Magdalena, sua mãe, recomendou à
costureira que o confeccionasse sem decote, completamente fechado,
apesar de ser janeiro e o calor, insuportável. Tinha escolhido um colar e uns
brincos de pingente de ametistas, e resplandecia em sua mão esquerda o
brilhante do tamanho de um grão de bico que Julián lhe deu de presente,
meses depois de seu casamento, e que ela jamais usou enquanto seu marido
viveu. Como sempre, embaixo do vestido e preso com um alfinete de ouro
em seu espartilho, usava um medalhão de prata alemã.

Disfarçadamente, Laura correu o olhar até a ala direita da


Catedral onde estavam sentados no primeiro banco alguns dos melhores
amigos de Julián. Repassou esses rostos familiares com atenção agora que
todos pareciam concentrados na homilia do monsenhor Mattera. O
primeiro, Nicolás Avellaneda, que desde 74 ostentava o título de presidente
da República Argentina, uma posição com nome bombástico, mas na
realidade bastante instável, continuamente ameaçada por revoltas nas
províncias e traições partidárias. Laura gostava de Nicolás Avellaneda, e
em várias ocasiões tinham conversado e concordado sobre a imperiosa
necessidade de combater o analfabetismo, tarefa que a mantinha ocupada
grande parte do tempo. O último censo tinha mostrado um número
alarmante na Argentina, e sessenta e um por cento dos habitantes não sabia
ler nem escrever. Ele tinha disparado uma série de medidas destinadas a
aniquilar este mal, em especial durante o governo de Sarmiento, quando
Avellaneda era ministro da Educação Pública. Laura pensou: “esta noite
vou perguntar a Nicolás se acredita ter conseguido diminuir esses sessenta

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e um por cento”, porque esta noite os mais íntimos foram convidados a
jantar na casa de La Santíssima Trinidad.

Junto ao presidente estava seu ministro da Guerra e Marinha, o


general Julio Roca, a quem Laura tinha conhecido em Ascochinga no ano
de 73, como marido de uma aristocrata cordobesa3, uma das Funes Diaz,
Clara, pacata e melindrosa na opinião de Laura, irremediavelmente
ensimesmada com a sociedade de Córdoba que tão mal havia tratado sua tia
Blanca Montes, Com Roca, entretanto, a atração tinha sido mútua. Laura
não o achava apenas sedutor, mas irreverente e seguro de si, o que o
convertia decididamente em alguém de seu interesse. Ainda que não tivesse
confessado a Maria Pancha, tinha certeza de que se tivesse a oportunidade,
Julio Roca teria proposto convertê-la em sua amante. Roca desviou seu
olhar até ela e seus olhos se encontraram momentaneamente, até que o
ministro apenas torceu seus lábios em um sinal de alerta e Laura baixou seu
rosto, pois tinha ficado enrubescida.

Tratou de se concentrar no sermão, mas um movimento


fortuito entre as colunas da esquerda atraiu sua atenção. Reconheceu-a de
imediato, ainda que estivesse completamente de preto e com uma mantilha
sobre o rosto. Tratava-se de Loretana Chávez. No ano passado, apesar de
não terem anunciado a missa na coluna social, Loretana também tinha
assistido, daquela vez na Igreja de San Inagcio. Laura comentou com Maria
Pancha, que, implacavelmente, declarou:

- Fui eu quem avisou a Loretana sobre a missa pelo doutor


Riglos.

Laura olhou fixamente sua criada, que, com a mesma


tranquilidade, explicou:

- Você deve muito a esta mulher, que graças ao amor


dispensado ao doutor Riglos, fez seu casamento mais suportável. Ou pensa
que Riglos teria lhe deixado tão tranquila se não tivesse outra que o
apaziguasse? Ainda que ele nunca tenha se apaixonado por ela, sabia que
ela estava ali, sempre esperando por ele, e isso era suficiente para encher o
vazio que você não pensou em ocupar.

- Agora ela é uma santa e eu devo lhe ser agradecida -


enfureceu-se Laura.

- De certa forma, sim.

3
Natural de Córdoba – Argentina (N.da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Pois eu a odeio!

Maria Pancha não insistiu, consciente do motivo que


alimentava esse rancor, que em nada se relacionava com os cinco anos de
namoricos da taberneira com seu marido. O olhar de Loretana topou com o
de Laura Escalante, e em seguida voltou a se esconder atrás da coluna. A
ira e o desprezo inundaram Laura, que se abanou energicamente. Cravou o
olhar em monsenhor Mattera e, embora simulasse apreciar as palavras de
elogio que o bispo dirigia a seu falecido marido, chegavam-lhe como um
som distante e alheio. Seus pensamentos tinham-se voltado à casa vizinha
à província de Flores, um lugar afastado do centro da cidade onde Julián
tinha instalado Loretana; ali ele a visitava quase que diariamente. Naquela
manhã, no começo de janeiro de 77, particularmente abafadiça, Julián se
queixou de uma forte dor de cabeça e Laura, durante o café da manhã,
obrigou-o a beber as famosas gotas de Hoffman que, segundo tia Carolita,
eram furor em Paris para combater enxaquecas. Julián partiu para o
escritório, como de costume, e Laura não voltou a pensar nele, como de
costume. Horas mais tarde, enquanto a casa de La Santíssima Trinidad
dormia a sesta, insistentes golpes da aldrava na porta principal sacudiram
da letargia a seus ocupantes. Um rapazinho, com aspecto de indigente,
explicou a Maria Pancha que só falaria com a senhora Riglos. Laura, que
escrevia em seu quarto, apresentou-se no vestíbulo e pegou o bilhete que o
mensageiro lhe estendia. Evidentemente tinha sido rabiscada com pressa.
Rezava: «SENHORA RIGLOS, SEU MARIDO PASSOU MAL EM MINHA CASA E
CHAMA POR VOCÊ. LORETANA CHÁVEZ». Mais abaixo detalhava o endereço.
Maria Pancha entregou umas moedas ao mensageiro, enquanto Laura
explicava as novidades a seus avós, sua mãe e suas tias.

- Irá a casa dela? - escandalizou-se a avó Ignacia.

- É sempre tão oportuna, Ignacia - resmungou dom Francisco

Laura ordenou a Magdalena que enviasse o doutor Eduardo


Wilde ao endereço indicado no bilhete. Depressa, com o quarteto de bruxas
alimentando um bate-boca atrás dela, deixou a sala e foi para seu
dormitório para se arrumar. O velho Eusebio, chofer de toda a vida dos
Montes, já preparava os cavalos. Meia hora mais tarde, cruzavam a galope
a Plaza de La Victoria rumo ao bairro de San José de Flores.

A própria Loretana abriu a porta. Laura apenas moveu a


cabeça em sinal de saudação e entrou, com Maria Pancha ao seu lado.
Loretana as conduziu em silêncio. Julián jazia na cama de casal de um
quarto primorosamente decorado. Laura se aproximou da cabeceira e

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contemplou seu marido atentamente. Parecia pálido, e a careta amarga na
boca indicava que sofria. Segurava seu braço esquerdo à altura do peito.

Julián piscou lentamente. Levou um pouco ao reconhecer sua


esposa.

- Temi que não viesse - balbuciou, e Laura se sentou na


cadeira que lhe aproximou Loretana.

- Como não viria! - disse em voz baixa, compelida pelas


circunstâncias, pelo silêncio, pela penumbra, pela pouca força que emanava
do corpo desse homem a quem tinha considerado invencível.

- Temi que não viesse - insistiu Riglos - porque me odeia.

- Não odeio você - assegurou Laura.

- Sim, me odeia. E nada explica que eu a ame além da


compreensão.

Laura percebeu que Loretana se movia furtivamente e deixava


o quarto. Julián, alheio ao martírio de sua amante, estendeu a mão sem
esforço, e Laura a segurou. Contemplaram-se diretamente nos olhos.

- Deveria ter se casado com Loretana e permitido que eu


fizesse o mesmo com Nahueltruz Guor - expressou por fim.

- Jamais - replicou Julián -. Não com um índio.

Laura se freou em confessar que esse índio era filho de sua tia
Blanca Montes, neto de Juan Manuel de Rosas e do doutor Leopoldo
Montes, bisneto do barão de Pontevedra, tataraneto do duque de Montalvo
e sobrinho em segundo grau de Lucio Victorio Mansilla. Quis dizer, em
poucas palavras, que pelas veias de Guor corria sangue com mais brasões e
tradição que no dele. E se absteve porque ela não havia amado Guor por ser
um índio ou um patrício, ela o amou simplesmente por ser o homem que
era.

Apesar de o doutor Eduardo Wilde brincar com Julián e lhe


assegurar que em poucos dias voltariam a se encontrar na confeitaria de
Baldraco, Laura viu outro panorama. De maneira nenhuma o moveria dessa
cama; e assim Laura e Maria Pancha o visitaram na casa de Loretana
diariamente, pela tarde. Abria-lhes a doméstica, e as convidava a entrar,
enquanto Laura permanecia no quarto junto a seu marido, Loretana

Tradução Lauren Moon


aguardava na cozinha. A presença da senhora Riglos não a incomodava,
dispôs-se a suportar isso e outros inconvenientes sempre que Julián
permanecesse em sua cama, onde ela pudesse cuidá-lo e mimá-lo como
quisesse. Amava-o como jamais pensou que chegaria a amar esse homem a
quem, a princípio, só havia considerado como melhor meio para escapar do
tédio e a mediocridade de Rio Cuarto. Julián Riglos permitiu que ela se
apaixonasse. Tinha feito com que ela se sentisse confortável com a
segurança que seu dinheiro e experiência proporcionavam, encantou-a com
seus modos galantes, tão distintos dos soldados de Fuerte Sarmiento, e a
entretinha com uma infinidade de histórias que estava acostumado a lhe
contar, tinha vivido na Europa, e isso, para ela, equivalia ao máximo que
uma pessoa poderia aspirar. Tinha-lhe prometido que algum dia a levaria
lá.

A princípio, surpreendeu-se que um homem assim rondasse


seus pensamentos mesmo depois dele deixar sua casa; com o tempo,
acabou admitindo que o doutor Riglos encarnava o príncipe azul dos contos
de fadas, que a converteria na princesa que ela ansiava ser. Julián a
protegeu das perversidades de uma cidade grande e cosmopolita, que a teria
devorado sem misericórdia; tinha-lhe ajudado a melhorar e a superar-se, e
tinha satisfeito muitos caprichos e vaidades que passaram por sua cabeça.
Tinha-lhe dado uma filha, Constanza Maria, sua razão de viver. Às vezes,
contrariada, com a consciência carregada de remorsos, perguntava-se por
que Deus lhe dava tanto, quando ela tinha sido responsável por tanto dor.
Muitas vezes relembrava seus anos de juventude, quando só se importava
em converter-se em uma princesa de cidade, lembrava-se das loucuras e
dos desatinos, também se lembrava de Nahueltruz Guor, a quem
continuava amando secretamente, um amor muito diferente do que sentia
por Julián, um amor menos agradecido e respeitoso, mais carnal e
mundano, mais como a Loretana de antes.

No quinto dia, em uma tarde nublada em que Julián estava


inquieto e irritadiço, Loretana pediu à senhora Riglos umas palavras. Laura,
cansada da situação, incomodada pelo calor, aceitou a contra gosto e entrou
no escritório. Loretana foi direto ao ponto e disse que tinha que lhe pedir
perdão, que sua consciência assim pedia.

- Sinceramente, Loretana - expressou Laura com


aborrecimento inegável -, não sinto que deva perdoar você em
absolutamente nada. Sua relação com meu marido...

- Não é por isso que tenho que lhe pedir perdão.

Laura levantou as sobrancelhas.


Tradução Lauren Moon
- A consciência me tortura por uma coisa que aconteceu anos
atrás, algo que mudou minha vida e a sua. A mim, a sorte me sorriu. Você,
em troca, foi muito infeliz.

Laura ficou rígida. As palavras de Loretana tinham ferido seu


orgulho. Não gostava que as pessoas soubessem que era infeliz, que
soubessem que era incompleta e frustrada. Desde seu retorno a Buenos
Aires, esmerou-se em criar a imagem de uma mulher sem preconceitos e
satisfeita. Embora Maria Pancha dissesse que ela queria tapar o sol com a
peneira, Laura se esforçava nesse propósito. Que Loretana, a quem ela
considerava bem inferior, lhe espetasse esta verdade tão meticulosamente
escondida, deixou-a profundamente irritada.

- Sua infelicidade, senhora Riglos - continuou Loretana -, é


toda por minha culpa. Fui eu quem disse ao coronel Racedo, aquele dia em
Rio Cuarto, que você estava no estábulo.

Laura, que tinha evitado olhá-la nos olhos, moveu a cabeça


com rapidez e cravou-lhe o olhar.

- Fiz de propósito - admitiu à mulher, disposta a expor a


verdade completa, a tirar esse peso de cima dela de uma vez e para sempre
-. Sabia que Nahueltruz estava apaixonado por você, eu os vi juntos. Ah,
como ele a amava! Senti que morria porque acreditava que Nahueltruz era
meu. Mas ao vê-los juntos, percebi que nunca tinha sido meu. Senti raiva,
despeito, ciúmes... E disse a Racedo que você o esperava no estábulo,
porque sabia que Nahueltruz e você estavam ali, despedindo-se. Por minha
culpa, Racedo e Nahueltruz brigaram naquele dia. Por minha culpa,
Nahueltruz teve que matá-lo e converteu-se em um fugitivo. Por minha
culpa...

Laura deu-lhe uma bofetada atravessada e Loretana chorou


sinceramente angustiada, suas mãos sobre o rosto. Laura ficou olhando
para ela, a mente vazia, atenta ao pranto de Loretana, que terminou por
crispar seus nervos. Queria que ela se calasse. Não suportava seu gemido
lastimoso, martelando em seus ouvidos. Um impulso malévolo a fez olhar
ao redor. Seus olhos toparam com um peso de papel de mármore e seus
dedos se fecharam em torno dele; os nódulos ficaram brancos e as unhas
vermelhas. Levantou-o no ar e se distraiu olhando o contraste de sua mão e
o mármore verde, consciente do efeito da pedra fria sobre sua pele, de quão
contundente seria ao cair sobre a cabeça da Loretana. Imaginou o som do
crânio ao partir e o aroma metálico do sangue, que encharcaria rapidamente
o tapete. Seu estômago deu um nó e o asco deu-lhe vontade de vomitar.

Tradução Lauren Moon


Como se a tivesse queimado, soltou o peso de papel, que caiu com estrondo
sobre a mesa.

- Nem sequer vale a pena - expressou ao passar junto de


Loretana.

Julián Riglos morreu naquela noite, e Laura informou à


companhia funerária que procurasse o corpo no bairro de San José de
Flores e o trouxesse para a casa da Rua de La Santíssima Trinidad, onde a
capela da baronesa se preparava para receber o caixão.

Laura se ajoelhou e o coroinha fez soar o sino. “Que seja, -


disse consigo mesma - prestarei atenção no momento da consagração da
eucaristia”, e não voltou a dirigir seu olhar à coluna da esquerda.

Tradução Lauren Moon


Capítulo II

O Ministro da guerra e marinha

Laura Escalante entrou na sala com o andar majestoso de uma


rainha. Como em um cortejo, era seguida por seus avós, suas tias, sua mãe
e Maria Pancha. Embora a missa tivesse terminado as cinco em ponto, as
saudações no átrio tinham durado mais do que o previsto. Eram seis e meia
da tarde e, em menos de três horas, os convidados para jantar começariam a
chegar. A família, sem pronunciar uma palavra, encaminhou-se ao interior
da residência para se preparar.

Maria Pancha seguiu Laura até seu quarto. Apesar de, entre
domésticas, cozinheiras, lavadeiras, choferes e jardineiros, a casa de La
Santíssima Trinidad contar com uma dúzia de serventes, Maria Pancha se
encarregava pessoalmente de Laura, de sua roupa, de seu banho, da
limpeza de seus aposentos, de cada aspecto e detalhe de sua vida. Do
penteado e cuidado de seu cabelo, disso se ocupava especialmente, porque
há alguns anos converteu-se no interesse de sua menina. Nunca esteve tão
longo, abundante, saudável e brilhante. Antes de lavá-lo com os sabonetes
e cosméticos, nos quais Laura gastava fortunas em lojas de produtos de
além-mar, Maria Pancha dedicava meia hora para massagear suas pontas
com azeite de amêndoas; só o enxaguava com água de chuva que recolhia
da cisterna e com a qual preparava chá de camomila, que preservava o loiro
dourado; de vez em quando, lavava-o com vinho tinto comum, que o
deixava resplandecente. Depois de secá-lo ao sol, Maria Pancha o partia em
duas partes; com uma delas fazia uma trança pequena que enroscava em
torno do seu cocuruto e, com a outra, uma espessa e compacta como as
cordas de um navio, que caíam além de sua cintura.

- Há algum tempo que você presta mais atenção a seu cabelo


que em seus escritos e livros - comentou Maria Pancha uma manhã em que
passava um azeite aromático para desembaraçá-lo -. Lembro-me -
prosseguiu - que antes quase tinha que prender seus pés e suas mãos para
lavá-lo e penteá-lo.

O olhar tímido de Laura procurou no espelho o inquisitivo


Maria Pancha.

- Era o que mais gostava em mim - expressou em um sussurro,


e baixou a cabeça quando o reflexo de sua criada se tornou indecifrável.

Tradução Lauren Moon


Maria Pancha abriu o guarda-roupa e tirou o vestido que Laura
usaria essa noite. Depois do segundo ano de viuvez, as normas
protocolares se suavizavam, e cores mais atrevidas voltavam a fazer parte
de seu guarda-roupa. Laura, cansada das tonalidades pálidas, das pérolas e
da cara lavada, tinha decidido usar um traje que, sabia, faria arregalar os
olhos dos senhores e franzir os cenhos das senhoras. Em renda marfim,
com anáguas na exata tonalidade, as mangas até o cotovelo e a costas,
porém, sem estarem forradas, a pele de Laura poderia ser vista através do
entrelaçado bordado do tecido. O decote cavado, pronunciado até um
ponto, sem dúvida, escandaloso, permitia-lhe ostentar qualquer joia
longamente esquecida em uma caixinha de joias. Segundo madame Du
Mourier, a costureira de Laura e das mulheres mais ricas de Buenos Aires,
a renda sobre a pele nua do ombro, braços e costas era a última moda em
Paris.

- A gargantilha de brilhantes ou a de safiras? —perguntou


Laura, enquanto mostrava as joias, uma em cada mão.

- A de safiras —opinou Maria Pancha -. Dona Ignacia vai


armar um escândalo quando a vir com este vestido - refletiu, com os olhos
nas costas virtualmente nuas de sua menina.

Laura desprezou a advertência. Fazia tempo que a avó Ignacia


havia deixado de ser a Medusa de sua infância. O mito, em parte, tinha sido
destruído pelas Memórias de sua tia Blanca Montes, quando a desceram do
pedestal para convertê-la em um ser humano comum, com mais faltas e
desacertos que as virtudes que a própria Ignacia de Mora y Aragón se
gabava de possuir. Laura tinha perdido o medo por ela e, apesar de
continuar respeitando-a, tratava-a com indiferença, às vezes, inclusive, com
cinismo.

Depois de seu exílio de dois anos em Córdoba, Laura tinha


retornado a Buenos Aires escoltada por seu marido, o doutor Riglos, e por
uma vastíssima fortuna, herança de seu pai. Embora a princípio tivesse
receio em retornar, a dor e a desesperança, que a converteram em uma
mulher muito diferente da jovenzinha que tinha partido para Rio Cuarto no
começo de 73, proveram-lhe a couraça para enfrentar sem hesitação o
mundo hostil da capital. A Laura Escalante - agora Riglos - que pôs o pé na
casa de La Santísima Trinidad naquela tarde de abril de 75, o fez com a
segurança que lhe conferia saber que seus integrantes dependiam
economicamente dela, e com a frieza e o desapego nascidos da amargura.
Logo ficou evidente para todos, inclusive para o próprio Riglos, que
ninguém opinaria sobre sua vida, suas decisões ou seu dinheiro. Laura

Tradução Lauren Moon


Escalante se converteu em um ser feroz e implacável. Até sua avó Ignacia
lhe temia.

- Certo que dona Ignacia fala pouco ou nada desde que perdeu
esse dente - continuou discorrendo Maria Pancha, enquanto trançava seu
cabelo -. Bendito seja o oco na gengiva de sua avó! - proferiu de repente, e
Laura explodiu em gargalhadas.

Maria Pancha deteve seus dedos e ficou olhando para ela, um


olhar terno e maternal, enquanto Laura inspirava baforadas de ar para
reprimir a gargalhada. Nada fácil rir dentro de um espartilho.

- Que bonita fica quando ri! - disse, e Laura ficou séria,


perturbada pela observação tão incomum de Maria Pancha -. Oxalá você
risse mais frequentemente. Faz-me lembrar da Laura de antes.

- Aquela Laura não existe mais - assegurou sombriamente, e


ficou de pé.

- Esta noite vem o general Roca - mencionou Maria Pancha.

- Sim, eu o convidei e aceitou. Julián o apreciava


sinceramente. Era justo que viesse esta noite. Roca o ajudou com a última
parte de seu livro.

- Hoje no mercado chegaram até mim umas intrigas muito


interessantes - comentou Maria Pancha como que de passagem, e continuou
ocupando-se de guardar a roupa.

- Pois bem, que intrigas? —impacientou-se Laura.

- Dizem que, atualmente, o general Roca é movido apenas por


dois interesses: converter-se no presidente da República em 80 e levar para
a cama à viúva de Riglos. Suponho que não se surpreenda. Disseram-me
também que, no Club del Progreso, existem apostas para ver quem será o
primeiro a contar com seus favores depois do luto. Roca é o preferido.

Bateram à porta, e Maria Pancha se apressou em abrir.


Eugenia Victoria, prima da Laura, e sua filha mais velha, Pura Lynch,
entraram no quarto. Pura se jogou nos braços de Maria Pancha, que a
abraçou e beijou seu cocuruto várias vezes, enquanto sua mãe, Eugenia
Victoria, saudava Laura com dois beijos, segundo a moda nas cortes
europeias.

Tradução Lauren Moon


- Tia Laurita! - exclamou Pura, e ficou olhando para ela.

- Não se preocupe, Laura - falou Eugenia Victoria -, sua


afilhada só veio ver seu vestido. Vai embora imediatamente.

- Oh, tia Laura! —prosseguiu a moça—. É mais formoso do


que madame Du Mourier afirmou!

Pura se aproximou lentamente, concentrada nos detalhes do


vestido de renda. A seus olhos, tia Laura parecia mais uma fada dos contos
de Perrault4 que uma mortal.

- Não vai me dar um abraço? Nem sequer um beijo? - queixou-


se Laura, divertida ante a reação exagerada e espontânea de sua sobrinha.
Pura a agarrou pela cintura e afundou seu rosto no colo de sua tia, que a
abraçou e beijou sua testa.

- Menina! - escandalizou-se Eugenia Victoria -. Solte


imediatamente sua tia Laura! Não percebe que enruga seu vestido?

- Como se tivesse importância —interpôs Maria Pancha,


contente, pois cada vez que Pura Lynch estava por perto, Laura mudava
suas feições.

- Perdão, tia - desculpou-se a moça -. É que está tão linda! -


insistiu -. Esta amanhã, quando fomos à madame para que tomasse nossas
medidas, contou-nos que Eusebio acabava de levar seu vestido, o que
vestiria esta noite. Disse-nos: «C'est la plus belle robe de Buenos Aires! Et,
vraiment, ni plus ni moins, c'est la plus belle de toutes!5» - exclamou,
levando as mãos ao peito.

- Sinceramente - admitiu Eugenia Victoria -, o vestido é


magnífico. De qualquer maneira, teria que ter sua silhueta para vesti-lo com
tanta graça. - E ensaiou uma careta desesperançosa ao dar uma olhada na
frente do espelho. Depois de cinco gravidez, a cintura da qual se
vangloriava quando jovem só era uma lembrança.

- Daria com gosto tudo o que tenho (riqueza e silhueta) -


assegurou Laura -, em troca da metade da sua felicidade junto a José
Camilo.

4
Charles Perrault - Pai da literatura infantil, autor de A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela e outros tantos. (N.
da Tradutora)
5
É o mais belo vestido de Buenos Aires. E, verdadeiramente, sem mais nem menos, é o mais belo de todos (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Eugenia Victoria, uma das poucas que conhecia, em detalhes,
a história de Laura, a contemplou com tristeza.

Laura, que odiava inspirar esse sentimento, voltou para sua


penteadeira e continuou se maquiando. Diante da afirmação de sua tia, Pura
ficou calada e pensativa.

- Mas, tia - irrompeu novamente, com o entusiasmo de quem


encontrou a solução para um grave problema -, agora que completou o
segundo aniversário da morte de tio Julián, pode se casar de novo e ser tão
feliz como mamãe.

- Menina, que absurdo você está dizendo! - escandalizou-se


Eugenia Victoria, enquanto Laura e Maria Pancha riam.

- Oh, mamãe, para você sempre estou dizendo absurdos. - E


sem reparar no olhar de censura de Eugenia Victoria, Pura se ajoelhou
perto de Laura -: Tia, por favor, por favor, use este vestido na minha festa
de quinze anos, por favor. Será a mais bonita da festa, todas terão inveja de
você.

- Nesse dia - pronunciou Laura -, você será a mais bonita da


festa.

- Nós duas seremos as mais bonitas da festa. Prometa-me que


usará este mesmo vestido no dia da minha festa.

- Madame Du Mourier confeccionará outro para essa ocasião -


observou Laura.

- Certamente não será tão formoso como este - se empacou a


moça.

- Esta noite vem à metade de Buenos Aires para jantar aqui,


todos já terão visto o vestido. O que dirão as pessoas? Que não uso um
vestido novo para um acontecimento tão especial como a apresentação à
sociedade da minha afilhada?

- Desde quando se importa com o que as pessoas falam? —


reprovou Pura, e as três mulheres ficaram pasmas -. Sempre faz e desfaz
sua vontade, isso é o que diz a avó Ignacia. Não deixaria de me agradar só
por atender os comentários das pessoas, não é?

Tradução Lauren Moon


Laura acariciou sua bochecha e sorriu languidamente. Tinha
muitos sobrinhos (seus primos tinham sido prolíficos) e, apesar de albergar
sentimentos muito profundos por todos eles, por Pura Lynch a unia um laço
mais forte e transcendente.

Na vitalidade e imprudência de Pura, em sua vontade de viver


e experimentar tudo, estava acostumada a reconhecer aquela Laura
Escalante a quem se referia Maria Pancha uns minutos antes, a jovem que
tinha morrido em Rio Cuarto seis anos atrás.

- Prometo-lhe - concordou Laura com isso -, usarei este


vestido no dia da sua festa de quinze anos.

- Obrigada, obrigada, tia Laura! Estará mais linda que tia


Esmeralda.

- Maria Pancha - interveio Eugenia Victoria -, acompanhe, por


favor, Pura até o carro. Teodoncio a aguarda na porta.

Laura se despediu de sua sobrinha, e Maria Pancha a conduziu


para fora do quarto. Eugenia Victoria sentou-se em frente à penteadeira
junto de sua prima e aplicou pó em seu nariz.

- Não sei o que fazer com esta criatura —suspirou.

- Absolutamente nada, isso é o que deve fazer. Deixe-a ser


como ela é, livre e sem preconceitos, cheia de vida e luz. Em sua
personalidade reside a grande atração de Purita. Quem já chegou?

—Até um momento atrás o avô Francisco entretinha um grupo


e entre eles distingui o general Roca, Eduardo Wilde, Miguel Cané e Carlos
Guido y Spano, que não sei como conseguiu que deixasse seu
confinamento e se apresentasse esta noite. A avó Ignacia me disse, meio
zangada, que não tinha convidado à viúva de meu irmão Romualdo.

- Tia Esmeralda? - ironizou Laura, imitando Purita -. Sabe que


não a tolero.

- Sim, mas é a viúva de Romualdo - apontou Eugenia Victoria.

- Era isso que ela queria, ser a viúva de seu irmão, para herdar
sua fortuna e esbanjá-la em frivolidades e amantes.

- Não diga isso. Romualdo gostava muito dela. Esmeralda é da


família.
Tradução Lauren Moon
- Não da minha - expressou Laura, e ficou em pé para mostrar
que não tocaria no assunto de Esmeralda Balbastro.

~0~

Em consideração ao motivo do jantar (a apresentação póstuma


do livro Historia de La República Argentina do doutor Riglos), nem sequer
dona Ignacia foi contra servir comida criolla6. Deixou-se de lado as
suntuosas receitas francesas que costumavam ser servidas à mesa dos
Montes para dar lugar a empanadas, humita em chala7, assado de carne e
miúdos de animais, batatas, milhos, cebolas e pimentões cozidos na brasa, e
outros pratos típicos. De sobremesa, a seleção não era menos típica:
pasteizinhos de doce de batata-doce e marmelo, bala de mel, pudim de doce
de leite, ambrosia e uma variedade de frutas em calda de açúcar,
aromatizadas com cravo da índia. O general Roca, sentado á direita de
Laura, comentou:

- Nada como um bom assado argentino? Não entendo esse


empenho em preparar comidas do Velho Continente quando a nossa é bem
superior. Eu nunca como melhor que quando estou com a tropa, quando os
soldados preparam esses assados suculentos e saborosos. Não há melhor
assado que preparado por um soldado argentino - afirmou com orgulho.

- É de seu agrado este assado, general? - quis saber Laura, e


apreciou de canto de olho a pelerine azul, com galões, bordados e medalhas
de cores, que lhe caía muito bem.

- Um dos melhores que comi ultimamente - assegurou Roca e,


sem cerimônia, olhou a pele de seu ombro, apenas velada pelos bordados
de renda.

- Mandei que viessem dois peões da estância de Pergamino, os


dois melhores para assar na opinião do capataz.

Em comparação com outros convidados, o general Roca era


uma visita recente em La Santísima Trinidad. A amizade com Julián Riglos
tinha começado em 74, quando o então ministro da Guerra, Adolfo Alsina,
os apresentou. Voltaram a se ver em poucas ocasiões em razão de Roca,
baseado em Rio Cuarto, visitar a capital com escassa regularidade. A
amizade, entretanto, consolidou-se através de um fluido intercâmbio
epistolar no qual Roca, a pedido de Riglos, completava cenas da guerra de
65 contra o Paraguai, conhecida como a Tríplice Aliança, que constituía a
6
Aquela que tem comida espanhola e hispano-americana (N. da Tradutora).
7
Espécie de pamonha, ou cuscuz paulista, enrolado em folha de milho, bem típico na Argentina (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


parte final do último volume de sua Historia de La República Argentina.
Roca estendeu-se especialmente em descrever a cruel batalha do Curupaytí,
e não só mencionou os enganos estratégicos e táticos, mas os horrores que
teve que presenciar naquele meio-dia, quando os soldados da Aliança
caíam como moscas frente aos ataques paraguaios. A contribuição de Roca
ao livro de Julián foi incalculável e seu nome foi mencionado no capítulo
de Agradecimentos. Da guerra contra o Paraguai, Julio Roca só tinha
conhecido acertos militares que alavancaram sua carreira meteórica. Podia-
se afirmar, sem possibilidade de engano, que era o militar mais importante
da cena política argentina.

Quanto a outros convidados, Laura admitiu tratar-se de


homens e mulheres da mais refinada posição, com maneiras impecáveis,
conversa culta e interessante, rostos agradáveis e trajes tão elegantes como
os que seriam encontrados nos salões da aristocracia parisiense. Embora se
sentisse à vontade entre eles (afinal de contas, por nascimento e educação
pertencia ao círculo ali formado), invariavelmente, em sua companhia,
assolava-a um sentimento escuro e incômodo que lhe impedia de desfrutar.

- Recentemente recebi carta de seu irmão - comentou Roca.

- Posso imaginar o teor da carta - asseverou Laura.

- O padre Agustín Escalante é dos poucos missionários que


conheço. Refiro-me a um verdadeiro missionário - apontou Lucio Mansilla,
e monsenhor Mattera levantou a vista do prato com ar ofendido.

- Assim como padre Marcos Donatti - disse Laura, e Mansilla


assentiu de forma solene.

- Seu irmão se queixa - prosseguiu Roca - da péssima condição


dos soldados e índios que vivem no Fuerte Sarmiento. Afirma que os
salários e as provisões às vezes não chegam porque os comissários os
roubam ou os jogam, e quando chegam é com tanto atraso, que às vezes, há
muito já estão completamente comprometidos com comerciantes e donos
de tabernas.

- Pobre do meu irmão - suspirou Laura -. Parece um Quixote


enfrentando os moinhos de vento.

A conversa voltou-se para o assunto obrigatório dos últimos


meses: a campanha para o deserto8, a que Roca vinha desenhando com
8
A Campanha do Deserto foi uma campanha militar, entre 1878-1885, pelo governo da República Argentina, contra os povos
índios, principalmente os mapuches (tribo de Nahueltruz Guor), que tinha por objetivo exercer o efetivo domínio sobre a região

Tradução Lauren Moon


meticulosidade de ourives desde a morte do último ministro da Guerra,
Aldolfo Alsina, e para a qual tinha obtido a aprovação e orçamento do
Congresso, com a famosa Lei 9479 de outubro do ano anterior.

Em pouco mais de três meses, um exército de seis mil homens,


armados com Remington10, tentaram estender a linha da fronteira sul até o
rio Negro, arrasando acampamentos e ataques que se interpusessem em seu
caminho. Diziam que, na realidade, esta campanha seria simplesmente o
golpe de misericórdia aos índios do sul, pois há um ano o exército
argentino executava uma tarefa estratégica de desgaste que dividia e
debilitava as tribos.

- A sarjeta de Alsina foi um erro desde o começo - opinou o


doutor Estanislao Zeballos, e várias vozes se uniram para apoiá-lo.

O jovem doutor Zeballos se referia à sarjeta de três metros de


largura e dois de profundidade que o anterior ministro da Guerra e Marinha
tinha mandado escavar em 76, paralela à linha da fronteira sul, com o
objetivo de dificultar a movimentação de gado furto de ataques, uma
medida amparada em reminiscência medieval, que na opinião do general
Roca, só tinha dificultado o roubo de gado, mas que de maneira alguma o
exterminou.

- Essa sarjeta - prosseguiu Zeballos - nos limita, e impõe um


limite imaginário entre os territórios nacionais e as terras desses selvagens
que é completamente inaceitável. Não devemos dar ao índio a impressão de
que queremos chegar só até ali, quando, na verdade, Terra Adentro nos
pertence por direito.

- Que direito? - quis saber Laura.

Contemplaram-se com a frieza que caracterizava suas relações


desde o dia em que Riglos os apresentou. Zeballos, que tinha querido e
admirado seu professor e amigo Julián Riglos, sabia que a mulher
magnífica e inteligente que nesse momento sustentava-lhe o olhar com a
ousadia de um guerreiro celta, tinha mostrado desamor e sido cruel com seu
marido, convertendo-o em um homem sombrio e pessimista, propenso à
bebida. Não lhe perdoava. Tampouco por ter se negado a publicar seu livro

dos Pampas e da Patagônia, que a Argentina considerava como parte de seu território, mas que pertencia aos povos originários.
Essas expedições militares contavam com o apoio dos espanhóis e do governo argentino contra esses grupos indígenas, tendo sua
principal batalha em 1879. Efetivamente, na década de 1870, a campaña foi comandada por Julio Argentino Roca. (N. da
Tradutora)
9
Esta Lei 947 destinava 1.700.000 pesos para incursões militares, chamada de conquista del desierto, juntamente com as tribos
indígenas aliadas. A finalidade era dar término aos ataques índios, ao mesmo tempo incorporar os territórios dos Pampas e da
Patagônia. Lei proposta por Julio Roca. (N. da Tradutora)
10
Tipo de arma (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


La conquista de quince mil léguas no ano anterior, porque toda Buenos
Aires sabia que, embora a Editora del Plata estivesse sob a
responsabilidade de Mario Javier, um riocuartense doutorado em Filosofia
e Letras, a verdadeira proprietária era a viúva de Riglos. Finalmente, o
ministro Roca conseguiu publicá-lo com recursos do governo.

- Direito? - repetiu Zeballos -. Pois o direito que nos dá a


cultura, a civilização e o progresso! Não podemos cair na mesma
indolência dos selvagens, fazer vista grossa e ficar de braços cruzados,
quando eles ocupam terras que são vitais para o desenvolvimento da
república e que se encontram completamente desperdiçadas, porque, está
claro, estes selvagens quão único sabem fazer é ocupá-las.

- Isso não é certo - objetou Laura, e percebeu que a tensão


entre os convidados aumentava -. Assombra-me, doutor Zeballos, que
estando você tão acostumado ao tema dos índios do sul, diga que só
ocupam a terra quando é sabido que a trabalham e com grandes lucros.
Provavelmente as técnicas que utilizam para lavrá-la careçam do avanço
das usadas em nossos campos, mas isso não significa que mantenham a
terra ociosa. Além disso, criam gado, não apenas bovinos, mas também
ovelhas, éguas e cavalos. Neste último não há quem os supere.

- Senhora Riglos - interrompeu Zeballos, com visível


sarcasmo -, me assombra que você seja tão acostumada em matéria de
selvagens.

- Minha neta está inteirada no tema dos índios, pois seu irmão,
o padre Agustín Escalante, é missionário em Rio Cuarto e trabalha com os
ranqueles, como mencionou um momento atrás o coronel Mansilla -
explicou em vão dom Francisco Montes porque, na realidade, os presentes
suspeitavam que o manifesto interesse da senhora Riglos pelos índios tinha
outras raízes e que a essas raízes, Estanislao Zeballos tinha-se referido em
seu comentário.

Durante meses, os portenhos tinham escutado histórias a


respeito de um romance entre a então senhorita Escalante e um ranquel,
durante sua fuga a Rio Cuarto em 73. Além das laboriosas explicações de
Julián Riglos, que não cansava de afirmar a amigos e conhecidos, que
Laura jamais tinha se envolvido com um selvagem, mas ao contrário, tinha
sido vítima de um deles, e que, felizmente, o coronel Racedo a salvou da
lascívia e da degradação do imundo ranquel, pagando com sua vida pelo
ato heroico. Isto afirmava o «pobre Riglos», como estavam acostumados a
chamá-lo depois de seu casamento com Laura Escalante. Mas, as vozes que
asseguravam que o namorico tinha existido e com viés de novela, nunca
Tradução Lauren Moon
sossegaram de tudo e, apesar dos anos, ainda se repetiam em voz baixa as
histórias e detalhes aos mais jovens, ou a algum avoado que nunca as
tivesse escutado.

- Devemos ocupar essas terras —apontou Wilde, em tom


conciliador— não só para não as deixar ociosas, mas sim pelo risco que
existe de que nos arrebatem os chilenos, que, há anos, olham-nas com
carinho.

Laura decidiu acabar com a discussão a respeito dos direitos


sobre os territórios indígenas, não porque se preocupasse em incomodar os
amigos de Julián, mas para economizar um desgosto a Magdalena, sua
mãe, que estava se contorcendo. Ela guardou silêncio; outros, ao contrário,
acharam o tópico dos mais estimulantes e prosseguiram com a polêmica.
Preponderavam as vozes de Mansilla, Zeballos e Sarmiento, três galos com
esporões muito proeminentes para coexistir sem atritos nem disputas.

- E sua esposa, Roca? - interessou-se o ex-presidente


Sarmiento, cansado da atenção quase exclusiva que a viúva de Riglos
dispensava ao ministro da Guerra e Marinha.

- Em Santa Catalina, com sua família - respondeu, e o modo


cortante e frio que utilizou contrastou com suas maneiras normalmente
galantes.

- A estância de Santa Catalina? - perguntou dona Felicitas


Cueto de Guerrero -. Entendi que pertencia a uma missão jesuítica antes
que os expulsassem em 1767.

- Isso mesmo - respondeu Roca.

- Não me estranha - observou Sarmiento, com certa ironia -,


porque Córdoba é uma província absolutamente desprovida de conventos e
igrejas. Na verdade - prosseguiu -, Córdoba, toda ela, é um grande claustro
onde a maioria de seus habitantes são sacerdotes, monges, oblatos,
sacristãos ou coroinhas, com mentalidade e comportamento dignos da
época do obscurantismo.

Monsenhor Mattera, muito ocupado com uma suculenta parte


de lombo, não pôde replicar imediatamente, e perdeu a vez quando Roca
manifestou:

- Concedo-lhe que os cordoveses estão arraigados à tradição


católica mais que em outras partes e que, em ocasiões, fica difícil fazê-los

Tradução Lauren Moon


raciocinar além dos dogmas e das pregações dominicais, mas, devo admitir,
são boas pessoas, caridosas e gentis.

- Não, não o são - interpôs Laura, e a sala emudeceu.

O general Roca a olhou carrancudo, enquanto sopesava se


devia replicar e mostrar-se ofendido. Essa era a segunda vez na noite que a
senhora Riglos o hostilizava com seus comentários, primeiro ao opor-se a
sua política com os selvagens, e agora ao se referir desdenhosamente à
sociedade cordovesa, de quem sua mulher, Clara Funes Díaz, era parte até
a medula. Finalmente, relaxou o cenho quando os olhos pretos e faiscantes
de Laura o desafiaram. «Muito linda para me zangar», decidiu, e a olhou
com picardia, quase com vontade de provocá-la.

- Mas você é cordovesa - escutou-se a voz de Mansilla.

- Meu pai costumava dizer - falou Laura, e afastou sua vista do


general -: «Não é porque se tenha nascido em um chiqueiro, que seja um
porco».

Os convidados a olharam com incredulidade até que Sarmiento


lançou uma gargalhada que de imediato se uniu a dos outros, à exceção de
monsenhor Mattera, que tentava tomar a palavra irremediavelmente
sufocada pelas gargalhadas.

Laura se inclinou sobre a esquerda e se dirigiu a Nicolás


Avellaneda, quase em um sussurro, para perguntar a respeito dos últimos
planos para abrir escolas na província de Entre Ríos. Como sempre que
conversava com Avellaneda, se compenetrou no tema e não voltou a
prestar atenção às indagações que se desenvolviam ao redor, até que uma
palavra, uma simples palavra, provocou-lhe um tombo no estômago.
Alguém disse: Racedo. Laura levantou o olhar e seus olhos congelaram nos
de Maria Pancha, que lhe indicou com uma careta rápida que se
recompusesse e continuou servindo a sobremesa.

- Eduardo Racedo deixou o forte de Rio Cuarto faz menos de


um mês -explicou o general Roca -, em 12 de dezembro para ser mais
exato. Vai acompanhado de um exército não muito numeroso. Na verdade,
sua expedição tem como objetivo primitivo o reconhecimento do terreno,
localizar trilhas, fontes de água e os acampamentos. Com certeza -
demarcou Roca, e um sorriso irônico levantou suas comissuras -, ninguém
será capaz de detê-lo se a Providência o colocar em frente a um ranquel,
em especial aquele que assassinou seu tio Hilario. Seu ódio cego pelos

Tradução Lauren Moon


selvagens pode-se converter no ponto determinante para uma vitória
segura.

Laura apoiou os talheres e levou o guardanapo à boca para


ocultar que tremia. Sabia que Roca era um homem que não dava ponto sem
nó, e interpretou esse comentário tão naturalmente colocado como uma
estudada revanche por seus ataques anteriores. «Olho por olho, dente por
dente», sentenciou. Jamais voltaria a jogar com Roca. Bebeu um gole de
vinho tinto para reanimar-se. Com muita compostura deixou o guardanapo
ao lado do prato, indicando o final do jantar. Embora correspondesse à
dona Ignacia dá-lo por terminado, Laura ignorou o protocolo e ficou em pé.
De repente lhe pareceu que aquele jantar e o que a motivava eram uma
grande farsa que deveria acabar logo, tinha que se livrar dessas pessoas,
ficar só e pensar, refugiar-se em seu mundo feito de lembranças e nada
mais.

Os convidados a seguiram à sala sem falações nem olhares


significativos. Graças aos esforços de dona Luisa del Solar, de tia Carolita
e de Eugenia Victoria, os ânimos retornavam e uma conversa moderada ia
ganhando terreno ao silêncio de momentos atrás. Roca, compungido por
seu deslize, aproximou-se de Laura e lhe pediu desculpas.

- Foi infeliz meu comentário a respeito da morte do coronel


Hilario Racedo - expressou -. Minha estupidez foi imperdoável, mas quero
lhe assegurar que longe de minhas intenções trazer-lhe lembranças
dolorosas nessa noite tão especial. Peço-lhe que me perdoe. - Com
veemência, pegando em sua mão, praguejou -: diga que me perdoa ou não
poderei voltar a olhá-la no rosto.

Laura levantou o olhar e topou com o rosto moreno e atraente


de Roca muito perto do dela. Para sua surpresa, deu-se conta de que o
padecimento do robusto militar era sincero. Descobriu também no brilho de
seus olhos castanhos e na firmeza de seu gesto a determinação que tinha
encontrado em poucos homens, possivelmente só em dois, em seu pai, o
general José Vicente Escalante, e em seu amante, o cacique Nahueltruz
Guor. Soube com certeza que o destino dos índios do sul estava selado se
do general Roca dependesse.

- General, não há nada que perdoar. Aquilo aconteceu há


muitos anos e, sim, é uma lembrança dolorosa, mas disso você não tem a
culpa. Não se atormente com algo que agora carece de importância.

- Diga que me perdoa, e o faça de coração.

Tradução Lauren Moon


- Eu o perdoo, se isso necessita.

Roca beijou sua mão e se afastou na direção de seus amigos,


que conversavam animadamente, enquanto fumavam cigarros em suas
piteiras e saboreavam o conhaque e outros digestivos. Mario Javier e seu
ajudante, Ciro Alfonso, já repartiam, como obsequio entre os convidados,
os volumes de Historia de La República Argentina, amostras recebidas em
meio a estardalhaço e assombro, pois a edição era muito luxuosa. A
Editora del Plata não tinha economizado gastos, e Mario Javier aceitava os
elogios com acanhamento. Ninguém deixou inadvertida a simples
dedicatória: «Para Laura».

Guido y Spano leu um discurso, que formava o prólogo do


livro, onde destacava a grandeza de Riglos como pessoa e sua
extraordinária capacidade como advogado e historiador. Referiu-se a ele
em termos dos mais louváveis; chamou-o de «um homem brilhante de
nosso século». Prosseguiram os elogios quando Nicolás Avellaneda e
Diego Sarmiento tomaram a palavra. Finalmente se brindou com
champanha e, ao grito de «Por Julián!», todos bateram as taças.

Só ficaram Lucio Victorio Mansilla e sua mãe, dona Agustina.


Laura os acompanhou até o vestíbulo, onde recebeu com paciência as
últimas adulações e os despediu afetuosamente. Caminhou para seu quarto,
passando pela sala de jantar, onde as domésticas cochichavam enquanto
empilhavam pratos, limpavam cinzeiros e recolhiam taças. Por fim, a noite
tinha terminado.

Maria Pancha a aguardava com a cama feita e o déshabillé11 e


as pantufas prontas. Folheava o primeiro livro da Historia de La República
Argentina, que largou de imediato sobre a mesa de cabeceira, quando Laura
entrou nos aposentos. Ajudou-a a desfazer-se do vestido de renda, do
espartilho, das anáguas e da combinação de cambraia. Laura se sentou em
frente à penteadeira, e Maria Pancha desfez sua trança e retirou as presilhas
que sustentavam aquela que coroava sua cabeça. Laura tirou suas joias,
enquanto Maria Pancha escovava seu cabelo.

- Esta foi uma noite difícil -murmurou-. Tenho uma enxaqueca


persistente e aguda.

- Vou preparar uma infusão de valeriana para você - disse


Maria Pancha -. A única coisa que você tem é cansaço.

11
Peignoir - roupão de noite fino; (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Por um momento, nenhuma das duas voltou a falar e só se
escutava o som da cerda da escova sobre o cabelo de Laura.

- É um alívio saber que finalmente o livro de Julián foi


publicado -comentou -. Mario Javier fez um excelente trabalho.

- Foi sua última vontade antes de morrer - lembrou Maria


Pancha -. Não tinha me dito que dedicou o livro a você.

- Para mim também foi uma surpresa quando li o manuscrito.


Pensei que iria dedicar a Loretana ou sua filha, Constanza Maria.

- Nunca foi capaz de compreender a imensidão do amor desse


homem. Amou-a até o último momento, apesar de Loretana e de Constanza
Maria.

- Fala como se, em vida, tivesse adorado Julián quando


sabemos que não o suportava.

- Eu não gostava do doutor Riglos, é certo, mas isso não


impede que reconheça que amou você loucamente.

- Estava obcecado por mim, não me amava - Laura se irritou.

- É uma linha muito sutil aquela que separa a obsessão do


amor. O amor apaixonado é uma espécie de obsessão. Também é muito
sutil a linha que separa o amor do ódio. Nunca esqueça isso - enfatizou
Maria Pancha -. Às vezes o que parece ódio é só um profundo amor muito
contrariado.

Laura desprendeu o medalhão de seu espartilho e o abriu.


Fazia tempo que tinha entrelaçado as duas mechas e sempre se
sobressaltava com o contraste de suas tonalidades, um tão preto, o outro tão
loiro. Como tinham sido Nahueltruz e ela, um tão distinto do outro. Por um
tempo, convencidos de que as diferenças não contavam, animaram-se a
fazer planos, mas a realidade acabou com seus sonhos e lhes fez
compreender, de forma bem dolorosa, que as diferenças eram
intransponíveis.

- É penoso viver com certas lembranças, mas impossível


abandoná-las -expressou Maria Pancha, sombriamente -. Segue tão
apaixonada por esse índio como no primeiro dia.

Tradução Lauren Moon


—Só permito a você que me fale com tanta franqueza -
admitiu Laura, sem sinais de irritação -, você que me conhece como
ninguém, olha para mim e sabe o que penso. Suas palavras expressaram o
que eu mesma não me atrevo a dizer por medo, nem sequer me atrevo a
aventá-las secretamente. Porque tenho medo, Maria Pancha. Medo de
descobrir que continuo amando-o, que a ferida que com tanto afã trato de
cicatrizar segue tão aberta como no primeiro dia. Uma vez você me disse
que o tempo, o carinho e o cuidado de meus amigos fariam com que eu
esquecesse. Agora receio que sua lembrança permaneça comigo para
sempre e que altere minha vida por completo.

Maria Pancha deixou a escova sobre a penteadeira e


aproximou uma cadeira junto a Laura. Levantou seu rosto pelo queixo e
secou suas lágrimas com o avental.

- Vamos, diga-me - deu-lhe alento -, me diga tudo o que não se


anima sequer a pensar. Diga para sua Maria Pancha, que a conhece pelo
direito e pelo avesso, como você bem diz.

- Oh, Maria Pancha! - soluçou Laura -. O certo é que, apesar


do tempo e de tudo o que passou, nunca deixei de lamentar a grande
desilusão de minha vida. Só aprendi a aguentá-la. Desde que o perdi,
aprendi a viver sem esperanças nem ilusões. As horas, os dias, as semanas
são segmentadas como miçangas em um colar e formam os meses, os anos.
Assim transcorre minha vida. Nahueltruz Guor estava presente em todos
meus pensamentos quando deixei Rio Cuarto, no começo de 73, e está até
hoje, seis anos depois.

Tradução Lauren Moon


Capítulo III.

A casa da Rua Chavango

Durante o verão, as famílias decentes abandonavam o


mormaço de Buenos Aires, que se tornava pestilenta e insalubre, e se
refugiavam no frescor de suas quintas e estâncias. Os Montes partiam
religiosamente para San Isidro. Para deleite de sua mãe, que adorava esse
lugar, Laura tinha recuperado a quinta hipotecada no tempo de Justiniano
de Mora y Aragón, o marido bígamo de tia Dolores, e que anos mais tarde
Francisco Montes, aconselhado por Julián Riglos, vendeu para pagar
dívidas longamente adiadas.

Recuperar o patrimônio da família era uma das coisas que


dava maior satisfação a Laura, não só as propriedades, mas também as
obras de arte, as joias, os móveis, a baixela. Gastou uma fortuna para
reformar a casa de la Santísima Trinidad, que parecia cair aos pedaços no
ano em que retornou de Córdoba. Determinou a instalação de sistema de
água encanada e luzes a gás, e foi uma das primeiras casas portenhas a
contar com essas modernidades. Colocou teto caixotão12 em todas as salas e
quartos e, na sala de jantar e no salão principal, aplicou folhas de ouro13.
Foram tirados os tapetes de Kidderminster, arrasados pelas traças, e os
novos pisos de parquet foram cobertos com uns da Pérsia. Pendurou
espelhos venezianos com candelabros de parede que outorgaram o aspecto
de um grande salão de baile, dourado e luminoso. Recuperou e mandou
restaurar os quadros dos pintores flamencos do Renascimento, debilidade
da baronesa de Pontevedra, e Laura encomendou a seu agente em Londres,
lorde Leighton, que comprasse pinturas dos pré-Rafaelistas, um grupo de
artistas jovens que revolucionava a arte na Europa. A avó Ignacia achou as
pinturas muito modernas e decididamente carentes de bom gosto. Estofou
cadeiras, poltronas, confidentes e canapés com jacuards14 e brocados de
Lyon, e a bergère com um adamascado azulado, o mesmo dos tempos da
avó Pilarita. Recuperou a aranha de cristal de Murano, orgulho da

12
Reentrância moldurada, usada como motivo de decoração num teto ou abóbada de igreja, sacristia, capela, sala de habitação
ou de prédio público. Pode revestir as formas mais diversas: quadrado, losango, oval, poligonal, ornados de molduras. Os
caixotões são unidos ao teto por vigas de madeira chamadas madres ou por peças de madeira não estruturais. Quando os
caixotões formam um reticulado no forro ou teto, é chamado teto ou forro artesoado, pois os painéis formados recebem ornatos
chamados artesãos. (N. da Tradutora)
13
A folha de ouro falso de efeito quase igual ao autêntico e de preço muito mais acessível. (N. da Tradutora)
14
É o nome dado a padronagens complexas de entrelaçamento, tanto em tecelagem como em malharia em Jersey duplo (N. da
Tradutora)

Tradução Lauren Moon


baronesa, vendida aos Alzaga para pagar impostos, que voltou a brilhar,
desta vez com velas a gás, no salão mais luxuoso de Buenos Aires, na
opinião do poeta Guido y Spano, propenso a estas expressões exuberantes.
Quando por fim terminaram as obras, a mansão ostentava a pompa e a
elegância dos tempos de Abelardo Montes, barão de Pontevedra. Em honra
à verdade, o prazer de Laura não residia em lançar mão aos objetos que
tinham integrado a imensa fortuna do barão ou em embelezar a casa que
havia constituído seu orgulho em vida, o prazer residia no poder e na
autoridade que isso lhe conferia frente a seus parentes. O dinheiro a
deixava descarada, às vezes, tirana e desumana.

Essa manhã, entretanto, Laura desfrutava profundamente sua


última aquisição, assim como Eusebio, o chofer, que tinha sonhado
conduzir uma vitória15 desde o dia em que se inteirou que existiam.
Estreava, além disso, uma libré de percal azul com pescoço e punhos
verdes, as cores que, segundo dona Ignacia, tinham preponderado no brasão
da dinastia do duque de Montalvo.

Atipicamente, a família Montes tinha retornado de San Isidro


para casa de la Santísima Trinidad na noite anterior, para assistir nesse dia,
30 de janeiro, à consagração da Capela da Santa Felicitas, levantada em
honra de Felicitas Guerrero de Alzaga, morta sete anos antes, em 72. Na
verdade, toda a aristocracia portenha e as personalidades relevantes do
governo tinham abandonado seus retiros no campo para participar do
convite em honra da renomada beleza portenha.

Por volta das onze da manhã, os pais de Felicita, Carlos


Guerrero e Felicita Cueto, aguardavam parentes e amigos para iniciar a
cerimônia. Laura, junto com suas tias Dolores e Soledad, sua mãe e sua avó
(o avô Francisco havia preferido ficar em San Isidro) partiram na vitória
nova, protegidas por guarda-sóis e pequenas sombrinhas para a parte sul da
cidade, perto do Riachuelo, na zona de La Barracas.

- Para a quinta de Alzaga, no Montes de Oca y Pinzón -


ordenou Laura a Eusebio, que imediatamente colocou o carro em marcha.

- Que pesar! - exclamou Dolores -. Ter que voltar para o lugar


onde Felicita sofreu tanto.

Não voltaram a falar durante o trajeto, a lembrança da morte


de Felicita deixou-as pesarosas e pensativas. É que o caso de Felicita
Guerrero, viúva de Álzaga, foi tratado como um crime passional. Acabava

15
Tipo de charrete (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


de anunciar seu casamento com Samuel Sáenz Valiente quando um
apaixonado, Enrique Ocampo, que a tinha perseguido durante anos (dizem
que a amava mesmo antes do casamento com o velho Álzaga), em um ato
de raiva e despeito a assassinou com um disparo pelas costas. Ao perceber
o ato atroz e irreversível que tinha cometido, Ocampo se suicidou. Isto
dizia a crônica policial, embora, na realidade, suspeitava-se que Ocampo
tinha sido morto pelas mãos de um amigo de Felicita, Cristian Demaria,
que o surpreendeu instantes depois do disparo e o matou a sangue frio. De
outro modo, ninguém explicava um suicídio com duas balas. Laura e
Cristian eram grandes amigos e, apesar de nunca falarem abertamente sobre
o assassinato de Felicita, em uma ocasião, Cristian lhe deu a entender que o
que se suspeitava era certo.

Ao longo da missa e da consagração da capela ouviram-se


soluços reprimidos, suspiros, pigarros e roncos, especialmente durante o
sermão, quando o bispo Mattera expôs as infinitas virtudes “dessa excelsa
dama portenha”. Depois da missa, serviu-se um jantar americano na galeria
do casarão de Álzaga e os ânimos se recuperaram pouco a pouco. Falava-se
de quão formosa era a capela, da magnífica estátua de Felicita e seu filho
Félix (morto ainda pequeno, vítima da febre amarela), da magnífica
cerimônia, do acertado sermão, e mencionaram também as incontáveis
obras de caridade levadas adiante por Felicita e suas amigas, entre as quais
se destacava Carolina Montes de Beaumont, que ratificava o que tinha sido
dito e que aproveitava para postular entre os mais ricos e podar suas
carteiras como em uma mesa de jogo. Todos se deixavam enrolar pelos
artifícios de Carolina Beaumont, que, apesar dos anos, conservava a
frescura e doçura da primeira juventude. Como membro vitalício da
sociedade de Beneficência, Carolina Beaumont se mostrava tão interessada
pelo destino dos pobres e aflitos como esteve sua mãe, a baronesa de
Pontevedra, que era uma as fundadoras.

Laura se manteve perto de Cristian Demaría, a quem


encontrou especialmente abatido; falava pouco, em voz baixa e, apesar de
não se referir a sua querida Felicita, como se mencioná-la fosse mais do
que seu aflito coração pudesse suportar, e Laura não duvidava que Cristian
não deixava de pensar nela. Mantiveram-se afastados da galeria, e as vozes
dos convidados chegavam até eles como marés de sons sem importância.

- Às vezes acredito - animou-se Laura em expressar -, que não


deveríamos chorar por nossos mortos; afinal de contas, sabemos que eles
estão melhor perto do Senhor que neste vale de lágrimas. No caso de
Felicita, de quem ninguém duvida já gozar da Glória Divina, o reencontro
com seu filho Félix deve tê-la feito duplamente feliz.

Tradução Lauren Moon


- O que me dói, querida Laura - disse Cristian -, é sua
ausência.

Seus olhos se alagaram. Laura pegou sua mão e a beijou


fraternalmente. Ao levantar a vista, topou com o olhar intenso e carrancudo
do general Roca, que a incomodou, como se lhe devesse uma explicação
por aquele gesto amigável. Aproveitou que Climaco Lezica se aproximava,
e o deixou encarregado por Cristian. Dirigiu-se à capela dando uma grande
volta para evitar às pessoas. Uma vez lá dentro, a paz e o estado de
meditação que prevaleciam a envolveram facilmente. O perfume das flores
e do incenso, somados à meia luz e ao frescor, devolveram-lhe a
serenidade. Aproximou-se da estátua de Felicita e de seu filho Félix e ficou
contemplando-as com interesse. Quase que imediatamente voltaram a sua
mente as feições dessa jovem, que tantas vezes tinha visitado a casa de La
Santísima Trinidad junto com seu marido, Martín de Álzaga. Apesar de sua
pouca idade, Laura tinha intuído que essa moça de quinze anos, a quem a
tinham casado com um homem de sessenta, não era feliz. De uma beleza
indiscutível, o semblante taciturno de Felicita era o que mais sobressaía aos
seus olhos de menina.

Depois do que ela chamava “a grande desilusão de sua vida”,


Laura procurou referência com quem pudesse comparar sua dor, mulheres
sofridas, com vidas trágicas, que se convertiam em paradigmas de
integridade e resignação. A primeira que lhe serviu de consolo foi sua tia
Blanca Montes, sua mãe de certa forma também a acompanhava, porque
tinha amado tanto o general Escalante sem conseguir nada em troca; Maria
Pancha, modelo de abnegação e fortaleza, sua tia Dolores inclusive, que
tinha perdido de uma só vez seu marido bígamo e seu filho, agora também
estava Felicita Guerrero, que se somava ao grupo das desconsoladas e
sofridas. Desse modo, Laura não se sentia tão sozinha.

Esticou o braço para tocar o pezinho de mármore de Félix, mas


o retirou quase de imediato quando uma mudança no jogo de luzes da
capela lhe advertiu que alguém acabava de entrar. Escutou o chiado dos
sapatos sobre os ladrilhos, e teve a certeza de que a pessoa se aproximava
em sua direção. Inexplicavelmente, assaltou-a uma sensação de
perseguição e incerteza, como se uma fera a espreitasse, como se fosse ser
vítima de uma abordagem violenta. Virou-se, era Roca. Tinha-o muito
perto, a dois passos. Seu perfume tão característico, essa mescla exótica de
almíscar e fragrâncias de madeira, inundou suas narinas.

- Assustei-a - disse com voz grossa, sem se afetar pelo silêncio


da capela.

Tradução Lauren Moon


- Não, não, general - sussurrou Laura apenas.

- Conheceu a senhora de Álzaga? - perguntou ele


imediatamente, e dirigiu o olhar à escultura.

- Sim. Seu marido, Martín de Álzaga, era amigo de meu avô


Francisco. Felicita acompanhava-o frequentemente à casa de La Santísima
Trinidad.

- Era tão bonita como se comenta? Guido y Spano acaba de


exaltar que Felicita Guerrero era a mulher mais linda da República.

- Sim, era. Seus modos, doces e naturais, só conseguiam


embelezá-la ainda mais.

- Não tenho dúvida - falou Roca, Depois de uma pausa - de


quem é a que ostenta o título da “mulher mais bonita da República” nos
dias atuais.

Fazia tempo que Laura não se permitia envaidecer com uma


adulação. Aquelas palavras do ministro da Guerra tinham-na alterado como
se fosse uma das primeiras que dirigia um cavalheiro galante a uma menina
casadoira. Abanou-se, em parte para esconder a vermelhidão de suas
bochechas, mas também para afastar a sensação de sufoco que a
aproximação desse homem lhe provocava.

Roca deteve sua mão e afastou-a de seu rosto. Passou seu


braço pela cintura dela e tentou beijá-la.

- Querendo ganhar a aposta, meu general? - Laura falou com


sarcasmo, e o rosto ligeiramente retratado -. Você é novo nesta cidade e
possivelmente não esteja a par de que aqui tudo se sabe; inclusive as
apostas que os cavalheiros secretamente escrevem no livro do Club del
Progreso.

Tratava-se de uma acusação grave, e Roca se debatia entre


ofender-se ou pedir desculpas. Finalmente, expressou:

- Você não tem papas na língua.

- Não, não tenho.

- Eu gosto disso - admitiu, e tentou beijá-la novamente, sem


êxito -. Por acaso a aborrece o fato de eu ser um homem casado?

Tradução Lauren Moon


- O fato de ser casado não é a única coisa que me afasta de
você, general.

- Meu propósito de exterminar aos índios do sul,


possivelmente?

Roca percebeu imediatamente um estremecimento em Laura


Escalante. Uma palidez, acentuada pela luz fraca que passava pelos vitrais,
outorgou-lhe um ar angélico e vulnerável. Antes que baixasse as pálpebras,
Roca notou que seus olhos pretos brilhavam.

- Não use essa palavra, general. Por favor, não diga


“exterminar” como se aquelas pessoas fossem bestas.

- Você parece muito preocupada com a sorte dos índios do sul.


Ficou pálida. Tenho que acreditar que são corretos os falatórios que a têm
como protagonista de um romance com um índio?

- Sim, são corretos. Faz muitos anos que isso ocorreu e,


entretanto, general Roca, posso-lhe assegurar que, apesar dos meus amigos
e conhecidos, aquele índio continua sendo o melhor homem que conheço.

- Isso é porque ainda não me conhece.

Agarrou-a pela nuca e a beijou. Sua boca cobriu a dela com


possessiva impetuosidade, e Laura sentiu a aspereza de seu bigode sobre
sua pele. O poder desse homem a afligiu, e permaneceu quieta entre seus
braços, enquanto ele continuava beijando-a e embriagando-a com o aroma
de seu perfume e o gosto doce de sua boca, que tinha sabor das amêndoas
do tipo dos licores.

As mãos do general afrouxaram a pressão e se retiraram da


cintura de Laura, que levou sua mão à boca; sentia os lábios quentes e
palpitantes.

- Será melhor que saiamos - admitiu Roca -. Vá você primeiro;


eu a seguirei depois.

- Não - replicou Laura -, sairemos os dois juntos, como se aqui


dentro acabássemos de escutar uma missa.

~0~

Dois dias mais tarde, enquanto as mulheres Montes se


preparavam para retornar a San Isidro, um mensageiro entregou um bilhete
Tradução Lauren Moon
em nome da senhora Riglos. Laura rompeu o lacre e leu: «SENHORA
RIGLOS, SUPONHO QUE NÃO SERÁ UMA SURPRESA SE EU CONFESSAR QUE
ESTOU IRRESISTIVELMENTE ATRAÍDO POR VOCÊ. TOMEI O ATREVIMENTO DE
RESERVAR UMA MESA PARA NÓS DOIS NA HOSPEDAGEM “LOS CATALANES” NA
RUA DE LAS GARANTÍAS N° 242. ESPERO VÊ-LA ALI AMANHÃ À UMA DA
TARDE. SEU MAIS SINCERO E HUMILDE SERVIDOR. R.».

Laura passou a nota para Maria Pancha.

- Escolheu um lugar muito afastado para o encontro -


comentou a criada, pois a Rua de Las Garantías pertencia à Recoleta, zona
de descampados, pomares e quintas -. Não estranharia que a hospedagem
“Los catalanes” amanhã só trabalhasse para ele. - Logo, mudou de ares
para advertir -: Este não é um nenê de peito, Laura.

- Nunca gostei dos frouxos e pacatos.

- Certo, mas este é uma raposa, um patife exímio muito


diferente de tudo que está acostumada.

- Não sei o que me atrai neste homem - admitiu Laura.

- Com certeza - continuou Maria Pancha -, o general Roca não


é como seus eternos apaixonados que cantam ao som de sua melodia. E
mais, atrevo-me a dizer que é ele quem vai ditar o compasso entre vocês.

Laura meditou essas palavras e disse a si mesma que, se


pudesse compreender o que fazia do general um homem tão diferente do
resto de seus conhecidos, talvez conseguisse dominar a inquietação que
sobrevinha quando a rondava. Se pudesse descobrir seu calcanhar de
Aquiles talvez impusesse sua vontade como com os outros. No momento,
estava a sua mercê, subjugada pelo simples contato de sua boca e de suas
mãos, que despertava uma excitação que a envergonhava. Tinha
consciência de que Roca, com o simples fato de dirigir-lhe a palavra ou
lançar um de seus olhares, infundia-lhe o mesmo respeito e admiração que
deviam experimentar seus soldados. Roca, para ela, jamais tinha passado
despercebido.

Perguntou-se onde estaria o segredo de seu encanto quando, na


realidade, era comedido, às vezes rude, e tão prático e racional que teria
excluído de seus ideais românticos de conhecê-lo. Possivelmente fosse seu
ímpeto, que Laura acreditava ser irreprimível, ou sua inteligência, que não
se atrevia a subestimar, ou sua figura de militar de alto nível, que dava à
feição carrancuda e áspera, aquele rosto curtido, e esses olhos, um tanto

Tradução Lauren Moon


fechados pelas pálpebras, que falavam de sua natureza reservada.
Inclinava-se a pensar que, diferente dela, o general não temia nada e se
reputava capaz de enfrentar qualquer inimigo, militar ou político. Esta
característica de seu temperamento constituía o que a seduzia,
irremediavelmente.

- Confunde-me, perturba-me - queixou-se em voz alta -, nada


no general é o que procuro em um homem e, entretanto, admito que me
seduz a ideia de me submeter a sua força. Como o mais fraco de meu sexo,
ilude-me seu amparo e, apesar de com esta ideia retroceder séculos na
evolução feminina, aceito que a preponderância que, acredito, ele exerce
sobre mim, faria-me cair sob sua influência sem maiores conflitos. -
Levantou a vista e encontrou o olhar misterioso de sua criada -. Acho
difícil me manter corajosa ao impulso deste homem, a quem, afinal de
contas, deveria estar entre meus inimigos mortais.

~0~

Na volta das compras, Ignacia, Dolores, Soledad e Magdalena


souberam da notícia de que Laura não voltaria a San Isidro. A meia voz,
sem abrir muito a boca, a avó Ignacia reclamou contra a natureza volúvel
de sua neta, e tia Soledad achou inapropriado que ficasse em um casarão
tão grande com a servidão como companhia. Dolores, tentada a despejar
sua opinião, mordeu sua língua, temerosa das represálias de sua sobrinha.
Anos atrás, em uma acalorada discussão na qual lhe reclamava as
extravagâncias de seu casamento com o Riglos, a moça, sem meias
palavras, espetou-lhe que, ao menos, Julián não era bígamo.

Por seu capricho em não retornar a San Isidro, ninguém lhe


pediu explicações e Laura não pensou que as devesse dar. Foi para seus
aposentos onde se dedicou até próximo ao capítulo dez de sua novela La
verdad de Jimena Palmer, que era publicada como folhetim em La Aurora,
o semanário da Editora de La Plata, e que atraía tantas leitoras. Jimena
abandonava seu marido, déspota e machista, e se rebelava ante uma
sociedade que contemplava impassível a cumplicidade dos abusos dos
homens sobre suas mulheres. Laura também escrevia contos infantis para
deleite de seus sobrinhos mais novos, e as fadas madrinhas e os duendes
verdes da Irlanda nunca estavam ausentes. Contra a corrente do costume da
época, não usava pseudônimo, mas seu próprio nome e sobrenome de
solteira, extravagância que a maioria reputava de mau gosto e indecente. É
obvio que La verdad de Jimena Palmer provocava a reação dos setores
mais conservadores, e a avó Ignacia, envergonhada, repetia entre gemidos e
lamentos «Se ao menos assinasse Periquita Pérez!»

Tradução Lauren Moon


Laura não participava de colunas políticas e, quando pegava a
pluma para escrever sobre outros temas que não fossem seus folhetins,
escrevia sobre a educação, em especial a das mulheres, sempre tão adiada.
De qualquer maneira, La Aurora era um semanário com um claro viés
político, que Mario Javier mantinha com coerência ao longo das tiragens.
Indiscutivelmente, La Aurora apostava no liberalismo e no progresso, e
nisso estava de acordo com o governo, mas também denunciava aquelas
manobras que minavam os direitos inalienáveis dos seres humanos. Com
certeza, tinha-se convertido no inimigo mais amargo da aclamada conquista
do deserto que tinha como defensor o general Roca.

O silêncio do quarto de Laura se rompeu quando uma turba de


meninos se precipitou sem se anunciar. Atrás deles apareceu Eugenia
Victoria, que, aos gritos, distribuía toda classe de ameaça a seus filhos
menores. Purita, mais feminina e recatada com proximidade de sua festa de
quinze, entrou junto com Maria Pancha, que escutava uma confidência.
Laura soltou a pluma e recebeu em um abraço seus sobrinhos que, em coro,
pediam-lhe mil coisas. Beijava-lhes as cabecinhas e as bochechas e lhes
dizia sim a tudo.

- Basta, meninos! Ou passarão um mês sem sobremesa! -


ameaçava em vão Eugenia Victoria; a Laura, explicou -. Não pude evitar
que corressem até aqui, quando Maria Pancha lhes disse que você estava
escrevendo. Querem saber como continua a história de Paco e o elefante
verde.

- Sim, tia! Conte-nos como continua! - implorou Adela, uma


fedelha de quatro anos que obtinha de sua tia Laura o que pedisse. Saltitava
e levantava as mãos em prece.

- Receio que terão que esperar pelo próximo número de La


Aurora -expressou, com uma careta.

- Mas, tia - se queixou Rafael, de sete anos -, iremos amanhã a


Carmen de Areco16 e não estaremos aqui quando sair La Aurora.
Perderemos a publicação!

- O problema é que ainda não terminei o capítulo - explicou


Laura -. Como você acredita que vou permitir que perca a publicação?
Pedirei a Mario Javier que guarde uma cópia para cada um de vocês e as
farei chegar por trem a La Armonía - prometeu, referindo-se à estância dos
Lynch.

16
Província de Buenos Aires (N. da tradutora)

Tradução Lauren Moon


Maria Pancha os enrolou com a sugestão de limonada recém-
preparada e bolo de pêssegos com creme, e os quatro partiram atrás da
criada para a cozinha. Purita escolheu ficar com sua mãe e sua tia, pouco
interessada nas bobeiras que diriam e fariam seus irmãos, apesar de ter
brincado com eles e suas bonecas até poucos meses atrás. A iminência de
sua festa de quinze anos tinha mudado sua vida radicalmente.

- Aproveitamos esta viagem a Buenos Aires pela ocasião de


Felicita Guerrero e fizemos algumas compra - comentou Eugenia Victoria -
. Fomos à loja de Climaco Lezica e compramos entretela e rendas para o
vestido de Pura. Já os levamos à madame Du Mourier.

- Encontraram tudo o que precisavam? - interessou-se Laura.

- Oh, sim! - apressou-se em responder Eugenia Victoria -. O


senhor Lezica foi extremamente atencioso conosco. Ele mesmo nos
ofereceu a melhor mercadoria e até deixou a compra em fiado.

- Isso sim que é incomum - admitiu Laura, porque era sabido


que Climaco Lezica vendia estritamente à vista.

- Viu como me olhava o senhor Lezica, mamãe?

- Não - se incomodou Eugenia Victoria -. Não acredito que


tenha olhado para você de nenhuma maneira especial.

- Pois aviso que me olhava com olhos suaves e, quando você


se entretinha com aqueles leques de seda, segurou-me a mão. É obvio que
se fez de bobo, como que, enquanto juntava os galões e as rendas, sua mão
tropeçou com a minha, mas eu percebi que o tinha feito de propósito.

- Que ideia, Pura! - exasperou-se Eugenia Victoria -. O senhor


Lezica é um grande amigo de seu pai, um homem honorável, de uma das
famílias mais conhecidas de Buenos Aires, por que iria querer fazer algo
tão impróprio como segurar a mão de uma menina?

- Não sou uma menina!

- É obvio que não - atravessou Laura, que tinha escutado a


conversa com atenção -. Sua mãe quer dizer que é muito menina para
Climaco Lezica, que é um quarentão.

Eugenia Victoria contemplou sua prima com gesto


contrariado. Laura, que não perguntaria na presença de Pura, mudou o

Tradução Lauren Moon


assunto da conversa e perguntou pelos detalhes da festa que, embora
ocorresse em meados de abril, requeria uma adiantada preparação.

~0~

De maneira nenhuma iria à hospedagem “Los catalanes” em


seu Landau com José Pedro na boleia (Eusebio tinha conduzido a San
Isidro o quarteto de bruxas, como eram chamadas pela servidão), pois tanto
o carro como a libré de percal azul e verde eram tão conhecidos em Buenos
Aires como o edifício do Conselho. Como sugestão de Maria Pancha,
pegou um carro de praça perto do mercado da passagem das Carabelas,
que avançou sem inconvenientes e a boa velocidade, pois as ruas
encontravam-se virtualmente vazias. De propósito, Laura calculava chegar
uns quinze minutos depois da hora marcada.

No interior do veículo, sacudida pelos saltos por causa das ruas


mal pavimentadas, Laura tentava se acalmar. Estava embargada pela
habitual sensação de antecipação, entre incômoda e prazerosa, que a
assaltava quando o general Roca estava presente. Agora não apenas ele
estaria presente, mas também estaria a sós com ele. Uma vez a mercê
desse cavalheiro, ninguém impediria os acontecimentos. Distraiu-se
olhando pelo guichê, o nariz coberto com um lenço embebido em colônia
devido aos maus aromas que levantavam do rio. Como se sua mente se
negasse a pensar em Roca e no que esse encontro implicava, deixou-se
encantar pela paisagem tão pitoresca como alheia, já que ela raramente
abandonava o perímetro do centro.

Por volta de uma e vinte, o carro se deteve e o condutor


deixou a boleia para abrir a portinhola. Laura pagou e o despediu. Ficou
surpresa, pois nos últimos anos esse lugar afastado da capital tinha crescido
imensamente, não percebeu que a chamavam.

- Senhora Riglos! - pronunciou uma voz masculina.

Laura, a um passo de cruzar o portal de “Los catalanes”,


voltou-se para dar com a figura redonda e graciosa de um homem de
bigodes espessos e olhos faiscantes. Disse chamar-se coronel Artemio
Gramajo.

- O general Roca me pediu que a leve para o lugar de seu


encontro -expressou o homem com tanta naturalidade que Laura não
conseguiu ficar chateada, embora preocupada. Roca demonstrava pouca

Tradução Lauren Moon


cortesia e ainda menos tato ao enviar um capanga para realizar seus affaires
non sanctos17.

Gramajo a conduziu até uma galeria e subiram. No trajeto, o


coronel tentou ganhar boa predisposição de Laura. Foi prudente e não
voltou a mencionar o general Roca ou o encontro; falou de amenidades e
riu a maior parte do tempo, e até se permitiu ser respeitoso ao expressar
que, embora tenham lhe dito da beleza da viúva de Riglos, nenhuma
descrição lhe fez justiça. A viagem não durou muito, pois o encontro
aconteceria em uma casa da Rua de Chavango, perto da igreja de Nuestra
Señora del Pilar, no mesmo bairro da Recoleta. A casa, uma construção
sólida, de estilo colonial, rodeada por campos e hortas, se achava em uma
paragem que lhe teria conferido o aspecto de completo isolamento se a
torre de Nuestra Señora del Pilar não fosse vista tão vividamente. O
próprio Roca abriu a porta do vestíbulo e pronunciou em uma pronúncia
medida, mas autoritária:

- Por fim chegou, Artemio.

- Desculpe o atraso, general.

- Foi minha culpa - interveio Laura -. Eu cheguei atrasada.

Roca afrouxou o cenho e estendeu sua mão.

- Por favor, senhora Riglos, entre, não ligue para o meu mau
humor. Pensei que meu amigo Gramajo a tivesse convencido de comer
“Los catalanes” e me esquecesse aqui a tarde inteira.

- De maneira nenhuma, general. Como pensou nisso? -


queixou-se Gramajo.

Na sala, aguardava-os a mesa posta. Uma doméstica de


aspecto indígena recebeu as luvas e a bolsa de Laura e os acomodou sobre
o dressoir18 do vestíbulo.

- Ensine-me o que preparou para comer, Lucila - pediu


Gramajo à moça, e partiram para o interior do casarão.

- O apetite do coronel Gramajo é notório - expressou Roca, e


sorriu de forma calorosa.

17
Caso pecaminoso, impossível de ser abençoado (N. da Tradutora)
18
Aparador (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Pensei que comeríamos em “Los catalanes” - apontou Laura,
com malícia.

- Um pequeno engano - admitiu Roca -. Mea culpa -


adicionou, com a mão no peito -. Considerei que se marcasse em um lugar
público obteria sua aceitação mais facilmente. Possivelmente se tenha
surpreendido, inclusive incomodado, ao encontrar Gramajo na porta de
“Los catalanes”. Saiba que ele é de minha mais absoluta confiança. Poria
minha vida em suas mãos sem pensar duas vezes. Do mesmo modo, estas
medidas cansativas também foram tomadas para evitar pôr em jogo sua
reputação.

- Minha reputação, general, é algo do que você não tem com


que se preocupar. Está tão danificada como pode se esperar depois de eu ter
feito e dito tudo o que quis durante toda minha vida. Sempre acreditei -
acentuou Laura - que o que faça ou deixe de fazer sobre esta Terra é um
assunto que só concerne a Deus e a mim. De todo o modo, não estou
incomodada por seu engano e considero que as medidas que tomou estão
justificadas, não por minha reputação mas sim pela sua, que é um homem
do governo. De quem é esta casa? - perguntou quase imediatamente, e
olhou ao redor.

- É de um irmão de Artemio, radicado no Brasil. Artemio


cuida e administra a casa.

Comeram em um ambiente amistoso e relaxado, que em parte


se obteve graças à companhia do coronel Gramajo, que não duvidou em
aceitar o convite da senhora Riglos, apesar dos gestos que lhe lançava o
general Roca. Com o tempo, Laura chegou a afeiçoar-se profundamente a
Artemio Gramajo e a contá-lo entre seus melhores amigos. Gostava porque
era um homem simples e extremamente bondoso, e também porque a fazia
rir. Estava acostumada a mimá-lo com presentes gastronômicos, e os
bolinhos de chuva e as frutas de marzipan de Maria Pancha se converteram
na debilidade do coronel. A léguas se notava que não padecia de dispepsia,
pelo contrário, sua digestão era assombrosa; não passava uma hora da
última refeição que já vociferava: “Estou esfomeado!”. Segundo o próprio
Gramajo, seu segredo estava em beber vinho tinto com as refeições.

- Eu me retiro, general - anunciou Gramajo, finalizado a


sobremesa -. Tenho muita pendência no escritório.

Despediu-se de Laura e partiu para o vestíbulo na companhia


de seu chefe, que enumerava uma fileira de encargos e diligências. Roca
voltou para a sala e Laura já calçava as luvas de pelica.
Tradução Lauren Moon
- Eu também me retiro, general.

Pegou a bolsa do dressoir e caminhou para a porta. Mas Roca


não lhe permitiu passar, e enfatizou sua posição passando a chave.
Olharam-se fixamente, e Laura se deu conta de que perdia terreno segundo
a segundo. Roca, composto e dono de si, diminuiu o espaço que os
distanciava e a abraçou como se disposto a absorver o corpo dela com o
seu. Olharam-se novamente, e ele a beijou nos lábios. Ficou surpresa que
não o fizesse com a impetuosidade com qual a tinha abordado na capela da
Santa Felicita. Era o beijo de um amante paciente e benévolo, em nada
relacionado com a imagem de tipo áspero e resmungão que se formou.

Roca a despojou da bolsa e das luvas, que retornaram ao


dressoir, e a conduziu pela mão ao dormitório. Ele mesmo a despiu, peça
por peça, com delicada perícia. Laura se mantinha quieta e calada e,
embora não colaborasse, como se quisesse se opor com o pensamento até
último momento, não resistia fisicamente. Fechou os olhos e jogou a
cabeça para trás ao sentir as mãos ásperas e curtidas de Roca fechar-se em
torno de seus seios apenas cobertos pela camiseta de linho.

A respiração dele, irregular e quente, golpeou-lhe a pele do


decote quando sua boca acariciou seus mamilos através do delicado tecido.
Laura começou a gemer, e a paciência e a benevolência do general
acabaram nesse instante. Recostou-a sobre a cama e a possuiu rapidamente,
sem dúvida de que a encontraria preparada para recebê-lo.

Durante seu casamento com Julián Riglos, Laura não tinha


reparado em sua postergada índole de mulher. Insensível por causa da dor,
esqueceu-se de que a paixão e a virilidade de um homem podiam fazer com
ela. Tinha rechaçado muitos, alguns que se diziam amigos de Riglos,
inclusive o próprio Alfredo Lahitte, quando ainda vivia Amelita
Casamayor. Com Roca, entretanto, não tinha encontrado a determinação
para fugir da força com que, finalmente, quebrou-lhe a vontade. Roca caiu
exausto sobre o seio de Laura e, enquanto cobria seu rosto de beijos,
confessou-lhe que a tinha desejado desde a primeira vez que a viu, naquela
primeira vez no inverno de 73, quando entrou na sala de “La Paz”, a
estância de seu sogro em Ascochinga, e a avistou entre seus cunhados e
cunhadas, flanqueada por seu pai, o general Escalante, e dona Eloísa, sua
sogra. Disse-lhe também que, em contraste com o resto, ele tinha recebido
a impressão de que ela brilhava, como se de seu cabelo loiro e de sua pele
tão branca emanasse luz. E não o disse para não romper a magia do
momento, mas naquela oportunidade, além de golpeá-lo a contundência de
sua beleza, surpreendeu-o a profunda tristeza que transmitiam seus olhos
pretos.
Tradução Lauren Moon
Embora Roca tivesse se calado quanto a esta última
observação, Laura imediatamente voltou para o ano de 73, essa época de
lábios apertados e olhos avermelhados em que dormia chorando, em que
não conciliava o sonho facilmente, em que não comia, não falava, não
rezava, não lia, não escrevia, só sentia lástima de si mesma; essa época em
que seu pai, Maria Pancha, inclusive sua tia Selma acreditaram que
terminaria por perder a razão. Lembrou-se dessa época e também do
homem inexoravelmente relacionada a ela. Roca percebeu que o encanto
se esfumaçou e, embora contrariado porque não sabia o que tinha
provocado essa mudança em Laura, permitiu-lhe que abandonasse a cama e
se vestisse.

~0~

Laura não parou na sala, onde um batalhão de domésticas a


cargo de Maria Pancha polia a prataria, limpava vidros, esfregava pisos e
lustrava os móveis de mogno. A familiaridade do lugar, o aroma a cera de
abelhas, o bulício das criadas e as ordens vociferadas de Maria Pancha a
fizeram sentir à vontade. Rumou para seu quarto com passos firmes, onde
se fechou com chave. Precisava estar sozinha. Maria Pancha a viu passar e
não tentou segui-la ou detê-la. Quando chegasse o momento, Laura lhe
contaria. Deixou o espanador sobre a mesa e foi para a cozinha para
preparar uma lavagem, porque, embora a entusiasmasse que sua menina
tivesse um amante, nada a divertia pensar que tivesse um bastardo.

Sem tirar o chapéu e as luvas, Laura se acomodou na cadeira


de balanço e contemplou o quadro de cores que compunham as roseiras de
sua avó no jardim.

Soltou um suspiro e se deixou levar pelo acontecido na casa da


Rua Chavango apenas duas horas atrás. Tão seguro tinha estado o general
Roca, que a conduziu ao quarto e a despiu sem pronunciar uma palavra. À
medida que seus trajes regavam o piso, o desejo de lhe pertencer a
despojava dos últimos vestígios de vergonha e pudor. A paixão que
evidenciava esse homem a convencia de que, nesse instante, nada lhe
parecia mais bonito que ela, que seu corpo e que o prazer que iria encontrar
nela.

Temia que se o general lhe pedisse que voltasse para ele, ela o
faria, apesar de nesse instante não poder desfazer-se desse ridículo
sentimento de culpa. “Ele já não existe, assim como não existe o passado.
Não chorarei, não recordarei; pelo contrário, tratarei de pensar nos beijos
do general, em suas palavras sussurradas, em sua segurança, em sua força.
Vou sobrepor a mim mesma. Minha vida continuará. Ele já não existe. Não
Tradução Lauren Moon
existem seus beijos nem suas carícias, nossas noites de paixão se
esfumaçaram ao amanhecer, aquela manhã à beira do Rio Cuarto
possivelmente tenha sido um sonho, e nossas conversas e discussões talvez
nunca as tenhamos tido. Por que tremem meus lábios, por que nubla minha
vista?”.

Tradução Lauren Moon


Capítulo IV.

Dois números em um bilhete

Era fácil encontrarem-se sem levantar suspeitas. Roca, com


sua família em “Santa Catalina”, gozava de grande liberdade, enquanto
Laura, sozinha no casarão de La Santísima Trinidad, com Maria Pancha
como cúmplice, dispunha de sua vida como melhor lhe agradava. A falta de
pessoas em Buenos Aires em razão dos meses de verão facilitava até mais
os encontros. Não havia reuniões nem festas, os homens virtualmente não
frequentavam os clubes e cafés, e as mulheres não se juntavam para tomar
chá ou jogar cartas.

Ainda assim, Roca e Laura se mantinham precavidos. Gramajo


escrevia dois números em um bilhete, um indicava o dia e o outro, a hora
do encontro, e o fazia chegar por um cadete do ministério em quem
confiava os assuntos mais reservados do general. Laura tomava um carro
na Plaza de La Victoria, às vezes o tramway19, e viajava até Recoleta, à
casa da Rua do Chavango, com roupas pouco ostentosas e um chapéu de
palha amplo que escondia parte de seu rosto.

Para surpresa de Laura, o segundo convite chegou só dois dias


depois. Teria declinado, mas Maria Pancha a convenceu a aceitar,
persuadida de que só um homem com a decisão e autoridade de Roca
ajudaria Laura a sacudir o torpor que a afligia há seis anos. Com o tempo,
Laura teve que reconhecer que, gostava e muito, desse general tucumano20,
que abriu caminho a cotoveladas na sociedade portenha e que tinha
conseguido da viúva de Riglos o que nenhum outro conseguiu. Sua maior
atração estava em não encarnar o tipo inconveniente da cidade, um afetado
acostumado a luxos e comodidades das mansões portenhas, aos mimos das
senhoras ou às lisonjas das solteironas, mas ser um homem forjado na
pobreza provinciana e no campo de batalha, que assim como agora
conversava com soltura entre a flor e nata da sociedade de Buenos Aires,
comia menus franceses e bebia vinhos del Rin e champanhe, poucos meses
atrás tinha vivido com soldados rasos, comido com suas mãos e dormido
em um cama de armar cheio de pulgas. Neste sentido, seu repertório de
histórias e experiências era inesgotável, e Laura percebeu que Roca gostava

19
Bonde (N. da Tradutora)
20
Da cidade de Tucumán - Argentina (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


de compartilhá-las com ela. Adorava sua tropa e tinha consciência de que,
parte do êxito do qual gozava, devia a esses mestiços uniformizados que
tinham obedecido suas ordens cegamente.

Para outros assuntos, Roca adotava um estilo irônico e afiado,


em especial quando se referia a seus contemporâneos, embora a veia
humorística não lhe faltasse. Sempre circunspeto e carrancudo,
pronunciava sátiras dignas de Sarmiento que a faziam rir. De imediato,
evitavam o assunto dos índios do sul. Para Laura, uma conversa com Roca
se assemelhava a uma partida de xadrez. As palavras primeiro deviam ser
meditadas e pronunciadas depois com cuidado, como quem move as peças
sobre o tabuleiro em busca do cheque mate. Seus modos de fazer política
estavam moldando sua carne, e aplicava seus enredos em um simples
diálogo depois de ter feito amor. Seus olhares secretos, suas expressões
indefiníveis, suas caretas escondidas, se convertiam em um desafio. Uma
tarde, depois de discutir a respeito da não tão acertada relação entre ele e o
presidente Avellaneda, Laura foi sincera ao expressar que possivelmente,
ele inspirava medo e desconfiança, porque sempre parecia ocultar algo,
disse-lhe também que ela tinha a impressão de que suas palavras e o
sentido que lhes conferia nem sempre estavam de acordo, e que era um
exercício cansativo tratar de decifrar o verdadeiro significado de suas
declarações. Roca, com um sorriso arteiro nos lábios, repetiu-lhe uma frase
do Luis XI, pronunciada no século XV: «Quem não sabe dissimular, não
sabe reinar».

- Já vejo então - enfatizou Laura -, que se pospôs a reinar.

Roca sustentou seu olhar longamente, mas não lhe respondeu.


Logo, tombou-a sobre a cama e voltou a tomá-la.

Na primeira semana de março, Roca e Laura se viram todos os


dias. O general a chamava a qualquer hora, inclusive de noite, o que nunca
aconteceu anteriormente. Laura julgava isso uma imprudência, porque
Buenos Aires não estava tão quieta como em fevereiro. Com a casa de La
Santísima Trinidad cheia de gente outra vez, era difícil mover-se
livremente. Suas supostas visitas ao Monte Pío, ao orfanato, à Sociedade de
Beneficência e à editora iriam encobri-la durante algum tempo, mas não de
forma contínua, sem o risco de levantar suspeitas. De certa forma, excitava-
a esse jogo, fazia com que se sentisse viva, inclusive, às vezes, se esquecia
das consequências.

Assim como sóbrio e reticente em saraus e reuniões, Roca era


generoso e intenso na cama. Parecia que suas mãos tinham sido desenhadas
para o amor. Sua destreza como amante se comparava com sua habilidade
Tradução Lauren Moon
para lucubrar estratégias políticas, e Laura intuía que em nenhum dos
campos existiam conquistas impossíveis para ele.

~0~

Dom Goyo e dona Joaquina Torres, de volta de suas férias no


campo, inauguraram a temporada de 79 com uma de suas tão famosas
reuniões. O calor do casal Torres convertia essas reuniões nas prediletas da
sociedade portenha. As principais autoridades de governo, os ministros
estrangeiros, os viajantes ilustres, os artistas e as personalidades de toda
ordem estavam entre os convidados. Comia-se e bebia-se
maravilhosamente bem, discutia-se política e comentavam-se sobre intrigas
e receitas, planejavam-se estratégias e planos de governo e especulava-se o
próximo casamento ou novo nascimento, em um ambiente de cordialidade
e relaxamento que alguns procuravam como um refúgio nesses tempos
turbulentos de Buenos Aires.

O general Roca chegou acompanhado de seu ajudante, o


coronel Gramajo, e de Eduardo Wilde, seu amigo da infância. Depois de
saudar os anfitriões, passeou seu olhar procurando o único rosto que
desejava ver essa noite. Mas não a encontrou. Inclinou-se obre o Gramajo e
resmungou:

- Onde está? Acaso o carro que vimos na porta não era o dos
Montes?

- Com certeza, general. O chofer vestia o libré com as cores da


família. Na verdade, olhe, aí estão seus avós e suas tias. Sua mãe, lá, com o
doutor Pereda.

Roca se concentrou em Magdalena Montes, exuberante em um


vestido de brocado azul marinho que exaltava o loiro de seu cabelo, solto
sobre os ombros. Um cândido rubor nas bochechas lhe conferia o aspecto
de uma jovenzinha, apesar de ter passado dos quarenta há algum tempo.
Roca maravilhou-se com a semelhança com Laura.

O ministro da Guerra e Marinha pôs o pé no salão principal e


imediatamente o rodearam militares e funcionários ávidos por conhecer os
avanços de sua campanha no deserto. Como cada vez que se discutia a
respeito de regimentos, armas, munições e estratégias militares, o ministro
da Guerra se esqueceu do que acontecia e falou de sua campanha que
prometia ser uma epopeia. Não obstante, Roca sabia que as últimas
expedições de Racedo, Teodoro García, Freyre, Levalle y Vintter tinham

Tradução Lauren Moon


aplainado seu caminho, e assim fez constar. Não gostava de levar os louros
alheios.

- Não se confie, general - assinalou o jovem Estanislao


Zeballos -. Ainda restam caciques muito bravos. Baigorrita é um deles e, do
tal Kpumer, o irmão mais novo de Mariano Rosas, diz-se que é a pele de
Judas.

Ao mover-se para confrontar a seu interlocutor, o general Roca


ficou surpreso ao ver a viúva de Riglos, que fazia seu ingresso no salão de
dona Joaquina de braço dado com Cristian Demaría. Roca não era o único
que a olhava com cara de peru. Sobressaía em seu traje de seda cor
champanhe, segundo a opinião de madame Du Mourier, apesar de e Maria
Pancha insistir em dizer “que champanha nem champanha, é dourado”.
Ninguém ficou sem reparar que, nessa noite, sua tradicional trança em
forma de tiara sobre seu cocuruto, ia embelezada com topázios, enquanto o
resto do cabelo, como cascata de cachos de cabelo, banhava-lhe as costas
até além da cintura. Levava uma mantilha de gaze translúcida que
descansava sobre seus ombros. Inconscientemente, Roca apertou os punhos
quando Demaría a desembaraçou do xale e, sem necessidade, roçou sua
pele.

Um momento mais tarde se retomou o fio da conversa, mas


Roca já não participava com o mesmo interesse. Sua atenção se
concentrava em Laura Escalante e sua majestosa aparição no braço de
outro, o mesmo a que tinha consolado na ocasião da cerimônia na capela de
Santa Felicita, ele nunca esquecia uma cara.

Laura, escoltada por Cristian Demaría, saudou os convidados,


divertida porque alguns não se incomodavam em ocultar suas emoções.
Sabia quem a criticava pelo último capítulo de La verdad de Jimena
Palmer ou pelo decote do vestido, e quem desejava pôr suas mãos em torno
de sua cintura, possivelmente mais abaixo. Movia-se com indecência,
consciente do que sua presença provocava. O brilho de seu cabelo e de seu
vestido e a fragrância de seu perfume deixavam rastros por onde passava. A
respeito de Cristian Demaría, sentia-se cômoda a seu lado, um cavalheiro
em todo sentido, ainda platonicamente apaixonado por Felicita. Cristian
saiu para saudar seus tios Guerrero, e Laura, para escapar de Alfredo
Lahitte, evadiu-se para a sala de jantar. Perto da mesa das comidas,
encontrou o coronel Gramajo.

- Boa noite, Artemio - saudou, com sincera alegria -. Sabia que


o encontraria aqui.

Tradução Lauren Moon


- Boa noite, senhora Riglos. Não é necessário que lhe diga que
é a mais bonita da reunião?

- Precisa, Artemio, porque a sua será a única adulação sincera


e bem intencionada que recebo esta noite.

- A Senhora é muito inteligente para prestar atenção ao que


dizem ou pensam as pessoas. Veja, prove estes salgadinhos com caviar.
Mmm! A gente não poderia acreditar em quão saborosas que são estas
bolinhas pretas. Ah, e não deixe de lado esses camarões! O molho é
extraordinário.

Comeram e conversaram como velhos amigos até que o


coronel adotou uma atitude confidente para expressar:

- O general armou tremenda discussão esta manhã, quando


você mandou lhe dizer que não o veria na casa da Rua do Chavango hoje
de tarde. Tive que suportar o vendaval sozinho. E o mau humor que veio
depois também. Ele, pobre, anda com alguns problemas, além disso.

- Problemas? - intranquilizou-se Laura.

- Problemas com a organização da campanha. Todo mundo


parece empenhado em complicar a vida do pobre general.

A conversa foi interrompida quando Cristian lembrou a Laura


de sua promessa de dançar com ele a primeira peça. Os músicos afinavam
os instrumentos e, o contínuo tamborilar da batuta sobre o suporte de livro,
um sem-fim de acordes encheu a sala com uma valsa de Tchaikovsky. Ao
finalizar, Laura se desculpou e partiu para o interior da casa. Entrou no
primeiro quarto e passou à penteadeira, onde se refrescou e perfumou,
retocou sua maquiagem e acomodou algumas mechas que tinham se
soltado no frenesi da dança. Ao retornar ao salão, topou-se com Roca.

Roca usava magnificamente seu uniforme azul, embelezado


com medalhas, galões dourados e o sabre; conferia-lhe o porte de um
príncipe austro-húngaro. Usava o cabelo penteado para trás e recortou sua
barba e bigode. Apresentava um aspecto muito limpo, embora carente de
vaidade ou afetação. Com respeito a suas amplas entradas, que
profetizavam uma calvície prematura, Laura as achava atraentes e
sugestivas, depois que Maria Pancha lhe informou que eram consideradas
indício de um caráter luxurioso. Desejou-o, mas cuidou de não mostrá-lo.

Tradução Lauren Moon


- Boa noite, general - saudou-o com indiferença e, enquanto
caminhava para a porta, calçava as luvas.

Roca cruzou seu caminho, agarrou-a pelo braço e afundou seus


dedos em sua carne.

- Por que não foi hoje à casa do Chavango?

- Tinha outro compromisso.

- Com quem?

- Faz tempo que deixei de dar explicações, Julio.

- Não volte a dançar com ele - ordenou-lhe perto do rosto.

- Por que não? - Laura o estimulou.

- Porque estou dizendo, caralho!

Laura se assustou, mas imediatamente escolheu uma


expressão mais estudada.

- Vá, general, que você se tornou muito ousado e imprudente.


Cuidado, não sou eu quem tem o que perder aqui.

Roca não estava para acentos zombadores ou tolices. Agarrou-


a pela nuca. Olharam-se intensamente antes que o general lhe cobrisse a
boca com lábios implacáveis. A ponto de terminar na cama, Laura escutou
a voz de dona Joaquina no corredor.

- É dona Joaquina! - ofegou, e tentou desfazer-se das mãos do


general.

Roca a soltou e se evadiu à penteadeira. Laura se contemplou


no espelho e tratou de voltar a trança para seu lugar e rearmar os cachos de
cabelo, sem êxito encontrou a dona Joaquina na soleira.

- Estava aqui, querida! - surpreendeu-se a anfitriã, que, junto


com uma doméstica, procuravam o casaco de dona Agustina Mansilla.

- O pobre do Cristian anda meio que perdido sem sua presença


na sala.

- Vim retocar minha maquiagem - explicou Laura.

Tradução Lauren Moon


- Voltemos para a festa - sugeriu a proprietária de casa, à
faxineira indicou -. Essa, a capa de merino21 cinza.

O general Roca ouviu com extrema atenção o diálogo no


aposento contiguo. Ao escutar que a porta se fechava e que a estadia estava
em silêncio, arrumou-se rapidamente e saiu. Enquanto percorria o corredor
para a sala, refletia sobre o arrebatamento que o tinha convertido em um
imbecil, do disparate que tinha estado a ponto de cometer. O ciúme estava
deixando-o obcecado, alienando-o da sensatez da que se gabava. Tinha
perdido o controle, algo que nunca se permitia. Algo que não se perdoava.

Procurou em vão por Laura entre os casais que dançavam e


mais à frente, entre os que conversavam; tampouco a viu perto da mesa
nem no terraço. Pouco depois, Gramajo sussurrou-lhe que tinha se retirado
com sua família. Ele também queria ir embora, mas, pelo bem das
aparências, aguardou uma hora antes de despedir do casal Torres. No dia
seguinte, mais taciturno e sóbrio que de costume, não mencionou com
Gramajo que enviasse o bilhete à senhora Riglos, e seu ajudante não se
animou a indagar.

~0~

Ao despedir-se no vestíbulo da casa da Rua Chavango, nem


Roca nem Laura mencionaram à próxima vez, embora ambos soubessem
que, cedo ou tarde, o bilhete com os números rabiscados por Gramajo
chegaria. Cinco dias mais tarde do incidente na reunião dos Torres, o
bilhete ainda não tinha aparecido, e Laura meditou que, depois de tudo, era
melhor. A explosão do general tinha deixado claro que essa relação estava
indo para fora da cama. Roca era possessivo e dominante, e assim como era
um amante perito, anteviu que seria um péssimo marido, pois tudo o que
dela lhe atraía, sua independência, rebeldia e descaramento, tornaria-se
inadmissível se levasse seu sobrenome. Por outro lado, as falações não
cessavam apesar da precaução e da discrição.

Laura entrou no quarto de sua mãe sem bater e a encontrou


bordando o traje de batismo do bebê de Juan Marcos Montes, irmão mais
velho da Eugenia Victoria. O peito de Magdalena subia e baixava
regularmente, e seu semblante, iluminado pela luz do entardecer,
imediatamente entorpeceu a Laura. Ficou olhando para ela, incapaz de
interromper a quietude de sua mãe, entusiasmada também pela deliciosa
beleza desse perfil que, por mais familiar que fosse, nunca apreciava.

21
Lã fina espanhola (N. da tradutora)

Tradução Lauren Moon


Magdalena levantou a vista e lhe sorriu com ternura. Laura avançou e se
ajoelhou junto dela. Magdalena a beijou na testa e a benzeu.

- Ninguém faz o olho de perdiz22 como você - assegurou Laura


-. Será um magnífico traje de batismo. Romualdito terá o porte de um
principezinho inglês, com seu cabelinho loiro e suas bochechas de
querubim.

- Concepción - disse Magdalena, referindo-se à mulher de seu


sobrinho Juan Marcos - veio nos visitar hoje junto com Esmeralda.

- Esmeralda Balbastro?

- Sim. Esmeralda perguntou muitíssimo por você. Ela é a


madrinha do menino.

Laura sempre teve um sentimento de culpa quando de


Esmeralda Balbastro se tratava. Conceituava-a de hipócrita e frívola e,
entretanto, era a mulher que tanto tinha amado seu querido Romualdo.
Inclusive, em seu leito de morte, Romualdo Montes tinha lhe pedido que se
aproximasse de Esmeralda, que tentasse ser sua amiga e que a ajudasse em
sua viuvez, e, embora tenha prometido, Laura, incapaz de vencer seu
antagonismo, terminou por faltar à palavra empenhada. Em seu julgamento,
Esmeralda Balbastro não tinha feito Romualdo feliz.

- Confessou-me seu primo Juan Marcos - seguiu Magdalena -


que ele desejava que você fosse à madrinha de Romualdito. Mas já vê,
finalmente se decidiram por Esmeralda. Como o menino leva o nome de
seu falecido marido...

- Tia Celina - expressou Laura, e se referia à avó de


Romualdito - deve ter feito um escândalo quando Juan Marcos mencionou
sua intenção de me chamar para madrinha do menino. Ainda não concorda
com o fato de eu ser madrinha de sua neta Pura.

- Pobre Celina! - suspirou Magdalena -. Ainda não lhe perdoa


o assunto do convento de Santa Catalina de Siena. Você e seu primo
Romualdo estragaram a promessa que ela tinha feito à Santa.

- Éramos dois meninos! - exasperou-se Laura.

22
O olho de perdiz é uma técnica utilizada para fazer calcanhares de meias. Se for feita corretamente, ela se parecerá com um
trabalho de malha. (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Sim, sim, dois meninos - repetiu Magdalena -. Lembro-me
bem: você, onze anos e seu primo, quinze, mas esse dia, ao ajudar Eugenia
Victoria a escapar do convento, atuaram com a valentia de dois corsários de
quarenta.

- Lembro que, quando voltamos para Córdoba e contamos a


papai, ele se desmanchou em risada.

- Seu pai só soube mal criar você.

- Também lembro que disse que tia Celina tinha bem merecido
por ser retrógrada.

- Se sua avó Ignacia tivesse escutado seu pai teria vociferado...

- Que homem tão ímpio! - apressou-se em completar Laura, e


ambas riram.

Magdalena voltou para seu trabalho de passamanarias, e Laura


se dedicou em contemplá-la. Tinha que agradecer a sua tia Blanca Montes a
relação estável e harmoniosa que a unia a sua mãe já há alguns anos.
Através de suas Memórias, Blanca havia lhe mostrado uma Magdalena
muito diferente, uma Magdalena mais mulher que mãe, apaixonada,
romântica, rebelde, desobediente, que se extasiava com as figuras eróticas
de um exemplar Les mille et une nuits. Definitivamente, uma Magdalena
Montes muito parecida com Laura Escalante.

Magdalena nunca reprovou Laura por sua fuga a Rio Cuarto.


Voltaram a se ver em Córdoba, em 75, quando Laura a chamou a pedido do
general, que a queria ao seu lado antes de morrer. Magdalena leu o
telegrama, colocou o indispensável em um baú e se precipitou à estação de
trens. No dia seguinte, pôs o pé em Córdoba depois de quase dez anos de
ausência. Emocionou-se ao voltar para a casa dos Escalante, que nunca
tinha sentido como sua própria casa. À exceção de Selma, que se mostrou
tão fria e esquiva como de costume, Laura, Maria Pancha e o resto das
domésticas lhe deram uma boas-vindas afetuosa.

Escalante tinha envelhecido tanto nos últimos anos que parecia


o avô de Magdalena. Afundado entre os travesseiros, com o rosto velho e
enrugado, as mãos ossudas e cheias de veias, e a respiração ofegante,
estava frágil e vulnerável, uma imagem inesperada dele. Superada a
impressão, Magdalena se ajoelhou junto à cama e beijou seus lábios secos.

Tradução Lauren Moon


Escalante acariciou sua cabeça e a chamou “ma poupée23” como nos velhos
tempos. O general morreu dez dias mais tarde nos braços de sua mulher, e
Laura pensou que sua mãe jamais encontraria resignação, pois chorou três
dias seguidos. Se Alcira, a babá da bisavó Pilarita, tivesse vivido teria
assegurado que Magdalena Montes tinha seu nome bem posto.

Julián Riglos viajou a Córdoba ao saber da morte de seu sogro,


encarregou-se dos acertos do funeral e das tediosas questões de sucessão.
Laura, incapaz de pensar em nada, exceto que tinha perdido seu pai e que
sua mãe parecia quebrada para sempre, aceitou sua ajuda, apesar de ter
jurado que não voltaria a lhe pedir favor algum em sua vida. Semanas mais
tarde, quando retornaram a Buenos Aires, Riglos voltou a lhe estender a
mão, quando a defendeu com capa e espada contra a malícia de amigos e
parentes.

- Disse-me Maria Pancha que o doutor Pereda veio vê-la hoje


de novo - comentou Laura.

Magdalena se limitou a assentir sem separar a vista do


trabalho.

- Na reunião de dona Joaquina não a deixou nem um minuto


sequer- insistiu -. É evidente que a corteja.

Desta vez Magdalena deixou o bastidor e, simulando


aborrecimento, cravou o olhar no de sua filha.

- Pergunto-me se me permitirá terminar o traje do Romualdito.


Não tem nada a fazer? Sempre está atarefadíssima, daqui para lá com seus
compromissos e assuntos, jamais tem tempo para cruzar duas palavras com
sua mãe. Hoje, entre todos os dias, interessa-se pelo doutor Pereda.

- Interesso-me por você.

- Nazario e eu somos bons amigos, isso é tudo - concluiu


Magdalena, e retomou o bordado.

- O que faria se Nazario tentasse beijar você?

- Laura! - escandalizou-se Magdalena, e apertou os lábios para


ocultar um sorriso. Sua filha tinha sido ingovernável aos dez anos, não
pretenderia colocá-la nos trilhos aos vinte e seis.

23
Minha boneca (N. da tradutora)

Tradução Lauren Moon


- O que lhe dirá se lhe propuser casamento? - tentou Laura,
convencida de que seu mãe jamais responderia a pergunta anterior.

- Que não, é obvio.

- Por que não? É um cavalheiro, culto, refinado, agradável.


Apesar de seus anos, conserva-se em estado que não pode ser ultrapassado.
É diplomático - acrescentou -, viajaria pela Europa, acompanhando-o. Não
é essa uma virtude insuperável do bom doutor Pereda?

- Sabe que essas virtudes pouco me importam. São outras


qualidades as quais valorizo.

- Houve um tempo - falou Laura, depois de uma reflexão - em


que teria me conformado com um rancho, se tivesse podido compartilhá-lo
com quem amava.

Embora Magdalena jamais reprovasse sua escapada a Rio


Cuarto, deliberadamente tinha evitado o assunto do romance com o índio e
o escândalo com o coronel do Fuerte Sarmiento. Sem palavras, tinha ficado
claro entre elas que Magdalena não queria saber. Improvisadamente, Laura
trazia a lembrança à conversa, e Magdalena não conseguiu simular o
constrangimento. Pigarreou, nervosa, e ficou de pé. Acenderia o abajur a
gás, pois não era verdade que ultimamente escurecia mais cedo? Estava
forçando a vista em vão. Laura seguiu a figura ainda esbelta de sua mãe.
Um sorriso lastimoso entristecia seu semblante, enquanto pensava que
Magdalena Montes jamais aceitaria que sua única filha se entregasse a um
índio, e não importava um ardite24 quanto o tivesse amado.

Magdalena voltou para a cadeira e suspirou:

- Insisto - disse Laura - deveria reconsiderar o cortejo do


doutor Pereda. Como padrasto, a mim é extremamente aceitável. É
encantador.

- Sempre pretende sair com uma das suas. Sempre sai com
uma das suas - remarcou Magdalena.

- Isso também o diz a avó Ignacia.

- Será que estou ficando um pouco velha e resmungona como


ela. Já verá filha, chegará o dia em que dará a razão a sua mãe em tudo que
lhe disse e aconselhei. Mas possivelmente já não me tenha a seu lado.
24
Antiga moeda argentina correspondente ao centavo (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Maria Pancha bateu à porta e pediu umas palavras com Laura.
No corredor estendeu-lhe um bilhete. Laura o abriu e viu os dois números
rabiscados pelo coronel Artemio Gramajo.

- Sua mulher está de volta - anunciou Maria Pancha -. Esta


manhã a vi entrar na casa que ocupam, essa que alugam de dom Francisco
Madero na Rua de Suipacha. E escutei que sua tia Soledad dizia que tinha
encontrado com ela na missa de San Nicolás.

O comentário desorientou Laura, que jamais tinha reparado em


Clara Funes. Sua relação com Roca começava e terminava na casa do
Chavango, e o que cada um fazia fora daquele lugar carecia de importância
para o outro. Por isso mesmo havia contrariado o comportamento do
general em dona Joaquina. De alerta e sem justificação, Roca tinha violado
essa pauta implícita, pondo em risco, inclusive, sua própria carreira.

Sacudiu os ombros e partiu para seu quarto. Em breve, Ciro


Alfano, o ajudante de Mario Javier, deveria buscar seus escritos para o
próximo número de La Aurora e devia aprontá-los.

Tradução Lauren Moon


Capítulo V.

A despedida

Laura tentou deixar a cama, mas Roca a pegou pelo pulso e


obrigou-a a voltar. Cobriu-a com seu corpo e, enquanto passava um dedo
pela curva da sobrancelha, vários tons mais escuras que o cabelo, olhava-a
atentamente. Certa vacilação nos olhos castanhos do general a salvou de
desestabilizar-se, como de costume, cada vez que a contemplava desse
modo.

- Dizem que é perigosa - pronunciou Roca -, que deixou


Riglos louco quando tinha só treze anos e que Lahitte ainda não se repôs
por tê-la perdido. Dizem também que, inexoravelmente, é desventurado o
homem que lhe ama.

- Mas como esse não é seu caso, general - apontou Laura,


enquanto tentava desembaraçar-se -, nunca poderá me culpar de fazê-lo
desventurado.

Desta vez o olhar de Roca a constrangeu, e a força com a que a


segurou a deixou imóvel sob seu peso.

- Sempre é mordaz comigo - reprovou-lhe -. Às vezes acredito


que me odeia, porque sabe que nada me deterá em meu plano para jogar do
deserto os índios que tanto defende em La Aurora.

Laura dispensou-lhe um olhar perplexo. Supunha-se que


jamais abordariam o tema dos índios, menos ainda nesse lugar e nessas
circunstâncias. Julgou como um golpe baixo, e ficou de mau humor. Se ele
tocasse no tema, ela também o faria.

- Anos atrás meu irmão me disse que um índio não é feliz a


não ser nos Pampas, porque no fundo sabe que em qualquer outra parte será
desprezado e insultado. Você, Julio, tem-se proposto a lhes arrebatar a
terra, o último baluarte que fica, e lhe importa bem pouco o que será deles,
aonde irão, do que viverão. Afinal de contas -expressou -, eles também são
gente.

Tradução Lauren Moon


Roca tinha muito para objetar; acostumado no tema, achava-se
em posição de refutá-la habilmente. Não ganhou a batalha no Congresso no
ano anterior e conseguiu a aprovação da famosa Lei 947, vacilando e
mostrando-se inseguro. Pelo contrário, seus raciocínios, categóricos e
irrebatíveis, tinham-lhe granjeado a confiança e admiração da opinião
pública. Nesse momento, teria dado qualquer coisa por ganhar a confiança
e a admiração da mulher que jazia debaixo dele. Tinha cometido uma
estupidez ao mencionar a campanha militar contra os índios do sul; tinha
feito isso movido por ciúmes e raiva; deixava-o mal que Laura se
embandeirasse na defesa desses selvagens a quem ele considerava
irredimível. De qualquer maneira, preferiu mudar de assunto. Não
brigariam antes de se despedir.

- Ontem dava ordens para cumprir com o que seu irmão me


solicitou em sua última carta. Os uniformes novos e o pagamento chegarão
a Rio Cuarto por trem na semana que vem e, por expressa ordem minha,
serão entregues ao padre Escalante, quem se encarregará por reparti-los.
Envio também alguns pesos para gastos que ele julgue necessários.

Laura interpretou a trégua e, embora não abordasse o


argumento novamente, se propôs a dizer algo que suavizasse a acidez de
segundos atrás. Sabia que Roca ajudava Agustín simplesmente porque era
seu irmão.

- É um bom homem, Julio, e eu o respeito apesar de


discreparmos em muitas questões. Sei que leva à risca seus propósitos,
guiado por princípios e convicções claras e firmes. Sei também que ama
seu país e que faz o que faz pensando em sua grandeza e prosperidade. Não
são muitos os que podem gabar-se de algo assim. É um homem de
discernimento, e estou segura de que chegará aonde se propôs.

- É certo - falou Roca, a voz profunda e baixa -, amo a


Argentina. Conheço-a como ninguém, palmo a palmo. Percorri-a de Norte
a Sul e de Leste a Oeste. E em pouco tempo entrarei nessa zona que muito
poucos se animaram - recuou, porque não conseguia submeter o despeito
que ainda o dominava -, e darei à República uma terra que possivelmente
esconda grandes riquezas agora desperdiçadas.

Laura não replicou. De um ponto de vista racional, Roca


estava certo: anexar às terras do sul a um país que puxava por crescer era
não apenas lógico, mas também acertado. Mas ela não podia apreciá-lo de
um ponto de vista racional.

Tradução Lauren Moon


De volta em seu escritório, Roca convocou Gramajo e lhe
ordenou que conseguisse a folha de serviço do coronel Hilario Racedo.
Gramajo mandou pedir no Fuerte Sarmiento, em Rio Cuarto, e dias mais
tarde, chegou por trem nas sacas do correio. Roca a folheou em seu
escritório com ávido interesse. Passou por cima dos marcos da carreira do
militar, a quem tinha considerado um medíocre, e se limitou à parte onde se
detalhavam os fatos relacionados com sua morte. Assegurava-se que “O
ÍNDIO NAHUELTRUZ GUOR, FILHO DO CACIQUE GENERAL DAS TRIBOS
RANQUELINAS, MARIANO ROSAS, TENTANDO ULTRAPASSAR-SE VILMENTE
COM A SENHORITA LAURA ESCALANTE, FILHA DO GENERAL DA NAÇÃO DOM
JOSÉ VICENTE ESCALANTE, NO ESTÁBULO CONTIGUO A HOSPEDAGEM DA
SENHORA DONA SABINA CHÁVEZ, LOCALIZADO NO NÚMERO 10 DA RUA LA
PRINCIPAL, E QUE, PERCEBENDO NESSE MOMENTO O CORONEL HILARIO
RACEDO - ENCARREGADO DO FUERTE SARMIENTO NA AUSÊNCIA DO CORONEL
JULIO ARGENTINO ROCA - JUNTO AO QUE ASSINA, PUDERAM EVITAR O ATROZ
DELITO, COM O LAMENTÁVEL SALDO DA MORTE DO CORONEL RACEDO POR
CONTA DE UMA FACADA NO VENTRE, INFLIGIDO PELO SUPRA CITADO CACIQUE
GUOR, QUE CONSEGUIU ESCAPAR AJUDADO POR UM CÚMPLICE, DE QUEM ATÉ
O MOMENTO SE DESCONHECE A IDENTIDADE POR TER ATACADO AO QUE
ASSINA PELAS COSTAS”. Assinava o tenente Carpio. O relatório também se
espraiava nas características físicas do índio, e a Roca pareceu que se
assemelhava mais à descrição de um herói de novela romântica que a de
um réu foragido da Justiça. De tudo, o que mais o chateou foi o “MUITO
ALTO, POR VOLTA DE UM METRO NOVENTA”.

Guardou sob chave o expediente e retornou a seu escritório.


De um lado, o montão de papéis nunca diminuía. Não importava quanto se
empenhasse em responder aos pedidos e resolver os problemas,
multiplicavam-se sem tom nem som. Devia analisar o pressuposto de um
dos fornecedores que os supriria de mantimentos durante a campanha,
assinar o convênio de compra de vacas que se consumiriam durante a
marcha e concretizar a última aquisição de Remington. Apesar destas
urgências, ficou a pinçar nas gavetas em busca de uma carta que o coronel
Manuel Baigorria, possivelmente o mais experiente cristão salvo, tinha-lhe
escrito até San Luis pouco antes de morrer em 75. Nessa carta, Baigorria
lhe contava sobre sua vivência entre os ranqueles. Tinha lido essa carta
pela última vez anos atrás, mas podia jurar que o velho coronel unitário
mencionava o primogênito do Mariano Rosas.

~0~

No fim de março, Roca começou a ficar impaciente. Os


preparativos da campanha se encontravam virtualmente preparados. Às

Tradução Lauren Moon


vezes, rodeado pelas quatro paredes de seu escritório, envenenado de
pedidos e recomendações, sentia-se como um touro enfurecido antes de sair
à arena. Já queria começar a viagem, ver suas colunas avançar como um
pau de macarrão sobre os selvagens, cruzar o Rio Negro (que alguns
chamavam seu Rubicón25), pôr pé na ilha de Choele-Choel. Mas em sua
vida tinha aprendido que cultivar a paciência e controlar as paixões davam
frutos inestimáveis. Com essas máximas tinha percorrido sua vida militar,
vencido seus inimigos mais importantes e conquistado o grau de general
com apenas trinta e um anos. Assim tinha sido em 71, quando esmagou as
forças de López Jordán em Ñaembé, também em 74, quando pôs fim às
tentativas de rebelião do general Arredondo e o desbaratou em um ataque
estrategicamente perfeito em Santa Rosa Sofrenaría, então, a ânsia por
apressar a campanha ao deserto, ajustar-se-ia ao programa, respeitaria os
tempos, repassaria as fases, verificaria os percursos, as datas, os lugares,
nada ficaria liberado ao azar, nem o detalhe mais insignificante. Com
vontade de ferro, voltava para sua cadeira e prosseguia com a interminável
enxurrada de correspondência, documentos e expedientes.

Com Laura Escalante, ao contrário, Roca admitia seu fracasso,


experiência inesperada para ele, sempre conquistador e nunca conquistado.
Unidos por essa relação instável que o tinha maltratado, com vontade se
submetia à excitação que o despertava e se permitia esquecer que algum dia
o deixaria sozinho e desfeito. O certo era que a vontade de ferro, o cultivo
da paciência e o controle das paixões iam ao inferno quando a tinha perto,
como nesse momento em que ela, em frente à penteadeira, só coberta pelo
roupão de seda que lhe agradava, trançava seu cabelo. Provavelmente, essa
era a última vez que se veriam antes da campanha e, embora tivesse
mencionado, ela parecia indiferente.

Roca abandonou a cama e se colocou atrás de Laura. Deteve


suas mãos e desfez a trança. Ela, confusa, buscou-lhe o olhar no espelho.

- Que cabelo lindo! —pronunciou, enquanto espremia um


punhado entre seus dedos grossos e morenos -. Jamais tinha visto um loiro
como este.

A confusão de Laura e a censura em seus olhos o


desorientaram, fizeram-no sentir como um menino apanhado na
consumação de uma maldade. Laura lhe tirou a mecha e terminou de
trançá-lo habilmente.

25
Tomar uma decisão importante, afrontando o risco. É o nome de um rio na Península Itálica, que Júlio César, em 49 a. C.,
atravessou, apesar da proibição do Senado e com ele começou a guerra civil. Ao utilizar a expressão “atravessar o Rubicão” quer
dar a ideia de que tomou uma decisão arriscada de maneira irrevogável, sem volta. (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Tenho pressa, Julio - esgrimiu.

Roca não era alto, mas seus olhos entreabertos e seu cenho
permanentemente franzido conferiam-lhe a ideia de poder e fortaleza.
Laura evitou olhá-lo para ficar à margem da ira que seu desprezo tinha-lhe
provocado. Certamente, deveria ter-se sentido adulada: o general Roca
raramente conferia elogios. Mas ele não podia entender - e ela não podia
explicar - que a admiração que seu cabelo loiro despertava pertencia a
outro lugar, há outro tempo. A outro homem.

- Por que será - se perguntou Roca, sem esconder seu mau


humor - que sempre é primeira a partir? Esse é seu segredo, me deixar com
vontade? É um prato delicioso e exótico, Laura, mas com pouco gosto.

- Possivelmente vou antes porque sou a mais ocupada dos dois.

- Mais ocupada que o ministro da Guerra e Marinha, que anda


com a corda no pescoço e que tira tempo de um nada para vê-la?

Laura terminou de se vestir e Roca colocou sua capa sobre os


ombros. Repentinamente a assaltou a necessidade de abandonar aquela
casa e aquele homem que tanto tinha significado para ela ao longo desses
meses. De repente, a situação mostrou-se crua e mortal, e o remorso que a
oprimiu a fez caminhar até o vestíbulo com um nó na garganta.

O general se aproximou para beijá-la nos lábios, mas Laura lhe


ofereceu a bochecha. Ia transpor a porta quando a agarrou pelo pulso e lhe
disse:

- Sei que algum dia deixará de vir. Não acredite que


desconheço as lutas internas que lhe causam nossos encontros.

- Julio - suplicou ela.

- Prometa-me que voltará para esta casa quando eu retornar,


que estará aqui quando aquele assunto tenha terminado.

Laura levantou a vista e o contemplou fixamente.

- Prometa-me!

Não se tratava de uma súplica, mas sim da ordem de um


general, mas Laura não podia falar, não queria responder. Envolveu o
pescoço de Roca e procurou a familiaridade do perfume de sua pele.
Abraçou-o com ardor e começou a chorar.
Tradução Lauren Moon
- Não chora por mim - expressou Roca, tristemente.

- Choro por você, choro por mim, choro por aquelas pessoas.

- Chora por ele.

Laura tentou abrir a porta, mas Roca voltou a detê-la.

- Ainda não - disse, sem autoridade-. Não quero que vá


pensando o pior de mim. É importante para mim, saber que não deixa esta
casa me odiando.

A confissão foi desconcertante; Roca, que fazia da simulação e


de se ocultar uma arte, acostumou-a ao exercício do sarcasmo e da intriga.

Embora afetada, pronunciou:

- Se você busca minha aquiescência, não a terá.

- Isto é algo que tenho que fazer - se justificou.

- Convém a você que seja feito, que é muito diferente.

- Convém à Pátria - ele retrucou, ofendido.

Laura se perguntou o objeto daquela conversa. Esgotada


depois de um dia intenso de atividades e emoções, só queria terminar com
o encontro e voltar para sua casa. Mesmo assim manifestou:

- Alguém uma vez me disse: “Esta é uma guerra que só


terminará o dia em que um dos dois lados ficar destruído e esmagado no
campo de batalha”. Acredito que chegou esse dia. Ninguém pode deter a
força dos acontecimentos. E nesses acontecimentos, tocará-lhe o papel
principal. Julio, não acredite que meus sentimentos estejam me cegando,
que conhece tão bem. Não serei tão obtusa para lhe culpar pelo extermínio
dos índios do sul, quando sei que se tratou de um processo que levou
décadas e no qual se misturam muitos nomes além do seu. Estou certa de
que conseguirá a glória e os louros sem muito esforço, porque muito se tem
feito já para jogá-los de suas terras.

Claramente, suas palavras o tinham ferido. Bem sabia ela que


a sinceridade requeria um tempo e um lugar, um estado de ânimo também.
Sentiu tristeza, uma emoção que jamais acreditou experimentar em relação
ao general Julio Roca. O mal-estar dele, entretanto, não tinha a ver com o
sarcasmo e o rancor de Laura, a não ser com os ciúmes que o atormentava
Tradução Lauren Moon
quando a imaginava com o índio. Percebeu que fazia o papel de boneco de
pano. Agora ele queria sair dali, afastar-se dela, terminar com essa
maluquice sentimental tão alheia a seu caráter seguro e antissocial.
Agarrou o trinco, e desta vez foi Laura quem o deteve.

- Que Deus lhe acompanhe, Julio.

Tomou a mão do general entre as suas e a beijou. Roca a


abraçou e buscou seus lábios com desespero.

- Oh, Laura, Laura.

Mas ela se afastou. Nesse momento, não sentia desejo por ele.

Tradução Lauren Moon


Capítulo VI.

Tia Laura

A grande diversão de Pura Lynch consistia em passar o dia


com sua tia Laura. Diferente de sua mãe, sua tia falava sobre qualquer
assunto. Não havia assunto que não estivesse disposta a abordar e o fazia
sem meias palavras, pigarros nervosos ou admoestações. Com sua tia
Laura, Pura Lynch era livre.

Retornou do campo em Carmen de Areco e no dia seguinte


enviou um bilhete à casa de La Santísima Trinidad que voltou com a
resposta “Amanhã às 10:00 hs passo para lhe buscar. Tia Laura”. Havia
tanto a conversar, fazia tempo que não se viam, e, embora em “La
Armonía” não tivesse ocorrido nada extraordinário, os últimos meses
tinham sido cheios de ideias e pensamentos. Queria compartilhá-los com
sua tia.

O Landau dos Montes parou em frente aos Lynch, e José


Pedro desceu para bater à porta. Abriu-lhe a mesma Purita, que o saudou
com gritaria e correu até o carro, e, sem lhe dar tempo, abriu a portinhola e
pulou para dentro. Laura a recebeu com um abraço, enquanto Purita lhe
assegurava que tinha sentido saudades dela até as lágrimas.

- Está exagerando - disse Laura, enquanto a estudava, sua


sobrinha parecia ter mudado durante o verão, parecia mais bonita e
desenvolvida.

- Não exagero, tia. Senti saudades tanto que às vezes me


enchiam os olhos de lágrimas. É que não tinha com quem conversar, nem
passar um tempo agradável. Mamãe nunca tem tempo para mim. Tenho a
impressão de que está sempre amamentando Benjamim.

Laura riu e pensou que o melhor que podia ter-lhe acontecido


era sua sobrinha ter retornado para Buenos Aires. A última vez com o
general tinha deixado um gosto amargo em sua alma. Despediram-se
penosamente, ela com olhos arrasados e ele com o cenho mais apertado que
nunca. Fazia três dias disso, e Laura não havia voltado a saber dele.
Conhecia seus movimentos porque a imprensa só parecia interessar-se em
sua campanha no sul, além disso, aonde fosse, comentava-se a respeito da
iminência de sua partida, que se estimava nos primeiros dias de abril. Laura
terminou por aceitar que já sentia falta dele.
Tradução Lauren Moon
- Iremos às compras - expressou.

O brilho nos olhos celestes de Pura e o sorriso que lhe dedicou


começaram a fazer maravilhas em seu pesar.

- Comprarei tantas coisas para você que não terá lugar onde
guardá-las -afirmou.

- Oh, tia Laura! Não quero que me compre nada, só desejo


estar ao seu lado.

Laura passou um braço por seus ombros e a atraiu para ela.

- Estará ao meu lado - concedeu -, mas cheia de coisas lindas.


Além disso, quero que escolha seu presente de aniversário.

Como tinha prometido, Laura a levou às melhores lojas de


Buenos Aires e proveu-a de um guarda-roupa novo para o inverno, além de
toda sorte de acessórios. Ao longo da manhã, exploraram a Recova Nueva e
a Rua de Florida com José Pedro a tiracolo, fazendo malabarismos com os
pacotes. Terminaram na loja mais prestigiosa, Le Bom Marché, que, com
suas cristaleiras repletas de artigos do Velho Mundo e do Oriente Médio,
atraía às senhoras enriquecidas como moscas no doce. Mais se queixava
Purita, mais gastava sua tia. Na opinião de Laura, uma vez começada a
temporada de festas e bailes, nunca contaria com suficientes trajes,
vestidos, sapatos, chapéus, luvas e leques. Purita se reprimia de olhar duas
vezes um artigo por medo que sua tia a obrigasse a comprá-lo.

Perto do meio-dia, Laura pediu ao chofer que levasse os


pacotes aos Lynch e conduziu Pura à joalheria onde acostumava comprar
suas joias. Tinha in mente um jogo de pingentes e gargantilha de brilhantes
e rubis cabochões26. O joalheiro expôs o conjunto sobre uma base de
veludo e Purita o contemplou longamente.

- Pelo que me comentou madame Du Mourier sobre seu


vestido para sua festa de quinze anos, acredito que a combinação com estas
gemas será perfeita. Você não gosta? - desanimou-se, pois Purita
continuava calada -. O senhor Mazzini pode nos mostrar outras joias se
estas não forem de seu agrado. Eu gostei assim que as vi.

- É o mais lindo que vi em minha vida - manifestou Pura, com


esse exagero e espontaneidade tão características de sua personalidade -.

26
Forma de lapidação arredondada, sem lados (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Oh, tia Laura -pareceu reagir -, é muito, não posso, não devo aceitar, é
muito! Deve custar uma fortuna!

Laura desprezou o comentário e, em breves minutos, pagou a


compra com o senhor Mazzim, que sem questionar aceitou a oportunidade
da senhora Riglos e prometeu enviar as joias a primeira hora da manhã
seguinte à família Lynch. Por um bom momento, Pura se manteve
ensimesmada, sobressaltada ante a generosidade de sua tia.

- Iremos à loja de Climaco Lezica - comentou Laura.

- Não, por favor, não aos Lezica - protestou Pura.

- Não compraremos nada ali. Só quero saldar uma dívida.


Serão poucos minutos.

Um empregado foi chamar Climaco Lezica, que estava reunido


com seu contador na parte traseira do negócio. O semblante normalmente
pálido de Lezica se iluminou ao vê-las, e Laura intuiu que não era ela o
motivo de sua alegria. Climaco correu umas cortinas de veludo vermelho e
lhes indicou que entrassem em uma salinha primorosamente decorada com
confidentes amaciados, uma otomana em damasco vermelho vivo, mesas
de café e vários espelhos de cavalete. Pegou duas rosas de um vaso e as
entregou para “tão distintas damas” com uma leve inclinação.

- O botão - esclareceu -, para a senhorita Pura, que logo se


abrirá para converter-se na flor mais formosa.

Purita o recebeu com um sorriso, mas Laura, que a conhecia


exaustivamente, interpretou seu desagrado no tremor da mão e na forma em
que abria as narinas.

- Você precisa de um perfume - mentiu Laura, que já tinha


comprado dois frascos para ela -. Vá ao salão e prove algum de sua
preferência enquanto eu converso com o senhor Lezica.

Pura deixou o confidente e partiu. Laura se acomodou em seu


assento para enfrentar Lezica e o flagrou com o olhar concentrado na
silhueta de sua sobrinha. Tossiu, e o homem se recompôs imediatamente.

- Minha prima, a senhora Lynch - explicou Laura -,


encarregou-me que saldasse uma dívida que ela tem com você.

Tradução Lauren Moon


- Ah, sim, a dívida. Diga a sua prima, por favor, que não se
preocupe, que ainda posso esperrar uns meses.

- Não - disse Laura tão abruptamente que Lezica se moveu no


confidente com um impulso nervoso -. Ela quer saldar a dívida hoje, não
deseja fazê-lo esperar nem mais um dia.

Laura pagou à vista a avultada soma e Lezica estendeu o


recibo com cara amarrada. Retornaram ao salão de vendas onde Pura
passava o olhar pelas vitrines.

- Por favor, senhorita Pura - falou Lezica -, leve o que quiser,


sem cerimônia. Escolha o que desejar. Este perfume de violetas é delicioso.

- Não, obrigada - disse Pura, com acanhamento, sem levantar o


olhar -. Minha tia Laura já gastou uma fortuna comigo, já é suficiente.

- Leve-o, por favor, eu lhe dou de presente.

Tanto Pura como Laura o contemplaram com recriminação. As


regras sociais indicavam que um homem, de maneira alguma, poderia dar
de presente algo tão íntimo como um perfume a uma mulher sem
comprometer sua reputação. Climaco Lezica lamentou de imediato seu
arranque e se desculpou. Devolveu o frasco à prateleira e as acompanhou
até a saída, onde se despediu com o ânimo feito migalhas.

Laura convidou Purita para almoçar no restaurante do melhor


hotel de Buenos Aires, o Soubisa, tímida réplica do de Paris, mas com uma
cozinha excelente. Eram quase duas da tarde e, embora o lugar estivesse
cheio, o maitre conseguiu uma mesa para a viúva de Riglos. Liberou-as de
chapéus, luvas e bolsas, correu-lhes as cadeiras e lhes entregou as cartas
com os menus. Embora Laura parecesse concentrada na escolha dos pratos,
percebia os olhares de advertência do resto da clientela, que censurava a
presença de uma mulher em um restaurante com sua pequena sobrinha
como única companhia.

- Não deveria dizer isto - assinalou Pura -, porque minha


mamãe afirma que o mandamento “Honrar pai e mãe” também se refere
aos avós. Mas, ai, tia, não suporto a avó Celina! Esta manhã me advertiu
porque, segundo ela, pronuncio muito mal o francês e diz que é porque não
sou tão aplicada como minhas primas.

Laura olhou sua sobrinha sobre a bordo da carta.

Tradução Lauren Moon


- Você me lembra tanto a mim mesma quando tinha sua idade.

- Sim - expressou Purita, repentinamente tímida -, a avó Celina


também diz isso, que me pareço com você.

- Estou certa de que não o diz como um elogio - se divertiu


Laura.

- Não, não como um elogio - admitiu a moça -. Dias atrás se


zangou quando lhe disse que era mentira que os meninos eram trazidos
pelas cegonhas de Paris. A panaca da Genara - Pura se referia a sua prima,
a mais velha de Juan Marcos Montes - assentia como uma sonsa, enquanto
a avó lhe mentia descaradamente. Eu me levantei e disse “Isso não é
verdade. Os meninos não vêm em cegonhas”. Acredita que Genara me
perguntou se os encontrava em repolhos, então? - Laura soltou uma
gargalhada, e atraiu a curiosidade dos clientes -. “Não, Genara”, disse “Os
meninos são feitos por homens e mulheres quando dormem juntos”.

- Melhor que não tivesse dito nada - opinou Laura, à beira de


uma gargalhada novamente.

- Sim, teria sido melhor. A avó Celina me deu uma bofetada e


me trancou no meu quarto até de noite. No dia seguinte me obrigou a me
confessar com o padre do povoado, um velho amigo de Matusalém, a quem
tive que enumerar meus pecados aos gritos, porque está completamente
surdo. Meio Carmen de Areco deve estar opinando a respeito de minhas
maldades nesses dias. - Pura leu o menu outro momento até que voltou a
perguntar -: por que será que ninguém quer falar dessas coisas? De como se
fazem os meninos, refiro-me. Se você não me tivesse explicado tudo o que
sei, estaria tão alheia como Genara e o resto de minhas amigas. Quando
Virginia Basavilbaso teve seu primeiro sangramento no ano passado, pediu
para que sua mãe trouxesse um sacerdote para que lhe desse os Santos
Óleos.

Laura pediu pelas duas; Purita, muito ensimesmada em seus


problemas e queixa, não se decidia. Trouxeram os pratos, e a moça ainda
prosseguia com seu monólogo poucas vezes interrompido por alguma
observação de sua tia. Segundo ela, o mundo era mais justo e benevolente
com os homens que com as de seu próprio sexo.

—Em casa, qualquer besteira de Justo Máximo - Pura se


referia a seu irmão de treze anos - se festeja como se fosse um comentário
de São Tomás de Aquino. Eu, ao contrário, não posso abrir a boca sem que
haja reprimendas e caras feias. Estou cansada dos provérbios de avó Celina

Tradução Lauren Moon


- e Pura imitou a voz estridente de sua avó -. “Mulher que sabe latim não
encontra marido nem tem bom final” (isto me disse outro dia, quando pedi
a papai que me ensinasse latim). “A mulher não deve ser inteligente” ou “o
silêncio é o adorno mais formoso nas mulheres” (este fica reservado para
quando comemos).

- Se somente abrirmos a boca para dizer sandices ao estilo da


avó Ignacia ou de sua avó Celina - apontou Laura -, então sim, o silêncio é
o adorno mais bonito.

Pura levantou as sobrancelhas muito surpresa, era a primeira


vez que sua tia Laura se referia em termos tão diretos à loucura da bisavó
Ignacia ou da avó Celina.

- Eu poderia ampliar sua coleção de provérbios - continuou


Laura -. Escute este que me repetiam muito frequentemente quando tinha
sua idade. “O homem dá valor à mulher fácil tanto como a uma flor
murcha”.

- Avó Celina também diz isso! E só para mim! Nunca escutei


dizer isso para Genara ou Doura - outra prima de Pura, filha de sua tia
Maria del Pilar Montes.

- Tanto sua bisavó Ignacia como sua avó Celina - disse Laura -
hão aderido sempre ao preceito de que os homens são todo-poderosos e as
mulheres não devem ser inteligentes.

- E não é assim?

- É obvio que não! - exclamou Laura -. Tem que saber que


homens e mulheres são iguais, uns tão inteligentes como os outros. Ambos
merecem o mesmo tratamento e as mesmas oportunidades.

Sobreveio uma pausa. Pura comia com a avidez de um


menino, e Laura se encantava com seu frescor e inocência. O garçom
trouxe o segundo prato, e Pura se lambeu com uma expressão simpática
que fez rir a Laura, inclusive o rígido garçom de luvas brancas. Entre
mordidas e mordidas, Pura levantou o olhar e perguntou:

- Amou muito a tio Julián?

A pergunta direta deixou Laura sem resposta, mas a máxima


de jamais mentir a seus sobrinhos prevaleceu, e respondeu com aprumo:

Tradução Lauren Moon


- Não, não o amei. Quis muito a ele, sim, mas como um irmão,
como o amigo que era.

- Como sabe que não o amou? Possivelmente o amou e não se


deu conta. Como será amar? - perguntou Pura em evidente retórica.

- Amar é uma experiência tão prodigiosa, que pode senti-la em


todo o corpo como uma vitalidade que leva você a rir sem motivo, a correr
e a cantar, a levantar os braços ao céu e respirar profundamente, a apreciar
as coisas menores e mais insignificantes que antes você teria desprezado, e
desejar que todo mundo experimente o mesmo que você. O amor opera
tantas maravilhas nas pessoas que as faz pensar que o mundo é um lugar
magnífico e que todas as pessoas, inclusive sua avó Celina, são boas e
generosas. O amor, Purita, é uma antecipação do que experimentaremos no
Paraíso. O dia que se sintir assim, então saberá que está apaixonada.

Pura ficou olhando para ela.

- Sim, estive apaixonada uma vez - admitiu Laura.

- Por seu prometido, Alfredo Lahitte?

- Não, não por Alfredo. Por outro homem, alguém que você
não conhece, alguém muito afastado de tudo que você conhece.

- Onde ele está? O que foi feito dele? Por que não se casaram?

- Não sei onde ele está. Possivelmente tenha morrido anos


atrás, não sei. A vida nos separou em uma tarde do verão e nunca mais
voltei a saber dele.

Aflita pela confissão, Pura não conseguia perguntar. No


momento, só via com clareza a tristeza que transmitiam os olhos de sua tia.
Pensou: “Ainda o ama” e, embora extremamente interessada, absteve-se de
continuar perguntando.

O doutor Rufino de Elizalde, ministro das Relações Exteriores


durante a presidência de Mitre, aproximou-se da mesa e Laura o convidou
para uma xícara de café e a famosa pátisserie do Soubisa. Pouco depois,
apresentou-se Domingo Sarmiento, chamativo em contraste com sua pele
morena e o traje de brim claro. Tirou seu chapéu de Panamá e fez um
floreio para saudar Laura. Também aceitou acomodar-se à mesa da “mulher
mais formosa e cativante de Buenos Aires”, conforme pronunciou em seu

Tradução Lauren Moon


estilo alegre e berrado, isto mais como consequência de uma incipiente
surdez que de um aspecto de sua personalidade.

Embora em 68 de Elizalde e Sarmiento tivessem sido


adversários políticos - ambos batalhando pela presidência da República -,
nenhum dos dois parecia lembrar disso. Os modos encantadores de Rufino
de Elizalde e a gritaria e excentricidade de Sarmiento converteram a parte
final de almoço em uma experiência fascinante para Pura e gratificante para
Laura.

- Parece que o “Barbilindo27” - assim Sarmiento chamava


Roca desde seus dias de capitão - conseguiu o que se propôs: armar suas
legiões e embarcar em uma campanha para o sul, sem precedentes. Algo
que parecia um sonho, quase uma fanfarronice dois anos atrás! Este
tucumano, que parece não valer dois reais, obteve-o em poucos meses.

- Temos que esperar os resultados - contemporizou de


Elizalde, com sua habitual moderação -. Como você aponta, doutor, este
plano não tem precedentes, embora sim saibamos que está infestado de
perigos e riscos.

- Duvida do êxito da campanha, doutor? Assim como me


chamo Domingo Faustino Sarmiento, esse barbilindo do Roca vai anexar o
deserto à República e a terminar com a praga que são os selvagens. Dizem
que deixará Buenos Aires em poucos dias, e não me ocorre questionar que,
conforme o planejado, chegará ao rio Negro em 25 de maio.

- Um plano muito ambicioso - reconheceu de Elizalde.

- Tanto como quem o planejou - acrescentou Sarmiento.

Laura não conseguia determinar se o discurso de Sarmiento


escondia uma profunda admiração ou uma profunda inveja, mas,
conhecendo-o, soube com certeza que, fosse qual fosse o sentimento que o
sanjuanino28 albergasse por Roca, não seria nem morno, nem moderado.
Ela, por sua parte, açoitada por emoções antagônicas, escolheu se calar.

- Foi desumano o artigo que publicou ontem La Aurora -


mencionou Sarmiento, e mediu a reação de Laura pela extremidade do olho
-. Ele bate muito forte no governo. É bravo o tal Mario Javier. Apesar de
seu manejo com pluma não ser do melhor, parece ter um conhecimento
infinito sobre o assunto dos índios. Dizem que é de Rio Cuarto, que por
27
Pessoa bem afeiçoada e que se arruma muito. “Mauricinho” (N. da Tradutora)
28
De San Juan - Província da Argentina (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


isso está tão familiarizado com a questão. Inclusive me falaram (não sei se
é certo) que, uma vez, Mario Javier foi cativo do cacique ranquel Mariano
Rosas. Isto converteria sua postura em um absurdo. Deveria odiá-los!

Laura persistia em seu silêncio, como se Sarmiento discorresse


em uma língua ininteligível. Embora soubesse a que se referia. O artigo de
La Aurora, entitulado de “Os bárbaros de Tierra Fuera”, na realidade, era
uma peça do padre Agustín Escalante, que, tendo escolhido não se misturar
em questões políticas, pediu a Mario Javier que o revisasse, corrigisse e
publicasse sob sua assinatura. O artigo denunciava a contradição de um
governo que, confessando-se católico, empreenderia uma matança contra
pessoas que só contavam com lanças e boleadeiras para se defenderem.
Insistia que esses, a quem os brancos se empenhavam em chamar de
selvagens, eram redimíveis e que, com educação e evangelização, poderiam
ser incorporados à cultura do país para converterem-se em uma força de
trabalho que os ajudassem em seu desenvolvimento.

- O artigo é impactante - admitiu Sarmiento-, mas basta lê-lo


duas vezes para encontrar suas fissuras. Em primeiro lugar, apoia sua tese
em uma hipótese errônea: a possibilidade de resgatar essas bestas. Por
acaso todos estes anos em que padecemos sob seus ataques e safadezas não
nos serviram para nos convencer de que são irrecuperáveis?

- No meu ponto de vista, sua hipótese é também errônea,


doutor - expressou Laura com desenvoltura, e Sarmiento levantou as
sobrancelhas e arregalou os olhos -. O engano radica em considerar que a
nossa é a única verdade. Essa é uma vaidade imperdoável, uma miopia
cultural que fala má dos argentinos como sociedade. Por que considerá-los
redimíveis ou irredimíveis? Os índios do sul são o que são. Tratar de
mudá-los foi o que nos tornou inimigos todos estes anos. Eles, apesar de
suas desvantagens e atrasos, estão conscientes e orgulhosos de sua cultura,
de seu povo, de suas tradições, e não querem perdê-los, assim como você
não gostaria de perdê-los se uma cultura estrangeira tentasse se impor em
Río de La Prata. Acaso não jogamos a baldes de água quente os ingleses no
ano de seis? E com certeza você concordará comigo em que a inglesa é
uma sociedade e uma cultura muito superior à nossa. Pois bem, sejamos
coerentes e justos na análise, e não atribuamos aos índios do sul algo que,
na realidade, nós mesmos temos feito no passado: defender nossa cultura e
liberdade. Se os tivéssemos respeitado desde o começo e tivéssemos tratado
de integrá-los a nossa ideia de país, aceitando suas diferenças, seus cultos e
ritos, não teria escorrido uma gota de sangue, tenha-o por certo. Mas a
triste realidade, senhores - e usou uma inflexão marcada pelo desalento -, é
que os argentinos nem sequer têm uma ideia clara de país.

Tradução Lauren Moon


Laura conseguiu o que poucos tinham conseguido: deixar
Sarmiento calado. De Elizalde disse que jamais tinha contemplado o
problema do índio dessa óptica, sem dúvidas uma análise interessante. De
repente, Sarmiento percebeu em Pura, que apenas tinha levantado a vista da
toalha, sobressaltada pela presença desses cavalheiros tão notáveis,
assustada pelo vozeirão de Sarmiento.

- De maneira que esta senhorita é a filha de José Camilo. Por


sorte, querida, você herdou a beleza dos Montes. É o retrato vivo de sua
mãe.

- Obrigada, doutor - balbuciou Purita.

- Quantos anos você tem?

- Farei quinze no próximo dia 20 de abril.

- De maneira que quinze - resmungou Sarmiento.

- Será uma grande festa - atravessou Laura -. A apresentação à


sociedade de minha sobrinha não passará inadvertida. Com certeza
Faustina e Maria del Rosário -Laura falava da filha e da irmã de Sarmiento,
que viviam com ele em sua casa da Rua de Cuyo - já receberam o convite.

- Magnífico! - pronunciou Sarmiento -. E levarei meus três


netos mais velhos, Julito, Emilia e Augusto, que estão na idade de se
divertirem e conversarem entre pessoas decentes.

De Elizalde e Laura riram ante a indiscrição do sanjuanino,


que dispunha da lista de convidados dos Lynch sem prudência. Uma
conduta que seria considerada como falta de educação, em Sarmiento era
vista como a divertida extravagância de um homem do mundo. Perdoavam-
lhe qualquer coisa, inclusive que vivesse separado de sua mulher, Benita
Martínez Pastoriza, e que se pavoneasse com sua amante de anos, Aurelia
Vélez Sarsfield. Ninguém atribuía nada a Sarmiento, simplesmente porque
era Sarmiento. Pura, não tão conhecedora da incansável trajetória do ex-
presidente, olhou-o com cara de poucos amigos.

O doutor de Elizalde pagou a conta de um almoço que não


comeu, e embora Laura a princípio rechaçasse semelhante generosidade,
finalmente deixou-o fazer o que quisesse. Convidou-os para jantar no dia
seguinte na casa de La Santísima Trinidad. Sarmiento se desculpou com
um compromisso familiar, mas de Elizalde aceitou. Laura sorriu agradecida
enquanto decidia convidar também Mario Javier e sentá-lo junto a de

Tradução Lauren Moon


Elizalde. Fazia tempo que havia decidido contar com o ex-ministro das
Relações Exteriores (na opinião de alguns, o primeiro que a Argentina
teve) entre os colunistas de La Aurora; tanto a sensatez e a sutileza de seus
julgamentos, como a excelência de sua pluma eram reconhecidos.

Laura destinou o resto da tarde para comprar presentes para os


irmãos mais novos de Pura: Justo Máximo, Rafael, Adela e Benjamim, um
bebê de meses. Perto das seis, Pura disse que tinha fome e Laura a
convidou ao Don Godet, uma chocolateria sobre a Rua do Cangallo. Logo
que cruzaram o portal, Laura percebeu que Roca, sua mulher Clara e seus
quatro filhos ocupavam uma mesa perto do mostrador; uma jovenzinha,
certamente do serviço doméstico, segurava Clara Roca, a mais nova, de
apenas uns meses. Ao escutar o sino da porta, tanto Roca como Clara se
viraram e a saudaram com uma inclinação de cabeça.

Purita falava da enorme tigela de chocolate e das massas com


nata que pediria, mas Laura não a escutava. A presença de Clara Funes era
muito predominante para perceber ao redor. Durante seu namorico, jamais
tinha parado para pensar na esposa de Roca. Nesse momento, entretanto, o
peso de seu olhar e essa inclinação fria e formal a deixaram atordoada.
“Sabe, - repetia -, sabe que me deito com seu marido”. Percebeu um
movimento na mesa dos Roca e, apesar de não levantar a vista, pressentiu
que o general se aproximava. Implorou que passasse reto e que nem sequer
a olhasse.

- Lá vem o general Roca - anunciou Pura entre dentes, e as


esperanças de Laura se perderam; uma sensação de pânico acelerou sua
respiração.

- Boa tarde, senhora Riglos - saudou -. Boa tarde, senhorita


Lynch.

- Boa tarde, general - respondeu Pura.

—Minha esposa deseja saber se seriam tão amáveis em


compartilhar nossa mesa.

Laura lançou uma olhada desesperada a Roca, que o devolveu


com frieza. Ele parecia tão cômodo; ela, ao contrário, não sabia se
conseguiria ficar em pé.

- É muito amável - conseguiu articular -, mas nós não


gostaríamos de interromper uma reunião familiar que, possivelmente, seja a
última em muito tempo.

Tradução Lauren Moon


- Não interrompem nada - assegurou Roca -. Por favor, me
acompanhem - disse, e estendeu sua mão para Pura.

Laura agradeceu o convite a Clara, que segurava em seu colo


Maria Marcela, de dois anos, e se sentou na cadeira que o general
aproximou. Elisa, de quatro, escondeu o rosto na saia da criada e, embora
seu pai a forçasse a cumprimentar, não voltou a levantá-lo por vários
minutos, quando teve a certeza de que ninguém prestava atenção nela.
Julito, o mais velho, ficou em pé e estendeu a mão a Laura e logo a Pura,
com arrogância. Laura pensou: “Levanta as comissuras do mesmo modo
que seu pai”.

Seguiram as perguntas e comentários de rigor em um ambiente


tenso e desconfortável. O general bebia seu chocolate, e Laura tinha a
sensação de que era o único que não sofria o desconforto.

- Minha mãe comentou - falou Clara - que sua tia Selma


morreu em outubro passado. Sinto-o muito.

- Embora seja uma grande perda - mentiu Laura -, não foi uma
surpresa. O doutor Allende advertiu que seu coração não resistiria muito
tempo.

- Era muito idosa?

- Tinha oitenta e dois anos.

- Certamente não os aparentava.

- Ninguém jamais daria a idade que tinha - coincidiu Laura -,


com seu porte sempre ereto e sua silhueta tão entalhada. Foi uma mulher
ativa e enérgica por toda sua vida.

- O que fará com a casa? É uma bela propriedade.

- Está à venda.

- Oh - surpreendeu-se Clara -. Pensei que desejasse conservá-


la.

- Não. Sem meu pai e tia Selma, não acredito que retorne a
Córdoba.

- Ah, eu sempre retorno a Córdoba. Sinto falta de minhas


irmãs e de minha mãe. Somos muito companheiras. E aqui... Enfim, aqui
Tradução Lauren Moon
não tenho ninguém. Os amigos e conhecidos são de Julio, mas eles não são
meus amigos.

“Por cortesia, - pensou Laura -, deveria oferecer-lhe minha


amizade e a de minhas amigas”. Mas não pôde. Preferiu dirigir a palavra a
Roca antes a agir com hipocrisia.

- Todos se perguntam quando empreenderá sua campanha,


general.

- Parto depois de amanhã - respondeu Roca -. Por isso esta


pequena despedida com minha família.

Julito deixou sua cadeira, aproximou-se do ouvido de Clara e


sussurrou:

- Julio! - encolerizou-se o general -. É uma grande falta de


respeito cochichar na frente de outras pessoas.

- Não seja tão duro com o menino - atravessou a mãe -. Só se


aproximou para me dizer que a senhora Riglos é muito bonita.

Laura mordeu seu lábio para reprimir a risada, não pela


observação de Julito Roca, mas sim pelo evidente constrangimento do pai,
a quem tinha enrubescido as bochechas. Nunca o tinha visto tão
embaraçado.

- Obrigado, Julio - falou Laura -. É um perfeito cavalheiro.

- Por que não pinta seu cabelo da cor da senhora Riglos,


mamãe? - pediu o menino.

- Eu não gosto! - prorrompeu Elisa, e assustou Clarita, que


começou a chorar.

- Julio - explicou a mãe -, a senhora Riglos não pinta seu


cabelo. Naturalmente é dessa cor.

- Eu não gosto! - insistiu Elisa, e voltou a esconder seu rosto


no colo da criada.

- Suficiente! - chateou-se Roca -. Já é hora de ir embora, Clara.


Ainda tenho coisas para fazer no escritório.

- Sim, sim, é obvio.


Tradução Lauren Moon
Despediram-se aos tropeções, enquanto Clara e a criada
recolhiam sacos, mantilhas e chocalhos, e abrigavam os meninos. Roca e
Laura se olharam fugazmente, e Laura não encontrou nos olhos do general
o reflexo da culpa que lhe atormentava. Guiada por preconceitos e
ressentimentos, tinha considerado Clara Funes melindrosa e pacata; agora
devia aceitar que se tratava de uma mulher doce e maternal, sem ares nem
vaidade, mas bem vulnerável e delicada. Essa vulnerabilidade e delicadeza
a fizeram se sentir pior.

Tradução Lauren Moon


Capítulo VII.

Notícias do velho continente

No dia seguinte, não só o doutor Rufino de Elizalde jantou


com os Montes; também os acompanharam o doutor Nazario Pereda, Mario
Javier, o casal Lynch, dona Luisa del Solar, os pais de Eugenia Victoria -
Celina e Lautaro Montes -, e tia Carolita, que trouxe carta de Armand
Beaumont, seu enteado, e leu em voz alta depois da sobremesa. Armand,
junto com sua esposa Saulina, seus cunhados e uns amigos, visitariam
Buenos Aires em poucos dias. A carta, datada em Paris no final de
fevereiro, tinha chegado há três dias, e tia Carolita, entusiasmada como
fazia tempo não a via, falava incansavelmente dos preparativos para
acolher um grupo tão numeroso.

Os homens se agruparam em um extremo da sala a fumar seus


puros e beber absinto, e as mulheres escolheram se acomodar em torno da
velha bergére da avó Pilarita, muito ocupadas com suas mãos nos trabalhos
e suas línguas na fofoca. Laura, que não tinha talento para a agulha, bebia
café e admirava a destreza de sua prima Eugenia Victoria, que bordava uma
mantilha para Benjamim.

- Carolina, sabe que pode dispor desta casa como se fosse sua
para receber seu enteado e essas pessoas - falou Ignacia, e imediatamente
pediu o consentimento da Laura, que ratificou suas palavras com um
sorriso.

- Obrigada, Ignacia, sempre sei que posso contar com você.


Mas sabe quão grande é essa casa que Jean-Emile comprou para mim. Vai
me alegrar vê-la cheia de gente e bulício.

- Se chegarem antes do dia vinte - interveio Celina Montes -,


devemos incluí-los na lista de convidados, Eugenia Victoria. Quando disse
que chegam, Carolina?

Tia Carolita confirmou que, conforme o programado, o


Bretagne atracaria no porto de Buenos Aires em dezesseis de abril.

- Já vê? Devemos incluí-los.

Tradução Lauren Moon


- Sem problema - replicou Eugenia Victoria e, embora
simulasse um ar sereno, preocupou-se; a lista parecia não ter fim, os gastos
tampouco.

- E não se esqueça de adicionar os três netos mais velhos de


Sarmiento - brincou Laura -, que quando mencionei que, com certeza, o
convite para ele, sua filha e seu irmã já estava em sua casa, declarou, sem
rodeios, que também levaria Julito, Emilia e Augusto.

- Sei; Purita me disse - respondeu Eugenia Victoria, desta vez


sem esconder o mau humor -. Por falar de ontem - disse em tom
confidencial, e se virou para o lado, Laura se inclinou sobre seu ombro -.
Deveria matar você, prima! Não me animo a calcular quanto gastou em
presentes para Pura e os outros. Mas em especial para Pura! Esta manhã,
Mazzim enviou a gargantilha e os pingentes, e até minha mãe admitiu que
era a joia mais bonita que tinha visto, apesar de estar muito desgostosa com
você pelo último capítulo de La verdad de Jimena Palmer. Ameaço que
não me diga a fortuna que custou. Acredito que se chegasse a conhecer o
valor, teria uma vertigem.

- Acompanhe-me a minha antessala - pediu Laura -. Quero lhe


mostrar o chapéu que comprei ontem no Le Bom Marché. Sua filha é da
opinião de que é atrevido.

Encontraram Maria Pancha no dormitório, atarefada em


guardar os caros vestidos de verão em um arca. Colocava bolsinhas de tule
com ramos de baunilhas e sementes de lavanda para preservá-los do cheiro
de guardado e umidade.

- Se tivesse ido ontem às compras com minha prima e Purita -


manifestou Eugenia Victoria -, sua sensatez teria prevalecido e não teria
admitido semelhante esbanjamento.

Maria Pancha se limitou a sorrir, sabendo de que jamais


privaria Laura do que mais gostava: agradar seus sobrinhos.

- Na realidade - falou Laura, enquanto indicava uma cadeira a


Eugenia Victoria -, não queria mostrar chapéu nenhum. Só desejava que
soubesse de minha boca antes da boca de Climaco Lezica, que ontem
cancelei a dívida que mantinham com ele.

Instintivamente, Eugenia Victoria ficou em pé Laura


permaneceu sentada.

Tradução Lauren Moon


- Toda a dívida? - Laura assentiu -. Tanto dinheiro.

- Sei que estão em apuros econômicos e que a festa de Pura é


muito cara. Como sua madrinha, quero ajudá-los.

- Como farei para dizer a José Camilo? Ficará furioso quando


souber. Ele não quer que outros saibam. É muito orgulhoso, sua família
também, eles falaram tanto e agora...

Eugenia Victoria seguiu discorrendo até que Laura ficou em pé


e pegou sua mão.

- Eu não sou “outros”, eu sou sua melhor amiga, você é como


uma irmã para mim, a mais querida das minhas primas. Quero ajudá-los -
insistiu.

Eugenia Victoria cobriu seu rosto e começou a chorar. Maria


Pancha saiu da antessala e voltou depois com um chá de tília. Eugenia
Victoria, mais calma, secava suas lágrimas e assoava o nariz.

- Beba isto - a insistiu a criada -, vai lhe fazer bem.

- Vocês não sabem o que é conviver com um jogador


contumaz como meu sogro. Dom Justo Máximo foi assim a vida toda, mas
nos últimos anos, seus impulsos de jogador se tornaram tão arrojados, que
tememos que uma noite dessas coloque sobre a mesa de pôquer a escritura
da casa, a única coisa que fica sem hipotecar. Passa o dia no hipódromo e
as noites no Club del Progreso, jogando todos os jogos de cartas que
existem. José Camilo faz malabarismos para honrar suas dívidas, mas a
fortuna que uma vez parecia inesgotável, hoje já não existe. São tantos os
gastos de uma casa com cinco filhos! Às vezes receio que chegará o dia em
que não terei dinheiro para comprar mantimentos.

- Jamais! - protestou Laura -. Enquanto eu tiver meios, sua


família jamais passará fome, nem necessidade alguma.

Os olhos avermelhados de Eugenia Victoria tornaram a


lacrimejar. Abraçou o pescoço de sua prima e chorou desconsoladamente.
Laura sussurrou palavras de alento e acariciou suas costas até que percebeu
que Eugenia Victoria se tranquilizava.

- Sinto-me tão bem agora que lhe confessei isso.

- Deveria ter me dito antes - repreendeu Laura.

Tradução Lauren Moon


- Sabe que José Camilo é orgulhoso. Reagirá mal quando
souber que você pagou a dívida de Climaco.

- Bem pouco me importa a reação de José Camilo. Somos bons


amigos e queremo-nos muito. Nosso carinho resistirá à tormenta que
desatará contra mim. Também terá que guardar o orgulho no bolso quando
for pagar madame Du Mourier pelo vestido de Pura. Amanhã mesmo você
irá cancelar essa dívida, Maria Pancha.

Ao retornar à sala, ninguém notou o nariz avermelhado de


Eugenia Victoria, à exceção de seu marido, que franziu o cenho. Voltaram
a ocupar seus lugares e se juntaram à conversa, agora com os cavalheiros.
O doutor de Elizalde comentava:

- Hoje estive com Lucio Victorio e me disse que sua irmã,


Eduarda, chegou ontem da Europa.

À menção desse nome, Laura se interessou. Eduarda Mansilla,


uma mulher a quem não conhecia e a quem, entretanto, admirava
profundamente. Preferida na corte de Eugenia Montijo, destacada entre os
íntimos do presidente Grant, aparentada com um barão francês, Eduarda se
assemelhava mais a uma chamativa personagem da aristocracia europeia,
que à sobrinha predileta do Restaurador. Atraída por sua índole de matizes
contrastantes, Laura tinha devorado seus livros Lucía Miranda, El médico
de San Luis y Pablo, ou La vie dans les Pampas. Admirava-a por sua
irreverência e descaramento, por pensar diferente e conjurar a coragem para
expressá-lo, por atuar de acordo com suas convicções, apesar dos
falatórios. Através de suas novelas, arrolava-se na defesa da mulher, a
quem julgava o sexo forte, em aberta oposição à cultura remanescente que
as tinha por seres sentimentais, mudáveis, pouco confiáveis e desprovidos
da inteligência masculina, concepção refletida nas leis, onde as igualava
aos menores e aos incapazes, sempre sujeitas à autoridade paterna ou a do
marido. Laura também era fascinada por outro aspecto da filosofia da
Eduarda: a defesa do índio, comum denominador de quase todos seus
livros. Assim como Lucio Victorio, Eduarda os entendia parte da
República, uma etnia com desvantagens que podiam ser salvas, mas parte
do conjunto nacional, de sua tradição e história, que de maneira alguma
deveria ser aniquilada ou reduzida a um grupo marginal. Como lógica
reação, a personalidade e o comportamento anacrônicos da Eduarda eram
reputados como inadmissíveis e era condenada abertamente.

- Fazia anos que não visitava o país - prosseguiu de Elizalde -.


Dona Agustina está encantada em tê-la outra vez em casa.

Tradução Lauren Moon


- Eu não estaria tanto - interpôs Celina Montes -. Afinal de
contas, dizem que abandonou o pobre do García e seus filhos para
continuar com esse desvario que meteu em sua cabeça: ser escritora.

Eugenia Victoria lançou uma olhada envergonhada a Laura,


que lhe devolveu um sorriso, sem demorar-se na sutileza de tia Celina.
Jurou a si mesma que contaria com a pluma de Eduarda Mansilla em La
Aurora com o que pudesse. Iria tentá-la com um bom pagamento; inclusive
ofereceria um contrato para editar novamente suas obras. Eduarda não se
negaria, depois da publicação do livro de Julián, que tinha sido um êxito de
vendas, a Editora del Plata granjeou um bom nome que Eduarda saberia
apreciar.

- Escrever não é o único talento de Eduarda, conforme entendi


- comentou dona Luisa del Solar -. Dizem que canta e toca piano à
perfeição.

- Quem forma o grupo que acompanha seu enteado e esposa,


Carolina? - interessou-se Ignacia.

- Virão os irmãos de Saulina: a duquesa de Parma y Ventura


Monterosa. Acompanha-os também um grande amigo de Armand, que é
argentino. Seu nome é Lorenzo Rosas e vem com seu pupilo.

À menção daquele nome, Laura deteve sua conversa com dona


Luisa. Ela conhecia um Lorenzo Rosas; na realidade, conhecia um
Nahueltruz Guor que também se chamava Lorenzo Rosas. Impossível que
se tratasse da mesma pessoa. Afinal de contas, Lorenzo era um nome tão
cristão e honorável como qualquer um, e Rosas, um sobrenome comum.
Não satisfeita com seu raciocínio, perguntou:

- De onde é o senhor Rosas?

- Se não me falha a memória, de Córdoba.

- Da mesma cidade?

- Acredito que não.

- A que se dedica?

- Sinto muito, querida, não sei - se desculpou Carolina


Beaumont -. Só sei que Armand administra sua fortuna.

Tradução Lauren Moon


- Faz tempo que são amigos? - insistiu Laura, apesar dos
olhares estranhos dos quais era foco.

- Há alguns anos, Armand o aprecia muito. Seu pupilo, o


jovem Blasco, que, como já disse, também formará parte da comitiva, é um
exemplo de boa educação e cultura.

Ao nome de Blasco, Laura já não duvidava a respeito da


identidade do amigo de Armand Beaumont. Permaneceu calada. De
repente, o abajur de cristal de Murano envolveu-a em um resplendor que a
deslumbrava. Não se deu conta porque havia perdido o sentido do tato, mas
suas mãos, que entrelaçava como se rezasse, se encontravam úmidas e
frias. Aturdida pela magnitude da revelação, sua mente repetia: “Vive,
Nahuel vive”.

Tradução Lauren Moon


Capítulo VIII.

Olhos pretos, trança de ouro

O encontro com o Nahueltruz Guor era iminente. Essa noite,


Laura viveria possivelmente o momento mais comovedor e forte de sua
vida ao participar de um jantar na casa de tia Carolita para dar as boas-
vindas a seu enteado, Armand Beaumont, a sua mulher, a veneziana
Saulina Monterosa, e ao grupo de amigos que os acompanhavam, do qual
Lorenzo Rosas formava parte. Um sentimento de antecipação à mantinha
em xeque desde que conheceu o destino de Nahueltruz. Assim como ela,
Maria Pancha era da opinião que acreditar tratar-se de outro Lorenzo Rosas
e de outro Blasco era uma tolice.

- Agradeça ao menos por saber que vai encontrá-lo esta noite -


manifestou a criada, com o aprumo habitual, enquanto recolhiam violetas
do jardim de dona Ignacia.

O ânimo da Laura se debatia entre a angústia pelo reencontro


com Guor e a alegria de voltar a ver seu irmão, que tinha enviado um
telegrama onde anunciava que chegaria a Buenos Aires em dois dias, pela
ferrovia Central Andina. De certo modo, a presença de Agustín se
converteria na tranquilidade que precisava para aguentar o confronto com
Nahueltruz.

Essa noite, Laura e sua família chegaram tarde em tia Carolita,


e suas sobrinhas, as mais velhas, saíram para recebê-la: Pura Lynch,
Genara Montes, filha de Juan Marcos, e Eulalia e Doura, filhas de María
del Pilar Montes, casada com o Demetrio Sastre. Em coro aclamavam o
majestoso vestido de tia Laurita, admiravam-lhe as joias e asseguravam-lhe
que Maria Pancha nunca a tinha penteado tão bem, mesmo usando o
penteado de sempre, uma trança sobre o cocuruto como se de um diadema
se tratasse, e a outra, grosa e larga, sobre suas costas até a cintura. Laura as
escutava e sorria, enquanto colocava em seu decote os ramalhetes de
violetas que essa tarde, com ajuda de Maria Pancha, tinha confeccionado
para elas. Em um esforço de vontade, Laura mantinha um sorriso nos
lábios, a voz segura e as mãos firmes.

- Quando os cavalheiros se inclinarem para saudá-las - dizia -,


o aroma das violetas irá cativá-los.
Tradução Lauren Moon
- Quem é esse homem tão alto? - interessou-se Ignacia,
olhando a sala.

- Quem, avó? —perguntou Pura.

- Pois, qual, menina! Que parece um armário.

Laura terminou de prender o ramalhete no decote de Doura e


dirigiu o olhar para a sala. Doura, que lhe sustentava a mão enluvada, em
seguida notou seu sobressalto.

- O que aconteceu, tia?

Para Laura, a sala de tia Carolita, cheia de gente, vozes e


ruídos, havia-se calado. Só escutava as palpitações de seu coração e via
Nahueltruz Guor.

Porque embora tivesse o cabelo curto, prolixamente penteado


para trás, e vestisse um fraque escuro, Laura o teria reconhecido entre
milhares. As pessoas se moviam e falavam, e o entusiasmo e a alegria se
propagavam no ambiente, mas ela se mantinha alheia ao que ocorria,
concentrada no homem alto e forte que conversava na sala, cujo rosto se
destacava, pois não levava bigodes nem barba, consequência de sua
condição de imberbe que delatava seu sangue ranquel, e não um desprezo
pela moda.

Em algum momento, os sons se voltaram mais audíveis e as


cores dos vestidos atraíram sua atenção. Pouco a pouco começou a tomar
consciência das pessoas que a rodeavam e dos diálogos que a cercavam. As
imagens, porém, passavam lentamente, como se ocorressem sob a água,
mais parecidas com as cenas confusas de um sonho que à realidade. Nada a
teria preparado para aquele instante, nem sequer saber que se toparia com
ele depois de mais de seis anos. Nahueltruz riu e jogou a cabeça levemente
para trás, e Laura sofreu um estremecimento ao recordar essa maneira de rir
tão típica dele.

- Acompanhe-me à penteadeira, Dorita.

- É obvio, tia.

Na penteadeira, Laura pôs os pulsos sob a torneira, enquanto


Doura procurava sais no estojo de primeiro socorros. Uns minutos de calma
devolveram-lhe a estabilidade. Restou uma enxaqueca feroz e, quando
esticou a mão para segurar sua bolsa, notou que tremia. Sentia frio, apesar

Tradução Lauren Moon


das gotas de suor deslizarem-se por seu ventre. Passou perfume
generosamente e beliscou suas bochechas para devolver-lhes a cor.

- Dorita, vá à biblioteca e me traga um cálice de Porto sem que


lhe vejam.

Perguntou-se como reagiria Guor ao vê-la em sua frente,


ficaria tão impressionado como ela, ficaria alterado ou gaguejaria? “Vive, -
pensou -. Sempre soube que tinha sobrevivido à bala do tenente Carpio.
Meu coração me dizia que em algum lugar Nahuel ainda existia”. Formou-
se um nó em sua garganta e não conseguiu reprimir as lágrimas. Chorava,
porque intuía que o abismo aberto entre eles ao longo desses anos era muito
profundo para atravessá-lo. Secou suas bochechas e tentou se acalmar,
Dorita acabava de voltar.

- Aqui está o Porto. Tia Carolita pergunta por você. O senhor


Beaumont e sua esposa querem lhe conhecer. Sente-se melhor? Podemos
retornar?

- Sinto-me melhor. Voltemos - disse, depois de esvaziar o


cálice. No caminho para a sala, novamente questionou a insólita e
inexplicável amizade entre Guor e Armand Beaumont, e a ironia que
significava sua presença na casa de tia Carolita. Vestido com a elegância de
um conde francês, conversava com a desenvoltura de um catedrático e ria
com a despreocupação de um cortesão. Arrependeu-se, não entraria na sala,
não o enfrentaria.

- Aqui está, querida - exclamou tia Carolita, e saiu para recebê-


la. Laura titubeou no portal.

- Obrigada por trazê-la, Dorita. Pois bem, Armand -


prosseguiu a senhora e, pegando Laura pelo antebraço, apresentou-a aos
convidados -, aqui está, esta é minha sobrinha, Laura Escalante, viúva de
Riglos, de quem tanto lhe falei e a quem tanto deseja conhecer.

Os cavalheiros ficaram em pé, e Laura teve a impressão de que


eram muito numerosos. Percorreu seus rostos e não encontrou o de
Nahueltruz.

- Voilá! - exclamou Armand Beaumont, e beijou a ponta de


seus dedos. Ninguém reparou em que lhe tremiam os lábios ao dirigir um
sorriso, mas ela pressentiu que desmoronava. Seu conhecimento do mundo,
seu manejo com as pessoas, seu equilíbrio e autoconfiança desapareceram

Tradução Lauren Moon


em um instante. Nesse instante, não era mais que uma menina morta de
medo, sua perplexidade, a de uma jovem recém-iniciada na sociedade.

- Oh, mamam! - continuou Beaumont, dirigindo-se a Carolina -


. Nunca mencionou a deliciosa e extraordinária beleza da senhora Riglos.
Embora, conhecendo a senhora Magdalena, não deveria estranhar. Saulina,
chérie! Observe este rosto, não é magnífico? Seu pai daria qualquer coisa
para retratá-lo. O que acredita que pintaria? Uma Diana29, Proserpina30?
Possivelmente Vênus. Meu sogro é um reputado pintor - explicou
Beaumont.

- Eu me inclino por algo místico, caro - opinou Saulina -.


Santa Cecilia? Não, não. Sem dúvida, a Anunciação - resolveu -. Sua pele
tem a palidez de uma Madonna do Grego.

- A quem encarnaria? - interveio um homem jovem, e


entrelaçou seu braço com o de Saulina -. Ao anjo Gabriel ou a Vergine
Maria? - Seu marcado acento italiano e a semelhança com Saulina
Monterosa denunciavam o parentesco.

- Querida - interveio tia Carolita, e lhe apresentou ao resto do


grupo -. Saulina Monterosa, a esposa de Armand, e este é seu irmão,
Ventura. Pode acreditar que dois anos atrás não falava uma palavra de
castelhano?

Ventura pegou sua mão e a olhou fixamente, quase com


impertinência, antes de inclinar-se para beijá-la. Laura admitiu que poucas
vezes tinha conhecido um homem tão formoso, embora muito consciente
de seu encanto.

- Marietta, viens, chérie - chamou Carolina Beaumont.

Marietta, a mais nova dos Monterosa, surpreendeu Laura como


uma mulher exótica e cativante. Deixou a poltrona e caminhou com a
sutileza de um gato siamês. Os saltos de suas botas de cano longo não
ressonavam no piso de madeira e sua saia de tafetá parecia flutuar. A
duquesa estendeu a mão e sorriu com afabilidade. Laura respondeu
mecanicamente, e escutou que tia Carolita lhe explicava que Marietta não
falava castelhano, que era viúva e que seu marido, o duque de Parma, havia
falecido três anos atrás.

29
Mitologia - deusa da Lua e da caça (N. da Tradutora)
30
Mitologia - Perséfone - deusa de grande beleza (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Isso quer dizer, senhora Riglos - expressou Ventura em
francês -, que minha querida irmã mais nova é uma duquesa. Meu cunhado,
um bom homem - acrescentou -, não só lhe deixou um título nobiliário, que
honra à família, mas também uma enorme fortuna, que nos faz até mais
felizes.

- Sei un cretino! - pronunciou a duquesa da Parma em um


sussurro fingindo irritação, golpeou a seu irmão no braço com o leque.

- Ventura, compórtati! - reprovou Saulina.

- Falta o senhor Rosas - falou tia Carolita -. Senhor Rosas?


Onde está o senhor Rosas?

Laura simulou interessar-se por um comentário de Saulina,


enquanto escapulia para o interior da sala, mas a tenacidade de Carolina
Beaumont, decidida a lhe apresentar o resto do grupo, jogou por terra suas
intenções. Laura levantou a cabeça e seu olhar encontrou totalmente com
um par de olhos cinza que uma vez, no pátio dos Javier, tinham-na
amedrontado e obrigado a procurar refúgio na horta, e que agora também a
amedrontavam, mas não tinha para onde escapar. Nahueltruz se encontrava
tão perto que sua fragrância de vetiver inundou suas narinas.

- Laura, este é o senhor Lorenzo Rosas, grande amigo de


Armand. Senhor Rosas, apresento-lhe minha sobrinha, a senhora Riglos.

Laura teve a impressão de que seu estômago e seus pulmões


congelavam lentamente Nahueltruz a contemplou fixamente, seus olhos
não pestanejaram nem uma vez. Não havia piedade nem misericórdia nesse
olhar de olhos cinza que lhe fizeram baixar o olhar. “Não desvanecerei, não
começarei a chorar, não sairei correndo”. Em um fio de voz, disse:

- Senhor Rosas - e lhe estendeu sua mão.

Diferentemente de Armand e de Ventura, Nahueltruz não a


beijou, mas sim, apertou com firmeza e lhe assegurou que era um prazer
conhecê-la.

Para Laura era inverossímil que Nahueltruz e ela tivessem


voltado a se tocar, embora efêmero e impessoal. Que compartilhassem o
mesmo recinto, que respirassem o mesmo ar, que vissem as mesmas coisas,
que conversassem com as mesmas pessoas também era difícil de acreditar.
Que pensamentos cruzariam sua cabeça nesse instante? Sentiria o mesmo
desassossego que ela? Recordaria as noites em que se amaram? E seu corpo

Tradução Lauren Moon


nu? Ela nunca tinha esquecido o dele. Na intimidade compartilhada,
Nahueltruz tinha sido muito generoso. Laura não se conformava agora com
um tratamento como estranhos.

- Onde está seu pupilo, senhor Rosas? - quis saber Carolina


Beaumont -. Blasco, venha, querido!

Ao nome de Blasco, Laura se moveu com rapidez. Aí estava


seu pequeno Blasco, que de pequeno já não tinha nada. Não tão alto como
Nahueltruz, apresentava, ainda assim, uma atitude elegante e polida. As
feições morenas de seu rosto, agora sem terra nem restos de comida,
também limpo de bigode e barba, pouco tinham mudado, sua expressão, no
entanto, era a de outra pessoa. Seis anos atrás, quando ainda era um
menino, Blasco tinha sido aberto e caloroso. Nesse momento, seus olhos
não refletiam sua alma, o brilho brincalhão que os tinha caracterizado não
existia, e uma frieza muito marcada para sua idade conferia-lhe um aspecto
taciturno e melancólico, inclusive indiferente.

- Este é Blasco Tejada, Laura, o pupilo do senhor Rosas.

- Encantado - disse o moço e, como Guor, apertou-lhe a mão.

Laura se limitou a inclinar levemente a cabeça, doída pela


frieza de seu tratamento. Terminadas as apresentações, o grupo retornou à
sala, e Laura escolheu a solidão do vestíbulo. “Já passou! Já passou!”,
exclamou para si mesma. “O pior já passou”. Emmanuel Unzué, filho de
sua prima Iluminada Montes, deteve-se a seu lado e falou com ela. Laura
sorriu como uma autômata e aceitou o oferecimento de seu sobrinho para
escoltá-la à sala de jantar.

A mesa de mogno para trinta e seis pessoas estava cheia. Um


exército de domésticas pululava ao redor, servindo pratos, servindo vinho,
atentas aos pedidos da anfitriã. A maioria dos convidados já tinha ocupado
seus lugares. O murmúrio permanente somado à iluminação e à arrumação
da sala de jantar conferiam à reunião um frescor e uma vivacidade que
exaltavam as emoções negras de Laura. Emmanuel retirou uma cadeira e
ela se sentou.

- Obrigado, querido. Sente-se a meu lado, por favor.

Nahueltruz, um dos poucos que faltavam, sentou-se, a uma


indicação de Carolina Beaumont, em frente à Laura, rodeado por
Esmeralda Balbastro e a duquesa Marietta, a quem Nahueltruz se dirigia
exclusivamente em italiano. “Pensar, - disse-se Laura -, que uma vez soube

Tradução Lauren Moon


tudo a respeito deste homem”. Agora era tão estranho e alheio como
Ventura Monterosa ou Armand Beaumont. Escutou-o falar em francês, e
Blasco também o escutou falar em francês, e se deu conta de que o abismo
era ainda mais profundo que o imaginado. Em um momento seus olhares se
encontraram fugazmente. “O que foi de sua vida todos estes anos, meu
amor? A minha foi um calvário sem você”.

Nahueltruz inclinou a cabeça para a esquerda para escutar


Esmeralda, e Laura percebeu a afetação nos modos que a viúva de seu
primo Romualdo empregava ao dirigir-se a ele. Deste modo, a duquesa
Marietta reclamava a atenção do senhor Rosas, e entre ambas disputaram-
no durante todo o jantar. Laura as estudou com atenção e terminou por
sentir-se suficientemente feia. Ela não falava italiano, seu francês dava
vergonha e jamais tinha viajado para a Europa. Todos os ares que estava
acostumada a ter-se com os portenhos se converteram em insegurança e
falta de confiança. Os Mansilla - a senhora Agustina e seus dois filhos,
Lucio Victorio e Eduarda - chegaram tarde, enquanto o segundo prato era
servido. Os cavalheiros ficaram de pé e saudaram os recém-chegados.
Lucio Victorio, com sua capa de veludo vermelho e suas mãos abarrotadas
de anéis, ganhou a atenção das damas com a facilidade e a faceirice que o
caracterizavam. Eduarda, uma mulher de quarenta e cinco anos, que tinha
herdado a beleza de sua mãe e o porte de seu tio dom Juan Manuel de
Rosas, encaminhou-se com ar ansioso até Nahueltruz e o abraçou. Os
outros olharam com surpresa o desdobramento. Armand, Saulina e Ventura
riam.

- Mon chére! - pronunciou Eduarda -. Não pude acreditar


quando minha mãe me disse que tinha chegado junto com Armand.
Armand, quelle joie! Saulina, Ventura! Ma sete tutti! Duchessa Marietta -
disse, e fez uma reverência.

Embora Eduarda Mansilla falasse e conversasse com todos, era


visível sua preferência por Lorenzo Rosas. Continuava obstinada em seu
braço e o contemplava com encantamento. Laura, que tinha contado os dias
para conhecê-la, nesse momento experimentou uma forte hostilidade por
ela, não se tratava da reação de uma fêmea zelando por seu macho, pois
ficava evidente que Eduarda e Guor eram amigos, mas a inveja que lhe
causava a familiaridade com que o tratava, a certeza com que mencionava
seus assuntos, seus gostos, suas histórias. Eduarda, assim como Armand e
os Monterosa, formavam uma parte do mundo de Nahueltruz ao qual ela
jamais acessaria. “Pensar que Eduarda e Nahuel são relacionados por
sangue”, meditou.

Tradução Lauren Moon


Juntou-se ao jantar com os Mansilla à mesa e, enquanto
Agustina se desculpava com a anfitriã pela impontualidade, Eduarda
entretinha a outros com suas aventuras na Itália no ano anterior, onde tinha
conhecido ao compositor Gioacchino Rossim. Repentinamente, deteve sua
narração e se dirigiu a Guor para lhe perguntar:

- Onde está Geneviéve, Lorenzo? Deixou-a sozinha em Paris?

Laura sentiu a dor como um ponto frio e afiado no ventre: “O


que acreditava, - disse a si mesma -, que permaneceria celibatário todos
estes anos?”

- Geneviéve não poderia viver em outra cidade que não fosse


Paris - comentou Saulina -, e você sabe, Eduarda, nem sequer por uma
semana. É a mais parisiense de todas as parisienses.

- Geneviéve - disse Guor, e pronunciou o nome com doçura,


em um francês delicioso: “Yanviev” havia dito, conferindo a ideia de um
ser delicado, etéreo, formoso.

Laura se convenceu de que Guor a amava. Os ciúmes a


turvava de tal modo que não terminou de escutar. Esvaziou sua taça de
vinho tinto e a apoiou com torpeza sobre a mesa. Um zumbido cansativo
nos ouvidos aguçava sua enxaqueca. Tinha bebido muito e comido muito
pouco, começava a sentir que dava voltas e que suas pernas e braços se
voltavam pesados e torpes. Disse consigo mesma: “Não poderei ficar de
pé”, e cobriu sua boca com o guardanapo para ocultar a risada que lhe
causou sua própria imagem esparramada sobre o tapete de tia Carolita.

- Quem é Geneviéve? - interessou-se Esmeralda Balbastro.

- Geneviéve Ney, uma grande amiga - se apressou em


responder Guor, embora, pelos sorrisos e olhares que trocaram Armand e
Saulina, não restou dúvida de que, entre a tal Geneviéve Ney e Lorenzo
Rosas, existia um laço que ia além da grande amizade aludida.

- Geneviéve - suspirou Saulina -, a favorita da sociedade


parisiense, mimada e estragada, de caráter afável, de bom coração,
impulsiva, mas afetuosa, excessivamente generosa. Sua beleza é a luz que
nos atrai; depois nós adoramos seus sorrisos para sempre. Geneviéve -
acrescentou - é uma extraordinária bailarina clássica, a primeira do Palais
Garmer e a predileta do público francês. Seu último desempenho no Lago
dos Cisnes foi qualificado pelo próprio Tchaikovsky como o mais acabado
e perfeito desta obra desde sua estreia em 76.

Tradução Lauren Moon


- Geneviéve é descendente do famoso marechal Michel Ney.

- Oh, Armand! - queixou-se Ventura -. Ninguém sabe nem


quer saber sobre a patética história de seu país. Eduarda, o que nos contava
sobre o professor Rossini parecia-nos muito mais interessante.

Eduarda retomou o fio de sua exposição. Uma história puxou


outra colação, e assim terminou por mencionar sua conexão com uma das
famílias mais elevadas da cidade de Florência, os Colonna.

- Na villa Colonna (uma magnífica construção do século XIV


nos subúrbios de Florença) - explicou em seu estilo atordoado, infestado de
italianismos e galicismos -, convertemo-nos em convidados obrigatórios no
dia que a duquesa Margherita soube da preferência de Lorenzo por
Petrarca31. Nunca voltou a deixá-lo em paz.

À menção do poeta toscano que uma vez tinha sido tema de


conversa entre eles, Laura levantou o rosto e olhou para Nahueltruz, mas
ele conversava intimamente com Esmeralda e não percebeu sua ansiedade.

- Todas as semanas - continuou Eduarda -, a duquesa


organizava uma reunião na vila, onde Lorenzo nos deleitava com sua
extraordinária declamação dos versos do Canzoniere. Ninguém os recita
com a força e mestria de Lorenzo.

- Exagero, Eduarda - queixou-se Guor.

- Não seja modesto, Lorenzo - objetou Saulina -. A falsa


modéstia é teimosia e não verdadeira humildade. São poucos os que
conhecem Petrarca como você. Certamente, é um prazer escutá-lo recitar
seus versos. Além disso, deve ser muito bom, caso contrário a duquesa
Margherita jamais teria financiado a publicação de seu livro sobre o
professor, que por certo, foi um êxito na Itália.

- Um livro a respeito da Petrarca? - surpreendeu-se Francisco


Montes -. Verdadeiramente, senhor Rosas, você deve ser um homem muito
habilidoso. Diga-me, sempre me interessou saber se Dante e Petrarca se
conheceram.

- Apesar de Petrarca ter dezessete anos quando Dante morreu


em Ravenna, jamais se conheceram. Francesco, entretanto, admirava-o
profundamente, e mais, fazia um culto em memória e à obra de Dante. Com

31
Francesco Pretarca - O nome de Petrarca está associado de maneira indissolúvel ao de Laura, a mulher amada que ele canta em
Rerum vulgarium fragmenta (Fragmentos em língua popular), mais conhecidos pelo nome de Il Canzoniere. (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


quem, sim, manteve uma estreita amizade até sua morte, em 1374, foi com
o Giovanni Boccaccio.

- Nunca foi do meu agrado esse imoral do Boccaccio - interpôs


Celina Montes -. Dizem que Decamerón32 e a obre é um sacrilégio.

- Deveria lê-la, senhora Montes - objetou Guor, sem esconder


uma nota de sarcasmo -. No meu entender é uma obra genial. Voltando
para Petrarca, devo dizer que, por seu interesse no indivíduo, na descrição
de seus sentimentos e pensamentos, Petrarca é considerado o primeiro
poeta do modernismo.

Nahueltruz Guor dissertou sobre o poeta florentino por um


longo tempo e inclusive os homens afastados na cabeceira detiveram sua
polêmica sobre a expedição ao deserto para escutá-lo. Laura mais que
escutá-lo, ficou admirada por ele: “Que impassível e tranquilo está quando
eu sou um molho de nervos!”. Assaltou-a uma mescla de fascinação e
ressentimento ao raciocinar que pessoas que seis anos atrás o haveriam
tratado com desprezo, nesse momento o contemplavam com encantamento
e deferência. Sua voz profunda a envolvia, mas ela não prestava atenção ao
sentido de suas palavras; dedicava-se a olhar seus lábios, o movimento de
suas mãos, como brilhava seu cabelo, a largura de seus ombros, como
Esmeralda se reclinava sobre ele e a maneira com que lhe roçava o braço.

- E todos já sabem que o grande amor de Petrarca foi Laura de


Noves - pronunciou Guor, e Laura voltou a si como se a tivessem sacudido
de um sonho -. Assim como Dante teve por Beatrice Portman, que inspirou
seus versos mais acabados, o mesmo aconteceu com Francesco, que
escreveu 365 sonetos dedicados a Laura, seu único e verdadeiro amor. Por
causa da fama que alcançaram estes sonetos da Petrarca, Laura do Noves
terminou por converter-se no paradigma da virtude e a beleza de sua época.
Occhi neri, treccia d´ouro, tiepida neve il volto.

- O que significa, senhor Rosas? - interessou-se Esmeralda


Balbastro.

- Olhos pretos, trança de ouro, neve aquece o rosto - traduziu


Eduarda Mansilla.

32
É uma coleção de cem novelas escritas por Giovanni Boccaccio entre 1348 e 1353. A obra é considerada um marco literário na
ruptura entre a moral medieval, em que se valorizava o amor espiritual, e o início do realismo, iniciando o registro dos valores
terrenos, que veio redundar no humanismo; nele não mais o divino, mas a natureza, dita o móvel da conduta do homem. Foi
escrito em dialeto toscano. (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Como tia Laurita - assinalou Pura Lynch, em uma grande
ousadia, pois não tinha permissão para falar à mesa -. Olhem, ela é assim.
Olhos pretos, cabelo loiro, pele muito branca.

Apontou-a lentamente para que os pressente percebessem.

- Sua trança - acrescentou -, parece feita com fios de ouro.

Laura desejou que a terra abrisse sob seus pés. O calor que a
envolveu por completo se manifestou no intenso rubor de suas bochechas.

- Certamente - respondeu Guor com severidade -, como a


Senhora Riglos.

- Fazia tempo que não via uma dama ruborizar-se - demarcou


Ventura, e Laura olhou-o com desconsolo -. Esse rubor acentua seu aspecto
angelical, senhora Riglos. Insisto, meu pai a faria posar para um quadro do
arcanjo Gabriel.

- Meu marido - falou Magdalena -, também um grande


admirador e conhecedor de Francesco Petrarca, chamou a nossa filha de
Laura em honra a Laura de Noves.

- Se vivesse na época da Petrarca, tia - insistiu Purita -, seria a


mais bonita da cidade.

- Atrevo-me a dizer que já é a mais formosa da cidade -


expressou Ventura.

Embora Laura demonstrasse a possibilidade de deixar a mesa,


desprezou-a quase de imediato; enjoada como estava, terminaria por dar
um espetáculo. Voltou-lhe a vontade de rir a gargalhadas.

- O que acontece com tia Laura? - sussurrou Pura ao ouvido de


seu primo Emmanuel -. Não abriu a boca a toda a noite.

- Acredito que não se sente bem.

- As mulheres sempre foram coquetes - comentou Armand -,


em todas as épocas - remarcou -. Lorenzo nos disse que no tempo de
Petrarca, as mulheres pingavam umas gotas em seus olhos para dilatar suas
pupilas até alcançar o tamanho da íris, de tal modo que a cor fosse o preto,
como ditava a moda. Iam virtualmente cegas para festas e reuniões!

Tradução Lauren Moon


- Trata-se de umas gotas que contêm um alcaloide chamado
atropina - explicou Guor -. Este alcaloide é extraído de uma planta
chamada belladonna, justamente porque provoca esse efeito nos olhos das
mulheres, convertendo-as em “belas mulheres”.

- Você não teria que lançar mão de nada disso, tia - insistiu
Purita e Laura lhe dirigiu um sorriso abatido.

- Pura... - ameaçou Celina Montes, e acompanhou seu tom de


censura com um cenho que a moça conhecia de cor -. A vaidade é o pecado
que fez cair o anjo Lúcifer. Feche já a boca.

Carolina Beaumont anunciou aos convidados que o café e as


massas seriam servidos na sala, e todos abandonaram seus lugares. Laura
apertou o braço de seu sobrinho Emmanuel e lhe sussurrou que a escoltasse
ao quarto de tia Carolita.

- Por favor, querido - lhe pediu, uma vez recostada na otomana


-, diga a minha mãe que venha aqui.

Emmanuel afastou sua tia Magdalena e transmitiu sua


mensagem. Magdalena caminhou com passo rápido e entrou sem bater.

- Mamãe - gemeu Laura, à beira das lágrimas -. Sinto-me tão


mal.

Fazia anos que Magdalena não percebia que sua filha a


necessitava. Nem sequer na ocasião da morte do general Escalante, Laura a
olhou da maneira que o fazia nesse instante, com uma careta de desolação
e, assustada, Magdalena se ajoelhou junto à otomana e beijou sua testa.

- Tem um pouco de febre.

- Meu estômago dói - queixou-se Laura.

- Será por tudo o que bebeu e o pouco que comeu - interpôs


sua mãe.

- Quero ir para casa.

Magdalena explicou a tia Carolita as circunstâncias e pediu


que as desculpasse com os outros convidados; para seus pais e irmãs
deixou dito que em meia hora Eusebio voltaria com o carro para buscá-los.
Tia Carolita ajudou Magdalena a colocar o casaco sobre os ombros de
Laura, beijou suas sobrinhas e as acompanhou até o vestíbulo. Retornou à
Tradução Lauren Moon
sala e anunciou que Laura se encontrava indisposta e que ela e sua mãe se
retiraram. Blasco e Guor trocaram olhares sombrios.

Maria Pancha dobrava o cobertor da cama quando Magdalena


e Laura entraram no quarto.

- O que aconteceu? - inquietou-se a criada

- Laura não se sente bem. Tem o estômago mexido. Está um


pouco enjoada também - afirmou Magdalena, e fez um gesto significativo.

- Bebeu? - surpreendeu-se Maria Pancha.

- Sinto-me mal - protestou Laura.

Maria Pancha e Magdalenaa despiram-na e a ajudaram a


meter-se na cama. Logo que apoiou a cabeça no travesseiro, o mundo
deixou de girar em torno dela.

- Um café bem forte será o melhor - propôs Magdalena.

- Não - replicou Maria Pancha -. O melhor para a embriaguez é


um pepino cru.

- Não poderei comer um pepino cru. E não estou bêbada.

- Vai comê-lo - instou a criada - ou amanhã terá uma ressaca


que só Deus para ajudar.

Maria Pancha retornou com uma tigela repleta de rodelas de


pepino e se sentou na beirada da cama. Magdalena levantou os travesseiros
e Laura se incorporou.

- Obrigada por tudo, mamãe. Vá para cama agora. Você


também parece cansada.

- Eu ficarei com ela até que ela durma - assegurou Maria


Pancha. Magdalena entendeu que sua filha desejava ficar a sós com sua
criada. Ela tinha sido excluída de seu momento íntimo e, embora os termos
da relação nunca tivessem sido dos mais harmoniosos, a confiança não
existia. Magdalena fechou a porta e partiu para seu dormitório.

- Não preciso perguntar se nossas suspeitas tinham


fundamento -expressou Maria Pancha -. Que o tal Lorenzo Rosas, amigo do
senhor Armand, é Nahueltruz Guor está claro para mim. Só precisa olhar
Tradução Lauren Moon
um pouco mais para você. Soube alguma coisa do general? - perguntou a
criada imediatamente.

- Que general?

- Como que general, Laura? Não está tão bêbada para não se
lembrar do general Roca.

“Julio Roca, - repetiu Laura -, que foi meu amante”. Pareceu


que seu namorico tinha ocorrido anos atrás. As feições do general se
desvaneciam em sua mente, e as circunstâncias de seu caso já não lhe
importavam tanto como dias atrás.

- Não - balbuciou Laura -, não sei nada do general.

Baixou a vista e negou com a cabeça, quando Maria Pancha


aproximou outra rodela de pepino. Tinha um nó na garganta e as lágrimas
banhavam suas bochechas. Maria Pancha levantou seu rosto pelo queixo e
a contemplou com ternura.

- Vamos, coração - teve piedade a mulher -, diga tudo o que


lhe atormenta.

- Oh, Maria Pancha! - exclamou Laura -. Acabo de estar com


ele!

- Sim, já sei disso.

- Nahueltruz, na casa de tia Carolita - repetiu, entre soluços -.


Foi horrível. Nem sequer o fato de saber que estaria ali, me salvou da
tortura que vivi. Desejei tanto que estivesse ao meu lado. Acreditei que
morreria quando o vi. Era ele, meu Nahuel, meu adorado Nahuel. Tão frio e
distante. Tão mudado! Oh, Maria Pancha! Deveria ter visto a forma com
que me saudou, como uma completa estranha. Não se alterou quando
apertou minha mão e me disse: “Senhora Riglos, encantado”. Eu, ao
contrário, acreditei que desmaiaria. Precisei tanto dele!

- Conte-me como foram as coisas.

Laura relatou desde o momento em que pôs pé na casa de tia


Carolita até que terminou na otomana, descomposta. Deteve-se nos
pormenores como a menção de Geneviéve Ney, esse modelo de virtude
parisiense, o comportamento provocante de Esmeralda Balbastro, os
galanteios de Ventura Monterosa, que não provocavam nem frio nem calor

Tradução Lauren Moon


a Guor e o desafortunado comentário de Purita a respeito de sua
semelhança com Laura de Noves.

- Blasco estava lá?

- Não o reconheceria. É um homem agora. Muito elegante e


educado. Fala Frances à perfeição. Seu acento é impecável. Tia Celina
observou, e já sabe que ela é uma severa juíza na matéria.

Embargou-a um torpor incontrolável. As pálpebras encobriam


seus olhos apesar de se esforçar para mantê-los abertos; queria contar tudo
a Maria Pancha.

- Durma agora - insistiu a criada -. Amanhã continuaremos


falando e verá que as coisas não são tão ruins como parecem.

A caminho de seu dormitório, Maria Pancha refletiu que


Agustín devia conhecer os detalhes do assombroso reaparecimento de
Guor. Nada a convenceria de que sua viagem de Rio Cuarto não se
relacionava com a chegada desse índio a Buenos Aires.

~0~

Na sala de Carolina Beaumont, Eduarda Mansilla aceitou tocar


piano. Nahueltruz Guor, localizado perto do casal Lynch, aguçou os
ouvidos ao perceber que sussurravam a respeito de Laura.

- O que terá acontecido com minha prima? - preocupou-se


Eugenia Victoria -. Parecia muito mal esta noite.

- Nunca é de falar muito - aceitou José Camilo -, mas hoje a


notei especialmente melancólica.

- Não melancólica, mas bem aflita, nervosa, as cores subiam


ao rosto com facilidade. Parecia incômoda, algo estranho porque ela
sempre fica à vontade e contente na casa de tia Carolita. Já sabe que passa a
metade do tempo com ela.

- Bebeu muito - observou José Camilo.

- Sim, bebeu muito quando ela sempre é tão moderada.

As mãos peritas de Eduarda Mansilla levaram a sonata de


Bach a um paroxismo de compasses agudos e arpejos rápidos que afogaram
a conversa dos Lynch, e Nahueltruz se perdeu nos últimos comentários.
Tradução Lauren Moon
Eduarda executou a coda33 com destreza admirável, e os homens ficaram
de pé para aplaudi-la.

- Já vê, Ventura - falou Lucio Victorio -, disse-lhe em Paris


que as mulheres da minha terra são mais bonitas e talentosas que as
europeias.

- Especialmente bonitas - concordou o veneziano.

- Já sabemos em quem está pensando - brincou Eduarda.

- Não penso em ninguém em particular. Considero que todas


suas sobrinhas, senhora Beaumont, são extremamente bonitas - e acariciou
com o olhar os rostos avermelhados das Montes.

- E extremamente virtuosas- —advertiu Carolina.

- Sua preferência foi evidente ao longo da noite - insistiu


Eduarda -. Não farei menção a seu nome.

- Não nos ofenderemos se for Laura a quem preferir, senhor


Ventura - falou Maria del Pilar -. Sabemos que é muito bonita e estamos
acostumadas a sua longa fila de pretendentes.

- Minha sobrinha Laura - falou Carolina - não é só bonita.


Além disso, é uma grande escritora.

Levantou-se um murmúrio entre os convidados. Dona Ignacia,


Dolores e Soledad ficaram incomodadas e, embora tratassem de desviar a
atenção, não conseguiram. Eduarda Mansilla se mostrava obstinada. Sem
levantar a vista, Celina Montes apertou a mão de sua sogra Ignacia na
tentativa de acompanhá-la em sua vergonha.

- Não se pode dizer que minha sobrinha seja escritora - opôs-se


Soledad-, quando só publica um folhetim de duvidosa qualidade em um
pasquim decadente.

- Não acredito que La Aurora seja um pasquim decadente -


observou Nazario Pereda -, nem que o folhetim que escreve a senhora
Riglos seja de duvidosa qualidade - e, em uma atitude incomum, olhou com
hostilidade a quem já considerava sua futura cunhada.

33
Coda (que traduzindo do idioma italiano para o português quer dizer cauda) é a seção com que se termina uma música. (N. da
Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Eu vejo La verdad de Jimena Palmer um relato dos mais
interessantes, perspicaz e inteligente - comentou Agustina Mansilla, a quem
seus filhos haviam arrebatado a capacidade de se assustar e escandalizar -.
O estilo, além disso, é delicioso.

- Morro de vontade de ler La verdad de Jimena Palmer -


entusiasmou-se Eduarda.

Celina Montes se dirigiu para sua neta Pura e lhe disse:

- Deveria escutar a magnífica pronúncia em francês deste


moço, Pura - e assinalou na direção de Blasco -. Já comentei dias atrás que
a sua é péssima.

Pura lançou uma olhada furiosa em sua avó, enquanto suas


bochechas se tingiam de vermelho. De sua parte, Genara, Eulalia e Doura
baixaram a vista para não ser alvo de mordacidades da avó Celina.

- Meu pupilo - interveio Guor - viveu desde os treze anos em


um colégio jesuíta em Fontainebleau, o que fez do francês sua única língua.
Só falava castelhano comigo, algo que ocorria com pouca frequência, pois
eu o visitava uma vez por mês. Teve que aprender a pronunciá-lo, velis
nolis34, se quisesse se fazer entender. O caso de sua neta, senhora Montes, é
diferente. Ela não pertence a um ambiente onde a língua seja
exclusivamente o francês, ao contrário, a escuta esporadicamente e de
pessoas que não são nativas - assinalou com intenção -. Estou certo de que
sua pronúncia é excelente se levarem em conta estas circunstâncias. Blasco
- disse imediatamente Guor, e falou a seguir em francês -: poderia dar aulas
às netas de madame Montes, se seus pais estiverem de acordo, é obvio, e se
empenhar em melhorar suas pronúncias. Você, certamente, se lembra das
técnicas que frére Hubert lhe ensinou.

- Enchanté - replicou Blasco, e olhou fugazmente para Pura


Lynch, que apenas moveu a comissura dos lábios no que pareceu um
sorriso. Mais tarde, quando a maioria dos convidados se despediram, na
sala só ficavam os recém-chegados da Europa e Lucio Victorio Mansilla, a
anfitriã desculpou-se por sua idade e retirou-se para dormir. A conversa
fluiu em francês para não excluir a duquesa Marietta.

- Fale-nos da senhora Riglos - pediu Saulina a Lucio Victorio,


interessada em jogar a corda ao pescoço de seu irmão, um solteirão sem
remédio.

34
Queira ou não queira (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Viu-a com seus próprios olhos, Saulina - expressou Lucio
Victorio -. Trata-se de uma mulher incomum, daquelas que se vê uma vez e
fica parado, como se da Medusa se tratasse. Sua beleza assombra e
apaixona irremediavelmente. Desestabiliza os homens, que terminam por
converter-se em vítimas de uma paixão que ela não incentiva, nem
corresponde. Assim como a viu calada e alheia, seu nome geralmente
associa-se ao escândalo e a transgressão. Além de bonita, é muito rica. Não
só herdou de seu pai, o general José Vicente Escalante; seu marido também
lhe deixou valiosos bens ao morrer. Como pode imaginar, inventam-lhe
namoricos que nunca se comprovam. A última fofoca a relaciona com o
general Roca.

- Quem é o general Roca? - interessou-se Armand.

- O ministro da Guerra e Marinha - falou Guor -. O que


comanda a campanha para exterminar os índios do sul.

- Parece muito a par dos assuntos do país, senhor Rosas - se


surpreendeu Mansilla.

- É certo que não vivo aqui, coronel - se defendeu Guor -, mas


esta também é minha terra.

Nahueltruz Guor sempre evitava olhar nos olhos do coronel


Mansilla. Anos atrás, em Paris, tinha fugido dele até que Armand propiciou
o encontro. Naquela oportunidade, Nahueltruz tinha temido que Mansilla o
reconhecesse. Mas, tal era a metamorfose operada em sua pessoa, que,
enquanto apertava sua mão, Lucio Victorio nem sequer dava amostras de
encontrar suas feições familiares, apesar de durante sua excursão a
Leuvucó, em 70, tivessem se visto em várias ocasiões, porque, embora
Nahueltruz passasse mais tempo com seu meio irmão, o padre Agustín
Escalante, que com o resto da comitiva, ele e Mansilla tinham
compartilhado refeições e conversas. No entento, o cabelo curto, a testa
limpa de vincos e marcas, as mãos livres de boleadeiras e lanças e a casaca
em lugar do chiripá e o poncho, somado ao costume de Guor de dirigir-se
em francês, faziam impossível a associação.

- Como é que não conhecemos a senhora Riglos durante nossa


viagem em 73, Armand? - continuou Saulina.

- Não se lembra? Vivia em Córdoba, com seu pai, que estava


muito doente.

Tradução Lauren Moon


- Em certa ocasião conhecemos seu marido - acrescentou
Armand -, doutor Julián Riglos se chamava. Escrevia um livro sobre
história argentina, ele e eu conversamos longamente sobre o tema uma
noite, nesta mesma sala. Não se lembra, mulher?

- Vagamente - confessou Saulina -. Acaso Laura e o doutor


Riglos não viviam juntos?

Pela primeira vez na noite, Blasco notou que o semblante de


Guor sofria uma alteração, e de repousado, quase sarcástico, passava a
desorientado e intrigado. Pouco soube da vida de Laura depois que se
separaram naquela tarde em Rio Cuarto, pois, assim como Agustín tinha
evitado mencionar para Laura sobre a sorte de Guor, também teve o
cuidado de não mencionar a Guor a dela.

- Não quero passar por uma alcoviteira - assegurou Mansilla—


, mas voix du peuple assegura que o casal Riglos nunca foi o que se diz um
verdadeiro casamento. Vocês me entendem. Riglos foi um dos meus
melhores amigos. Dou fé de que amou loucamente Laura Escalante, desde
o dia em que pôs seus olhos sobre ela. Mas era Laura quem não amava
Julián. Queria-o e muito, também dou fé disso, mas a unia a ele uma
relação do tipo fraterna.

- Por que se casou com Riglos então?

- Ah, Ventura, esse é um grande mistério. A questão do


casamento de meu querido amigo Julián e de Laura esteve envolvido no
escândalo e no segredo. Nunca soubemos com exatidão o que aconteceu, o
que empurrou Laura a aceitar Julián depois de tê-lo rechaçado tantas vezes.
Casaram-se em Rio Cuarto, onde ela cuidava de seu irmão gravemente
doente. Nunca soubemos bem o que aconteceu - repetiu Mansilla, com ar
pensativo.

- De qualquer maneira, isso não importa - resolveu Ventura -.


Já vemos que o doutor Riglos teve o bom gosto de morrer e deixá-la viúva
em plena juventude.

~0~

Nahueltruz Guor desatava o nó de sua gravata quando Blasco


bateu a sua porta. O moço entrou e, sem dizer uma palavra, se sentou.
Habituado aos comportamentos erráticos de seu protegido, Nahueltruz
terminou de despir-se e jogou por cima o roupão sem prestar atenção nele,
concentrado em suas próprias reflexões.

Tradução Lauren Moon


- Amanhã pela manhã procuraremos uma casa para alugar,
melhor dizendo, duas casas, uma aqui, no centro, e outra nos subúrbios,
para levar os cavalos. Não gostei do lugar onde os deixamos.

- Iremos embora da casa de madame Beaumont? Por quê? Ela


é tão gentil.

- Ninguém dúvida que Carolina Beaumont é possuidora de


todas as virtudes cardeais, Blasco, mas não podemos abusar de sua
hospitalidade.

Na realidade, Guor deixava a casa de Carolina Beaumont com


pesar; afinal de contas, ela também era sua tia avó, queria sua tia Carolita
como se fosse sua mãe, Blanca Montes, tanto que tinha ouvido falar.
Queria conhecê-la, obter sua confiança e amizade, e possivelmente algum
dia confessar-lhe quem era. Mas iria embora da mesma forma. Tinha
tomado a decisão ao escutar a conversa dos Lynch, que asseguraram que
Laura passava a metade de seu tempo nessa casa.

- Esta noite foi muito estranha para mim - admitiu Blasco e,


como Guor sabia a que se referia, não comentou -. O que sentiu ao voltar a
vê-la, Nahueltruz?

- Não use esse nome - se zangou Guor.

- Apesar de saber o dano que lhe fez, tive desejo de abraçá-la -


admitiu o moço -. Olhou-me com ternura, sabe? E me pareceu que seus
olhos encheram de lágrimas.

- Sim, lágrimas - resmungou Guor, e se sentou na


escrivaninha, onde colocou os óculos e começou a escrever uma carta a
Geneviéve.

- Continua tão bonita como antes. Não, mais bonita! Ventura a


olhou com cara de bobo a noite toda.

- Escrevo para Geneviéve - se impacientou Guor -. Manda-lhe


dizer alguma coisa?

- Sim, que sinto saudade e que mando todo meu carinho.

Guor continuou escrevendo e Blasco se manteve pensativo.

- Foi meu desejo retornar à Argentina. Não quero que, por


minha causa, esteja sofrendo, Nahueltruz.
Tradução Lauren Moon
- Deixará de me chamar por esse nome, nem que eu tenha que
sovar seu lombo com um chicote. Não estou sofrendo. Eu também tive
desejos de retornar ao saber desta campanha de Roca e das desgraças que
padecem nosso povo. Sabia que, muito provavelmente, iria me encontrar
com ela. Mas direi isto só uma vez e não voltará a abordar o assunto. Laura
Escalante, melhor dizendo, a senhora Riglos, faz tempo que saiu de minha
vida. Não significa nada para mim.

Nahueltruz retomou a carta e Blasco ficou pensativo.

- Acredita que poderei dar aulas de francês a essas moças?

- Possivelmente. A avó não se cansou de lhe elogiar.

- Há uma semelhança entre Pura Lynch e sua tia Laura, não


acredita nisso?

Guor correu as lentes à ponta do nariz e contemplou Blasco


com ar de ameaça. O moço balbuciou um “boa noite”, que não obteve
resposta e foi para o seu quarto. Para ele, Laura Escalante também lhe
inspirava ressentimento. Tinha sido testemunha silenciosa de sua traição e
do padecimento de Nahueltruz. Nunca esqueceria aquelas primeiras noites
no deserto, quando o pranto de Guor, que desafogava com amargura
acreditando-o adormecido, tinha-no impressionado profundamente. Laura
Escalante tinha destruído a seu mítico rei do Deserto e não a perdoaria.

~0~

A porta se fechou atrás de Blasco, e Nahueltruz soltou a pluma


com aborrecimento; tirou os óculos e esfregou seus olhos. Nem sequer
enquanto escrevia para Geneviéve podia tirar Laura de sua cabeça.
Acendeu o cachimbo, costume adquirido em Londres, e deixou de resistir a
sua imagem. Jogou-se para trás na cadeira e divagou e rememorou as cenas
dessa noite.

Agora que a viu em seu ambiente, magnífica nesse vestido


celeste, rodeada da pompa que cabia a sua classe, admirada pelos homens,
invejada pelas mulheres, Nahueltruz terminou por dar razão a Blasco.
Laura estava mais bonita que nunca. E os efeitos da comoção que causou
encontrá-los, os rubores que coloriram suas bochechas, o brilho das
lágrimas suspensas em suas pálpebras, seu silêncio, seus olhares tímidos,
seus sorrisos abatidos, só haviam acentuado o aspecto de vulnerabilidade e
fragilidade que a deixavam atraente, até o ponto de ser impossível tirar os

Tradução Lauren Moon


olhos de cima dela, difícil de subjugar a vontade de tomá-la em seus braços
e beijá-la, impossível lembrar que uma vez havia jurado que a destruiria.

Guor ficou de pé de imediato e a poltrona caiu atrás dele. O


coronel Mansilla tinha razão: a Escalante era uma Medusa que operava um
feitiço complicado de exorcizar. Ele, de todos os mortais, devia saber que
atrás desse traçado de senhora decente, culta, bonita e rica, escondia-se um
ser sem princípios, mentiroso, especulador e traiçoeiro. Odiava-a, sobre
tudo por isso, por sua traição.

Ventura Monterosa já tinha caído sob sua influência e sem


dúvida converteria-se na próxima vítima. Jovem, atraente e sedutor,
Monterosa se lançaria à conquista sem saber que terminaria com o coração
quebrado e o orgulho manchado. Deveria adverti-lo: “Cuidado, Ventura,
este é um jogo que a viúva Riglos gosta de jogar”. Embora possivelmente,
sendo Monterosa o irmão de uma duquesa, Escalante poderia aceitá-lo. O
que teria de certo em seu namorico com o general Roca, o homem do
momento, o herói da República, o inimigo de seu povo? Descarregou o
poder de seu punho sobre a escrivaninha e soltou uma bufada. Dela,
esperava qualquer atitude.

A calma veio de repente. Levantou a poltrona e se deixou cair


como um peso morto. Sentiu-se cansado e deprimido, sem vontade para
afastar os pensamentos que o machucavam. O nome dela ecoava em sua
mente com uma tenacidade, que jogava por terra a convicção de que Laura
Escalante era uma lembrança dolorosa, mas superada. Na realidade, Laura
Escalante era uma maldição que o Hueza Huecubú35 tinha jogado nele,
numa tarde de verão em Rio Cuarto e da qual era impossível desembaraçar-
se. Por isso, por não poder esquecê-la, também a odiava.

35
Espírito do mal (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Capítulo IX.

Confissões tardias

No dia seguinte ao infeliz jantar em tia Carolita, Laura


permaneceu na cama com febre e mal-estar no estômago. Na manhã
seguinte, só a esperança de reencontrar-se com seu irmão na estação de
trem a induziu a se levantar, tomar um banho, arrumar-se e subir no
Landau. Maria Pancha se acomodou a seu lado e a olhou de esguelha.
Vieram-lhe à mente aqueles primeiros dias, depois do casamento com o
doutor Riglos, quando acreditaram que perderia a razão ou se deixaria
morrer. Nessa manhã, enquanto o carro avançava lentamente pelas ruas
estreitas e transitadas, Laura contemplava os pedestres com um ar ausente,
similar ao daquela época triste. Maria Pancha não gostou do que viu e teve
medo. Ela não era mulher de se amedrontar facilmente, mas, se de Laura ou
de Agustín se tratasse, enchia-se de escrúpulos.

À medida que se aproximavam da estação, Laura recuperava o


bom humor. Não via Agustín desde o dia seguinte ao seu casamento,
quando virtualmente fugiu para a casa de seu pai, em Córdoba, para evitar
Julián Riglos. Dois anos mais tarde, na ocasião da morte do general,
Agustín, de viagem a Mendoza por umas semanas, recebeu a notícia que
seu pai estava enterrado há mais de dez dias, e decidiu que carecia de
sentido viajar e abandonar suas obrigações. Depois de uns dias, Laura
partiu para Buenos Aires e Agustín nunca encontrou tempo para visitá-la.
Embora se escrevessem com regularidade, Laura não falava dela, mas dos
outros, em especial de seus sobrinhos, protegidos e obras de caridade.
Evitava o assunto de seu casamento, apesar de Agustín se mostrar ansioso
por saber sobre o doutor Riglos, e nunca se animou em mencionar a morte
do coronel Racedo e as circunstâncias que tinham-na rodeado. Por sua vez,
Agustín jamais mencionou a tragédia, e Laura não sabia se seu irmão
continuava ignorando o acontecido, o que duvidava em um povoado tão
pequeno como Rio Cuarto, ou se tinha decidido fechar esse capítulo e não
voltar a abri-lo.

Caminhou depressa de braço com Maria Pancha até a


plataforma porque, por causa do tráfego, estavam chegando tarde. Sem
razão aparente, Maria Pancha se deteve e, olhando fixamente à multidão,
limitou-se a levantar a mão e assinalar as pessoas. Laura levou uns

Tradução Lauren Moon


segundos para reconhecer seu irmão e Nahueltruz Guor que conversavam
animadamente na plataforma. O espaço em torno deles terminou por
dispersar-se, e Laura também avistou Blasco, que abraçava e beijava uma
anciã, pequena e encurvada; reconheceu-a imediatamente: dona Carmen, a
avó do moço. Um grupo de pessoas, inconfundíveis por suas feições e
roupas de índios, aguardava com submissão e acanhamento atrás de
Agustín. Nahueltruz se aproximou e abraçou e beijou uma das mulheres, de
aspecto mais amadurecido; também abraçou o homem a seu lado, que
espremia uma boina entre as mãos e tratava, em vão, não choramingar.
Outras duas mulheres, mais jovens, com meninos nos braços, saudaram
Nahueltruz e se viraram para lhe apresentar dois homens, que por sua vez
sustentavam pacotes e mais meninos.

- Vamos voltar para casa - sussurrou Maria Pancha, e puxou


Laura levemente.

- Sim, retornemos.

Laura voltou a se meter na cama, onde chorou amargamente


até que a valeriana que Maria Pancha a obrigou a tomar fez efeito. Dormiu
por horas, mas não foi um sono reparador, mas sim infestado de pesadelos.
Acordou sobressaltada quando Maria Pancha acariciou sua bochecha.

- O que houve?

- Não houve nada. Seu irmão está aqui, veio vê-la.

- Não quero vê-lo.

- Laura - contemporizou Maria Pancha -, Agustín quer vê-la,


está preocupado, porque disse que você está indisposta. Não se zangue com
a pessoa errada.

Embora deixasse a cama, Laura recebeu Agustín em seu


quarto, recostada sobre o divã e de roupão. Encontrou-o muito magro, e a
batina parecia dançar sobre seu corpo; também parecia abatido, com rugas
no cenho e nos lados da boca, que evidenciavam as preocupações que o
afligiam. Ficou de pé, esquecendo a amargura e a irritação, e se lançou ao
pescoço de seu irmão. O repentino esforço provocou-lhe uma tontura e
Agustín ajudou-a a se recostar. Ajoelhou-se junto dela e a contemplou com
carinho. Retirou seu cabelo da testa e a beijou.

Tradução Lauren Moon


- Fui encontrá-lo na estação - expressou Laura -, mas ao
chegar percebi que já tinham ido outras pessoas para buscá-lo e julguei
prudente me retirar.

- Tola. Teríamos necessitado o seu carro. Éramos tantos!

Laura mantinha a vista baixa enquanto reunia coragem para


falar com seu irmão. Agustín percebeu sua hesitação e decidiu ajudá-la
com o problema.

- Já sei que foi a presença de Nahueltruz que levou você a


deixar a estação. De uma vez por todas, Laura, vamos enfrentar este
assunto, aquele horrível episódio que ocorreu em Rio Cuarto seis anos atrás
e que mudou sua vida.

Laura não desejava lembrar-se daqueles acontecimentos tão


penosos, mas sabia que cedo ou tarde teria que esclarecê-los com seu
irmão, e esse momento parecia tão bom como qualquer outro.

- Soube do que aconteceu - começou Agustín -, semanas mais


tarde de sua partida para Córdoba, quando por fim o doutor Javier me
permitiu sair de sua casa e retornar a minhas obrigações no forte. Como
deve imaginar, uma vez dentro lá dentro, os soldados me puseram a par do
ocorrido em menos de meia hora, e ninguém julgou necessário evitar o fato
de que você e Nahueltruz tinham sido amantes.

- Naquele dia Nahueltruz ia lhe confessar tudo - justificou


Laura -, não queríamos continuar escondendo isso de você.

- Devia ter recorrido a mim, Laura, devia ter-me contado tudo


e me pedido ajuda. Jamais deveria ter-se casado com Riglos pelo bem das
aparências.

Laura apoiou a cabeça no divã e fechou os olhos, doída pela


injusta acusação. “Pelo bem das aparências, - repetiu para si mesma -.
Afinal de contas, quem se importa pelo que eu fiz? Assim o fiz, e é a única
coisa que conta. Fui uma covarde que se deixou dominar pelo medo e por
uma vontade que julguei superior à minha, inclusive superior a de Nahuel,
e isso é imperdoável; teria que ter acreditado nele, em sua capacidade para
enfrentar as adversidades, devia ter resistido, claudiquei tão facilmente. Oh,
Deus! Pela primeira vez reparo na imensidão do meu erro; não lutei por
Nahuel, nem pelo nosso amor. Possivelmente, meu casamento com Julián
tenha sido uma saída cômoda, no fim das contas. O sofrimento que padeci e
que padeço é o justo castigo por minha traição”.

Tradução Lauren Moon


- Continue me contando - pediu Laura.

- Não soube da sorte que tinha tido Nahueltruz até tempos


depois, quando recebi uma carta do doutor Carvajal, o tabelião de San Luis,
em que me informava que Nahueltruz tinha passado por seu escritório, e
retirado os documentos que faltavam para tomar posse da herança de tio
Lorenzo. Imediatamente decidi viajar a Terra Adentro. Nahueltruz me
devia uma explicação. Ele tinha que me prestar contas pelo que tinha feito
com você, pelo que tinha ocorrido entre vocês.

- Oh, Agustín! Tinha ocorrido o mais lindo. Tínhamo-nos


apaixonado.

Agustín aplaudiu sua mão com indulgência e prosseguiu:

- Em Terra Adentro, Mariano Rosas me disse que seu filho


tinha retornado a Leuvucó, só para pô-lo a par da morte de Racedo e de que
pensava em sair do país. Mariano Rosas tratou de dissuadi-lo, mas a
vontade de Nahueltruz é de pedra e expressou que sua decisão era
irredutível. Cruzou o Chile e embarcou em Valparaíso para Lima. Uma vez
ali, tomou posse da herança de tio Lorenzo. De Lima, ele me escreveu uma
longa carta, relatando os fatos, mais ou menos como eu os conhecia, e me
confessou que tinha decidido ir para Paris. Como nossa mãe tinha-lhe
falado sobre os Beaumont, pediu-me que redigisse uma carta de
apresentação para recomendá-lo a Armand, que o ajudaria a abrir seu
próprio caminho nos primeiros tempos. Enviei-lhe a carta de apresentação
para Lima e, imediatamente, embarcou em Callao rumo a Paris juntamente
com Blasco, de quem se encarregou depois disso. Esta é, mais ou menos, a
sucinta relação dos fatos. Durante todo este tempo, Nahueltruz e eu
mantivemos uma fluida comunicação epistolar, sempre em nome de
Lorenzo Rosas.

- Soube todo o tempo que Nahueltruz não tinha morrido e me


deixou viver com esta angústia.

- Sinto muito, Laura, mas jamais suspeitei que acreditasse que


Nahueltruz estivesse morto. Ele me proibiu de mencionar suas intenções
com qualquer pessoa, e me reforçou que, em especial, deveria ocultar isso
de você.

- Que crueldade! Alguma coisa teria sido preferível à incerteza


em que vivi todos estes anos! Não sabia se estava vivo ou morto,
compreende Agustín? Não, não pode compreender, quando não padeceu o
que eu padeci.

Tradução Lauren Moon


- Naquele momento julguei assim ser correto. Considerei que
manter você à margem ajudaria a esquecê-lo. Pelo vínculo sagrado do
casamento, você pertencia a outro homem, e revolver o passado só traria
dor e mais hesitações e dúvidas para sua vida. De qualquer maneira, como
você jamais mencionava o assunto, acreditei que também tivesse decidido
esquecer.

- Não me animava, tinha vergonha, sim, sim, queria esquecer,


enterrar aquela tragédia e fazer de conta que nunca tinha ocorrido, que não
tinha transtornado minha vida e a de Nahuel tão radicalmente. - As forças a
abandonaram e voltou a se recostar no divã -. Nunca é bom fingir -
murmurou -. Esconder a verdade é nocivo. Vivi com esta angústia todos
estes anos e só consegui ser infeliz. Quanto bem teria me feito contar isso
Agustín! E que você me revelasse à verdade, também.

- Agora entendo que cometi um erro irreparável e que você


sofreu por isso Laura, as circunstâncias eram tão confusas naquele
momento. Lamento não ter estado ali para ajudá-la. Se tivesse recorrido a
mim, seu casamento com Riglos jamais teria acontecido. Sei que foi
pressionada, sei que se casou movida pelo medo. Seu casamento foi o
resultado de uma grande conspiração, em que inclusive o padre Donatti
desempenhou um papel detestável. Sim, não me olhe assim. Ele conhecia a
verdade muito bem, quando casou você com o Riglos e sabia que, enquanto
jurava frente ao altar ser fiel a um homem pelo resto de sua vida, pensava
em outro. Nossa relação não tornou a ser a mesma, desde que lhe joguei na
cara a responsabilidade por sua infelicidade.

—Não, Agustín, por favor, não diga isso! O padre Marcos não
tem culpa alguma. Eu tinha que me casar com Julián. Se alguém tem culpa,
é inteiramente minha. Foi minha decisão, naquele momento considerei que
era o melhor, que dessa forma protegeria Nahueltruz. Só agora me dou
conta de que tomei decisões, dominada pelo medo, e que cometi um erro
que nunca deixarei de lamentar, mas não foi culpa do padre Marcos, de
maneira nenhuma foi culpa dele.

Laura cobriu seu rosto e começou a chorar. Agustín se sentou


junto dela no divã e a tomou entre seus braços.

- Nahuel me odeia.

- Oh, não, é obvio que não odeia você. Possivelmente, a


princípio, sentiu raiva e rancor; estava muito ferido, seu orgulho estava
muito ferido. Ele interpretou seu casamento com Riglos como uma traição
e, para um índio, a traição é algo que não se perdoa. São muito rancorosos,
Tradução Lauren Moon
sabe? Mas Nahueltruz é um homem feliz agora e parece ter deixado o
passado para trás. Não pode fazer o mesmo, deixar tudo para trás e começar
uma nova vida?

As palavras de Agustín, embora bem intencionadas,


machucaram-na profundamente. Nahueltruz Guor era feliz agora. Era feliz
com Geneviéve, com seus amigos excêntricos, aristocráticos e ricos, com a
vida suntuosa e incansável que levava em Paris, também em Florença. Ela,
ao contrário, era uma infeliz. Diferentemente de Nahueltruz, não tinha sido
capaz de sobrepor-se à dor e recuperar o leme de sua vida. Suas feridas
tinham sangrado durante seis anos. A dor e a amargura tinham regido seu
destino, convertendo-a em um ser desesperançado. Havia existido um
tempo no qual ela tinha sido feliz em um maltratado estábulo, recostada
nua sobre a alimentação dos cavalos, o cabelo solto e misturado-se com a
alfafa, coberta com acolchoados de selas e mantas ranqueles, o fedor dos
animais impregnado em suas narinas, mas entre os braços fortes de seu
amante, que a confortava como ninguém. Agora, rodeada pela mais
estupenda pompa, embelezada com sedas da China e brocados de Lyon,
seus cabelos de ouro entrelaçados com miríades de pérolas asiáticas,
invejada e admirada, tinha vontade de morrer.

Com o general Roca se permitiu um pouco de prazer e gozo,


tão negados e adiados. Ele tinha sido uma débil esperança; e, embora seus
encontros, sempre infestados de sentimentos contraditórios, nunca a
satisfizessem por completo, possivelmente nele estivesse o segredo para
voltar a ser feliz. Sentiu falta dele, e desejou que estivesse em Buenos
Aires, e que lhe enviasse um bilhete para se encontrarem na solidão da casa
de Chavango.

Laura parou de chorar. Estava cansada de chorar. Agustín


tinha razão, se Nahueltruz tinha superado essa provação, ela também
conseguiria. Não tocaria no assunto do passado novamente. Queria deixá-lo
para trás, esquecê-lo. Não continuaria recriminando nem indagando.

- Quem eram as pessoas que estavam na estação com você? -


perguntou, enquanto se secava as lágrimas.

- Lucero e Miguelito, suas filhas, seus genros e seus netos. E


dona Carmen, mas você certamente a reconheceu.

- Lucero e Miguelito? Os amigos de tia Blanca? - Agustín


assentiu -. O que fazem em Buenos Aires? Por que deixaram Terra
Adentro?

Tradução Lauren Moon


Agustín explicou que Terra Adentro deixaria de existir em
poucos dias, quando as colunas do general Roca acabassem com os povos
já desmembrados de ranqueles, salineiros, tehuelches, vorohueches,
pehuenches, mapuches e demais habitantes do Pampa. Miguelito, temeroso
por sua família, tinha aceitado a proposta do padre Agustín em partir para
cidade em busca de trabalho e deixar para sempre Leuvucó.

- Dirá que é um paradoxo - acrescentou Agustín, com a feição


risonha - mas parte do dinheiro que o general Roca me enviou semanas
atrás, usei nas passagens de trem para a família de Miguelito.

- Fez muito bem, mas me pergunto o que será dos outros. Não
poderão enfrentar Roca e seus Remington com lanças e boleadeiras.
Imagino que o cacique Epumer esteja consciente disto.

Epumer, o último da dinastia dos Zorros36, converteu-se em


cacique geral das tribos ranculches com a morte de seu irmão Mariano
Rosas, em agosto de 77. Embora os chefes do Conselho admitissem que
Epumer carecia da inteligência e liderança de seu irmão Mariano,
igualmente o designaram cabeça das tribos por sua valentia e ferocidade em
batalha. Aproximavam-se tempos difíceis, nos quais se apreciaria mais um
lutador valente e implacável, que um grande negociador.

- Epumer está preso em Martín García - manifestou Agustín.

- Preso?

- No ano passado, quase no fim do ano, o coronel Racedo e o


capitão Ambrosio caíram sobre o Leuvucó e eles foram feitos prisioneiros.
Epumer e sua família foram levados para a ilha Martín García. Muitas
mulheres e crianças ficaram cativos e repartidos em fazendas e casas de
família. Miguelito e os seus se salvaram, porque visitavam o cacique
Ramón Cabral, aquele que eles chamam de El Platero37, no dia do
massacre.

Com os anos, Agustín tinha aprendido a reconhecer suas


próprias limitações e a aguentar seus fracassos com atitude positiva e
digna. Nos últimos meses, porém, tinha tido que recorrer a toda sua
vontade e integridade para não deixar-se vencer pela amargura, que
invariavelmente o assaltava, quando pensava na sorte que corriam os povos
aos quais defendia com esforço, em especial os ranculches, que tanto

36
Raposas (N. da Tradutora)
37
Ourives (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


significavam em sua vida. O resultado se aproximava, e ele, atado de pés e
mãos, sentia-se mais inútil e impotente que nunca.

- Que nosso Senhor os ampare - sussurrou, enquanto aplaudia


a mão de sua irmã.

- Amém - replicou Laura -. Então, esse é o verdadeiro motivo


da viagem de Nahuel? - perguntou, envergonhada de mencioná-lo
novamente, quando minutos atrás tinha prometido deixá-lo em paz.

- Sim. - Agustín refletiu uns instantes antes de adicionar -: O


certo é que Nahueltruz está despedaçado. Vários de seus meios irmãos,
filhos de Mariano Rosas, morreram de varíola ou em alguma emboscada
com o exército. Racedo hostiliza os Guor especialmente.

- Maldita casta, esses Racedo! - enfureceu-se Laura.

- Laura, por favor.

- É certo, Agustín. São homens vis, sem princípios nem


valores, absolutamente desprovidos de compaixão.

- Racedo tomou este assunto como algo pessoal, para vingar a


morte de seu tio Hilario. Seu ódio às vezes me assusta, não sei do que é
capaz.

- Será que este pesadelo jamais terminará? - prorrompeu Laura


-. Preocupo-me com Nahuel, Agustín. Ele não pode se expor, é perigoso,
alguém poderia reconhecê-lo. Acredita que Lucio Victorio o tenha
reconhecido? Embora não me surpreenda que não o tenha feito e que nem o
faça, sendo a transformação de Nahuel tão profunda. De qualquer maneira,
não deve se arriscar. Ainda pesa sobre sua cabeça um pedido de prisão.

- Sei, Laura, sei. Mas, o que posso fazer quando é tão


voluntarioso? Ele me disse que voltou para ajudar seu povo, que se sente
culpado, que os abandonou a sua própria sorte, que os traiu. Enfim, pesa-
lhe a consciência. Insiste em dizer que não é digno de ser chamado de
ranquel.

- Suplico-lhe, Agustín - choramingou Laura, e agarrou ambas


as mãos de seu irmão -, convença-o a retornar a Paris, de que não se
exponha. Meu Deus, morreria de dor se algo lhe acontecesse! Não iria
suportar! Não poderia resistir! Tudo é por minha culpa! Por minha causa!
Não poderia resistir!

Tradução Lauren Moon


- Laura, por favor, acalme-se.

- Não vou me acalmar até que me prometa que tentará


convencê-lo a abandonar Buenos Aires. Prefiro saber que ele está longe,
mas a salvo e não perto de mim, mas em perigo. Prometa-me.

- Prometo-lhe.

Maria Pancha entrou no quarto com uma bandeja e


imediatamente notou a agitação de Laura e a expressão amarga nos lábios
de Agustín. Sem pronunciar uma palavra, deixou a bandeja sobre a
penteadeira e serviu o chocolate quente. Em sua experiência, nada como
uma boa xícara de chocolate grosso e quente para ajudar a recuperar os
ânimos. Tanto Laura como Agustín admitiram a necessidade de uma pausa
e a olharam com agradecimento, quando lhes passou as xícaras fumegantes.

- Onde estão instalados Miguelito e sua família?

- Na casa de tia Carolita.

- Deve trazê-los aqui. Há lugar de sobra. Em tia Carolita, ao


contrário, parece um hotel. - Agustín moveu a cabeça sem entusiasmo -.
Tia Carolita sabe quem é na verdade Lorenzo Rosas?

- Não, absolutamente. Sabe que Lorenzo Rosas é um grande


amigo meu e que fui eu quem lhe proporcionou a carta de apresentação
para Armand, mas nada mais.

- Tem direito, de saber, que Lorenzo Rosas é filho de tia


Blanca - assinalou Laura.

- Isso é algo que só corresponde a Nahueltruz decidir.

Laura apenas assentiu e bebeu outro gole de chocolate.

- Disse que Miguelito veio procurar trabalho - retomou -. Pois


bem, eu sempre necessito mãos com vontades de trabalhar em Los Olmos e
em Punta de Piedra.

- Miguelito comentou que gostaria de trabalhar no campo, que


não é homem da cidade, que se sente peixe fora d’água. É extremamente
hábil nas tarefas rurais. Era a mão direita de Mariano, em especial no
cultivo.

Tradução Lauren Moon


- Isso é muito interessante, em vistas de estar planejando
mandar semear cevada e trigo em Los Olmos. Lorde Leighton recomendou-
me isso, mas nem Cantalicio em Los Olmos, nem Camacho em Punta de
Piedra entendem disso. Só de vacas e ovelhas. Nada de cevada e trigo.

- Mencionou lorde Leighton? O amigo de papai?

- Não, seu filho. Lorde James morreu antes de papai. Agora


seu filho, Edward, se encarrega de meus investimentos na Inglaterra. Como
dizia, esteve em Buenos Aires faz dois anos, muito interessado na compra
de terras, e me disse que não entendia por que o cultivo não é uma
atividade generalizada em nossa terra. “O que vocês colhessem, nós
compraríamos sem hesitar”, assegurou. Se Miguelito souber de plantação,
ele poderia se encarregar. Quando quiser podemos enviá-lo a Los Olmos.
Avisarei a Cantalicio para que o receba. Apenas me avise se Miguelito
estiver interessado.

- Não haverá problemas com Cantalicio? Não sentirá minada


sua autoridade?

- Cantalicio? Esse homem é a versão masculina de tia Carolita.


Além disso, já está velho e adoentado. Receberá a ajuda de Miguelito,
como os judeus, o maná. O que será das filhas e genros de Miguelito? Para
elas podemos empregá-las como domésticas nas casas de boas famílias; a
eles... já se verá. Os meninos que estavam na estação deveriam ir para o
colégio. Por que não diz a Lucero e suas filhas que venham me ver amanhã
de tarde para conversarmos?

- Vejo que já se sente melhor - apontou Maria Pancha -,


querendo solucionar os problemas do mundo, como de costume.

- Trouxe-lhe um presente - disse Agustín, e tirou um livro


forrado em couro do bolso de sua batina.

Laura em seguida reconheceu o caderno de sua tia Blanca


Montes. Folheou-o rapidamente e se deixou embriagar pelo aroma que
despediam suas folhas, o mesmo de seis anos atrás. Tantas lembranças
vieram a sua mente, das noites em vigia enquanto o lia, das tardes enquanto
aguardava Nahueltruz, das manhãs enquanto Agustín cochilava. Embora
doloroso, seu passado também continha memórias íntimas.

- Agora que você escreve - explicou Agustín -, percebi que


possivelmente pudesse lhe ser útil, que talvez houvesse interesse em
escrever a história de minha mãe.

Tradução Lauren Moon


- Não desaprova que eu escreva? - perguntou Laura, e Agustín
se lembrou de quando era menina, possivelmente pelo tom de voz que
usou, talvez pela maneira como inclinou a cabeça e suavizou o olhar,
truques que estava acostumada a lançar mão para enrolá-lo.

- Claro que não desaprovo - assegurou veementemente -, claro


que não. Estou orgulhoso de você, Laura.

Ela, que o abraçava, percebeu cansaço no tremor de seu corpo.

- Confesso que às vezes eu gostaria de voltar a ser um moço e


brincar com você no pátio da casa de Córdoba.

- Eu também. Voltar àqueles dias quando você era meu herói


de armadura lustrosa, capaz de me salvar de qualquer perigo, àquele tempo
em que sentia que eu era a mais importante para você.

- Depois do Senhor, minha irmã, é a mais querida para mim.

Antes do jantar, enquanto Laura se trocava, recebeu um bilhete


de seu irmão que informava que passaria a noite na casa de tia Carolita. Em
seguida, a nota rezava: “Quanto à família de Miguelito, não se preocupe. O
senhor Rosas decidiu registrá-los no hotel Roma, na Rua da Cochabamba”.

~0~

Apesar de seu temperamento melancólico, Laura nunca ficava


sem condições de reagir, seu orgulho não permitia. “Que pensem de mim o
que quiserem, -dizia-se -, exceto que sou uma ociosa frívola e consentida”.
Na realidade, Laura era uma mulher muito hábil e ocupada. Essa manhã,
por exemplo, devia reunir-se com o diretor do colégio para meninos órfãos
e de famílias indigentes que funcionava na casa que tinha pertencido à
família de Julián e que ela, é obvio, tinha herdado. A escola, criada no ano
anterior, contava com duas alas, uma para meninas e outra para meninos, e
com acomodações e inovações pouco comuns na edificação escolar. A
exceção de uma pequena renda mensal proveniente do governo, obtida
graças a sua amizade com a Avellaneda e Sarmiento, o resto do dinheiro
saía de seu bolso. De todas suas obras de caridade, a escolinha nos altos de
Riglos era a que lhe proporcionava mais satisfações.

No escritório do professor Pacheco, o diretor, Laura concordou


a necessidade de reparos nas salas do andar inferior, aceitou a contratação
de um novo professor e assinou um cheque contra seu banco para pagar a
quem lhes provia diariamente o leite para os quarenta e três meninos.

Tradução Lauren Moon


- Esta tarde retornarei com novos alunos - informou Laura -.
Trata-se de quatro meninos. São índios.

- Índios? - repetiu o diretor, sem ocultar uma nota de


displicência.

- Sim, índios. Especificamente ranqueles, Professor Pacheco -


pronunciou Laura -, não se esqueça da índole desta escola. Aqui se educam
os mais necessitados, aqueles que, de outra maneira, seriam analfabetos por
falta de recursos. Estes meninos dois quais lhe falo acabam de chegar em
Buenos Aires, escapando da expedição do general Roca. Certamente estão
assustados e não entendem por que tiveram que abandonar sua terra. Jamais
lhe pedi um tratamento preferencial para nenhum dos alunos, mas faço
questão que todos sejam tratados com respeito, ainda que sejam índios.

O hotel Roma na Rua da Cochabamba estava longe de


granjear o adjetivo de luxuoso, mas era limpo e em seu saguão respirava-se
um ambiente cômodo e amplo. Laura imaginou que Lucero e sua família,
depois de terem passado a vida em toldos, achariam esse lugar
simplesmente desconcertante. O registro foi feito em nome de Lorenzo
Rosas. Pôs umas moedas na mão do empregado do hotel que a acompanhou
ao andar superior. No quarto, encontrou Miguelito, com a expressão de um
leão que acaba de ser cativado, a Lucero, que costurava sentada na beirada
da cama, e a dona Carmen, que olhava pela janela. Laura despediu o
empregado e sorriu a três semblantes confusos, que não afastavam os olhos
dessa magnífica senhora loira, envolvida em uma capa de veludo azul
marinho. Laura se apresentou como a irmã do padre Agustín Escalante e
sobrinha em segundo grau de Blanca Montes. Embora Carmen
mencionasse que a tinha conhecido em Rio Cuarto, quando seu neto Blasco
a seguia como cão mulherengo por toda a vila, nem sua voz, nem seu gesto
denunciavam estar plenamente consciente do papel que tinha
desempenhado na morte do coronel Racedo, nem do namorico com Guor.
Laura, por sua vez, não duvidou de que a anciã conhecia a história de cor,
mas não se incomodou; certa bondade no olhar vítreo e senil dessa mulher
a fez sentir-se à vontade.

Lucero e Miguelito ao mesmo tempo convidaram-na a entrar.


O acolhimento foi educado e hospitalar. Indicaram-lhe a única cadeira do
quarto; eles se sentaram na beirada da cama. Laura logo notou que seu traje
os intimidava. “Deveria ter posto uma saia de algodão, um colete de
carneiro e o chapéu de palha”, meditou.

- Eu gostaria de oferecer alguma coisa, senhora Riglos -


desculpou-se Lucero -, mas não tenho onde prender um fogãozinho aqui.
Tradução Lauren Moon
Nahueltruz... quero dizer, Lorenzo nos disse que o hotel tem cozinha e que
eu posso pedir o que quiser, mas não me animo em descer.

- Não se preocupe, Lucero. Estou perfeitamente bem. Só vim


lhes dar as boas-vindas e lhes dizer que podem contar comigo para o que
precisarem. - dirigiu-se ao Miguelito e comentou -: O padre Agustín disse
que você, Miguel, estaria interessado em trabalhar no campo.

- É, sim, senhora. Passei minha vida toda no campo. Não me


acho na cidade, pra’o que eu deveria mentir.

Laura, que expôs sua intenção de semear em Los Olmos e de


dar o trabalho para ele, percebeu o entusiasmo nos olhos desse cristão, que
tinha desertado de sua religião décadas atrás para seguir Mariano Rosas,
porque lhe salvou a vida em um estábulo em El Pino. Laura perguntou
pelas intenções das filhas e genros de Miguelito e Lucero, e soube que “os
ingratos estavam pegando gosto pela multidão e pela agitação da cidade e
que já não tinham tanta vontade de partir p´ro campo».

- De acordo com o que saibam fazer - disse Laura -,


poderemos ocupá-los em alguma coisa. Sempre precisam de mão-de-obra
com vontade de trabalhar.

- Ah, senhora! - exclamou Lucero -. Vontade de trabalhar não


nos falta, apesar de algumas pessoas dizerem que os índios são vadios.

- Não, é obvio que não são vadios - conviu Laura -. O padre


Agustín me disse que vocês têm netos em idade escolar. Acabo de falar
com o professor Pacheco, diretor da Escola “María del Pilar Montes”, e me
disse que estaria encantado de recebê-los.

- Nós não temos com o que pagar uma escola, senhora -


entristeceu-se Lucero.

- Não teriam que pagar um centavo - explicou Laura-. Só é


necessário que os meninos assistam com frequência e cumpram com seus
deveres. A escola fornecerá materiais e cadernos. Inclusive receberão uma
xícara de leite pela manhã e o almoço.

- Ah, se for assim... - duvidou Miguelito -. Mas temos que


perguntar a Lorenzo - adicionou depressa.

Tradução Lauren Moon


- Sim, é obvio - balbuciou Laura, e mudou o assunto de
conversa; perguntou por Dorotea Bazán e por Mariana como se as
conhecesse por toda a vida.

- Tornaram-se cativas, senhora - respondeu Miguelito, porque


Lucero tinha sua garganta embargada e não podia falar -. No dia que esse
diabo do Racedo atacou Leuvucó, as levou com os outros presos. Nem
sequer teve piedade de ver que eram duas velhinhas. Não sabemos o que
foi feito delas nem onde estão. Racedo não as levou ao Fuerte Sarmiento
como os demais. Possivelmente não suportaram a viagem até Rio Cuarto e
morreram no caminho.

- Não diga isso! - choramingou Lucero.

- Sinto muito - sussurrou Laura.

Escutaram-se risadas no corredor e imediatamente a porta do


quarto se abriu. Entraram Nahueltruz Guor, Blasco e Mario Javier. Ao ver
Laura, os sorrisos se desvaneceram e ficaram parados sob o portal. O
ambiente se tornou tenso. Laura ficou de pé e recolheu suas luvas e sua
bolsa.

- Bom dia, senhora Riglos - saudou Mario, e se aproximou


para estreitar sua mão.

- Bom dia, Mario - disse, em voz baixa e calculada -. Já vou,


Lucero. Foi um prazer conhecê-los.

- Igualmente, senhora. E obrigado por tudo.

- A que veio, senhora Riglos? - trovejou a voz de Guor nos


ouvidos de Laura.

Levantou a vista e o contemplou fixamente pela primeira vez


desde o nefasto encontro na casa de tia Carolita. Machucou-a
profundamente o sarcasmo e desprezo que destilavam esses olhos cinza,
que anos atrás tinham-na admirado com paixão. Por sorte, Lucero
intercedeu.

- Lorenzo, a senhora Riglos foi tão generosa. Veio a nos


oferecer trabalho. Inclusive poderemos mandar os meninos a uma escola

Tradução Lauren Moon


sem pagar um rial38, querido. A senhora já falou com o diretor dali e disse
que não há problema. Eles vão dar tudo, inclusive leite e comida.

Guor tirou o chapéu com estudada parcimônia e o deixou


sobre a cama. Laura, que havia tornado a baixar o olhar, só viu aproximar
os lustrosos e elegantes sapatos de Nahueltruz. De tudo, o pior era o
silêncio. “Escutarão como bate meu coração?”

- Não volte a se meter em meus assuntos, senhora Riglos -


falou Guor, e Laura levou sua mão à boca para afogar um soluço -. Não
necessitamos de sua caridade nem de sua generosidade incompreendida. Eu
me encarrego deles, que são como minha família. Os meninos, Lucero -
disse, sem afastar a vista de Laura -, não irão a um colégio para indigentes,
mas a um que eu pagarei. Ou acaso eles, por serem índios, não podem
mesclar-se com os de sua classe, senhora Riglos?

Laura caminhou para a porta a passo rápido e abandonou o


quarto sem fechar a porta. Seu corpo tremia de fúria e dor, reprimidos.
Quase correu pelo corredor, mas ao escutar a porta bater, deteve-se
abruptamente, apoiou as costas contra a parede do corredor e deixou-se
deslizar até ficar acocorada no piso.

38
Moeda argentina da época (N. da Tradutora).

Tradução Lauren Moon


Capítulo X.

Mortal e fria indiferença

A humilhação se converteu em ressentimento, e Laura entrou


na mansão dos Lynch com o passo suntuoso de uma rainha e o olhar astuto
de um tirano. Um casaco de zibelina ocultava parte de seu vestido de renda
marfim, o mesmo que tinha usado na noite da apresentação do livro de
Julián, também usava os brincos e gargantilha de safiras, e uma carteira
com broche de ouro e bordado com pequenas pérolas. Maria Pancha tinha
penteado seu cabelo para trás para formar um grosso e fofo coque na base
da nuca preso com presilhas de madrepérola, o penteado, esticado e sem
defeito, realçava suas feições mais que nunca, seus olhos pretos pareciam
ainda mais pretos e amendoados, suas maçãs do rosto mais rosadas e
proeminentes, e seus lábios mais vermelhos, brilhantes e carnudos.

Nahueltruz Guor a viu do saguão de recepção, enquanto o


mordomo a ajudava com a capa. Observou-a atentamente, ignorando a
duquesa Marietta que comentava com ele sobre um convidado. Nessa noite
Laura parecia diferente, possivelmente como consequência do penteado
incomum. Sua beleza era agressiva e desconcertante. Transmitia uma
impressão imediata de ardor e abandono, indomável, mas ao mesmo tempo
uma espécie de calor exuberante e sensual que conferia-lhe o aspecto de
um ser inocente, absolutamente responsável pelo que sua presença operava
tanto nos homens como nas mulheres. Guor experimentou uma satisfação
prazerosa quando a viu aproximar-se, um sentimento de posse também,
como se sobre ela pudesse reclamar todos os direitos. Secretamente,
vieram-lhe as lembranças, e em seus ouvidos escutou o eco dos gemidos de
Laura e ante seus olhos voltou a vê-la nua e palpitante. Como um moço,
sofreu uma ereção que dissimulou o comprimento do fraque.

Essa noite, Laura estava perfeitamente consciente de seus


encantos e se dispunha a usá-los. Estava machucada e queria machucar.
Debaixo desse magnífico disfarce se escondia um ser humilhado e
ressentido, com sede de vingança. Essa tarde, enquanto a penteava, Maria
Pancha tinha encontrado seu olhar no espelho e havia dito:

- Tem que falar com esse índio e explicar como aconteceram


as coisas em Rio Cuarto. - Com acento solene, pronunciou -. A ira sem
elucidação toma caminhos nefastos.

Tradução Lauren Moon


Embora Maria Pancha tivesse razão, essa noite Laura não
seguiria seus conselhos, nem sequer os gritos de sua própria consciência.
Não importava o que tinha falado com seu irmão dias atrás, não lhe
importava esquecer, sobrepor-se, superar a provação. Somente queria
machucá-lo, porque, embora se tratasse de uma intuição, ela sabia que
ainda contava com esse poder, com o poder de deixar uma marca em
Nahueltruz Guor. Certamente ele a odiava, mas Laura estava certa de que
não era indiferente a ele, odiosa e desprezível talvez, mas nunca
indiferente.

Deixou o vestíbulo e cruzou o saguão da recepção na direção


de Pura e de seu pai que, em pé junto à entrada do salão principal, recebiam
aos convidados. Nahueltruz a viu aproximar-se, e Laura, que naquele
momento percebeu que ele estava ali, observando-a, sustentou-lhe o olhar e
passou reto. Ventura Monterosa aproximou-se por trás e deixou escapar um
assobio.

- Sabe que viajei pelos cinco continentes - expressou -, e que


conheci muita gente, mas posso lhe assegurar, Lorenzo, que nunca topei
com uma criatura mais perfeita e apetecível que a viúva de Riglos. Acredito
que, para possuí-la, deixaria que me apenhasse pelas garras do casamento.
Você bem sabe que sempre fugi tudo que pude. Agora, entretanto, cairia
em suas redes com vontade. - Nahueltruz o olhou de soslaio, por sobre o
ombro, e Ventura, hipnotizado com o vaivém dos quadris da viúva de
Riglos, não percebeu que havia uma raiva assassina nesse olhar.

- Vamos cumprimentar a homenageada - convidou Ventura -.


Ela também está magnífica esta noite.

Era inegável o encanto desse veneziano, jovem, bom moço e


afável. Nahueltruz se sentiu velho e abatido. Pensou “Laura não voltaria a
se sentir atraída por mim”. Sua juventude tinha ficado para trás fazia
tempo, usava óculos para ler, tinha as têmporas esbranquiçadas e as rugas
em torno dos olhos, que se formavam mesmo sem rir, eram claros indícios
de que estava se convertendo em um homem de idade. Ela tinha só vinte e
seis anos, ele já era quase um quarentão.

José Camilo Lynch e Pura davam as boas-vindas aos recém-


chegados e trocavam umas palavras antes de lhes indicar o salão principal,
onde eram servidos aperitivos e antepastos. Os olhos de Purita encontraram
os de sua tia Laura. Contemplaram-se com admiração e carinho. Laura
pensou “Logo deixará de ser minha garotinha para converter-se em uma
mulher”. A escolha do conjunto de brilhantes e rubis cabochões tinha sido
acertada, apesar de despojá-la do ar angélico para lhe conferir um mais
Tradução Lauren Moon
mundano; por certo, realçavam a cor rosa pálido do organdi do vestido.
Laura e Pura se abraçaram, sem reparar na possibilidade de rugas ou de
maquiagem escorrida. Laura a beijou na testa e lhe sussurrou:

- Parece uma princesa de um conto de fadas.

- E você a rainha. Obrigado por usar este vestido.

- Um prazer.

Laura beijou seu primo José Camilo na bochecha, que lhe


dispensou uma olhada entre risonho e zangado.

- Está magnífica, Laura, como sempre - reconheceu, e em voz


baixa, adicionou -. Você e eu temos que conversar.

- Esta noite não - manifestou Laura, e entrou no coração da


festa.

A mansão dos Lynch pertencia ao novo estilo ostentoso e


afrancesado que os portenhos de fortuna encontravam tão de seu gosto.
Nenhuma reminiscência da época colonial permitia advertir as origens das
famílias que as habitavam, ou da terra de onde vinham. Dentro dos salões
suntuosamente embelezados com boiseries39 douradas com folha de ouro,
vitraux dignos de uma catedral gótica, imponentes aranhas de cristal,
pesadas cortinas de veludo e caros móveis Chippendale ou estilo Luis XV,
poderia-se jurar que, ao transpor a entrada principal, terminaria entrando na
avenue des Champs Elysées em Paris, ou sobre Park Lane em Londres. A
sociedade portenha admirava a Europa com o encantamento de um menino
e estava disposta a criar essa ilusão parisiense ou londrina, nem que para
isso tivesse que trazer de navio até os pilares de sua construção.

A sociedade portenha mais graúda honrava o salão dos Lynch,


os Lezama, os Lacroze, os Azcuénaga, os Wilde, os Virasoro, os
Basavilbaso, os Anchorena, os Alvear, os Alzaga, os Guerrero, os Casares,
os Unzué, não faltou ninguém. Laura avistou o escritor Paul Groussac
encurralado em um canto por Sarmiento e Lucio Mansilla. A uns passos
distinguiu Carlos Pellegrini que conversava com Clara Funes, a esposa do
general Roca, e com seu arrendatário, Francisco Madero. Perto da mesa de
sanduíches, reconheceu a figura sempre desalinhada do presidente Nicolás
Avellaneda, que, entre pedaços e mordidas conversava com o governador
de Buenos Aires, Carlos Tejedor. Todas as pessoas de sua classe e de seu
39
Revestimento de paredes típico dos séculos XVII e XVIII. Trata-se de painéis de madeira adornados com baixos-relevos. (N. da
Tradutora)

Tradução Lauren Moon


meio, aquelas com quem costumava conversar desde pequena, famílias
cujos sobrenomes encontravam-se entre os primeiros habitantes da cidade,
pessoas decentes, como as chamava a avó Ignacia, por certo cultas,
viajadas e educadas. Por nascimento e educação, Laura pertencia ao grupo
que formavam, e faria com que Nahueltruz Guor notasse isso.

A excentricidade da noite era a duquesa Marietta de Parma. As


mulheres em especial, mas os homens também, tinham desenvolvido um
interesse limítrofe ao da obsessão pela nobre italiana. Durante os dias que
antecederam a festa, Laura tinha sido objeto de detalhadas inquisições a
respeito da famosa duquesa: como se vestia, o que comia, como falava, era
simpática ou mal humorada? Era amiga da rainha Margherita? O finado
duque tinha sido influente na corte do rei Humberto? Laura se perguntava,
com humor e cansaço, se suas amizades e parentes acaso acreditavam que a
duquesa tinha desenvolvido um terceiro olho como consequência de seu
título nobiliário ou tinha a pele de cor azul. Por fim, Marietta entrou no
salão de braço dado com o senhor Lorenzo Rosas, e Laura foi testemunha
das cotoveladas trocadas e dos olhares significativos que lançavam os
convidados. “Não é nada tão bonita”, “poderia passar por uma mulher
comum se não vestisse esse traje tão caro”, “seus dentes são muito
grandes”, “seus olhos estão muito separados”, foram alguns dos
comentários que chegaram a seus ouvidos.

Era escoltada por Esmeralda Balbastro, que caminhava atrás


de Nahueltruz Guor, enquanto conversava com Armand Beaumont e
Blasco Tejada. Laura teve que aceitar que Esmeralda era, simplesmente,
bonita. Seus olhos, desse suave e limpo azul turquesa tão cantado pelos
poetas e tão incomum na vida real, possuíam a habilidade de enfeitiçar
quem se detinha para observá-los. O feitiço, entretanto, não estava só na
beleza de seu olhar, mas no que transmitia: ardor, entrega, atrevimento.
Com a contundência de um descobrimento repentino, Laura entendeu
finalmente o amor de seu primo Romualdo Montes.

A duquesa de Parma se afastou do grupo para saudar o


ministro francês, e Guor imediatamente se virou para dispensar sua atenção
a Esmeralda, que entrelaçou seu braço ao oferecimento. Laura afastou o
olhar e baixou o rosto, incomodada. Os ciúmes e a amargura ameaçavam
arrebatar o domínio com que havia decidido enfrentar a festa de Pura.
Podia vencer qualquer rival, exceto Esmeralda Balbastro.

- Pois bem, a duquesa de Parma é um ser humano comum


apesar de tudo - pronunciou dona Luisa del Solar, e Laura se virou,
sobressaltada.

Tradução Lauren Moon


- Que alegria vê-la, dona Luisa! - exclamou com sinceridade.
Dona Luisa sempre a fazia se sentir querida e importante; seu carinho era
bem-vindo justo quando começava a se sentir só e miserável.

- Está linda, querida, embora esteja com o mesmo vestido que


usou para a apresentação do livro de Julián. No que me diz respeito, o título
de duquesa poderia ser seu. Com certeza brilharia cem vezes mais que
nessa mulher tão pouco refinada. O porte de rainha, você herdou de sua avó
Ignacia, que foi invejada em seus tempos de juventude.

- A duquesa é uma mulher encantadora - advogou Laura.

- Já vejo que o senhor Lorenzo Rosas estabeleceu sua


preferência - prosseguiu dona Luisa -. Não pode culpá-lo, Esmeralda é uma
mulher extremamente cativante. Duas olhadas a mais como essa e o terá a
seus pés como teve seu primo Romualdo, que Deus o tenha em sua glória.

Laura tinha decidido não beber, mas, quando um garçom


passou com uma bandeja repleta de taças de champanha, pegou uma e a
esvaziou em dois goles. Dona Luisa continuou reportando:

- Apesar de ser muito alto, não podemos negar que o senhor


Rosas é um homem muito atraente. Seus olhos cinza são decididamente
magníficos. Viu seus cílios, querida? Tem-nos tão curvados que parecem
arranhar suas pálpebras. Será algo natural ou o obterá com pinças quentes?

A ideia de Nahueltruz curvando seus cílios em frente ao


espelho arrancou uma gargalhada de Laura, que a afogou com seu lenço.

- Lorenzo Rosas - disse dona Luisa -. É um homem


enigmático, não acha? Terá algo a ver com os Rosas que conhecemos?
Agustina assegura que não é parente dela. É obvio que ter sido parente de
Juan Manuel de Rosas é algo que todos escondem hoje em dia. De onde
será oriundo? Possivelmente não seja portenho. Talvez haja Rosas em
outras partes do país.

- É um sobrenome bastante comum - interpôs Laura e, para


distrair dona Luisa, pediu-lhe sua opinião sobre o vestido da Purita.

Eduarda Mansilla uniu-se a elas, e desejava felicitar Laura por


La verdad de Jimena Palmer.

Tradução Lauren Moon


- Minha mãe e eu não podemos com nossa impaciência até que
La Aurora publique o próximo número. Não pode me adiantar o que
ocorrerá entre ela e o nobre inglês?

Sobressaltada pelas adulações de quem considerava uma


exímia escritora, Laura aproveitou para lhe dizer o que não tinha podido
naquela noite na casa de tia Carolita. Que a admirava profundamente e
tinha lido todos seus livros, que seu favorito era Pablo ou la vie dans les
Pampas, além de compartilhar sua visão com a do índio do deserto, que
seria uma grande honra conversar com ela a sós e, por fim, convidou-a para
tomar um chá no dia seguinte às quatro da tarde, o que Eduarda aceitou.

- Diga-me, Eduardita - interveio dona Luisa, nada interessada


em questões literárias—, o senhor Lorenzo Rosas, é seu parente? - Eduarda
a olhou confusa -. Por parte de sua mãe, que é Rosas também - explicou
dona Luisa desnecessariamente.

- Não acredito, dona Luisa - expressou Eduarda - Lorenzo nem


sequer é portenho.

Dois garçons vestidos com smokings e luvas brancas abriram


ambas as folhas da porta da sala de jantar para dar início ao jantar. Os
convidados - ao redor de cento e cinquenta - se acomodaram nas mesas
dispostas entre a sala de jantar e o pátio de inverno, integrado ao salão.
Laura se uniu à mesa que compartilhavam sua mãe, Nazario Pereda e
Agustín, que essa tarde tinha oficiado uma missa para os mais íntimos na
capela da baronesa, em agradecimento pelos quinze anos de Pura. Minutos
mais tarde, Sarmiento, sua filha Faustina e sua irmã Maria del Rosário
acomodaram-se junto a eles. Laura procurou Nahueltruz com o olhar e o
viu bastante afastado. Ria e conversava com Esmeralda. Os olhos de Laura
se detiveram em Blasco, que, sentado à esquerda de Nahueltruz, observava-
a intensamente. Suas bochechas se tingiram de vermelho e baixou o olhar.
Até o momento, nada saía como havia planejado. Sentiu-se envergonhada,
só e triste.

Durante o jantar, Sarmiento assumiu a liderança e foi


impossível evitar o tema da expedição ao deserto e dos índios. Ainda
assim, as polêmicas entre Agustín, Pereda e Sarmiento ajudaram Laura a
distrair-se de sua obsessão.

- O general Roca ainda está em Carhué - informou Pereda.

Fazia tempo que Laura não se interessava pelo destino do


homem que havia sido tão importante para ela, antes que Guor irrompesse

Tradução Lauren Moon


em sua vida novamente. Imaginou-o em seu uniforme de general, a cavalo,
repartindo ordens com aquele vozeirão, que ela conhecia tão doce e
sensual, e imaginou também a admiração e respeito que despertava entre
seus soldados, o medo que seu cenho infundia.

- Quando deixará Carhué? - interessou-se abertamente, e os


convidados, à exceção de Agustín e Magdalena, olharam-na com
estranheza, pois diziam que Roca e a viúva de Riglos tinham um caso.

- Conforme li em La Tribuna esta manhã - falou Nazario


Pereda -, partirá com sua coluna no final de mês, dia 29 ou 30 de abril.

A lembrança de seu amante lhe deu orgulho e confiança; disse


a si mesma que desfrutaria do aniversário de Purita, apesar de Guor e que
dançaria até que o cansaço a rendesse.

- Ernesto Daza, meu sobrinho - sussurrou dona Luisa -, não


deixou de me pedir que você seja apresentada a ele, querida. Aquele, com o
botão de rosa branco na lapela. Acaba de chegar da Europa. Como seu pai é
diplomata, viveu grande parte de sua vida no exterior, por isso não o
conhece.

“Pois bem, - resolveu Laura -, o sobrinho de dona Luisa será o


primeiro”. Dançou com Ernesto Daza, e também com Eduardo Wilde,
Valentín Virasoro, Lucio Mansilla, com seu primo José Camilo, que
reprovou o pagamento da dívida com Climaco Lezica, com seu querido
amigo Cristian Demaría, e com Sarmiento, que, fora do alcance de sua
amante, Aurelia Vélez Sarsfield, elogiou-a com todos os galanteios que
vieram a sua mente. Dançou e bebeu champanhe nos intervalos, que a
fizeram sentir etérea e graciosa, contente e receptiva, tanto que respondia às
adulações e aos olhares de apreciação com sorrisos e quedas de olhos. No
frenesi do baile, quando mal terminava uma valsa e já a pediam para a
próxima, encontrou-se nos braços de alguém a quem havia mantido à
distância todos esses anos. Alfredo Lahitte. Rechaçá-lo teria significado
uma pequena briga, situação que evitaria pelo bem de sua sobrinha e para
não passar vergonha na frente de Guor, a quem não perdia de vista.
Nahueltruz, a maior parte das vezes, havia dançado com Esmeralda
Balbastro.

- Estranho que Laura Escalante tenha aceitado dançar com esse


cavalheiro - comentou Esmeralda.

- Quem é? - perguntou Guor com simulada indiferença.

Tradução Lauren Moon


- Alfredo Lahitte. Uma vez ele e Laura estiveram
comprometidos em casamento. Mas isso foi há anos e muita coisa ocorreu
depois disso. O certo é que, desde que ambos ficaram viúvos, Alfredo a
perseguiu sem descanso, mas Laura se limita a um tratamento formal e
desapegado. Lahitte sempre esteve apaixonado por ela; as más línguas
dizem que a amava inclusive depois de suas núpcias com Amelita
Casamayor - Esmeralda ficou em silêncio enquanto estudava Laura -. É
uma mulher fascinante - adicionou.

Nahueltruz percebeu que Lahitte apertava a cintura dela


desnecessariamente, pegava sua mão com atrevimento e falava muito perto
de seu rosto. Chateava-o que esses detalhes o perturbassem e não poder
afastar os olhos dela, mas sobre tudo, o que mais irritava era Laura
parecesse tão à vontade, enquanto ele passava um mau momento, apesar da
companhia de Esmeralda.

A contra gosto, Lahitte entregou a mão de sua companheira a


Ventura Monterosa, e Laura respirou com alívio. Alfredo, decidido a
aproveitar sua boa sorte, tinha ido ao ponto sem rodeios, e Laura esgotou
seus argumentos.

-Eu a vi dançar com outros e esperei pacientemente -


expressou Ventura -. De agora em diante, você só dançará comigo.

- Será um prazer, senhor Monterosa.

- Chame-me de Ventura, assim eu poderei pronunciar seu


nome, que eu gosto muito.

Ventura Monterosa não era só atraente e elegante, mas


divertido, e pela primeira vez na noite, Laura conseguiu relaxar e adotar
uma atitude autêntica. Possuía um afiado e frequente senso de humor, seus
comentários, embora sagazes e brincalhões, davam-lhe a certeza de que
dançava com um homem de inteligência e conhecimento da natureza
humana. Soube também que tinha estudado medicina na Universidade de
Montpellier e que, apesar de não ganhar a vida como médico, seus
conhecimentos pareciam de vital importância em suas exóticas viagens.
Atualmente, escrevia uma novela baseada em suas experiências no Reino
de Sião e nas ilhas de Sumatra e Bornéu.

- Converterá-se no novo Júlio Verne - comentou Laura,


fascinada porque aqueles lugares tão remotos, pareciam muito mais como
parte de um mundo da fantasia que do globo terrestre.

Tradução Lauren Moon


- Estive lendo as publicações de La verdad de Jimena Palmer.
Você é uma grande escritora, Laura. Admiro-a porque se anima a expor
situações que são consideradas erroneamente pecaminosas ou imorais, além
de o fazer com um estilo delicioso. Deixe-me dizer que poucos têm as
guelra para assinar, com seus próprios nomes, como você o faz. Nem
sequer a grande George Sand40, que parecia levar o mundo adiante, o fazia.

- Indiana y Létia eram meus favoritos anos atrás. Infelizmente


-acrescentou -, terminaram no fogo da cozinha, quando minhas tias
descobriram-no debaixo de minha cama.

Ventura riu expansivamente, e os casais que dançavam em


torno, incluindo Guor e Esmeralda, contemplaram-nos com curiosidade.
Laura também ria, contagiada pelo bom humor de seu companheiro.

- Embora identifique um estilo literário bem diferenciado de


Sand, suponho que ela finalmente terminou influenciando-a com sua
filosofia.

- O que vivi, Ventura, isso foi o que me influenciou.

Ventura Monterosa se propôs a conhecer em detalhe à mulher


que dançava entre seus braços, mas disse a si mesmo que esse não era o
momento nem o lugar. Primeiro ganharia sua confiança e carinho, depois
descobriria suas feridas e segredos, mais tarde, iria se apoderar de seu
coração.

- A senhorita Lynch parece radiante esta noite. É uma


jovenzinha agraciada e simpática. Não vai demorar em encontrar um
pretendente disposto a dar a vida por ela. Pois bem - pronunciou Ventura -,
vejo que meu querido amigo Blasco por fim se animou.

Blasco se aproximou de Pura e, com uma elegância que


impressionou Laura, desculpou-se com seu companheiro de turno e pediu a
próxima peça. Pura lhe concedeu um sorriso despojado de afetação e
estendeu sua mão, que Blasco pegou com a delicadeza de quem segura uma
peça de cristal. Dançaram e dançaram, e Laura e Ventura concordaram que
tanto Blasco como Pura pareciam inadvertidos que o salão estava cheio de
pessoas e que uma festa estava acontecendo em torno deles. Era Blasco
quem conduzia a conversa, enquanto Pura se limitava a ruborizar-se ou a
responder com monossílabos.

40
George Sand é o pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant, aclamada romancista e memorialista
francesa, considerada a maior escritora francesa e uma das precursoras do feminismo (N. da Tradutora).

Tradução Lauren Moon


José Camilo Lynch e Climaco Lezica se aproximaram do casal
de pombinhos, e Pura, pressionada pelo gesto eloquente de seu pai, teve
que renunciar a seu companheiro e aceitar o convite de Lezica. Blasco,
enquanto isso, retirou-se para um canto, onde se sentou em uma cadeira e
se dedicou a contemplar com desprezo ao homem que lhe havia arrebatado
o que ele evidentemente cobiçava.

- Vamos ao jardim - propôs Ventura -. Uma mudança de cena


é o mais razoável.

Laura aceitou de bom grau. O ar viciado do salão, as taças de


champanhe e o excesso de valsas a fizeram desejar um descanso. Enlaçou o
braço de Monterosa como se fosse de uma âncora. Caminharam para a
varanda que conduzia ao terraço. O contraste entre o abafado da sala e o ar
frio da noite surpreendeu Laura, apenas coberta pela delicada renda de seu
vestido, e lhe arrancou um suspiro. De imediato, Ventura tirou seu paletó e
o jogou sobre seus ombros. Desceram as escadarias e caminharam pelo
jardim para a pérgula; ali se sentaram para admirar o céu. Ventura, grande
conhecedor das constelações de ambos os hemisférios, as assinalava.

- Acredito que deveríamos retornar - indicou Laura, e ficou em


pé -. Purita perguntará por onde estou.

Monterosa a seguiu sem se opor e se atreveu a colocar a mão


na parte baixa das costas de Laura para guiá-la. Era judicioso deixar a
pérgula e a conversa sussurrada; era difícil manter-se incólume com esse
rosto tão perto. Apenas tinham alcançado a terraço, quando Laura se
estremeceu e cambaleou para trás. Ventura atinou em segurá-la e Laura
terminou ocultando o rosto em seu peito.

- O que aconteceu, Laura? O que aconteceu?

- Nada, nada. Um enjoo. Retornemos ao jardim, por favor.

Ventura examinou a escuridão do terraço, apenas iluminada


pelas luzes do salão que banhavam uma parte do pátio. Envoltos na
penumbra de um canto, conseguiu distinguir claramente Lorenzo Rosas e
Esmeralda Balbastro envolvidos em um beijo que, inclusive para ele, que
se gabava de não impressionar-se facilmente, deixou-o boquiaberto.

~0~

A resignação chegou com o amanhecer. Durante a noite,


completamente em claro, Laura repassou uma e outra vez sua vida, e

Tradução Lauren Moon


chegou à conclusão de que não continuaria desperdiçando-a por um homem
que fazia tempo tinha deixado de amá-la. Certamente, ela ainda o amava,
mas tinha perdido a habilidade de influenciá-lo. Ficava claro que Guor
nem sequer a odiava, simplesmente não a considerava; com sua
indiferença, entretanto, machucava-a profundamente; era ele, e não ela,
quem ainda contava com esse poder. Devia aceitar que o tinha perdido.

Ao meio dia, Agustín almoçou na casa de la Santísima


Trinidad e principalmente se comentou sobre o êxito da festa de Purita
Lynch. Depois do café, Laura convidou seu irmão ao jardim. Em silêncio,
percorreram os caminhos de paralelepípedos que serpenteavam entre
roseiras, dálias, pioneiras, agapantos e tantas espécies que a avó Ignacia
ainda cuidava com afã, apesar de sua idade. Sentaram-se em uma banqueta
sob o carvalho que o bisavô Abelardo havia plantado no princípio de
século.

- Encontro-lhe muito bem - comentou Agustín, e beijou a mão


de sua irmã.

- Estou sobrevivendo - admitiu ela -. Não vou mentir, não a


você que me conhece tão bem. É muito difícil tolerar a indiferença de
Nahueltruz, depois de ter significado tanto um para o outro. Porém, decidi
que não posso me agarrar ao passado, simplesmente porque não existe.
Devo continuar com minha vida.

Agustín limpou uma mecha de sua testa e acariciou sua


bochecha. Sua querida Laura sofria e, de certa forma, era por sua culpa.
Não teria conhecido Nahueltruz Guor se não tivesse sido por aquela
desatinada viagem a Rio Cuarto, por causa de sua enfermidade. A
impotência o afligiu, como acontecia frequentemente ultimamente.

- Lucero me contou que você foi ao hotel Roma para visitá-los


e lhes oferecer sua ajuda. Também mencionou o desplante que teve que
suportar por parte de Nahueltruz.

- Não voltarei a me meter em seus assuntos, Agustín. Naquela


oportunidade o fiz movida pelo amor que tenho por você, pelo amor que
sinto por você, também o fiz por tia Blanca, porque sei como ela gostava de
Lucero e Miguelito. Mas Nahuel foi claro e me ordenou que não voltasse a
me interpor em seu caminho. Contudo, gostaria que me dissesse se houver
notícias da índia Mariana e de Dorotea Bazán. Fiquei muito consternada ao
saber de seu desaparecimento.

Tradução Lauren Moon


- Entre outras coisas, estou aqui em Buenos Aires para ajudar
Nahueltruz a encontrá-las. Acredito que as localizamos. A princípio,
estariam em Tucumán, em uma fazenda onde se cultiva cana de açúcar.
Nahueltruz viajará logo ao Tafí Viejo para procurá-las.

- Deus queira que estejam ali e que estejam bem.

-O Senhor é imensamente misericordioso e terá piedade


dessas pobres anciãs.

- O que será do cacique Epumer?

- Esse assunto é mais complicado - admitiu Agustín -. Negocio


uma permissão para visitá-lo em Martín García, mas não é fácil acessar a
quem tem a autoridade para concedê-la. O senador Cambaceres grande
amigo de papai, recebeu-me ontem em seu escritório e prometeu fazer o
que estiver a seu alcance. Não perdemos as esperança de voltar a vê-lo.

Laura se despediu de seu irmão e foi para o seu quarto para se


trocar. Eduarda Mansilla chegou pontualmente as quatro, acompanhada de
Ventura Monterosa.

- Quando Eduarda comentou hoje no almoço que tomaria um


chá com você - desculpou-se Monterosa -, confesso-lhe que a tentação de
acompanhá-la foi muito grande para resistir. Sobre tudo desejava averiguar
se já se sente melhor. Ontem à noite, quando deixou a festa, estava muito
pálida.

- Bebi e dancei demais, Ventura. Um descanso reparador era


tudo o que eu necessitava. Por favor, entrem. Em minutos servirão o chá.

Embora a princípio tenha se chateado com a presença de


Monterosa, Laura terminou por aceitá-la. Devia reconhecer que, junto ao
veneziano, passava momentos muito agradáveis, ria com frequência e,
sobre tudo, esquecia. Inclusive, foi Ventura quem convenceu Eduarda
Mansilla a aceitar a proposta de voltar a publicar seus livros com a Editora
del Plata, que escrevia por esses dias também.

- Se estiver procurando talentos literários, Laura - prosseguiu


Monterosa -, poderia propor a Lorenzo publicar seu livro a respeito de
Petrarca. Não acredito que tenha comprometido os direitos com ninguém
para fazê-lo em espanhol.

Tradução Lauren Moon


- Magnífica ideia - apoiou Eduarda -. Falarei amanhã mesmo
com ele.

- Não, não - se impacientou Laura -, por favor, Eduarda, não


mencione isto com o senhor Rosas. Não queria comprometê-lo. Além
disso, duvido que esteja interessado. Com certeza choverão outras
propostas ao senhor Rosas, não devemos pressioná-lo; talvez não esteja
interessado, mas possivelmente se sinta na obrigação por causa de minha
tia Carolita.

Ventura Monterosa estudou Laura sobre a borda da xícara.


Pôs-se desnecessariamente nervosa, falava depressa para balbuciar
desculpas inverossímeis e seu tom de voz adoecia segundo a segundo,
como se fosse chorar. Monterosa se obstinou com a publicação do livro a
respeito de Petrarca, e Eduarda se espraiou nas qualidades de seu autor.

- Certamente, o êxito de Lorenzo não é só literário. As


mulheres o consideram uma comparação de cavalheirismo e gentileza, não
é verdade, Ventura? Por certo, encontram-no extremamente atraente nesse
estilo tão latino e varonil que o caracteriza. Em Paris o chamam de “le bel
américain41” e especialmente admiram seus “beaux yeux42”.

- Mais chá? - ofereceu Laura.

- É um exímio jogador de polo - insistiu Monterosa.

- Polo? - interessou-se Laura, apesar disso.

- Um esporte muito novo praticado principalmente na França e


Inglaterra. Dizem que inventaram os antigos persas, mas foram os ingleses
quem o fizeram popular. Na realidade, popular não é o termo já que, por ser
muito caro, só se pratica nas altas esferas; digamos que os ingleses têm-no
feito conhecido no mundo civilizado. Trata-se de duas equipes de quatro
jogadores que impulsionam uma bola de madeira com um maço para o alvo
contrário para marcar um ponto.

Laura não levou muito tempo associar a descrição do polo com


o que sua tia Blanca tinha plasmado em suas Memórias a respeito da
chueca, o esporte que tanto gostavam os ranqueles. Ansiava saber mais,
mas levou sua xícara de chá aos lábios para selá-los. Eduarda, ao contrário,
não tinha por que fingir desinteresse.

41
O belo americano (N. da Tradutora)
42
Olhos bonitos (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Como foi que Lorenzo terminou jogando polo?

- Anos atrás - explicou Ventura -, Lorenzo e eu


acompanhamos Armand em visita a seus amigões maçons de Londres. Uma
tarde convidaram a um country-state, como eles chamam a suas mansões
no campo, onde se desenvolvia um campeonato de polo. Um dos jogadores
caiu dos arreios e fraturou sua clavícula, e pensaram que deveriam cancelar
o evento, porque não havia quem o substituísse. Ante o assombro de todos,
Lorenzo se ofereceu como jogador. Ao tratar-se de um esporte que implica
muitos riscos (já imaginaram, quedas, golpes com o taco, com a bola de
madeira, etc.). Armand se opôs ferreamente, mas Lorenzo apostou que ele
marcaria todos os pontos e que sua equipe seria vencedora.

- E, o que aconteceu? - impacientou-se Eduarda.

- Pois bem, Armand teve que pagar uma boa soma de dinheiro
a nosso amigo Lorenzo. Os ingleses não acreditavam. Nenhum deles
jogava tão bem como este sul-americano a quem, a princípio, tinham-no
olhado com receio, se não com desprezo. Diziam que, por ser tão forte,
cavalgaria torpemente sobre o lombo do cavalo. Pois justamente o
contrário. O polo é em extremo difícil. O cavalo é virtualmente guiado com
a pressão dos joelhos, enquanto as mãos estão ocupadas com o maço, sem
mencionar o fato de que se deve galopar a altas velocidades. Além disso, a
força que se necessita para impulsionar a bola de madeira é hercúlea, por
isso os jogadores de polo desenvolvem esses braços que parecem de ferro
maciço. Lorenzo é um notável cavaleiro e um grande conhecedor de
cavalos. Ele mesmo cria aqueles que usa para jogar e, como granjeou uma
merecida fama, seus animais são cobiçados tanto na Inglaterra como na
França. Na última partida do campeonato em Deauville, no ano passado,
seis dos oito cavalos no campo de jogo pertenciam às cavalariças de
Lorenzo. É um negócio lucrativo, devo dizer.

As bochechas de Laura se coloriram indevidamente. Ao


levantar o rosto, não gostou da maneira como Ventura Monterosa a
contemplava.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XI.

Je l’adore43

Confinada na casa de La Santísima Trinidad, Laura dirigia


seus assuntos através de bilhetes e mensageiros, rechaçava os convites que
lhe chegavam e saía em poucas ocasiões, para missa ou em caso de extrema
necessidade. Recebia poucas pessoas, que a mantinham em contato com o
mundo exterior, entre eles, Eduarda Mansilla e Ventura Monterosa.
Principalmente lia e escrevia e ajudava sua avó Ignacía a cuidar do jardim.
Conhecia muito bem sua vulnerabilidade para aventurar-se novamente na
presença de Guor. Já não desejava essas olhadas displicentes, nem um
discurso como o do hotel Roma. Só com Maria Pancha se justificava e,
enquanto a criada escovava seu cabelo a cada noite, animava-se a dizer em
voz alta o que tinha dado voltas em sua cabeça durante o dia.

- Penso frequentemente na imagem da qual nunca falo. Sempre


esta aí, no mesmo silêncio. É a única imagem de mim que eu gosto, a única
em que me reconheço, a única que me causa prazer. Agora sou uma Laura
tranquila e sensata que tomou o lugar daquela jovenzinha agitada e
impulsiva que amou loucamente e que se deixou amar. O vendaval se
converteu em um entardecer de verão.

- Com os anos chega à sensatez - apontou Maria Pancha.

- Não me tornei sensata por me fazer mais velha, e você sabe.


Pior que ter perdido Nahuel, pior que o casamento com Julián, foram estes
anos de aparentar um sentimento que não existe, uma fortaleza, um
conformismo e uma alegria que tento transmitir, quando em realidade a dor
me escraviza. Possivelmente o faço por orgulho, eu não gosto que saibam
que tenho problemas. Alguém me disse uma vez que a dor, se não nos
matar, ajuda a nos temperar, a nos converter em pessoas mais fortes. É
certo, mas também varre com nossa sensibilidade e nos transforma em
seres inertes. Estou exausta de mostrar uma realidade que não existe. Vivo
mentindo. A frase de Shakespeare “Que bom é estar triste e não dizer coisa
nenhuma!”, já não me parece tão sábia. Eu quero gritar minha dor aos
quatro ventos.

- Os assuntos que ficam sem resolver sempre nos atormentam,


como almas penadas, que não aceitam sua tumba para o descanso final.

43
Eu a adoro (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Deveria enfrentar o índio e lhe dizer que o que fez, assim o fez para salvá-
lo.

- Os fatos são mais contundentes que as palavras - replicou


Laura -. Casei-me com o Julián e o abandonei. Isso é o que conta.

- Néscia! - chateou-se Maria Pancha -. Por acaso esqueceu que


seu marido a ameaçou? Não lembra que jurou que o denunciaria aos
militares se não aceitasse se casar com ele? Devo lembrá-la disso Laura?

- Sucumbi fácil e rapidamente a suas extorsões - se reprovou -


. Deveria ter procurado outra saída. Mas nunca, nunca deveria ter
abandonado Nahueltruz. Quando o deixei ir, perdi minha única
possibilidade de ser feliz.

~0~

Em meados de maio, Magdalena contou a Laura que Nazario


Pereda tinha-lhe pedido em casamento e que ela tinha aceitado. Iam se
casar em agosto e, depois da lua de mel no Rio de Janeiro, iriam se instalar
em casa de Nazario. Laura foi presa pelo pânico. Durante esses dias de
reclusão, as poucas pessoas com quem conversava constituíam os pilares de
sua vida. Magdalena, com sua silenciosa mansidão, tinha se aproximado de
Laura, guiada pelo instinto de mãe que lhe indicava que sua filha
atravessava um mau momento e, apesar de saber que Laura não lhe abriria
o coração, era suficiente saber que sua companhia e conversa fiada eram
um consolo para ela.

- Por que viver no Nazario quando nesta casa sobram quartos?


- teimou -. De maneira alguma. Nazario e você viverão aqui, comigo.
Reformaremos seu quarto, ampliaremos o quarto de banho, compraremos
móveis novos, o que seja necessário, mas não sairá daqui. Não me deixará,
mamãe, não poderei suportá-lo.

- Filha, como pode dizer que vou deixá-la, quando Nazario


está a três quadras daqui? Além disso, logo se casará e também irá, seguirá
seu caminho e vai me deixar para trás, como deve ser. Eu adiei muito
tempo minha vida, Laura. Não vai permitir que eu aproveite esta
oportunidade?

Laura não se reconciliou facilmente com a ideia de sua mãe


deixar La Santísima Trinidad, sempre tinha imaginado que, depois do
casamento com Nazario Pereda, Magdalena continuaria vivendo ali.
Tornou-se fria, quase mal educada com seu futuro padrasto, que suportava

Tradução Lauren Moon


com benevolência seus desplantes de menina. Foram necessárias muitas
noites de doutrinação por parte de Maria Pancha, para que Laura aceitasse a
ideia de que sua mãe tinha direito de ser feliz.

- Sempre perco aos que amo - se lamentou -. Jure-me, Maria


Pancha, que você nunca me deixará. O que faria se não tivesse você? -
perguntou-se, obstinada à cintura de sua criada.

- Terá que me suportar por muitos anos. Dizem que os


hotentotes são idosos por natureza.

- Bendito seja o sangue hotentota!

Só quando Agustín lhe contou que Nahueltruz e ele partiriam


para o Tafí Viejo, Laura cedeu aos rogos de sua avó e permitiu que
convidasse sua tia Carolita e seu feixe de aristocratas europeus para jantar.
Por nada se submeteria à humilhação de uma negativa por parte de Guor.
Para sua surpresa, Blasco Tejada aceitou, motivado pelo desejo de
encontrar-se com Pura Lynch, que por sua vez contemplava o jovem
Blasco com aprovação. Depois do jantar, enquanto bebiam conhaque na
sala, Laura se aproximou do moço e sorriu para ele.

- Apesar de já ser todo um homem, um verdadeiro cavalheiro -


remarcou -, eu teria reconhecido você em qualquer parte e circunstância, de
tantas lembranças dos nossos dias em Rio Cuarto. Aposto que, debaixo
dessa sobrecasaca tão elegante, ainda leva o amuleto de dentes de puma e
tigre.

A pele morena de Blasco se tornou carmesim. Com os anos se


tornou tímido e irritável; a proximidade da senhorita Laura, como ele
continuava chamando-a em seus pensamentos, e esse calor que transmitiam
seu sorriso e suas palavras, o deixaram mudo, em parte envergonhado pelo
bom trato da senhorita, quando ele havia sido tão descortês.

- Não, não o levo - balbuciou, e soou mais cortante do que


teria querido -. Faz anos que tirei isso. Já não acredito nessas coisas.

Laura se decepcionou; ela jamais se separava do seu. Mediu o


decote de seu vestido e apalpou a dureza da prata alemã contra a seda.

- Está cômodo na casa de minha tia Carolita?

- Madame Beaumont é muito generosa e encantadora, e nos


atendeu como se fôssemos reis, enquanto nos hospedamos em sua casa.

Tradução Lauren Moon


- Aonde se hospeda agora? - estranhou Laura.

- O senhor Rosas alugou uma casa na Rua de Cuyo, quase na


esquina com a de Las Artes.

- Muito conveniente já que fica perto dos Lynch. Não é ali


onde minhas sobrinhas se reunem para suas aulas de francês?

- Sim - respondeu Blasco - duas vezes por semana.

- Como estão Miguelito e Lucero?

- Muito bem, senhora. Já se instalaram na quinta de Caballito.

Não continuaria perguntando. Ainda que pela primeira vez


desde seu reencontro, Blasco Tejeda se mostrasse disposto, não permitiria
que Guor pensasse que ela tentava persuadi-lo para saber a respeito dele,
mesmo que morresse por saber quando retornaria de Tafí Viejo e que
diabos era isso da quinta de Caballito.

Ao ver Blasco com sua tia Laura, Pura se atreveu a aproximar-


se. Durante a refeição tinha-o admirado de um extremo da mesa, enquanto
observava os esforços do jovem professor para continuar a conversa de
dona Luisa del Solar e não encontrá-la com seu olhar. Mais tarde, no salão,
quando os homens se afastaram para fumar e beber e as mulheres para
bordar ou jogar às cartas, Pura acreditou ter perdido a oportunidade de
abordá-lo. Meia hora depois, sua tia Laura a brindou de bandeja quando,
espontaneamente, procurou a companhia do moço.

Pura tinha que se aproximar e entregar a carta que tinha escrito


para ele. Não se tratava de um impulso ousado, mas sim da resposta à nota
que essa tarde, enquanto liam um capítulo de Les Miserables com as
cabeças muito próximas, Blasco tinha deslizado na palma de sua mão por
baixo da mesa. Pura aguardou que terminasse a aula e que suas primas e o
professor se retirassem para encerrar-se em seu quarto para lê-la. Abriu o
papel e só encontrou uma linha “Je l’adore”. A nota de Pura, embora mais
extensa, era igualmente inflamada.

Pura se deteve junto a Blasco e perguntou a Laura sobre o


novo óleo de Turner pendurado atrás deles, uma flamejante aquisição
realizada na casa de arremates Christie’s em Londres, pelo agente de
Laura, lorde Edward Leighton. Concentraram-se no quadro e, enquanto
Laura destacava os aspectos da paisagem inglesa, Pura introduziu a nota no
bolso da sobrecasaca de Blasco. Laura notou o intercâmbio, mas, sem

Tradução Lauren Moon


variar o tom de voz, prosseguiu com sua exposição a respeito dos efeitos da
luz e da perspectiva na pintura. Minutos depois, como era evidente que
ninguém se interessava por Turner e sua destreza para pintar paisagens,
Laura se desculpou e os deixou sozinhos.

As notas amorosas em francês continuaram, e também as


declarações com duplo sentido, as leituras de livros românticos, olhares de
soslaio e as mais atrevidas e diretas. Logo, Eulalia, Doura e Genara,
também alunas do professor Tejeta, converteram-se em cúmplices e, com
estratégicas localizações, encarregavam-se de ocultar o casal dos óculos da
avó Celina, que sempre bordava durante as aulas, um olho no trabalho,
outro sobre suas netas. Celina, entretanto, precaveu-se de que na mesa de
estudo se escutavam com maior frequência suspiros, sorrisinhos estúpidos e
palavras sussurradas, e que, quando levantava a vista, topava-se com
bochechas ruborizadas, olhos faiscantes, lábios úmidos e mãos trêmulas.
Alguns pigarros nervosos e certos comentários, mas bem explícitos por
parte da senhora Celina deram a voz de alerta a Blasco, que não desejava
perder a graça dos Lynch. Imediatamente cortou com a fluida
correspondência, olhares intencionados e as frases com duplo sentido para
voltar a ser um circunspeto e exigente professor de francês. Pura,
convencida de que seu amado Blasco tinha deixado de querê-la, confessou
a sua prima Genara que isso de “morrer de amor” era possível.

Mario Javier, tendo piedade do estado lastimável de seu amigo


Blasco, comentou que a mulata coxa que vendia geleias na saída de missa
em San Ignacio e que espantava as moscas com um espanador, também
trabalhava de mensageiro sentimental. Blasco, que desde seus dias no
colégio jesuíta de Fontainebleau não ia à missa, apresentou-se no domingo
seguinte na igreja, quando as beatas ainda diziam o rosário e ficou na porta
para ver entrar a família de José Camilo Lynch. Eulalia e Doura tinham-lhe
assegurado que seus tios frequentavam a missa das dez. Previamente, havia
persuadido com várias moedas Ña Micaela, a mulata coxa que vendia
geleias.

- E, me diga, senhorzinho Blasco, qual é a empregada a quem


tenho que entregar o bilhetinho?

- Seu nome é Pura Lynch. Eu a assinalarei à saída de missa.

- Nem faz falta, senhorzinho! Conheço-a bem, a mais velha de


Eugenia Victoria Montes, que eu as conheço todas. Já pode imaginar que
faz anos que estou aqui vendendo minhas delícias.

Tradução Lauren Moon


- E não se esqueça de envolver duas geleias de coco com o
bilhete - insistiu Blasco. Genara assegurava que eram a perdição de sua
prima.

Para Blasco, os únicos que participavam da missa nessa manhã


eram os Lynch, quão única contava, Purita, formosa em seu vestido de
renda amarela e mantilha de renda branco. Suas mãos enluvadas, que
sustentavam um breviário de capas nacaradas tremiam e, embora a
mantilha ocultasse seu rosto, Blasco não tinha dificuldades em imaginar o
movimento nervoso de seus lábios e o bailado de seus cílios.

Apenas de olhá-lo uma vez, Pura soube que Blasco ainda a


amava. Primeiro a surpresa de encontrá-lo na porta de San Ignacio a fez
tropeçar, mas uma mão rápida de seu pai a sustentou. Mais tarde, ao sentir
os olhos de Blasco sobre a nuca, não ficou dúvida de que ele estava ali por
ela. Blasco não teria sabido se o sacerdote dava o sermão ou rezava o Pai
Nosso; todos seus sentidos se dedicavam a olhar, cheirar, perceber,
saborear essa criatura perfeita a escassos metros de seu banco. Por fim o
sacerdote pronunciou as ansiadas palavras “Ite, missa est44” e a paróquia
começou a dispersar-se. Blasco escapuliu para o átrio, cruzou a Rua do
Potosí e ficou de pé, embaixo de uma árvore de limão em frente à banca de
Ña Micaela, que o olhou de soslaio, enquanto anunciava e sacudia o
espanador sobre a mercadoria.

Pura saiu do templo junto com sua família e, embora saudasse


parentes e amigos, o cenho franzido por causa do persistente sol e seus
contínuos movimentos de cabeça deram sinal a Blasco de que o procurava
com afã. Ña Micaela vendia sua geleias sem prestar atenção nos
movimentos da moça, tanto que Blasco pensou que não a chamaria. No seu
devido tempo, Pura passou perto da banca e a mulata saudou-a
cordialmente.

- Não vou comprar nada hoje, Ña Micaela - se desculpou Pura.

- Se não quero que me compre naa, menina Tenho algo


pra’ocê, algo que um cavalheiro me há confiado pra’que lhe dê isso.

Pura se aproximou da banca, aferrou o pequeno pacote e deu


as costas à multidão antes de abrir duas geleias de coco, suas preferidas, e
uma nota em francês. Lágrimas assaltaram seu- olhos e sentiu desejos de
pronunciar o nome de seu amado.

44
Em latim: "Ide, [esta] é [a] dispensa", ou seja, "Vão, estão dispensados" (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


—Ali está a moço, que te vai gastar de tanto te olhar.

Pura levou uma geleia aos lábios e a mordeu sensualmente,


fechou os olhos e fez uma careta de prazer, quando o doce se diluiu em sua
boca. Blasco seguia os movimentos e gestos de Pura com cara de tolo e a
boca cheia d’água.

As missas de dez em San Ignacio aconteceram sem


interrupção, igual às duas geleias de coco e as notas em francês. Cada
domingo, Blasco se submetia ao mesmo suplício, contemplar à distância
sua adorada Pura, enquanto ela saboreava o doce. De noite, estava
acostumado a ter sonhos eróticos e acordar com o sexo intumescido.
Durante as aulas de francês, vestia seu disfarce de respeitável professor, e
já não eram necessários os pigarros nervosos, nem as frases intencionadas
por parte da avó Celina. As alunas e o professor se comportavam com
decoro indiscutível. Não obstante, quando a doméstica trazia a bandeja com
o serviço de chá, Pura deslizava, clandestinamente, no prato com massas a
geleia de coco, que não tinha comido na saída de missa, e tanto Eulalia
como Doura e Genara sabiam que não podiam tocá-la. Essa era de Blasco.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XII.

Um Rubicão em Terra Adentro

O general Roca, como de costume, levantou-se com a alvorada


e matou seu tempo estudando mapas e escrevendo informes e telegramas.
No meio da amanhã, recebeu o cronista do jornal La Pampa, Remigio
Lupo, para acertar a informação que enviaria a Buenos Aires. Não era fácil
encher as colunas, quando a divisão sob seu comando fazia dias que estava
encalhada nas margens do Colorado. Não acontecia nada de interesse. Os
problemas urgentes não tinham a ver com índios e incursões, mas com a
escassez de mantimentos, o frio e as pestes, varíola e disenteria,
especialmente. O primeiro se devia ao fato de que o capitão Guerrico não
tinha sido capaz de rastrear o Rio Negro, como consequência de uma baixa
e, por conseguinte, sortir as tropas com cavalos e vacas. Comiam o que
caçavam, tatus, veados, avestruzes, lebres e toda classe de aves pequenas,
que os índios amigos, unidos às tropas os ensinavam para reconhecer.

Roca passeou seu olhar sobre o acampamento e admirou a


paisagem, um pouco agreste. O acampamento era um quadro pitoresco, em
especial pelas mulheres e meninos que seguiam a tropa arrastando toda
classe de equipamento e animais. A resistência e fidelidade dessas
mulheres eram admiráveis. Roca já tinha ficado surpreso durante seus anos
no Fuerte Sarmiento, onde as conhecia como cuarteleras. “Algumas são
mais decididas e valentes que muitos dos soldados”, pensou, enquanto via
Delia se aproximar, uma que o venerava, porque Roca tinha conseguido
para seu filho mais velho uma ascensão no quadro de suboficiais.

- Cata e a Pituca estão generosas hoje, meu general - expressou


Delia, referindo-se a suas galinhas -. Aqui trago três ovos pra’que lhe
façam um gúen regúelto45.

Depois de tantos dias comendo mal, a ideia de um ‘mexido’


parecia o mais próximo de uma comida em Versalles. Mas Roca estava
convencido de que o bom exemplo à tropa era essencial para manter a
autoridade, se seus chineses sofriam, ele também.

45
Tipo de gemas mexidas, mas que acrescenta presunto, cebola, carne. Não é omelete, porque mistura como se fosse ovo mexido
(N. da Tradutora).

Tradução Lauren Moon


- Mil obrigados, dona Delia, mas acredito que seria melhor que
você preparasse um ‘mexido’ para os meninos. Eles são os que devem estar
bem alimentados.

- Já tenho p´os guris, meu general.

- Então - insistiu Roca -, leve esses ovos à tenda dos doentes.


Possivelmente alguém em convalescença necessite para recuperar-se logo e
continuar servindo à Pátria. Eu vou apreciá-lo mais desse modo.

- Como ocê mande, meu general - disse a mulher, e rumou


para onde ele havia indicado

Roca voltou para a caleche e deixou-se cair no estofado. Todo


o bom humor com o que tinha deixado Carhué, duas semanas atrás se
dissipava rapidamente por culpa dessa demora imprevista à beira do
Colorado, que ameaçava dar por terra seu plano de alcançar a ilha Choele-
Choel no dia da Pátria, em 25 de maio. Também ameaçava desanimar a
tropa que, inativa, passava o dia fazendo ceva, segundo a expressão de
Gramajo. A demora alterava, além disso, sua paz interior, porque, com
tempo de sobra, dedicava-se a pensar em Laura Escalante. De noite vinham
suas urgências. Poderia ter mandado procurar alguma china do
acampamento, mas de novo o exemplo e a autoridade moral prevaleciam e
ficava com a vontade.

Estava acostumado a apelar para lembrança de sua esposa e de


seus filhos, em especial de Maria Marcela, que tinha roubado seu coração.
Recriava imagens de sua vida doméstica e de certa forma conseguia
serenar-se. Vinha-lhe à mente o rosto de Clara, com sua beleza serena e
delicada e sua elegância aristocrática. Clara era bonita em sua maternidade
e em seu papel de dona-de-casa, que desempenhava como nenhuma. Laura
Escalante, ao contrário, envolta na exuberante feminilidade que praticava,
encarnava uma tentação a qual não desejava resistir. Junto dela, sentia-se
de novo jovem, impetuoso e arrojado; em uma palavra, junto dela se sentia
vivo. Laura possuía a virtude de Leteo46, e, quando em seus braços os
problemas se desvaneciam, Clara, os meninos e a casa eram parte das
responsabilidades que o curvavam.

Sacudiu a cabeça. Chateava-se pensar tanto em Laura


Escalante, estava-lhe dando muita importância quando, na realidade, uma
mulher como ela constituía um tipo de conquista que começava e terminava
na cama; o resto do tempo, um homem a sério se ocupava dos assuntos

46
Na mitologia grega, Lete ou Leteo é um rio de Hades. Beber suas águas provoca um esquecimento completo (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


importantes, do contrário abrandavam-se as moelas, como também dizia
Gramajo.

Abandonou a caleche impulsionada por um novo brio,


estimulado pelo convencimento de que não continuaria aguardando. Deu
ordens a torto e a direito, e o acampamento começou a se mover com o
frenesi de um vespeiro. O sargento Bernardo Jaime foi enviado ao forte
Mercedes para levar o gado e, dois dias mais tarde, em 14 de maio,
recomeçou a avançada. O primeiro obstáculo foi o Colorado, e não foi
tarefa fácil atravessá-lo; foi necessário romper o barranco à força de pá e
picareta para cruzar a equipamentos e bagagem.

Superado o Colorado, a avançada prosseguiu sem sérios


contratempos, exceto o desagradável regime de carne de égua, o frio e as
pestes, que não abrandavam. Nesta última etapa, Roca preferia os arreios e
só retornava à caleche quando detinham a marcha para o descanso noturno.
Durante o dia, dedicava-se a simpatizar com essa terra regada por tanto
sangue índio e cristão. Embora a expedição não estivesse terminada, já a
considerava território da República.

Fotheringham, grande amigo de Roca, sua mão direita no


comando das tropas, encarregado por um esquadrão de reconhecimento,
enviou-lhe um mensageiro com um bilhete, onde lhe assegurava que já
tinha chegado ao rio Negro, e que havia se encontrado com o capitão
Guerrico, com o sargento Jaime e sua provisão de éguas e cavalos. Só
faltava ele. Assinalava o melhor caminho a seguir, que, segundo sua
experiência, percorreria em cinco dias.

A marcha forçada moveu a coluna sob o comando do general


Roca, que ia firme em sua montaria, com uma excitação que aumentava à
medida que percorria o caminho e seus planos seguiam de vento em popa.

Na tarde de 24 de maio, com um céu azul magnífico apenas


silenciado por nuvens brancas, Roca avistou o rio Negro, seu Rubicão,
como muitos de seus caluniadores burlaram-se. “Claro que este é meu
Rubicão”, disse-se, e sorriu, um sorriso largo e sincero que poucos
conheciam.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XIII.

La gente de los carrizos47

O confinamento e o silêncio aos quais Laura se submeteu,


favoravelmente, atuaram em sua mente. Resignou-se que deveria viver sem
Nahueltruz Guor e a aceitar sua indiferença. Repassar os penosos eventos
dos últimos dias em Rio Cuarto ou imaginar que deveria ter agido desta ou
daquela maneira, só converteriam o martírio em um estado permanente,
que terminaria com sua prudência. Ela queria continuar vivendo. O passado
estava tão morto como Riglos, e, embora de boa vontade tivesse feito o que
Guor lhe ordenasse para ganhar seu carinho e consideração, Laura se
repetia que já não pensaria nessa possibilidade. Havia-o perdido e começou
a aceitar esta perda.

As circunstâncias da vida foram moldando-a como a qualquer


um, ela não escapou à regra geral. Suas escritas e atividades de caridade a
satisfaziam, enquanto o carinho de sua família e amigos enchia o vazio
deixado por Nahueltruz. A publicação do capítulo final de La verdad de
Jimena Palmer tinha significado um relevante aumento na tiragem de La
Aurora; Mario Javier assegurava que, pela primeira vez desde a abertura da
editora, obteriam lucros. Além disso, a promessa do novo folhetim de
Laura Escalante, La gente de los carrizos, atraía novos assinantes. Eduarda
e Ventura pareciam os mais impacientes.

- Quando publicará o primeiro capítulo de La gente de los


carrizos, querida? - perguntou Eduarda enquanto tomavam o chá.

- Não seja impaciente, Eduarda - Ventura a repreendeu -. Do


que trata a obra, Laura? Vai nos manter nesta angústia sem nos adiantar
nenhuma palavra? O título é do mais sugestivo.

Laura riu, contente de que seus novos amigos compartilhassem


essa tarde com ela. Esse não tinha sido um bom dia. Agustín, recém-
chegado de Tafí Viejo, havia lhe trazido só más notícias. Sim, tinham
encontrado o paradeiro de Mariana; Dorotea Bazán, porém, tinha
sucumbido à longa viagem e falecido ao chegar à fazenda.

- Como está Lucero? - interessou-se Laura.

47
As pessoas dos juncos - em araucano são os ranquels (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Verá, Laura - falou Agustín -, estas pessoas têm um sentido
de fatalismo e de resignação que são admiráveis. Vivem sempre no limite,
como se continuamente aguardassem o pior e, quando o pior chega,
aceitam-no com invejável renúncia. Não direi que Lucero esteja de ânimo
bom, mas tampouco posso dizer que se sinta quebrada. É Nahueltruz quem
mais tem a alma pelo chão. Já sabe, culpa-se. Insiste na questão do
abandono, na traição, e não tem paz.

Para Laura, o sofrimento de Nahueltruz era uma emoção difícil


de suportar, principalmente quando, aos olhos dele, ela era a culpada de sua
insônia, quem o havia empurrado à traição.

- Como está á índia Mariana?

- Muito envelhecida e encurvada, mas bem, graças a Deus.


Embora já esteja instalada na casa de Nahueltruz, diz que não gosta disso
de abrir e fechar portas.

Riram, e Agustín aproveitou para anunciar sua volta a Rio


Cuarto em poucos dias. Laura, que se tinha acostumado a não contar com
seu irmão, salvo em breves momentos, aceitou a notícia melhor do que
Agustín tivesse esperado. Agora que observava, sua irmã parecia
indiferente, não tinha embargado a voz cada vez que mencionou
Nahueltruz e não perguntou por ele, sequer uma vez; usava um tom
comedido, por vezes quase inaudível, movia as mãos com lentidão, como
se tivesse perdido a força, quando, na realidade, estava acostumada às usar
ativamente para acompanhar suas palavras. Sobreveio um silêncio, e
Agustín a observou atentamente. Ali reclinada em sua poltrona, envolta na
brancura de seu vestido, os olhos entrecerrados e os lábios relaxados,
Agustín teve a impressão de que sua irmã havia se cansado de viver.

- Durante esta viagem, tive muito tempo com Nahueltruz para


falar a respeito do que aconteceu em Rio Cuarto - expressou
atropeladamente, quase sem medir o que dizia, movido pelo desejo de
sacudir sua irmã desse letárgico comportamento.

- Já não falarei sobre isso, Agustín. Ao contrário - disse Laura


-, me conte do senador Cambaceres.

- O senador Cambaceres? —repetiu Agustín, abertamente


confundido.

- Sim, o amigo de papai que os ajudaria a obter a permissão


para visitar o cacique Epumer, na ilha Martín García. Conseguiram-na?

Tradução Lauren Moon


Agora que a índia Mariana está em Buenos Aires vai querer saber de seu
filho.

- Ah, sim, sim, o senador - replicou o franciscano, ainda


surpreso pela acidez de sua irmã -. Não, não voltamos a saber dele.
Nahueltruz irá vê-lo amanhã, suponho. Tivemos boa relação com ele. Sei
que o senador nos ajudará - Agustín se inclinou para trás no sofá e
pigarreou -. Laura, você mudou tanto desde a última vez que lhe vi. O que
aconteceu? É sempre sobre Nahueltruz, não é verdade? Diga-me se algo
novo aconteceu. Falemos, Laura, sempre escuto você.

- Não era seu desejo que eu deixasse o passado para trás, que
me tranquilizasse? Pois bem, estou mais tranquila e mais resignada. Não
falemos de tudo aquilo, estou tão cansada. Prefiro contar que comecei a
escrever o novo folhetim, o que se apoiará na vida de sua mãe. La gente de
los carrizos, assim decidi titulá-lo. Gostou? Aprova-o, irmão? Trocarei os
nomes e algumas situações para não comprometer ninguém, mas respeitarei
a essência da história, a qual sua mãe tão bem narrou em suas Memórias.
Farei isso para ajudar aos ranqueles, para que as pessoas saibam que eles
também são gente.

Agustín não tentou voltar ao assunto do passado, além do que


sabia que Laura, assim como Nahueltruz, não o enfrentava, só jogava um
manto de silêncio e de fingida indiferença. Deixou o sofá. Laura lhe
estendeu a mão e Agustín a beijou suavemente.

- Prometa-me que fará as pazes com o padre Donatti - pediu


Laura -. Não suporto outra carga a mais, Agustín. Não me deixe com outro
peso a mais sobre minha consciência tão aflita. Sou a culpada da
infelicidade de tanta gente, não permita que seja também da do padre
Donatti, que adora você como se fosse seu filho. Ele não é responsável pelo
que ocorreu seis anos atrás. Ele não é, não é.

- Prometo - assegurou Agustín em voz baixa, compelido pela


debilidade de Laura -. Prometo isso a você, mas não chore, por favor.

- Não chorarei. Já não vou chorar.

Depois da visita de seu irmão, Laura retornou a seus escritos.


Apesar da partida de Agustín e da notícia da morte de Dorotea Bazán, não
perdeu a calma. Às vezes, quando ficava nostálgica, deixava vagar a vista
pelas roseiras que a avó Ignacia tinha plantado sob sua janela. Ainda
existiam coisas formosas no mundo.

Tradução Lauren Moon


As quatro, Maria Pancha lembrou-lhe que o senhor Monterosa
e a senhora Eduarda García chegariam à hora do chá e se preparou com
bastante entusiasmo.

~0~

No fim de maio, o aniversário de Eugenia Victoria foi o


primeiro evento social que Laura assistiu depois de semanas de
confinamento. Simplesmente era impossível dizer não a Eugenia Victoria.
Chegou à mansão dos Lynch acompanhada de seus avós; sua mãe e suas
tias tinham ido mais cedo, no carro do prometido de Magdalena, Nazario
Pereda. Do vestíbulo, Laura recebeu o estrondo das gargalhadas de
Sarmiento.

Eugenia Victoria saiu para recebê-la e entrelaçou seu braço ao


da Laura. Em atitude confidente, disse-lhe:

- Temia que não viesse. Passou tanto tempo desde a última vez
que me visitou. Você sabe, eu sou escrava desta casa e de meus filhos, em
especial de Benjamincito, e não encontrava tempo para ir a La Santísima
Trinidad. De qualquer maneira, não a vimos tampouco nas reuniões de
dona Joaquina, e me surpreendeu quando Cristian Demaría disse que não
participaria de sua festa de compromisso com Eufemia Schedden. O que
houve? Nada com sua saúde, espero.

- Nada com minha saúde - assegurou Laura -. Simplesmente


sem ânimo para me socializar. Conte-me sobre você, como tem passado?
Eu não tenho nenhuma desculpa por tê-la negligenciado todas essas
semanas, apesar de seus problemas. O que aconteceu os Carracci48, que
costumavam estar aqui? - estranhou Laura, ao ver as marca sobre o estuque
da parede.

Eugenia Victoria deteve seu olhar no lugar onde, por décadas,


haviam-se exibido os famosos quadros dos irmãos Carracci. Seus olhos
encheram de lágrimas. Laura passou um braço sobre seus ombros e tentou
reanimá-la. Eugenia Victoria desafogou a angústia que tinha calado desde
que o avaliador levou os quadros e outras obras de arte para arrematá-las.
As dívidas de jogo de seu sogro pareciam não ter fim.

- OH, se Julián vivesse! - exclamou Eugenia Victoria -. Ele


poderia nos ajudar, não confiaria a mais ninguém que não fosse ele. Agora

48
Pintores italianos, Agostine Carracci, Annibale Carracci e Lodovico Carracci fundaram a Accademia degli Incamminati, que levou
mais tarde à Escola de Bolonha (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


devemos nos colocar nas mãos de um advogado que não é amigo da
família.

- Para quê um advogado?

- José Camilo decidiu tirar os direitos sobre as propriedades e


demais bens a seu pai. Será muito duro para dom Justo Máximo e um
escândalo que a família deverá suportar, mas, Laura, se não o fizermos em
poucos meses teremos que viver de caridade.

- Podem fazer isso? Refiro-me, despojá-lo em vida de seus


direitos sobre os bens.

- O doutor Quesada assegura que existe um instituto no


Código Civil que fala do esbanjador, aquele que dilapida sua fortuna. Os
parentes têm direito, para preservar o patrimônio familiar, de solicitar à
Justiça que revogue os direitos de uma pessoa considerada pródiga.

Laura ponderou as palavras de sua prima. Os Lynch, uma das


famílias de maior linhagem de Buenos Aires, contavam com uma imensa
fortuna. Entretanto, alguns desacertos no manejo das estâncias, somados ao
vício de dom Justo Máximo, tinham deixado claro que não existia
patrimônio invulnerável. Deslizou um envelope entre as mãos da Eugenia
Victoria, que o abriu com estranheza.

- Não posso aceitar - disse, e lhe devolveu o dinheiro.

- Comigo não interprete o papel de ofendida. Esse papel


corresponde a seu marido, que, como bom homem, é orgulhoso e machista.
Pergunto-me, como custeará os gastos desta celebração? É muito querida
entre nossos amigos e parece que toda Buenos Aires estará presente esta
noite.

Eugenia Victoria não articulou uma palavra. Contemplou


longamente sua prima e apertou sua mão. Laura lhe sorriu com ar triste, e
Eugenia Victoria sentiu que a gratidão e o carinho se misturavam com a
pena que Laura sempre lhe inspirava. Caminharam em direção ao salão.

- Sabe? - retomou Eugenia Victoria -. Climaco Lezica foi


muito generoso. Ofereceu nos ajudar. Propôs a José Camilo um negócio
que poderia ser muito rentável. Trata-se da criação de cavalos.

Ao aproximar-se de Purita, Eugenia Victoria deteve


abruptamente o comentário. Laura notou sua sobrinha especialmente

Tradução Lauren Moon


graciosa e intuiu que, além de o vestido de brocado lilás e amarelo
assentar-lhe muito bem, sua beleza tinha a ver com um o estado de bom
humor. Laura a pegou pelo braço e entraram no salão principal.

- Como vão suas aulas de francês? - interessou-se.

- Ah, trés bien, tante. Merci de demander. J'ai envié de parler


49
avec toi!

- Vejo que sua pronúncia melhorou consideravelmente. A


influência do senhor Tejada é indiscutível.

- Oh, mais oui, tante!50 Quando o senhor Tejeda se dirige em


francês é como se recitasse os versos de um poema de amor, tão doce e
perfeito é seu modo de falá-lo.

Blasco Tejeda cruzou-lhes o caminho e saudou com marcada


simpatia.

- Boa noite, senhor Tejeda. Espero que esteja bem.

- Muito bem, senhora Riglos.

- Felicito-o. É notória a melhora na pronúncia de minha


sobrinha Pura. Logo averiguarei se Eulalia, Doura e Genara foram tão
aplicadas em suas aulas.

- Nenhuma como a senhorita Pura - respondeu Blasco com


uma veemência que imediatamente lamentou -. As senhoritas Eulalia,
Doura e Genara são excelentes alunas também. As quatro são.

Laura se desculpou e os deixou sozinhos, e percebeu que os


jovens escapuliam para biblioteca. Ela, por sua vez, entrou no salão e
começou a saudar os convidados, que reclamavam sua ausência de tantas
semanas. Surpreendeu-se ao encontrar Clara Funes, que conversava com
suas primas Iluminada e María del Pilar. Laura a saudou com simpatia e
perguntou por seus meninos, mas Clara lhe respondeu com embaraço, nada
restava da maternal e doce Clara, que a tinha convidado a compartilhar sua
mesa na chocolataria do Godet. Sem dúvida, as fofocas a respeito de seu
romance com Roca teriam chegado a seus ouvidos. Iluminada e María do
Pilar também pareciam incomodadas.

49
Ah, muito bem, tia. Obrigada por perguntar. Eu invejava falar com você (N. da Tradutora)
50
Oh, mas claro, tia! (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Alguma notícia do general? - perguntou Laura.

- Só as que publica La Tribuna - replicou Clara.

- Espero que sua campanha termine com êxito.

Clara se limitou a assentir com ar altivo, esse que Laura


identificava como modos de cordoveses. Afastou-se com o ânimo aflito,
mas o doutor Eduardo Wilde, que participava de uma polêmica a respeito
da educação em massa, ao convidá-la a dar sua opinião, ajudou-a a deixar
para trás o desplante.

- Não se pode pensar no voto universal sem uma educação


prévia das massas - opinou dom Carlos Tejedor, o governador de Buenos
Aires.

- Esse conceito da universalidade do voto - remarcou Wilde


com sarcasmo - é simplesmente o triunfo da ignorância universal.

Domingo Sarmiento lançou uma gargalhada e, aplaudindo


Wilde nas costas, reprovou seu exacerbado elitismo. Armand Beaumont,
que se unia ao grupo seguido por seu cunhado e por seu amigo Lorenzo
Rosas, quis saber do que falavam.

- Discorremos a respeito das benesses e os males da educação


universal, quer dizer, da educação estendida às massas - explicou
Estalisnao Zeballos -. Entre as benesses - prosseguiu -, estamos de acordo
que conviver com pessoas educadas é imensamente superior a fazê-lo com
desmedidos. Pelo lado dos males, como remarcou inteligentemente o
doutor Wilde, poderiam contá-las derivações políticas pouco favoráveis.

- Em que sentido? - interessou-se Ventura Monterosa.

- Pois bem - vacilou Zeballos -, seria uma oportunidade para


que setores das baixas esferas acessassem a posições que hoje só ocupam
as pessoas decentes.

- Então - particularizou Laura -, tenho que interpretar que a


conveniência ou não de uma educação extensiva às massas se discute ou se
decide a partir do risco mais ou menos iminente da perda de poder sobre o
manejo da coisa pública.

Maldito o instante, resmungou Zeballos, em que Wilde a tinha


convidado a formar parte da polêmica quando, na realidade, o lugar da

Tradução Lauren Moon


viúva de Riglos deveria ter sido algum grupinho feminino, onde se
discutisse a melhor maneira de fazer o ponto cruz ou de cozinhar o doce de
leite.

- Querida Laura, não é tão assim - contemporizou Eduardo


Wilde, agarrando sua mão.

Laura se incomodou com o tom condescendente, que teria


empregado com uma menina mimada.

- A história mostra - manifestou Armand Beaumont - que


quando estes setores inferiores acessam a postos superiores, o fazem com
uma carga de ressentimento e violência que termina por escurecer qualquer
objetivo nobre que tivessem esboçado.

- O ressentimento e a violência não se engendram nos setores


inferiores simplesmente por que sejam estes inferiores - retrucou Laura -.
Ninguém se ressente se for tratado com justiça e equidade.

- Os esforços da senhora Riglos para que a educação se


estenda às classes mais baixas são bem conhecidos por todos, em especial
por mim - interveio o doutor Avellaneda -. Diminuir os níveis de
analfabetismo é um desejo para ela.

- Uma utopia, se o senhor presidente me permite - falou


Nahueltruz, e surpreendeu os outros, pois, até o momento, parecia apático.

Laura, que se tinha proposto recuperar o espírito ainda que as


palavras de Guor a intimidassem, contemplou-o com integridade nos olhos.
Seu ato de valentia, entretanto, não serviu de nada. Um olhar efêmero de
Nahueltruz foi suficiente para diminuí-la e humilhá-la. Ele nem sequer
tinha tido a decência de dirigir-se a ela. Eles não conversavam, não se
relacionavam a não ser com a elementar cortesia, embora uma vez tivessem
significado tanto um para o outro. Agora nada. Tinha existido um tempo
em que lhes era difícil deixar de falar. Agora eram estranhos, não, pior que
estranhos, porque entre eles não existia a possibilidade de chegarem a ser
amigos. Tratava-se de um afastamento perpétuo.

Pelo canto do olho, Guor notou o abatimento de Laura. O que


experimentou nada tinha a ver com o sentimento de triunfo que tinha
pretendido. Continuou sem entusiasmo.

—É minha opinião que os estratos superiores sempre serão


superiores e os inferiores sempre inferiores. O mundo se balança em um

Tradução Lauren Moon


delicado equilíbrio do qual, quem ostenta a riqueza e o poder, é
responsável, pois esse é o equilíbrio que lhe assegura que a riqueza e o
poder permanecerão em suas mãos. Não por ser uma situação de equilíbrio,
quero dizer que seja justa. Absolutamente. Simplesmente digo que se trata
de uma situação hegemônica difícil de romper. Portanto, uma proposta
como “a educação universal”, completamente desprovida de intenções
materialistas e mesquinhas, sonha quase irrisória e de difícil cumprimento.

- Equivoca-se, amigo - trovejou a voz de Sarmiento -.


Existiram revoluções que puseram de cabeça para baixo os mais ricos.

- Refere-se à francesa? - perguntou Guor -. Não acredito. Hoje


em dia, na França, estar aparentado ou relacionado de modo algum com a
ancienne noblesse51 é um mérito que todos aspiram. Por acaso Napoleão,
grande defensor da revolução, que invadiu toda a Europa em nome da
liberté, egalité et fratenité, não terminou coroando-se imperador,
assumindo as prerrogativas dos próprios reis a quem com tanto rancor
perseguiu? A verdade é, senhores, que é próprio da natureza humana a
propensão à cobiça e à sede de poder. É parte do que somos, impossível
combatê-lo ou mudá-lo. Em caso de que os superiores fizessem alguma
concessão aos de baixo, não lhes caibam dúvidas, séria para seu próprio
benefício. Inclusive, o desejo de educá-los.

- Mío Dio, Lorenzo! - proclamou Ventura -. Mostra-se cruel


como se pertencesse às esferas inferiores.

- Não me interpretem mal - pediu Guor -. Estou convencido de


que os homens não podem ser todos iguais. Uma sociedade classista é a
consequência lógica desta desigualdade. Isto não aprovo, nem desaprovo é
próprio da natureza humana, como já disse. Mas no que acredito, sim, é que
deveria existir mais tráfego entre as diferentes classes. Quer dizer, mais
oportunidades para que os de baixo acessem níveis superiores, se o
merecerem, e os de cima baixem aos inferiores, se o merecerem também.
Quer dizer, aqueles que, tendo-se esforçado, vejam recompensado seu duro
trabalho, e aqueles que, tendo poder e dinheiro, usem-no incorretamente,
sejam castigados. Afinal de contas, quão único diferencia uns dos outros é
a educação, pelo que se alguém de baixo a ela acessa, não apresentará
diferenças com os de acima.

- Faltará-lhes - interpôs Zeballos - a tradição que outorga o


sobrenome ilustre de uma família. O bom nome faltará.

51
Velha nobreza (n. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Se revisássemos - disse Nahueltruz - as árvores genealógicas
da maioria das famílias patrícias de Buenos Aires, descobriríamos que a
raiz de tanta tradição e ascendência é um réu expulso da Espanha que
baixou, meio morto de fome e nu, dos navios de Juan de Garay52. Temos
origem de mendigos que, por um golpe de sorte ou por mérito próprio,
converteram-se em príncipes. - Como ninguém objetou, Nahueltruz
continuou falando -. Vivi o suficiente para saber que a bondade e a
maldade se encontram tanto nas classes altas como nas baixas. O maior
pecado das classes altas é menosprezar àquele que chega sem uma família
com tradição que o respalde, como também proteger aos seus, embora
sejam execráveis. Pelo lado das classes baixas, ocultam sua indolência e
vacância detrás de um ressentimento crônico gerado pela vida tão injusta
que os toca viver. De qualquer maneira, considero que, das duas, é a classe
alta que tem mais responsabilidades sociais, simplesmente porque é a mais
educada e culta.

- Sua teoria é muito interessante - expressou Sarmiento, e


adicionou alguns conceitos que Laura não escutou porque, balbuciando
uma desculpa, afastou-se do grupo.

Ventura Monterosa notou seu semblante sombrio e passo


lânguido. Esse aspecto da senhora Riglos também o atraía, sua natureza
melancólica e suas maneiras lentas, seus olhos pretos insondáveis, tão
insondáveis como a tristeza que a perturbava. Atraía-o que escondesse um
segredo. Seguiu-a até um grupo de parentes, a quem cumprimentou com
galanteria, e em seguida lhe ofereceu seu braço para entrar na sala de
jantar.

Ela não se esforçava em alterar seu estado de ânimo, seguia


abatida e insegura. Os esforços por neutralizar a preponderância de Guor
mostravam-se inúteis, nem mil dias de confinamento e jejum a teriam
salvado do efeito devastador de um de seus olhares ou comentários
mordazes. Alheia ao interesse de Monterosa, caminhou de braço dado com
ele e notou que Esmeralda Balbastro fazia o mesmo com Nahueltruz. Logo
que iniciado o jantar, falou-se da criação de cavalos, um negócio rentável
no qual José Camilo Lynch e Climaco Lezica pensavam arriscar parte de
sua fortuna. Na realidade, era Lezica quem contribuiria com a maior parte
dos recursos, Lynch, com o campo e sua perícia. Armand Beaumont
particularizou que não conhecia outra pessoa mais perita em cavalos que
Lorenzo Rosas, e tanto Lynch como Lezica se mostraram interessados em
conhecer sua opinião.

52
Foi um fidalgo, explorador e conquistador espanhol. É um importante nome da história da Argentina e do Paraguai, tendo
fundado, entre outras, as cidades Santa Fé e Buenos Aires (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


O tema parecia agradar Rosas, pois se espraiou na menção das
diferentes raças, suas características, utilidades e enfermidades mais
comuns. Comentou que havia trazido da Europa um cavalo normando, um
andaluz e um puro-sangue árabe, sua debilidade, conforme confessou,
apesar do mau gênio do animal. O interesse de Lezica e de Lynch
aumentava momento a momento. Pediram-lhe que os levasse para conhecer
esses exemplares. Guor disse que sim, e o tópico minguou rapidamente. O
doutor Wilde mencionou a proeza do general Roca, que tinha desbaratado
às hordas de selvagens do sul, e felicitou Clara Funes, que assentiu,
ruborizada.

- E pensar - falou Estanislao Zeballos - que há quem se oponha


ao extermínio de tão baixa casta.

- Por favor, senhor Zeballos - suplicou tia Carolita -, não fale


de extermínio. Eles também são seres humanos.

- Bestas, isso é o que são, madame! - insistiu Zeballos.

Involuntariamente, Laura olhou para Nahueltruz, que comia


impassível. Só ela, que conhecia seus modos, reparou na ruga que ocupava
sua frente o esforço que fazia para controlar seu gênio. Sem razão,
experimentou o peso da responsabilidade da campanha de Roca sobre seus
ombros.

- E agora - insistiu Zeballos -, se for necessário, a ponta do


Remington, nós os ensinaremos a trabalhar duro nas estâncias.

- Já lhe disse anteriormente, doutor Zeballos - replicou Laura


com firmeza -, que os índios do sul sabem trabalhar. Cultivam a terra e
criam gado de todo tipo, em especial cavalos e bovino.

- Criam gado! - exasperou-se Zeballos -. Por favor, senhora!


Não seja tão cândida. Essa gentinha come o gado que nos rouba.

Laura apertou as mãos sob a toalha para controlar um ataque


de cólera. Incomodava-se com Zeballos; sua soberba era imperdoável. Mas,
a irritava mais que com suas palavras feria o homem que ela amava.

O silêncio que sobreveio foi rompido pela duquesa de Parma.

- Você sabe muito a respeito desses selvagens, senhora Riglos


- comentou sem malícia -. Por acaso teve oportunidade de conhecê-los
pessoalmente?

Tradução Lauren Moon


Muito poucos na mesa receberam a pergunta com a mesma
inocência com que foi expressa. Olhares pousaram em Laura, que lutou
para que seu rosto não transmitisse o menor vestígio de desconforto ou
vergonha, não com Nahueltruz Guor tão perto. O desconforto e a vergonha
da avó Ignacia e de suas filhas, em troca, resultavam tão evidentes como a
ironia em outros semblantes.

- Duquesa - falou Eugenia Victoria -, meu primo, o padre


Agustín Escalante, um missionário franciscano, irmão mais velho da
senhora Riglos, mantém contato muito assíduo com os índios do sul.
Inclusive convive com alguns deles no Fuerte Sarmiento, que está na vila
do Rio Cuarto, no sul de Córdoba. Laura sabe sobre os índios pelo que seu
irmão, o padre Agustín, lhe conta.

- Além das opiniões favoráveis ou encontradas quanto aos


índios - contemporizou Eduardo Wilde -, ninguém pode negar, do ponto de
vista militar, que a campanha do general Roca é uma epopeia digna das
antigas legiões romanas. A precisão com que se moveram as diferentes
colunas, saltando todo tipo de obstáculos, assemelha-se ao mecanismo de
um relógio. Sua chegada à ilha Choele-Choel, no dia 25 de maio passado, é
o resultado de um plano metodicamente delineado.

- Rufino! - trovejou a voz de Sarmiento, que se dirigia a de


Elizalde -. Aquele meio-dia no Soubisa semanas atrás, deveria ter apostado
muito dinheiro. Lembra sua incredulidade sobre o êxito da campanha de
Roca, quando eu lhe assegurei que se de Barbilindo se tratasse, com certeza
vencíamos?

Rufino de Elizalde não teve outra opção e, levantando sua


taça, proclamou:

- Brindo à saúde do general Roca!

- Pelo general Roca! - uniram-se outros convidados.

Durante o choque de taças, Laura observou que Guor não


levantava a sua. Em troca, inclinava-se sobre o ouvido de Esmeralda
Balbastro e lhe sussurrava algo. Recomeçado o jantar, a duquesa de Parma
demonstrou sua pouca perspicácia ao perguntar novamente pelos índios do
sul.

- Senhora Riglos - falou -, me conte a respeito desses


selvagens que tanto alvoroço causam nestas terras. Nós jamais

Tradução Lauren Moon


experimentamos isso com bárbaros. Imagino que deva se tratar de uma
vivência fascinante.

- Cara duchessa Marietta - interveio Eduarda Mansilla -, logo


poderá conhecer tudo a respeito dos índios do sul, quando o novo folhetim
de Laura for publicado em La Aurora.

- Davero? Quando será isso?

- Em poucas semanas - replicou Laura pretensamente.

- Como será seu título? - insistiu a duquesa.

- La gente de los carrizos - manifestou Laura, e imediatamente


traduziu em francês.

- Um nome muito sugestivo - comentou Saulina Beaumont.

- Por que esse nome? - interessou-se Armand.

- O folhetim será a respeito de uma tribo chamada ranquel.


Ranquel, em língua araucana, significa “pessoas dos juncos”.

- Será ajustado à realidade e ao que conhece destas pessoas -


perguntou Saulina - ou sua brilhante imaginação desempenha papel
importante?

Laura recebeu de bom grado a pergunta. Falou com a


segurança que lhe havia faltado ao longo da noite.

- O folhetim será a história, mais ou menos exata dos


personagens de minha tia Blanca Montes entre os ranqueles. No ano de 40,
minha tia, mãe de meu meio irmão, o padre Agustín Escalante, foi cativa
em um ataque e levada às tendas dos ranqueles. Nas memórias de minha tia
Blanca Montes apoiarei meu próximo folhetim. É através de seus escritos
que conheço os ranqueles. Ela os amava e respeitava como seu povo, e eu
também.

Moveu a cabeça deliberadamente e olhou para Nahueltruz nos


olhos. A máscara que usava para enfrentá-la tinha caído; seu semblante
revelava perturbação. Em relação aos outros, inclusive tia Carolita se
contrariou. Um segredo familiar cuidadosamente guardado, seria exposto
por Laura com descuido e irresponsabilidade. A declaração tinha sido clara
e precisa, e não dava lugar a emendas, e até a avó Ignacia teve que guardar
silêncio. Armand Beaumont tomou a palavra antes que sua cunhada, a
Tradução Lauren Moon
duquesa, voltasse a perguntar a respeito dos ranqueles, e comentou sobre a
requintada natureza morta pendurada sobre o aparador. Eugenia Victoria
explicou que era uma pintura que os peritos atribuíam a Giuseppe Cesari,
professor de Caravaggio. A conversa derivou no tenebrismo Caravaggissco
e, até o final do jantar, só se falou da arte renascentista.

Como de costume, depois do jantar, beberam café e licores. Os


convidados abandonaram a mesa e passaram ao salão. Laura, chateada por
uma olhada da avó Ignacia, decidiu visitar seus sobrinhos menores.
Escorreu-se para o interior da casa, sem perceber que Guor deixava seu
lugar junto a Esmeralda e a seguia. Subiu as escadas e caminhou nas pontas
dos pés pelo corredor mal iluminado.

- Laura!

Um tremor percorreu seu corpo ao escutar Nahueltruz


pronunciar seu nome de batismo depois de tantos anos. Virou-se e o viu se
aproximar a passos rápidos. Guor se deteve na frente dela e, com sua
proximidade, sofreu uma breve tontura. Para ele também dizer “Laura”
depois de tanto tempo afetou-o intimamente. Mas as lembranças amargas
prevaleceram, como de costume, e o tornaram áspero.

- Que direito invoca para fazer pública a vida de minha mãe?

- Minha tia Blanca foi também à mãe de meu irmão Agustín -


aduziu Laura em um fio de voz.

- Que Agustín seja seu meio irmão não lhe dá o direito de


ventilar as intimidades de minha mãe à pessoas que só procurarão destroçar
sua memória.

- Quero fazê-lo, Nahuel - expressou ela em tom de súplica.

- Não volte a me chamar desse modo.

- Desculpe-me - expressou Laura, com a vista baixa.

- Eu proíbo você de publicar as memórias de minha mãe. Não


fará dela o bobo desta sociedade de pacatos a qual pertence.

- Agustín me entregou o caderno com as memórias de minha


tia Blanca e me autorizou a usá-lo para escrever uma história, se eu julgar
apropriado. E o farei - teimou Laura, de repente ressentida por tanto
maltrato -. Agustín foi tão filho de Blanca Montes como você.

Tradução Lauren Moon


- Devolva-me o caderno de minha mãe. Seu lugar não é com
você. Se Agustín não o quer, eu quero.

- Não vou lhe dar. Agustín me confiou isso.

- Laura, devolva-me - prorrompeu Guor.

Seus olhos cinza brilhavam de raiva; esticava o pescoço e os


tendões se o remarcavam com o esforço; seu pomo de Adão subia e descia.
Laura teve medo dele. No entanto, respondeu com serenidade que não o
devolveria.

- Vai me dar! - vociferou ele.

Agarrou-a pelos ombros e a sacudiu com brutalidade. Laura


soltou um grito de dor, embora nada tivesse o poder de feri-la tão
profundamente como o desprezo dele.

- Lorenzo, lasciala in pace! Súbito!

Ventura Monterosa se precipitou sobre Guor com grande


agilidade, arrebatou Laura de suas mãos descontroladas e a cobriu entre
seus braços. Laura escondeu o rosto em sua jaqueta e começou a chorar
amargamente. Guor se afastou cambaleando e, com o gesto de um menino
assustado, contemplou a figura de Laura sacudir-se sobre o peito de seu
protetor. Estendeu a mão para tocá-la, mas Monterosa a protegeu com seu
corpo.

- Responderá por isso, Rosas!

- Não, não! - choramingou Laura -. Foi tudo por minha culpa!

- Responderá por isso! - insistiu Monterosa.

- Imploro-lhe, Ventura. Que isto termine aqui e agora, sem


consequências para ninguém. Por favor, me leve para casa. Só desejo
chegar a minha casa.

Monterosa baixou o olhar para dar com um rosto suplicante


que só infundia piedade. Assentiu gravemente e a acompanhou pela escada
de serviço.

Durante a viagem, escolheu permanecer calado. Na casa da La


Santísima Trinidad, acompanhou-a até o vestíbulo onde se contemplaram

Tradução Lauren Moon


em silêncio. Laura só desejava correr para seu quarto e refugiar-se com
tranquilidade. Ainda assim, devia uma explicação.

- Senhor Monterosa, agradeço o que fez por mim esta noite.


Não julgue com muita dureza o senhor Rosas. Eu fui á culpada, eu que o
enervei. Que o episódio desta noite não seja o responsável por um mal-
estar entre vocês, que são tão bons amigos.

- Eu não sou amigo de Rosas. É amigo de meu cunhado, não


meu. Sinto muito, Laura, mas Rosas deverá prestar contas pelo tratamento
desprezível ao qual a submeteu. Suponho que será em vão lhe perguntar o
que aconteceu.

- Não duvido de suas boas intenções - expressou Laura -, e se


for seu desejo me ajudar, suplico-lhe que esqueça este nefasto momento.
Você não conhece nada de minha vida nem da do senhor Rosas. Só saiba
que o senhor Rosas tem motivos para enfurecer-se comigo como o fez esta
noite.

- Devo imaginar, então, que você e Rosas se conheceram no


passado?

Laura titubeou, encurralada. A contínua necessidade de ocultar


e simular que, há mais de seis anos, impôs-se como uma condenação,
curvando-a com um peso que, de repente, não quis continuar levando nas
costas.

- Eu amo o senhor Rosas há muitos anos. Ele é e será o único e


verdadeiro amor de minha vida. Se você lhe fizer mal, faz-me mal também.

Guardaram silêncio sem afastar a vista um do outro. Apesar da


confissão, Monterosa desejou beijá-la nos lábios.

- Ele não a merece - manifestou duramente.

- Sou eu quem não o merece.

- Jamais acreditarei isso, Laura. Rosas se comportou esta noite


como um caipira e terá que responder por sua canalhice.

Ante os olhos arrasados dela, Ventura percebeu que a


desilusão estava deixando-o intratável. Agarrou-lhe ambas as mãos e as
beijou.

Tradução Lauren Moon


- Perdoe-me, Laura. Se essa for sua vontade, não exigirei
explicação alguma. Conta, além disso, com minha absoluta discrição.

Maria Pancha escutou a relação dos incidentes com a


parcimônia habitual. Não estava acostumada a lançar mão do “eu te disse”,
porque o julgava inútil. Bem sabia Laura que o conselho de sua criada tinha
sido chegar a um entendimento com Guor, pois, em sua opinião, o
aborrecimento sem confrontação piora as coisas. Ajudou-a a tirar o traje, as
anáguas e o espartilho, escovou seu cabelo mais suavemente que das outras
vezes e a mimou com leite morno e pão-de-ló.

- O caderno de Blanca - manifestou Maria Pancha - foi à


desculpa que esse índio usou para ventilar o rancor que carcome sua alma.
Sempre existirão desculpas.

- Meu Nahuel já não existe - murmurou Laura -. Um homem


mundano e frívolo tomou seu lugar. O cabelo comprido foi
meticulosamente cortado e penteado para trás com fixador; uma
sobrecasaca deliciosamente confeccionada substituiu o poncho e o chiripá.
Sua voz, entretanto, me fez tremer porque quando me chamou “Laura” por
um momento acreditei que estávamos de volta na hospedagem de dona
Sabina. - Lançou um suspiro e deixou a cadeira em frente à penteadeira. Já
na cama, manifestou-se com amargura -. Ficou óbvio para mim, Maria
Pancha, que Nahuel e eu não podemos compartilhar o mesmo lugar. Outra
noite como esta e terminarei por adoecer dos nervos. Não voltarei a vê-lo.

~0~

Horas mais tarde, Guor fumava na cama, enquanto recebia


com indolência as carícias que Esmeralda Balbastro prodigalizava nele.
Depois de ter visto Laura partir dos Lynch, chorando nos braços de
Monterosa, tinha precisado de um momento para se recompor. O tremor de
seu corpo finalmente cedeu e pôde voltar para a sala onde informou a
Esmeralda que ia embora, e que esperava encontrá-la na casa dela em uma
hora. Blasco, a quem viu ansioso junto da senhorita Pura, preferiu não
incomodá-lo.

Deixou os Lynch cego de rancor, incapaz de sopesar com


mente fria e imparcial o ocorrido com Laura. Nesse momento, já satisfeito
fisicamente, analisava com mais detalhe, por exemplo, o efeito que aquelas
ridículas ninharias tinham exercido sobre ele, como o contato de suas mãos
sobre os ombros de Laura ou esse “Nahuel” que quase o desarmou. A
intervenção de Ventura serviu para evidenciar o óbvio que se negava em

Tradução Lauren Moon


aceitar desde o reencontro, porque tinha demorado a entender que sentia
ciúmes não só de quem a cortejava, mas também de todas as palavras.

Indicou-lhe uma cadeira, mas Ventura desprezou o


oferecimento com um movimento de mão.

- Só permanecerei um momento. Parto em dois dias para


Santiago do Chile e é urgente que eu comece a empacotar. O que me
detinha nesta medíocre cidade se desvaneceu ontem à noite, quando a
senhora Riglos me confessou que ama você, que sempre amou e sempre
amará. Já vê - disse, com um sorriso forçado -, salvou sua pele, porque lhe
asseguro que minha intenção era pedir uma explicação pela infâmia da qual
fui testemunha. Mas não lhe pedirei satisfação, porque ela me implorou por
isso. Tem sorte e lhe invejo. A única mulher que me fez pensar em
abandonar esta vida errante e desejar um ambiente calmo e familiar ama
você além de qualquer entendimento. E o que me enche de ira é que não é
digno de limpar o pó de seus sapatos. Boa tarde.

Monterosa depois inclinou a cabeça em sinal de saudação e


partiu para o vestíbulo. Nahueltruz Guor não atinou em acompanhá-lo, na
realidade, nem sequer reparou quando Monterosa deixou a sala. A
exposição tinha tido o efeito de um raio e, por espaço de vários minutos,
permaneceu imóvel, o olhar fixo em um ponto. Tampouco escutou o passo
lento de sua avó Mariana e se voltou bruscamente quando lhe tocou o
braço.

- Estava aqui - disse a mulher em araucano -. Não escuta o


sino que soa?

Guor se precipitou para seu dormitório. Precisava molhar o


rosto e avivar-se. Logo, sua avó lhe indicou que Lynch e Lezica o
aguardavam na sala.

- Possivelmente tenha pensado que nosso interesse em seus


cavalos não era sincero - manifestou Jose Camilo enquanto sorria
amigavelmente -. Pois bem, nosso interesse é tal que eu e meu amigo
Climaco não quisemos esperar um dia. Como você deixou minha casa
ontem à noite muito depressa, não tive tempo de marcar uma entrevista.
Por isso, nos atrevemos a incomodá-lo hoje, em sua casa.

- Você não me incomoda absolutamente, senhor Lynch.


Aproveito a oportunidade para lhe agradecer tão grata reunião, a de ontem

Tradução Lauren Moon


à noite. E peço desculpas também pela maneira inoportuna que deixei sua
casa. Assuntos de natureza inadiável chamavam por mim. Quanto aos
cavalos, seria uma honra para mim que você e o senhor Lezica os
considerassem para seu negócio. Dei-me ao trabalho de trazê-los da Europa
justamente para isso, para fazer negócios. Logo que cheguei a Buenos
Aires, mantive-os em um estábulo da Rua Flórida, próximo à Plaza de
Marte, mas eu não gostava da maneira com que eram tratados e os tirei
dali. Agora estão em uma quinta que alugo na localidade de Caballito.
Sejam meus convidados e permaneçam em minha quinta o tempo que
estimarem necessário.

- Soube por Armand - falou Lynch - que você monta como


ninguém.

- Aprendi a montar antes de caminhar - expressou Guor sem


reflexos de vaidade.

- Também nos disse que você se dedica à criação de cavalos na


Europa e que vai muito bem.

- Não posso me queixar.

Lynch e Guor combinaram em partir na primeira hora do dia


seguinte para Caballito. Lezica, no entanto, permaneceria em Buenos Aires
cuidando de sua loja. Segundo esclareceu, não era momento propício para
deixar a cidade.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XIV.

Um desafortunado encontro

Nos dias posteriores à briga com Nahueltruz, certa paz se


apoderou do interior de Laura. Possivelmente porque, ao não resistir aos
que ela julgava maus pensamentos, a tensão desaparecia. Além disso, nada
havia se resolvido. Trancava-se em seu boudoir53 grande parte do dia. Ali
recebia seu administrador, seus assessores legais, respondia cartas e
escrevia o primeiro capítulo de La gente de los carrizos. Ventura
Monterosa tinha partido para o Chile junto com sua irmã, a duquesa
Marietta, e Laura tinha preferido declinar o convite para o jantar de
despedida em tia Carolita. No mais, a vida na casa da La Santísima
Trinidad seguia como de costume, e embora os preparativos para o
casamento de Magdalena imprimisse um ambiente jovial, não conseguia
contagiar a Laura.

A amizade com Eduarda Mansilla se consolidava. Suas visitas


eram motivo de alegria. Discorriam por horas a respeito das bondades ou
defeitos de tal e qual escritor e liam parágrafos de La gente de los carrizos
ou do novo livro de Eduarda, Recuerdos de Viaje, que era publicado como
folhetim em La Gaceta Musical. Eduarda recebia notícias frescas dos
acontecimentos literários no Velho Continente e os compartilhava com
Laura: assim foram as primeiras, a saber, do escândalo que tinha
provocado, nos setores mais reacionários, a estreia da última obra do
norueguês Henrik Ibsen, Casa de bonecas. Gostavam de Madaine Bovary
de Flaubert, que segundo Laura era de uma beleza expressiva difícil de
imitar. Entretinham-se com a obra do conde Tolstoi, e concordavam em
que Guerra e Paz e Anna Karenina eram suas criações mais acabadas.

Embora Laura não mencionasse, sabia que a sociedade


portenha hostilizava Eduarda e a acusava de má mãe e esposa. Seus seis
filhos - os menores ainda pequenos - tinham ficado na Europa aos cuidados
do pai e da irmã mais velha, Eda, já casada. Laura não julgava Eduarda,
mas intimamente dizia que se ela tivesse tido filhos com Nahueltruz, jamais
os teria deixado.

53
Aposento particular para senhoras (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Eduarda parecia pálida essa tarde. A primeira impressão de
vitalidade e euforia, que Laura observou na noite que a conheceu, se
desvaneceu com o correr do tempo. Eduarda era, na realidade, uma mulher
de natureza fraca; o doutor Wilde visitava a casa de sua mãe, dona
Agustina, com frequência.

Eduarda tocava o piano com atitude lânguida e dedos


graciosos que apenas roçavam o teclado. Sua voz doce e educada
acompanhava a melodia com a recitação de alguns versos do Canzoniere de
Petrarca.

- Magnífico! - exclamou Laura, enquanto aplaudia -. Conheço


poucas pessoas com seu talento, Eduarda. Fala cinco idiomas com a
fluência do castelhano, canta como uma soprano, executa o piano com a
destreza de Chopin e escreve com a mestria de Víctor Hugo.

- Se ontem à noite tivesse aceitado o convite de Guido y


Spano, teria escutado uma excelsa recitação dos versos de Petrarca, por
certo, imensamente superior a esta.

- Impossível.

- Ninguém recita Petrarca como Lorenzo Rosas, asseguro-lhe


isso.

- Você parece mais magra - se apressou em comentar Laura.

- Esta manhã tive um aborrecimento com minha secretária,


mademoiselle Frinet. Embora clandestinamente, ela também reclamou
comigo por ter deixado meus filhos e meu esposo na Europa. No meu
círculo mais íntimo, todos se acreditaram com direito de expressar sua
opinião a esse respeito. Você, querida, e Lorenzo foram os únicos que de
maneira nenhuma condenaram minha decisão.

- Não conheço as circunstâncias, Eduarda - aduziu Laura.

- Suponho que não me condena porque, como meu querido


Lorenzo você também sofreu. As almas daqueles que sofrem e não
amargam, são caridosas e condescendentes.

- Faz muito tempo que conhece o senhor Rosas?

- Faz alguns anos. Conheci-o em Paris; acompanhava


Geneviéve Ney, grande amiga minha.

Tradução Lauren Moon


- A prometida do senhor Rosas, conforme entendi.

- Prometida? Bem que gostaria a pobre Geneviéve. Na


verdade, é a amante de Lorenzo. Tanto como é Esmeralda Balbastro neste
momento. Oh, fui torpe! Minha falta de tato não tem perdão. Afinal de
contas, trata-se de sua prima. Devo tê-la ofendido.

- Não me ofendeu absolutamente - se repôs Laura -, e não é


minha prima. Esteve casada com Romualdo Montes, meu primo, a quem
quis como um irmão, mas ela, não a considero parte de minha família.

- Pois Esmeralda lhe professa uma genuína admiração. Ontem


à noite, no Guido y Spano, falou maravilhas de você e saiu em sua defesa
para enfrentar sua sogra, Celina Montes, quando esta arremeteu contra
você, por causa desse desvario que tem, que alguns chamam de escrever.

- Espero que Esmeralda não se iluda em vão com o senhor


Rosas -assinalou Laura, com oculta intenção.

- Lorenzo Rosas possui um grande domínio de si. É impossível


ler em seu rosto a sinceridade ou a falsidade de suas palavras. Diz o que
quer; o que sente, reserva-o à solidão de seu coração. Poucas vezes conheci
uma pessoa mais reservada. Mede suas palavras e seus gestos com destreza
invejável; nunca o vi cometer uma explosão ou sair da linha. Suspeito que
seu mundo interior é rico. Envolve-o certo ar feroz que me leva a pensar
que nem sempre foi o que é. Possivelmente seja sua enorme altura, suas
mãos enormes, um pouco rudes, de seu andar sorrateiro, não sei. Seu olhar,
embora de um cinza claro e puro, nunca é sincero. Em Paris, alguns o
chamam de nouveau riche, mas ninguém deixa de cair sob seu encanto. Eu
o quero estranhamente, sua nobreza e generosidade são proverbiais. Já vê
como adora Blasco, esse moço que, apesar de alguns acreditarem o
contrário, não é seu filho. Mas devo admitir que não conheço sua natureza.
Confio nele e em seu carinho mais guiada pelo instinto que por um
profundo conhecimento de sua índole. Acredito não me equivocar quando
afirmo que Lorenzo Rosas não conseguiu repor-se de um mal de amor, e
que essa misteriosa mulher ainda continua em sua cabeça e em seu coração.

Incapaz de ocultar o efeito que essas palavras lhe causaram,


Laura ficou de pé e deu as costas para Eduarda com a desculpa de servir o
chá.

- Talvez o senhor Rosas volte logo para Paris e finalmente


decida se casar com a senhorita Ney - expressou, ao mesmo tempo em que
passava uma xícara para Eduarda.

Tradução Lauren Moon


- Esse é o desejo da pauvre Geneviéve, que escreve para
Lorenzo semanalmente rogando-lhe. Eu, entretanto, vejo-o muito bem
instalado em Buenos Aires, compenetrado com seu negócio de cavalos.
Possivelmente esteja se apaixonando verdadeiramente por Esmeralda
Balbastro ou talvez a misteriosa mulher de seu passado esteja aqui, em
Buenos Aires, e esse seja o verdadeiro motivo que o ata a esta cidade.

Sobreveio uma pausa na qual Laura se debateu em confessar


a Eduarda Mansilla sua história. Desistiu finalmente. Não se tratava de um
ato de desconfiança, mas sim da necessidade de proteger Nahueltruz.

- Mario Javier me disse que no final de junho estará pronta a


edição de Lucía Miranda e El médico de San Luis - comentou Laura, e
Eduarda ensaiou uma careta de aborrecimento -. O que houve?

- Quando é que você vai me confessar que a Editora del Plata


é de sua propriedade?

Laura sorriu com picardia.

- Você e eu somos iguais - assegurou Eduarda.

- Iguais, quando não chego aos seus pés?

- Iguais. É nossa natureza escandalizar, romper dogmas e


moldes, e por isso vamos sofrer. Mas nada se pode contra a natureza,
sempre encontra seu caminho embora a gente mesmo a combata.

- Não sei se é próprio de minha natureza escandalizar;


provavelmente o seja no sentido de que não aceito que minha vida
transcorra na mesma passividade, submissão e ociosidade que as de minha
avó, minhas tias e minha mãe. As mulheres são como adornos em uma sala,
postas ali para embelezar, mas não servimos para nada.

Laura pareceu meditar suas próximas palavras; quando falou, o


fez com menos ímpeto.

- Às vezes me pergunto qual é o sentido do que nos rodeia, o


sentido do mundo mesmo, refiro-me. Para que existimos, por que alguns
são saudáveis e outros doentes, alguns ricos e muitos pobres, poucos felizes
e a maioria desventurada. Qual é o mistério sobrenatural que dá sentido a
este mundo tão tangível e real, tão injusto e afastado de tudo que apregoa
nossa religião? Apesar destas perguntas (que sei, nunca responderei
satisfatoriamente), não me desanimo; pelo contrário, experimento uma

Tradução Lauren Moon


dominadora necessidade de fazer obras que perdurem, obras cujos frutos
sejam apreciados e beneficiem a gerações futuras, e não me refiro a uma
toalha bordada que forme parte do trousseau de minha neta.

- Alguns pontuariam você como vaidosa e ambiciosa -


estimulou Eduarda.

- Podem me pontuar como desejarem. Eu sei que minhas


intenções obedecem a um impulso genuíno que nada tem a ver com esses
sentimentos vis.

- Está obtendo ao que se propôs?

- Em um mundo onde a mulher é considerada inferior, instável


e vaidosa, apta para bordar e cozinhar, mas nunca para pensar?

- Assusta-lhe o desafio?

- Não, claro que não, mas balanço lentamente e devo enfrentar


uma corrente antagônica, que me permitirá continuar avançando, enquanto
eu não me converta em um perigo iminente.

- São as armas com as quais se defende uma sociedade


comodamente localizada no lugar que ocupa. Mulheres como você ou
como eu transformam a disciplinada rotina. É incrível, mas são as mulheres
(a quem pretendo dignificar) que se convertem em nossas mais ferozes
caluniadoras. Deveria escutar o que dizem de mim.

- E deveria escutar o que dizem de mim - brincou Laura.

- Dizem - falou Eduarda, e um sorriso malicioso embelezou


seu semblante descarado - que sua defesa pelo índio do sul não se deve à
renomada influência de seu irmão, o padre Agustín Escalante, mas a um
apaixonado amor de juventude que professava por um ranquel.

- E que ainda professo - admitiu Laura -. Tudo o que digo e


faço é por ele. Desde que o perdi vivi embargada de pena. Quando ajudo
meu irmão Agustín em sua causa pelos pampas, na realidade, faço-o por
ele.

- O que lhe atraiu em um homem tão alheio a tudo que lhe


resultava familiar?

Laura se surpreendeu com a desenvoltura de Eduarda


Mansilla, até mais que sua própria serenidade.
Tradução Lauren Moon
- A primeira vez que o vi - começou Laura -, tive medo dele.
Seu olhar era duro, implacável, como a de uma pessoa ressentida. Voltei a
vê-lo no dia seguinte e pareceu-me bonito em seu estilo selvagem, tão
distinto dos homens à minha volta. Depois, fiquei impressionada sua
delicadez, sua sensatez, inclusive a maneira civilizada em que se
desenvolvia, quando eu tinha esperado o contrário. Tinham-no educado uns
monges beneditinos, e não só lia e escrevia o castelhano, mas também o
latim.

- Surpreendente - admitiu Eduarda.

- Exaspero-me quando pessoas como o doutor Zeballos dizem


que os índios do sul são irredimíveis.

- Acredita que teria se apaixonado por ele se não fosse um


homem instruído?

Laura tinha-se formulado a mesma pergunta várias vezes. A


resposta que despontava a fazia sentir culpada.

- Acredito que não - admitiu finalmente.

- É lógico - concordou Eduarda -. Nas relações, amorosas ou


de outra índole, é imperativo compartilhar certos códigos, lugares de
encontro que facilitem a comunicação e o entendimento. Do contrário,
relacionar-se seria tão difícil como se um chinês e um francês tratassem de
se compreender sem conhecer um a língua do outro.

- De qualquer maneira - justificou Laura -, teria compartilhado


com gosto sua vida em Terra Adentro.

- Queria levar você aos acampamentos?

- Não, ele não queria. Dizia que aquilo não era para mim.

- Certamente era um homem sensato - reconheceu Eduarda,


com ar pensativo -. O que foi feito dele, Laura?

- Perdi-o, faz mais de seis anos, em um ato de covardia que


ainda me pesa. Não soube protegê-lo do antagonismo que lutava por nos
separar. Mas recebi meu castigo, Eduarda. Minha condenação é em vida.
Nunca serei feliz.

- Nunca é muito tempo, e você não sabe nada sobre o futuro.

Tradução Lauren Moon


Laura levantou a vista e se reconfortou no sorriso otimista de
Eduarda Mansilla, que tinha razão: afinal, o que ela sabia do futuro?

~0~

Nahueltruz Guor gostava que Esmeralda Balbastro estimasse a


relação que os unia do mesmo modo que ele. À diferença de Geneviéve,
Esmeralda não exigia compromissos além da paixão que compartilhavam
na cama. Também o assombrava sua marcada intuição, que sempre
acertava seu estado de ânimo.

- Está pensando nela - expressou Esmeralda, sem sinais de


irritação.

Guor evitou olhá-la e vestiu seu sobretudo.

- De fato - insistiu Esmeralda, enquanto acomodava o nó de


sua gravata -, sempre está pensando em sua Laura.

- Não é minha Laura - resmungou Guor.

- Sim, senhor, sua Laura, e você, seu Lorenzo.

Guor meditou que, na verdade, Laura o chamaria Nahuel, mas


não corrigiu Esmeralda. Não tinha lhe confessado seu verdadeiro nome.

- Está preocupado pelo que se comentou na outra noite na casa


de Guido y Spano?

Nahueltruz examinou o olhar compassivo de sua amante e


guardou silêncio.

Esmeralda lhe sustentou o rosto entre as mãos e o beijou nos


lábios.

- Duvido que esteja doente, Lorenzo. Não dê ouvido às


fofocas.

- Disseram que padece da doença dos pulmões - delatou-se


Nahueltruz, a quem, desde a morte de sua mãe, afetava-o sobremaneira
essa enfermidade.

- Nada disso - desprezou Esmeralda -. É certo que, há um


tempo, foge a vida em sociedade, mas estou certa de que não se trata de um

Tradução Lauren Moon


problema de saúde. Já viu que Eduardo Wilde, que é seu médico, negou o
que era comentado.

Nahueltruz deixou a casa de Esmeralda Balbastro e avançou


pelas ruas desoladas na hora da sesta. Era um dia particularmente frio,
cinza e úmido de finais de junho. Tinha dispensado seu chofer e preferido
uma revigorante caminhada até os Lynch. Possivelmente o vento sul, que
parecia cortar a carne de seu rosto, iria limpá-lo desse pensamento
recorrente, que o inquietava mais do que gostaria de admitir: Laura
Escalante, ou a senhora Riglos, como a chamavam atualmente. Jamais
esqueceria que agora era a viúva de Riglos, que por anos tinha pertencido a
esse vaidoso advogado da cidade, apesar de em Rio Cuarto ter-lhe jurado
que nada a unia a ele, exceto gratidão e carinho fraterno. Não esqueceria.
Esquecer era um engano.

Aniquilava-o a majestosidade do palacete dos Lynch. Deteve-


se em frente ao portão principal e levantou o olhar para o teto de piçarras
trazidas da Ligúria. O próprio portão, de ferro forjado, com o escudo dos
Lynch folhado a ouro, era imponente; percebeu que tinham mandado trazê-
lo da França. Aquele desdobramento de opulência continuava afetando-o,
apesar de ser ele mesmo um homem de fortuna. Mas não se tratava de
dinheiro - se esse fosse o caso, José Camilo Lynch estava na bancarrota -,
mas sim de tradição dessas famílias, de antiguidade dos seus sobrenomes e
de vinculação com a história do país, atributos dos quais ele não podia
vangloriar-se. Apesar de ser tradado com deferência, inclusive com
afabilidade, os membros da sociedade portenha, de um modo ou outro,
marcavam-no que, embora refinado e endinheirado, ele não pertencia a seu
exclusivo círculo de nobres.

Nahueltruz fez soar a aldraba e aguardou o mordomo,


enquanto permitia com indolência que seu humor declinasse e ficasse no
tom impassível do dia de inverno. Um pouco do mau humor se misturou
com o abatimento, e esteve a ponto de dar meia volta e retornar para sua
casa, quando Roque, o mordomo dos Lynch, saiu para recebê-lo.

- O senhor José Camilo —assinalou Roque, enquanto guiava


Guor à recepção - acaba de enviar uma mensagem no qual roga que o
aguarde. Demorou-se no escritório do doutor Quesada. Conforme avisou
em sua nota, não o fará esperar mais de quinze ou vinte minutos. Você
poderá aguardá-lo, senhor Rosas?

- É obvio, Roque.

Tradução Lauren Moon


- A senhora Eugenia Victoria - prosseguiu o mordomo -
acompanhou o senhor José Camilo ao doutor Quesada. Ela também é
esperada na sala.

Abriu a porta. Laura Escalante ficou de pé. Nahueltruz se


deteve abruptamente e a contemplou com notória confusão. Laura percebeu
que a silhueta de Guor, de repente, ocupava o ambiente por completo.
Sentiu-se pequena e estática, e uma opressão em seu peito impediu-a de
pronunciar as palavras mais básicas de civilidade. Guor, por sua vez,
apenas inclinou a cabeça para saudá-la e caminhou até a mesa onde deixou
seu chapéu e sua bengala; tirou seu sobretudo e o entregou a Roque.
Afastou-se em direção a janela. Laura voltou a se sentar como se a vontade
dele tivesse poder sobre ela. Ninguém prestou atenção no mordomo, que
afirmou retornar com o serviço de chá.

Guor não parecia afetado pelo silêncio, inclusive tinha


abandonado o refúgio da janela e se sentado. Folheava um jornal com ar
despreocupado. Enquanto isso, Laura meditava: “Ainda conserva esse
andar enganador de quem está sempre muito concentrado. Que
pensamentos ocuparão suas horas? Possivelmente, alguma vez, por um
efêmero segundo, meu nome cruzará sua mente como o dele ocupa meu dia
e noite?».

Minutos mais tarde, ao notar que Guor fechava o jornal e o


deixava de lado, a curiosidade a fez levantar o rosto. Descobriu-o
contemplando-a fixamente. Olhava-a com a malícia resolvida e vingativa
de quem nunca esquece nem perdoa. Seu olhar era claramente displicente;
sua fria cortesia, sua graça cerimoniosa, pior que tudo. Assim como esteve
certa, contra toda crença, de que seu irmão não morreria de carbúnculo,
agora não tinha dúvida de que Nahueltruz jamais a perdoaria.

Guor consultou seu relógio e ficou de pé. Pegou o chapéu e a


bengala e, depois da mesma inclinação, rumou para a porta. Pretendia
abandonar a sala, quando três meninos irromperam sem cerimônia e,
indiferentes a sua presença, correram até Laura, que os abraçou e beijou.

Guor ficou cativado pela transformação que se operou nela. A


tonalidade rosada que tingiu suas bochechas outorgou-lhe um ar saudável
que o agradou, o mesmo com o brilho que ressaltou o preto de seus olhos.
Laura tirou suas luvas e, com suas mãos nuas, acariciou e beijo cabecinhas
e bochechas. Os meninos falavam em coro e ela lhes respondia com
doçura. A menor, Adela Lynch, sentou em sua saia, enquanto os dois
varões, Justo Máximo e Rafael, ficaram um de cada lado. Em seguida veio
à governanta inglesa com Benjamim nos braços.
Tradução Lauren Moon
- Boa tarde, senhora Riglos. Boa tarde - saudou o cavalheiro
que não conhecia -. Meninos, imediatamente retornem ao quarto de jogos -
ordenou em inglês.

- Decidimos vir - explicou Justo Máximo, o maior - quando


Roque nos disse que tia Laurita estava aqui.

- Permita-me uns minutos com meus sobrinhos, Agnes - pediu


Laura enquanto tirava Benjamim de seus braços.

- Adela! - escandalizou-se a mulher, quando a descobriu


bisbilhotando a bolsa da senhora Riglos.

- Tia Laura sempre traz presentes - foi à explicação da menina.

- Procure bem, Adela - insistiu Laura -. Há uma caixinha com


frutas de mazapán que María Pancha enviou para vocês e o exemplar de La
Aurora com o primeiro capítulo de Siete locos en un barco. E minha
sobrinha, a senhorita Pura?

- Em sua aula de francês, com o senhor Tejada - explicou


Agnes.

Nahueltruz observava aquele momento de triunfo de sua pior


inimiga e não conseguia reunir força necessária para desaparecer.
Continuava ali, em pé, olhando-a como bobo, pensando em quão linda
parecia com Benjamim nos braços. “Se durante aqueles felizes dias em Rio
Curto lhe tivesse feito um filho”, desejou mansamente, mas imediatamente
resolveu com fúria: “Agora teria o sobrenome Riglos”. Caminhou para a
porta, mas Roque, que trazia uma bandeja com o serviço de chá, obstruiu-
lhe a passagem.

- Por favor, senhor Rosas - falou o mordomo -. Deseja chá ou


café?

Agnes pôs fim à visita, quando ordenou aos meninos que


retornassem as suas atividades. Justo Máximo, Rafael e Adela reclamaram,
mas nada pôde conter a determinação da babá inglesa. Laura entregou
Benjamim e se despediu dos maiores, que imploravam um dia de
piquenique no Paseo de la Alameda.

- Quando o tempo melhorar - prometeu Laura -, agora está


muito frio - adicionou, e Nahueltruz se perguntou se a precaução a respeito
do clima, de algum modo se relacionava com seus pulmões.

Tradução Lauren Moon


A babá caminhou para a porta e os meninos a seguiram com
feições aborrecidas.

- Eu me encarrego de servir o chá, Roque - indicou Laura.

O mordomo apoiou a bule novamente sobre a bandeja e se


retirou. O silêncio que seguiu exaltou o constrangimento da situação.
Laura, entretanto, não parecia incomodada como a princípio e, bastante
segura, perguntou:

- Ainda toma o café preto, com quatro colheres de açúcar?

Desconcertou-o que se lembrasse desse detalhe. Laura, ao


julgá-lo impenetrável em seu rancor, falou-lhe francamente.

- Senhor Rosas - disse, e estendeu-lhe a xícara -, ambos somos


pessoas civilizadas. Não vejo nenhum empecilho para que você e eu
compartilhemos uma sala enquanto aguardamos ser recebidos.

Exasperaram-no sua apatia e autoconfiança. Apoiou a xícara


sobre a mesa e deu meia volta para fugir antes de golpeá-la. Mas Laura o
agarrou pelo antebraço com obstinação, e ele, um homem amadurecido que
se gabava de conhecer cabalmente ao sexo oposto, sofreu a comoção de um
moço ao sentir a mão dela ao redor de seu braço.

- Não vá, Nahuel.

- Já disse para não usar esse nome.

- Ainda custo a acreditar que estou vendo você, que posso lhe
tocar depois de tantos anos de pensar que estava morto.

Nahueltruz permaneceu quieto, observando, como se


aguardasse uma frase definitiva e contundente que mudasse sua vida.

- Durante muito tempo esperei que alguém me informasse o


que tinha acontecido com você. Estava acostumada a me dizer: “Se estiver
vivo, tratará de entrar em contato, de fazer com que eu saiba”, mas o tempo
passava e nenhuma palavra a respeito da sua sorte. Nunca me resignei com
a idéia de que tivesse morrido, e era um martírio viver com a dúvida. Por
que não me deixou saber que estava bem? - Laura se aproximou, mas não o
tocou -. Por que proibiu Agustín de me contar sobre seu paradeiro? Oh, que
cruel você foi comigo! - quebrou-se sem remédio.

Tradução Lauren Moon


Guor se moveu como se impelido por uma força extrema. O
branco de seus olhos se tornou vermelho, e Laura experimentou um
instante de terror, pois havia fúria assassina nesse rosto moreno e alheio.
Recuou, mas ele a agarrou pelos ombros e a colou a seu corpo.

- Cruel? É tão descarada que me chama de cruel? Cruel eu,


quando me abandonou no pior momento para se casar com Riglos?

- Tive que fazê-lo! Eu me vi obrigada! - exclamou com voz


estrangulada.

Guor a pegou pela cintura e, com a força que imprimiam seus


dedos, enterrou-lhe as baleias do espartilho em suas costelas. Laura gemeu
de dor, mas ele não diminuiu a pressão. Nada o comoveria; transformou-se
em uma besta cega de rancor. Obstinada, com as duas mãos em suas
lapelas, gritou-lhe:

- Não percebe que quando abandonei você, sacrifiquei minha


vida para salvar a sua? Sim, minha vida, porque desde aquele dia estou
morta.

- É uma mulher astuta e traiçoeira - expressou Guor -. Não


voltará a me enrolar com suas artimanhas.

Afastou-a com desprezo e se retirou para o lado da porta.

- Pois vou lhe dizer o que tenho guardado aqui há mais de seis
anos! —vociferou ela, e golpeou seu peito -. E vai me escutar!

Temeu que Nahueltruz partisse, mas ele, embora de costas e


irredutível, não fez menção de ir embora.

- Depois da tarde em que o coronel Racedo nos surpreendeu no


estábulo, meu único desejo era conhecer seu paradeiro para me unir a você
e cuidá-lo. Sabia de sua ferida a bala e me transtornava pensar que sofria.
Acreditei que ficaria louca. Nunca mais tornei a experimentar semelhante
martírio. Julián Riglos chegou a saber aonde você se escondia e me disse
que iria em seu socorro. Roguei-lhe que me permitisse acompanhá-lo, mas
se negou. Naquele momento sua desculpa soou plausível: os soldados do
Fuerte Sarmiento iriam me seguir, assim que eu pusesse o pé fora da
taberna de dona Sabina. Aceitei, então, que ele levasse para você roupa,
medicamentos, mantimentos e minha carta.

Tradução Lauren Moon


- Nunca recebi essa carta - manifestou Guor, ainda de costas,
com voz macabra.

- Nunca foi intenção de Julián entregá-la. Quando retornou ao


hotel de dona Sabina e me entregou o medalhão, e me disse que era seu
desejo que eu retornasse com minha família, e que me esquecesse de você e
daquele sórdido assunto.

- E você acreditou nele? - enfureceu-se Guor, e se voltou para


enfrentá-la -. Tão pouco conhecia quão profundo era meu amor, que
aceitou semelhante embuste tão facilmente?

- É obvio que não acreditei nele. Quando o pressionei para que


me contasse a verdade, Julián lançou mão da armadilha mais desprezível
para conseguir seu objetivo: ameaçou-me com a denúncia de seu
esconderijo ao tenente Carpio, se eu não aceitasse me casar com ele.

Laura esperou a reação de Nahueltruz. Ele a estudava


intensamente, e nada em sua expressão transmitia a surpresa e a confusão
pelas quais ela estava lutando. A impotência se apoderou de seu ânimo; era
evidente que Guor jamais viria a acreditar nela.

- Fugiu do estábulo e me deixou sozinho, quando tinha


ordenado que não se movesse dali.

- Saí para procurar ajuda.

- Fugiu movida pela vergonha de ter sido encontrada em meus


braços.

- Não! - indignou-se Laura -. Saí em busca de ajuda!

- Não confiava em mim? Não sabia que podia com aqueles


dois imbecis?

Laura fechou os olhos, envergonhada. Sem querer acabava de


humilhá-lo ao duvidar de sua dignidade, tinha minado sua força. Com a
força de um golpe, devastou-se com a ideia de que se ela tivesse
permanecido no estábulo, tudo teria sido diferente.

- O casamento com Riglos - falou Nahueltruz - lhe converteu


em uma mulher muito rica. Na minha visão, essa união só conseguiu lhe
favorecer. E não parece muito desgostosa com a vantagem de sua nova
posição: gosta de se vestir bem, usar jóias, viver em uma grande mansão e

Tradução Lauren Moon


passear em uma luxuosa vitória. Em troca, junto de um homem como eu,
que não apenas era pobre, mas também perseguido pela Justiça, só teria
conseguido acumular penúrias e necessidades para as quais não estava nem
remotamente preparada. Em resumo, só teria conseguido se denegrir.
Pretende que eu acredite que estes pensamentos não passaram por sua
cabeça e influenciaram-na para aceitar a proposta de Riglos?

- Jamais reparei nisso. Meu único desejo era salvar você.

- Não lhe ocorreu pensar que eu deixaria o lugar onde me


refugiava para me esconder em outro? Já sabia quão precavido eu tinha
sido no passado.

- Sim, sim - aceitou Laura -, mas Julián me confirmou que


você estava gravemente ferido, e que não seria capaz de dar dois passos
para se afastar do lugar onde se encontrava.

Nahueltruz levou suas mãos ao rosto. Sua vontade fraquejava,


e desejou que aquela história, embora infestada de fissuras, estivesse certa.
Caminhou para a janela e perdeu a vista no jardim. Dali, sem voltar-se,
lembrou com voz melancólica:

- Tinha jurado que, aonde eu fosse, você me seguiria.

- Era a única coisa que eu desejava, segui-lo onde quer que


fosse. - Nahueltruz se virou para olhá-la e procurou nos olhos de Laura um
traço de sinceridade. Mas, ferido como estava, não conseguiu sobrepor-se
ao rancor, e seu coração se fechou para acreditar. Tudo nela era desonesto e
enganoso. Repentinamente, se sentiu frágil e triste.

- Infelizmente - prosseguiu -, a única testemunha que poderia


referendar suas palavras, quer dizer, seu marido, está morto. E eu, Laura,
não voltarei a acreditar em uma palavra que saia de sua boca.

- Maria Pancha. Ela foi testemunha de tudo o que aconteceu


em Rio Cuarto.

- Maria Pancha? Que afirmaria sob juramento que as vacas


falam se você assim o pedisse?

Guor a olhou com dureza nos olhos e de repente disse com


marcado ressentimento:

Tradução Lauren Moon


- Você gosta de flertar com todos, que todos lhe adulem e lhe
proclamem ser a mais bonita. Eu fui uma diversão em Rio Cuarto durante
os tediosos dias em que cuidou de Agustín. Mas, quando esses dias
chegaram definitivamente ao seu fim, nada lhe faria trocar todo este luxo
pela companhia de um índio pobre.

- Seu coração se tornou de pedra.

- Tão de pedra como o teu - ele se defendeu rapidamente,


embora de imediato pareceu abater-se -: por que me diz tudo isto quando já
não tem sentido? O que quer de mim, Laura?

A pergunta a pegou de surpresa e, desprovida de uma resposta,


ficou olhando para ele. Agora entendia que só ela se agarrava a um passado
que não retornaria, só ela mantinha a esperança de uma reconciliação,
quando Nahueltruz havia deixado de amá-la. No entanto, voltar a perdê-lo
era insuportável e, ao vê-lo decidido a partir, foi presa do pânico.

- Acredite em mim, Nahuel! - exclamou -. Pelo amor de Deus,


me acredite! Não estou mentindo! Não estou mentindo!

Guor, implacável, avançou sem olhar para trás. Laura


desmoronou no chão, onde continuou repetindo entre soluços: “Não estou
mentindo, Não estou mentindo”.

Eugenia Victoria, que entrava na sala, quase bateu de frente


com Nahueltruz e, ao ver sua prima naquela dor, levou sua mão à boca para
afogar uma exclamação.

- O que aconteceu aqui?

- Com sua permissão, senhora Lynch - disse Guor -, eu me


retiro. - E, por fim, abandonou a sala.

- Laura, Laurita! - exclamou Eugenia Victoria, e correu para


levantá-la.

~0~

Nahueltruz Guor deixou os Lynch sem se lembrar dos


negócios que o levaram até ali. Seu primeiro impulso foi dirigir-se até
Esmeralda Balbastro, mas desprezou a idéia imediatamente. Não voltaria
para sua avó, Lucero e Blasco demandariam sua atenção, como de costume.
Precisava de um momento a sós. Recordou as palvras dos meninos Lynch

Tradução Lauren Moon


e caminhou para o Bajo, na direção do Paseo de la Alameda. A essa hora
do dia havia pouca gente, e Nahueltruz caminhou entre os álamos voltando
a vista de vez em quando para o rio, que era de um marrom escuro por
causa de uma tormenta iminente. Levantou-se um vento sul, fresco e com
aroma de chuva, e o passeio ficou desolado.

Sentou-se sob uma árvore, em um declive que terminava


banhado pelas ondas cada vez mais impetuosas do rio. Ao contrário, seu
estado de ânimo se serenava. Geneviéve e as tardes de domingo à beira do
Sena apareceram como uma grata lembrança. A doçura de Geneviéve
sempre apaziguava seu espírito inquieto, até à distância. “Oxalá eu amasse
você, Geneviéve querida!”, gritou sua alma cheia de tristeza.

Fechou os olhos, repentinamente afetado por uma verdade que


não aceitava por orgulho. Porque não gostava de reconhecer que tinha
vivido na esperança de voltar a vê-la; que nem um dia tinha se passado sem
que se lembrasse dela; que cada vez que fazia amor, era ela a quem
desejava ver nua; inclusive quando amava Geneviéve, era Laura a quem
escutava gemer, Laura a quem beijava, a quem possuía, a quem desejava
satisfazer. E tampouco gostava de aceitar que nos versos de Petrarca
também buscava por ela, nas referências a Laura de Noves queria descobrir
sua beleza e suas virtudes, e o consolo de quem ama loucamente só para
sofrer. Não a odiava. É obvio que não. Amava-a. Amava-a como um idiota;
a paixão das noites na taberna de dona Sabina permanecia intacta, apesar
do tempo, dos enganos e das traições. Ele tinha perdido tanto. Ou acaso não
a procurou entre o público do Palais Garnier convencido de que uma dama
com seus recursos e sua linhagem, algum dia viajaria ao Velho Continente?
Não havia demonstrado seus magníficos dotes de cavaleiro enquanto
jogava polo imaginando que ela o observava das tribunas? Acaso não tinha
esquadrinhado os rostos que se ocultavam sob os guarda-sóis no Champs
Elysée ansioso por encontrar suas adoráveis feições que nem os anos, nem
o ódio conseguiam apagar? Não tinha visitado frequentemente Armand
Beaumont para conhecer o conteúdo das cartas da senhora Carolina e não
era certo que seu coração palpitava freneticamente quando alguma linha a
mencionava? Embora as notícias sempre fossem escassas e insatisfatórias.

Ficou de pé e sacudiu o pó com suas mãos bruscas. Abstraído


na intensidade de seus pensamentos, começou a voltar. Deu voltas até
acabar em frente à casa de Esmeralda Balbastro. A governante informou
que a senhora não se encontrava e se ofereceu para aguardá-la. Minutos
mais tarde, Guor escutou a voz de Esmeralda que ordenava que avisassem
ao senhor Rosas.

Tradução Lauren Moon


- O senhor Rosas a aguarda na sala - disse a governanta, e a
seguir continuou o barulho estridente dos saltos de Esmeralda, que entrou
como um vendaval de sedas e rendas.

- Que oportuna coincidência, querido! Tenho algo a lhe contar.


Vamos, aqui, ao meu lado - e indicou o sofá com gesto impaciente,
enquanto se despojava do chapéu e as luvas -. Acabo de estar na casa de
minha cunhada, Eugenia Victoria Lynch. Fui visitar meu afilhado, o
pequeno Benjamim - esclareceu desnecessariamente-. Ao chegar, encontrei
a casa em um grande revôo. Agnes, a governanta de meus sobrinhos,
informou que a senhora Riglos tinha sofrido uma crise e que a levaram ao
quarto de Eugenia Victoria, e que mandaram chamar o doutor Wilde, que
chegou pouco depois e se trancou nos aposentos com ela cerca de uma
hora. Quando por fim saíram, Wilde levava Laura nos braços, muito
abatida, por certo. Colocou-a em seu carro e partiram. Eugenia Victoria me
informou que Laura tinha se chateado, mas que não era para me alarmar.
Digo-lhe, Lorenzo: não lhe acreditei em uma palavra. Agora temo que as
falações a respeito de sua saúde estejam certas —concluiu com uma careta.

- Eu também estive nos Lynch - manifestou Guor -. Ali me


encontrei com Laura. Conversamos.

Esmeralda arqueou as sobrancelhas e o contemplou com


expectativa.

- Se Laura passou mal - prosseguiu Guor -, foi por minha


culpa, tratei-a duramente, e acredito que por um momento estive a ponto de
bater nela. Tantas mentiras, tantas farsas - resmungou -. Nem sequer sei por
que concordei em escutar suas mentiras ardilosas.

- Suponho que movido pelo imenso amor que sente por ela -
tentou Esmeralda.

Guor pareceu atravessá-la com um olhar, embora


imediatamente relaxasse sua feição para lhe dizer:

- É um estranho tipo de mulher, Esmeralda Balbastro.


Qualquer uma em sua posição desejaria que meu interesse por Laura
acabasse. Você, ao contrário, parece interessada em reavivar o que uma vez
existiu entre nós, fazendo mais o papel de minha melhor amiga do que de
minha amante.

- Como cheguei a conhecer você, absolutamente sei que carece


de vaidade, por isso me atrevo a dizer, sem risco de acalentar sua soberba,

Tradução Lauren Moon


que, como amante, é extraordinário, o melhor que eu tive. Entretanto, não
amo você. Mas gosto de você e desejo que seja feliz. Sabe, Lorenzo? É
muito triste, mas existem pessoas que passam por esta vida sem saber o que
é amar. Você e eu, caso morrêssemos hoje, jovens e cheios de vitalidade,
não deveríamos lamentar, pois amamos profundamente. Eu amei meu
adorado Romualdo; você amou Laura. Não é algo extraordinário? Não acha
maravilhoso?

- Absolutamente - foi a resposta sombria do Guor—.


Romualdo morreu de uma enfermidade sem sentido e deixou você sozinha,
quando não chegava nem aos trinta. Laura me abandonou e se casou com
outro por seu dinheiro. O amor só nos tem feito sofrer.

- Oh, Lorenzo! - simulou zangar-se Esmeralda -. Parece um


velho amargurado.

Sobreveio um silêncio no qual Guor evitou o olhar inquisitivo


de sua amante, que o estudava sem recato.

- Por que retornou a Argentina? - perguntou repentinamente.

- Bem sabe - zangou-se Guor.

- Sim, sim, por sua família e a expedição do general Roca.


Entretanto, acredito que existiram motivações até mais poderosas.

- Mais poderosa que o bem-estar de minha família?

- Quando soube que Riglos tinha morrido?

Embora a pergunta o pegasse de surpresa, Guor tentou


dissimular.

- A senhora Riglos ficou viúva há mais de dois anos, enquanto


que faz só três meses que retornei a Argentina.

- E, certamente, soube da morte de seu marido há mais de dois


anos, não foi?

Guor titubeou e imediatamente se refugiou na ira.

- Não acredite que, por compartilhar uma cama, permitirei que


siga interferindo em meus assuntos com esta rabugice.

Tradução Lauren Moon


- Vamos, Lorenzo - contemporizou Esmeralda, e o segurou
pelo braço para que não deixasse o sofá -. Diga-me, quando soube da morte
de Riglos? Faz mais de dois anos?

- As notícias não chegam tão rapidamente ao Velho


Continente.

- Quando?

- Não me lembro com exatidão.

- Quando?

Guor teimou em seu mutismo.

- Pois bem - claudicou Esmeralda -, terei que imaginar. Soube


poucas semanas antes de começar sua volta. É assim ou estou equivocada?
- Guor não a olhou nem respondeu, e fez o gesto de ficar em pé, mas
Esmeralda voltou para segurá-lo -. Não continuarei importunando você,
querido. Deixaremos de lado este assunto -expressou, e o beijou
ligeiramente nos lábios.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XV.

Mal de amores

Desde que o doutor Wilde trouxe Laura indisposta dos Lynch,


Maria Pancha não vivia em paz. Naquela tarde, foi justamente a atitude de
Wilde o que a inquietou. O gesto usualmente risonho do médico
contrastava com um de preocupação. Wilde receitou uma fileira de tônicos
e beberagens e muito descanso, e assegurou para Laura que respeitasse suas
indicações, em uns dias voltaria a ser ela mesma. Com Magdalena, ao
contrário, afastou-a e lhe falou com franqueza. Disse que não a via bem.
Muito magra e abatida. Seu pulso era instável e seus reflexos, lentos.
Confessou-lhe que, ao separar sua pálpebra inferior, tinha-se alarmado o
aspecto esbranquiçado da membrana.

As recomendações de Wilde caíam em saco rasgado porque,


apesar dos esforços de Maria Pancha e de Magdalena, a tenacidade de
Laura se impunha e rara vez terminava o ensopado de lentilhas ou tomava a
gema no licor do Porto. Passava o tempo em seu quarto. Maria Pancha se
desequilibrava com as ocasiões nas quais caía, cada vez com maior
frequência, quando se abstraía do mundo a seu redor. Se falassem com ela,
Laura levantava a vista para olhar inexpresivamente.

Desde seu reencontro com Nahueltruz, tinha atravessado


diferentes estados de ânimo. Nesse momento, só a invadia um vazio
insondável provocado por este segundo confronto. O primeiro teve que
suportá-lo seis anos atrás, quando o acreditou morto por um balaço; agora,
devia suportar o processo todo de novo, porque embora ele gozasse de
excelente saúde, ela deveria matá-lo em seu coração ou terminaria
destruída.

Maria Pancha se alegrou quando Eulalia, Genara, Doura e


Emmanuel chegaram uma tarde na casa de La Santísima Trinidad. Eles
operariam nas bochechas de Laura o que não tinha conseguido o famoso
tônico de casca de ovo de tio Tito. Laura os recebeu com afeto e lhes
dedicou um sorriso que Maria Pancha fazia dias não via em seus lábios.
Entretanto, o ambiente não demorou a contagiar-se pela preocupação dos
jovens.

- Estamos aqui por Purita - falou Emmanuel.


Tradução Lauren Moon
- O que aconteceu com ela? - alarmou-se Laura.

Eulalia, mais sentimental que o resto, começou a falar. Laura


ficou subitamente de pé.

- O que aconteceu com ela? - repetiu.

Emmanuel também ficou em pé e tomou a palavra para


explicar. Dias atrás, Climaco Lezica pediu a mão de Pura, e José Camilo
Lynch aceitou. Pura, ao contrário, armou um escândalo e afirmou que
jamais se casaria com ele. O pretendente partiu muito ofendido, e Lynch
ameaçou Pura de mil maneiras. Por fim, a moça confessou que amava a
outro e que só aceitaria unir-se em casamento com ele.

- Outra noite de São Bartolomeu54! - exclamou Eulalia -.


Quando tio José Camilo soube quem é o apaixonado secreto de Purita, tia
Eugenia Victoria teve que intervir para que não lhe desse uma surra.

- Trata-se de Blasco Tejeda - explicou Genara, sem


surpreender Laura -, nosso professor de francês.

- Que é obvio já não é mais - esclareceu Doura -. Tio José


Camilo enviou-lhe um bilhete, advertindo-lhe que se pusesse o pé perto de
casa, expulsaria-lhe a espingarda.

- Que falta de civilidade! - queixou-se Eulalia.

Emmanuel retomou a história. Desde aquela cena, quatro dias


atrás, Pura permanecia trancada em seu quarto, a chave, sob os cuidados da
avó Celina, pois Lynch não confiava em sua esposa. Embora a
alimentassem, Pura tinha jurado não voltar a comer e que se deixaria
morrer antes de aceitar o caquético do Lezica. - Isto alarmou a Laura.

- Maria Pancha - ordenou -, prepare minha roupa. Sairemos


imediatamente para os Lynch.

Uma vez ali, Laura soube que seu primo José Camilo tinha ido
a um chamado urgente em sua estância em Carmen de Areco. O primeiro
obstáculo estava salvo, o segundo representava sua tia Celina, plantada ao
pé da escada para lhe impedir a passagem.

54
Massacre desencadeado pelos católicos contra os protestantes franceses e que marcou o início, no século 17, das guerras
religiosas (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Foi sua perniciosa influência que fez de minha neta Pura uma
perdida. Moldou-a a sua imagem e semelhança! Uma perdida! - repetiu aos
gritos.

Laura notou o molho de chaves que Celina usava preso à


cintura e o tirou de sopetão. Correu escada acima, acompanhada por seu
sobrinho Emmanuel; as meninas, por temor à avó Celina, tinham escolhido
permanecer em La Santísima Trinidad. Segundos mais tarde, alcançou-os
Celina Montes. Seus alaridos atraíram os empregados, os irmãozinhos
Lynch, a governanta e Eugenia Victoria, que, quando viu sua prima
atarefada em experimentar as chaves na fechadura do quarto de Pura, pôs-
se a chorar.

- Deixe de choro - instou Laura - e me ajude a encontrar a


chave, o que você, de todos os mortais, deveria se opor a este desvario de
seu marido. Se não conseguir abrir esta porta, Oh, juro-lhe isso, Eugenia
Victoria, atirarei-a abaixo com um aríete!

Encontraram Pura deitada na cama. A debilidade de seu corpo


se manifestava nos grandes círculos violáceos em torno de seus olhos, nos
lábios ressecados e na pronunciada palidez de seu semblante. Emmanuel a
carregou nos braços e avançou em direção à porta. Celina Montes voltou a
se interpor.

- Tia - falou Laura -, pretendo levar minha sobrinha. Farei-o


por bem ou por mal.

- Emmanuel, devolva sua prima para a cama dela. Não se


atreva a me desafiar.

- Insisto - pronunciou Laura, e subiu o tom—, vou tirá-la por


bem ou por mal. E rogo a Deus que seja por mal, tia Celina, assim terei a
oportunidade de dar-lhe a surra que conseguiu merecer.

Celina Montes apelou a sua filha, mas Eugenia Victoria


continuou chorando na cadeira em que tinha se deixado cair. Emmanuel
transpôs a porta e, embora sua avó o seguisse escada abaixo, não o deteve.
Completamente desrespeitosa, a mulher arremetia contra o descaramento
de Laura e recordava em voz alta os acontecimentos de seis anos atrás, em
Rio Cuarto.

Já no carro, enquanto Emmanuel ajudava Purita, Laura


meditava o passo a seguir. Indicou a Eusebio, o chofer, que rumasse para a
zona de Barracas, pela Rua dos Montes de Oca, onde ficava a quinta dos

Tradução Lauren Moon


del Solar. Depois de iniciada a viagem, Laura recolheu o corpo
enfraquecido de Pura e o acomodou em seu colo. Balbuciava-lhe e beijava
sua testa e bochechas. Várias vezes repetiu: “Não tenha medo, eu vou
proteger você”. Pura soluçava sem forças.

Na casa dos del Solar, dona Luisa se alvoroçou ao ver a jovem


Lynch com aquela aparência. Descalça, de camisola e sem roupão, a
cabeleira alvoroçada e com aspecto cadavérico, constituía um quadro raro.
Emmanuel ajudou sua prima a se sentar em uma poltrona, enquanto Laura
tentava explicar a dona Luisa.

- Quatro dias que esta menina não come? Atanasia! Atanasia!


Rápido, mulher, um canequinho com leite morno e bolachas de anis. Acabo
de assá-los - explicou a Laura.

A negra retornou na carreira e a mesma dona Luisa alimentou


Pura, que pouco tolerou o aroma do leite depois de dias de inanição. Com
paciência, pondo bocados pequenos em sua boca, dona Luisa conseguiu
que comesse e bebesse algo.

- Não desejo mais - disse Pura.

- Atanasia - ordenou dona Luisa -, indique ao cavalheiro


Unzué o quarto de hóspedes, que está perto do meu. Vamos, Emmanuel -
urgiu -, leve sua prima para descansar um pouco.

- A partir deste momento - anunciou Laura, quando ficaram a


sós -, Pura Lynch está sob meu amparo. Querem casá-la com Climaco
Lezica contra sua vontade e não vou permitir isso.

- Com Climaco? - repetiu, incrédula, dona Luis -. Poderia ser


seu pai. Embora seja um bom homem. E muito rico, com certeza. De
qualquer maneira, Purita só tem quinze anos e Climaco, quantos anos tem
Climaco?

- Mais de quarenta. Ninguém discute que Lezica seja um


modelo de virtudes, dona Luisa, nem que seu patrimônio seja dos maiores
de Buenos Aires. O inconveniente tampouco radica na diferença de idade,
apesar de elevada, a não ser na negativa de Purita em aceitá-lo. Minha
sobrinha ama outro homem.

- Pobre menina. Não consigo compreender a posição de José


Camilo, um moço tão razoável e benevolente. Nem tampouco a de sua

Tradução Lauren Moon


prima Eugenia Victoria, ou se esqueceu de que também queriam forçá-la a
tomar os hábitos? O correr dos anos nos deixa desmemoriados.

- Os apuros econômicos também - expressou Laura, e em


seguida adicionou -: Dona Luisa, preciso da sua ajuda.

- O que desejar, querida.

- Preciso que receba Purita nesta casa por algum tempo até que
eu resolva este enredo com meu primo José Camilo. Se levasse a Purita a la
Santísima Trinidad, minhas tias e minha avó Ignacia se encarregariam de
mudar meus planos. Preciso de um lugar afastado, um lugar onde ninguém
a incomode por um tempo, onde possa restabelecer sua saúde e seu espírito.

- Que bastante debilitados os tem, a pobre - demarcou dona


Luisa, e sorriu -. Pura estará muito bem aqui, querida. Eu vou me
encarregar disso. Cuidarei dela como se tratasse de minha própria filha.

Embora às vezes risse de dona Luisa, de seus arrebatamentos,


de seus modos um tanto exagerados, nesse momento Laura a respeitou
profundamente. Sua entrega incondicional, sem maiores questionamentos,
sobressaltou-a. Possivelmente devido a sua ignorância ou à perpétua
distração em que vivia, não reparava nas graves consequências. Como
fosse, Laura a abraçou e lhe agradeceu ao ouvido. Apareceu Emmanuel e
informou que Atanasia se encarregava de assear Pura.

- Pedirei a Wilde que venha vê-la - informou Laura -. Não


estarei tranquila até conhecer sua opinião. Só Emmanuel e eu sabemos que
Pura está aqui, e será conveniente que, ao menos no momento, ninguém
saiba. Podemos confiar em Wilde, ele guardará segredo, sei. Viremos vê-la
com frequência. Vou prover o que ela necessitar. Para começar, enviarei
roupa e coisas de penteadeira. - Laura abriu sua bolsa e pegou várias notas -
: Tome, dona Luisa, para os gastos de Pura.

- Devolva isso a sua bolsa e não seja impertinente. Acredita


que aceitarei dinheiro de você? De maneira nenhuma. Purita é minha
convidada, eu me encarrego dela. Além disso - adicionou com picardia -, o
que vou fazer com o dinheiro que me deixou Avelino? Esta é uma boa
desculpa para gastá-lo.

No quarto, Laura encontrou Pura banhada e trocada. Atanasia


secava seu cabelo com uma toalha. Ao ver sua tia, a moça começou a
chorar. Atanasia desapareceu discretamente. Laura avançou e se ajoelhou

Tradução Lauren Moon


junto da penteadeira. Balbuciou as palavras, soluçando, então Purita
confessou seus temores.

- Blasco voltará para a França, sei, tia. Não permanecerá em


Buenos Aires depois da ameaça de papai. Ele acredita que vou me casar
com Lezica, acredita que nos separaram para sempre. Oxalá eu morresse,
Oxalá eu adoecesse gravemente e morresse. Não quero viver sem Blasco.
Não me olhe assim, tia Laura. Você não conhece a profundidade de meu
sofrimento, pensa que o que digo é fruto de um impulso irracional. Não é
assim. Quero morrer porque sem Blasco não acredito que tenha sentido
viver. Você nunca me entenderia, ninguém pode me entender porque
ninguém amou como eu amo Blasco.

- Claro que lhe entendo, Purita, e porque entendo é que estou


aqui, ao seu lado, lhe ajudando. Ou acredita que virei inimiga de toda a
família, pensando que seu amor por Blasco é um capricho?

Eusebio tinha ordens de entregar a nota nas mãos do jovem


Tejada. Porém, na casa do senhor Lorenzo Rosas, asseguraram-lhe que
Blasco havia partido e que não conheciam seu paradeiro. Laura temeu que
tivesse retornado à Europa e foi ao porto, onde lhe informaram que o
Douce Mer tinha zarpado dez dias atrás com destino a Calais, e que o
próximo navio sairia em uma semana, com destino a Cádiz. Laura se
tranquilizou em parte: ao menos, Blasco não zarparia no momento.

- O jovem Blasco não é muito amigo do doutor Mario Javier? -


sugeriu Eusebio, e Laura se reprovou por não ter pensado nisso antes.

Mario Javier vivia em um quarto localizado atrás da Editora


del Plata. A senhora Riglos não lhe cobrava aluguel e ele tentava mantê-lo
limpo e decente. Na noite em que Blasco, muito bêbado, bateu a sua porta,
Mario não teve coração de dispensá-lo. Inclusive, ajudou-o a entrar - com
muita dificuldade mantinha o equilíbrio - e beber um café. Blasco ficou
adormecido na cadeira sem explicar o motivo de sua bebedeira, embora
Mario Javier, que conhecia seu namorico secreto com a filha de Lynch, não
duvidasse que o mal que o afligia era de amores.

Na manhã seguinte, Blasco confessou que brigou com


Nahueltruz e que tinha abandonado a casa da rua de Cuyo.

- Por que brigaram? - interessou-se Mario Javier.

- Lynch foi reclamar com Nahueltruz de minha relação com


Pura. Nahueltruz se enfureceu, nunca o tinha visto assim.

Tradução Lauren Moon


- Entendo que o cacique Guor e Lynch são sócios em um
negócio de cavalos - observou Mario Javier -. Suponho que esse foi o fim
da sociedade.

- Não sei. De qualquer maneira, não foi o que Nahueltruz


reclamou comigo. Enfureceu-se ao saber que tinha me apaixonado por uma
mulher como Pura Lynch, tão superior a mim. Chamou-a de “menina
mimada, vaidosa e egoísta”. Disse que terminaria por parir meu coração,
que eu só era um brinquedo, um divertimento, que era um estúpido por
permitir que, uma cabeça-de-vento como essa, me usasse sem sentimentos.
Que, ao final, se casaria com Lezica, porque é de sua classe, e que me
deixaria como um traste velho.

- Não me pareceu que a senhorita Lynch fosse do tipo cabeça-


de-vento.

- É obvio que não! - prorrompeu Blasco -. É que Nahueltruz


ainda sangra pela ferida. Depois de tudo, Pura Lynch é a sobrinha preferida
da senhorita Laura. E já sabe como somos os índios: jamais esquecemos
uma afronta.

Laura se apresentou na Editora del Plata e, sem rodeios,


perguntou aonde estava Blasco Tejada. Em silêncio, Mario a guiou até seu
quarto. Através da porta, avisou Blasco que a senhora Riglos desejava vê-
lo. Deram-lhe tempo para se arrumar.

- Senhorita Laura - pronunciou Blasco suavemente -.


Desculpe, senhorita, jamais imaginei que você viria. Só não... Não culpe
Mario, eu lhe pedi que me acolhesse. Ele é um bom amigo.

Laura levantou a mão e Blasco se calou.

- Eu me alegro que esteja aqui. Pura temia que tivesse partido


para a França.

- Partir? Que idéia! Diga-me, como está ela? Dizem que é


mantida trancada, que não come, que jurou se deixar morrer.

- Encontra-se bem. Sob meu amparo. Vim até aqui para lhe
trazer um pouco de serenidade, pois imagino que estes dias foram um
inferno.

- Inferno é pouco. Tantas idéias nefastas cruzaram minha


mente que pensei que enlouqueceria. Vão casá-la, por fim, com Lezica?

Tradução Lauren Moon


- Não se eu puder evitar. Ela ama você, Blasco, e, se for com
você que decidiu passar o resto de sua vida, estou disposta a ajudá-la.
Enfim, a ajudá-los. Espero que esteja à altura da situação. Espero que esteja
disposto a lutar por ela.

- Claro que lutarei por ela. Obrigado por nos ajudar -


murmurou.

- Por que não está na casa de Nahueltruz?

- Brigamos. Não podia continuar vivendo sob o mesmo teto,


depois das coisas que me disse. Não quer que continue minha relação com
sua sobrinha.

- Entendo.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XVI.

Retorno sem glória

O general Roca terminou sua conquista do deserto na


localidade de Carmen de Patagones. Ali embarcou na canhoneira Paraná
que o conduziu a Buenos Aires. Durante a travessia por mar, confinado em
seu beliche por causa dos mal estar estomacal, Roca teve tempo para
pensar. Carente de batalhas épicas que pudesse lembrar, a expedição ao sul
se fechava sem glória. Ele, por exemplo, não tinha topado com um índio
insolente, nem para mostra. Eduardo Racedo e Uriburu ficaram com a pior
parte e tiveram que disputar com os caciques mais bravos, entre eles o
famoso Baigorrita. Sem maiores perdas, quebraram a espinha dorsal dos
ranqueles e os aniquilaram.

O território do sul por fim anexado à República, o general


centrou sua atenção no próximo desafio: conquistar a presidência da Nação.
Às vezes o julgava um disparate. Os portenhos jamais iriam aceitar um
tucumano. O federalismo, que tanto sangue lhe havia custado ao país, era
da boca para fora; os portenhos, encabeçados por personagens como Mitre
e Tejedor, mantinham vivo o espírito unitário e insurgente.

Ao pôr o pé em terra firme, Roca teve a impressão de que


tinha deixado Buenos Aires anos atrás, apesar de terem transcorridos três
meses. Poucas pessoas foram recebê-lo na fria manhã de 8 de julho de 79.
Saudou sua mulher e seus amigos com sincero afeto. Clara comentou que
um suculento café da manhã os aguardava na casa da Rua Suipacha. A
idéia de café quente e saborosas geleias seduziu a todos, em especial ao
coronel Gramajo.

Instalados na sala de jantar, seus amigos crivaram-lhe de


perguntas, cotejaram informação e riram com os conhecidos sarcasmos do
general. Roca, por sua parte, se inteirou dos últimos rumores em matéria
política e social, e percebeu que a fuga da senhorita Lynch, por causa de
um amor mal arranjado, constituía a novidade que ofuscava a epopéia do
ministro da Guerra e Marinha, que tinha acabado com o problema secular
do índio.

Tradução Lauren Moon


- Foi a viúva de Riglos quem orquestrou a fuga - comentou
Madero, seu locador -. É ela quem a mantém escondida.

- Qual foi a reação de José Camilo Lynch? - interessou-se


Gramajo.

- Comenta-se que teve um encontro feroz com a viúva e que


ameaçou recorrer às autoridades se não lhe dissesse onde esconde sua filha
Pura. De todo modo, pelo bem das aparências, até o momento Lynch se
absteve de cumprir com sua ameaça.

- Sabe, Julio - apontou Lucio Mansilla -, a nós, os portenhos,


não nos surpreende a atitude de Laura, quero dizer, da viúva de Riglos.
Entretem-nos, isso por certo, mas não nos surpreende. Estamos habituados
a suas extravagâncias. É uma mulher valente; não se preocupa com os
escândalos.

- Desculpe, coronel Mansilla - interveio Clara Funes -, mas


não considero que a senhora Riglos esteja procedendo com valentia ao
indispor uma filha com seu pai. Parece muito mais uma afronta à moral e à
família.

- Pode-se julgar errado ou acertado o proceder da viúva de


Riglos, senhora Roca, mas deve concordar comigo que é preciso muita
coragem para fazer o que ela fez.

- O que aconteceu exatamente? - falou Roca pela primeira vez,


tratando de mascarar seu interesse com um suspiro.

- Virtualmente arrastada - explicou Clara -, tirou a senhorita


Pura de sua casa, passando por cima da autoridade de sua mãe e de sua avó,
a senhora Celina Montes, que receberam ameaças de toda índole. Levou-a a
um lugar escondido, do qual não se têm notícias e a mantém oculta para
evitar que seu pai possa encontrá-la.

- Algum motivo terá tido para proceder assim - apontou Roca,


e notou a exasperação no rosto de sua mulher.

- Motivo, senhor, não lhe faltava - atravessou Mansilla -. José


Camilo pensava em casar a pobre Pura com Climaco Lezica. E todos
sabemos que Laura sente uma fraqueza por sua sobrinha.

- Lezica? O comerciante? - perguntou Gramajo, e Mansilla


assentiu -. Esse homem é mais velho que eu.

Tradução Lauren Moon


- Laura jurou - continuou Mansilla - (e repetirei textualmente
suas palavras) que só sobre seu cadáver casariam Pura com essa
quinquilharia que cheira a baú de porão e que é mais enfadonho que dançar
com um irmão.

Roca lançou uma gargalhada. Certamente, à viúva de Riglos


não lhe faltava coragem. Contra toda lógica, desejava reencontrar-se com
ela, e não contavam as noites de insônia, durante a expedição, nas quais
tinha decidido que, quando voltasse, não voltaria a convocá-la à casa da
Rua Chavango.

O desfile de personalidades políticas e amigos durou todo o


dia. Quase ao anoitecer, Roca achou um interlúdio para trancar-se em seu
escritório e estudar a documentação e a correspondência que se
acumularam ao longo de três meses. A primeira impressão de desapego
começava a desvanecer-se; a familiaridade e a confiança tomavam seu
lugar. Inclusive, a idéia de postular-se como presidente não era tão
desatinada, depois das reiteradas amostras de apoio que havia recebido ao
longo da jornada. Para começar, seu círculo mais íntimo organizava um
banquete no Club del Progreso, onde se anunciaria sua candidatura.

Roca analisou a correspondência, afastou a que entregaria a


seus secretários do ministério e se concentrou naqueles que deveria
responder de punho próprio. Além das de seus irmãos Alejandro e Ataliva,
havia cartas de seu concunhado Juárez Celman, de velhos camaradas
militares e de seu sogro. Ao revolver a gaveta em busca do abridor de
cartas, chamou sua atenção um envelope amarelo com uma caligrafia
particularmente ruim: a do coronel Baigorria. Confirmou que se tratava da
carta que tinha procurado, sem sucesso, antes de partir para o sul, onde o
coronel falava sobre os ranqueles. Datada de San Luis, em 24 de abril de
1875, a carta começava com uma afetuosa saudação: “Meu estimado
general Roca”. Apesar da caligrafia e dos erros ortográficos, que não
demoraram a aparecer, Roca se ajeitou em sua poltrona e leu com interesse.

~0~

O escândalo da fuga da senhorita Pura Lynch adquiriu viés de


novela, quando os jornais começaram a tratar do assunto. A cidade se
dividia entre aqueles que apoiavam Laura Riglos, os “lauristas”, e os que
tomavam partido pelo pai da moça, os “lynebistas”. Laura achava o enredo
muito divertido e revigorante. Quem verdadeiramente sofria era sua prima
Eugenia Victoria. Terminou por ceder e, em segredo, a levou à quinta dos
del Solar.

Tradução Lauren Moon


Ante o assombro de todos, a avó Ignacia se manteve à margem
da disputa. Pesavam-lhe os anos e o temor a Laura, que se mostrava mais
desafiante que de costume. Agradecia a abundância em que vivia e só se
interessava por suas roseiras e jasmins. Tia Soledad e tia Dolores, ao
contrário, adotaram a atitude beligerante que as caracterizava. Julgavam a
intervenção de Laura “uma blasfêmia”, toda vez que seu procedimento
induzia Purita a desrespeitar o quarto mandamento. Segundo Dolores, a
mais enfurecida, Satanás operava por intermédio de Laura.

Na casa de La Santísima Trinidad não faltavam discussões,


caras fechadas, olhares atravessados e comentários mal intencionados.
Laura comia sozinha em seu boudoir, às vezes, em companhia do avô
Francisco, às vezes, na de sua mãe, que, consciente da teimosia de sua
filha, evitava o assunto de Pura e se referia principalmente ao seu
casamento com Pereda. Tia Carolita se proclamava uma “laurista”,
convencida de que o casamento era um sacramento que se sublimava
exclusivamente no amor dos cônjuges. Casamentos arrumados, como o de
Felicita Guerrero e Martín de Álzaga, serviam como exemplo que não
deveria ser imitado. A teimosia de Lynch, entretanto, não conhecia limites,
e de nada valiam os oferecimentos de ajuda econômica por parte de Laura,
que só conseguiam ofendê-lo e obstiná-lo.

- Prefere vender sua filha ao melhor proponente antes de


aceitar a ajuda que lhe ofereço.

- Como se atreve. Não vendo minha filha ao melhor


proponente. Climaco Lezica é um bom homem que assegurará o futuro e
bem-estar de Pura. Prefiro estar morto a vê-la casada com um pobre diabo.

- Minha prima Eugenia Victoria se casou com o homem mais


rico de Buenos Aires e agora passa grandes penúrias econômicas. Quem
pode saber o que o futuro nos proporciona? O senhor Tejeda é um jovem
inteligente, cheio de aspirações. Nem sempre será o pobre diabo que é
agora.

- Sei que quer imensamente a meus filhos, mas eles são meus
filhos, Laura. É meu poder decidir a respeito de seu futuro. Não quero que
se intrometa. Deveria engendrar seus próprios filhos e deixar em paz os
filhos dos outros - adicionou Lynch.

- Não me incomodo que me machuque, José Camilo.

Lynch golpeou a escrivaninha e bramou:

Tradução Lauren Moon


- Caralho, Laura! Às vezes desejo que você seja homem para
tirar a golpes o que não consigo com palavras e ameaças.

- Embora me golpeie, não conseguirá nada de mim. Protegerei


Pura até as últimas consequências. Amo seus filhos, José Camilo, porque
são os filhos de Eugenia Victoria. - Laura também acompanhou com um
golpe o que pronunciou a seguir -: Revolta-me sua atitude quando, mais de
quinze anos atrás, quase perde a mulher que ama por uma atitude parecida
com a que agora está obstinado a fazer com sua filha Pura. Não se lembra
do quanto sofreu? Nada lembra seu padecimento e o de Eugenia Victoria?

- Por ideais românticos baratos não permitirei que minha filha


mais velha seja a mulher de um dom Ninguém. Quem é este Blasco
Tejada? O que sabemos dele? Quem são seus pais? De que família
procede? Poderia ser o filho bastardo de alguma perdida por tudo o que
sabemos.

- É o tutelado do senhor Rosas. Brindou-lhe uma educação


superior a de seus próprios filhos. Parece muito à vontade com o senhor
Rosas. Isso não conta?

- Eu faço negócios com o senhor Rosas, admiro o senhor


Rosas, respeito-o também, mas sei que não pertence a minha classe e que
jamais o considerarei um amigo.

Graças aos bons ofícios de tia Carolita, Blasco vivia em uma


pensão que pertencia aos jesuítas, uma construção antiga, algo lúgubre, mas
bem mantida, onde anos atrás tinha funcionado a Casa de las
Temporalidades. O aluguel era uma ninharia e o quarto estava limpo, sem
insetos nem roedores. Duas vezes por semana, Maria Pancha recolhia os
lençóis e a roupa suja de Blasco e as devolvia lavadas e engomadas. Não
lhe faltava comida, que Eusebio, o chofer, levava em uma cesta todas as
noites. Blasco pagava o aluguel e outros gastos com o salário que ganhava
na Editora del Plata, onde atuava como redator de La Aurora; dado seu
domínio em francês, Mario Javier também tinha lhe atribuído a tradução e
comentários dos artigos dos jornais mais importantes de Paris que
chegavam frequentemente nos navios a vapor. Blasco não tinha tempo para
se aborrecer e, apesar de seu interesse pelas leis não ter desaparecido,
achava fascinante esse trabalho. Afiançava sua amizade com Mario Javier
e com o outro empregado, Ciro Alfano, encarregado de lhe ensinar os
segredos do ofício. Assim não se sentia tão sozinho.

Tradução Lauren Moon


Sua ansiedade por saber de Pura o perturbava, e as notícias que
lhe trazia a senhorita Laura nunca eram suficientes. As cartas entre os
apaixonados estavam proibidas, e Laura teve que lhe explicar o porquê.

- Segundo meu advogado, se a polícia chegasse a encontrar em


seu poder uma carta de Pura. iria considerar prova suficiente de que sabe
onde se esconde minha sobrinha e iria prendê-lo, sem questionar, por ser
ela uma menor. Seria um modo eficaz de chantagear Pura.

- E você, senhorita Laura? Não corre perigo de o senhor Lynch


a mandar prender? Conforme entendo, várias pessoas foram testemunhas
de que você levou Pura da casa de seu pai.

- Meu primo, o senhor Lynch, tem pavor a escândalo. Não o


fará, não se preocupe. Uma coisa é encarcerar um jovem sem contatos, nem
dinheiro como você e outra coisa é medir forças com a viúva de Riglos,
fique tranquilo.

Blasco também entendia a imprudência de aventurar-se à


quinta dos del Solar; não obstante, cada manhã, quando despertava,
custava-lhe refrear o ímpeto que o atacava de correr pela Rua Larga até
Barracas.

- Meu primo José Camilo está lhe seguindo - interpôs Laura -.


Faz dias que Eusebio vê um homem que ronda a editora e a pensão.

- Não segue você também, senhorita Laura?

- É obvio que me segue. A mim, a Maria Pancha e ao Eusebio.


Mas sou muito ardilosa para cair em uma armadilha tão tosca.

- Quem vai ver Pura, então?

- Sua avó, dona Carmen. Já se fazia de espiã nas épocas do


coronel Mansilla. Parece não ter esquecido o métier.

Apesar de sua mente vagar na maior parte por outros roteiros,


Blasco nunca abandonava por completo a lembrança de Nahueltruz. Sentia
falta dele, sobre tudo as conversa depois de jantar, enquanto bebiam café e
licores, quando fazia sentir que o considerava um homem; para trás tinha
ficado o menino do colégio no Fontainebleau. Inclusive sentia falta de seus
frequentes silêncios, que eram mais uma melancolia natural, que uma
descortesia estudada. Com Nahueltruz, sempre se sentia à vontade. Depois
de Pura, era a quem mais amava.

Tradução Lauren Moon


Uma tarde, Nahueltruz se apresentou na editora. Saudou
afetuosamente Mario Javier e lhe perguntou por seus pais. Saudou também
Ciro Alfano, que se mostrou intimidado ante a figura de colosso que lhe
estendia uma mão grande como uma prensa.

- Boa tarde, Blasco - disse a seguir, e se aproximou de seu


escritório.

- Boa tarde - respondeu o moço.

Mario Javier pediu a Ciro que lhes alcançasse uma xícara de


mate cozido e acomodou uma cadeira junto à de Nahueltruz. Fazia um
esforço para não chamá-lo de cacique e para evitar os assuntos e as pessoas
do passado. Falaram principalmente do jornal. Blasco, que permanecia
calado, dedicou-se a estudar Nahueltruz, a quem encontrou envelhecido e
cansado, como se esses dias de separação tivessem se convertido em anos.
Definitivamente, suas têmporas estavam mais grisalhas, suas olheiras mais
avultadas e o cenho da testa mais acentuado.

- Venho de casa do senador Cambaceres - pronunciou Guor -.


Disse que, no momento, é impossível conseguir a permissão para visitar
Martín García.

Tanto Mario Javier como Blasco sabiam que a visita à ilha


significava a única possibilidade de voltar a ver Epumer, o tio mais querido
de Nahueltruz.

- Como estão as coisas - prosseguiu -, com a expedição de


Roca recentemente terminada, preferem esperar que se acalme o vespeiro
antes de dar rédea solta com os prisioneiros. Como se pudessem fazer algo,
os pobres diabos! - exclamou, e parte de seu eterno rancor despontou em
seus olhos cinza, conferindo-lhes uma vivacidade ausente até esse
momento.

- Arruinou-se seu negócio de cavalos com o senhor Lynch? -


perguntou Blasco à queima ropa, e Nahueltruz levou uns segundos
responder.

- Não é por isso que me oponho a que se relacione com sua


filha.

- Arruinou-se?

Tradução Lauren Moon


- Não, não se arruinou. Lynch está tão necessitado de dinheiro
que continuou adiante, apesar de tudo. Ainda mais agora que Lezica
ameaça retirar sua parte do capital se o casamento não se concretizar.
Ofereci pôr o dinheiro que faltar.

- Então - falou Blasco -, o casamento de Pura com esse homem


é por dinheiro.

- Os casamentos destas pessoas sempre são por dinheiro. Não


quero que se machuque, Blasco - expressou Guor com a feição e a voz
repentinamente mitigados -. Quero que volte para casa, que esteja conosco,
sua família.

- Não. Estou bem onde estou. Eu gosto de ganhar meu


dinheiro. Eu gosto desta independência que de outro modo não teria. Já sou
um homem, Lorenzo, e se quiser desposar Pura Lynch devo aprender a
ganhar o pão.

Laura entrou na imprensa e saudou Ciro Alfano.

- Senhora Riglos! - exclamou o moço, que sofria uma


desordem cada vez que a formosa viúva aparecia em suafrente -. Trouxe o
último capítulo de La gente de los carrizos? É um êxito! A tiragem
aumentou imensamente. As assinaturas também. Pode acreditar que as
senhoras enviam suas criadas para assinarem? Ocultam seu interesse no
folhetim, mas fica evidente. Se não, como mulheres analfabetas
assinariam? Devo lhe confessar, senhora, que eu mesmo sou um grande
admirador dele.

Ao precaver-se da presença de Nahueltruz, Laura deixou de


sorrir. Nahueltruz, por sua vez, pôs-se de pé e a olhava. Laura também o
olhou e lhe pareceu que o último encontro nos Lynch tinha ocorrido
décadas atrás. Entregou o manuscrito a Ciro, disse “boa tarde” e partiu para
a rua. Guor saiu atrás dela, desconcertando Ciro, preocupando Mario Javier
e Blasco. Laura caminhava a passos rápidos; Maria Pancha a seguia com
uma cesta sob o braço.

- Senhora Riglos! - chamou, e cortou a distância à carreira.

Era a primeira vez em mais de seis anos que Nahueltruz topava


com a negra Maria Pancha. O tempo não corria para essa mulher, parecia
igual, inclusive sua hostilidade era a mesma. Tirou seu chapéu e a saudou
com um breve movimento de cabeça. Em seguida se dirigiu a Laura,
radiante em seu vestido de seda rosa com listras brancas. A caminhada

Tradução Lauren Moon


veloz tinha colorido suas bochechas. Viu que estava saudável. Parecia
mentira que semanas atrás se fofocou que sofria de consunção.

- Laura - disse em voz baixa.

- Senhor Rosas? - replicou ela, ocultando seu olhar atrás do


guarda-sol.

- Sabe que não estou de acordo com esta relação entre a


senhorita Lynch e Blasco...

- Não me importa - assegurou, e teve intenção de recomeçar a


andar, mas Guor suplicou que esperasse.

- Escute-me, por favor.

Laura correu seu guarda-sol e o olhou direto nos olhos.

- Tenho pressa, senhor Rosas. Fale de uma vez.

- Não estou de acordo, é verdade, e minhas razões as conhece


de cor. Os Lynch destroçarão Blasco antes de permitir que se aproxime de
Pura. E sabe que farei o impossível para preservá-lo desse calvário. Não fiz
dele o que fiz para que sua sobrinha o destrua por um capricho de menina
puritana. De qualquer maneira, quero agradecer o que faz por ele. Eduarda
me disse que a Editora del Plata é de sua propriedade, e também me disse
que ajuda Blasco em muitas outras coisas.

- Por exemplo - apontou Maria Pancha -, nesta cesta levo a sua


pensão roupa lavada e engomada com minhas próprias mãos, que não é
pouco, senhor Rosas.

- Maria Pancha, por favor - interveio Laura, mas a mulher não


tinha pensado em se calar.

- E Eusebio, o chofer do senhor Francisco, leva-lhe todas as


noites um prato de comida quente. Uma porção da mesma comida que se
serve na mesa de La Santísima Trinidad, senhor Rosas.

- Por que o faz, Laura?

- Por acaso não escutou o que se murmura? - continuou Maria


Pancha -. Dizem que o faz por Pura. Outros insinuam que se trata
simplesmente do gosto de Laura pelo escândalo. Inclusive há quem

Tradução Lauren Moon


assegure que está apaixonada pelo senhor Lezica. A verdadeira razão é
outra, e está secretamente guardada.

- Por quê? - insistiu Guor.

- Por quê? - repetiu Laura com aborrecimento -. Porque se


alguém tivesse me ajudado seis anos atrás em Rio Cuarto, quando me
encontrava tão só e desesperada, outra teria sido minha história. Mas isso já
não tem importância. Boa tarde.

A hostilidade de Laura o deixou sem forças e, enquanto ela se


afastava, ele permaneceu quieto no meio da calçada, com o olhar fixo em
sua figura. Sobressaltou-se com a vontade de lhe perguntar e dizer muitas
coisas, mas não se moveu nem houve a tentativa de segui-la ou chamá-la.
Lembrou-se, como frequentemente o fazia, das palavras que Ventura
Monterosa lhe disse antes de partir. Que Laura o amava, que o tinha amado
antes e que o amaria sempre.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XVII.

Déjà vu55

Virginiana Parral jamais teria aprendido a ler e escrever, se sua


vida não tivesse dado uma virada radical na sesta em que o patrão a viu
banhar-se na lagoa e a tomou sem maiores explicações. Ela estava com
quinze anos quando María Esther, o primeiro fruto de seu namorico com o
patrão, nasceu. Virginiana deixou o rancho de seu pai, mais um peão da
estância, e se mudou para a casa grande, onde servia ao patrão na mesa e na
cama.

Além de possuir uma beleza agressiva e exótica, com seus


olhos de tigresa e uma pele acobreada que brilhava à luz do sol e da lua,
Virginiana era perspicaz e rápida de entendimento. Com paciência, usando
as artimanhas que seduzem a qualquer homem vaidoso, ganhou autoridade
na casa grande, deslocou a mulher do capataz e se converteu na patroa de
quem tinha sido seus pares. Agora a chamavam de “senhora”, e lhe temiam.

O patrão agradou-se da avidez de Virginiana e pediu ao padre


Epifanio, o padre de Matanza, povoado onde se encontrava seu campo, que
lhe ensinasse a ler e escrever. A moça não só aprendeu a ler e a escrever,
mas sim tomou gosto pela aritmética, e em pouco tempo se encarregou das
contas da estância, tarefa que chateava seu patrão, mais afeto aos negócios
da cidade, que a encher as botas com esterco.

Foi na segunda menina que Virginiana entendeu que o patrão a


encheria de filhos, que jamais levariam seu sobrenome. Terminariam por
converter-se em peões, respeitados e com bons salários, sim, mas nada a
mais. Quanto às meninas, o patrão já fazia planos para enviá-las para
estudar nos conventos na cidade, onde, sem dúvida, pretendia que
passassem o resto de seus dias. Uma noite, Virginiana lhe negou seus
favores e se entrincheirou em um quarto, que abandonou quando lhe
confirmaram que o patrão tinha partido para a cidade feito uma fúria.
Virginiana deixou de ocupar-se dos assuntos do campo; as contas se
acumulavam, os livros de contabilidade juntavam pó nas prateleiras com as
entradas vazias, os animais se dispersavam nas propriedades vizinhas e os
peões não recebiam o pagamento; também negligenciou os trabalhos

55
Forma de ilusão da memória que leva o indivíduo a crer já ter visto ou já ter vivido alguma coisa ou situação de fato
desconhecida ou nova para si (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


domésticos e proibiu que outros os fizessem. De volta, o patrão se deparou
com um transtorno.

- Virginiana, o que está procurando? - perguntou sem maior


autoridade.

- Que me converta em sua mulher, patrão.

- Já é minha mulher.

- Sua mulher ante Deus, patrão, e que meus filhos levem seu
sobrenome.

O homem meditou uns segundos antes de prometer:

- Quando me der um filho varão, vou convertê-la em minha


esposa.

Virginiana considerou um trato justo. Em seu devido tempo,


deu-lhe um varão, e, por insistência dela, o menino levou o nome do pai:
Climaco Lezica.

Casou-os o padre Epifanio, depois da quarentena de Virginiana


em uma cerimônia que assistiram poucas pessoas. A vida do casamento não
distava da do concubinato que tinham levado por mais de cinco anos. Ele
visitava “la Matanza” quando os negócios na cidade permitiam, enquanto
ela continuava encarregada do campo, da casa grande e dos meninos.
Somente que agora Virginiana ostentava um vistoso anel na mão esquerda
e se fazia chamar “senhora Lezica”.

Frequentemente, os peões que viajavam a Buenos Aires


traziam jornais que a Virginiana gostava de ler. Em especial, havia se
aficionado a La Aurora, com folhetins cativantes escritos por uma mulher,
uma tal Laura Escalante. Ali soube da animação entre “lauristas” e
“lynchistas”. O jornal escorregou de suas mãos quando chegou ao
parágrafo que dizia que Climaco Lezica era o protagonista da confusão.

~0~

O dia começou com a disputa habitual com tia Dolores, que


adotava o papel de ministra plenipotenciária de José Camilo Lynch e
Climaco Lezica em La Santísima Trinidad. Laura terminou por ordenar que
arrumasse suas coisas e se partisse antes do meio-dia.

Tradução Lauren Moon


- Esta é a casa de meus pais - interpôs Dolores -, não vai me
tirar daqui.

- Equivoca-se. Era a casa de seus pais. Está em meu nome


desde que paguei a hipoteca que a pesava sobre ela. Agora a quero fora
daqui antes do meio-dia! Laura nunca tinha visto seu avô Francisco chorar.
O ancião se apresentou em seu quarto e rogou misericórdia para sua filha
Doloritas, uma mulher, disse, amargurada por conta dos golpes recebidos
no passado.

- Eu também fui duramente golpeada pela vida, avô.

- Mas seu espírito, Laurita - interpôs Francisco Montes -, é


superior ao dela. Por isso, porque conheço sua natureza, é que apelo a sua
piedade. Não afaste Dolores desta casa, estaria perdida sem nós, inclusive
sem você.

- Não me julgue um espírito superior para me convencer de


não expulsar de minha própria casa, uma mulher que sempre me hostilizou.
Não sou tão benévola nem perfeita. Pede muito. Suportei o bastante.

- Sei. Teve paciência e foi generosa. A verdade é, querida, que


eu não poderia viver aqui se expulsasse uma de minhas filhas. Sabe?
Permiti que sua avó governasse suas vidas, inclusive a minha, e os frutos
estão à vista. Possivelmente seja muito tarde, mas quero protegê-las.

As bochechas de pergaminho de Francisco brilharam de


lágrimas, e Laura não teve coração para negar o que ele pedia. Ajoelhou-se
frente a ele, retirou-lhe as mãos do rosto e o secou com seu lenço.

- Tia Dolores pode ficar, avô. Mas não volte a chorar. Você
sabe, nós meninos não gostamos de ver os adultos chorarem.

Mais tarde, Laura topou com Dolores no corredor.

- Não confunda minha misericórdia, não é para com você, mas


para com meu avô Francisco. Pelo bem de todos, não volte a cruzar meu
caminho.

Laura decidiu deixar para trás a briga e esquecer as lágrimas


de seu avô. Nada arruinaría o entusiasmo com o qual aguardava a noitada56
no Club del Progreso essa noite. Precisava se preparar. A sociedade

56
A autora usa o termo velada (passar a noite acordado, vigília), que não tem correspondente adequado na língua portuguesa.
Seria uma Soirée, que também não existe no português, daí a tradução para noitada. (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


aguardava com expectativa sua aparição, e ela se propôs a sobressair.
Excitava-a enfrentar o antagonismo dos “lynchistas”, e já desfrutava das
trocas carregadas de ironias e sutilezas. Ansiava conhecer a opinião de
Avellaneda, de Sarmiento, ah, em especial a de Sarmiento!, de Estanislao
Zeballos, que por certo a atacaria, de Eduardo Wilde, que, provavelmente,
mostrar-se-ia ambíguo.

A presença de Roca outorgaria à noite a intriga que a


converteria em inesquecível. A ideia do reencontro lhe provocava
sentimentos contraditórios. Por um lado, o sério general ainda a seduzia.
Por outro, Clara Funes e seus quatro filhos se tornavam obstáculos pesados
como correntes. No fundo, inclusive, apesar dela e de seus esforços, ainda
estava Nahueltruz Guor.

Eduarda Mansilla tinha-lhe advertido que evitasse Climaco


Lezica durante a festa. Diziam que andava feito louco e que culpava
abertamente à viúva de Riglos por influenciar no humor de sua prometida.
A teimosia de Lezica era surpreendente. Sua falta de orgulho, também. Não
parecia importuná-lo o papel de noivo desprezado, nem ser objeto de
brincadeiras pesadas e comentários sardônicos. Os jornais obtinham
abundantes lucros com o enredo, e até publicavam folhetins baseados na
história de Lezica e da senhorita Lynch. O mais popular era o do El
Mosquito, entitulado Da velhice, à varíola.

Laura começava a inquietar-se com a tenacidade de Lezica e a


intransigência de seu primo José Camilo. Até quando deveria esconder
Purita? Embora a paciência da moça fosse louvável, Laura sabia que não
manteria enjaulado um espírito inquieto como o dela por muito tempo.
Inclusive Blasco se impacientava, e Laura temia que ele se precipitasse em
uma decisão, que o prejudicaria irremediavelmente.

Escolhia entre seus trajes para a festa no Club del Progreso,


quando Maria Pancha informou que a senhora Lezica a aguardava na sala.

- A senhora Lezica? - estranhou Laura -. Por acaso a mãe de


Lezica não morreu no ano passado?

- Que mãe, nem mãe! - impacientou-se a criada -. A senhora


Lezica -insistiu -, a esposa, não a mãe.

Era difícil calcular a idade da senhora Lezica. Sim, deduzia-se


com facilidade sua condição humilde; sua beleza, entretanto, era inegável;
para poucos haveria passado inadvertida. O vestido que usava, inadequado

Tradução Lauren Moon


para a cidade, delatava sua origem campestre. Acompanhavam-na Blasco
Tejeda, Mario Javier e um sacerdote de batina poeirenta e chapéu gasto.

Mario fez as apresentações.

- Senhora Riglos - disse -, esta senhora se apresentou na


Editora del Plata procurando por você. Diz ser a esposa do senhor Climaco
Lezica.

- Sou a esposa do senhor Climaco Lezica - apontou a mulher


com uma firmeza no tom e uma decisão no gesto que refutaram qualquer
aparência campestre -. O padre Epifanio é testemunha de que o senhor
Lezica e eu estamos casados como Deus manda.

Laura indicou o sofá e todos se sentaram. À exceção de


Blasco, que sacudia as pernas, o resto guardava compostura.

- Por que recorre a mim? - quis saber Laura.

- Eu leio seus folhetins - explicou Virginiana.

- Esse não é motivo suficiente - objetou Laura -. Por que não


falar com o senhor Lezica.

- Será o último a quem recorrerei. Evidentemente, ele me quer


fora deste assunto.

- Compreendo.

- Se o senhor Lezica contraísse casamento com sua sobrinha -


retomou Virginiana -, entendo que é sua sobrinha - Laura assentiu -. Pois
bem, se ele a desposasse, converteria-se em um bígamo e sua sobrinha, em
uma jovem desonrada.

- É uma acusação muito grave - assinalou Laura.

- Acusação que estamos a ponto de provar - interveio o padre


Epifanio -. Contra as regras, viajei com o livro paroquial. Ali está
registrado por meu próprio punho e letra o casamento entre Virginiana -
disse, assinalando à mulher - e o senhor Lezica.

- Por que recorrer a mim? - insistiu Laura.

- Conforme li nos jornais - disse Virginiana -, você parece tão


interessada como eu em transtornar os planos de meu marido. Estou-lhe
Tradução Lauren Moon
pedindo ajuda, senhora Riglos - expressou, e seu novo acento revelou o
desespero que, até o momento, cuidou-se de demonstrar -. Acabo de chegar
de “La Matanza”, nunca tinha estado na cidade, não conheço ninguém.
Você, ao contrário, é conhecida e pode chegar a lugares que para mim estão
vedados. Vai me ajudar?

- Têm filhos? - perguntou Laura.

- Sim, três.

- Onde passarão a noite?

- Vamos nos hospedar no convento das Clarisas.

- Bem.

Ninguém falou por alguns segundos. Laura permaneceu


pensativa, outros aguardando seu veredicto. Imitaram-na quando ficou de
pé.

- Amanhã irei visitar o convento - informou Laura -.


Possivelmente tenha notícias para você. Agora pedirei a meu chofer que os
deixem até as Clarisas.

Maria Pancha acompanhou Virginiana e o padre Epifanio à


porta, enquanto Laura meditava com a vista no chão e a mão sobre o
queixo. Blasco e Mario Javier não tiravam os olhos de cima dela.

- Maria Pancha - chamou Laura -, que José Pedro prepare a


vitória. Farei uma visita a Lezica.

- Vamos acompanhá-la - ofereceu Blasco, mas Laura


assegurou que não era necessário.

Ordenou-lhes, ao contrário, que retornassem à editora e


prometeu notícias, logo que terminasse sua entrevista com Lezica. Blasco
partiu consumido em vontades. No seu entendimento, uma luz tinha se
acendido e começava a vislumbrar uma saída daquele equívoco.

Na loja, um empregado a conduziu ao salão primorosamente


decorado onde Climaco as recebeu meses atrás. Laura sentou no mesmo
confidente e aguardou com calma. Lezica abriu a cortina e se plantou na
frente dela com ar altivo. Inclinou levemente a cabeça antes de tomar
assento.

Tradução Lauren Moon


- Suponho que não são as mercadorias de minha loja que
motivaram sua visita, senhora Riglos.

- De maneira alguma, senhor Lezica.

- Então, devo imaginar que se trata da senhorita Lynch, único


tema possível entre você e eu desde que decidiu escondê-la para evitar
nosso casamento.

- Não - disse Laura, e ficou de pé; Lezica a imitou rapidamente


-. Não se trata de Pura, mas sim de Virginiana Parral, sua esposa.

Laura cuidou de pronunciar o nome com clareza. Seu olhar


atento à reação de Lezica advertiu o efeito devastador da notícia. O rosto
habitualmente cinzento de Climaco perdeu todo vestígio de vitalidade e
seus olhos adotaram a tonalidade aquosa de um morto. Por um instante,
Laura temeu que se chateasse. Lezica, entretanto, conseguiu articular.

- Não sei do que me fala.

- Oh, sim, sabe bem do que estou falando. Estou me referindo


a essa senhora a quem você converteu em sua esposa no campo e com a
qual tem três filhos.

- É uma pérfida! - explodiu Lezica, e Laura se moveu para trás


-. Inventar semelhante calúnia para evitar meu casamento com a senhorita
Lynch!

- O padre Epifanio, que acompanhou a sua esposa à cidade, diz


estar em condição de provar esta afirmação, que você com tanta veemência
se apressa em desprezar. Pense bem, senhor Lezica, repasse suas
lembranças; possivelmente tenha esquecido que desposou outra mulher
anos atrás. A memória costuma falhar nos homens de idade avançada.

Lezica se adiantou com a clara intenção de dar-lhe um golpe,


mas Laura escapuliu com agilidade.

- Senhor Lezica! - pronunciou -. Não perca o senhor seu


último resto de honra batendo em uma mulher.

A advertência de Laura o deteve em seco. Ficou


contemplando-a fixamente, primeiro com ira, depois com um gesto que
evidenciava sua derrota. Deixou-se cair na otomana e levou as mãos ao
rosto.

Tradução Lauren Moon


- Dou-lhe até manhã de tarde para comunicar ao meu primo
José Camilo que você é um homem casado. Do contrário, serei eu a fazê-lo.
Nesse caso, pedirei a Virginiana e ao padre Epifanio (que trouxe o livro
paroquial como prova de seu casamento) que me acompanhem aos Lynch e
dêem fé de minhas palavras.

Lezica não percebeu que Laura deixava a sala. Quando


levantou o rosto para suplicar, a viúva de Riglos já não estava lá. A essa
altura, pouco importava o casamento com Pura Lynch, apesar de só Deus
saber quanto a desejava. Uma ansiedade, que nem sequer tinha
experimentado com Virginiana, dominava-o desde que reparou em Pura
como mulher. “Vou fazê-la minha esposa”, jurou-se, e esteve a ponto de
conseguir. Então, Laura Escalante interveio e não só roubou sua ilusão de
possuir Pura Lynch, como agora ameaçava a posição que o sobrenome
Lezica se tinha granjeado desde os tempos dos vice-reis.

- Márquez! - vociferou.

O empregado apareceu na sala.

- Diga, senhor.

- Cuide da loja. Parto e não retornarei até manhã.

- Sim, senhor.

Lezica colocou seu chapéu e o casaco e saiu à rua. Duvidou


por um momento, mas imediatamente caminhou para a confeitaria de
Baldraco. Precisava de um gole.

~0~

Eusebio pegou pela Rua de La Victoria e deteve os cavalos na


esquina com a do Peru, à porta do Club del Progreso. Atrás do Landau da
viúva de Riglos aguardavam umas três dezenas de carros. A festa seria
concorrida. Eusebio deixou a boleia, abriu a portinhola, desdobrou o degrau
e ajudou sua patroa a descer.

No ingresso, recebeu-a um empregado de libré vermelho e


dourado que, depois de verificar seu nome na lista, indicou-lhe a escada
que conduzia ao salão de festas. Ao melhor estilo francês, abundante em
reminiscências versallescas, o salão estava iluminado com aranhas de
bronze e uma vintena de braços distribuídos sobre espelhos na parede. A
profusão de luz reverberava no brilho do parquet e no dourado a folha de

Tradução Lauren Moon


ouro do teto. Laura não conhecia Paris, mas disse a si mesma que esse
lugar não poderia distar dos tão famoso salões daquela cidade.

Ao entrar no salão, monopolizou a atenção da concorrência.


Sobreveio um silêncio seguido de um murmúrio que pareceu envolvê-la e
sufocá-la. Tia Carolita e seus sobrinhos Emmanuel e Ramiro Unzué saíram
ao seu encontro, e Laura os saudou com alívio: de repente, suas presunções
se desvaneceram. Mais tarde chegou Magdalena do braço dado com seu
prometido, o doutor Nazario Pereda, e também os Mansilla, e Eduardo
Wilde, e se aproximou Sarmiento junto com sua filha Faustina, e também
sua amante, Aurelia Vélez Sarsfield, e Laura se sentiu entre amigos.

Esmeralda Balbastro chegou com sua cunhada, María del Pilar


Montes, e seu marido, Demetrio Sastre, que, assim como seu concunhado,
Bonifacio Unzué, apoiavam a candidatura de Roca. Pouco depois apareceu
Guor na companhia de Armand Beaumont e sua esposa, Saulina
Monterosa. Até o momento, nada se sabia do casal Lynch, e a maioria
apostava que não se aventurariam com o escândalo de Pura nas costas.

Com a escolha de um vestido em intenso azul França,


Esmeralda Balbastro tinha demonstrado sua perícia em ressaltar o incomum
azul turquesa de seus olhos. Muito a seu pesar, Laura teve que admitir uma
vez mais que Esmeralda era uma das mais bonitas da festa, que seu sorriso
cativava e que seus olhos, apesar da intensidade da cor, olhavam com
doçura; toda ela despedia um halo de luz e calor difícil de se opor.

Em contraste, Guor apresentava um aspecto sombrio. Parecia


ter envelhecido nas últimas semanas e, embora à distância desaparecessem
as rugas, que se insinuavam em torno de seus olhos, Laura sabia que ali
estavam, delatando sua idade ou, melhor dizendo, seus problemas. O
afastamento de Blasco tinha sido um duro golpe, somado à negativa para
visitar seu tio Epumer na ilha Martín García; isto havia terminado por
devastá-lo. Blasco tinha-lhe contado que, apesar da oficiosa intervenção do
senador Cambaceres, o Ministério do Interior negava a permissão.
Rumores de mau trato e condições sub-humanas tornavam angustiante a
espera.

Laura desviou o olhar e prestou atenção a Sarmiento.

- Os mitristas57, inclusive uma parte do autonomismo, não


permitirão que o Barbilindo seja presidente. Apoiarão esse cão velho e

57
Que apoiavam Bartolomeu Mitre (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


rosnador - disse, referindo-se a Carlos Tejedor - antes que permitir que um
tucumano se aproprie da Casa de Governo.

- Não se deixe enganar, doutor - advertiu Estanislao Zeballos,


que poucos minutos antes se tinha somado ao grupo -. Todo o interior apóia
o general Roca. Seu concunhado, o doutor Juárez Celman, é um homem
hábil que soube tirar proveito do êxito da campanha ao deserto. Cobriu uma
rede de contenção que não será fácil romper. Dizem que, à exceção de
Corrientes, os governadores das demais províncias respondem a ele.

- Eu não gosto do discurso do governador Tejedor - interveio


Laura -. Assusta-me quando fala da formação de uma tropa portenha e
quando expõe seus idéias tão extremistas. Não me resta dúvida de que seria
capaz de fomentar a guerra civil para instalar-se no poder. O bairrismo
portenho que deseja exacerbar é um caminho perigoso, poderia quebrar a
unidade nacional que tanto sangue custou ao país. Pensei que, em uma
campanha política, seriam outros os méritos a levar em conta e não o feito
de que o candidato seja um portenho recalcitrante ou um homem do
interior. Acreditei que, depois de Pavón, esse era um ponto superado entre
os argentinos.

- São óbvias as razões da senhora Riglos em apoiar o


Barbilindo —expressou Sarmiento, e seus lábios grossos se curvaram em
um sorriso oculto. Eduardo Wilde pigarreou, Lucio Mansilla levantou as
sobrancelhas em um gesto de assombro e Estanislao Zeballos sorriu com
ironia, o que incomodou a Laura sobremaneira.

- E no que radica o “óbvio”? - impacientou-se.

- Como, querida senhora! Em que você é cordovesa, uma


mulher do interior, que prefere outro do interior na poltrona de dom
Bernardino antes que um portenho recalcitrante, como você mesma disse.

Mas todos tinham captado o fraudulento jogo de Sarmiento, e


a tensão não cedeu.

- Você sabe, doutor Sarmiento, que eu me considero portenha.


Não é por minha origem cordovesa ou pelo tucumano do general Roca que
verto esta opinião. assim como manifestei meu dissentimento com a
campanha ao sul, agora expresso que, dos candidatos em tela, acredito que
o general Roca demonstra uma equanimidade e fortaleza para governar que
nenhum outro possui.

Tradução Lauren Moon


A gravidade da afronta era evidente já que era vox populi que
Sarmiento também ambicionava a candidatura. Para mudar o foco, Aurelia
Vélez Sarsfield perguntou:

- Sabem se o governador Tejedor se apresentará esta noite?

- É obvio que não - assegurou Zeballos -. Esta festa foi


organizada pelos amigos de Roca para lançar sua candidatura. Apresentar-
se é quase um ato de adesão. Embora Tejedor não venha, enviou alguns de
seus “rifles” para espiar - disse, em alusão aos membros do exército
provincial que recrutava o governador.

- Eu estou aqui e não pretendo que minha presença seja


interpretada como um ato de adesão - advertiu Sarmiento.

- Resultam óbvias suas razões - parafraseou Laura.

Eduarda interveio; pegou o braço de sua amiga e disse em voz


alta:

- Vamos, querida. Desejo apresentá-la ao escritor Paul


Groussac desde que vi-o chegar. Este é um bom momento.

- Com sua permissão - disse Laura.

- Pois não - expressou Estanislao Zeballos, com fingida


galanteria.

Laura e Eduarda se afastaram de braços dados. Laura já não


gostava mais de conversar com o soberbo Sarmiento, nem conhecer se, se
dizia lynchista ou laurista. Wilde deixou o grupo com silêncio e as
alcançou a poucos passos.

- Laura, queria falar com você.

Eduarda sorriu complacentemente e se afastou em direção à


mesa do buffet froid.

- Fale, doutor - insistiu Laura.

- Hoje fui visitar sua sobrinha Pura Lynch.

- Como a encontrou?

Tradução Lauren Moon


- Sem ânimo, bastante abatida. Dona Luisa já não sabe o que
fazer para distraí-la. Não se alimenta bem e passa noites ruins. Está
piorando. Levei-lhe um tônico e prescrevi que alternasse exercício ao ar
livre e descanso. De qualquer maneira, acredito que os problemas do
coração são resolvidos de outro modo.

- Obrigada por ter ido vê-la, doutor - expressou Laura -. Sei


que se compromete ao fazê-lo. Aprecio-o imensamente, ainda mais quando
sou consciente de que você não aprova meu comportamento.

- Eu sou “laurista” - manifestou Wilde com clareza -, mas me


reservo de ventilá-lo aos quatro ventos para evitar que José Camilo me
desafie a duelo. Eduardo Wilde voltou junto a seus amigos e Laura se uniu
a Eduarda que escolhia sanduíches com frutos do mar.

- Wilde se declara “laurista” - comentou -, embora assegure


que em público o desmentirá. Diz temer que José Camilo o desafie a duelo.

- Que Wilde não se preocupe - expressou Eduarda -. Isso de


desafiar para um duelo parece ser um costume privativo de meu irmão
Lucio Victorio - esclareceu em referência à propensão do coronel em
resolver disputas com as armas.

Mais tarde, Eduarda comentou com Laura que as matronas


sentiam saudades pela prolongada ausência de dona Luisa del Solar e que
começavam a suspeitar de seu confinamento na quinta de Barracas.

- Já tinha previsto isso - assegurou Laura -. Mandei-lhe dizer


que se apresentasse na estréia de La Traviata58 no Teatro Colón; será em
poucos dias. Estará em meu camarote. De todo modo - acrescentou com
soltura -, não acredito que este capricho da Lezica dure muito tempo. A
reclusão de Pura e a separação de seu adorado Blasco chegarão a seu fim
antes que todos imaginem.

Eduarda lançou-lhe um olhar confuso, mas não pôde


perguntar: uma ovação atraiu seu interesse quando Roca e Clara Funes,
junto ao presidente Avellaneda, entraram na sala. Em repetidas ocasiões se
escutou: “Viva Roca, futuro presidente dos argentinos!”.

58
La Traviata (“Mulher caída”) é uma ópera em quatro cenas (três ou quatro atos) de Giuseppe Verdi com libreto de Francesco
Maria Piave. Foi baseada no romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Estreou a 6 de março de 1853 no Teatro La
Fenice, em Veneza. (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Enquanto a multidão lutava para saudá-lo, Laura manteve
distância. Conversou com o escritor francês Paul Groussac, um homem
que, não obstante seu gênio cortante e antipático, demonstrava um afinado
discernimento. Esboçou uma acertada descrição da realidade política e
terminou por prognosticar a secessão de Buenos Aires se Roca não
concordase em aceitar a candidatura de Carlos Tejedor.

- O que acha do general Roca? —interessou-se Eduarda.

- Embora tenha tido pouco contato, atrevo-me a dizer que é um


iluminado de sua geração. Como militar demonstrou uma aptidão pouco
comum entre os de sua classe: intuição que, somada a um respeito pela
estratégia e o planejamento, levou-o a consecutivas vitórias. Como político,
acredito que sabe o que a Argentina necessita e como resolvê-lo. Eu gosto
de Roca - disse, com o olhar no grupo que circundava o general -. É um
pensador taciturno, frio e reservado. Tem um dom: prefere escutar antes
que falar. Estou certo de que não desfruta das reuniões numerosas, das
cerimônias nem das festas públicas. Como veio esta noite é porque, como
disse antes, sabe como conseguir o que se propõe. E sem sombra de
dúvidas propôs-se ser presidente dos argentinos. Não importa quanto
sangue corra: ele o obterá.

Laura disse a si mesma que ninguém tinha esboçado uma


biografia mais acertada do general e se sentiu orgulhosa de ter inspirado o
interesse de um homem tão superior. Virou-se para olhá-lo e seus olhos
deram com os castanhos dele. Foi um momento efêmero que só existiu para
eles. Roca moveu as comissuras e Laura soube que esse arremedo de
sorriso era um obséquio para ela.

O coronel Gramajo, com seus melhores ornamentos militares,


aproximou-se para saudá-la, e Laura o recebeu com júbilo. Afastaram-se e,
enquanto ela pedia detalhes da expedição, Gramajo se interessava nos
“lauristas” e os “lynchistas”

- Para que quer que lhe conte da expedição, dona Laura? -


queixou-se Gramajo -. Passamos fome e frio e não nos topamos com um
índio, nem para mostra.

—É certo, então, que o general nunca entrou em batalha com


os incursores?

Tradução Lauren Moon


- Tão certo quanto agora tenho uma fome digna do
59
Pantagruel .

Laura passou-lhe seu prato com hors-d’oeuvre60 e continuou


indagando-o. Entre mordidas, Gramajo detalhava os vaivéns da expedição
que mais tinham que ver com falta de provisões, pestes e tédio que com
batalhas, mortos e feridos.

- Quem teve que enfrentar os últimos insolentes foi o coronel


Racedo. Ele coube deparar-se com índios bravos como Baigorrita, o
afilhado desse coronel unitário que se voltou selvagem na época de Rosas,
Manuel Baigorria se chamava. Morreu faz uns anos em sua cidade natal,
San Luis. Não sei se ouviu falar dele.

- Sei alguma coisa de sua história.

- O general Roca o conheceu no tempo em que esteve


destacado lá, no Fuerte Sarmiento. Era um personagem interessante,
segundo o general. Apesar de ser cristão, de mãe e pai brancos, poderia ter
passado perfeitamente por selvagem. Tinha o rosto cruzado por uma
facada que, conforme contam, conseguiu em uma escaramuça contra os
irmãos Saá, os caudilhos de San Luis. Isso dizem, não sei. Pois sim -
retomou Gramajo -, Racedo e outros oficiais tiveram que enfrentar os
últimos insolentes, que preferiam morrer a render-se. Mas ninguém os
combate como Racedo, que tem um ódio cego a esses pobres miseráveis.
Sabe? Faz anos um ranquel matou seu tio, o coronel Hilario Racedo.
Esfaqueou-o, o muito cretino. Por isso Racedo jurou vingar-se.

Em um canto afastado, perto da porta da varanda que conduzia


ao terraço, Guor bebia e observava. A emoção pela chegada de Roca tinha
passado. Os convidados queriam dançar. A orquestra tocava uma dessas
valsas vienenses tão na moda. Laura não dançava, continuava na poltrona
conversando com o militar barrigudo, de bigode espesso e rosto bonachão.
Essa noite, nem sequer tinham-se cumprimentado, evitava-o, inclusive
tinha aguardado que ele se afastasse para dirigir-se a Armand e a Saulina.

Alguém se aproximou de Laura, pediu desculpas ao militar


bonachão e estendeu a mão, que Laura aceitou, partiram para pista de baile.

59
Pantagruel é o herói do primeiro romance de François Rabelais Les horribles et épouvantables faits et prouesses du très
renommé Pantagruel Roi des Dipsodes, fils du Grand Géant Gargantua ("Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui
renomado Pantagruel, rei dos dipsodos, filho do grande gigante Gargântua"), publicado em 1532. Pantagruel é filho do gigante
Gargântua e de sua mulher Badebec, que morre durante o parto.
Um grande boa-vida, alegre e glutão, destaca-se desde a infância por sua força descomunal - superada apenas por seu apetite. (N.
da Tradutora)
60
Canapés, petiscos (N. da tradutora)

Tradução Lauren Moon


Tratava-se de um homem jovem, atraente, que Guor já tinha visto em
outras ocasiões. Laura se deixava conduzir com abandono.

Como acontecia ocorrer-lhe com frequência, encheu-se de


interrogações. Ultimamente, seu presente era uma incógnita. Não podia
enganar-se, nada do que empreendia em Buenos Aires justificava sua
permanência. Já tinha recuperado sua avó Mariana e a Lucero e Miguelito.
Certo que ainda restava seu tio Epumer Guor, a quem, em ocasiões, temia
enfrentar. Afinal de contas, tinha-o traído ao abandonar Leuvucó e escolher
uma cômoda vida em Paris. Como o encararia com tanta vergonha e culpa?
Deixaria o assunto de Epumer nas mãos de Agustín e partiria dessa cidade
que até tinha terminado por lhe tirar Blasco. Ele não pertencia ao mundo
dos brancos, ao qual sua mãe se empenhou em integrá-lo, fazendo-o
educar-se pelos dominicanos de Mendoza; menos ainda ao dos ranquel,
porque tinha chegado a desprezar o primitivismo em que viviam; jamais
teria podido retornar às tendas. De qualquer maneira, desse mundo de
acampamentos e caciques já não restava nada. Ele não era nada, nem
huinca61 nem ranquel. Gostava do mundo civilizado, mas a culpa o
impedia de desfrutar; desprezava a selvageria dos ranqueles, mas, apesar
disso, era seu povo. Sua gente, que agonizava e ele não movia um dedo
para salvá-la. Porque sua vida, em poucas palavras, passava pela mulher
que dançava a poucos metros dele e que o havia convertido em um homem
sem raízes. Que fazia nessa celebração onde se festejava o triunfo do
general Roca sobre seu povo? Deveria odiar Roca e esses militares com
alamares brilhantes e condecorações, mas nem ousadia para isso restava.
Parecia insensível a tudo que não fosse Laura Escalante, como se sua
capacidade de sentir se limitasse a ela.

Armand Beaumont se aproximou e insistiu em lhe apresentar a


uns amigos. Caminharam em direção ao grupo no qual conversava Roca.
Nahueltruz se deteve, titubiou, mas Armand, que já se tinha adiantado,
indicou-lhe que lhe unisse, e não teve alternativa. Recebeu apertoss de
mãos e escutou nomes que não gravou até terminar em frente ao general. A
primeira impressão o fez sentir-se gigantesco. No entanto, o cenho
carrancudo de Roca lhe deu a impressão de que não tratava com um
covarde. De olhar duro e inteligente, notava o aborrecimento que lhe
provocavam os puxa-sacos. O general se adiantou e, estendendo sua mão,
disse:

- Sou Julio Roca.

61
Huinca é o nome que os mapuches dão a todas as pessoas que não pertencem a seu povo, acima de tudo a um inimigo. É um
termo depreciativo (proveniente do idioma mapuche) com o qual os mapuches nomeavam aos conquistadores espanhóis no
século XVI, porque os viam como os “novos incas” (güi-inka) que tentavam invadir suas terras. Por extensão, aplica-se atualmente
a seus descendentes, quer dizer, aos chilenos crioulos ou mestiços, não mapuches. (N. da Tradutora).

Tradução Lauren Moon


Houve um instante em que Nahueltruz ficou olhando a mão
oferecida.

- Lorenzo Rosas - respondeu, e a apertou com firmeza.


Nahueltruz se deu conta de que o olhar atento de Roca tinha sofrido um
ligeiro momento de perturbação à menção de seu nome e que suas
sobrancelhas se arquearam ligeiramente. Atribuiu a seu sobrenome, que
sempre provocava esse efeito em quem lembrava de Juan Manuel de Rosas.

- Algum parentesco com o antigo governador de Buenos


Aires?

- Não, sou de Córdoba - respondeu Guor evasivamente.

O intercâmbio tinha sido breve e formal, e o general não


parecia inclinado a conversar. Embora a polêmica o tivesse como
protagonista, ele guardava silêncio e contemplava em outra direção.
Nahueltruz seguiu a linha de seu olhar que o conduziu até a figura de
Laura, agora nos braços do coronel Mansilla. Notou que o cenho do general
se pronunciava e que seus lábios grossos se franziam imperceptivelmente
sob os bigodes. Ao término da peça, sem desculpar-se, Roca se afastou em
direção ao centro do salão e, contra todo prognóstico, convidou à viúva de
Riglos para dançar.

Mansilla se inclinou em uma reverência êxagerada antes de


ceder sua “deliciosa companheira”. A concorrência não perdia o mínimo
detalhe do momento mais escandaloso da noite. Já tinha corrido voz de que
Laura defendia a candidatura de Roca e que ponderava suas qualidades
com suspeito afinco; que o general a convidasse a dançar ultrapassava o
limite de tolerância. Clara Funes simulava ignorar a imprudência de seu
marido e continuava conversando com as primas de Laura, Iluminada e
María del Pilar, Mas, apesar da música sossegar as falações, os impetuosos
fechamentos de leque e os rápidos movimentos de olhos e lábios os
denunciavam.

- É uma descarada - se queixou Mercedes Castelhanos da


Anchorena, uma senhora que, embora jovem, inspirava respeito.

- A viúva de Riglos já se imagina a amante do presidente da


República - espetou a jovem Enriqueta Lacroze, que não foi salva nem pelo
seu dinheiro, nem por sua estirpe; sem remédio, ficou para titia.

- Reparem em seu gesto -indicou Bernarda Lavable, parente


do general unitário assassinado no Jujuy -. Ela não se importa nem com o

Tradução Lauren Moon


escândalo nem com a desaprovação social. Parece tão à vontade como se
estivesse na sala de sua casa.

- Queridas - interveio dona Joaquina Torres -, devo lhes


recordar o que dizia nosso senhor Jesus Cristo? “Não julguem e não serão
julgados”.

- Os ensinamentos de Cristo, senhora Torres - assinalou


Esmeralda Balbastro -, ficam reservados para a missa. O resto do tempo
corre a lei de Talião.

Os homens tampouco se privavam de derramar um pouco de


veneno.

- Não se pode culpá-lo - esgrimiu Taciturno Unzué, fervente


propulsor da candidatura de Roca -. A viúva de Riglos é, sem sombra de
dúvidas, a mulher mais bonita desta noite.

- Pergunto-me se algum homem, alguma vez, terá-lhe desfeito


essa trança - expressou Estanislao Zeballos, um moço de quem Guor sabia
pouca coisa.

- O doutor Zeballos - interveio Mansilla, que se unia ao grupo


- tem certeza de que não foi Julián Riglos.

- Senhores, por favor - se queixou Armand Beaumont -,


estamos falando de uma dama a quem tenho em minha maior estima.
Entendo que, até o momento, o único que podemos lhe atribuir é sua
indiscutível beleza. E disso, senhores, não podemos culpá-la.

Laura não estava menos surpresa que o resto dos convidados.


Tinha certeza de que o general não iria se aventurar no meio de tanta gente,
com Clara Funes presente. Roca, entretanto, voltava a lhe demonstrar que
fazia o que queria. Temeu que armasse outra cena como aquela vez em
dona Joaquina Torres, quando lhe exigiu que deixasse Cristian Demaría
esperando e que lhe explicasse por que não tinha ido à casa da Rua
Chavango. Com certeza, negaria caso ele pedisse agora.

- Todos os olhos estão postos em seus lábios, general -


advertiu Laura -. Não diga nada impróprio. Ficaria surpreso em saber das
habilidades de algumas de nossas exímias portenhas que podem escutar
sem ouvir.

Tradução Lauren Moon


- Com certeza posso dizer que você parece magnífica esta
noite sem risco de comprometê-la.

- Na realidade, general - interpôs Laura -, você não pode me


dizer absolutamente nada. E mais, você não deveria ter-me convidado para
dançar.

- Por que aceitou, então?

- Tive outra alternativa se quisesse evitar envolvê-lo em uma


situação constrangedora?

- Suponho que não - admitiu Roca, e sua feição abandonou a


ironia para evidenciar uma sincera admiração por sua companheira -.
Precisava ter você outra vez entre meus braços - confessou, em um ato de
raro romantismo.

- Insisto, general - se incomodou Laura -, guarde a compostura


ou o escândalo terminará por prejudicá-lo mais do que se imagina. O
antagonismo dos portenhos para com sua figura já é evidente para lhes dar
verdadeiros motivos. Falemos, em troca, de sua conquista do deserto. Ou,
como dizem alguns, de sua conquista do poder.

- Você é implacável, senhora Riglos - queixou-se Roca -. Eu


me pergunto se é uma qualidade que cultiva só para atormentar a mim ou a
todos seus admiradores.

- Você é um vaidoso, general, se acreditar que passo o dia


pensando em como atormentá-lo com minhas palavras.

Roca baixou o rosto para esconder a risada, e Laura notou que


a pressão de seus mãos aumentava em torno de sua cintura.

- Não me perguntou - retomou o general um momento depois -


por qual banda simpatizo, se pelo “laurista” ou pelo “lynchista”.

- Parece muito inclinado a me dizer isso e eu não tenho


objeções de escutá-lo.

- Só direi que sou laurista - admitiu -. Para o resto, opino como


a maioria.

- Covarde.

- Agora sou um político, devo me cuidar.


Tradução Lauren Moon
- Sempre será um militar. Embora não lhe custe imitar um
político de puro-sangue. Segundo Maria Pancha, você é uma raposa, um
patife exímio. Acredito que tem razão. - Olhou-o diretamente nos olhos e
se entreteve no sorriso divertido que o dirigiu.

- Julio - disse Laura, repentinamente séria -, o que fará se


conseguir a presidência?

- Farei um país.

Nahueltruz Guor continuava com olhos atentos à troca de


palavras entre Laura e Roca. Que o general a desejava era uma verdade
expressa a viva voz. Quanto aos sentimentos dela, não pareciam tão claros;
sim podia ver que, como os outros, enredava-o em seu jogo de sedução,
esse que ele conhecia tão bem.

- Não se atormente - sussurrou-lhe Esmeralda com evidente


condescendência -. Laura não olha para ninguém como olha para você.

Essa noite, entretanto, Laura não olhou para ele, nem com ódio
nem com paixão.

Simplesmente, tinha-o ignorado. Essa indiferença o estava


matando.

- Quem é esse jovem? - indignou-se Guor -. É a segunda vez


que a convida a dançar.

Esmeralda se cobriu com o leque para ocultar a risada.

- Esse jovem é Cristian Demaría - explicou -. Na realidade,


não está convidando Laura para dançar, mas sim a está salvando do general
Roca que, evidentemente, colocou-a em um apuro. Já sabe que dizem que
eles mantiveram um affaire antes dele partir para o sul. Não se angustie,
Lorenzo - contemporizou Esmeralda -, Demaría é um grande amigo de
Laura e todos sabem que o carinho que ambos se professam é fraterno.
Além disso, Demaría está comprometido em casamento com Eufemia
Schedden, a moça que conversa com a senhora Carolina Beaumont.

Laura foi uma das primeiras a se retirar. Um servente jogou


sobre seus ombros o casaco de zibelina, e Laura se dirigiu escada abaixo,
onde a aguardava seu Landau. Nahueltruz a seguiu com discrição até
alcançá-la na calçada no momento em que Eusebio a ajudava a subir.
Deteve-se. Hesitou. A indecisão era de uma das coisas que mais odiava.

Tradução Lauren Moon


Eusebio fechou a portinhola, caminhou para a parte dianteira e subiu à
boleia. Guor o observou preparar-se. O chicote caiu sobre as ancas dos
cavalos quando um grito de Laura atravessou o ar gélido da noite. Os
animais empreenderam a marcha com passo precipitado e nervoso.
Nahueltruz começou a correr e alcançou o Landau sem dificuldade.
Eusebio, por sua vez, lutava na boleia para deter os cavalos; sua idade
pesava e já não contava com as forças de antigamente. Nahueltruz agarrou
o fecho da portinhola e a abriu; o carro ainda se movia e ele corria ao
mesmo tempo. O espetáculo atraiu a atenção dos ocupantes de outros
carros e dos poucos transeuntes, que se detiveram para olhar. Os cavalos
frearam abruptamente a poucos metros, provocando faíscas sobre os
paralelepípedos. Seus relinchos e os gritos de Eusebio contribuíam com
mais escândalo à situação. Laura se precipitou fora para acabar nos braços
de alguém. Ao levantar a vista, reconheceu a Nahueltruz. Ele em seguida
pronunciou seu nome, mas ela ficou absorta, olhando-o.

- Laura, o que aconteceu? - repetiu.

- Senhora! - angustiou-se Eusebio -. O que houve, senhora?

Climaco Lezica baixou tropeçando do carro de Laura. Por seu


traçado e seus movimentos pouco certeiros, era evidente que estava
bebendo. Em sua mão direita levava uma arma, que apontou na direção de
Laura. Nahueltruz a protegeu com seu corpo. “Já vivi isto anteriormente”,
angustiou-se ela.

- Vamos, Lezica - raciocinou Guor -, baixe a arma. Poderia


disparar, e você se arrependeria por toda a vida.

- Jamais me arrependeria de acabar com Laura Riglos.

As pessoas se amontoavam e guardavam um silêncio


observador. Alguns convidados do Club del Progreso, que deixavam a
festa, detinham seus carros atraídos pelo revôo em plena rua Victoria e
ficavam atônitos ante o espetáculo de Lezica, meio ébrio, apontando para a
viúva de Riglos, que se defendia atrás de um butamontes. Não era o amigo
cordovês do Beaumont? Lorenzo Rosas se chamava?

- Mulher pérfida! - prorrompeu Climaco Lezica -. Por que quer


me destruir?

- Lezica - insistiu Guor -, baixe a arma, homem. Vamos


resolver isto como pessoas civilizadas.

Tradução Lauren Moon


- Não se meta, Rosas. O assunto não é com você, mas com
essa prostituta, que se acha no direito de impedir meu casamento com a
senhorita Lynch. Vamos, saia do meio. - Como Guor não se movia, Lezica
vociferou novamente -: Devolva-me minha prometida ou vou destruí-la
aqui mesmo! Já não tenho mais nada a perder.

- Sua prometida? - apareceu Laura -. Você não pode ter uma


prometida, Lezica, quando já tem esposa e três filhos.

Levantou-se um murmúrio entre os pressente.

- Mente! Infame! Pérfida!

—Você sabe que não minto e que me encontro em posição de


provar o que digo. Virginiana Parral é sua legítima esposa e o padre
Epifanio, que os casou, pode demonstrá-lo com apenas o abrir do livro
paroquial na página correta. Se você desposasse minha sobrinha,
converteria-se em bígamo.

As pessoas voltaram a murmurar, e pela primeira vez Lezica


reparou em suas presenças. Nahueltruz julgava imprudente a maneira com
que Laura o instigava, e a obrigou ficar atrás dele. Climaco apresentava o
aspecto de um desequilibrado; seu gesto delatava a crueldade de um felino
encurralado. A arma tremia em sua mão, mas ele não a desviava de seu
alvo.

Escutou-se o apito da polícia, que abriu passagem entre os


carros parados e as pessoas. O semblante de Lezica mudou, e a pistola
pareceu pesar em sua mão.

Um segundo depois, empunhou-a com firmeza e disparou a


queima-roupa. Nahueltruz se jogou no chão, arrastando Laura com ele,
evitando o impacto da bala, que terminou no muro de uma casa. Seguiu um
pandemônio de alaridos, assobios, relinchos e atropelos que permitiu com
que Lezica fugisse pela rua mal iluminada em direção ao rio. Vários
policiais correram atrás dele; outros permaneceram na cena do incidente
para colocar ordem.

Eusebio pedia desculpas, não sabia como esse homem tinha


entrado no carro, possivelmente tivesse adormecido, “desculpe-me,
senhora, desculpe-me”. Apareceram os Montes, que se precipitaram sobre
Laura e lhe falaram de uma só vez. Magdalena, em completo estado de
nervos, buscava-lhe feridas, enquanto tia Soledad e tia Dolores reclamavam
ter levado as coisas a extremos imponderáveis. Eduarda e Lucio Mansilla

Tradução Lauren Moon


assinalaram às irmãs Montes o impróprio da reclamação em vista das
circunstâncias, e terminou por armar uma pequena disputa que o doutor
Pereda pôs fim. Armand Beaumont e Saulina cuidavam de Lorenzo Rosas,
enquanto era crivado de perguntas. A polícia recolhia testemunhos e
indagava os protagonistas. Nazario Pereda falou ao oficial encarregado que
sua futura enteada responderia tudo no dia seguinte, quando seu ânimo
fosse apropriado. Na sequencia, ajudou Laura e Magdalena a subirem em
seu carro, que partiu rapidamente. Nahueltruz, surdo às perguntas e aos
comentários, seguiu com o olhar o percurso do veículo até que a escuridão
o devorou.

~0~

O relato do que aconteceu a poucos metros do Club del


Progreso alcançou os convidados que ainda desfrutavam da noitada. Roca
se separou de seus amigos e procurou Gramajo. Pediu-lhe que fosse à rua
para confirmar se Laura tinha saído ilesa. Gramajo retornou minutos
depois.

- A senhora Riglos não estava mais lá - informou -. Mas quem


a viu diz, entre eles o coronel Mansilla, que não tinha sequer um arranhão.
Graças a um tal de Lorenzo Rosas que a protegeu no momento em que
Lezica disparou sua arma. Isto de “lauristas” e “lynchistas” já não me
parece tão divertido como antes.

Mais tarde, em sua casa, Roca compartilhava um gole com os


mais íntimos: Lucio Mansilla, Francisco Madero (seu locatário), Saturnino
Unzué, Benjamim Victorica, Carlos Casares e o infaltable Artemio
Gramajo, que servia o porto e licor. Roca tinha pouca vontade de continuar
conversando, mas não podia desprezar essas pessoas que o apoiavam em
seu sonho por alcançar a presidência.

Falou-se primeiro do episódio em plena Rua da Victoria, e


concordaram em que a reação de Lezica era desmedida.

- O ser humano - pronunciou Roca - é um mistério que nunca


ninguém desvendará por completo. Suas reações podem ser tão inopinadas
como a imaginação nos permita lucubrar. Vocês não deveriam se
surpreender com o que ocorreu hoje, ou acaso esqueceram da viúva de
Álzaga, Felicita Guerrero se não me falha a memória, que foi morta por um
pretendente rejeitado?

- Graças a Deus este escândalo não terminou com sangue


derramado - apontou Madero.

Tradução Lauren Moon


- Graças a Lorenzo Rosas - corrigiu Mansilla -, que a salvou
do balaço que o cretino do Lezica disparou-lhe a queima-roupa.

- Quem é Lorenzo Rosas? - perguntou Gramajo.

—É amigo de Armand Beaumont. Chegaram juntos de Paris


meses atrás. Ninguém conhece muito a respeito de seu passado, mas teve
uma boa recepção aqui. Sabe-se que é cordovês, criador de cavalos puro-
sangue e dono de uma respeitável fortuna. De algum modo seu nome está
vinculado ao escândalo entre “lauristas” e “lynchistas”. O jovenzinho que
corteja Pura Lynch é o tutelado de Rosas. Alguns dizem que é seu filho
bastardo. Ninguém pode confirmar isso.

- O que estaria fazendo Rosas no momento e no lugar em que


Lezica ameaçou à viúva de Riglos? - perguntou-se Unzué, sem esconder a
suspeita.

- Não sei - respondeu Mansilla -, mas agradeço ao Céu que


tenha estado ali.

-Senhores - trovejou a voz de Roca -, passemos a temas mais


importantes.

Esmiuçaram a complexa e tensa situação política exposta entre


o governo nacional e o da província de Buenos Aires, e acordaram que de
um homem como Tejedor, inflexível e orgulhoso, não deviam esperar uma
mudança propícia. O confronto era inevitável. Traçaram os passos a partir
dos dias subsequentes, entre os quais estava um banquete no teatro
Pohteama, onde seria anunciada oficialmente sua candidatura. O evento do
Club del Progreso tinha sido para sondar terreno, segundo Unzué.

Os correligionários partiram, e Roca fugiu para seu escritório.


Procurava entre seus papéis quando Clara, com cara sonolenta, entreabriu a
porta.

- Não vem para cama, Julio?

- Em seguida - respondeu ele, sem levantar a vista, muito


atarefado na procura.

Clara se envolveu em seu roupão antes de entrar e fechar a


porta.

- O que você está procurando?

Tradução Lauren Moon


- Um papel.

- Que papel? - quis saber, mas Roca não lhe respondeu, e Clara
soube que o tinha constrangido com sua curiosidade -. Por que convidou à
viúva de Riglos para dançar esta noite?

Roca levantou a vista e a olhou seriamente. Como de costume,


Clara não soube decifrar sua expressão; como de costume, o olhar castanho
e enganador de seu marido a incomodou. O hábito arraigado de Roca em
ocultar e calar a deixava de lado e ofendia. Tratava-se de um
comportamento com o qual não estava familiarizada; o exemplo de seus
pais ensinou que marido e mulher deviam se conhecer intimamente e
revelar seus segredos mais ocultos. Não com Julio Roca. É obvio que ela
era sua mulher, mas ele conservava um mundo ao qual jamais lhe
permitiria acessar. Como sua relação com a viúva de Riglos, por exemplo?
O ciúmes estava minando sua compostura.

- Não vai me responder? Era necessário convidá-la, quando


sabe que todo o mundo diz que existe algo entre vocês?

- Clara - pronunciou Roca com impaciência -, não vou me


deter para discutir a respeito de uma intriga de feira. É tarde e estou
cansado. Vá para cama, em seguida lhe alcanço.

- Diga-me por que a convidou para dançar - ela teimou.

- Porque a viúva de Riglos é a proprietária de um influente


jornal e necessito de aliados na imprensa.

- Ela, proprietária de um jornal? Que jornal?

- La Aurora.

- Sério? Mas se esse jornal foi desumano com a expedição ao


deserto, como pretende que lhe apoie justo agora?

- Clara, não são coisas que discutirei com você. A política é


assim, confusa e intercalada. De agora em diante, existirão manobras e
situações complexas que não parecerão razoáveis. Não quero estar dando
explicações em minha casa do que faço lá fora - e como se deu conta de
que brilhavam os olhos de Clara, caminhou até ela -. Clara, Clara -
murmurou com benevolência -, quando estiver aqui, em casa, com você e
os meninos, quero que me brinde com distração e repouso, que jamais
encontrarei lá fora. Pode ser, querida? - Clara assentiu -. Será um tempo

Tradução Lauren Moon


duro o que se aproxima e necessito que seja minha aliada; para inimigo já
me joguei em meus ombros toda Buenos Aires.

- Tenho medo.

- É a última coisa que espero de minha mulher - pronunciou


Roca -, que tenha medo quando sou eu o que está à frente desta família. Ou
me acusa de expô-los, a você e aos meninos, de maneira irresponsável?

- Não, é obvio que não.

- Então, mude essa cara. Vamos, à cama, em seguida lhe


alcanço.

De novo sozinho, Roca deu com a carta do coronel Manuel


Baigorria e releu as linhas que lhe interessavam: “Em resposta a sua gentil
e afetuosa missiva que recebi dias atrás é que lhe mando estas linhas,
esperando que sua saúde, e a de toda sua família, esteja boa. Já vejo que
sua avidez por saber destes selvagens não é pouca. Tempo atrás entreguei
em Rio Cuarto um caderno aonde relato minhas andanças na terra de
aqueles esquecidos de Deus. Na presente, quero completar aquele escrito
com a maior fidelidade que me é possível[...] Dos filhos de Mariano Rosas,
lembro-me bem de seu primogênito. Contarei-lhei dele, que sua mãe era
huinca, Blanca Montes se chamava, mas nas tendas a conhecíamos pelo
Uchaimañé62, que em idioma índio quer dizer “a de olhos grandes”[...]O
nome ranquel deste moço era Nahueltruz Guor (Raposa Caçadora de
Tigres). A pedido de sua mãe, Nahueltruz Guor foi cristanizado de
pequeno. Seu nome huinca é Lorenzo Dionisio Rosas. Lembro-me muita
bem. Foi o padre Erasmo quem o batizou, o mesmo que cristanizou seu pai
Mariano em El Pino, a estância de Rosas. Não sei se este moço está vivo ou
morto. Muito provavelmente o segundo. Depois da morte de Uchaimañé,
Mariano voltou a se casar...”.

A missiva adicionava outros detalhes que não lhe interessavam


em mais nada.

62
Olhos Grandes (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Capítulo XVIII.

A identidade de um cavalheiro

No dia seguinte, Laura recebeu três cartas que a inquietaram.


A primeira foi enviada por seu agente, lorde Edward Leighton, datada em
12 de maio de Londres, comunicando-lhe a iminência de sua chegada a Rio
de La Prata na segunda semana de agosto. Faltavam escassos vinte dias. A
segunda, não era uma carta, mas o tradicional bilhete com dois números:
uma data e uma hora. A terceira, um bilhete de José Camilo Lynch onde
pedia que o recebesse.

Lorde Edward Leighton tinha visitado Buenos Aires pela


primeira vez dois anos atrás, pouco tempo depois da morte de Riglos. Era o
filho mais velho, e portanto o herdeiro, de lorde James Leighton, amigo
íntimo do general Escalante e seu irmão na Grande Loja Maçônica. Os
Leighton eram uma família que podia rastrear seus ancestrais até duzentos
anos antes da chegada do normando Guillermo I, conhecido como o
Conquistador, no ano de 1066. Sua fortuna provinha principalmente da
renda da terra; mas nos últimos dez anos viu-se gratamente aumentada
graças à ousados investimentos de Edward, que tinha aberto um estaleiro
no porto de Liverpool.

Naquela oportunidade, dois anos atrás, Laura, conhecedora do


carinho que seu pai professava por lorde James, recebeu seu filho, Edward,
na casa de La Santísima Trinidad e lhe conferiu o tratamento de um
soberano. Lorde Edward se apaixonou perdidamente por ela e lhe pediu em
casamento. Nesse momento, as melhores desculpas esgrimidas foram a
recente viuvez e a necessidade de cumprir com o período de luto.

- Desde quando lhe importam essas coisas? - tinha-lhe


espetado Maria Pancha -. Nem sequer veste preto. - Laura não respondeu -.
Continua pensando nesse índio, que deve estar morto.

- Sim, continuo pensando nele.

- Deveria ser mais benévola com você e dar uma oportunidade


a seu coração para que volte a amar. Sabe que tenho bom olfato, que não
me falha, e pode-se dizer que lorde Edward é um grande homem.

- Preciso de tempo.

Tradução Lauren Moon


- Tempo - repetiu a criada com aborrecimento -. Pois bem,
peça que lhe conceda isso, mas não o rechace por completo. Esse homem
vale ouro.

Magdalena também chegou a saber das intenções de Leighton


e insistiu para que Laura o aceitasse. Finalmente, Leighton retornou a
Londres com a promessa de uma espera de dois anos, ao fim do qual,
voltaria a apresentar sua proposta de casamento novamente. Ninguém,
exceto a família íntima, conhecia o acordo; havia sido parte do trato que
essa espécie de compromisso permanecesse escondido, inclusive de tia
Carolita. Durante esses dois anos, Laura tinha pensado pouco em lorde
Leighton e, quando o fazia, era em razão de alguma de suas cartas
apaixonadas. Ela as respondia em um tom formal, que empregaria com seu
agente de investimentos mais que com seu prometido. A chegada de lorde
Leighton em meados de agosto a encheu de remorsos e dúvidas. Era, muito,
inoportuna.

Quanto ao bilhete de Gramajo, Laura rabiscou um “não” e o


devolveu a Maria Pancha, que por sua vez o pôs nas mãos do rapazinho que
o tinha levado. O rapazinho retornou pouco depois. Desta vez o bilhete
rezava: “Nahueltruz Guor”. Laura concordou.

Tal e como tinha indicado, José Camilo Lynch almoçou nesse


mesmo dia na casa de La Santísima Trinidad. Como parte dos bons
costumes à mesa dos Montes, ninguém mencionou a cena desagradável de
Lezica na noite anterior. Depois da sobremesa, Laura convidou Lynch a seu
boudoir.

- Licor de anis? - ofereceu -. Feito por Maria Pancha.

- Sim, obrigado.

José Camilo parecia tenso e incomodado; Laura, ao contrário,


estava tranquila; se movia com a segurança e a altivez de um guerreiro
vencedor, e, embora gostasse de seu primo por finidade, mostraria quem
tinha vencido a batalha.

- Como está Purita? - perguntou Lynch.

- Bem.

- Quando poderei voltar a vê-la?

- Quando certas questões fiquem esclarecidas entre você e eu.

Tradução Lauren Moon


- Desfruta me fazendo padecer desta humilhação - se queixou
Lynch -. Mas, admito que esteja no seu direito. Depois de tudo, tinha razão
ao duvidar da natureza de Lezica. Alegro-me de que tenha saído ilesa da
briga de ontem à noite - concedeu sem muito entusiasmo.

- Acredita que Lezica me abordou dessa maneira tão pouco


ortodoxa só porque mantenho sua prometida escondida? - José Camilo se
mostrou desorientado -. Lezica me ameaçou de morte ontem à noite porque
eu sei algo que poderia afundá-lo, algo que terminaria com seus sonhos de
aparentar-se com a casa Lynch.

- Do que se trata?

- Acho estranho que não tenha sabido das intrigas.

- Vamos, não me deixe no escuro.

- Pois bem, seu querido amigo Climaco Lezica está casado;


sua mulher goza de excelente saúde, assim como seus três filhos.

- Laura, que calúnia é esta! A que extremos você chegou para


alcançar seu objetivo?

- Sabe que não é meu costume mentir - expressou, e Lynch se


surpreendeu da dureza que podia ter o olhar de sua prima.

- Pode prová-lo?

- É obvio que posso.

Usaram o carro de José Camilo para irem ao convento das


Clarisas, onde se hospedavam o padre Epifanio e Virginiana Lezica.
Receberam-nos em uma salinha anexa ao vestíbulo. Lynch se surpreendeu
a juventude e beleza da mulher. Assim mesmo, notou que o sacerdote
carregava um livro paroquial que apoiou sobre a mesa. O padre Epifanio
falou a maior parte do tempo, contou os pormenores da relação entre
Lezica e Virginiana, e mostrou a anotação no livro que dava fé do
casamento. Lynch reconheceu a assinatura de Lezica imediatamente.

Ninguém falou durante o trajeto à casa de La Santísima


Trinidad. Dentro do carro só se escutava o estalo continuado das rodas
sobre os paralelepípedos e, perto da praça, o pregão de vendedores e o
bulício das pessoas. Ao chegar, Laura pediu a seu primo por afinidade que
a acompanhasse até lá dentro. Trancaram-se no escritório do avô Francisco.

Tradução Lauren Moon


- Graças a Deus - pronunciou Laura - que o descobrimos antes
que o dano fosse irreparável.

- Sim, acredito que tivemos sorte. Entretanto, os falatórios e


intrigas nos perseguirão por anos.

- Por Deus, José Camilo, não seja covarde. O que lhe importa
o que os outros digam?

- Não me chame de covarde, Laura. Para você não será


importante o que digam. Para mim, é.

- Pois não reparou no que diseram quando fugiu com uma


noviça do convento de Santa Catalina.

- Era jovem e insensato.

- Está arrependido?

- É obvio que não!

- Então, por que se preocupa com os comentários quando viu


que tem vivido por mais de quinze anos junto à noviça do convento de
Santa Catalina e o fez na mesma sociedade todo o tempo, sem ganhar o
repúdio de ninguém, nem sequer dos pais da jovem que desgraçou? Deixa
que as pessoas falem até se cansar. Sempre terão algo para dizer mesmo
que leve a vida de um asceta.

- Quando voltarei a ver minha filha? - insistiu Lynch, mal-


humorado.

- Já lhe disse, quando certas condições fiquem esclarecidas


entre você e eu.

- Condições - repetiu Lynch -. Suponho que terei que aceitá-


las.

- Sim, terá que aceitá-las. Comecemos: Pura viverá em minha


casa ou aonde ela escolher, se esse for seu desejo. Estimo que não será
gratificante para ela suportar minha tia Celina.

- Dona Celina não vive em minha casa - opôs Lynch.

Tradução Lauren Moon


- Minha tia Celina não dorme em sua casa, mas passa a maior
parte do dia nela, perseguindo minha prima Eugenia Victoria e meus
sobrinhos. Em segundo lugar, permitirá que o senhor Tejeda a visite.

- De maneira nenhuma. O fato de Lezica se mostrar um


vagabundo não significa que entregarei minha filha a esse dom Ninguém.

- Sua filha ama o senhor Tejeda. Isso não conta para você?

- Minha filha não sabe o que é amar. É uma menina.

- Agora é uma menina, mas não o era quando pensava em


desposá-la com um bode velho.

Laura se acomodou na poltrona e guardou silêncio com


reflexos de motim. Lynch o estudou o perfil de esboços suaves e definidos,
e novamente se surpreendeu de quão desumana podia parecer quando se
propunha. Para ser tão formosa e feminina, sua prima Laura tinha a vontade
de um homem.

- Laura, me entenda, não admito que minha filha, uma


verdadeira Lynch, seja a esposa desse moreno que não sabemos sequer de
onde é oriundo.

- Mas sim sabia de onde era oriundo o senhor Lezica, e já vê


como lhe enganaram. José Camilo, por favor, não seja tão néscio. Pensei
que seus valores fossem mais além das aparências e dos sobrenomes
pomposos. Que culpa tem Pura de ser uma Lynch? Em tal caso, teria sido
melhor que fosse uma Pérez se isso tivesse lhe permitido acessar à
felicidade de casar-se com quem deseja. Não a leve a odiar seu sobrenome
por ter-se convertido no impedimento para ser feliz. Não deve homenagem
a sua família. Ela não escolheu nascer no seio dos Lynch.

- Ser uma Lynch deveria significar uma honra para minha


filha.

- Não se isso interfere em sua felicidade. Do que lhe vale um


pedigree, comprido como o de uma rainha, se sua vida será um inferno?

- Está bem - cedeu Lynch, incapaz de continuar argumentado


contra os argumentos de Laura, que por outra parte possuía a incomum
qualidade de fazê-lo sentir uma má pessoa -. Falarei com Eugenia Victoria
e, se ela estiver de acordo, permitirei que Pura veja esse... A...

Tradução Lauren Moon


- O senhor Tejeda.

- Sim, o senhor Tejeda.

- São muito jovens - raciocinou Laura -, deverão conhecer-se


para então decidir. Mas deve lhes dar a oportunidade para que o façam. Se
persistisse em seu teimosia, iria forçá-los a tomar uma medida desesperada.
Terminariam por fugir. Depois seria muito tarde, se descobrissem que não
pertendem um ao outro. Com sua animosidade só conseguirá potencializar
a teimosia de ambos. Será que não percebe isso?

- Suponho que tenha razão.

- Não falarei das qualidades de Blasco, porque sei que você


está tendenciosamente errado, mas só vou lhe assegurar de que esse moço
jamais será um dom Ninguém. Também quero que falemos da situação
financeira de sua família.

- Não falarei disso neste momento.

- Este momento é tão bom como qualquer outro.

- Não falarei disso com você, então.

- Por quê? Porque sou mulher?

- Sim, porque é mulher.

- Enviarei meu tabelião com a proposta que desejo lhe fazer.


Promete recebê-lo sendo, como é, um homem?

Lynch a olhou com ar de aborrecimento e não lhe respondeu.

~0~

Mais tarde, Laura escrevia em sua penteadeira, enquanto


Maria Pancha acomodava a roupa.

- Vai se encontrar com ele hoje, não é? - disse a criada, em


referência a Roca.

- Sim.

- Havia dito que não reataria as visitas a essa casa uma vez que
ele retornasse do sul.

Tradução Lauren Moon


- Nunca terminamos apropiadamente.

- Não acredito que o general tenha intençãoões de terminar


com você. Não acredito que receba de bom grado a notícia de que não tem
intenção de voltar a vê-lo. Já não se lembra da cena de ciúmes que teve em
dona Joaquina Torres, só porque dançou com Cristian Demaría?

- A única coisa que interessa ao general Roca atualmente é


alcançar a presidência. Minha relação com ele põe claramente em risco
essa tarefa. Verá que sua reação será muito diferente da daquela noite nos
Torres. Entregou a dona Carmen as cartas para dona Luisa e Purita?

- Sim, esta manhã.

No silêncio que sobreveio só se escutava o roçar da pluma da


Laura.

- Pergunto-me - retomou Maria Pancha - que fazia Guor


naquele lugar quando Lezica a assaltou. Por certo estava lhe seguindo.

- Por certo. O mais provável é que quisesse me ameçar com o


último capítulo de La gente de los carrizos, onde narro o sequestro de sua
mãe.

Laura devolveu a pluma ao tinteiro e deixou a vista vagar pelo


jardim da avó Ignacia. Sem se virar, disse:

- Já sabe, Maria Pancha, que me reencontrar com Nahuel,


depois de tanto tempo, foi um golpe muito duro para mim. A péssima
maneira com que me tratou, tornou-me rancorosa. Tenho vergonha de lhe
confessar que, às vezes, eu gostaria de ter o poder de machucá-lo, esse
mesmo poder que ele exerce sobre mim com tanta soberania.

- Ele ainda ama você - afirmou Maria Pancha, e Laura voltou-


se para olhá-la.

- Estranho escutar você dizer isso.

- Já lhe disse uma vez - continuou a criada, sem atender ao


comentário - que o contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença.

- Dói-me pensar tanto nele e ele tão pouco em mim. A maioria


das vezes sou-lhe indiferente.

- Se você lhe for indiferente, eu sou Josefina Bonaparte.


Tradução Lauren Moon
- Possivelmente ele ainda me ame, não sei. Na verdade, isso já
não importa. O que importa neste caso é seu ódio, esse ódio que o deixa
intratável. Eu o amo, isso está fora de discussão. Mas, que esperança
teremos quando existe uma ferida que, segundo ele, eu causei e que não
consegue cicatrizar? Que tipo de vida levaríamos se ele não conseguisse se
desfazer desse rancor? Como poderíamos ser um quando ele me faz
responsável por estes anos de separação, de abandono, de ofensa, de mil
coisas? Qualquer briga, qualquer desentendimento, dispararia reclamações
que mexeriam com esse passado tão tormentoso, que nos coube viver. Para
o Nahuel, eu encarno a maldade e a vilania, sou sua infelicidade. Não
acredito no perdão, Maria Pancha. Por que exigir isso dele, quando eu
mesma não fui capaz de perdoar Julián mesmo quando ele sofria em seu
leito de morte? O perdão é coisa de Deus.

Tratou-se de um longo discurso, e surgiu tão rapidamente que


Maria Pancha se deu conta de que Laura tinha resmungado essas palavras
dia e noite os últimos meses. Não soube o que dizer e escolheu se calar.
Aproximou-se da penteadeira e colocou seu roupão sobre os ombros antes
de lhe desfazer a trança e escovar seu cabelo.

- Qual vestido usará para vê-lo?

- O de xadrez cinza.

- Vou prepará-lo.

Causou-lhe uma forte impressão retornar à casa da Rua


Chavango. Acreditou que o faria com maior integridade. Mas, ao voltar a
enfrentar Roca a sós, pressentiu que sua decisão de terminar para sempre
com essa relação fraquejava. Quando ele a rodeou com seus braços e a
beijou suavemente nos lábios, Laura descansou sobre seu peito e permitiu
que a sensação de bem-estar e amparo a embargasse. Roca jamais lhe seria
indiferente, sempre exerceria uma grande atração sobre ela. Afastou-se,
incômoda e deprimida. Não sabia, na realidade, se desejava rechaçá-lo.
Roca sorriu disfarçadamente e se afastou para servir duas taças.

- O que tinha a me dizer sobre Nahueltruz Guor?

- Já vejo que não lhe interessa meu bem-estar - brincou o


general, e lhe estendeu uma taça com absinto -. Tampouco perguntará
como foi a expedição.

- É óbvio que está muito bem. Percebe-se que está muito bem.
- Roca inclinou a cabeça em sinal de agradecimento -. Quanto à expedição

Tradução Lauren Moon


- continuou Laura -, há três meses que não se fala de outra coisa;
possivelmente eu saiba mais da expedição que vocês oficiais. Além disso,
Artemio me disse ontem à noite que foi uma epopéia aborrecida e que não
topou com um índio nem para mostra.

- A você posso confessar que rendi sem glória nem pena os


restos nus e esfomeados das tribos ranquelinas. Inclusive isso de “render” é
apenas um vocábulo. Parece que as divindades estavam do lado deles, pois
é certo que não matei um único selvagem. Ou possivelmente as divindades
estivessem do meu lado, e me impediram de matar essas pessoas para me
preservar do seu ódio eterno.

- Sabe que não poderia odiar você - murmurou ela.

- Tampouco me amar.

Laura baixou a vista, mas Roca a obrigou a olhá-lo levantando


seu rosto pelo queixo.

- Julio...

- Já sei: não voltará para esta casa. - Laura ratificou afirmando


com a cabeça -. Agradeço sua decisão. Sem sua resolução, eu jamais teria
terminado com você. E minha vida política e privada correriam um grande
risco. Há muito em jogo, muito a perder.

- Não quero fazer com Clara, o que detestaria que me


fizessem.

- Não foi um impedimento a existência de minha esposa, antes


que partisse para o sul.

- Naquela tarde no dom Godet, junto de seus filhos, Clara


pareceu materializar-se repentinamente. Antes era como se ela não
existisse.

- Mas existia.

- Sim, eu sei.

- Na realidade, é Lorenzo Rosas quem lhe inquieta.

- O que tem a ver Lorenzo Rosas comigo? - expressou Laura,


evidenciando sua alteração.

Tradução Lauren Moon


- Foi ele quem salvou você de Lezica ontem à noite -
continuou o general, em seu habitual modo enigmático.

- O senhor Rosas acertou em passar por ali, justo quando


Lezica me ameaçava.

- Laura, não me subestime. O senhor Rosas e você estão


intimamente relacionados.

- Não existe nada entre o senhor Rosas e eu.

- Vou me corrigir. Deveria ter dito que vocês estiveram


intimamente relacionados.

- Não lhe acompanho, Julio.

- Quero dizer que estiveram, porque o senhor Lorenzo


Dionisio Rosas é Nahueltruz Guor, o ranquel a quem você amou em Rio
Cuarto.

Laura se separou dele convulsivamente. O horror se desenhou


em seu semblante, descarnando suas bochechas. Roca não escondeu seu
medo quando acreditou que desfaleceria. Aproximou-se para sustentá-la,
mas ela foi para trás com uma careta que delatava o pânico e a repugnância
que lhe inspirava nesse momento. Roca lamentou o sarcasmo que tinha
empregado para abordar um tema tão penoso e meditou as palavras que
usaria a seguir. Laura lhe adiantou ao perguntar:

- Por que diz isso, que Lorenzo Rosas é Nahueltruz Guor?

- Laura, por favor - suplicou o general, e tentou agarrar sua


mão.

- Não me toque. Diga-me por que afirma que são a mesma


pessoa. Que base tem para sustentar semelhante conjectura?

Roca explicou pausadamente que, tempo atrás, logo que


começou seu affaire, tinha mandado pedir o expediente, onde detalhavam
os acontecimentos que haviam terminado com a vida do coronel Hilario
Racedo. Dessa leitura, soube que acusavam o índio ranquel Nahueltruz
Guor, primogênito do cacique geral Mariano Rosas. Tempo mais tarde, de
volta da expedição ao sul, encontrou uma velha carta de Manuel Baigorria,
a quem tinha conhecido durante seus anos como chefe do Fuerte Sarmeinto
em Rio Cuarto. Nessa carta o coronel unitário se espraiava a respeito da

Tradução Lauren Moon


vida do primogênito de Mariano Rosas. Ali lhe contava, entre outros
detalhes, que, a pedido de sua mãe, uma cristã, o garotinho tinha sido
batizado e chamado de Lorenzo Dionisio Rosas.

- Devem existir centenas de Lorenzos Rosas - arguiu Laura, e


seu nervosismo delatava a falta de convicção de seu argumento.

- Mas nenhum que encaixe tão bem com a descrição do índio


que matou Racedo, apesar de agora usar o cabelo curto e se vista tão
elegantemente. Suas feições, a tonalidade de sua pele, a cor de seus olhos,
tão incomum, não podem ser casualidade. Terminei de me convencer
quando soube que tinha sido ele quem lhe salvou de Lezica ontem à noite.
Sua presença no lugar era muito oportuna para ser casualidade. Acredito
que se o confrontasse com Mansilla e este levasse um tempo para estudá-lo
com atenção, terminaria por aceitar que este cavalheiro é o índio que
conheceu em 70 durante sua excursão ao País dos Ranqueles. Se tiver lido
seu livro, saberá que o menciona em várias ocasiões.

Laura percebia como o pranto subia por sua garganta e a atava.


As lágrimas tornavam imprecisa sua visão, e teve que aferrar suas mãos
para que deixassem de tremer. A vida e a liberdade de Nahueltruz voltavam
a correr perigo, e por sua culpa. Um impulso a levou a ficar de joelhos
diante de Roca e aferrá-lo pelos antebraços.

- Julio - execrou -, não o denuncie. Suplico-lhe, não o


denuncie.

Roca jamais imaginou que a fria e calculista viúva de Riglos


fosse capaz de uma fraqueza semelhante. Tratou de levantá-la, mas ela se
encolheu a seus pés, de cara para o piso. Chorava como poucas vezes Roca
tinha visto alguém chorar. Terminou de cócoras junto dela, insistindo para
que ficasse de pé. Lucila, a doméstica, entrou na sala e o ajudou a levá-la
até sofá.

- Laura, por favor, se acalme. Está muito pálida. Lucila, sirva


um copo com licor. Vamos, Laura - insistiu, quando a moça lhe passou a
bebida -, beba um pouco disto.

Laura concordou. Roca apoiou o copo sobre seuss lábios e ela


deu dois goles. Embora a bebida parecesse queimar seu esôfago,
reconfortou-a. Roca, com um gesto de mão, despediu a doméstica.

- Julio - choramingou Laura -, não o denuncie. Ele sofreu


muito, e por minha culpa. Não seria justo que fosse para a prisão.

Tradução Lauren Moon


- Matou um homem, Laura. Um militar da Nação.

- Um verme da Nação! - pareceu avivar-se.

- O relatório diz que Racedo salvou você de ser ultrajada pelo


índio Nahueltruz Guor.

- Por favor, Julio, não acreditará nas calúnias que inventou o


tenente Carpio. Nahueltruz e eu nos amávamos. Naquela tarde, no
estábulo, fomos surpreendidos por Racedo, que deixou muito em claro que
primeiro se divertiria comigo e depois iria matar nós dois. Nahueltruz só
me defendeu.

- Por que Racedo diria isso? Que razão tinha para comportar-
se desse modo?

- Duas razões: primeiro, porque odiava Nahueltruz, devido


uma briga que tinham tido anos atrás, em que ele tinha marcado sua cara
com seu facão. Segundo, por ciúmes e por orgulho ferido, porque Racedo
me propôs casamento. Sim - ratificou, ante a surpresa de Roca -, o padre
Donatti e todo Rio Cuarto são testemunhas dos avanços desse desgraçado.
O infame, velho caquético, com seu modo petulante insuportável, pensou
que eu poderia ver nele o companheiro de minha vida. Sentia aversão cada
vez que se aproximava de mim. Eu não tolerava sua presença. Acredito que
cheguei a odiá-lo. Eu sei que posso odiar, Julio. Nunca lamentei sua morte.
Acredito que a merecesse. Nahuel, ao contrário, é um homem
extraordinário. Valente, nobre, sincero. Defendeu-me no estábulo e pagou
muito caro por fazê-lo. Eu consegui escapar da lascívia de Racedo, mas o
preço foi a liberdade e a paz de Nahueltruz. Por isso, Julio, agora que você
sabe... Vai começar tudo de novo. Oh, meu Deus! Isto não pode estar
acontecendo. A vida parece uma roda que sempre passa pelos mesmos
lugares. Ontem à noite, com Lezica... Eu não quero, já não posso mais, Oh,
Julio!, rogo-lhe que tenha piedade dele.

Laura se quebrou novamente, e Roca a deixou quebrar.


Manteve-se a seu lado no sofá, mas não a tocou. Ela foi-se acalmando e
secou suas bochechas com o lenço que ele lhe estendeu. Ninguém
pronunciou nenhum palavra por alguns minutos. Laura tinha a mente em
branco e fixava sua atenção nos arabescos do tapete. Roca cobriu sua mão
com a dele e a tirou de sua abstração. Custava romper o silêncio, mas tinha
que perguntar.

- Vai denunciá-lo?

Tradução Lauren Moon


- Tão pouco conhece o que sinto por você que me julga capaz
de infligir-lhe semelhante dano?

- Oh, Julio - murmurou Laura, e levantou o rosto.

Roca acariciou sua bochecha e beijou seus lábios. Olharam-se


intensamente. Os olhos enegrecidos de Laura brilhavam com um ardor que
ele não conhecia. Era felicidade pura o que a fazia ver-se tão linda e
delicada nesse instante. Ele a desejava toda para ele, não só seu corpo, sua
alma, mas seu coração também. Mas nada lhe pertencia. Nem sequer seu
corpo. Poderia ter pedido que fizessem amor, e Laura teria concordado.
Mas ele era muito homem para se conformar com as migalhas. Ele a queria
toda. Separou-a de si e ficou em pé. Caminhou diante do sofá com atitude
impaciente, e Laura compreendeu a agitação que estava padecendo. Roca
se deteve subitamente para olhá-la.

- Nos informe da expedição - disse - ficará marcado que o


cacique Nahueltruz Guor morreu em alguma emboscada.

- Nunca esquecerei o que tem feito por ele. Sempre irei


considerá-lo meu grande amigo, e, quando precisar de mim, qualquer que
seja a circunstância, ali estarei para lhe ajudar. Quero-o profundamente,
Julio, sempre vou lhe querer.

Laura abandonou a casa da Rua Chavango mergulhada em


uma tormenta de sensações. O que mais a perturbava era uma pergunta
recorrente, a qual não podia encontrar resposta: é possível amar dois
homens?

Tradução Lauren Moon


Capítulo XIX.

Além de um affaire

A candidatura de Roca, o antagonismo de Tejedor e o assalto à


viúva de Riglos perpetrado por Climaco Lezica eram os temas que
mantinham Buenos Aires entretida. Os jornais se espraiavam em suas
páginas, mencionando circunstâncias e dizeres que as pessoas tomavam por
certo. Assim, os três temas haviam transbordado.

Como era de costume, Eduarda Mansilla visitou Laura na hora


do chá e a encontrou com um ânimo peculiar; embora na aparência
ignorasse o ataque da Lezica, parecia, entretanto, muito afetada. Eduarda
não podia saber que a despedida com Roca no dia anterior a tinha deixado
mergulhada na angústia, não porque desconfiasse da nobreza do general -
estava segura de que não denunciaria Nahueltruz -, mas porque, depois do
encontro, não sabia se, em realidade, queria terminar com ele. Ao lhe
prometer que se absteria de denunciar Nahueltruz, Roca tinha demonstrado
a grandeza de seu coração e também seu sentido de Justiça, porque, além
de fazer isso por ela, Roca tinha julgado o papel de Guor como o de um
homem que defendeu a honra de sua mulher.

Já sentia saudades de seus encontros. A paixão que ele tinha


prodigalizado com generosidade, depois de anos de ter vivido mergulhada
na dor, havia lhe devolvido, em parte, a esperança perdida em Rio Cuarto.
Sentia saudade das conversas que sustentavam depois de fazer amor,
intercâmbios intensos e sutis que lhe tinham dado ideia da sagacidade do
general. Sentia saudade irremediavelmente. Mas nunca voltaria para a casa
da Rua Chavango, porque fazê-lo não teria sido correto. Apesar de seu
permanente desafio aos cânones sociais e de seu comportamento
anacrônico, Laura entendia que, em certas ocasiões, teria que fazer de
acordo com aqueles princípios ancestrais, que determinavam com cortante
firmeza o que é bom e o que é mau, sem ambiguidades. De qualquer forma,
já começava a retribuir o favor, pois havia mandado chamar Mario Javier
para instrui-lo a respeito da postura que adotaria La Aurora no que
concernia às próximas eleições presidenciais.

- Minha mãe está muito zangada com você - manifestou


Eduarda.

- Por quê?

Tradução Lauren Moon


- Leu o último capítulo de La gente de los carrizos, onde
afirma que o cacique Mariano Rosas é filho ilegítimo de meu tio Juan
Manuel.

- Isso assegurava a índia Mariana, a mãe de Mariano Rosas.

- Minha mãe afirma que é uma calúnia.

- Dona Agustina - disse Laura com graça - não deveria


ofender-se tão facilmente, quando se tratar da moralidade de seu irmão.
Acaso ela desconhece o rol que jogou a pobre Eugenia Castro durante anos
na quinta de San Benito? Deu-lhe sete filhos, Por Deus Santo! Todos
sobrinhos dela e primos dos teus irmãos.

- Em minha casa nunca se fala de Eugenia Castro - admitiu


Eduarda.

- Pois deveriam ocupar-se dessa pobre mulher. Ela e seus


filhos viveram virtualmente de caridade em 52. A vida foi muito dura com
ela. Seu tio roubou sua infância e a juventude, e a deixou sozinha no pior
momento com um bando de meninos. Desculpe-me, Eduarda, é a última
pessoa com a qual desejo ser dura, mas as hipocrisias me irritam. Dona
Agustina já deveria saber que seu irmão não foi apaixonado apenas por sua
luta contra os unitários.

- Que notícias tem de Lezica? - perguntou Eduarda, e Laura


respeito que desejasse acabar com o tema da personalidade de seu tio Juan
Manuel.

- Esta manhã veio me ver o delegado Cores, que esta


encarregado da investigação. Parece que Lezica cruzou o rio e agora está
em Montevidéu. Não apresentei denúncia, só detalhei os fatos. Tudo se
resolveu muito convenientemente para mim e isso é o que conta.

- Tentou assassinar você, Laura.

- Estava bêbado. Além disso, eu o levei a um extremo crítico


ao ameaçá-lo em revelar seu casamento secreto com essa moça do campo.
Sua reação foi lógica, principalmente bêbado como estava.

- O senhor Lezica foi um cretino. Enganava muito bem a todos


nós.

Tradução Lauren Moon


- Não apresentarei denúncia - reiterou Laura -. Não queria
destruir Lezica, nem sequer agora é minha intenção fazê-lo, apesar do
espetáculo de anteontem à noite. Somente queria que deixasse de lado a
estupidez do casamento com Pura. Isso está obtido. Que cada um prossiga
com sua vida. Meu advogado, que esteve presente durante a visita do
delegado Cores, explicou-me que a polícia e a Justiça atuarão de ofício,
independente de eu apresentar denúncia ou não. Mas já sabe que, se não
houver quem instigue de fora, estas causas terminam por minguar e
finalmente por desaparecer. Lezica tem muitos amigos no governo. Alguém
o ajudará para que a causa esmoreça mais cedo que tarde.

- Converteu-se em uma paladina de nosso sexo - expressou


Eduarda -. Embora muitas mulheres se calem para não aborrecer seus
maridos, sei que lhe admiram por seu valor e desenvoltura. Algumas já se
perguntam qual será sua próxima vítima entre os homens, sua próxima
façanha.

Laura suspirou e bebeu um gole de chá. De repente, Eduarda


notou o cansaço em seu olhar; havia um pouco de melancolia também.

- Não mais façanhas. Não são divertidas para mim. O certo é -


disse, e sua voz pareceu debilitar-se - que fui muito independente. Agora
desejaria que me mimassem e que me protegessem. Já cansei de lutar
sozinha, Eduarda.

Maria Pancha anunciou a senhora Lynch, e Laura indicou que


a fizesse entrar.

Eugenia Victoria não vinha sozinha; acompanhava-a sua


cunhada, Esmeralda Balbastro. Enquanto lhe estendia uma xícara de chá,
Maria Pancha olhou nos olhos de Esmeralda e conseguiu desconcertá-la;
supunha-se que o serviço doméstico não tinha a atribuição de olhar nos
olhos aos patrões; a submissão era requisito sine que non. Embora,
tratando-se da servente pessoal da senhora Riglos, podia-se esperar que
saísse do comum. No entanto, Maria Pancha pensava: “Algum dia direi a
esta moça que ela e eu somos parentas”. A mãe de Maria Pancha,
Sebastiana Balbastro, havia sido prima-irmã do avô de Esmeralda.
Diferentemente de Laura, ela apreciava a viúva de Romualdo Montes e não
entendia a origem do rancor; Esmeralda sempre demonstrava que a queria e
admirava. Ciúmes, talvez, pois Laura esteve meio apaixonada por seu
primo mais velho.

Laura incomodou-se com a presença de Esmeralda. Embora


ela nunca tivesse caído em suas graças, desde que ela e Lorenzo Rosas
Tradução Lauren Moon
eram mais que bons amigos, a aversão tinha-se acentuado. Mostrou cortesia
elementar e cuidou de não olhá-la, nem pensar nisso. Esmeralda, por sua
vez, limitava-se a escutá-la e estudá-la para depois elaborar um relatório
acertado para Lorenzo, que tinha-lhe pedido que corresse à casa de La
Sintíssima Trindad para saber do estado de sua proprietária. Pois bem,
Laura parecia magnífica, como sempre. Embora um olhar mais intenso e
agudo tivesse descoberto que o esplendor de meses atrás havia-se ofuscado;
que a majestosidade e o rigor que inspirava pareciam ausentes de seu porte,
que já não intimidava, nem causava medo, e, o que era mais curioso,
parecia ter perdido o interesse em fazê-lo. Uma sutil, mas perceptível
transformação havia-se operado nela. Também diria isso a Lorenzo.

~0~

Mais tarde, faltando pouco para o jantar, Maria Pancha entrou


no dormitório de Laura e disse que Blasco a aguardava no vestíbulo. Laura,
que costumava se recostar uns minutos antes de jantar, incorporou-se com
preguiça e se dirigiu à penteadeira.

- Por que não o fez passar à sala?

- Não quer, diz que no vestíbulo está bem. Ontem veio


procurá-la três vezes. Na última oportunidade, o agarrou sua tia Dolores e
lhe ladrou como cão raivoso. Terminou mandando-o embora.

Laura se apresentou no vestíbulo e insistiu para que passassem


à sala.

- Aqui estou bem, senhorita Laura. Só desejo falar umas


palavras com você. Desculpe-me a hora.

- Esta é minha casa, Blasco. Aqui se faz o que eu ordeno. E


agora ordeno que passe à sala e se acomode.

Sentaram-se, e Laura pediu um aperitivo.

- Ficará para o jantar.

- Oh, não! - exclamou Blasco, e suas orelhas ficaram


vermelhas.

- Oh, sim - imitou Laura -. Se chegar a se casar com minha


sobrinha Pura, nós passaremos a ser sua família e compartilharemos muitas
noitadas juntos. É hora de ir-se acostumando.

Tradução Lauren Moon


- Casar-me com sua sobrinha Pura - repetiu o moço com ar
abatido -. Acredito que será impossível. Seu primo, o senhor Lynch, jamais
me aceitará.

- Blasco - disse Laura com acento imperioso -, a última coisa


que desejo para minha sobrinha é um homem pessimista, que não enfrenta
as armadilhas por julgá-las muito grandes. Ânimo, Blasco! As
circunstâncias estão do nosso lado, será que não consegue ver isso? Depois
de ter desmascarado Lezica, o caminho se aplainou notavelmente.

- Sim, é certo - concedeu, carente de veemência -. Mas, você


sabe, eu sou pouca coisa para Pura. Ela está tão acima de mim. Que posso
lhe oferecer? Não quero que passe necessidades, nem que seja infeliz por
minha culpa. Eu...- pareceu duvidar-. Enfim, depois de ter sido testemunha
do que ocorreu com vocês, com Nahueltruz e você...

Laura levantou a mão e o mandou calar.

- Desculpe - murmurou Blasco, sem olhá-la

Ninguém falou de imediato. O moço, por vergonha. Ela,


porque estava extremamente afetada. Blasco, era uma das poucas pessoas
que conhecia com detalhe os vaivéns daqueles vertiginosos dias em Rio
Cuarto, e evitou mencioná-lo desde sua volta em abril, e mais, manteve-se
afastado e indiferente. No primeiro momento, deixou claro que
compartilhava o rancor de Nahueltruz Guor e que não desejava reiniciar
sua amizade. Tempo mais tarde, as circunstâncias os tinham aproximado.
De qualquer maneira, isso não lhe conferia o direito de abordar um tema
tão doloroso e irromper com comentários que não estava preparada para
escutar.

- Com você e com Pura não ocorrerá o que nos aconteceu -


expressou quase em um sussurro, e, imediatamente, adicionou -. Ontem
estive com meu primo, José Camilo Lynch, e concordou em recebê-lo em
sua casa como é o desejo de sua filha - Blasco levantou rapidamente a
olhar, tinha iluminado seu rosto moreno e de novo tinha as orelhas como
pimentões -. Sim, é certo. Permitirá que você a visite. Mas não vou lhe
mentir, Blasco. O senhor Lynch não olha com bons olhos seu cortejo.
Ficará em suas mãos destruir os preconceitos que se formou em relação a
sua pessoa. Deverá demonstrar para ele que, além de amar profundamente
sua filha, está disposto a progredir para oferecer uma vida digna da filha de
um Lynch. Meu primo não é da filosofia “Com você, pão e cebola”.
Ofereço-lhe minha ajuda. Já sabe que conta com ela. Além disso -
adicionou, porque pareceu que Blasco se desmoralizou -, você e Pura são
Tradução Lauren Moon
jovens. Ela acaba de fazer quinze anos. Ainda têm muito tempo para se
conhecereme. Crescerão e amadurecerão juntos. Há tempo, Blasco -
repetiu, enquanto aplaudia sua mão -, muito tempo.

- Quando voltarei a ver sua sobrinha, senhorita Laura?

- Retornará a Buenos Aires depois de amanhã junto com dona


Luisa del Solar. Poderá vê-la no espetáculo de La Traviata no Teatro
Colón.

- Depois de amanhã? No Teatro Colón? Que fica em frente à


Plaza de La Victoria? - Laura assentiu -. Amanhã mesmo irei comprar a
entrada. Restarão lugares ou já se esgotaram? Por faltar tão pouco e sendo
La Traviata tão popular, duvido que restem entradas. Não importa, vou
ficar plantado na porta do teatro. Sempre existem aqueles que revendem
suas entradas. Assim acontecia no Palais Garnier. Estou disposto a pagar
qualquer preço, por mais exagerado que seja, tudo para voltar a vê-la. Não
importa. E se não conseguir uma entrada, então ficarei na porta para saudá-
la, quando a ópera terminar. Possivelmente dona Luisa me permita escoltá-
las até sua casa.

- Tome um pouco de ar, Blasco - sugeriu Laura, entre risadas -.


Não haverá necessidade de correr amanhã a comprar nenhuma entrada.
Ocupará uma das poltronas de meu camarote. E se conseguimos disfarçar a
persistente custódia de dona Luisa, poderá se sentar junto de minha
sobrinha. Devo advertir que minha prima, Eugenia Victoria, também estará
lá. Não desfaleça, ela não é da mesma opinião do senhor Lynch no que diz
respeito à relação de vocês.

Blasco parecia refulgir de felicidade, Laura o contemplava


encantada. Um sorriso amplo e branco ocupava seu rosto. Só em Rio
Cuarto Laura o viu sorrir desse modo. Dava a sensação de que ficaria em
pé e começaria a saltar e a gritar de alegria. Ela conhecia com profundidade
esse estado de plenitude, apesar de fazer anos que não o experimentava.
Não pôde evitar sentir inveja, inclusive ressentimento, que não ia dirigido a
ninguém em particular, o que era extremamente frustrante. Possivelmente,
a única culpada por tanto dor era ela mesma.

- Esta felicidade me enche de culpa - expressou Blasco, e


Laura soube que ele faria uma confissão que não desejava escutar -. Por
Nahueltruz, refiro-me.

- Assim como o senhor Lynch, Guor terá que aceitar sua


relação com Pura.

Tradução Lauren Moon


Blasco a olhou confuso; era a dureza da senhorita Laura que o
havia desorientado. Além disso, soou chocante que o chamasse de Guor e
que se referisse a ele como fosse um estranho.

- Não me refiro a minha relação com sua sobrinha. Ele já


aceitou a ideia. Ao menos assim parece. De qualquer maneira, Nahueltruz
está sofrendo, quando eu me sinto tão feliz. Ele foi um pai para mim, deu-
me tudo o que tenho. Devo-lhe o que sou. Devo-lhe inclusive ter conhecido
Pura. Quando digo que sofre, refiro-me a que sofre por nosso povo, pelo
que aconteceu com eles, enquanto ele estava tão afastado de tudo. Ele sofre
por seu tio Epumer, que está preso em Martín García. O senador
Cambaceres não pôde conseguir a permissão para visitá-lo. Esse é seu
grande pesar. Sei que possivelmente se trate de uma imprudência de minha
parte, até poderia tomá-lo como uma rabugice, mas, você não poderia
ajudá-lo, senhorita Laura? Você conta com amigos entre as pessoas do
governo. Possivelmente poderia falar com algum deles. Com o general
Roca, por exemplo. Dizem que é seu amigo.

- Dizem que é meu amante.

Blasco ficou rígido. Laura, ao contrário, prosseguiu com


soltura, como se não houvesse dito o que disse.

- Não acredito que Guor aceite minha ajuda. Desde que chegou
a Buenos Aires deixou claro que minha presença lhe aborrece. Em poucas
palavras, Blasco, Guor me detesta.

- Ele não a detesta, senhorita. Está ressentido, mas não a


detesta.

- Não sei se quero falar deste assunto com você.

- A princípio - prosseguiu o moço -, eu também estava


ressentido com você. Coube a mim dizer a Nahueltruz que você havia se
casado com o doutor Riglos. E eu o vi sofrer. Eu o vi chorar, senhorita.
Quando acreditava que eu dormia, Nahueltruz chorava, um pranto
reprimido, quase silencioso, mas eu o escutava de qualquer maneira. Jamais
pensei que um homem como ele pudesse chorar. Agora entendo que um
homem também pode chorar, mas naquele momento me afetou
profundamente. Suponho que, quando ele perdeu você, desejou morrer. -
Em um tom baixo, quase inaudível, acrescentou -: Acredito que ainda a
ama.

Tradução Lauren Moon


Dolores Montes entrou na sala e se deteve repentinamente ao
ver Blasco.

- Ah, tia Dolores - disse Laura, e tirou suas lágrimas, passando


uma mão impaciente pela bochecha -. Por que não me avisou que o senhor
Tejeda tinha vindo me visitar ontem de tarde?

Dolores não respondeu e ficou olhando-os com frieza.

- Peça a Esther - prosseguiu Laura - que coloque outro lugar à


mesa. O senhor Tejeda nos acompanhará esta noite.

- Para jantar? - escandalizou-se a mulher.

- Sim, para jantar. Vamos, tia, o que está esperando? Inclusive


para você o que acabo de dizer é uma ordem fácil de entender.

~0~

Segundo Roca, os portenhos possuíam a inútil qualidade de


imputar as culpas às pessoas e situações mais desatinadas, errando de plano
os verdadeiros promotores do conflito. Assim, atribuíam a sua candidatura
todos os males que assolavam ao país. Personagens destacados como
Bartolomeu Mitre e Rufino do Elizalde, ambos do Partido Nacionalista,
asseguravam que uma “liga de governadores” pretendia impor pela fraude e
pela violência um general como presidente. Roca achava irresponsável esta
afirmação porque, vindo de personalidades tão destacadas e admiradas,
servia para avivar os ânimos por si só esquentados.

Por sua vez, Sarmiento, embora não era portenho, aproveitava


a maturação para seu promover sua segunda candidatura adicionando sua
cota de confusão ao escândalo. Nada desejava mais que voltar a ocupar a
poltrona presidencial. Ele sustentava que, qualquer das duas propostas, a de
Roca ou a de Tejedor, fariam retroceder vinte anos ao país, mergulhando-o
novamente na guerra civil. E como todos temiam essa possibilidade,
parecia factível que seu desejo se convertesse em realidade.

Apesar de ter os grandes como Mitre e Sarmiento contra ele,


Roca não se intimidava, e, embora não estivesse sozinho, o maior poderio
que o acompanhava radicava em sua própria mesura e sensatez. Certo que
seus inimigos não lhe davam trégua. A corrente tejedorista encontrava
capacidade na maioria dos jornais e pasquins portenhos, inclusive nas
escolas, nos clubes e em cada lar se infundia a idéia de que Roca
representava pouco menos que o demônio, enquanto Carlos Tejedor havia

Tradução Lauren Moon


se convertido no paladino defensor de Buenos Aires. Eram tão ásperas as
objeções contra sua proposta que Roca não entendia como prosperavam, a
população havia se idiotizado ao som de discursos rimbombantes e
vociferados. Lembrava o velho refrão L’argent fait a guerre63, que,
infalível, marcava-lhe o norte naquela rixa pouco digna. Porque embora
incitassem à população de Buenos Aires para pegar armas contra o
Governo Nacional com a desculpa da liberdade e a independência, o
verdadeiro e antigo motivo de rancor se escondia como um covarde nos
ganhos alfandegários. Roca admirava a ingenuidade dos portenhos. Acaso
acreditavam que caso se convertesse em presidente da República faria
desaparecer Buenos Aires do mapa?

Nessa manhã, Artemio Gramajo tinha trazido os jornais mais


relevantes. El Mosquito, com suas conhecidas e mordazes caricaturas e La
Nación, de Bartolomeu Mitre, que o atacavam ferozmente, um artigo do
primeiro se misturava em sua vida privada e até mencionava abertamente à
viúva de Riglos. O jornal El Publo, de recente criação para sustentar a
campanha roquista, não ficava atrás e arremetia contra Tejedor com a
mesma insídia. Tejedor, entretanto, era difícil envolvê-lo em affaires non
sanctos fora do casamento, muito correto e inflexível para pilhá-lo em um
deslize dessa índole.

Roca afastou os jornais com um gesto de desagrado.


Surpreendeu-o encontrar sob a pilha um exemplar de La Aurora, porque
não era um jornal que Artemio costumasse levar para ele. Nessa manhã, na
primeira página, havia uma coluna assinada por seu diretor, Mario Javier,
onde se comentava a recente criação do Tiro Nacional em Palermo. “Parece
pouco propício, - rezava o artigo -, a criação de um prédio para aprender o
manejo de armas de fogo em um momento em que a população toda
encontra-se exaltada e propensa à violência. Isto demonstra a pouca
sensibilidade de um governo cegado em sua sede por alcançar o poder
nacional”. Embora em nenhuma linha mencionasse o apoio a Roca e sua
candidatura, a prosa manifestava explicitamente seu rechaço a uma
proposta de bairrismo exacerbado que “só conduzirá à quebra da Nação,
com a consequência inevitável de uma guerra civil. Quanto sangue de
homens úteis precisamos derramar os argentinos para começar a ser um
país sério? Não basta o já derramado?”. Em um artigo na parte interna do
jornal condenava-se o acionar de um grupo de homens armados conhecidos
como “os rifleros”, que, em seu caminho para o Tiro Nacional, haviam-se
detido sob a janela do escritório do ministro da Guerra e Marinha e
vociferado “Morra Roca!”. “Não é este, - dizia o artigo -, o comportamento
digno de uma sociedade democrática e republicana. Enfim, parece que
63
Há sempre dinheiro para a guerra (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


alguns portenhos covardes se esqueceram do espírito que trataram de nos
inculcar os homens de Maio e tentam impor em um país onde a palavra
liberdade é sagrada, sua vontade caprichosa à força de ameaça e coerção”.

Um secretário bateu à porta e anunciou a chegada da senhora


Riglos. Roca soltou o jornal e ficou de pé.

- Que entre, que entre - disse, visivelmente surpreso.

Laura entrou e atrás dela fechou a porta. Novamente a sós,


Roca se aproximou e a beijou casualmente na bochecha. Laura, sem olhá-
lo, sorriu com cumplicidade.

- Como vai?

- Bem.

- Seus filhos?

- Bem, obrigado.

- E Clara?

- Com vontade de ir para Córdoba

Laura se sentou na cadeira indicada. Roca ocupou a poltrona


de seu escritório em frente a ela. Ambos acharam estranha a distância que
os separava.

- Bebe alguma coisa?

- Não, Julio, obrigada. Não vou tomar muito do seu tempo. Sei
que está muito ocupado.

- Ocupado em ler as apologias a minha pessoa. Sua interrupção


foi mais que oportuna. Começava a acreditar no que dizem de mim.

- E da viúva de Riglos - observou Laura, e assinalou


rapidamente o exemplar do El Mosquito -. Li esta manhã. Minha tia
Dolores o mencionou na frente de meus avós e a minha mãe durante o café
da manhã.

- Sinto muito

Tradução Lauren Moon


- Não tem importância. É por eles que me dá pena, que dão
tanta importância a esses comentários.

- Seriamente se importa bem pouco, não?

- Sabe que não me afeta o que os outros dizem. Minha mãe diz
que é um defeito.

- Eu acredito que seja uma virtude - disse Roca.

- Não acho que seja nem uma virtude, nem um defeito.


Simplesmente, sou assim. De qualquer maneira, não quis que esses
comentários prejudicassem seus propósitos.

- Os comentários a respeito da nossa relação não prejudicariam


um ápice algo que já está muito complicado por si só. Além disso, para a
opinião pública poderia significar uma prática de baixa índole utilizar uma
intriga do qual não existem fortes evidências para manchar meu bom nome
e danificar a moral de minha família. As pessoas não se afeiçoaram
comigo, mas o tem feito com minha mulher e os meninos. Este ardil
terminará por voltar-se contra quem a trama.

Laura não estava de acordo. Conhecia os portenhos, e


considerava que a menção do namorico podia prejudicá-lo.

- Acredito que será a postura fanática de Tejedor que terminará


por voltar-se contra ele.

- Não estou tão certo - opôs Roca -. Os portenhos receberam o


fanatismo de Tejedor de braços abertos. E mais, parecem dispostos à luta
armada.

- Não é necessário que o esclareça. Antes que saísse para cá,


Ciro Alfano, um empregado da Editora del Plata, chegou sem fôlego em
casa para me avisar que os rifleros tinham atacado a pedradas a fachada da
editora. As consequências se limitam a um escândalo de vidros quebrados e
alvenaria danificada. Não é isso o que me chateia, a não ser a farsa em que
dizemos viver. Onde está a renomada liberdade de expressão que tanto
apregoam os constitucionalistas? Por que El Mosquito pode falar a meu
respeito o que bem deseja e quando La Aurora, com respeito e decoro, dá
sua opinião só consegue que um grupo de selvagens o ataquem? Depois
dizem que os índios são bárbaros!

- Mandarei pôr um guarda à porta da editora.

Tradução Lauren Moon


- Não, Julio. Essa medida só conseguirá piorar as coisas. Desta
vez decidi fazer vista grossa.

- Mas não deixará que esses porcos saiam impunes! É sabido


que a Editora del Plata é de sua propriedade. O que farão da próxima vez,
apedrejá-la em plena Rua Florida?

Roca estava sinceramente contrariado e Laura se arrependeu


de ter feito o comentário. Mas essa sensação inescapável que
experimentava junto a ele, essa segurança e amparo que Julio Roca lhe
inspirava, tinham-na levado a falar. Às vezes, quando o peso das
responsabilidades se tornava cansativo, assaltava-a a necessidade de
compartilhar a carga com ele.

- Deixemos de lado esse assunto. Não merece nosso tempo


nem consideração. Vim lhe incomodar por outra coisa. Vim lhe pedir um
favor.

- O que quiser.

- Não se apresse. Possivelmente não se encontre tão disposto


quando escutar o que tenho a lhe pedir. Até poderia se ofender e se zangar
comigo, me expulsar de seu escritório e não querer voltar a me ver nunca
mais.

- Isso seria impossível. Sempre desejo vê-la.

Laura sorriu satisfeita, enquanto procurava as palavras para


começar seu pedido. Desde que tomou a decisão de usar sua amizade com
Julio para conseguir a permissão para que Nahueltruz visitasse seu tio
Epumer, tinha ensaiado vários discursos. Nesse momento, diante de quem
tinha sido seu amante, nada do esboçado parecia apto.

- Trata-se do índio, não é?

Laura assentiu e não o olhou ao dizer:

- É por isso que é tão difícil lhe expor meu pedido. Temo
abusar de nossa amizade. Receio machucar você.

- Vamos, diga-me. Adula-me que recorra a mim.

- Trata-se do cacique Epumer Guor, tio de Nahueltruz, que se


encontra preso em Martín García. É uma permissão de visita ao presídio da
ilha o que vim lhe pedir.
Tradução Lauren Moon
Roca assentiu gravemente e, com um movimento de mão,
indicou-lhe que prosseguisse. Laura lhe contou a respeito da estreita
relação que, desde menino, Nahueltruz tinha mantido com o mais novo dos
filhos de Parné e de Mariana, herdeiro do trono com a morte de Mariano
Rosas. Embora não se destacasse como líder ranquel, em nada comparável
a Parné ou a Mariano, Epumer era o último varão da dinastia e o mais
querido por Nahueltruz Guor. Devia reconhecer que, da mesma forma que
Mariano Rosas, Epumer sempre tinha brigado pela paz. Não se tratava de
um homem de grande discernimento, mas não era um inútil, absolutamente.
Sua habilidade para trabalhar a madeira era reconhecida, como também seu
manejo com o gado e cavalos. Por último, disse-lhe que desperdiçar um
homem ainda jovem e proveitoso resultava imperdoável.

- Sabe-se que em Martín García as condições são


paupérrimas - prosseguiu Laura -. Soube que no ano passado tiveram que
trazer para vários detentos a Buenos Aires para que fossem tratados de
peste bubônica. Nenhum deles sobreviveu. No caso de Epumer, seria um
crime deixá-lo morrer, quando poderia ser útil em qualquer estância ou
chácara.

- Parece-me que briga por algo mais que por uma permissão de
visita. Na verdade, está brigando por sua liberação - Laura não comentou a
respeito e se limitou a contemplá-lo de maneira significativa -. Suponho -
retomou o general - que, ao vir para mim, está utilizando seu último
recurso.

- É o primeiro a quem recorro - manifestou Laura, e Roca


levantou as comissuras com ar irônico -. Embora deva ser honesta e
informar que as primeiras providências foram tomadas pelo senador
Cambaceres a pedido de meu irmão Agustín.

- E não conseguiu nada.

- Nada - ratificou Laura -. Não sei exatamente que pedidos


iniciou nem a quem recorreu para solicitar a permissão. Acredito que
Agustín mencionou que o senador visitaria ministro do Interior.

- Laspiur - acrescentou Roca -, meu inimigo mortal


atualmente.

- Oh.

- Laspiur apoia incondicionalmente a candidatura de Tejedor,


porque ele mesmo já se vê como vice-presidente.

Tradução Lauren Moon


- Entendo - murmurou Laura.

- Querida, não desanime. Laspiur não é o único poder para


estender esta autorização. Não esqueça que a ilha Martín García é
predominantemente um assentamento militar. E eu sou o ministro da
Guerra e Marinha. Se Cambaceres tivesse recorrido a mim, a permissão já
teria sido concedida.

- Como não desejava que meu nome figurasse nesta


intermediação (não desejava que figurasse absolutamente, Julio) - Roca
assentiu -. Bem, pois eu tinha pensado que falasse diretamente com o
senador. Mas como não sei em que termos está sua relação com ele, afinal.

- Atualmente é difícil saber com quem se pode contar, querida.


Poucos são os inimigos que mostram seus verdadeiros rostos. Mas deixe de
me olhar com esses olhos de cordeiro imolado e tire essa careta de seus
formosos lábios. Bem sabe que logo que transpôs aquela porta, já tinha
conseguido o que veio pedir.

- Não, não sabia. Mas bem, assaltavam-me toda classe de


dúvidas a respeito de sua disposição para colaborar com um assunto tão
rispido entre você e eu.

- Já vê que meu carinho vai mais além de todo tema ríspido.

Laura sorriu, e Roca notou que coloriam suas bochechas.

- Entretanto, há um aspecto que ainda me preocupa - continuou


Laura -. Como fará para explicar ao senador Cambaceres sua repentina
piedade para com o índio Epumer, quer dizer, seu repentino interesse em
outorgar a permissão para a visita?

- Disse-me que foi seu irmão, o padre Agustín Escalante, quem


pediu a Cambaceres que obtivera a autorização, verdade?

- Sim

- E por acaso não é certo que o padre Agustín e eu somos


amigos desde meus tempos no Fuerte Sarmiento em Rio Cuarto? Pois bem,
diremos que alguém comentou comigo sobre o grande afinco com que o
padre Agustín procura conseguir esse encontro com o cacique Epumer e
diremos também que alguém me contou que era o senador Cambaceres
quem o ajudava nas negociações. Ninguém suspeitará de meu repentino
interesse pelo bem-estar e o destino de um bárbaro que até faz vinte

Tradução Lauren Moon


minutos atrás me importava um cominho. Agora bem - retomou o general -,
o que sim poderia parecer estranho é que um homem como Lorenzo Rosas,
um homem, bastante estranho à realidade argentina, que viveu os últimos
anos em Paris, vá visitar um homem como o cacique Epumer. Levantaria
suspeitas.

- Suponho que esse é um risco que Rosas decidiu correr. De


todo modo, assim como você, ele poderia invocar sua amizade com meu
irmão Agustín e dizer que o negócio se realiza por ordem e conta de seu
grande amigo o padre Escalante. Além disso, ninguém tem por que saber
que Rosas visitará Martín García.

- É obvio - concordou Roca -, ninguém tem que sabê-lo. À


exceção, claro, do senador Cambaceres.

Laura ficou em de pé Roca a imitou com presteza.

- Já vai?

- Sim, Julio. Entretive você por muito tempo com meus


assuntos. Além disso, devo me preparar. O espetáculo no Colón será em
poucas horas. Irá?

- Clara não me perdoaria se não o fizesse. Tem grande


interesse em ver La Traviata.

- Estará no camarote oficial?

- Assim é, junto à Avellaneda e sua mulher.

- Vamos nos encontrar ali, então. E poderemos nos olhar frente


a frente, já que o camarote oficial se opõe ao meu - disse Laura.

- E deixaremos que outros nos olhem como se fôssemos


fenômenos de feira - demarcou o general -. Em especial em um dia como
hoje no qual El Mosquito se atreveu a mencionar seu nome tão abertamente
relacionado ao meu. E até possivelmente poderíamos escandalizá-los um
pouco se você me jogasse um beijo e eu lhe devolvesse outro.

Laurá riu e o general, em um impulso, beijou-a ligeiramente


nos lábios.

- Será divertido - disse Laura - converter-se no alvo de todos


os binóculos do teatro.

Tradução Lauren Moon


Cruzaram o escritório em silêncio, um ao lado do outro. Perto
da porta, Julio Roca obrigou-a a se deter e confessou em ouvido.

- Não costumo ter este trato tão civilizado e amistoso, quando


não faz tanto foi minha na casa do Chavango.

Laura apoiou sua mão sobre a bochecha e o acariciou.

- De uma ou outra forma, sempre vou ser sua, Julio. Ocupa um


lugar preponderante em meu coração. Não acredite que para mim é fácil
deixar de lado nossos encontros. Sinto tanto a sua falta. Tenho saudade da
paixão que compartilhávamos e também sinto falta de sua companhia e
nossas conversas.

- Mas não voltará para a casa do Chavango, não é?

- Não

- Aquele assunto - disse Roca-, que falamos em nosso último


encontro - Laura assentiu, e ficou fácil entrever sua ansiedade reprimida -.
Pois bem, esse assunto está quitado.

- Obrigada, Julio - e o beijou na bochecha, perto da comissura


da boca.

E como se ele tivesse escondido esperando essa pequena


debilidade dela, envolveu sua cintura com um braço e, agarrando sua nuca
com a mão, procurou sua boca com intemperança. Laura soltou um gemido
afogado, mas não tentou resistir. Cedeu quase que imediatamente,
abandonando-se ao prazer que lhe prodigalizava a intimidade com esse
homem. A acidez do primeiro momento desapareceu, e a paixão de meses
atrás tomou seu lugar. Quando se separaram, Roca a olhou com
provocação, como que desafiando-a a se queixar. Mas ela não disse nada.
Arrumou seu cabelo, alisou sua saia, e caminhou os últimos passos até a
porta.

- Laura - disse Roca -, não quero que La Aurora continue


mostrando sua inclinação por minha candidatura. A situação é tensa e mais
grave do que muitos querem aceitar. O que os rifleros fizeram hoje na
fachada da Editora del Plata é só uma pequena amostra do que são capazes
se lhes derem uma desculpa. Não desejo que se exponha. Não o permitirei.

Tradução Lauren Moon


- Não tenho medo, Julio. La Aurora continuará manifestando
sua opinião como sempre tem feito, como, supõe-se, tem direito a fazê-lo
em uma nação que se reputa civilizada.

- Laura, pelo amor de Deus! Não seja incrédula. Os civilizados


de dias atrás converterão-se em selvagens para defender o que tanto
cobiçam. O que acontece é que não tem consciência do que poderia
acontecer com você.

O general repassou as diferentes alternativas, mas se absteve


de expressá-las em voz alta. Embora Laura se mostrasse intrépida, ele sabia
que sua natureza era sensível e frágil.

- Tanto lhe importa esse índio que por agradecimento é capaz


de se arriscar desta forma? Porque o faz por agradecimento, não é? Só isso
lhe move - adicionou, sem ocultar a recriminação e a decepção.

- Em parte - replicou Laura, muito serena -. Mas se me


conhecesse profundamente, saberia que não o faço só por isso. Faço-o
também porque estou convencida de que é o presidente que a Argentina
necessita neste momento. Fará grandes coisas por este país, sei, conheço
você. Uma vez eu disse que, embora discrepássemos em certas questões, eu
o admirava e respeitava. Caso contrário, nunca teria sido sua. Disse
também que me parecia uma qualidade apreciável em sua pessoa que
levasse até o fim seus propósitos guiado por princípios e convicções, claros
e firmes. Não me resta dúvida de que lutará pela presidência movido, em
parte, pelo orgulho e o afã de poder que todos os homens com ambições e
horizontes amplos têm direito a ter, mas também sei que lutará pela
presidência porque está apaixonado por sua pátria. É um homem sensato,
prático e inteligente, chegará onde se propôs. Conseguiu me ter em sua
cama, terminou com o problema do índio, e agora será presidente não
importa a quem tenha que enfrentar. Além disso - adicionou, deixando de
lado o tom circunspeto -, eu só gosto de apostar nos que sei que ganharão.

Roca tomou seu rosto com ambas as mãos e voltou a beijá-la,


desta vez com delicadeza, sem reflexos de ciúmes nem paixão. Por fim,
abriu a porta. O secretário, que escrevia em um escritório afastado, ficou de
pé e estudou Laura com admiração.

- E espero, general - falou ela, com gesto irado -, que, de


acordo com que me prometeu, tome conta do assunto. É inadmissível que
um pasquim como é El Mosquito desonre o sobrenome de meu marido, que
foi um homem honroso, e arroje minha reputação aos cães com a única

Tradução Lauren Moon


finalidade de prejudicá-lo nas próximas eleições. As artimanhas destas
pessoas são tão infames como eles.

Ante a inesperada representação de Laura, Roca sofreu um


momento de desconforto. Em seguida se repôs e assegurou veementemente
que se encarregaria de interpor uma demanda por calúnias e injúrias contra
o mencionado jornal. Antes de abandonar o recinto, Laura se virou e,
aproveitando a distração do secretário, piscou um olho ao general, que
tossiu para ocultar a risada.

Roca voltou para seu escritório e ordenou ao empregado que o


seguisse. O moço entrou com um lápis e um anotador na mão.

- Ordene, general.

- Escreverá um bilhete ao senador Cambaceres onde lhe


expressará meu desejo de me entrevistar com ele o quanto antes.

- Sim, general.

O secretário saiu do escritório e Roca jogou chave à porta.


Necessitava de um momento a sós, sem risco de inoportunas interrupções.
Serviu-se de uma taça de conhaque e se estirou no sofá. Pensou em Laura,
no favor que já lhe tinha feito e no que ia fazer-lhe. Conseguir uma
permissão para visitar um presidiário em Martín García era nada
comparado com o que já tinha feito por ela: ocultar a identidade do
assassino do coronel Hilario Racedo e dá-lo como morto nos dossiês
correspondentes. Neste tema, adotou-se os atributos de um juiz.
Possivelmente deveria havê-lo denunciado, porque, se era verdade que
Guor tinha defendido Laura da lascívia de Racedo, o teriam absolvido em
qualquer julgamento. Não, não era certo. Justiça para um índio no mundo
dos cristãos era uma quimera. O julgamento seria convertido em uma
pantomima. A história se encarrega de mostrar que uma raça nunca foi
imparcial julgando a outra, menos ainda quando tanto sangue se derramou.
Nesses casos, o véu da Justiça cai e a balança se inclina escandalosamente.
Roca se conformou pensando que tinha procedido corretamente. Ele
confiava em Laura, que nunca tinha mentido para ele, a sinceridade tinha
caracterizado sua relação desde o começo. Ela era uma das pessoas mais
genuínas e corretas que conhecia. E Racedo. Ele também o conheceu.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XX.

La Traviata

Mercedes Castelhanos da Anchorena, uma dama de


indiscutível influência na sociedade de Buenos Aires, concentrou sua
impertinência.

- Aí está - avisou a suas amigas.

Como se tivessem ensaiado, as mulheres ajustaram seus


binóculos ao mesmo tempo para comprovar que a viúva de Riglos acabava
de fazer sua entrada no camarote do Teatro Colón, que fazia anos estava
quitado. Acompanhavam-na Eduarda Mansilla e Blasco Tejeda. Laura e
Eduarda conversavam e riam, Blasco, ao contrário, parecia nervoso.

- Deus as cria e elas se juntam - professou Guadalupe


Azcuénaga.

- Quem será aquele moreno? - perguntou-se Enriqueta Lacroze


-. Seu novo amante? - especulou entre risadas.

- Esse é Blasco Tejeda - corrigiu Bernarda Lavalle- , o


apaixonado por Purita Lynch.

- Que afronta ao pobre José Camilo!

Foi saudar o coronel Lucio Mansilla, atraente em seu


excêntrico estilo, com sua chamativa vestimenta e suas mãos pesadas de
anéis. O debonnaire64 que o caracterizava entre seus soldados se voltava
obsequioso, inclusive atrevido quando era cercado por formosas mulheres.
Sua esposa não o acompanhava, fazia tempo que viviam separados.
Inclinou-se sobre as mãos de Laura e de sua irmã Eduarda, disse algo, e
ambas sorriram com ar cúmplice.

- Quem terá confeccionado seu vestido? - interessou-se María


Pia da Alzaga.

- Sua prima Iluminada me disse que foi madame Du Mourier,


a costureira francesa que atende na Rua Florida - informou dona Joaquina

64
Afabilidade, delicadeza (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Torres, que estava acostumada a ser indulgente com Laura -. Têm que
admitir que lhe cai magnificamente.

- Joaquina, por favor - se queixou dona Mercedes de


Anchorena -. Este vestido não é o que usaria uma senhora decente.

- Mas lhe cai magnificamente - instou a senhora.

Em veludo verde profundo, ajustado por baleias de espartilho


na cintura, mostrava sua nota incomum no marcado decote, sustentado por
um corpete de gaze translúcida do mesmo tom do veludo, que cobria seu
peito nu e subia até a metade do pescoço. As mangas, na mesma gaze do
decote, chegavam ao cotovelo, onde nasciam as luvas de cetim negro. As
anquinhas - no julgamento da senhorita de Álzaga, muito proeminentes -
acentuavam a curva da cintura. A saia, que se truncava em sua parte
dianteira, formava dois véus debruados com cetim verde que conferiam ao
conjunto o brilho e o movimento dos quais carecia o veludo. As plumas do
penteado - de pavão - combinavam, com requinte, com o verde do vestido,
e não ofuscavam a diadema de brilhantes e esmeraldas ajustada em torno
do cocuruto, mas bem perto da testa.

- Nunca irei a essa costureira, madame Du Mourier. Sua


preferência pelos tecidos indecentes é manifesta. Lembro como foi
comentado aquele vestido de renda que a viúva de Riglos usou na noite da
apresentação do livro de Julián. Eu não o vi, mas disse a mulher de Guido y
Spano, que estava presente, que durante o jantar podiam ser contados os
sinais das costas. Que tipo de roupa interior usará com vestidos tão
indecentes? Porque não posso ver sequer a laço de seu espartilho.

- Penteou-se com uma trança, como de costume.

- Não conhecia esses brincos de esmeraldas. E a tiara é muito


bonita.

- Certamente são de Mazzini, onde adquire todas suas joias.

De um camarote próximo, uns olhos cinza a apreciavam com


marcada insistência, sem necessidade dessas impertinentes para distinguir
cada detalhe de sua fisionomia e de seu corpo. Essa habilidade de
contemplar à distância tinha adquirido em outro tempo, em outro cenário,
um cenário tão diferente desse teatro elegante de Buenos Aires, como era o
dia da noite.

Tradução Lauren Moon


- Quem você observa tão fixamente, Lorenzo? - quis saber
Saulina Monterosa.

- Não seja indiscreta - repreendeu-a seu marido, Armand.

- Está olhando para minha sobrinha neta, Laura Escalante -


interveio Carolina Beaumont, com os binóculos sobre seu rosto -, que com
certeza está muito bonita esta noite. O verde lhe cai muito bem. Se seu pai
pudesse vê-la, estaria orgulhoso dela.

- Por ser bonita? - ironizou Saulina

- Parece-se muito com sua mãe, minha sobrinha Magdalena


Montes, quando tinha sua idade. Mas não é só por isso que o general
Escalante a apreciaria com orgulho. Laura tem sido a cabeça da família
Montes nestes últimos anos e a salvou de sua maior derrota. Herdou duas
grandes fortunas, a de seu pai e a de seu marido, e não só soube conservá-
las, como aumentá-las. Embora não se saiba, porque ela assim prefere,
realiza doações muito importantes a diversos asilos, escolas e igrejas.
Lembra-se do Hospital de Mulheres que visitamos na semana passada,
Saulina? Virtualmente se sustenta com a contribuição que ela faz. E aquela
ala nova para parturientes está sendo construída exclusivamente com seu
dinheiro. Ah, por certo, levará o nome de meu irmão, Leopoldo Jacinto
Montes, que foi um grande médico.

- Também dizem - comentou Armand - que está muito


comprometida com a causa de seu irmão, o padre Agustín, e que envia
dinheiro para ajudar os índios do sul, especialmente agora que foram
definitivamente deslocados de sua terra.

- Ela adora seu irmão - explicou Carolina Beaumont - e o


ajudaria em qualquer causa em que ele embarcasse.

- Também firmam que adorava ela um índio - disse Saulina - e


que viveu um sórdido romance com ele, quando era muito jovenzinha.

- Minha sobrinha nunca me contou desse célebre romance.


Bem poderia ser um conto.

- Assim como o célebre romance com o general Roca?

Tradução Lauren Moon


- Mais, Saulina, qu’est ceque seu veux laisser entendre65? —
encolerizou-se Armand.

- Só repito o que pôde ser lido hoje nesse jornal do qual não
me lembro o nome.

- El Mosquito - observou Guor.

- Mercí, mon chéri - respondeu Saulina -. Ali diz, sem rodeios,


que ela e o general Roca são amantes.

- Isso não é certo - replicou Carolina Beaumont, com insólita


firmeza -. Ela jamais se comprometeria com um homem casado.

- Onde há fumaça - deixou entrever Saulina.

- Que diabos tem contra a senhora Riglos? - chateou-se


Armand.

- Simplesmente por ela ter quebrado o coração de meu irmão e


que o pauvre diable ainda não conseguiu se recuperar. Hoje recebi uma
carta de Marietta, onde diz que Ventura está como alma penada e que
perdeu o gosto por tudo aquilo que amava, por fim, que perdeu o gosto pela
vida. Isso só tenho que atribuir à senhora Riglos.

- Sinto muito - resmungou Carolina Beaumont.

Nahueltruz Guor dirigiu o olhar novamente para o camarote de


Laura e voltou a assombrar-se de quão cândida podia parecer aos olhos de
um inexperiente.

Em outro setor do teatro, as amigas continuavam com os


binóculos focados no camarote da viúva de Riglos, ao qual se juntaram
Eugenia Victoria Lynch, sua filha mais velha, Pura, e dona Luisa del Solar,
sua tutora. Blasco tinha deixado o lugar perto de Eduarda Mansilla para se
sentar ao lado de Pura, que mantinha o olhar baixo para esconder o sorriso
e a vermelhidão nas bochechas. Blasco, com as orelhas vermelhas,
inclinava a cabeça e lhe falava, mas evitava tocá-la.

- Eugenia Victoria não parece desconfortável com o


pretendente de Pura - comentou Enriqueta Lacroze.

65
Mas, Saulina, o que você quer dar a entender? (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Que idade terá? Aposto que não chega aos vinte. Parece um
menino em comparação a Climaco Lezica.

- Quanto a Lezica - disse a senhora Torres -, deveriam aceitar


que graças à intervenção de Laura, Pura Lynch se salvou da maior
desgraça.

- Eu não sei se é certo isso de que Lezica é casado. Acho isso


inverossímil. Possivelmente se trate de uma artimanha da viúva de Riglos.

- O certo é que Lezica continua foragido (dizem que está em


Montevidéu), enquanto em sua loja está, muito com ares de proprietária,
uma mulher que afirma ser a senhora Lezica. Não a viram? Pois ela tomou
as rédeas dos negócios de Lezica aqui na cidade. Segundo Dalmiro, o
contador, a moça não é nenhuma idiota e se conduz com a maior
desenvoltura.

- Aqui chega o presidente - anunciou Bernarda Lavalle, e todas


dirigiram sua atenção ao camarote oficial.

A concorrência aplaudiu sem entusiasmo, e Avellaneda


inclinou o torso rapidamente antes de sentar-se junto de sua mulher.
Acompanhavam-nos o ministro de Guerra e Marinha e sua esposa. Laura
admirou a imagem de Roca, que em seu traje de gala, com alamares de
ouro e medalhas, voltava a dar a impressão de um arquiduque austro-
húngaro. Embora a opção do vestido em tonalidade borgonha não
combinasse com seu cabelo escuro e pele pálida, Clara Funes parecia
bonita em sua serena beleza aristocrática. Laura olhou insistentemente, mas
o general Roca não lhe devolveu sequer um olhar.

Os candelabros na parede e o famoso abajur central conhecido


como “o candelabro” piscaram para anunciar o começo da ópera. No fosse,
alguns músicos arrumavam as partituras sobre os suportes de livro,
enquanto outros afinavam seus instrumentos. Os espectadores terminavam
de se acomodar, envolvidos em um murmúrio incessante. Pura e Blasco
faziam as últimas consultas ao programa, enquanto Laura, Eugenia
Victoria, Eduarda e dona Luisa trocavam comentários ao mesmo tempo. As
luzes se apagaram e o silêncio reinou finalmente.

A vivacidade e otimismo do primeiro ato de La Traviata,


seguiu-lhe a primeira parte do segundo, onde, na opinião de Pura, “o diabo,
encarnado no papel do pai do protagonista, mostrou seu rabo”. A
protagonista, Violetta Valéry, uma conhecida e admirada cortesã
parisiense, apaixona-se por Alfredo Germont, um moço jovem de família

Tradução Lauren Moon


tradicional de Provence. O amor, que nasce com ardor e abandono entre
eles, leva Violetta a deixar de lado seus costumes frívolos e desmesurados.
Mas a família de Alfredo não vê com bons olhos esta relação, e uma tarde,
enquanto Violetta desfruta de sua nova vida longe do populoso deserto ao
qual ela chama Paris, o pai de Alfredo se apresenta para primeiro exigir-
lhe, depois rogar-lhe que, pelo bem de seu filho e de sua família, ela o
deixe. Convencida finalmente de que ela só contribuirá com vergonha e
desonra à vida de seu adorado Alfredo, ela consente em abandoná-lo.

A magnífica interpretação da soprano se somou ao drama que


outorgava a voz grave no papel de Germont, e os aplausos duraram longos
minutos. As luzes se acenderam para o intervalo, e Laura repassou os
semblantes de quem a acompanhava. Comprovou que ninguém parecia
afetado como ela, que sentia como se a dor de Violetta, na realidade, lhe
pertencesse.

À exceção de dona Luisa e de Laura, os outros deixaram o


camarote em busca de uma mudança de ambiente e de ar. No hall eram
servidas taças de champanhe e outras bebidas, além de canapés e
sanduíches quentes. As pessoas se amontoavam em torno do balcão e era
difícil realizar o pedido. Ali Eduarda topou com Guor.

- Pura decidiu permanecer uns dias em casa - comentou dona


Luisa com Laura -, até que a relação com seu pai se restabeleça em termos
mais harmoniosos. Já vê que com sua prima Eugenia Victoria as coisas
estão muito bem.

- Obrigada, dona Luisa - disse Laura, e apertou sua mão-.


Você foi como um anjo guardião para mim, quando eu era uma menina, e
agora é para minha sobrinha.

- Eu me alegro de tê-la ajudado, Laurita. Não se equivocava


quando duvidou da índole de Lezica. Por sorte conseguimos impedir que
esse farsante desonrasse Pura.

- Obrigada - repetiu Laura, e beijou sua mão.

Os outros ocupantes do camarote retornaram com gestos


relaxados. Pura parecia radiante, assim como Blasco, que sorria
permanentemente. Por último, entrou Eduarda Mansilla de braço dado com
Nahueltruz Guor.

- Laura - disse -, pedi ao senhor Rosas que nos acompanhe


nesta última parte da ópera. Espero que o aprove.

Tradução Lauren Moon


- Senhora Riglos - disse Guor, e inclinou a cabeça.

- Acomode-se onde quiser, senhor Rosas - foi à fria resposta


de Laura, que voltou o olhar para seu programa.

- Bem-vindo, senhor Rosas - disse Pura, com a graça e


espontaneidade recuperadas pela companhia de Blasco.

- Eu o roubei do camarote da senhora Beaumont - explicou


Eduarda -. Armand e Saulina não precisam dele. Com seu conhecimento do
italiano, o senhor Rosas nos explicará o ato intercalado que acabamos de
escutar. Sente-se aqui, Lorenzo, atrás da senhora Riglos.

- Eduarda - disse Guor -, todos sabem que fala o italiano como


se fosse sua própria língua. Não precisa de mim para entender a ópera.

- Na verdade, é uma desculpa para ter você ao meu lado,


querido.

Acomodaram-se, e um silêncio caiu sobre os pressente.

- Espero - pronunciou Guor, e Blasco advertiu uma nota


discordante em sua voz - que a senhora Riglos se encontre totalmente
recuperada do ataque que sofreu a outra noite.

Laura então virou sua cabeça para responder:

- Não se preocupe, senhor Rosas. A ofensa do senhor Lezica


não me afetou. Tenho recebido piores ofensas e de pessoas que
verdadeiramente contavam para mim. O senhor Lezica e seu ressentimento
não significam nada. Ainda assim, aproveito para agradecer sua oportuna
intervenção.

Guor se acomodou na poltrona, evidentemente envergonhado.


De tudo, o que mais o machucou foi à frieza e o domínio com que Laura se
expressou. Quanto ao resto, a enigmática reação os deixou em silêncio e
desconfortável. Eugenia Victoria, que depois do escândalo na sala de sua
casa terminou por conhecer a verdadeira identidade do senhor Rosas,
apertou a mão de sua prima em sinal de repreensão.

Pura quis saber a respeito da ópera e abriu seu programa.

- Por favor, senhor Rosas, traduza o ato que acabamos de ver.


A última parte, refiro-me ao diálogo entre Violetta e o pai de Alfredo,
achei-a tão longa e confusa.
Tradução Lauren Moon
Guor tomou o programa e reproduziu em castelhano o extenso
diálogo entre Germont e Violetta Valéry. À exceção de Laura, os outros se
inclinavam para seguir a leitura, faziam perguntas e comentários. Laura se
sentia alheia e inexplicavelmente ferida. Mas inclusive nessa hora,
continuava se maravilhando com a metamorfose de Guor, que o tinha
convertido nesse homem de mundo tão culto. Essa noite parecia mais
jovem, com seu topete liso e rebelde sobre a testa cobrindo seu cenho. Seus
olhos cinza, sérios e atentos, moviam-se rapidamente sobre as páginas do
livreto, e formavam as linhas verticais ao redor de sua boca, que Laura
conhecia tão bem. E esse cenho, que aparecia quando pensava. Eduarda o
ajudava na tradução e alternava com histórias que tinham compartilhado na
Itália. Laura sentiu ciúmes dela, que o tratava com tanta familiaridade e o
conhecia tão profundamente.

Guor devolveu o programa a Pura e sorriu com sarcasmo.

- Esta história de Alexandre Dumas sempre me pareceu


intolerável - disse, referindo-se à Dama das Camélias, novela em que se
baseia La Traviata -. Se Marguerite realmente amasse Armando Duval
jamais cederia ao pedido do pai. O sacrifício de Marguerite foi desmedido e
inverossímil e, portanto, destrói a credibilidade da história.

- Você é um néscio, senhor Rosas - expressou Laura, e se


virou por completo -, se realmente tem essa opinião. O sacrifício por amor
existe. É o verdadeiro amor que se sacrifica e nenhum outro. Um amor
apaixonado, uma paixão desmedida, ficaria feito em migalha ante a menor
exigência de sacrifício. O verdadeiro amor, em troca, pode enfrentar
embates muito duros. Os grandes da literatura têm escrito sobre o sacrifício
por amor e você, senhor Rosas, atreve-se a pô-lo em xeque com tanta
leviandade.

- Touché, Lorenzo - interveio Eduarda com o afã de mitigar,


sem maior êxito, o rigor de sua amiga.

- Desculpe, senhora Riglos - pronunciou Guor -, se com minha


opinião feri sua suscetibilidade de mulher romântica.

Nahueltruz ainda contava com o poder de seu olhar. Quando a


olhava assim, esquentava seu corpo e o fazia sentir uma crescente
excitação. Ele tinha detido os olhos na pele de seu rosto, que pensou que
era comparável a textura de um pêssego e à brancura de uma magnólia.
Disse a si mesmo: “ Vou beijar essa depressão tão sensual na base de seu
pescoço”. Depois olhou para seus lábios, e, instintivamente, Laura os
umedeceu com a língua. Antes que as luzes se extinguissem por completo,
Tradução Lauren Moon
Nahueltruz levantou o olhar até encontrar o dela, e notou com satisfação
que a frieza original tinha desaparecido.

O segundo ato terminou dramaticamente e, depois de um


melancólico prelúdio, começou o terceiro, no qual Laura distinguiu com
clareza, apesar da penumbra, os olhos marejados de Pura. Também viu a
mão de Blasco que deslizava disfarçadamente até fechar-se sobre a mão de
sua amada. Invejou-os por esse momento que compartilhavam. “Nunca
esquecerão esta noite no teatro”, pensou. Não a esqueceriam, como ela
nunca esqueceria cada dia compartilhado com Nahueltruz seis anos atrás.
Era difícil acreditar que ele estivesse a poucos centímetros dela, embora tão
distante como se ainda vivesse em Paris. Estaria olhando suas costas?
Podia sentir os olhos dele perfurando sua pele. Ou se tratava do desejo de
que o fizesse? Invadiu-a um calor. De repente parecia que o camarote
estava lotado de pessoas e que o ar se estancava. Os trágicos acordes da
orquestra a inquietaram; o canto enfermo de Violetta e o desespero de
Alfredo a afetavam de maneira intolerável. Abanou-se, secou seu suor com
um lenço e voltou a abanar-se. A ponto de deixar a poltrona para sair ao
corredor, Guor se inclinou sobre seu ouvido e lhe sussurrou:

- Tenho tanto desejo de fazer amor com você, senhora Riglos,


que acredito ser capaz de mandar todas essas pessoas embora e tomá-la
aqui mesmo, sobre o tapete do camarote.

Laura percebeu o roce de seus dedos quando ele apenas


afastou a longa trança para beijar sua nuca sobre a parte que a gaze não a
cobria. Ficou imóvel, prendendo a respiração, os olhos fixos em um ponto
escuro, que pouco a pouco se tornava incandescente e a turvava. Seu corpo
reagia como na época de sua virgindade. A fragrância cálida do fôlego de
Nahueltruz provocou-lhe frio, quando segundos atrás o calor a tinha
arrasado; o contato de seus dedos enviou correntes elétricas que
expandiram por seu corpo. Sentiu dor nos mamilos e entre as pernas, e o
coração bateu com rapidez.

La Traviata terminou e, enquanto o público passava longos


minutos em pé aplaudindo, ela permaneceu quieta em sua poltrona. Ao
levantar-se para deixar o camarote, percebeu que Guor já tinha ido embora.
Voltou a encontrá-lo no foyer.

- Vamos juntos - disse ele.

Tratava-se de uma ordem e não de um convite. Sua maneira de


agir era desafiadora; havia alguma raiva em sua atitude, que expressava os
sentimentos turbulentos que ela lhe provocava, essa mescla de amor e ódio
Tradução Lauren Moon
da qual Maria Pancha há muito tempo suspeitava. Suas palavras diretas, a
forma com que a olhava, inclusive a postura de seu corpo, pareciam
proclamar: “Terminará esta noite em minha cama ou no inferno”. Ela
continuava calada. Na verdade, não se tratava de duvidar em segui-lo, mas
sim, da surpresa que a deixou muda.

- Em seu carro? - disse por fim, e Guor assentiu -. Vou


dispensar Eusebio, então.

Ela abriu passagem entre as pessoas; ele a seguia à distância.


A capa de zibelina, que cobria suas costas e as anquinhas, conferia-lhe o
porte de uma imperatriz. Vários pares de olhos se viraram para olhá-la, mas
ela partia para a saída alheia ao seu redor. Na rua, Guor a viu dar ordens a
Eusebio e, depois, dirigir-se para ele. Subiram no Landau. Foram sentados
na mesma poltrona, embora afastados. Ela tinha aberto apenas a janelinha e
olhava para fora. Ele olhava para ela, seu perfil recortado na penumbra. O
peito de Laura subia e descia em um ritmo moderado, parecia sossegada e
composta. E linda. Guor a desejou e com urgência. Tinha refreado tanto
seus impulsos nos últimos meses, que não entendia que vontade o mantinha
tão tranquilo. Ela estava ali, a sua mercê. Pertencia-lhe.

A urgência, entretanto, esfumava-se quando outros


pensamentos o assaltavam. Por exemplo, que desde seu reencontro em
Buenos Aires, ele suspeitava que a natureza da senhora Riglos em nada se
parecia com a de sua Laura Escalante, a moça espontânea e indomável, que
tinha se entregado por completo durante aquelas noites febris na
hospedagem de dona Sabina. Contrariava o aspecto da criatura frágil e
refinada que apresentava agora; dava a impressão de que fugiria espantada
a menor amostra de grosseria. Ele não se influenciava com os comentários
que a tinham por excêntrica e escandalosa, sem preconceitos e
independente. Do que conseguia ver, sempre prevalecia o ar melancólico
de Laura.

Sobre tudo, mantinha-se quieto pelo medo da decepção.


Perguntava-se se, durante esse tempo de separação, tanto ele como ela não
teriam alimentado uma ilusão, nascida daqueles escassos dias em Rio
Cuarto, ilusão que iria desaparecer para pôr em evidência que nada ficava
do romance compartilhado, e que só se tratava de uma paixão, que não
tinha resistido ao transcurso dos anos. Ou quem sabe o amor tivesse
existido, mas nesse momento, seriam eles que não poderiam recuperar o
que viveram, pelas mudanças operadas em suas vidas. A dor pela perda e as
circunstâncias que ambos suportaram depois, converteu-os em pessoas
diferentes. Não eram a mesma Laura nem o mesmo Nahueltruz, de 73, os
que em breve se enfrentariam a sós. Por uns minutos, arrependeu-se do
Tradução Lauren Moon
impulso que o levou a parar em frente a ela no foyer e convidá-la a ir com
ele. Temia que se tratasse de um engano. Depois de tudo, o que ele
procurava com esse reencontro?

O carro deu uma curva brusca, e Laura apoiou a mão sobre o


assento para se equilibrar. Guor arrastou a mão dele até que seus dedos se
roçaram. Laura fechou os olhos, e seu peito se agitou. A mão de Guor se
fechou com firmeza sobre a dela, e Laura voltou o rosto pela primeira vez
para olhá-lo, a única luminosidade no interior do carro provinha dos
carvões incandescentes, que ardiam no braseiro a seus pés, que deixava a
pele de Laura de uma tonalidade escura e luminosa e fazia brilhar seus
olhos. Por um instante, seus olhares se prenderam na incerteza e
permaneceram fechados na intensidade de suas emoções. Ela sorriu
calidamente, e ele se moveu para o lado dela, mas sem tocá-la. Quietos e
em silêncio, contemplaram-se firmemente. Nahueltruz levantou a mão e
acariciou sua bochecha, e em seguida notou que ela estava quase chorando.

- Fez-me tanta falta, Nahuel - lhe confessou.

Abraçaram-se Guor a apertou contra seu peito, embriagado


pela fragrância que emanava das roupas dela. Laura sempre cheirava tão
bem. Apertou-a possessivamente, quase com medo, alarmado por essa
sensação de irrealidade que o invadia, porque custava a acreditar que era
Laura, sua Laura, quem se agarrava a suas costas e chorava.

- Por que está chorando?

- Não sei. Tenho vontade de chorar.

Guor percorreu seu rosto com a boca, beijou seus olhos


úmidos, as bochechas, a ponta do nariz e o queixo também, até que seus
lábios roçaram os trêmulos lábios dela, quase sem intenção. Por alguns
instantes, foi apenas esse contato efêmero. Ambos permaneceram sem se
mexer, com uma sensação de antecipação que os oprimia o peito. Então, a
boca de Guor se apoderou da boca de Laura, e sua língua procurou penetrá-
la.

- Estou beijando você - escutou-o dizer, e riu, tomada por uma


felicidade que só costumava relacionar com seu passado em Rio Cuarto.

O carro se deteve, e o chiado dos cascos pareceu devolvê-los


ao mundo dos mortais. Laura arrumou seu penteado e ajustou sua capa em
torno do pescoço. Guor pigarreou e colocou a cartola. Abriu-se a
portinhola, e eles se encontravam tão afastados como no começo.

Tradução Lauren Moon


- E sua família? - perguntou Laura, enquanto Guor abria a
porta de sua casa sobre a Rua de Cuyo.

- Eles dormem. Despertariam só se um terremoto sacudisse


suas camas. E, inclusive assim, eu duvido.

- Invejo-lhes o sono tão pesado.

- Você não dorme bem?

Laura negou com a cabeça e, como parecia contrariada pela


confissão, Guor não insistiu. Indicou-lhe, ao contrário, o corredor que
conduzia a seu escritório, onde tirou a capa de zibelina e pediu que ficasse
acomodada. Laura se moveu para um móvel com adornos e livros, e Guor
aproveitou para servir duas bebidas. Vieram à mente aqueles encontros em
Rio Cuarto, assinados por beijos febris e sexo rápido, às vezes violento. Ele
reconhecia nessa atitude a imaturidade de seu comportamento, relacionado
com a sensação de inferioridade, que sempre o tinha assolado, quando dela
se tratava. Mais de seis anos tinham operado favoravelmente nesse sentido.

Tampouco queria desiludi-la. Embora a desejasse com a


mesma intensidade de sempre, não a abordaria de maneira precipitada e
torpe. Possivelmente, como se murmurava, nunca tinha concedido seus
favores a Riglos, mas um de seus tantos pretendentes que batiam a sua
porta, teria levado o cobiçado troféu. Possivelmente agora Laura tinha com
quem compará-lo. Com Roca, possivelmente. Desprezou de imediato esse
pensamento porque lhe pareceu intolerável. Aproximou-se com duas taças.

Laura, de costas, folheava o livro de Petrarca, o exemplar de


luxo que tinha sido presente da duquesa Margherita Colonna, forrado em
couro marroquino e com um selo de ouro com as iniciais L e R. Tinha
colocado a trança para frente, e, levemente inclinada sobre a leitura,
revelava sua nuca, orlada com pequenos cachos de cabelo naturais. Era
estranho esse silêncio que compartilhavam, era estranho que, depois de tê-
la explorado intimamente, se sentisse como um novato. Em honra à
verdade, temia-lhe a comparação, e os ciúmes estava deixando-o louco.
Ciúmes de outros que a tivesse possuído. Ciúmes do general Roca, porque
o considerava um digno adversário. Temia desiludi-la. Sobre tudo, temia
perdê-la outra vez.

Ao voltar-se para receber a taça, Laura lhe sorriu, e Nahueltruz


percebeu que ela não padecia de nenhuma de suas torturas.

Tradução Lauren Moon


- Diz Eduarda - expressou ela, muito em conformidade com a
paz que reinava entre eles - que declama Petrarca como ninguém.

- Eduarda exagera. Eu não sei declamar. De fato, jamais


estudei declamação. Leio Petrarca porque me comove sua poesia. Uma
noite, em uma reunião, me pediram que lesse. Todos estavam um pouco
altos e, por conseguinte, um pouco sensíveis. Pareceu-lhes que minha
leitura provinha dos deuses do Olimpo. E como diz o ditado “Faça a fama e
deite-se na cama”.

- Quero que declame para mim.

- Agora?

- Sim, agora.

Guor sorria ironicamente, enquanto procurava o verso que


queria lhe ler. Escolheu o sessenta e um, colocou os óculos e leu.

— Benedetto sia ´l giomo, et ´l mese, et ´l anno/ et la stagione,


e ´l tempo, et l'ora, e ´l punto/ e ´l bel paese, e ´l loco ov'io fui giunto/
da'duo begh occhi che legato m'anno.

Enquanto seguia as linhas do livro, ela se mantinha atenta ao


tom baixo e profundo de sua voz, algo distinto no acento italiano.

- O que significa, Nahuel?

Ele disse ao seu ouvido

- Bendito seja o dia, o mês, o ano, a estação, o tempo, a hora, o


momento, o charmoso povoado, e o lugar no qual seus lindos olhos me
acorrentaram.

Passou-lhe os lábios úmidos pela nuca, enquanto com um


braço lhe rodeou a cintura, colando-a em seu peito. Laura deixou a taça
sobre o móvel e, reclinando-se, apoiou ambos as mãos sobre a beirada.

- Et benedetto IL primo dolce affanno/ ch’i’ebbi ad esser com


Amor congiunto/ et l´arco, et o saette ond’ i’ fui punto/ et o piaghe che
‘nfin ao cor meu vanno. E bendita a doce agonia de me entregar a esse
amor, e o arco e as setas que me alcançaram, e as chagas que chegaram ao
mais profundo de meu coração.

Tradução Lauren Moon


Laura se virou, e seus olhos, cheios de lágrimas e culpa,
procuraram os de Nahueltruz, que tirou seus óculos e os deixou de lado. O
resto recitou de memória, quase sobre os lábios dela.

- Benedette o vocí tante ch’io/ chiamando IL nome de minha


Donna ou sparte/ e i sospiri, et o lagrime, e ‘l desejo. Bendita as palavras
que espalhei cantando o nome de minha amada, e os suspiros, e as lágrimas
e o desejo.

Voltaram a se beijar. Laura, obstinada ao pescoço de Guor,


abandonava-se à paixão que voltava a desatar entre eles. Nahueltruz tinha
perdido a inibição e os temores, e procurava entrar em sua boca com a
mesma ansiedade com que tinha feito no passado. Embora os anos
transcorressem, Laura sempre exerceria esse efeito devastador em seu
ânimo e em sua vontade.

- Quero fazer amor com você - disse ele.

Saíram ao corredor, escuro e frio, e em seguida Guor abriu


uma porta, a de seu dormitório, onde Miguelito tinha deixado um braseiro
aceso. O calor os envolveu aconchegantemente. Laura, em pé no centro do
quarto, contemplava ao redor com timidez. Essa casa sobre a Rua de Cuyo,
o escritório no qual acabava de escutá-lo declamar Petrarca e esse quarto
eram as primeiras posses que conhecia dele. Antes, ele tinha sido um
nômade.

Voltou-se para olhá-lo. Nahueltruz estava tirando o sobretudo


e afrouxando a gravata. Embora irremediavelmente mudado, para ela
continuava sendo o homem mais atraente que conhecia. Nenhuma pátina
apagaria essa nervura teimosa que colocava sua boca seca e predispunha
seu corpo para ele. Esse homem era Nahueltruz Guor. Seu Nahueltruz, a
quem ela amava com loucura, a quem tinha amado todos esses anos até
quando o acreditava morto. Por que, então, sentia-se estranha e intimidada?
De repente o medo a assediava.

Nahueltruz tinha tirado a camisa e a calça. Laura ficou absorta,


olhando-o, estudando-o, até que seus olhos se toparam com os dele.
Observava-a com tal intensidade que se sentiu atraída quase contra sua
vontade. Caminhou para ele e, a um passo, estendeu a mão e acariciou seu
peito, moreno e firme como os lembrava. Ele teve uma ereção, e ela sentiu
vergonha.

- Sinto-me estranha - confessou.

Tradução Lauren Moon


- O que aconteceu? Não tem desejo de estar comigo?

Laura levantou a vista e o olhou significativamente.

- Não existe nada neste mundo que deseje mais que estar com
você, Nahuel. Já deveria saber disso.

- O que aconteceu, então?

- É difícil acreditar que estamos aqui, a sós e em paz. Às


vezes, inclusive, é difícil acreditar que está vivo. Houve um tempo no qual
sofri tanto, Nahuel. Não quero sofrer mais. Tenho tanto medo da dor. Sou
uma covarde, sei. Tenho medo de me sentir feliz e que depois... Enfim,
tenho medo de que volte a sumir e me deixar sozinha e destroçada. Não
posso acreditar que estou aqui, em sua casa. É difícil acreditar que queira
me amar depois de tudo que fiz você sofrer.

Guor apoiou um dedo sobre sua boca para sossegá-la.

- Sim, quero amá-la. Vou amá-la, e se no passado fui brusco e


mal educado com você e sofreu por isso, peço que me permita emendá-lo.

Acariciou-lhe a boca com os lábios, e ela se abriu para ele. O


beijo foi arrebatador. Eram como dois famintos saciando o jejum de dias.

- Tire o meu vestido - pediu Laura.

- Venha, aproxime-se do braseiro. Não quero que sinta frio.

Levou-a para perto das brasas, onde a obrigou a lhe dar as


costas, jogou sua trança para frente e começou a desabotoar a miríade de
pequenas pérolas que chegavam até a cintura. O vestido caiu ao piso, e
Guor o recolheu e o acomodou sobre uma cadeira. Laura só levava a
combinação cujo decote muito baixo apenas cobria os mamilos. Sempre
tinha sido fascinado por esses seios generosos como ama-de-leite, tão
diferentes dos de Geneviéve. Admirou-os longamente, provocando em
Laura uma ansiedade que se espalhou por todo seu corpo. Descansou as
mãos sobre eles e percebeu seu calor e firmeza através da delicadeza do
tecido, detendo apenas seus dedos sobre os mamilos endurecidos. Esse
contato, embora sutil como a batida das asas de uma borboleta, arrancou-
lhe um gemido e a fez tremer.

Tradução Lauren Moon


Nahueltruz se afastou e Laura o seguiu com o olhar,
apreciando o jogo dos músculos de suas costas que se esticaram e se
moveram, quando levantou uma cadeira e a colocou perto do braseiro.

- Venha - disse ele -, sente-se, assim tiro suas botas e as meias.

Acocorou-se na frente dela, desatou os cordões e tirou o


calçado. Acariciou-lhe os pés, ainda cobertos pelas meias, beijou seus
joelhos, e sua boca subiu por um caminho de lânguidos beijos pela parte
interna de sua coxa até dar com o começo da meia de seda, sustentada por
ligas. Com perícia assombrosa, desabotoou-as e, enrolando as meias, ele as
tirou. Tocou-lhe as pernas, descendo as mãos debaixo da última peça que
restava, mas evitando tocá-la no ponto onde se concentrava a tensão.
Firmada no respaldo da cadeira, Laura jogou a cabeça para trás e lançou
curtos e reprimidos gemidos de prazer. No meio do delírio, conteve-se de
lhe implorar que a levasse a cama e a tomasse porque havia reparado no
jogo de desejo e provocação que Guor estava fazendo. Calou-se, não disse
nada, continuou gemendo, aniquilada por essa renovada intimidade,
pensando também que tinham sido esses anos longe dela, junto às
aristocratas parisienses, cultas e refinadas, que o havia tornado tão versado
nas artes amorosas. Lembrou-se de Geneviéve Ney, a etérea, a graciosa, a
magnífica Geneviéve, a que todos admiravam, que ainda esperava por
Lorenzo Rosas, e que desejava ser sua esposa. No emtanto, um insalubre
orgulho de fêmea despontou em meio ao aborrecimento, pois gostava de
saber que seu homem tinha amado a muitas antes dela, mas que a nenhuma
como a ela.

Guor pediu que ficasse em pé, e teve que ajudá-la, porque


aquele jogo erótico tinha abrandado seus membros e sua vontade. Estavam
muito próximos, não se tocavam, mas se contemplavam fixamente. O olhar
de Guor foi enigmático e inquietante, e baixou a vista. Não sabia o que
esperar dele. Semanas atrás ele havia dito que ela o aborrecia e nesse
momento, ao contrário, queria fazer amor com ela. Voltou a olhá-lo. Seus
olhos cinza continuavam sobre ela, exigentes e intensos.

- Quero que se entregue para mim, que seja toda minha.

- Sim - respondeu Laura sem pensar.

Guor a livrou das joias, inclusive dos brincos, e enfeite de


plumas, e colocou sua trança entre os seios e sobre o ventre. Voltou a olhá-
la e acariciou sua bochecha.

Tradução Lauren Moon


- Occhi neri, treccia d’ouro66 - murmurou, e ficou de joelhos
na frente dela.

Seus braços se fecharam em torno do quadril de Laura e com


os lábios acariciou seu ventre palpitante. Suas mãos pareciam querer
abrangê-la toda ao mesmo tempo, nas partes expostas e nas mais
escondidas; reclamava tudo para ele, embora o fizesse com extrema
consideração, Laura viu em sua atitude o mesmo poder e autoridade que
um fazendeiro exerce sobre suas terras e seus bens. Abandonada àquele
rito, sentiu como a seda da última peça deslizava por seus quadris e
terminava a seus pés. “Agora estou completamente nua”, pensou, e a
percorreu uma agradável sensação. Não sentia frio nem calor, não
experimentava esgotamento nem excitação; tratava-se de um estado de
perfeita harmonia. Em seguida voltou a sentir o contato das mãos de
Nahueltruz que, do pescoço até o peito de pé, voltaram a percorrê-la por
completo. Parecia mentira que um homem tão grande se conduzisse com
tanta habilidade, que suas mãos pesassem tão pouco e que não
arranhassem.

- Nunca esqueci os detalhes de seu corpo - escutou-lhe dizer,


sua voz transformada pela excitação -. Sempre pensava neste lunar aqui - e
deteve seu dedo em um ponto do decote, quase entre os seios -, e nesta
veia, que nasce na comissura da sua boca, desce pelo pescoço e termina
aqui, no mamilo - disse, e ele apanhou com sua boca e acariciou docemente
com sua língua.

Os dedos de Laura se entrelaçaram no cabelo dele. Movia a


cabeça para um lado e para o outro, e repetia. “Meu amor, meu amor”,
porque isso era Nahueltruz Guor para ela: seu amor, seu único e grande
amor. Ao vê-la desfalecida, Guor tomou-a em seus braços e a levou para
cama.

O quarto em sombras se encheu de sons sensuais: roce de


lençóis, sussurros de pele contra pele, ofegos e gemidos de boca sobre
boca, o deslizar de uma mão forte sobre um cabelo sedoso, a vibração do
fôlego sobre a pele ardente. Os sussurros eróticos cresciam à medida que
alcançavam o clímax. Laura se esticou em torno da virilidade de Guor e seu
corpo se sacudiu em convulsões de prazer. Então, ele a agarrou pelas costas
e a levantou, sentando-a sobre suas pernas. Laura se deixou arrastar, quase
sem notá-lo. Guor a envolveu com seus braços e deixou escapar o
cataclismo que tinha estado subjugando, porque nesse primeiro encontro
tinha querido que alcançassem juntos o orgasmo.

66
Olhos pretos, trança de ouro (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Ainda agitados, permaneceram sentados no meio da cama,
seus peitos colados, suas pernas entrelaçadas, seus braços segurando-se um
ao corpo do outro. Laura escondia o rosto no pescoço dele, ainda comovida
pelo que seu amor por Nahueltruz fazia dela. Sua respiração acelerada e
cálida acariciava o pescoço dele, enquanto seus lábios quentes umedeciam
seus ombros e braços.

- Jure para mim - disse Guor, e segurou seu rosto com ambas
às mãos-, jure que sempre vai me amar como está me amando neste
momento.

- Sempre.

Voltou a recostá-la e se acomodou ao seu lado, com a cabeça


apoiada sobre a mão para poder olhá-la. Aproximou-se do rosto dela e, sem
tocá-lo, contemplou-o em silêncio, queria memorizar cada detalhe, queria
ser quem mais a conhecesse. Passou o dedo pelo arco de suas sobrancelhas
mais escuras que o cabelo, mas mais claras que os cílios, que
acompanhavam o preto dos olhos, delineou o contorno de seu nariz,
pequeno e reto, e o queixo até chegar a seus lábios. Beijou-a com doçura e,
sem afastar-se, disse-lhe.

- O que vivemos foi maravilhoso.

- Sim - murmurou Laura.

Para Guor era surpreendente que, depois de tantos anos,


tivessem sabido amar-se como na hospedaria de dona Sabina. Neste caso, o
contexto nada tinha a ver com aquele mísero quarto, eles mesmos tinham
mudado, mas, mesmo assim, a paixão que se professavam tinha
permanecido intacta.

- Jure-me - ele voltou a dizer - que quando fazia amor com


você em Rio Cuarto me amava tanto como eu amava você, que não se
tratava só de paixão, que não queria se divertir comigo. Diga que me ama.

Laura se compadeceu de suas dúvidas e receios, ela não as


albergava. Entretanto, compreendia sua desconfiança.

- Todos esses anos sem você, Nahuel, vivi incompleta, porque


aquela tarde em Rio Cuarto, quando separaram você do meu lado, foi como
se tivessem arrancado um pedaço de meu corpo. Não só me doía a alma. A
dor por sua perda também era física. E agora que senti você novamente
dentro de mim, agora que tornou a me amar e a me desejar, recuperei o que

Tradução Lauren Moon


perdi naquela tarde e me sinto inteira de novo. Você me deixou completa
de novo, Nahuel. Amei-o em Rio Cuarto, amo você agora e vou amar
sempre.

- Oh, Laura... - clamou ele -. Ame sempre, sempre.

Abraçou-a possessivamente e ficaram calados. Momentos mais


tarde, Laura afastou-se e, com ávida curiosidade, buscou-lhe no peito nu a
cicatriz que tinha causado a bala do tenente Carpio. Ele a olhava seriamente
e a deixava fazer. Tinha marcas de velhas feridas, mas no lado direito, entre
duas costelas, destacava uma redonda e um pouco deprimida. Passou-lhe o
dedo e notou a diferente textura da pele. Inclinou-se e a beijou
delicadamente.

- Perdoe-me, meu amor - disse -. Se não tivesse abandonado


você naquele dia no estábulo, nada de ruim teria ocorrido. Perdão, perdão -
repetiu, enquanto beijava a ferida e com suas lágrimas banhavam seu torso.

- Laura - pronunciou ele -, não quero me lembrar disso.

Desde que entraram na casa, Laura tinha querido referir-se ao


passado, mas não conseguiu conjurar a coragem para fazê-lo. As imagens
da cena vivida na casa dos Lynch ainda infestavam sua memória. Nem
sequer depois do momento compartilhado era fácil deixar de lado a
incredulidade e o desprezo que Nahueltruz havia demonstrado naquela
oportunidade. Embora ele tivesse reconhecido que a havia tratado com
dureza e desejasse emendá-lo, ela suspeitava que intimamente duvidava e
punha em xeque suas explicações. Nahueltruz não acreditava nela. Essa
noite, havia sucumbido à atração que os dominava, mas as dúvidas e os
receios continuavam a atormentá-lo; a confiança não se restabeleceu. Suas
palavras assim ratificavam, preferia esquecer. Por isso, essa noite Laura
não voltaria a mencionar o passado. Essa noite o amaria, sem perguntas
nem lembranças.

Acariciou seu peito, apreciando sua rigidez, que não tinha


sucumbido à brandura da vida galante. Embora rodeado pelo esplendor de
uma cidade como Paris, Nahueltruz tinha conseguido ficar conectado a esse
mundo silvestre que tinha conhecido desde menino. Os cavalos
continuavam sendo sua grande ocupação, e esse esporte, o polo, tão similar
a chueca, seu passatempo. Acariciou-lhe os braços, fortes e grossos, que
podiam com as rédeas do semental mais agressivo, e experimentou uma
grata sensação de amparo e domínio, consciente de que se originava no
machismo nato que ela tanto combatia nos folhetins, mas que nesse
momento a fazia tão feliz. Segundo sua avó Ignacia, um homem tão forte e
Tradução Lauren Moon
corpulento carecia de elegância e distinção. Ela, ao contrário, achava o
corpo de Nahueltruz fascinante. Percorreu seu ventre com os lábios até o
umbigo e continuou para baixo até descobrir que ele já estava preparado
para recebê-la de novo.

~0~

Como Laura tinha desejado, essa noite ele se amaram


incansavelmente. O mundo ficou reduzido a essa cama; o tempo, a esse
momento, suas vidas, a esse sentimento que dirigia seus desejos. Quase ao
amanhecer, Laura ficou adormecida. Ao despertar, pareceu-lhe que tinham
passado horas, quando na realidade se tratou de um curto lapso. Fazia
tempo que não dormia tão tranquilamente. Esticou-se entre os lençóis e
notou que Nahueltruz não estava ao seu lado. Encontrou-o afastado em um
canto do quarto, onde um raio de sol que se infiltrava pela portinha
iluminava, em parte, o corpo nu. Sustentava o vestido de veludo verde em
uma mão, e na outra, o medalhão de prata alemã.

- Nahuel - murmurou.

Ele levantou o rosto com surpresa, pois acreditava que ela


estava adormecida.

- Quando peguei seu vestido, senti algo duro preso à anágua.


Jamais imaginei que se tratasse disto.

- Sempre o levo perto do meu coração. Nem um só dia destes


anos me afastei dele.

Nahueltruz o abriu e tirou as duas mechas entrelaçadas. Um


preto, o outro de um loiro escandinavo. O contraste continuava afetando-o.
Sempre tinha se arrependido de ter-se desfeito do medalhão que Laura lhe
deu de presente com um cacho de seu cabelo. Afinal de contas, era a única
coisa que ficava dela. A pequena peça de prata alemã estava
irremediavelmente associada com as cenas daquela terrível noite no rancho
de dona Higinia, onde ele e o doutor Riglos se enfrentaram, à noite em que
soube que Laura tinha aceitado ser sua esposa. Em um arranque de fúria e
ciúmes, Nahueltruz jogou o medalhão no peito de Riglos, ordenando-lhe
que o devolvesse.

Guor apertou os olhos e as lágrimas rolaram por suas


bochechas. Laura se moveu silenciosamente para ele. Ao senti-la perto,
Guor se virou para olhá-la. Laura nunca tinha visto tanta dor em seus olhos
cinza e passou sua mão pela bochecha para varrer com sua dor.

Tradução Lauren Moon


- Nahuel - disse em voz baixa -, meu querido, acha que é muito
difícil perdoar?

- Sim, muito difícil.

- Apesar disso, acredita que poderia me perdoar?

- Sim, acredito que poderia.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXI

Os amantes furtivos

Por volta das seis da manhã, Guor deixou o quarto e se dirigiu


à área de serviço para despertar o chofer. Encontrou sua avó na cozinha,
enrolada no xale que sua mãe, Blanca Montes, tinha-lhe tecido tanto tempo
atrás. O objeto, beirando os trinta anos, tinha perdido a cor e tinha buracos.
Sua avó, entretanto, jamais se separava dele porque acreditava que, tendo
sido tecida por uma vicha machí (uma grande médica) com poderes
sobrenaturais nas mãos, jamais lhe faltaria saúde. E assim devia ser,
meditou Guor, porque, sendo Mariana mais velha que Dorotea Bazán, tinha
suportado a jornada até Tafí Viejo e os dias entre os canaviais de açúcar,
enquanto que Dorotea tinha morrido pouco tempo depois de chegar.

Mariana falava com Lucero e lhe dava ordens a respeito de


questões domésticas, que a mulher mais jovem acatava sem falar.
Nahueltruz recordou os dias em que sua avó era injustamente conhecida
com o apelido de “índia velha” nas tendas de Leuvucó, apesar de ser jovem
e de grande vitalidade. Lembrou-se com nostalgia, aqueles tinham sido
bons tempos quando sua avó, desde muito cedo, envolta nesse mesmo xale,
organizava o trabalho das cativas e faxineiras e lhe dava ela mesma seu
café da manhã. O tempo tinha diminuído seu corpo, mas não seu espírito.
Além disso, era admirável sua capacidade para adaptar-se às diversas
situações, pois, apesar de estar em um âmbito alheio e distinto, inclusive
hostil, Mariana seguia comandando com a desenvoltura e segurança de suas
épocas como esposa de Parné.

Ao vê-lo, a anciã deixou a cadeira, e Guor teve que agachar-se


para que ela o beijasse na testa. Passou-lhe um mate, que Nahueltruz não
ousou rechaçar. Falou-lhe em araucano.

- Teve notícias do huinca que está lhe ajudando para ir visitar


seu tio Epumer?

Ele também respondeu em sua língua-mãe:

Tradução Lauren Moon


- Ainda não, cucu67. Mas não devemos nos esperançar em vão.
O senador Cambaceres me disse que será difícil conseguir a permissão para
ir vê-lo.

Mariana tomou o mate das mãos de seu neto e retornou à


mesa. Cevou outro e passou-o a Lucero. Intuiu que choveria e ordenou que
recolhessem água em baldes, porque queria lavar o cabelo, que, embora
completamente branco, seguia levando-o até a cintura. Nahueltruz
permaneceu uns minutos a mais conversando casualmente com Lucero e,
depois de ordenar que lhe preparasse o carro, retornou ao dormitório,
meditando que sua avó confrontava a dor e a decepção com maior
integridade e dignidade que ele. Tratava-se de uma mulher excepcional.

Entrou no quarto, e Laura notou a mudança em seu humor,


mas não fez comentário algum. Vestiram-se e partiram para o vestíbulo. Na
porta os aguardava o Landau e subiram calados. Laura pegou sua mão e a
beijou.

- Esta noite dona Luisa dará um jantar em sua casa. Quero que
venha. Blasco e Purita são o motivo. Ali estará também meu primo por
afinidade, José Camilo Lynch, e Blasco necessitará de todo o apoio que
possamos lhe oferecer.

- A senhora del Solar não me convidou.

- A senhora del Solar convidará a quem eu lhe peça. Virá?

- Sim, irei. Entrará em sua casa agora pelo portão traseiro?

- Não, farei-o pela porta principal.

Sendo sexta-feira, Laura sabia que sua avó, sua mãe e suas tias
estariam na missa das seis em San Ignacio. O avô Francisco e a servidão
não representavam obstáculos. O Landau se deteve na frente da casa de La
Santísima Trinidad, mas o chofer não apareceu para abrir a portinhola.

- Não quero deixá-la ir - manifestou Guor, e a tomou pela


cintura. Beijou-a ardentemente e começou a tocá-la e a lhe arrancar
gemidos.

- Não quero que vá - insistiu -. Não quero perder você outra


vez.

67
Avó no dialeto mapuche (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Acredita que, porque deixo você agora, vou fazê-lo de novo
para sempre? Como poderia, Nahuel? Como poderia se é minha própria
vida? Como poderia voltar a padecer aquele martírio?

- Laura, Laura...

Afastou-se com dificuldade e Guor a deixou ir a contra gosto.


A promessa de reencontrar-se essa noite na casa de dona Luisa moderava o
aborrecimento da separação. Por fim, Laura desceu do carro e partiu para a
entrada de sua casa. Guor abriu a janelinha e a viu avançar envolta na cara
roupa de zibelina, com o capuz cobrindo sua cabeça. Abriu-se a porta, e
Laura entrou.

Guor se acomodou no assento e descansou a cabeça sobre o


respaldo com os olhos fechados. Apesar da intensidade da noite passada,
não tinha sono, ao contrário, uma energia inflamava seu corpo. Abriu o
guichê que comunicava com a boleia e ordenou ao chofer.

- À quinta de Caballito.

Só montando em seu puro-sangue, espirituoso e domado como


era, conseguiria consumir essa vitalidade que o fazia se sentir dez anos
mais jovem.

~0~

No corredor, Dolores Montes saiu atrás de Laura e a olhou


com ar impaciente.

- Sei que não passou a noite em casa. De onde vem?

- Pensei que estivesse na missa, com as outras - comentou


Laura, de modo calmo.

- Assim pensou, que não nos encontraria, por isso retorna tão
satisfeita de si mesma, depois de ter passado a noite fora de casa.

- Com licença, tia - e Laura teve a intenção de avançar, mas


Dolores estendeu o braço e a impediu.

- De quem era o carro que lhe trouxe? Não vai me dizer que
era de Eugenia Victoria ou de dona Luisa. Conheço-os bem. Quem trouxe
você?

Tradução Lauren Moon


- Dias atrás eu lhe disse que se mantivesse longe de mim e que
não me importunasse. Se voltar a se intrometer em meus assuntos, nem a
intercessão do Espírito Santo a liberará de que a jogue desta casa.

- Pensa que não sei que esse carro é de um homem? Acredita


que não sei que passou a noite com ele? O general Roca, talvez? Ou o tal
Lorenzo Rosas, que lhe salvou de Lezica?

- Cuidado - advertiu Laura -, não me busque, porque vai me


encontrar.

- Descarada. É uma qualquer. Derruba-se com quantos homens


desejar. Até manteve relações desnaturadas com um selvagem, um infiel,
que só de pensar me dá nó nas tripas.

- Esther! Íris! - vociferou Laura - Esther! Íris!

- O que acontece, Laura? - apareceu Maria Pancha.

- Senhora, aqui estamos, senhora - respondeu Íris -. O que


necessita? Mande senhora.

- Vão ao quarto de minha tia Dolores e empacotem suas


coisas. - A Dolores disse-lhe -: Eu a quero fora desta casa antes do meio-
dia.

- Não pode me expulsar da minha própria casa! Não você, uma


perdida, uma vadia! Descarada! Desavergonhada! Arrasta o sobrenome
Montes pela lama. Envergonho-me de ser sua tia.

Apareceu o avô Francisco e tratou de remediar, mas Laura se


mostrou inflexível.

- Sou a proprietária desta casa. Assim diz a escritura. Se não


deixar a casa antes do meio-dia, vou fazê-la sair pela polícia.

- Laura - suplicou Francisco Montes.

- Lamento-o, avô.

- Não se atreverá a me expulsar.

—Sim, farei-o. E inclusive utilizarei minha tão lembrada


influência com o general Roca para que seja o próprio exército que a tire
daqui.
Tradução Lauren Moon
- Perdida! Mulher má! Mal nascida! Jamais deveria ter vindo a
este mundo! Só nos trouxe vergonha! Amaldiçoo você pelo resto de seus
dias!

- É o bastante, Dolores! —reagiu Francisco Montes, e


inclusive Maria Pancha se sobressaltou -. Não volte a falar assim da minha
neta ou lhe darei a sova que deveria ter dado anos atrás. Vamos, prepare
suas coisas. Hoje mesmo deixa esta casa.

Dolores pediu asilo na casa de seu irmão Lautaro Montes. Sua


cunhada, Celina Páez Núñez dos Montes, recebeu-a com as honras de uma
grande personalidade expulsa de sua pátria por um tirano. A ameaça do avô
Francisco de partir junto com sua filha não se concretizou, e foi ele mesmo
quem a pôs a par da situação, quando voltou da missa junto com Soledad e
Magdalena. Laura lamentou que a previsível ruptura se desse a poucas
semanas do casamento de sua mãe com o doutor Pereda, porque jogava um
manto escuro sobre a alegria que promovia a celebração.

A falta de ânimo impediu que a família se reunisse para


almoçar. O avô Francisco ordenou que não o incomodassem e se trancou
em seu escritório; Ignacia passou o resto do dia em sua cama, suspirando e
tomando gotas de Hoffman para a enxaqueca; Soledad foi visitar sua irmã
em desgraça na casa de Lautaro, enquanto Magdalena escapuliu para a casa
de sua amiga, Florência Thompson, porque não queria escutar os lamentos
e reclamações de sua mãe. Laura comeu frugalmente em seu boudoir,
enquanto respondia algumas cartas e conversava com Maria Pancha.
Apesar do que significava a expulsão de sua tia Dolores, estava convencida
de que tinha agido bem. Sentia-se leve, repentinamente desprovida de um
peso entristecedor. Depois de tudo, disse-se, era loucura manter o inimigo
sob o próprio teto.

- Dolores - disse Maria Pancha - soube que não tinha passado a


noite aqui, porque muito cedo veio despertá-la para a missa das seis.
Encontrou-me adormecida na cadeira de balanço e a cama sem desarrumar.

- O disse minha mãe?

- Não sei. Onde passou a noite?

- Na casa de Nahueltruz.

- Imaginei. Depois do teatro, sua prima Eugenia Victoria


passou para saudar dona Ignacia e dom Francisco e comentou quem tinham
estado em seu camarote. Mencionou Lorenzo Rosas. O que fará com lorde

Tradução Lauren Moon


Leighton? - perguntou Maria Pancha depois de um silêncio -. Segundo a
carta que recebeu, chegará a Buenos Aires em pouco tempo.

- Em meados de agosto, para ser mais precisa.

- O que fará com ele?

- Que farei com ele? Pois nada - se impacientou Laura -. Vou


recebê-lo, tratá-lo como alguém importante, mas, com grande diplomacia,
direi-lhe que essa espécie de compromisso de dois anos atrás está quebrada.
Nenhum homem existe para mim se Nahueltruz estiver ao meu lado.

- Lorde Leighton é imensamente superior.

- Embora o próprio rei da Inglaterra me pedisse que fosse sua


esposa não aceitaria. Deve terminar por compreender, Maria Pancha, que
Nahuel e eu nos amamos. Não permitirei que o maltrate nem que se refira a
ele em maus termos.

- Pressinto - seguiu a criada - que Guor ainda conserva velhos


rancores que não conseguiu resolver. Aflorarão cedo ou tarde.

- Sim, sei - acordou Laura submissamente.

Permaneceu pensativa, enquanto Maria Pancha a ajudava a se


desfazer do vestido.

- Vamos, sente-se que quero escovar seu cabelo.

- Por que será - falou Laura - que os olhos de certo homem,


seus lábios, seu voz, provocam um efeito perturbador em uma mulher
quando os vê, sente-os, a escuta? Refiro a essa faísca que acende um fogo
que abrasa suas vísceras e que só se consome na paixão compartilhada com
esse homem. E por que um homem, igualmente galante e formoso,
possivelmente mais valioso como pessoa, não provoca nada destes
sentimentos, e seus encantos passam sem tristeza nem glória? Não há
faísca, menos ainda fogo e nada de paixão.

- Acredito que é a pergunta que trataram de responder todos os


poetas desde que o homem aprendeu a escrever.

- Se você não sabe - meditou Laura -, então ninguém sabe.

Pela tarde, foi procurar sua mãe na casa de Florência


Thompson, porque tinham uma visita no atelier de madame Du Mourier
Tradução Lauren Moon
para provar o vestido de casamento. Depois foram às compras, e Laura deu
de presente a sua mãe um medalhão de ouro, cujo fecho era um camafeu
de cornalina e marfim. Disse que desejava que ela levasse uma mecha de
seu cabelo.

- Possivelmente - prosseguiu a jovem - devesse ter previsto


que você iria querer guardar uma mecha do doutor Pereda. Mas, como sua
única filha, achei-me no direito de ser a única dentro deste camafeu.

- Também conservarei aqui o que lhe cortei quando completou


um ano - disse Magdalena, coma voz insegura -. Acredito que é até mais
loiro que este que me você me deu.

Compartilharam uma tarde muito agradável. Se Magdalena


sabia que Laura havia passado a noite fora, não o mencionou nem o deu a
entender. Deixaram os pacotes no carro e partiram para tomar chá no hotel
Soubisa, famoso por sua patisserie.

—Não me reprova que tenha expulsado sua irmã de La


Santísima Trinidad?

- Não aprovo. Eu gostaria de pensar que seu coração é doce e


misericordioso. Dolores está ressentida com a vida e isso a tornou amarga.
Deveria se compadecer pelo que sofreu.

- O mesmo disse o avô Francisco. E eu insisto que também


sofri e não me amargurei nem torno impossível a vida de quem me rodeia.

- Não intercederei por ela, se isso for o que pensa. Seria em


vão com um temperamento tão voluntarioso como o seu. Mas sendo sua
mãe, só lhe digo isto: você não está livre de culpas. Não olhe a palha no
olho alheio a não ser a viga no seu próprio - sentenciou.

- Lembra tia Carolita.

- Não chego nem aos pés de sua tia Carolita.

Laura permaneceu em silêncio, sopesando o que sua mãe


acabava de lhe dizer. Em certa maneira, ficou surpresa quando pensou que
Magdalena, historicamente inimizada com sua irmã mais velha, aprovaria a
decisão.

- Será um escândalo, sei - disse Laura -. Outro que se soma aos


que já acrescentei à família.

Tradução Lauren Moon


- Como se os escândalos lhe importassem - apontou
Magdalena, com humor -. Nesse sentido é como seu pai, que sempre fez e
disse o que tinha vontade.

- Ou como você, quando era garota.

- Eu quando era garota? Sempre fui bem mais submissa,


temerosa do escândalo e, sobre tudo, das reprimendas de sua avó Ignacia.

- Não foi submissa quando se atreveu a pinçar entre as coisas


velhas do bisavô Abelardo e se fascinou com os desenhos do exemplar de
Les mille et une nuits.

Magdalena ficou olhando para ela, a xícara de chá na metade


do caminho. Em seguida se coloriram as bochechas.

- Ah, mamãe! Já somos mulheres, em todo o sentido da


palavra, para que nos ruborizem certas referências.

- Maria Pancha esteve falando demais.

- Não foi Maria Pancha. Você sabe que é uma negra fiel.
Jamais trairia você. Soube por tia Blanca Montes, quando li suas memórias.

- As memórias que usa para escrever seu novo folhetim? -


Laura assentiu -. Não sabia que Blanca mencionou meu nome.

- Oh, sim que o faz. Queria-a muitíssimo, apesar de saber que


você estava apaixonada por papai. Não lhe guardava nenhum rancor.

- Acredito que logo agora me reconcilio com a lembrança de


Blanca. Eu também a quis muito, mas existiram circunstâncias que me
separaram dela. Melhor dizendo, de sua lembrança.

- Está tão apaixonada pelo doutor Pereda como o estava de


meu pai?

- Embora me proponha não voltar a me incomodar com seus


‘dizeres e fazeres’, nunca o conseguirei.

- Desculpe se fui imprudente. Deixei-me levar por este


momento. Tive a impressão de que estava me abrindo seu coração.

- E seu coração, Laura? Quando me abrirá o seu?

Tradução Lauren Moon


- Quando sentir que você não me condena.

Aproximou-se um moço e deixou um prato com éclairs68 e


bombas de chocolate. Laura se serviu um e o comeu com vontade, em
silêncio. Magdalena disse:

- O tipo de amor que me inspirava seu pai só se experimenta


uma vez na vida. Estou certa disso. Amo Nazario, mas de um modo
distinto. Meu amor por ele é mais sereno e sensato, o que necessito neste
momento de minha vida, acredito.

- Terrível coisa é o amor, não?

- O amor apaixonado de juventude, sim - concordou


Magdalena e, em um ato de arrojo, acrescentou -: Como o que você sentiu
por aquele índio em Rio Cuarto, não é?

- Como o que ainda sinto, como o que vou sentir sempre.

~0~

Guor chegou a sua casa e se encontrou com Esmeralda


Balbastro. Alguém havia lhe servido um chá, que bebia com a elegância
que a caracterizava. Ao vê-lo, Esmeralda estreitou os olhos e deixou a
xícara de lado, sobre uma mesinha.

- De onde vem? - quis saber -. O que é esse brilho tão


incomum em seus olhos geralmente apagados?

Ficou em pé e caminhou para ele. Guor tirava seu casaco e


luvas e os jogava sobre a poltrona. Esmeralda o segurou pelo queixo e o
obrigou a olhá-la.

- Só quando vê a viúva de Riglos seus olhos brilham assim.


Por acaso esteve com ela? Viu-a?

Guor sorriu com picardia e se afastou em direção à bandeja


com taças e garrafas de licor. Serviu-se de uma. Esmeralda disse que não
queria.

- Está estranho. Por que ri assim?

68
Espécie de bomba de chocolate, por vezes recheada com creme e coberta com fondant (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Ninguém pode pôr em xeque que seu instinto é proverbial,
Esmeralda. Sim, estive com Laura. Estive com Laura a noite toda.

Esmeralda, que sempre tinha brigado por uma aproximação


entre eles, nesse momento experimentou sentimentos contrapostos:
intimamente tinha imaginado que Lorenzo e ela terminariam juntos. Não o
amava, certamente não como a Romualdo, mas existia um entendimento
tão acabado entre eles, não só na cama, mas nas questões mais
fundamentais e as mais corriqueiras da vida, que havia chegado a pensar
que Lorenzo Rosas era o indicado. Sentiu algo novo, ciúmes de Laura
Escalante, atroz e intratável ciúmes, que a levaram a dizer.

- Será capaz de ignorar seu romance com seu pior inimigo, o


general Roca, que guiou a expedição contra seu povo?

Guor a contemplou com incredulidade e, quase imediatamente,


com doída surpresa.

- Perdoe-me, querido, me perdoe - suplicou Esmeralda -.


Admito que o que acabo de dizer foi por ciúmes e despeito. Um golpe
baixo e desnecessário de minha parte.

- Esmeralda, acreditei que os termos de nossa relação estavam


claros.

- E estão, querido, estão. Mas já deveria saber quão vaidosa e


complicada que é a natureza feminina.

Guor não comentou a respeito e, com a taça na mão, retirou-se


para a janela. Esmeralda se deu conta de que o veneno que acabava de
derramar estava fazendo efeito, e se amaldiçoou silenciosamente.

- Acredita que o que se murmura seja certo? Que Laura e Roca


são amantes?

- Ninguém pôde prová-lo. Bem poderia tratar-se de uma


intriga sem fundamento. Personalidades como as da Laura e as do general
sempre respiram esse tipo de comentários. O que importa se for certo? -
perguntou, tratando de reparar a situação, apesar de perceber que a piorava.

- Você mesma acaba de me dizer que Roca foi quem terminou


com meu povo - se enfureceu Guor.

Tradução Lauren Moon


- Já lhe disse que não leve em conta o que acabo de
pronunciar, que foi só um desplante fruto dos ciúmes.

- Desplante fruto dos ciúmes ou não - repetiu Guor -, tem


razão. O general Roca se propôs exterminar meu povo e, pelas crônicas que
chegam, obteve seu êxito. Jamais poderia perdoar Laura que se entregou ao
carrasco de minha gente.

~0~

Essa noite, embora se tratasse de um jantar íntimo, os


convidados à mesa de dona Luisa eram mais de dez. Dolores Montes não
faltou ao encontro e chegou junto com a família de seu irmão Lautaro. Pura
Lynch, angelical em seu vestido de musselina e renda verde água, depois
que encontrou a oportunidade, conduziu sua tia Laura ao quarto que
ocupava e jogou chave à porta.

Laura tinha estado muitas vezes nesse dormitório, o quarto de


Catalina del Solar, única filha mulher de dona Luisa e primeira esposa de
Julián Riglos, a quem havia querido imitar de pequena até nas atitudes mais
insignificantes e efêmeras. Dona Luisa não tinha trocado nenhum aspecto
do quarto, inclusive mantinha as bonecas de pano e rostos de porcelana
sobre a mesma prateleira da pequena biblioteca de Catalina, abarrotada de
livros de Santos e breviários. Laura sorriu com melancolia.

- Venha, tia, sente-se aqui, ao meu lado - pediu Pura -. Por que
ri?

- Porque faz muitos anos quis ser igual à Catalina del Solar.
Não sei se existiu alguém mais distinta para mim. Ela era naturalmente
serena e boa, sobre tudo isso, boa, sem maldade, como poderia sê-lo tia
Carolita.

- Você também é boa - apontou Pura -, e eu quero ser como


você.

- Deus nos libere!

- Gosto muito de você, tia Laura - expressou Pura, com


lágrimas suspensas em seus formosos olhos celestes -. Não porque tenha
me salvado do casamento com Lezica, nem porque tenha falado com meu
pai para que aceite Blasco. Eu gosto desde antes de tudo isto, há muito
tempo tempo, desde que me lembro.

Tradução Lauren Moon


- E eu confesso, querida Pura, que foi o carinho que recebi de
você, de seus irmãos e de seus primos, mas em especial de você, o que me
ajudou ao longo destes anos de tanta tristeza.

Pura suspeitava que a tristeza de sua tia Laura se relacionava


com aquele misterioso homem a quem tinha amado anos atrás, e de quem
não se sabia se ainda vivia. Compadeceu-se profundamente, certa de que se
ela perdesse Blasco terminaria com sua vida como Madame Bovary,
bebendo veneno.

- Era só uma menina quando nasceu e seus pais me pediram


que fosse sua madrinha, e já desde aquele momento soube que seria muito
especial para mim, que o amor que teríamos duraria toda a vida.

- Toda a vida - repetiu Pura como se, se tratasse de um


juramento.

Conversaram a respeito dos eventos dos últimos dias, riram


das ideias de dona Luisa, comentaram a noite no Colón e fizeram
conjecturas a respeito do que em breve compartilhariam com o resto da
família. Era a primeira vez que Blasco e o pai de Pura voltavam a se ver,
depois que o romance foi descoberto. Pura mencionou uma visita que sua
avó, dona Celina, tinha feito essa manhã. Deixou-a muito consternada.

- Minha avó me disse - contou Pura - que o casamento é um


estado que as mulheres devem suportar com dignidade e firmeza. O que
significavam essas palavras? Não tenho intenções de suportar algo com
dignidade e firmeza para o qual se requer que eu diga: “Sim, aceito”.

- Se você se casar com Blasco, a quem tanto ama, essas


palavras carecerão de sentido. Será feliz ao compartilhar a vida junto a ele.
Nem tudo será cor de rosa, certamente existirão maus momentos, mas
poderão suportá-los facilmente se estiverem unidos, se foremsó um.

- Tia?

- Sim?

- Ontem à noite Blasco veio me visitar e dona Luisa nos


permitiu uns minutos a sós ao nos despedir.

- E bem?

- Beijou-me - confessou Pura, sem olhá-la aos olhos.

Tradução Lauren Moon


- Acreditei que já lhe tinha beijado antes.

- Sim, tinha-o feito. Aqui - disse, e se destacou os lábios -. Mas


o beijo de ontem à noite foi diferente. - No ouvido de Laura, sussurrou -.
Tentou colocar sua língua dentro da minha boca.

Laura controlou a risada e, bastante composta, explicou-lhe


que se tratava de um comportamento comum e lógico.

- Ele está muito apaixonado por você, Pura, e isso lhe provoca
sensações, sensações no corpo que o levam a lhe desejar, a desejar seu
corpo. Quando conseguir vencer o medo e a surpresa, você também o
desejará com a mesma intensidade que ele.

- Tenho medo.

- Por quê?

- Porque minha amiga Corina Saénz diz que quando um


homem e uma mulher se casam, a mulher tem que se despir para que o
marido a veja e a toque por todas as partes, inclusive aqui - e se destacou os
seios -, e aqui - e moveu a mão entre suas coxas -. Diz também que,
completamente nu, deita-se sobre ela.

- É assim.

Pura a olhou com desconsolo.

- Eu não poderei fazê-lo. Impossível! Morrerei de pudor antes


de me despir na frente de Blasco.

- Pensei que soubesse mais a respeito destas questões entre


homens e mulheres.

- Sabia o que você tinha me contado: que não vínhamos de


Paris, nem nos encontravam em repolhos, como minhas primas acreditam;
sabia que, para fazer meninos, um homem e uma mulher devem deitar na
mesma cama. Você me explicou isso. Mas estes detalhes, estes detalhes são
muito sórdidos. Morrerei de vergonha - repetiu, e aferrou a mão de Laura.

- Pura, escuta atentamente o que vou dizer lhe e me acredite,


porque você sabe que eu não costumo mentir para você: não existe nada
mais formoso que fazer amor com o homem amado. Nada, Purita,
asseguro-lhe isso. E você ama muito Blasco. Deu provas disso. Quando
chegar o momento, quando estiver preparada, entregará a ele e deixará que
Tradução Lauren Moon
ele lhe guie ao maior prazer que uma mulher pode sentir. Enquanto isso,
não encha sua cabecinha de fantasmas, que só conseguirão atrapalhar os
escassos momentos em que estará a sós com ele. Ainda falta para que você
e Blasco compartilhem uma intimidade tão profunda como a que descreveu
Corina Saénz. Não se apresse em viver. Dê tempo ao tempo.

Pura retornou à sala mais tranquila e Laura partiu à


penteadeira. Ao sair, topou-se com Nahueltruz no corredor. Abraçaram-se
em silêncio, e ele a apoiou contra a parede para beijá-la. Laura o arrastou
dentro do primeiro quarto que encontraram, o escritório do falecido marido
de dona Luisa. Nahueltruz disse:

- Não me toque. Estou muito excitado para resistir.

- Por que deveria resistir?

- Para evitar um papelão. Seus gritos de prazer alcançariam


todos na sala.

- Eu não grito - queixou-se Laura, risonha.

- Oh, sim gritas. E eu gosto muitíssimo.

Dolores Montes, que tinha seguido Lorenzo Rosas, escutou


esta conversa da porta entre aberta; inclusive, via com clareza as mãos
morenas de Rosas moverem-se sobre a seda branca que cobria os seios de
sua sobrinha. Sempre lhe haviam parecido muito voluptuosos e turgentes
para uma jovem virtuosa; certamente essa característica ela não tinha
herdado das Montes, que se destacavam por seus silhuetas miúdas e
decentes; vinha por parte do pai, que tinha mostrado uma índole sacrílega
ao longo de toda sua vida. Na realidade, o corpo de Laura, com suas curvas
e formas, não podia ser obra divina, mas sim do demônio, já que só servia
para fazer cair em tentação os homens que pousavam os olhos sobre ela.

Com doçura e cuidado, Guor abriu sua blusa de seda e baixou


o decote do espartilho até que descobriu seus mamilos. Laura fingiu
resistir, mas Guor, que não estava para brincadeiras, passou-lhe ambas as
mãos pela cintura, segurando-a com firmeza, e, inclinando a cabeça,
afundou o rosto entre seus seios, até que Laura terminou por abandonar-se
à luxúria de seus lábios e de sua língua. Dolores seguia atentamente a cena,
que lhe provocava um formigamento prazenteiro entre as pernas e lhe
secava a boca. Sua cabeça encheu de lembranças, lembranças dos
momentos em que ela e seu marido, o bígamo, Justiniano de Mora y
Aragón, tinham compartilhado anos atrás. Mas tudo isso pertencia ao

Tradução Lauren Moon


passado. E era pecado. Nem sequer seu confessor reconhecia que não
importava quantos anos levasse a aniagem ou usasse a disciplina, sua alma
de luxúria e ainda herege lembrava com saudade daquelas noites. No
entanto, existia uma grande diferencia entre ela e sua sobrinha Laura: ela,
Dolores, sempre tinha experiente certo pudor, certa culpa de consciência
quando Justiniano a iniciava nessas práticas sexuais tão abjetas, Laura, ao
contrário, com sua natureza pagã, não mostrava o menor indício de
arrependimento ou cautela. E mais, era ela, com seu corpo de deusa grega e
seus gemidos de sereia, quem enfeitiçava Rosas e o incitava.

A animosidade que experimentava por Laura, nascida tempo


atrás, havia conhecido seu paroxismo nos últimos dias. Dolores albergava
uma perversa decepção pelo casamento frustrado de Purita e Lezica.
Acreditava que se houvesse acontecido, a verdade a respeito da outra
esposa de Lezica, a moça do campo, teria aflorado cedo ou tarde, e ela,
Dolores Montes, teria tido com quem compartilhar o peso da cruz que
significava ser a concubina de um bígamo. Retornou à sala porque sabia
que, se continuasse olhando, essa noite não conciliaria o sono e deveria
apelar à disciplina para espantar as imagens satânicas.

Dentro do quarto, Guor se separou de Laura e ficou em pé com


evidente aborrecimento.

- Voltemos para a sala - disse, enquanto ajustava sua casaca e


passava as mãos pelo cabelo.

Laura lhe estendeu uma mão e, sorrindo, pediu-lhe que


voltasse a sentar-se.

- Com certeza podemos trocar duas palavras sem terminarmos


nus - acrescentou, enquanto abotoava sua blusa.

- Foram mais de seis anos de abstinência - se justificou Guor, e


voltou a se sentar.

- Abstinência! - mofou-se Laura -. E o que acontecia quando


estava com esse modelo de virtudes parisiense chamado Geneviéve Ney?
Liam Petrarca? Jogavam cartas? Certamente falavam do tempo.

O olhar que Guor lhe dispensou a inquietou ao entrever em


seus olhos cinza algo do velho ressentimento que lhe fez acordar da
discussão na sala dos Lynch.

Tradução Lauren Moon


- Abstinência de você, Laura - esclareceu severamente -. De
você - remarcou. Suas mãos se fecharam em torno dos ombros dela e
começaram a acariciá-la com ferocidade.

- Não suporto sua proximidade se não poder possuir você -


disse -. Meu corpo não me pertence quando você está perto. Não tenho
vontade. Converto-me em um ser sem discernimento nem inteligência.
Estes meses em Buenos Aires foram um inferno, tratando de me manter
incólume a sua presença, simulando apatia, que nada me importava em
você, quando na realidade era justamente ao contrário.

- Nahuel, meu amor - se emocionou Laura, e descansou a testa


sobre seu peito.

Nahueltruz a abraçou e continuou falando.

- A primeira noite na casa da senhora Carolina, quando entrou


e suas sobrinhas lhe rodearam, enquanto colocava aquelas violetas em seus
decotes, enquanto sorria e falava com elas, ah, como desejei você!
Perguntava-me: pode ser que esteja até mais bonita? É isso possível?

- Não me recorde aquela noite - suplicou Laura -, que terminei


chateada no quarto de minha tia. Apesar de saber que encontraria você ali,
sua presença e sua indiferença foram demais. Os ciúmes também fez sua
parte, e se Deus tivesse decidido me levar junto a Ele naquele instante, eu
estaria agradecida.

Sentiu que as mãos de Guor se ajustavam em torno dela ao


mesmo tempo em que a reprovava:

- Não diga isso, jamais volte a desejar isso.

- Nenhum desses maus pensamentos me aflige agora, Nahuel.


Só desejo viver. Oxalá você e eu fôssemos eternos!

- Laura - murmurou ele, e procurou sua boca para beijá-la.

- Vamos por um tempo - propôs ela -, a um lugar onde


possamos estar juntos dia e noite sem ter que nos esconder. Quero-o todo
para mim, Nahuel. Quero me deitar com você e amanhecer ao seu lado.

- Sim - ele repôs, embriagado de desejo.

- Vamos para essa quinta que você tem em Caballito.


Inventarei uma desculpa para me ausentar de La Santísima Trinidad e
Tradução Lauren Moon
poderemos passar uma semana sem necessidade de nos esconder nem
dissimular. Imagina Nahuel? Uma semana para você e para mim? Quero
conhecer seus cavalos, quero vê-lo montar, quero compartilhar seu dia,
quero vê-lo tratar seus empregados, quero vê-lo comer, dormir, tomar
banho. Quero você todo para mim - repetiu e o beijou nos lábios
ardentemente.

Combinaram que arrumariam os assuntos pendentes e


partiriam para Caballito em dois dias. Laura daria a desculpa de uma
repentina e inadiável viagem a Córdoba para concretizar a venda da casa de
seu pai.

- Por que só uma semana? - queixou-se Guor -. Por que não


um mês?

- Minha mãe se casa com o doutor Pereda dentro de pouco


tempo. Quero estar ao seu lado nos dias que antecedem.

Nahueltruz assentiu.

- Agora sim - disse Laura -, voltemos para a sala.

- Vá você primeiro. Neste estado não posso retornar. A casaca


não seria suficiente para esconder o que acaba de me provocar.

Os convidados começavam a ocupar seus lugares à mesa de


dona Luisa, quando Laura entrou na sala. Magdalena lhe perguntou aonde
estava, mas só recebeu evasivas. Dolores se inclinou sobre o ouvido de sua
sobrinha Iluminada Montes de Unzué e lhe sussurrou; imediatamente,
Iluminada procurou o senhor Rosas entre as pessoas, sem êxito, e apreciou
a vermelhidão nas bochechas de sua prima e o sorriso incomum que a fazia
parecer contente.

Blasco e o senhor Lynch se sentaram frente a frente. José


Camilo se manteve taciturno e com cara de poucos amigos e nem sequer os
esforços de Esmeralda Balbastro e Eugenia Victoria conseguiram tirá-lo de
seu ostracismo. Pura, longe de seu pai e de seu amado, mas consciente da
situação irreconciliável exposta entre eles, murchava-se com o passar da
noite. Laura, sentada junto a José Camilo, lembrou-lhe de sua promessa de
dar uma oportunidade ao jovem Tejeda e, quase na hora da sobremesa,
Lynch resolveu lhe dirigir a palavra. Blasco apoiou os talheres sobre o
prato porque suas mãos tremeram notoriamente.

Tradução Lauren Moon


Magdalena, por sua parte, fixou-se nos reiterados gestos
galantes que o senhor Lorenzo Rosas dispensava a sua filha e se preocupou.
Embora impecável em suas maneiras e em seu vestir, certo brilho insolente
e audaz em seu enigmático olhar de olhos cinza a perturbava. Por certo,
esses olhos pareciam-lhe familiares, apesar de sua cor, esse cinza tão puro e
opaco, fosse pouco comum. Destacava-se do resto por não levar costeletas
nem bigodes, era decididamente moreno, e seu cabelo liso, bem preto.
Disse consigo mesma que não deveria julgá-lo por sua pele morena,
quando em várias oportunidades havia escutado José Vicente, seu marido,
dizer que poucas vezes tinha conhecido a alguém mais moreno que o
general San Martín. Eram conhecidos os contos que se entreteciam ao
redor da pele morena do Libertador; um, em especial, que ressonava até
esses dias, tinha-o por filho de uma nativa do litoral e do general Alvear,
pai do diretor supremo Carlos de Alvear, primeiro amigo e, tempo mais
tarde, inimigo de San Martín. Possivelmente, pelas veias de Lorenzo Rosas
também corria sangue aborígine, que lhe dava, não só o tom de sua pele,
mas também esse aspecto tão peculiar, que Magdalena só conseguia
associar com o cinza do retrato do famoso cacique Mariano Rosas, que
Lucio Victorio havia presenteado seu pai, esse que particularmente
agradava Laura. Certamente, ela não o teria escolhido: não negava que era
atraente de forma incomum e inquietante, mas o achava muito forte e
corpulento; sua presença tão inevitável era intimidante. Tão diferente de
lorde Edward Leighton, a quem ela desejava como genro. Dos homens que
haviam cortejado sua filha, nenhum lhe agradava tanto como Leighton.
Saber que José Vicente teria aprovado a união a reconfortava. Mas, faria-o
Laura? Sua filha era imprevisível. E parecia tão à vontade com Rosas.

Magdalena Montes não foi a única a perceber certo tratamento


preferencial por parte do senhor Rosas; Eduarda Mansilla também. Depois
do jantar, de retorno à sala, enquanto Laura e ela polemizavam a respeito
das qualidades literárias de Manuela Gorriti, os olhos de Eduarda se
detiveram em Lorenzo, que, completamente abstraído, contemplava sua
amiga com devoção. Nos anos em que o conhecia, não se lembrava de
Lorenzo admirar desse modo tão aberto e despojado uma mulher, nem
sequer Geneviéve. Seu caráter receoso o impedia; nesse momento, porém,
até sua natureza parecia ter-se alterado. No dia seguinte, durante o café da
manhã, comentou com sua mãe, a senhora Agustina, e a sua secretária,
mademoiselle Frinet, e lhes pediu discrição. Mais tarde, na hora do chá,
dona Agustina repetiu a seu filho Lucio Victorio as conjeturas de sua irmã
e, é obvio, também pediu discrição.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXII

Cruz e delícia

Fazia frio. Tratava-se de uma desagradável tarde em princípios


de agosto. Laura, entretanto, achava-se muito à vontade. Envolta em uma
manta de lã fina, os pés ocultos sob a saia, embalava-se na cadeira de
balanço que Nahueltruz fez pôr para ela na galeria da quinta de Caballito.
De vez em quando, levava uma xícara de chocolate aos lábios, sem afastar
a vista do caminho que traria Guor de volta.

Essa manhã muito cedo tinha recebido uma mensagem de


Miguelito onde lhe pedia que se apresentasse na casa da Rua de Cuyo para
um assunto urgente. Nahueltruz se inquietou porque pensou que se tratava
da saúde de sua avó Mariana. Despediu-se de Laura com um beijo rápido,
que demonstrava sua ansiedade, e partiu sobre o lombo de Emperador, seu
puro-sangue. Laura o viu galopar até que ele e o cavalo se converteram em
uma nuvem de pó.

A primeira noite que compartilharam em Caballito,


virtualmente não dormiram e, quando Guor percebeu que o céu clareava,
abriu a porta da varanda de uma lado só e a convidou a contemplar o
amanhecer. O ar gélido golpeou o rosto de Laura. Apesar do roupão de lã,
seu corpo tremeu de frio e arrepiou sua pele, mas em seguida, ao sentir os
braços de Guor em volta de suas costas, envolveu-a uma agradável e cálida
sensação. Acomodaram-se sobre os almofadões de um banco de jardim e se
cobriram com duas mantas. Laura recolheu os pés e apoiou as costas sobre
o peito de Nahueltruz, que a abraçou e lhe beijou o pescoço.

O pasto ainda brilhava por causa do orvalho, e a brisa fresca


arrastava o aroma da terra úmida. Laura inspirou profundamente, fechou os
olhos e disse consigo mesma: “Que paz!”. Não se referia à paz do lugar,
mas a essa harmonia que experimentava pela primeira vez e que se
originava em sua mente e em sua alma. Não teria podido explicá-la com
palavras. Embora soubesse que se devia exclusivamente ao fato de ter
Nahueltruz ao seu lado. Diferentemente de Rio Cuarto, nesse momento não
existiam armadilhas a superar. Ela era uma mulher sem amarras; ele, um
homem respeitável e culto a quem ninguém faria objeção. Inclusive o tema
do passado tinha perdido relevância. Ela não sabia se Nahueltruz
finalmente veio a acreditar nela ou, ao menos, a considerar sua postura de
uma visão mais conciliadora. Sabia que a amava, que nunca havia deixado

Tradução Lauren Moon


de fazê-lo, e que sua indiferença inicial e sua fúria mais tarde tinham sido
máscaras para ocultar seu coração destroçado.

Tanto sofrimento e desencontro ficavam esquecidos e


enterrados com um olhar amoroso de Nahueltruz. Ainda a assaltavam essas
urgências virginais, quando ele passava suas mãos pelo seu corpo nu ou lhe
sussurrava suas intenções mais ocultas. Aceleravam seus batimentos do
coração ao vê-lo entrar na sala com seus esses breeches - calças tão
peculiares que os ingleses usam para montar - e suas botas de cano alto, a
camisa aberta na metade do peito, que mostrava seus músculos brilhantes
de suor, o topete liso sobre a testa e o cenho marcado se falava com o
capataz sobre seus adorados cavalos. Ela o desejava intensamente nesse
papel de patrão exigente e respeitado. E também quando, na intimidade do
quarto, se despia e a convidava para compartilhar um banho com ele.
Nessas ocasiões, ele relaxava o cenho, suas mãos se voltavam suaves e
pacientes, sua voz, que momentos atrás havia trovejado com seus
empregados, adotava uma nota grave e sensual. Dizia-lhe ao ouvido que
amava seu corpo e que a amava, que nunca teria o suficiente, que sempre
iria querer mais, que nunca se saciaria. Laura percebia um tom
desesperado, quando ele falava desse modo.

- É uma feiticeira - ele disse uma noite, rendido sobre ela


depois do amor -. O que fez comigo? Estou aos seus pés desde o momento
em que pus os olhos sobre você. Dependo de você para me sentir vivo.
Como posso amá-la tanto quando transtornou minha vida por completo?
Desejaria não amar você tanto - acrescentou com uma nota amarga -,
desejaria não ter caído sob seu feitiço. Assim não seria tão vulnerável.
Porque se voltasse a me machucar...

Mas ela não o deixou terminar. Agarrou-o pela nuca e o


beijou. Seu discurso a tinha assustado e não tinha sabido como responder.
Só atinou em beijá-lo para não escutar a ameaça que certamente iria
proferir. Porque, embora ultimamente com ela mostrasse esse aspecto
benevolente de sua natureza, Laura conhecia seu lado mais cruel. Guor era
capaz de destruí-la por ressentimento.

Escurecia, e já não avistava o caminho com clareza.


Incorporou-se na cadeira de balanço, quando acreditou distinguir uma
figura que destoava na inalterada distância. Não sabia se, se tratava de uma
ilusão motivada pelo jogo de luzes e sombras do entardecer ou se, na
verdade, algo se movia à distância. “Um índio, - pensou -, desses tão
hábeis, saberia me dizer com precisão do que se trata”. Voltou a recostar-
se, terminou o chocolate e concentrou o olhar no horizonte. Pouco depois,
não restavam dúvidas de que um cavaleiro se aproximava a grande
Tradução Lauren Moon
velocidade. Rogou que se tratasse de Nahueltruz e não de um mensageiro
para lhe comunicar que a índia Mariana havia adoecido e que o senhor
Rosas não retornaria. Ainda ficavam alguns dias por compartilhar. Na noite
anterior, Guor tinha-lhe pedido que passassem juntos outra semana em
Caballito.

- Desejo permanecer aqui toda a vida - ela se justificou -, mas,


como já lhe expliquei, o casamento de minha mãe se aproxima e prometi
estar em La Santísima Trinidad os dias que antecederiam para acompanhá-
la. Minha mãe foi paciente e indulgente comigo, Nahuel. Poucas vezes me
exigiu ou pediu algo. Não posso deixá-la só neste momento tão especial
para ela.

- E eu não conto? Eu, que necessito tanto de você?

- Não tanto como eu - replicou Laura -. Voltaremos quando


tiver passado o casamento e nenhum compromisso nos ate a Buenos Aires.

O cavaleiro era Nahueltruz. Durante esses dias tinha aprendido


a reconhecer seu estilo, esse modo tão particular de acompanhar o
movimento do animal, convertendo-se em parte dos arreios, como se
cavaleiro e besta fossem um apenas. Notava-se que tinha forçado a marcha,
pois o cavalo tinha o pescoço e lombo empapados de suor e jogava espuma
pela boca. Ele mesmo apresentava um aspecto descuidado.

Tirou a manta de cima e ficou em pé. Sorriu e levantou a mão


para saudar. O entardecer havia trazido consigo nuvens de chuva. As
primeiras gotas, grossas e pesadas, começaram a repicar sobre os ladrilhos
da galeria. O vento sul cobrou força e açoitou os ramos das árvores e dos
eucaliptos que acompanhavam a entrada da quinta. A temperatura desceu
consideravelmente. Laura, entretanto, não parecia perceber a tormenta que
se formava nem de que estava arrepiada, e correu ao encontro de
Nahueltruz sem advertir que só usava sapatos de cetim.

A primeira coisa que percebeu em Guor foi que tinha o cabelo


solto. Comprido, grosso e luminoso em contraste com a penumbra ao redor,
batia-se ao compasso do vento e da carreira de Laura, que já tinha perdido
o xale pelo caminho e levantava a saia até os joelhos para não tropeçar.
Guor desmontou de um salto e a observou aproximar-se com crescente
excitação. Parecia uma menina correndo desse modo, com os cabelos ao
vento, o nariz vermelho pelo frio, mostrando as canelas. Deixou o chicote
sobre os arreios e a recebeu em seus braços, levantando-a do chão,
fazendo-a dar voltas. A risada de Laura era contagiosa e revigorante. Ah,
como tinha sentido sua falta!
Tradução Lauren Moon
- Este dia me pareceu um ano - disse ela, muito agitada.

- Sim, sim - replicou ele, enquanto enchia seu rosto de beijos -.


Sim, meu amor, sim.

Aproximou-se um empregado e levou Emperador.

- Tem o rostinho gelado - disse Guor -. As mãos também.


Vamos para dentro antes que pegue uma gripe.

Levantou-a nos braços e Laura se agarrou a seu pescoço. Ao


chegar junto ao xale, Guor se inclinou e Laura o recolheu do piso, rindo.

- Como está sua avó?

- Ela está bem. Todos estão bem.

- Graças a Deus - expressou Laura, e imediatamente perguntou


-. Por que mandaram lhe chamar com tanta urgência, então? - embora em
seguida se arrependesse, pois não sabia se Guor gostava que se
intrometesse.

- Um assunto do qual fazia tempo esperava notícias. Miguelito


conhecia meu interesse e por isso acreditou que deveria fazer-me saber.

- Do que se trata? - ela quis saber mesmo assim.

- O senador Cambaceres conseguiu para mim permissão para ir


visitar meu tio Epumer, que está preso na ilha Martín García.

O coração de Laura deu um tombo “Julio”, pensou, com


profundo amor. Ocultou o rosto porque sabia que se ruborizava. Sem
levantar o olhar, perguntou.

- Foi ver o senador?

- Não pude. Cambaceres se ausentou de Buenos Aires ontem,


acredito que viajou para sua estância em Bragado. No entanto, antes de ir
mandou seu secretário com os papéis. Casilda! - chamou, uma vez dentro
da casa.

- Mande patrão. O que aconteceu com a senhora! - assustou-se


a mulher ao vê-la nos braços de Guor.

Tradução Lauren Moon


- Nada, Casilda - replicou ele, com impaciência -. Prepare um
banho bem quente para a senhora antes que ela adoeça.

A mulher deixou a sala a passos rápidos, e Guor se


encaminhou para o quarto.

- Embora, pensando melhor - disse -, eu conheço um remédio


que te esquentará muito antes que um banho.

~0~

Entre as frestas de suas pálpebras alcançou a imagem de


Nahueltruz refletida no espelho de cavalete, localizado junto à cama. Era
uma imagem dele que gostava de contemplar, enquanto faziam amor: os
movimentos ondulantes de seu corpo nu sobre o dela; seus glúteos,
pequenos e mais brancos que o resto do corpo, que se esticavam e se
relaxavam a um ritmo crescente; o jogo dos músculos de suas pernas e de
suas costas sob a pele acobreada. Também podia ver suas próprias pernas,
brancas, muito brancas em contraste com as ele, largadas para os lados em
franco abandono. Afundou seus dedos nos glúteos para tê-lo ainda mais
dentro e o escutou grunhir de prazer. Nahueltruz a penetrava com deleite e
profundidade. Ele era tão magnificamente intrépido, dominante e perito.

- Ficará uma semana a mais - escutou-o dizer -. Não quero


compartilhar você com ninguém, nem sequer com sua mãe. Sempre parece
disposta a agradar a todos exceto a mim. Uma semana mais.

- Sim, sim - concordou ela, apressada pela sensação de um


orgasmo iminente.

Com um movimento rápido, Guor se recostou de costas e


acomodou Laura montada sobre suas pernas. Voltou a penetrá-la, enquanto,
com suas mãos, a percorria da cintura aos seios, acariciava seu pescoço e
ombros, e descia por suas costas. O cabelo de Laura roçava suas pernas, e
sentia a energia de seus dedos que enterravam em suas coxas. Quando por
fim o orgasmo se apoderou dela e, com a cabeça arremessada para trás,
clamou “Nahuel, Oh, Nahuel”, Guor imaginou ser impossível que um
homem pudesse amar uma mulher mais do que ele amava Laura Escalante.

Laura caiu junto a Guor, exausta, os olhos fechados e a boca


apenas aberta. Ainda sentia os batimentos de seu sexo que, lentamente,
começavam a se diluir. Guor afastou o cabelo cacheado de seu rosto e
beijou suas pálpebras, seu nariz, seus lábios. Relaxada por completo, ela se

Tradução Lauren Moon


deixava beijar e acariciar, e sorria com complacência. Ele enchia-se de paz
vê-la assim. Sua adorada Laura, sua vida, seu amor, seu tudo.

Algumas vezes, quando as domésticas se retiravam para


descansar, estavam acostumados a fazer amor na sala, sobre o tapete, junto
à lareira. Não acendiam velas, bastava-lhes a luz da lua que se filtrava pelas
portas da varanda, essa luz esbranquiçada que banhava o corpo de Laura e
lhe conferia o aspecto de uma fada. Ela se sentia como uma deusa adorada
por seu súdito mais fiel. Ele nunca parecia obter o bastante dela, nunca
parecia cansar de admirá-la, de acariciá-la, de beijá-la, de amá-la. A sede
que o despertava parecia insaciável.

- É incrível - ele sussurrou uma noite -, que depois de tantos


anos siga amando você com loucura - abrangeu seu ventre com a mão e se
aproximou para lhe dizer -. Quero que me dê um filho, Laura.

Colocou-se sobre ela, separou-lhe as pernas e voltou a tomá-la.


Laura gostava que Nahueltruz se afastasse quando fazia amor, desse modo
podia estudar seu rosto, enquanto ele chegava desarmado a seu clímax. E
enquanto o olhava nessa ocasião, pensou no que ele acabava de lhe pedir.
Foi estranho, porque, embora feliz, lembrou-se do momento mais negro de
sua vida, dessa manhã em que deixou Rio Cuarto para partir para Córdoba
recém-casada com Riglos. O pensamento penetrou furtivamente e a pegou
de surpresa. Teve medo e se abraçou a Nahueltruz com desespero.

- Às vezes - disse - Olho para trás, todos esses anos vividos


sem você, cada dia transcorrido, cada hora, e me pergunto como pude
aguentá-los.

Depois do banho, jantaram no quarto. Guor lia alguns jornais


que havia trazido de Buenos Aires, entre eles La Aurora. De uma ou outra
forma, os artigos referiam-se à delicada situação política que não tinha
mudado desde que deixaram a cidade, tratava-se da mesma tensão entre o
governo nacional e o provincial por impor seus candidatos para as eleições
presidenciais do ano seguinte.

- Já fechou o envelope com a carta para Agustín?

- Ainda não - respondeu Laura.

- Disse-lhe que estamos juntos?

- Sim. Ficará muito feliz quando souber.

Tradução Lauren Moon


- Se está contando sobre nós dois, então não se surpreenderá se
encontrar algumas palavras minhas depois das tuas. Quero informar sobre a
permissão para visitar meu tio Epumer.

Laura deixou a cadeira, procurou a carta em sua mesa de


cabeceira e a passou para Guor.

—A quem mais contou a nosso respeito?

- Para minha prima Eugenia Victoria e, é obvio, Maria Pancha


que sabe de tudo. Queria contar a todo mundo, gritá-lo para que todos
escutem.

- Por que não o faz? - quis saber Guor, e Laura demorou para
responder.

- Porque tenho medo de que voltem a nos machucar. Quero


que todos saibam, mas também quero preservá-lo da malícia que me rodeia.

Guor a contemplou estranhamente, em silêncio. Inclinou a


cabeça e continuou lendo.

- Roca e Tejedor estão tirando os olhos para conseguir o apoio


eleitoral das províncias - comentou, sem afastar a vista do El Mosquito.

Laura permaneceu calada e não se atreveu a olhá-lo. Era a


primeira vez que mencionava esse nome entre eles.

- Saturnino Laspiur renunciou ao cargo de ministro do Interior.

- Sério? - disse ela, sem ânimo.

- Um golpe de sorte para Roca. O interessante será ver quem


põem em seu lugar. Escuta o que escreveu Laspiur a Avellaneda na
renúncia. “Vejo você afastado hoje daquela política que restabeleceu a
confiança e a segurança geral, depois de desarmar um partido que pretendia
derrotá-lo, e o vejo contemplando impassível à tempestade que pode outra
vez arrasar tudo, lançando o país na guerra civil com suas fatais
consequências. Vejo-lhe mais impassível tolerando e deixando fazer aos
que pretendem dar a você um sucessor resultado da violência ou imposição
à força”.

- Acaso os que defendem a candidatura de Tejedor não


pretendem impô-la com violência e à força igualmente? - queixou-se Laura.

Tradução Lauren Moon


Guor levantou a vista e a contemplou de um modo
indecifrável, mas não fez comentário algum. Seguiu lendo em silêncio e
Laura simulou comer.

- Amanhã de noite - falou Guor -, haverá uma noitada no teatro


Pohteama, onde, conforme diz este artigo, será lançada formalmente a
candidatura de Roca. Pelos nomes que mencionam, tem o apoio de grande
parte da sociedade. Isto está se convertendo em um ninho de víboras - disse
ao final, sem mostrar reflexos de preocupação ou condenação.

Deixou de lado El Mosquito e pegou o La Aurora. Repassava


as páginas com concentrada atenção, e Laura pareceu notar que seu gesto
se endurecia. Um momento depois, ficou em pé, fazendo tremer a pequena
mesa, provocando-lhe um sobressalto. Em um tom estudado que denotava a
raiva reprimida, disse:

- Já se fala em repartir as terras do sul. Não resta dúvida de que


as utilizarão como meio para subornar a quem quiser para conseguir votos.
Eu me pergunto com quantas léguas ficará seu querido general Roca.

- Não é meu querido general Roca —protestou Laura, entre


nervosa e irritada.

- Não é o que comentam as pessoas do seu círculo - repôs ele -.


Não é o que alguém pensaria depois de ler La Aurora, que se mostra tão
favorável a sua candidatura - acrescentou, brandindo o jornal no ar.

Jogou-o no chão, mas Laura não tratou de levantá-lo. Temia-


lhe quando perdia a calma, porque sabia capaz de machucá-la
profundamente.

- Mario Javier é o diretor da editora e conta com a maior


independência para dirigi-la.

- Vamos, Laura! Não me tome pelo que não sou. A


proprietária da editora é você e, se não contasse com sua aprovação, Mario
não escreveria sequer a data no jornal.

- La Aurora não apoia nenhuma candidatura - tentou -.


Mantém-se neutro.

- Neutro! Chama a este artigo neutro? - repreendeu-a, e,


recolhendo o jornal do chão, jogou-o sobre a mesa.

Tradução Lauren Moon


Laura pegou com mãos inseguras e leu rapidamente um
parágrafo que condenava a criação de exércitos provinciais, uma das ideias
de Tejedor.

- Não encontro parcialidade neste artigo - objetou -. A criação


de um exército da província de Buenos Aires iria contra a Constituição
Nacional, e isso é o que Mario está condenando.

- Não é momento para se fazer de constitucionalista - replicou


Guor -. Está com eles ou contra eles. E, pelo que parece, La Aurora está
com Roca. Não foi por nada que apedrejaram a fachada da editora.

- Isso foi pelo motivo de um artigo que insultava a criação do


Tiro Nacional, uma ideia aberrante que muitos desaprovaram, inclusive
aqueles que não estão a favor da candidatura de Roca. No La Aurora -
retomou, com maior compostura - escrevem pessoas de todas as facções.
Recentemente Rufino de Elizalde aceitou uma coluna política, e ele é do
Partido Nacionalista que apoia Tejedor. Também Sarmiento às vezes aceita
escrever para La Aurora, assim como Aristóbulo del Valle. De qualquer
maneira, pedirei a Mario Javier que acentue a neutralidade do jornal -
acrescentou, mas Guor parecia não se conformar.

Foi para junto da janela; mantinha-se afastado e em silêncio.


Laura não falava por temor de dizer algo que o importunasse e abrisse
velhas feridas. Não gostava de ter medo dele, mas lhe temia. Nahueltruz
tinha reagido mal no passado e seguia fazendo-o depois de tantos anos,
apesar de suas evidentes prova de amor. Afastou o jornal e tratou de se
conciliar.

- Nahuel, por favor, deixemos de lado a política e as questões


de governo. O que nos importam? Não permita que estraguem este
momento que compartilhamos. Foi tão maravilhoso.

Guor se voltou bruscamente e disparou sem preâmbulos.

- Foi amante de Roca?

Laura não respondeu imediatamente. Os olhos irascíveis dele


pareciam tê-la privado de toda vontade.

- Não, não fui - respondeu um momento depois com bastante


aprumo.

~0~

Tradução Lauren Moon


Mais tarde, quando as velas se extinguiram por completo,
Laura e Nahueltruz permaneciam acordados na cama, conscientes de que o
outro não dormia. Evitavam se tocar. Laura tinha-se recostado quase na
beirada e dava as costas para Nahueltruz, com os braços de modo de
travesseiro, perfurava a escuridão e se mantinha atento a qualquer som
dela.

Laura meditava com angústia por ter-lhe mentido, quando


devia lhe dizer a verdade. Depois de tudo, ela tinha tido tanto direito como
ele de voltar a ser amada, mais direito ainda porque o acreditva morto. Mas
a verdade simplesmente estava fora de discussão. Falar com franqueza teria
significado enfrentar uma ruptura. Ela conhecia muito a profundidade de
seu ressentimento para lhe dizer a verdade. Seus antigos complexos teriam
aflorado com a força dos tempos em que tinha sido um índio
marginalizado. Laura decidiu que, se fosse necessário, com a mentira o
defenderia dele mesmo e preservaria seu amor, quão único contava.

Guor estava consciente de que tinha atuado como um caipira.


Havia desconfiado dela, sentimento imperdoável em uma relação como a
que mantinham. Entretanto, Laura sempre lhe suscitava desconfiança.
Assim tinha sido no passado e assim era nesse momento. Era difícil evitá-
lo. Havia tantos homens relacionados a ela, a lista parecia interminável:
Hilario Racedo (o tarado e maldito Racedo), Alfredo Lahitte, seu antigo
prometido, que ainda a cortejava, o doutor Riglos, que tinha terminado por
arrebatar-lhe, deixando-o perplexo de dor, Ventura Monterosa, disposto a
bater-se em duelo, que ainda vagava pelo mundo em seu eterno grand tour
suspirando pelo amor não correspondido; o tal Cristian Demaría, que,
apesar de estar comprometido com outra, olhava-a com cara de bobalhão, e
por último, o general Roca, o maldito general Roca, o exterminador de seu
povo. Na realidade, de todos, era Roca quem o inquietava e lhe atiçava o
ciúmes, pois, embora revolvesse as tripas admiti-lo, sabia-o um digno
adversário. Possuía tal elegância, tal força em seu olhar, que o revelavam
como um homem inteligente e determinado, valente, não no sentido
romântico do termo, mas em um mais frio e calculador; um homem feroz.
Um homem capaz de cativar uma mulher tão peculiar como Laura. Que ele
a olhava com olhos de caçador não cabia dúvida; quanto a ela, seu atitude
era confusa.

Laura se moveu delicadamente e lhe roçou a perna sem


intenção. Esse fugaz, quase imperceptível contato agitou as vísceras do
Nahueltruz e o resgatou de seus lúgubres pensamentos. Fechou os olhos e a
nudez de Laura se desenhou na escuridão de seu mente, e, como se a
tocasse, foi recordando-a: seu tornozelo, suas pernas nuas, o osso delicado

Tradução Lauren Moon


de seu joelho e também suas coxas, seu monte de Vênus, apenas coberto
por esse pêlo castanho que ele nunca se cansava de beijar e explorar, seu
ventre, sempre palpitante quando estava excitada, e a curva de sua cintura.
Conhecia-a exaustivamente, podia detalhar cada centímetro de sua pele.

Estirou a mão e a apoiou sobre o quadril da Laura. Aí a deixou


à espera de uma reação, mas ela, embora não fizesse gesto de rechaçá-lo,
manteve-se quieta e em silêncio. Guor se moveu para o lado e pegou seu
corpo em suas costas; rodeou-a com seus braços e lhe sussurrou:

- Os ciúmes estão me deixando louco.

- Não lhe dei motivos para senti-los.

- Sim - replicou ele, e sua resposta surgiu com a cadência de


uma súplica -. Sempre me dá motivos.

- É fácil para você pensar mal de mim. Já é um costume entre


nós - apontou.

- As circunstâncias estiveram sempre contra nós.

Laura quis lhe dizer que a princípio tinham sabido que ele, por
se índio, e ela, por ser cristã, seriam obrigados a enfrentar a hostilidade das
pessoas, em especial em volta dela. A ela, entretanto, nada a amedrontava.
No meio da incerteza, o claro e inequívoco desejo de ser a mulher do
cacique Nahueltruz Guor tinha sido como vela na tormenta. Mas não
estavam unidos. Uma greta que, desde o começo, tinha-os debilitado,
permitiu que seus inimigos ganhassem a batalha: a desconfiança de
Nahueltruz. Tempo mais tarde, seu ressentimento fez com que essa greta
fosse até mais profunda e frágil. Se ele não tivesse duvidado de seu amor,
se não tivesse albergado tanto rancor depois do acontecido em Rio Cuarto,
teria feito com que ela soubesse que ainda estava vivo e aonde se
encontrava, e ela teria se deslocado para o seu lado, abandonando seu
marido e a toda sua família para sempre.

Mas Laura não disse nada disto e depois de dominar a vontade


de chorar, exclamou:

- Oh, Nahuel! Se por um instante pudesse penetrar em meu


coração e perceber que só há amor para você. É que acaso não me conhece?
O que devo fazer para que acredite em mim? Se eu pudesse mudar sua
natureza incrédula.. - disse, com desânimo.

Tradução Lauren Moon


- Seria uma grave afronta para mim se entre Roca e você
tivesse havido alguma coisa - expressou ele, surdo às palavras dela -. Não
com ele, Laura, não com ele - repetiu em um murmúrio de fúria mal
contida.

- Shhhh. Não fale mais - pediu ela, e se virou para encontrá-lo


na escuridão.

Tocou-lhe o rosto como o cego que reconhece a quem tem pela


frente. Suas mãos souberam que Guor tinha os olhos fechados e os lábios
entreabiertos. Esse contato parecia tê-lo apaziguado, porque em seguida
escutou sua respiração regular e moderada. Laura seguiu o contorno de
seus lábios com o indicador até introduzi-lo em sua boca. Guor o
mordiscou e sugou delicadamente, e ajustou seus braços em torno dela
para pegá-la ainda mais a seu corpo.

- Nahuel, me ame. Já não me reclame mais. Só me ame.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXIII.

Meeting69 político

Os defensores de Roca trabalhavam poderosamente para impor


sua candidatura, ao mesmo tempo em que atribuíam a tensa e complexa
situação ao presidente Avellaneda, que, apesar de simpatizar com seu
ministro da Guerra, atuava com brandura e pouca decisão. O presidente se
justificava dizendo que uma política baseada na dureza terminaria por
provocar um derramamento de sangue. A isto respondiam os roquistas70
que não eram eles quem expunham uma postura inflexível, mas os
tejedoristas71.

A polêmica “Liga de governadores”, que Juárez Celman,


concunhado de Roca, e outros políticos, em especial Simón de Iriondo, o
governador santafesino72, haviam montado tão magistralmente, convertia-
se dia a dia no suporte mais firme para o triunfo sobre Tejedor e Laspiur,
que já tinham lançado sua candidatura oficialmente. Em Buenos Aires, os
roquistas contavam com o apoio dos autonomistas da Alsina, entre eles
Carlos Pellegríni e Dardo Rocha, e de poderosos latifundiários como
Antonio Cambaceres e Diego de Alvear. A fração do autonomismo
conhecida como “lírica”, capitaneada pelo Martín da Gamza, simpatizava
com Tejedor, assim como também o mitrismo73. Quanto ao interior do país,
a única província que o apoiava era Corrientes, com o governador Valentín
Virasoro à cabeça. Não obstante, o fato de contar com Buenos Aires era
incentivo suficiente: quase a metade dos eleitores pertencia a esta
província.

As decisões que tomavam uma e outra parte levavam a supor


que o enfrentamento armado seria, em última instância, o que definiria a
luta. Os exércitos populares de Buenos Aires continuavam crescendo e
realizando seus exercícios em algumas ruas da cidade. As mulheres
doavam jóias e os homens fortes somas de dinheiro para comprar
equipamento. Como ofensiva, Roca mandou chamar a vários regimentos e
batalhões que ocuparam a cidade de tal modo, que pareciam tê-la sitiado.

69
Reunião, encontro de negócios (N. da Tradutora)
70
Partidários de Roca (N. da Tradutora)
71
Partidários de Tejedor (N. da Tradutora)
72
Natural de Santa Fe - Argentina (N. da Tradutora)
73
Partidário de Bartolomeu Mitre (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Denunciou-se que o governo nacional enviava tropas e provia
de armas e munições àquelas províncias onde se suspeitava uma possível
rebelião. Sarmiento, em seu conhecido estilo fanfarrão e desenfreado,
falava de “dez mulatos” que, desde os governos provinciais, pretendiam
impor um presidente à República. As principais ruas da cidade amanheciam
cobertas de panfletos, que avivavam os ânimos contra Avellaneda e Roca.
Na manhã da festa no Pohteama, na qual se anunciaria oficialmente a união
Roca-Madero, um panfleto exigia a renúncia do general a seu cargo de
ministro da Guerra e Marinha.

Outros propunham como saída alternativa escolher um


candidato de conciliação, nem Roca nem Tejedor, a não ser alguém neutro.
Cogitaram os nomes de João Batista Alberdi, que acabava de retornar da
Europa, de Vicente Fidel López, de Bernardo de Irigoyen, de Rufino de
Elizalde, de Rawson, de Gorostiaga. Quando mencionavam esta
possibilidade, Roca dizia que ele não dispunha de sua candidatura, mas sim
seus eleitores; estes, por sua vez, opunham-se a respaldar outra candidatura
que não fosse a dele. Os adeptos de Tejedor respondiam que jamais o
reconheceriam como presidente da República, e assim tudo retornava ao
ponto de origem.

Embora mostrasse seu ar mais repousado e seguro, Roca


albergava dúvidas que minavam sua determinação. Em uma carta escreveu
a seu concunhado Juárez Celman: “A guerra civil, que me horroriza porque
nos fará retroceder vinte anos, se vier, amigo, indevidamente”. Neste
estado de ânimo, o general se arrumou cuidadosamente e partiu, junto com
sua mulher Clara, à noitada do Pohteama. À entrada do teatro foi recebido
por uma forte tropa de soldados, que se estendia por toda a quadra. Os
“rifleros” estavam repetindo a frase “Morte a Roca!” muito frequentemente
para deixar as chances liberadas pelo azar.

Os soldados fizeram continência e exclamaram em uma só


voz: “Boa noite, meu general!”, como se tivessem ensaiado o dia inteiro.
Entre a tropa, seu prestígio era indiscutível. Roca tinha granjeado a
admiração e o respeito dos soldados, como também a dos oficiais, com o
correr dos anos, mas não cabia dúvida de que a expedição ao deserto tinha
servido para consolidar a posição que ostentava nesse momento. Além
disso, como ministro da Guerra e Marinha tinha incorporado mudanças no
exercito para promovê-lo e melhorá-lo; havia-lhe devolvido o prestígio
que, como instituição, estava se perdendo ao longo dos revoltosos anos da
guerra entre unitários e federais.

Respondeu à saudação e lhes concedeu um olhar suave e


benevolente que jamais teria usado no quartel. Como estava acostumado a
Tradução Lauren Moon
se lembrar, grande parte do que tinha, devia-o a seus fiéis mestiços, como
ele os chamava. Possivelmente, terminaria por lhes dever também a
presidência da República. Entrou de melhor ânimo no salão. Ali foi
recebido por uma onda de gritos e aplausos, seguido por apertões de mãos e
palmadas nas costas e toda classe de comentários e saudações. Algumas
personalidades presentes na festa do Club del Progreso não se encontravam
no Pohteama, entre eles Sarmiento. Roca estudou os semblantes de quem o
saudavam tão calorosamente e tratou de vislumbrar as verdadeiras
intenções que escondiam. Pensou também nos favores que teria que
devolver uma vez instalado na Rosada. O métier de político era, de longe, o
mais difícil que lhe havia tocado concluir.

Encontrou-se com amigos, Gramajo, Fotheringham e Wilde, e


imediatamente procurou sua companhia. O coronel Mansilla se aproximou
para saudá-lo e Roca, enquanto lhe devolvia o aperto de mão com cordial
sorriso, pensava “Nem pense que lhe darei o ministério de Guerra e
Marinha, não a um extravagante como você, Mansilla”. Aproximou-se Paul
Groussac e, em um estilo parco e direto que agradou ao general, pediu-lhe
uma entrevista para Le Courier de la Plata. Combinaram a data e o escritor
francês, depois de uma breve vênia, retirou-se junto à Mansilla.

- Comenta-se - disse Gramajo - que Tejedor vai renunciar sua


candidatura para não pôr em risco a paz do país.

- Que feito tão enaltecedor! - proclamou Wilde


sarcasticamente.

- Espera que eu faça o mesmo? - perguntou-se Roca, e sorriu


com malícia.

- É um irresponsável - observou Fotheringham -. Seu


movimento conseguirá o oposto, quer dizer, atiçar até mais os ânimos,
incrementar a violência.

- Ele bem sabe - manifestou o general -. É, justamente, o que


deseja alcançar para depois me imputar a culpa. Sua estratégia é clara: o
desprestígio. Apresentar-me como o monstro que destruirá Buenos Aires
foi um hábil recurso. Os portenhos escutam falar de mim com o mesmo
horror que o faria uma devota se de Lúcifer se tratasse. Agora me pergunto,
como podem os portenhos engulirem semelhante infâmia? Com que objeto
eu me converteria no destruidor da província mais importante e rentável do
país? De que modo poderia despojá-la de sua supremacia que não é
política, mas a geográfica e histórica?

Tradução Lauren Moon


Em contadas ocasiões Roca expressava suas dúvidas e
conflitos de maneira tão aberta. Era evidente que se sentia entre amigos.
Quando o grupo começou a fazer-se numeroso, voltou a refugiar-se em sua
sabida sobriedade e se dedicou a escutar aos demais. Seus adeptos não
eram poucos nem careciam de prestígio e poder. Contava com homens de
estirpe e fortuna como Diego de Alvear, Lezama, Saturnino Unzué, Carlos
Casares, Benjamim Victorica e outros. Desalentava-o que uma
personalidade como Bartolomeu Mitre, a quem admirava desde seus anos
de juventude, mostrasse-se tão contrário a sua candidatura. Sarmiento não
lhe provocava o mesmo desencanto, porque sabia que o insultava não por
estar em desacordo com sua ideologia, mas sim porque ansiava ocupar a
Rosada de novo, suas motivações eram mesquinhas. Em outro setor do
salão, um grupo de jovens comparava ambos os candidatos, exaltando as
bonanças de um e remarcando as falências do outro. Estanislao Zeballos
tinha a palavra.

- O general Roca - dizia - representa as ideias novas e


reformistas, as que vão de acordo com o progresso que se impõe no mundo
inteiro. Quer superar os pleitos do passado que impossibilitaram que nosso
país se consolidasse. Tejedor e seu feixe de carcamanos constituem a velha
guarda, a que se aferra a concepções que seguirão perpetuando os
problemas que tanto sangue nos custou. Para quê? Com que objetivo?

- Com o objetivo - falou Mario Javier - de manter o controle


sobre os ganhos alfandegários e de não fazer com que o resto do país
participe deles. Possivelmente o portenho comum esteja motivado por
ideais românticos incitados pelos mentores do conflito, que, em realidade,
lutam por coisas menos louváveis e mais mundanas.

- Qual sua opinião, doutor Zeballos? - falou Miguel Cañé, um


jovem advogado e jornalista que concordava com Mario Javier -. É
possível que triunfe Tejedor?

- Duvido-o. De qualquer maneira, não devemos imaginar a


possibilidade da fraude eleitoral - Zeballos esboçou um gesto eloquente e
lançou um suspiro antes de adicionar -. Pode ser que ganhe o general Roca
ou o doutor Tejedor, o certo é que a guerra entre um e outro lado émais que
provável.

- Outra vez a velha cantinela de unitários e federais da qual


tanto falam nossos avós e pais - se queixou Cañé -. Uma guerra que
dilapidou a riqueza do país e transtornou a ordem.

Tradução Lauren Moon


- A verdade, Miguel - opinou Mario Javier -, é que desde 1810
não existiu muito ordem na Argentina. Temos lutado como sociedade em
conjurar a anarquia em que facilmente caímos. Não conseguimos nos pôr
de acordo nem sequer depois das armas. Envergonho-me como argentino -
apostilou.

- Estados Unidos, ao contrário - apontou Pedro Palácios, um


polêmico escritor de vinte e cinco anos, que usava o pseudônimo
Almafuerte -, terminou suas controvérsias internas com uma guerra que
durou, quando muito, quatro anos e que, embora seja certo que provocou
muitíssimas baixas e perdas, em especial nos exércitos do sul, deixou
resolvidas as questões entre os adversários. Ganhou o norte e ponto. Agora
o país se prepara para seguir adiante.

Almafuerte, que escrevia para El Puevo, jornal montado por


Roca para defender-se e contra-atacar El Mosquito e La Nación, tinha
publicado recentemente um artigo a respeito da guerra de Secessão nos
Estados Unidos, ao qual Mario Javier tinha prestado especial atenção,
interessado no paralelo que Palacios estabelecia entre a Argentina e o país
do norte.

- Depois de ler seu artigo - Mario se dirigiu a Almafuerte—,


dediquei a investigar. Não se acredita, Palacios - apontou -, que nos
Estados Unidos resolveram-se todas as questões ríspidas entre o norte e sul.
A liberdade dos negros segue sendo um tema candente. Há grupos de
sulistas que se dedicam a matar os negros liberados.

- É obvio que nada é tão concludente como seria desejável -


admitiu Almafuerte -, mas o que quero apontar é que não acredito que os
Estados Unidos esteja pensando em iniciar outra guerra para solucionar os
mesmos problemas de anos atrás. Os argentinos, ao contrário, sim.

- Comentaram comigo recentemente - disse Zeballos a Mario


Javier -, que você foi cativo dos ranqueles de Mariano Rosas.

- É certo - respondeu, sem ocultar que não se aprofundaria no


tema por mais interessado que parecessem os outros.

- Comecei uma nova investigação - prosseguiu Zeballos- .


Penso escrever a respeito dos índios do sul. Se você me fizesse a honra de
vir a meu escritório, onde poderia me contar sua experiência entre os
selvagens e eu tomar notas, eu agradeceria profundamente. Séria uma
contribuição incalculável para mim.

Tradução Lauren Moon


O doutor Zeballos não provocava uma boa impressão em
Mario Javier, embora admitisse que o rosarino74 possuía uma inteligência
notável e que seu futuro se perfilava como brilhante. No ano anterior tinha
publicado La conquista de quince mil leguas, que a senhorita Laura se
negou a publicar e que tinha servido como base para a campanha de Roca.
Com apenas vinte e poucos anos, converteu-se no primeiro presidente do
Instituto Geográfico Militar. Apesar destes antecedentes, Mario não
desfrutava de sua companhia, a vaidade de Zeballos o distanciava dele.

- Deve ter-se tratado de uma experiência abominável.

- Não é assim que me lembro - indicou Mario.

- Não contamos esta noite com a deliciosa presença de sua


patroa, a viúva de Riglos? - perguntou Zeballos, depois de uma incômoda
pausa.

- Não - respondeu Javier, sem se preocupar em negar que a


senhorita Laura era a proprietária da editora. Meio Buenos Aires sabia.

- Pergunto-me o que terá acontecido - insistiu Zeballos -. Ela


se mostra afeta a este tipo de acontecimentos sociais.

- Está viajando.

- Ah, de viagem. Tampouco vejo - prosseguiu Zeballos,


olhando ao redor - o senhor Rosas, que tão oportuno foi em ocasião do
ataque de Lezica. Ele também está viajando?

- É certo - perguntou Cañé ao Zeballos - que se apresentará


nas próximas eleições para deputado?

A conversa retornou à controvérsia política e ninguém voltou a


mencionar a viúva de Riglos ou o senhor Rosas. Mario Javier, entretanto,
continuou se perguntando se a coincidência apontada Zeballos seria certa.

A celebração no Pohteama, segundo seus organizadores, foi


um êxito. bebeu-se, comeu-se, conversou-se, dançou-se e leram-se
discursos que os convidados aplaudiram calorosamente. De volta para sua
casa, enquanto se desfazia do uniforme de ornamento, Roca contemplou
Clara, que escovava o cabelo sentada sobre a cama. Não cruzou palavra
com ela durante a noite toda. Tinha-os separado a multidão à entrada e não
haviam tornado a encontrar-se. Ele, entretanto, tinha-a visto de longe
74
Natural de Rosário - Argentina (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


conversando com María del Pilar Montes, esposa de Demetrio Sastre, um
de seus mais ferventes adeptos, e com Iluminada Montes, a mulher de outro
roquista, Bonifacio Unzué, ambas primas irmãs da Laura. “Que ironia!”,
exclamou para si.

- Espero que tenha passado um momento agradável.

Clara, sem levantar a vista, disse que sim.

- Esteve grande parte da noite com a mulher de Bonifacio


Unzué e com a de Demetrio Sastre.

- Iluminada e María do Pilar Montes - indicou Clara, que


condenava o costume do general de chamar suas amigas de “a mulher de”
como se, ao contrair casamento, perdessem sua identidade original.

- Do que falaram?

Clara o olhou fixamente. Seu marido não era daqueles que


perguntavam pelo simples feito de puxar uma conversa por acaso. Quando
perguntava, era porque queria saber alguma coisa.

- De nossos filhos - respondeu vagamente; depois, acrescentou


-: elas falaram muito de sua sobrinha, Pura Lynch.

- A que ia se casar com a Lezica? - Clara assentiu -. Acertado


o comportamento da senhora Riglos que a salvou de um bígamo. Por certo
- disse, em tom casual -, parece-me que não estava esta noite entre os
convidados. Estranhei. Como é prima dos Unzué e dos sastre, acreditei que
a convidariam.

- Está viajando.

- Ah.

- Suas primas me disseram que viajou para Córdoba, para


quitar um assunto do general escalante. A venda da casa.

Clara continuou escovando seu cabelo, mas um brilho de


malícia em seu olhar despertou a curiosidade de seu marido.

- No que está pensando?

- Em um comentário que fizeram Iluminada e María del Pilar.

Tradução Lauren Moon


- A respeito da viúva de Riglos?

- Sim. Suspeitam que entre ela e o senhor Lorenzo Rosas, o


amigo desse francês Beaumont, existe algo mais que uma simples amizade.
Rosas também desapareceu misteriosamente de Buenos Aires - disse, ao
final.

- Com primas como essas, ninguém precisa de inimigos -


sentenciou Roca.

- Não se engane, Julio. María del Pilar e Iluminada querem


muito a sua prima Laura. Reconhecem que é uma mulher generosa e
cativante, em especial com seus sobrinhos. Simplesmente, não aprovam
seus costumes imorais. O nome da viúva de Riglos sempre está associado
ao escândalo. Você já deveria sabê-lo, querido - apostilou, com marcada
intenção -, e isso afeta a reputação da família Montes.

- Não entendo por que. Ninguém pensará mal da senhora de


Unzué ou da de Sastre porque a senhora Riglos se ocupa de deixar bem
claro que não dá importância às convenções sociais. Cada um responde por
seu comportamento. De qualquer maneira, não vejo onde está o escândalo
quando a senhora Riglos é viúva e o senhor Rosas, conforme entendo, um
homem sem compromissos.

- Julio! - escandalizou-se Clara -. Digo-lhe que desapareceram


juntos, e não estão casados.

- Ninguém tem certeza do porquê de terem desaparecido


juntos.

- Dolores Montes, a tia da senhora Riglos...

- Sim, conheço-a - assegurou o general -. Uma velhaca com


cheiro de convento.

- Sabia que, semanas atrás, a viúva de Riglos a expulsou da La


Santísima Trindad e que teve que pedir asilo na casa de seu irmão Lautaro
Montes, o pai de Iluminada e María del Pilar?

- Não tinha a menor ideia - aceitou Roca -. Embora deva dizer


que não me surpreende. Nas contadas oportunidades em que estive em La
Santísima Trindad, fui testemunha da aversão que existe entre a senhora
Riglos e Dolores Montes.

Tradução Lauren Moon


- Pobre mulher! Com aquela idade ter que deixar a casa onde
se criou por causa dos caprichos de uma mulher sem moral nem princípios.

Roca começou a tirar as abotoaduras e a camisa. Clara, que


tinha esperado uma reação de seu marido, olhou-o de soslaio e julgou
impenetrável seu gesto.

- Estava dizendo - prosseguiu - que Dolores Montes afirma


que sua sobrinha, a viúva de Riglos, está meio comprometida em
casamento com um lorde inglês, que chegará da Europa em poucos dias
para levá-la para lá.

Roca lhe deu as costas porque sabia que seu semblante estava
refletindo o mal que aquela notícia tinha-lhe causado, e Clara teria
percebido. Poucas dúvidas restavam de que Laura tinha reiniciado seu
namorico com o índio Guor. Apesar de, e contra sua índole, a notícia
provocou-lhe ciúmes, o fato de que não fosse uma surpresa moderava seu
sofrimento. Não podia queixar-se, quando ele mesmo lhes tinha aplainado
o caminho para o reencontro. A notícia do lorde inglês, ao contrário, era,
além de inopinada, alarmante: vinha para levá-la. Queria levar Laura para
latitudes que podiam significar não voltar a vê-la. Esta ideia o espantou.
Laura, além de sua amante, converteu-se em uma grande amiga e
confidente com quem teria podido contar em qualquer circunstância.
Conformava-se por vê-la, conversar com ela, tocá-la possivelmente
enquanto dançassem uma valsa. Inclusive ainda albergava esperanças de
voltar a tê-la na casa da Rua Chavango.

- Meio comprometida? - perguntou, tratando de soar


desapegado -. Ou está ou não está comprometida. O que é isso de meio
comprometida?

—Um acerto bastante incomum, como tudo o que concerne à


viúva de Riglos. Na época em que o lorde a pediu em casamento, Riglos
acabava de morrer e não se considerou apropriado anunciar o compromisso
naquela oportunidade. Deixariam passar dois anos, o lorde retornaria a
Buenos Aires, e então reclamaria seus direitos sobre ela.

“Ninguém tem direitos sobre Laura, - ruminou o general com


certa amargura -. Trata-se de uma criatura com um sentido proverbial da
liberdade. Se a privassem dela, pereceria de tristeza”.

- De todo modo - continuou Clara, bastante de acordo com a


indiferença de seu marido -, trata-se de um assunto secreto que a viúva de
Riglos deseja manter dentro dos limites de La Santísima Trindad.

Tradução Lauren Moon


Roca se virou e a olhou com esse gesto entre furioso e
divertido que tanto a assustava, porque não sabia a que ater-se.

- Quem é, então, a mulher sem moral nem princípios? - disse,


por fim.

- A que se refere, Julio?

- Se a senhora de Riglos queria manter seu compromisso em


segredo, por que Dolores Montes o ventila sem consideração? Romper um
pacto de silêncio é das infâmias mais graves que conheço. Isso se chama
traição. Insisto, quem é, então, a mulher sem moral nem princípios?

- Trata-se de um mal de família - especulou Clara.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXIV.

O retrato de carvão vegetal

De novo em La Santísima Trindad, Laura se deparou com


várias novidades, entre elas que Pura tinha voltado para casa de seus pais.
Segundo a versão de Maria Pancha, o próprio José Camilo Lynch tinha ido
rogar seu retorno. Dona Luisa parecia inconsolável até que Pura lhe
prometeu voltar diariamente. Visitava-a pela tarde, escoltada por uma
faxineira e o chofer, que a aguardavam na cozinha. Sentado à mesa de dona
Luisa sempre estava Blasco Tejeda. Ao final da tarde, quando Pura devia
retornar, a anfitriã os deixava a sós na sala de jantar. Logo que desaparecia
dona Luisa, Blasco tomava Pura entre seus braços e a enchia de beijos,
voltando a lhe declarar sua promessa de amor eterno. Pura se deixava beijar
e abraçar, respondia às promessas com o mesmo ardor, mas em seguida o
obrigava a voltar para seu lugar para conversar. Queria conhecê-lo
exaustivamente. Queria falar do futuro. Gostava que Blasco tivesse
decidido começar a estudar leis.

- Acredito que voltarei a viver com Lorenzo - confessou-lhe


uma tarde.

- Por quê?

- Ele me pediu isso tantas vezes, Pura. Eu devo tanto a ele.


Devo-lhe tudo o que sou. Além disso, se voltar para sua casa, poderei
economizar grande parte do que ganho na editora. Assim, quando nos
casarmos, contaremos com algo para começar. Não será muito...

Pura apoiou sua pequena mão sobre os lábios do Blasco para


sossegá-lo.

- O dinheiro é importante - expressou -, não sou tão ingênua


para acreditar que não é. Mas o que mais desejo é que seja feliz. Quero que
volte para a casa do senhor Rosas unicamente se isso fizer você feliz.

- Meu amor - sussurrou Blasco, comovido -. Sim, me faz feliz


que Lorenzo seja feliz. Ele sofreu enormemente toda sua vida. Eu gostaria
que algun dia ele vivesse o que eu vivo agora graças a você.

Tradução Lauren Moon


- Estou apaixonada por você, senhor Tejeda, por muitas coisas,
mas à medida que conheço mais profundamente seu nobre coração,
acredito que todo o amor que sinto não caberia no mundo inteiro.

Além de José Camilo Lynch não gostar de quem cortejava


Pura - sua filha merecia nada mais que um aristocrata europeu, tal como a
filha mais velha de Eduarda Mansilla -, tinha permitido que ele jantasse
duas vezes na mansão. Diferentemente de Eugenia Victoria, que o tratava
com doçura íntima, Lynch virtualmente não lhe dirigia a palavra e se
limitava a observá-lo e a pô-lo nervoso. Blasco, entretanto, mostrava uma
conduta ponderada que terminou por granjear a simpatia de Lynch. Da
última vez, na hora do café, dignou-se a lhe perguntar quando começariam
seus estudos em leis e se estava interessado em trabalhar em um escritório.

- As relações sociais são indispensáveis nessa profissão -


indicou Lynch -. E você, senhor Tejeda, carece absolutamente delas. Se, se
desempenhasse junto a algum prestigioso letrado desde jovem, poderia
cultivar amizades que seriam extremamente valiosas para seu futuro
escritório. Porque, imagino, você aspira ter seu próprio escritório, não?

Blasco, que nem sequer tinha começado, agitou rapidamente a


cabeça em sinal de assentimento.

- Sim, claro, senhor.

- Pois bem - continuou Lynch -, eu poderia pedir a alguns de


meus amigos que considerem uma posição para você. O que lhe parece? -
perguntou em um tom que não aceitava outra resposta exceto a que
ofereceu Blasco.

- Parece-me excelente, senhor.

- Suponho que seu tutor se ofereceu para costear seus estudos,


não?

- Sim - respondeu Blasco -. O senhor Rosas prometeu fazê-lo.

Enquanto desempacotava os baús de Laura, Maria Pancha


também lhe contou que, dias depois do banquete no Pohteama, quando
Roca compareceu no Congresso para prestar contas dos gastos da
campanha ao deserto, trataram de matá-lo. Laura levou a mão à boca para
afogar um grito de espanto. Mais tarde, de visita à editora, Mario Javier a
pôs a par dos pormenores. Depois da sessão de prestação de contas, na qual
nem seus mais acirrados caluniadores puderam questioná-lo, tão clara e

Tradução Lauren Moon


minuciosa tinha sido, Roca deixou o Congresso usando um carro diferente
do que aquele que o tinha levado. A multidão exaltada que o esperava do
lado de fora se equilibrou sobre o Landau, onde acreditava que viajava o
general. Sem dúvida, teriam-no matado se o tivessem encontrado lá dentro.
Laura decidiu que iria visitá-lo.

A outra novidade importante era a chegada de lorde Leighton,


que havia telegrafado do Rio de Janeiro, informando que chegaria ao porto
de Buenos Aires em 10 de agosto. Faltavam só três dias. O telegrama
advertia que lorde Leighton não chegava sozinho, mas acompanhado por
sua irmã, lady Pelham. Avisava ainda que iriam se hospedar no hotel
Victoria, em frente à praça, onde um empregado de lorde Leighton fez as
reservas.

- De maneira nenhuma - expressou Magdalena -, lorde


Leighton e sua irmã ficarão hospedados em La Santísima Trindad, como
tínhamos previsto. Durante semanas preparei a casa para recebê-lo. Que
venha com sua irmã não é desculpa para que não fique aqui. Para ela,
prepararemos o quarto que era de Dolores, que é mais acolhedor e
quentinho que o outro de hóspedes. Mandarei enviar um telegrama agora
mesmo ao Rio de Janeiro para lhes avisar que os esperamos em La
Santísima Trindad. Entendo - disse, com pronúncia solene - que lady
Pelham é uma mulher de grande prestígio na sociedade inglesa. Seu pai me
disse uma vez que seu marido, Henry Pelham, pertence a uma família de
grande linhagem. Alguns de seus membros fazem parte do governo. Um
deles foi primeiro-ministro, que é como dizer presidente aqui. O cunhado
de lady Pelham, irmão mais velho de Henry, é o duque de Newcastle. Lady
Pelham é amiga da rainha Vitória! - exclamou, mais com espanto que com
admiração -. Como vê, Laura, lidaremos com gente da mais alta estirpe,
acostumadas à pompa e ao protocolo. Deve causar uma boa impressão a
sua futura cunhada - ordenou, e, antes de partir depressa ao interior da casa,
disse -: O doutor Pereda e eu decidimos adiar nossa viagem de casamento
até que você e lorde Edward partam para a Inglaterra.

- Pôs-se muito inquieta à medida que se aproxima seu


casamento -explicou Maria Pancha, enquanto contemplava a figura de
Magdalena sumir na penumbra do corredor -. A chegada de lorde Leighton
e de sua irmã, a amiga da rainha da Inglaterra - apontou com malícia -,
deixou-a mais nervosa do que eu esperava. Sua repentina viagem a
Córdoba a chateou até o ponto de nos ter, a todos, em alerta com suas
exigências e protestos. Uma tarde ficou enlouquecida com sua tia Dolores
quando tentou voltar para cá, enquanto você estava em Cabalitto.

Tradução Lauren Moon


Laura custava imaginar sua mãe tão alterada, menos ainda
discutindo com sua irmã mais velha a quem sempre tinha temido.

- Tia Dolores tentou retornar?

- Possivelmente - refletiu Maria Pancha -, sua tia pensou que


se voltasse a se instalar em La Santísima Trindad, enquanto você estava
ausente, quando voltasse não teria coração para expulsá-la de novo.

- Possivelmente tivesse razão - admitiu Laura -. Eu não gosto


de ver o avô Francisco tão caído.

- O amor sempre nos deixa compassivos - meditou Maria


Pancha -. Como dirá a sua mãe que seu casamento com lorde Leighton não
acontecerá? Acredito que contava com isso para fazer amizade com a
rainha Vitória.

- Não seja sarcástica - reprovou Laura, embora sorrisse -. Sabe


que será uma derrota quando minha mãe souber de que não me casarei com
ele.

- Derrota maior será quando souber que trocou um homem


como Leighton por um como Guor. Não vai me contar nada de sua
temporada com ele? Já sabe da visita de lorde Leighton?

- Não - admitiu Laura- não sabe de nada.

- Não se animou a dizer - adivinhou Maria Pancha.

- Não, não me animei.

- Laura - disse a criada, com recriminação.

- Vou contar quando retornar de Martín García.

- Por fim conseguiu a permissão para visitar seu tio?

- Sim.

- Graças ao general Roca, imagino.

- Sim, graças ao general Roca.

- E quando partirá para Martín García?

Tradução Lauren Moon


- Depois de amanhã, ao amanhecer. Já escrevemos para
Agustín para lhe contar. Quanto a Nahuel suspeita ter sido o senador
Cambaceres quem conseguiu o salvo-conduto. O nome de Roca não será
mencionado em nenhum momento.

- A mentira - sentenciou Maria Pancha - tem perna curta.

~0~

Na manhã em que Guor partiu para a ilha Martín García,


Laura foi visitar o general Roca. Tinha enviado um servente com uma nota,
avisando de suas intenções, e o general tinha-lhe respondido que a esperava
às onze. Como não queria que reconhecessem seu Landau às portas do
ministério, mandou que Maria Pancha pegasse um carro na Plaza de La
Victoria. Durante o trajeto, pensou em Nahueltruz.

Na noite anterior tinha jantado em La Santísima Trindad pela


primeira vez. Não tinha chegado sozinho. Blasco, Armand Beaumont,
Saulina e tia Carolita também haviam aceitado o convite. Para decepção de
Blasco, Pura não se encontrava presente, seus pais não tinham podido ir por
causa de outro compromisso, e Lynch não havia permitido que fosse
sozinha. Com o correr da noite, Blasco foi se animando, pois se tratou de
uma noite muito prazerosa. Ninguém mencionou o problema político nem
as próximas eleições de deputados; falou-se principalmente da Europa, e
tanto Armand como Nahueltruz divertiram os outros com suas histórias.
Em várias ocasiões se mencionou Geneviéve Ney, e Laura terminou por
entender quão estreita tinha sido a relação entre a tão famosa bailarina
francesa e Nahueltruz; apesar de estar certa de seu amor, o ciúmes a afligiu,
porque se deu conta de que ele ainda a admirava, possivelmente a amasse.

Mais tarde, Geneviéve e os ciúmes que lhe despertava


desapareceram, quando Nahueltruz deslizou dentro de seu quarto e fez
amor com ela. Tinha simulado despedir-se junto com os demais só para dar
volta na esquina com seu carro e deter-se em frente ao portão dos cavalos
que Maria Pancha se ocupou de deixar sem trava. Esperou que a La
Santísima Trindad fosse dormir e entrou nos estábulos com a ansiedade de
um adolescente. Laura o aguardava envolta em seu roupão de lã fina junto
à porta da cozinha, a que dava ao pátio. Saiu para recebê-lo e ele reclamou
com ela, pois fazia muito frio. Protegeu-a com seu abraço e caminharam
para a casa em silêncio. Já no quarto, Guor se dedicou a estudar o
ambiente, percebendo a mão dela em cada particularidade na feminilidade
dos adornos, na elegância dos móveis, na delicadeza das cores; a presença
de Laura palpitava nos quatro cantos. Em anexo, atrás de uma cortina de
veludo, achou o boudoír com sua biblioteca, que ia de parede a parede
Tradução Lauren Moon
abarrotada de livros e uma escrivaninha tipo Chippendale coberta de papéis
e mais livros. Nessa pequena sala descobria esse outro aspecto de Laura,
que a tornava insaciável, rebelde, escandalosa.

- Aqui passo principalmente meu tempo quando estou em casa


- escutou-a dizer com a voz tênue.

Repassou os tomo dos livros e encontrou, entre os mais aceitos


e comuns, os outros, os reprovados, como Cândido de Voltaire, O contrato
social de Rousseau, Diálogo com os mortos de Fontenelle, vários de
Marivaux, O homem máquina de A Mettrie, O filho natural de Diderot,
Peer Gynt de Ibsen e os mais famosos de George Sand, Indiana e Leda, a
maioria em castelhano, mas também em francês e em inglês.

- Não sabia que falava inglês.

- Estou aprendendo - disse ela, e, como não queria entrar em


detalhes, pediu-lhe que voltassem para o quarto -. Não quero falar de livros
agora. Esperei o dia inteiro por este momento.

- Que momento? - perguntou Nahueltruz, sem tocá-la nem


olhá-la.

—O momento em que estaríamos a sós neste quarto.

Guor tinha se afastado na direção da penteadeira e pinçava


entre suas loções, cosméticos e escovas. Pegou um frasco, destampou-o e
aspirou sua fragrância. Era a loção de rosas, que tantas lembranças
guardava, essa que ele tinha aprendido a vincular exclusivamente a Laura e
sua pele. Caminhou para ela com o frasco na mão. Sorriu de uma maneira
irônica e seus olhos brilharam com luxúria ao descobrir sua nudez, que se
transparecia à luz das velas. Enquanto o contemplava aproximar-se, Laura
pensou: “Deus, como é lindo!”. Guor molhou a tampa de cristal com
perfume e a deslizou pelo pescoço de Laura e pelo decote também, até
afundá-la entre seus seios. Voltou a embebê-la e molhou seus mamilos
endurecidos que apareciam através da seda da camisola. Notou que o peito
de Laura se agitava e sentiu que suas mãos se aferravam a ele em busca de
sustento.

- Você gosta que toque em você?

- Sim - ela sussurrou.

Tradução Lauren Moon


- O que você gosta que faça com você? - perguntou,
mantendo-se deliberadamente afastado.

Ela não respondeu imediatamente. Quando o fez, falou


claramente e de uma vez, sem titubear.

- Eu gosto que suas mãos percorram meu corpo nu, que meus
mamilos estejam em sua boca, seu fôlego sobre minha pele, seu peso sobre
meu corpo, que fale comigo enquanto gozo. Eu também gosto de observá-
lo enquanto você goza, mas eu não posso falar com você, porque sua
imagem me deixa sem fôlego. Eu gosto que me conheça em detalhe, às
vezes acredito que haja partes de mim que são mais tuas que minhas. Amo
a intimidade que compartilhamos. Jamais me cansaria de contemplar
nossos corpos nus amando-se refletidos no espelho. Eu gosto que esteja
dentro de mim, porque é quando mais meu sinto você. Que seja meu, isso é
o que mais eu gosto.

Guor a escutou emudecido. Desde os tempos de sua mãe,


nunca tinha-se sentido tão amado. O amor de Laura era o mais perfeito e
precioso que possuía. Tomou-a entre seus braços e, enquanto a beijava,
confessou-lhe que a única razão para retornar a Argentina tinha sido por
ela, quando soube tardiamente da morte de Riglos. Disse-lhe também que
não tinha passado um dia desses seis anos em que ele não tivesse se
lembrado dela.

- Tentei odiar você. Oh, por Deus, como queria odiá-la! Mas
este amor que sinto por ti é maior que o ódio e o rancor. Tem vontade
própria e vive dentro de mim sem que eu possa resistir.

- Não resista, meu amor.

- Não, não - assegurou ele, veementemente -. Agora não. Mas


durante os anos em que estivemos separados tratei de esquecer você.

Amaram-se sobre o tapete, envoltos no calor que refratava o


braseiro, abandonados à paixão que os dominava, sem reparar que a poucos
metros a família Montes dormia.

- Devo ir - disse Guor, ainda sobre o tapete, com Laura


recostada sobre seu peito -. A corveta sai muito cedo amanhã. Há detalhes a
preparar.

- Dizem que os detentos de Martín García passam por muitas


necessidades - comentou ela.

Tradução Lauren Moon


- Sim, sei. Por isso levo provisões, roupa para o frio e toda
classe de utensílios que, sei, servirão ao meu tio e aos meus primos.

Laura vestiu o roupão e acendeu o castiçal, enquanto Guor


calçava a meia. Saíram ao corredor, frio e mal iluminado pela vela que
Laura levava na mão.

- Antes de ir embora, quero mostrar-lhe algo. Está no


escritório do meu avô.

As madeiras do piso rangiam e, no silêncio de La Santísima


Trindad, soavam como campainhas. Guor ficou nervoso, mas a
tranquilidade de Laura o acalmou. No escritório de Francisco Montes,
foram para um canto junto à biblioteca, onde Laura levantou o castiçal e
iluminou um quadro sobre a parede.

- É um retrato do cacique Mariano Rosas - explicou -. O


coronel Mansilla deu de presente a meu avô.

De imediato se via que Guor sofreu uma forte emoção,


brilhavam seus olhos e seu pomo de Adão subia e descia rapidamente.
Pegou o castiçal da mão de Laura e aproximou-o ainda mais. A semelhança
era surpreendente.

- Lucio deu de presente a meu avô, que sempre o está tirando


de apuros, em especial, financeiro. Desenhou-o um dos oficiais que o
acompanharam ao País dos Ranqueles, em 70. Parece que era habilidoso
com o carvão vegetal.

- Sim, era - confirmou Guor.

Uma lágrima rolou por sua bochecha, e Laura a secou com a


mão. Mas as lágrimas continuaram caindo para converterem-se em um
pranto profundo e silencioso. Laura tirou o castiçal de sua mão, deixou-o
sobre a mesa e o abraçou. Nahueltruz se agarrou a ela com desespero.

- Meu amor, meu amor - repetia ela -. Não chore, não posso
vê-lo sofrer. Acreditei que você gostaria de ver o retrato.

Guiou-o até o sofá e lhe serviu uma taça de brandy, que


Nahueltruz bebeu de um gole só. Sentou-se sobre seus joelhos e rodeou seu
pescoço com os braços. Passaram alguns minutos em silêncio. Nahueltruz
mantinha a vista perdida em um ponto, enquanto Laura aguardava com
paciência que retornasse para ela.

Tradução Lauren Moon


- É a primeira vez que choro por meu pai, desde que soube de
sua morte - confessou -. Morreu em 77.

- Sim, sei - disse, e foi até uma gaveta do escritório de onde


tirou um envelope volumoso; pinçou seu conteúdo até dar com um recorte
de jornal, que entregou a Nahueltruz.

- É do jornal La Mañana del Sur - explicou, enquanto ele o


repassava com o olhar. O artigo, que se titulava “Morte de um cacique”,
dizia que Mariano Rosas havia falecido em 18 de agosto:

“ACABA DE MORRER O PODEROSO CACIQUE DA TRIBO DOS


RANQUELES, DE MORTE NATURAL. MARIANO ROSAS ERA UMA AUTORIDADE
DO DESERTO. POR SUA INFLUÊNCIA, SUA CORAGEM E, SOBRE TUDO, POR SUA
PRUDÊNCIA, FOI POSSÍVEL MANTER A PAZ COM ELE, E O GENERAL ROCA TINHA
CONSEGUIDO LHE IMPOR RESPEITO E INSPIRADO CONFIANÇA”.

- Assim que li este artigo - comentou Laura -, escrevi


imediatamente para Agustín que me ratificou que seu pai tinha sido uma
mais das vítimas da epidemia de varíola.

- Como meu Linconao - disse Guor.

A menção do filho morto de Nahueltruz deixou Laura calada.


“Quantas lembranças dolorosas trouxe para sua cabeça por causa de meu
capricho em lhe mostrar o retrato! Jamais deveria tê-lo feito. Jamais”,
reprovou-se.

- Perdão, meu amor - disse - Perdão por ter-lhe causado este


momento tão amargo.

Guor a olhou fixamente e tomou o rosto entre as mãos como


estava acostumado a fazer, quando queria lhe dizer algo definitivo e
importante.

- Não, Laura, não me peça perdão. Trouxe-me aqui com a


melhor das intenções, eu sei. Com a intenção de lembrar-me de meu pai.
Não podia saber que, por causa de razões que levo muito dentro de mim,
não posso recordá-lo com alegria, mas com uma angustiante tristeza. Mas,
que culpa você tem? Por que deveria me pedir perdão?

“Deveria lhe pedir perdão de joelhos, - disse Laura para si -,


deveria flagelar meu corpo enquanto o faço, deveria penar e penar até que
me concedesse seu perdão, meu amor, porque foi por minha causa que

Tradução Lauren Moon


abandonou seu pai e sei que é isso o que pesa em sua alma”. Mas não disse
nada. Aterrorizava-a pronunciar essa verdade.

- Parece-se com seu pai? - perguntou, em troca.

- A semelhança é incrível - assegurou Guor.

- Meu avô sempre repete que se trata de um índio nobre e de


excelente fisionomia.

- Não deve dizer o mesmo desde que soube, graças a seu


folhetim, que este cacique manteve cativa sua sobrinha Blanca Montes,
trinta e nove anos atrás.

- Não disse nada. Não conhece meu avô. Tem a natureza mais
compassiva e misericordiosa que conheço. Ele e sua irmã, tia Carolita; eles
são assim. Seus corações não têm espaço para o rancor.

- E o resto de sua família, o que disse?

- Ninguém sabe de quem é este retrato. Não prestam atenção


nele - adicionou, e soou mais displicente do que teria querido -. Ainda opõe
resistência para que eu escreva La gente de los carrizos?

- Não - assegurou ele -. Jamais resisti. Se alguma vez me opus


foi por outras razões que nada têm que ver com o folhetim. Estou
orgulhoso de minha mãe e de sua história. - depois de uma pausa adicionou
-: Embora a tenha perdido quando era muito menino, sua lembrança sempre
me acompanha. Tratava-se de uma mulher extraordinária. Muitas vezes me
fez falta.

- Nahuel - sussurrou Laura, e acariciou sua bochecha.

Deixou o sofá e caminhou para o quadro. Guor ficou em pé e a


seguiu.

- É seu - pronunciou, enquanto o desprendia -. Quero que o


leve para sua casa, que o compartilhe com sua gente, que o pendure em um
lugar aonde todos possam apreciá-lo.

- E seu avô? - murmurou Guor.

- Meu avô? - repetiu Laura com um sorriso travesso -. É


suficiente que sua Laurita tenha decidido dar de presente o quadro para que
ele esteja de acordo.
Tradução Lauren Moon
- Conheço poucas mulheres - expressou Guor - que possuem
sua capacidade para dominar a vontade dos homens.

Tomou o quadro de mãos de Laura, e saíram do escritório de


Francisco Montes. Cruzaram em silêncio o velho casarão. Nahueltruz não
queria que Laura saísse ao pátio porque estava gelado, mas ela teimou.
Envolveu-a em sua jaqueta de pele de carneiro de Barragán75 e
caminharam abraçados até o estábulo. Antes de se despedir, Guor lhe
confessou:

- Tenho medo de enfrentar meu tio Epumer.

- Por que, meu amor?

- Tenho medo de que reclame comigo por todos estes anos de


abandono.

Laura ficou em silêncio.

- Tenho medo - retomou Guor, e na escuridão não percebeu a


consternação dela - de que reclame por não ter estado junto ao meu pai
quando ele morreu. Você sabe que não temo nada, Laura.

- Sim, sei - disse ela, com paixão.

- Mas a dor da minha gente é uma cruz, com a qual não sei
como lutar. Culpa, rancor, impotência, muitos sentimentos se misturam e
me deixam vazio o coração e a cabeça. Não sei o que fazer.

- Nahuel, meu amor, você mesmo me disse anos atrás que


algum dia chegaria o fim da guerra entre cristãos e ranqueles, e que esse
dia seria quando um dos dois lados esmagasse o outro. Atrevo-me a dizer
que inclusive sabia que sua gente sucumbiria ante o poderio dos brancos.
Não se atribua culpas que não lhe correspondem. O sofrimento de seu povo
não é sua culpa. O destino dos pampas selou-se anos atrás.

- Eu os abandonei, Laura, quando mais me necessitavam!

- Isso foi por minha culpa, Nahuel, não pela tua! - pronunciou,
e Nahueltruz se retirou como se empurrado pela veemência dela -. Minha
culpa -repetiu -, não sua. Eu arruinei sua vida. Jamais deveria ter-me
amado, porque sabia que nossos mundos não se entenderiam. É minha
culpa, culpa deste amor tão imenso que sinto por você. Não deveria ter
75
Alfaiataria em Buenos Aires (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


amado você, Nahuel. Olhe como você sofreu! Olhe como sofre ainda! Oh,
meu Deus!

Guor apoiou o quadro contra a parede e agarrou Laura pelos


braços.

- Não é sua culpa, Laura - disse com firmeza -. Como pensa


que é sua culpa? Eu poderia ter ficado em Terra Adentro depois do
ocorrido com Racedo sob o amparo que me oferecia minha terra e meu pai
e, no entanto, escolhi partir. Outras questões levaram-me a fazê-lo.

- Que outras questões exceto pôr a maior distância entre você e


a mulher pérfida que tinha-lhe abandonado?

- Não diga isso. E não volte a culpar nosso amor, que é o mais
importante que tenho. Não quero voltar a escutá-la dizer que não deveria
ter-me amado. Se não tivesse me amado, eu teria mergulhado em um
inferno mil vezes maior do que o que me coube viver. Basta. Não falarei
mais sobre este assunto. Não devia mencionar o receio que carrego a
respeito de voltar a ver meu tio Epumer.

- E com quem mencionaria seus receios se não a mim, sua


mulher?

- Ah, minha mulher! - repetiu ele -. Escutar essas palavras de


seus lábios me faz esquecer tudo aquilo que me atormenta.

Beijaram-se, e Nahueltruz sentiu em sua boca o gosto salobre


das lágrimas de Laura.

- Quando retornar de Martín García, vamos nos casar. Não


temos por que continuar esperando. Seis anos foi muito tempo.

- Anunciaremos depois do casamento de minha mãe -


manifestou Laura, que devia resolver várias questões antes de anunciar seu
casamento com outro que não fosse lorde Leighton.

~0~

No escritório de Roca, Laura encontrou com o mesmo


secretário da vez anterior, que voltou a ruborizar-se e a olhá-la com olhos
apreciativos. O moço indicou que se sentasse e que aguardasse um instante;
o general a receberia depois que terminasse a reunião com o coronel
Gramajo. Laura sentou e se dispôs a esperar. De longe chegavam os sons

Tradução Lauren Moon


de uma manifestação que avançava desde a Plaza de La Victoria. Eram os
rifleros a caminho do Tiro Nacional. As vociferações e os disparos ao ar os
alcançavam com maior nitidez a cada momento. Era evidente que
planejavam passar pelo Ministério de Guerra e Marinha.

- Estamos acostumados a este barulho - comentou o secretário.

Abriu-se a porta do escritório e apareceram Roca e Gramajo.

- Senhora Riglos! - exclamou o coronel, visivelmente contente.

- Artemio, como está? - disse Laura, e lhe estendeu a mão.

- Que prazer! - voltou a exclamar -. Lamentei muito sua


ausência na festa do Pohteama.

- Tive que me ausentar da cidade - explicou evasivamente, sem


olhar a Roca.

- Senhora Riglos - disse o general, e lhe deu a mão -. Espero


que não tenha tido que aguardar muito tempo.

- Não, não, general. Acabo de chegar.

Artemio Gramajo se despediu e partiu para seu escritório.


Antes de indicar a Laura que entrasse em seu escritório, Roca pediu ao
secretário que trouxesse café. Fechou a porta e, sem palavras, indicou uma
poltrona para Laura. Ele se sentou na frente dela.

- Soube que atentaram contra sua vida.

- Afligiu-se? - perguntou Roca, sem ocultar sua hostilidade.

- É obvio. Sabe que tudo o que concerne a sua vida não me é


indiferente. É meu grande amigo, já disse isso no passado e repito isso
agora.

- Amigo - repetiu o general, e se calou porque o secretário


entrou com o café. Serviu-o e se retirou depois de uma breve inclinação.

- Como estão seus filhos?

- Bem, obrigado.

Tradução Lauren Moon


- Sua família não corre perigo? Refiro-me - esclareceu Laura,
ante o cenho de Roca - se não seria prudente tirá-los de Buenos Aires até
que a convulsão se aplaque.

A horda já tinha passado abaixo da janela do escritório do


ministro. Não tinham produzido disparos, só haviam vociferado alguns
impropérios que não alteraram ao general. Possivelmente, a presença de
soldados às portas do Ministério tinha dissuadido aos rifleros de
continuarem para o Tiro Nacional, sem maior escândalo.

- Provavelmente - admitiu Roca -, seria prudente que eu


deixasse a cidade.

- Está pensando em renunciar ao cargo de ministro?

- Em algum momento terei que fazê-lo para me ocupar da


campanha.

Sorveram o café em silêncio. Laura apoiou a xícara sobre uma


mesinha e olhou fixamente para Roca.

- Por que rechaça minha amizade, Julio?

O general soltou um suspiro e se acomodou na poltrona com a


atitude de quem abandona a luta.

- Não rechaço sua amizade, Laura. Simplesmente, custa-me


vê-la como amiga depois do que vivemos.

- Entendo.

Laura ficou de pé, e Roca a imitou.

- Na realidade, hoje quis vê-lo - explicou ela - para comprovar


com meus próprios olhos que estava bem, além de lhe agradecer a
permissão para visitar o cacique Epumer em Martín García.

- Devo lhe dizer - falou Roca, e seu tom de voz soou menos
hostil - que o senador Cambaceres se mostrou muito surpreso ante meu
interesse por administrar o salvo-conduto. Desculpei-me com minha
amizade com o padre Agustín Escalante e pareceu satisfeito, mas quando
lhe pedi que não mencionasse minha intervenção, surpreendeu-se mais
ainda. Sabe quando Rosas irá ver seu tio?

- Partiu esta manhã.


Tradução Lauren Moon
- Vocês reataram suas relações, imagino.

- Sim - disse Laura.

- Alegro-me por você, porque sei que sofreu.

- Obrigada, Julio - e tomou sua mão, emocionada.

Roca agarrou seu braço e a atraiu para ele. Abraçaram-se, e


Laura repetiu “obrigada, Julio, obrigada”, até que lhe atou a garganta. Roca
se separou dela e deu uma palmada em sua bochecha com a atitude de um
pai benevolente.

- Se formos ser amigos - expressou -, teremos que aprender a


nos despedir sem tanto dramatismo.

Laura riu, e Roca teve que sufocar a onda de desejo que lhe
provocou. Tê-la perto e não poder beijá-la, convertia-se em uma tortura
segundo a segundo. Por sorte Laura disse que ia embora.

- Qualquer coisa que precise, Julio (e, quando digo “qualquer


coisa” refiro-me a qualquer coisa), quero que me deixe saber isso. Sempre
contará com minha ajuda.

- Pergunto-me - disse Roca, apelando ao sarcasmo novamente


- o que diria Rosas se soubesse de nossa amizade.

- Não a aprovaria, com certeza.

- Então, este será nosso segredo - e a beijou nos lábios,


docemente, sem vestígios das paixões que o alteraram desde que soube das
fofocas que tinham Laura e Rosas por amantes; permanecia tranquilo,
inclusive depois de ter recebido a confirmação dela. Não queria perdê-la,
conformava-se com a amizade oferecida. De algum jeito, a vida se
encarregaria de reencontrá-los. Roca abriu a porta e saíram. Na recepção,
conversando com o secretário, estava o senador Cambaceres. Laura ficou
nervosa e empalideceu, e em seguida sentiu que Roca apertava seu braço,
ficou claro entre eles que seria o general quem dirigiria a situação.

- Bom dia, general - disse Cambaceres, e se aproximou -.


Senhora Riglos, um prazer vê-la. Fazia tempo que não tinha a sorte de
estreitar sua mão.

Cambaceres não parecia absolutamente surpreso de encontrá-


la ali, pelo que Laura deduziu que o secretário o teria colocado a par.
Tradução Lauren Moon
- Você também se faz de embaixatriz do padre Agustín?

- Exatamente - disse Roca -. Mas explicava à senhora Riglos


que sua viagem até aqui foi em vão, pois o salvo-conduto para visitar o
cacique Epumer foi emitido dias atrás.

- Sim, sim - ratificou Cambaceres -. O senhor Lorenzo Rosas,


grande amigo de seu irmão, conforme entendo, viajará a Martín García e o
visitará para conhecer em que situação se encontra. Quando escrever ao
padre Agustín, senhora, conte que a possibilidade de visitar o cacique
Epumer devemos ao general Roca que, motu proprio, administrou e
conseguiu os desejados papéis.

- Soube por terceiros - explicou Roca - do desejo do padre


Agustín em visitar Epumer Guor e fiz o que qualquer bom cristão teria
feito: ajudá-lo. Jamais poderia negar um pedido a um missionário da estima
do padre Escalante, merecedor de todo meu respeito e admiração. Sempre
que puder, vou ajudá-lo.

- E nada importa as divergências que existam entre você e ele


em matéria de índios - comentou Cambaceres.

- Nada importa - assegurou o general -. Acho admirável a


abnegação do padre Agustín por essas pessoas, quando eu lhes tenho tão
pouca paciência.

- Obrigada por ter-me recebido - falou Laura pela primeira vez


-, e obrigado por ter concedido a meu irmão o que tanto queria.

Despediram-se. Roca e Cambaceres entraram no escritório.


Voltaram a tocar efemeramente no assunto da visita a Martín García e
imediatamente mergulharam em questões mais relevantes, entre elas, as
próximas eleições de deputados.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXV.

Os prisioneiros de Martín García

Disseram-lhe que a névoa tão espessa era comum nessas horas


da manhã, e que pouco a pouco desapareceriam e começariam a avistar o
horizonte. No momento, Nahueltruz não podia ver sua própria mão. Estava
frio ao ar livre e procurou refúgio na cabine. Enquanto navegava às cegas,
o capitão lhe disse que tinha realizado essa viagem tantas vezes que perdeu
a conta, que conhecia o rio e seus segredos de memória, e que podia chegar
a qualquer ponto da Banda Oriental com os olhos fechados. Nahueltruz se
limitou a assentir com a cabeça. O capitão, propenso à bate-papo, falou de
Martín García.

Os primeiros presos da ilha (desertores do exército) datavam


de 1765. Desde aquela época, esteve relacionada com funções militares, em
especial por sua conveniente posição estratégica. Tempos mais tarde
chegaram delinquentes comuns que, junto aos outros, desenvolviam
trabalhos forçados como manter à raia a vegetação, picar pedra das
pedreiras para empedrar as ruas de Buenos Aires, fabricar tijolos e
construir fortificações, quartéis e casamatas. Segundo o capitão, naqueles
anos do século XVIII, as condições dos detentos tinham sido paupérrimas.
Variadas enfermidades assolavam a ilha. A vestimenta inadequada ou a
falta dela, a má alimentação e os ratos contavam entre as principais causa.

- A coisa melhorou - explicou o capitão -, mas não acredite


que em muita coisa. No ano passado tive que trazer para Buenos Aires
vários detentos com febre tifóide. Todos morreram.

Horas mais tarde, a névoa se dissipou. À distância, a ilha


apresentava um aspecto selvagem e solitário. No momento de atracar,
entretanto, as construções começavam a divisar-se. A fortificação,
construída em meados do século XVIII, era o primeiro edifício que se via.
Contra sua aparência de ilha solitária e impenetrável, em terra se apreciava
um considerável movimento.

Guor apresentou o salvo-conduto a dois soldados que, depois


de lê-lo atentamente, fizeram-lhe perguntas relacionadas ao motivo de sua
visita. O capitão da corveta ofereceu acompanhá-lo à única hospedagem
onde acharia alojamento.

Tradução Lauren Moon


- A menos - expressou o capitão - que deseje retornar hoje
mesmo. Minha corveta zarpa depois que terminarmos de carregar
paralelepípedos e tijolos, por volta das cinco de a tarde.

- Obrigado, mas acredito que ficarei dois ou três dias.

- Serão quatro - assegurou o capitão -, pois esse é o tempo que


demorarei para retornar com carne e mantimentos.

- Quatro, então - disse Guor.

A ansiedade levou Nahueltruz a arrumar com o hospedeiro,


sem regatear, um quarto e água quente para banhar-se todas as noites,
apesar de ter-lhe pedido uma fortuna. Só entrou no quarto para deixar sua
bolsa de couro e trocar-se. Caminhou à prisão, teve que apresentar várias
vezes o salvo-conduto antes que o conduzissem ao pátio. Estava vazio
exceto por um homem que, sentado sobre um toco, esculpia um pedaço de
madeira: seu tio. Tratava-se de uma imagem recorrente de sua infância,
Epumer esculpindo madeira no caramanchão de seu rancho, muitas vezes
fazendo um brinquedo para seus filhos ou sobrinhos.

Embora Epumer fixasse seus olhos na peça de madeira,


Nahueltruz tinha certeza de que percebeu que alguém se aproximava.
Apenas se distinguia seu perfil, escurecido por um manto de sombra, mas,
sem dúvida, tratava-se dele, de seu tio, o irmão mais novo de seu pai, o
último da dinastia das Raposas. Seu coração bateu com rapidez.

Saudou em araucano.

- Mari-mari —disse, e aguardou uns passos.

Epumer moveu o rosto para o lado e olhou fixamente quem


interrompia seu trabalho. Nahueltruz permaneceu mudo, estudando esse
rosto tão familiar, tão paradoxalmente alheio, agradecendo, ao mesmo
tempo, o bom tino de ter comprado roupas simples em vista dos farrapos
que mal cobriam seu tio. Epumer levava na testa uma faixa de cabeça, que
uma vez tinha sido branca. Os cabelos, embaraçados e retos como pregos,
roçavam-lhe os ombros. Suas feições, embora não fossem morenas, mas
rosadas, pareceram-lhe mais toscas e inacabadas do que recordava, o nariz
o impressionou especialmente, da cor do fígado e com saliências por causa
da bebida. Tratava-se de um homem baixo, aspecto que sempre tinha
contrastado com os outros homens da dinastia Guor, e bem mais gordo.
Como estava acostumado a ocorrer com os de sua raça, era difícil calcular
sua idade, mas Nahueltruz julgou que devia rondar os sessenta e cinco

Tradução Lauren Moon


anos. Seus olhos esverdeados, iguais aos do cacique Parné, apagaram-se; já
não brilhavam com a vivacidade e ferocidade da juventude. Nada ficava do
guerreiro que, com coragem quase demente, colocava-se à frente de seus
lanceiros em batalhas e ataques. Nahueltruz sofreu uma forte desilusão. No
entanto, sorriu ao dizer:

- Tio, sou seu sobrinho, Nahueltruz, filho de seu irmão


Mariano Rosas.

Epumer levantou as pálpebras como única mostra de surpresa,


e quase de imediato retornou-os a sua posição original. Ficou em pé,
limpou sua mão direita na calça de percal e a estendeu para seu sobrinho,
que a estreitou com embaraço.

- Estive doente - disse o cacique -, por isso me encontra aqui.


Se não, estaria picando pedra com seus primos e Pincén.

- Já está melhor?

- Nunca vou voltar a estar bem.

- Compreendo.

Epumer voltou para toco e a seu esculpido. Nahueltruz se


sentou a seu lado, sobre o piso. Por um momento, só se escutou o estalo do
formão sobre a parte de madeira.

- Fazia tempo que queria vir vê-lo, tio, mas era muito difícil
conseguir a permissão para entrar em Martín García. Por fim, com a
intervenção do padre Agustín, consegui a papelada e pude viajar.

- Chegou em bom momento. Antes teria me encontrado meio


morto por causa da varíola. Os soldados nos culpam, porque trouxemos a
peste a esta ilha. Desta vez me salvei. Tive mais sorte que seu pai.

Continuou esculpindo; Nahueltruz mantinha a cabeça baixa e a


vista fixa no pavimento.

- Teria sido bom que tivesse visto seu pai antes que ele
morresse - expressou o cacique, sem olhá-lo.

- Soube tempos depois. Já não tinha sentido viajar.

Tradução Lauren Moon


- Teria tido sentido para mim e para seu cucu. Para ela foi uma
grande tristeza ver que o tempo passava e você não vinha. Não sei o que foi
feito dela.

- Vive comigo - disse Nahueltruz, e Epumer moveu a cabeça e


o olhou nos olhos em sinal de complacência -. Tinham-na levado a um
canavial em Tucumán, ela e Dorotea Bazán. Dorotea não suportou a
viagem e morreu. Mas meu cucu resistiu. Levei-a para Buenos Aires. Vive
em minha casa, junto com Miguelito e sua família.

O silêncio voltou a se abater. Transcorridos tantos anos, e com


eles, tantas situações, conflitos e perdas, existiam uma infinidade de
questões das quais falar. Nahueltruz aguardava que seu tio Epumer viesse
compartilhá-las com ele.

- O último pensamento de seu pai - disse Epumer - foi para


você e para sua mãe. Quando se deu conta de que tinha perdido a batalha
contra o Hueza Huecubú, mandou-me chamar e me ordenou que o
enterrassem junto a Uchaimañé. Disse-me “quero descansar ao lado de
Blanca e quero que me vistam com o poncho que ela teceu para mim”.
Pediu que, depois de sua morte, não se buscassem culpados entre as
machis76. Depois me disse “Entregue a caixa com meus pertences mais
preciosos ao meu filho Nahueltruz. Peça ao padre Agustín que as mande”.

- Nunca recebi a caixa.

- Tenho-a aqui, não se inquiete. Não a mandei ao padre


Agustín, mas, por sorte, levava-a comigo naquele dia que me capturaram
por traição. Entre as coisas de seu pai, está o relógio, esse que Uchaimañé
lhe deu de presente. Os ponteiros já não se movem.

- Pertencia a meu avô, Leopoldo Montes.

Epumer se espraiou nos pormenores dos funerais de Mariano


com uma ansiedade e esmero que denotavam que tinha querido contar a seu
sobrinho há muito tempo. Conforme esclareceu, a pompa e a solenidade
tinham prevalecido. Apenas morto, as cativas lavaram o corpo do grande
cacique devastado pela varíola e o vestiram com seus melhores objetos de
gaúcho e o poncho de Uchaimañé. De imediato, o expôs no caramanchão
de seu toldo onde permaneceu durante um dia rodeado por mais de
duzentas mulheres que choravam amargamente e gemiam “Marianito! Ai,
Marianito!”. No dia seguinte, enquanto despontava o sol, uma procissão,

76
Curandeira ou médica, araucano [Mapuche] (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


encabeçada pelos lanceiros de Epumer, os de Ramón Cabral (El Platero) e
Baigorrita, escoltou-o a sua última morada, junto à sepultura de
Uchaimañé. Os filhos mais velhos (Guayquiner, Manuel Amunao, Pichi
Mariano e Puitrinao) carregaram as cangalhas com seu corpo, enquanto as
mulheres seguiam o cortejo sem deixar de chorar e lamentar. Uns cavaram
a fossa, enquanto outros degolaram três cavalos, os melhores do grande
cacique, e uma égua gorda, para que não lhe faltasse alimento em sua
viagem ao Mapú-Cahuelo ou País dos Cavalos, o paraíso dos ranqueles.
Além dos animais mortos, deixaram em torno dele outras de seus pertences
mais queridos, sela e arreios, laço, boleadeiras e facão.

- Eu fui o primeiro a jogar terra sobre seu pai - vangloriou-se


Epumer -. Depois o fez Ramón, depois seu tio Huenchu e Baigorrita e por
último os capitanejos77. Todos estavam verdadeiramente de causar pena,
porque o queriam e respeitavam. Os yapaís78 duraram dois dias, porque
todos padecíamos terrivelmente.

Nahueltruz escutava impassível o relato de seu tio, que pouco


a pouco se convertia em imagens vividas; podia recriar cada instância, cada
detalhe. Não experimentava tristeza ou amargura a não ser orgulho por ter
sido o primogênito de um homem tão querido e respeitado pelo povo
ranquel.

- Foi uma epidemia muito brava, filho - explicou Epumer -.


Você já deve saber que seus irmãos Linconao e Pichi Epumer morreram
poucos dias depois de seu pai.

Nahueltruz levou sua mão direita à testa para ocultar a tristeza.


Ele amava profundamente seus irmãos Linconao e Pichi Epumer ou
Epumer Menino, alguns anos mais novos; inclusive tinha dado o nome a
seu filho em honra do maior, Linconao, ambos assinados pelo mesmo
nefasto destino. Quanto ao Pichi Epumer, Nahueltruz recordava-o como
manso e benévolo, muito aficionado ao padre Burela, que o ensinou a ler e
escrever o castelhano. Mostrava sempre boa predisposição com todos,
inclusive com os cristãos. Foi ele quem advogou pelo coronel Mansilla,
quando na ocasião de sua excursão ao País dos Ranqueles, em 70, durante
uma acalorada discussão, os principais chefes e anciões queriam comê-lo
vivo. Com a ajuda de Miguelito, ocupou-se de protegê-lo o tempo que
durou sua permanência em Leuvucó. Nesse tempo, Nahueltruz estava
muito ocupado em conhecer seu meio-irmão, o padre Agustín Escalante, e
se desentendeu das questões políticas e do ousado coronel.

77
Chefe de índios subordinado ao Cacique (N. da Tradutora)
78
Ritual pelo luto (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Epumer seguiu falando até que entardeceu, respondendo às
perguntas de seu sobrinho, contando-lhe a respeito de tanta gente e
acontecimentos. Quando tiveram fome, Nahueltruz pôs várias moedas na
mão de um soldado para que lhes trouxesse comida e bebida decentes.
Epumer confessou que era a primeira vez que comia tão bem em Martín
García, e Nahueltruz fez levar uma parte a suas tias e primas, que
permaneciam na peça, porque Epumer não lhes tinha autorizado aproximar-
se. Espiavam do trapo que se fazia de porta. Cada tanto, Nahueltruz se
virava e lhes sorria, e elas se ocultavam.

Ao pôr do sol, chegaram outros prisioneiros, entre os quais


estavam os filhos varões de Epumer, o cacique Pincén e os seus.
Caminhavam em fila, algemados.

- Faz uns dias - comentou Epumer, com a vista separada da


comitiva -, o general Roca ordenou a Matoso - referia-se ao capitão chefe
do regimento da ilha - que a mim e Pincén tirassem os ferros.

O reencontro de Nahueltruz com seus primos e o cacique


Pincén foi tão frio e incômodo como com Epumer, agravado pelo cansaço e
pela fome, depois de uma jornada de trabalhos forçados nas pedreiras e no
monte. Em seguida, enquanto comiam pão de milho e tortas fritas, o
acanhamento e frieza se dissiparam. Alguns, os mais jovens, lembraram-se
deste primo mais velho, que sabia ler e escrever em várias línguas, que
tinha cruzado uma lagoa milhões de vezes mais comprida que a de
Leuvucó, que era rico e que vivia na terra mais velha e importante do
mundo. Também o contemplavam com admiração, porque sabiam que era
um grande caçador de tigres, que só podia comparar sua habilidade para
montar, laçar e domar com a do tio Mariano e que ele deveria ter sido seu
herdeiro natural. Estavam convencidos, sem dúvida alguma, que ele os teria
levado a vitória final contra o huincas. O primo Nahueltruz, entretanto,
tinha decidido deixá-los pelos huincas. Em nenhum momento o
recriminaram, nem sequer com o olhar, mas Nahueltruz sabia que o
pensavam.

Na tarde do segundo dia, um pouco mergulhado na bebida,


Epumer tocou no assunto. Disse:

- Você e seu pai permitiram que duas huincas lhes metessem


no sangue e os dirigissem como meninos. Vocês se esqueceram de que
eram ranqueles. Esqueceram-se de seu povo. Seu pai sempre quis a paz
com os huincas a qualquer preço, porque Uchaimañé era huinca, e nunca
participou de ataques por ela, embora ele tenha dado outras razões, eu sei
que o fazia porque não queria matar às pessoas dela.
Tradução Lauren Moon
- Meu pai não quis a paz a qualquer preço - atravessou
Nahueltruz com prudência, conhecedor do temperamento de seu tio quando
estava bêbado -, ele pôs suas condições. E embora não posso lhe assegurar
que minha mãe estava fora de seus pensamentos quando procurava a paz,
sim posso lhe dizer que o cacique Mariano Rosas queria a paz porque sabia
que era a única forma de salvar seu povo. O huinca é superior, e isso
inclusive você sabe, tio. Entendo - prosseguiu, ao ver que Epumer o
escutava mansamente - que, depois de converter-se no grande cacique,
você também procurou a paz com os huincas.

- Sim, porque o jurei a seu pai antes de morrer. E eu nunca


quebro uma promessa - esclareceu em voz alta, com gesto ameaçador -.
Mas olhe o que consegui com a paz, que os huincas me capturassem à
traição. Não acredite que eu não gostasse de sua mãe. Era boa e generosa e
amava a nosso povo. Foi a machí mais poderosa de nosso povo e curou
muitos doentes. Mas era de outro mundo, não pertencia ao deserto. Roubou
o coração de seu pai, que, ainda assim, colocou-a diante de tudo. E você -
continuou Epumer - se converteu em huinca para agradar à irmã do padre
Agustín, porque no fundo se envergonhava de ser ranquel. Por isso deixou-
nos, porque já não queria seu povo.

Nahueltruz baixou a vista e escolheu calar, porque o que


Epumer dizia era certo.

Por fim, a verdade tão temida tinha sido falada. No entanto, e


mais à frente da irritação de seu tio, Nahueltruz sentia que Epumer ainda o
amava e que, apesar da traição, jamais o separaria de seu coração. Deu-se
conta de que seu tio era incondicional.

- Vou tirá-lo daqui - prometeu Nahueltruz -, a você e aos


membros de sua família.

Os quatro dias na ilha, marcados pelas lembranças e pelas


longas conversas a respeito de parentes, amigos e conhecidos,
transcorreram com lentidão. Em geral, os relatos terminavam mal; a
maioria de seus irmãos, primos e tios tinham morrido, quer fosse por causa
da varíola ou em alguma escaramuça; outros tinham paradeiro
desconhecido, depois da tropa levá-los embora; certamente tinham sido
recolocados em fazendas, casas de família ou conventos.

Nahueltruz recebia com gratidão e alívio os convites do


capitão Matoso, com quem conversava banalidades que o ajudava a afastar
o fantasma da culpa. Estavam acostumados a encontrar-se na hospedagem
ou no escritório do capitão. A amizade com Matoso, um homem solteiro,
Tradução Lauren Moon
de meia idade, sem maiores aspirações, mas com um coração clemente,
serviu para que Nahueltruz se movesse livremente dentro do quartel e para
que pudesse melhorar as míseras condições de seu tio e seus primos.
Inclusive autorizou, sem maiores requisições, que Nahueltruz entregasse a
totalidade dos pacotes e bagagem que havia trazido para os réus.

- Não compreendo - disse Matoso em uma oportunidade - o


interesse que você tem, senhor Rosas, por estes selvagens.

- Estou aqui - expressou Nahueltruz - em nome de um


missionário franciscano a quem devo muito, quase tudo o que tenho. Ele
me pediu que eu conhecesse a sorte que tinham deslocado estes pobres
diabos, e aqui me tem, capitão.

- Alguns soldados me reportaram que o escutaram falar em


araucano com esta gente.

- Balbucio-o - mentiu Nahueltruz -. Sou poliglota por natureza,


capitão. Minha avidez pelas línguas não conhece limite. Depois de ter
aprendido as mais tradicionais (inglês, francês, italiano), inclinei-me por
aquelas mais exóticas. Este padre missionário do que lhe falava me ensinou
algo do idioma dos índios do sul.

Horas antes de a corveta zarpar de retorno a Buenos Aires,


Nahueltruz reiterou sua promessa de mover céu e terra para conseguir a
liberdade de Epumer e sua família. O cacique o contemplou com
cepticismo e aplaudiu seu ombro, enquanto esboçava o primeiro sorriso da
visita.

- Obrigado pelo que nos trouxe, Nahueltruz, em especial, as


mantas e a roupa para frio. Passamos muito frio aqui.

- Já arrumei com o capitão do navio para que, a cada viagem,


traga-lhes mais provisões e roupa. Acredito que se trata de um bom
homem, que não roubará o conteúdo.

- É huinca - sentenciou Epumer -. Não confie.

A propósito, o cacique contou sobre a feroz perseguição que


tinha terminado com o coronel Rudecindo Roca, irmão do ministro da
Guerra e Marinha, o coronel Vintter e o coronel Eduardo Racedo contra as
tribos ranqueles e salineiras.

Tradução Lauren Moon


- Tivemos que deixar Leuvucó porque sabíamos que viriam
por nós, que o tratado de paz já não servia. Eles propunham outra paz, mas
nós não a aceitamos, queriam que nos entregássemos e que fôssemos viver
aonde eles nos dissessem, que abandonássemos nossas terras para que eles
as ocupassem. O huinca é traiçoeiro, Nahueltruz, nunca esqueça isso, não
respeita sua própria palavra e, como se pode confiar em quem não honra
suas promessas? Já nem sequer acreditam no padre Donatti e no padre
Agustín. Eles são bons, mas são huincas afinal de contas.

- O padre Agustín conseguiu esta permissão para que eu viesse


vê-lo e, por certo, pediu para que Roca desse a ordem de lhe tirar os
grilhões.

Epumer moveu a cabeça em sinal de assentimento. Depois,


como se retomasse o fio de um pensamento extraviado, disse:

- Foi o coronel Racedo, o tio do militar que matou em Rio


Cuarto, quem nos caiu em cima essa tarde. Nós tínhamos abandonado
Leuvucó porque, como já lhe disse, perseguiam-nos, mas retornamos um
dia para recolher a cevada, e ali nos encontraram. Morríamos de fome
vagando pelo deserto e não podíamos deixar que esse grão se estragasse
nas sementeiras. O capitanejo Carripilán, que tinha-se vendido aos huincas,
estava com Racedo e fez de tradutor nos ordenando, em nome do coronel,
que nos entregássemos sem briga. Que briga podíamos apresentar mortos
de fome como estávamos e sem outras armas que as ferramentas que
usávamos para recolher a cevada?

Nahueltruz podia imaginar a humilhação que deve ter


experiente o feroz Epumer Guor, conhecido por seu arrojo quase
desmesurado em batalha, ao render-se ante um grupo de soldados e de
índios traidores. Que triste final para um guerreiro como seu tio! Sem pena
nem glória. E nas mãos de Racedo.

- Depois de me algemarem - prosseguiu Epumer -, Racedo


mandou me chamar. De novo Carripilán oficiou de tradutor. O primeiro
que quis saber Racedo era quem, de todos esses, era meu sobrinho
Nahueltruz Guor, o primogênito de meu irmão Mariano Rosas. Eu lhe disse
que você tinha morrido por causa da varíola dias depois de seu pai. Não
acreditou em mim. Perguntou aos que estavam comigo, que disseram o
mesmo. Perguntou inclusive a Carripilán, mas este não sabia. Em Rio
Cuarto continuou desconfiado de mim e mandou chamar o padre Donatti e
ao padre Agustín. Disse-lhes o que eu tinha contado a respeito de você e
lhes perguntou se era verdade ou mentira. Deve ter sido duro para eles
mentir, porque na religião deles a mentira é coisa do Hueza Huecubú, mas
Tradução Lauren Moon
o certo é que mentiram. O padre Donatti disse que não sabia nada de você e
o padre Agustín disse que o que eu havia dito era certo. Vai saber se
Racedo acreditou nele!

A jornada de Fuerte Sarmiento em Rio Cuarto até a ilha


Martín García esteve infestada de dissabores e maus tratos. Passaram fome
e frio. Aterrorizou-os a viagem de navio e todos, grandes e meninos,
decompuseram-se de tal modo que, ao chegar à ilha, estavam virtualmente
desidratados. A estadia em Martín García tinha sido penosa no começo. As
pestes, a falta de mantimentos, de espaço e de roupa tinham durado longos
meses. Nahueltruz esperava que, a partir de sua visita, as condições
melhorassem.

À medida que se aproximava a despedida, Nahueltruz ficava


mais inquieto; já queria sair de Martín García e retornar aos braços de
Laura. Só para ela confessaria as torturas que padecia. A esperança do
reencontro o salvava de cair em uma profunda angústia. Ao sentimento de
culpa por deixar para trás Epumer se contrapunha a um de alívio, pois esses
quatro dias tinham servido para lhe mostrar que, embora por suas veias
corressem o mesmo sangue que o de seu tio e seus primos, o abismo que os
separava era intransponível. Admitia que não pudesse conviver com eles,
porque, embora os tivesse escutado com paciência, seus assuntos e
preocupações não o interessavam, e seus costumes e modos se tornaram
alheios. Já não experimentava ânsia por retornar a Terra Adentro como ao
deixar o convento dos dominicanos em San Rafael, quando, jovem e
romântico, tinha julgado que a vida do campo seria superior à culta que lhe
ofereciam. Além disso, naquela oportunidade seu pai o aguardava em
Leuvucó.

Nahueltruz tinha se despedido de seus primos na noite anterior


porque sabia que o momento de zarpar os encontraria trabalhando.
Entregou dinheiro ao mais velho e lhe pediu que o repartisse entre seus
peñis (irmãos). A generosidade de Nahueltruz os estimulou e lhe pediram
um sem-fim de coisas que ele prometeu lhes fazer chegar com o capitão da
corveta.

Passou as últimas horas em Martín García a sós com seu tio.


Epumer lhe falou do cacique Ramón Cabral, mais conhecido como El
Platero, que tinha entregue suas terras aos huincas para estabelecer-se onde
o governo nacional lhe indicou. Depois de muito migrar, destinaram-no,
junto com sua tribo de índios, El Tala, a uma légua do Fuerte Sarmiento.
Foi obrigado a converter-se em tenente general do “Esquadrão de
Ranqueles” sob as ordens de Eduardo Racedo e a brigar contra seu próprio
povo.
Tradução Lauren Moon
- Os destinos do nosso povo - disse o cacique - foram dois:
entregar-se, como El Platero, e viver sob o jugo huinca, ou ser açoitado até
morrer em combate ou cair preso, como Pincén e eu. Estou contente de ter
escolhido este destino porque ninguém pode me acusar de traição.

- Tampouco me animo a julgar Ramón Cabral - disse


Nahueltruz -, pois ele era responsável por muita gente e deve ter querido
evitar uma matança.

- Pensa como huinca - expressou Epumer com uma sacudida


de ombros, e continuou esculpindo.

Nahueltruz lhe perguntou por seu primo Llancamil, filho de


seu tio Huenchu Guor, que tinha se unido em uma forte amizade.

- Seu primo Llancamil - falou Epumer - se converteu no


homem de confiança de seu pai, quando nos abandonou. Deixou-se
evangelizar pelo padre Donatti lá pelo ano de 74, mas, salvo isso, sempre
foi muito fiel. Seu pai o mandou para negociar em Rio Cuarto com o
general Julio Roca, em 76. Ali esteve com o padre Agustín e trouxe uma
carta que tinha escrito. Seu pai a leu muitas vezes e a conservou em sua
caixa. Quando seu pai morreu e seu irmão Guayquiner não quis ser o
responsável pelas tribos, os Loncos79 me escolheram, e imediatamente seu
primo Llancamil se converteu no mais valente de meus lanceiros. Quando
El Platero, deixou suas terras e se foi a Tala, eu mandei Llancamil ir atrás
dele e obrigá-lo a retornar a Carrilobo, mas Racedo, que é bem esperto,
tinha-lhe mandado uma escolta de muitos soldados para que o protegesse, e
Llancamil nada pôde fazer, embora tenha lutado como um touro. Agora
está preso.

- Llancamil preso? - repetiu Nahueltruz.

- Sim, capturaram-no também em emboscada pouco tempo


antes de mim. Enviei-o a Villa Mercedes para recolher as rações pactuadas
no acordo de paz, quando o coronel Arredondo foi para cima dele e o
algemou, ele e muitos outros.

- Merda! - soltou Nahueltruz, e Epumer o olhou com surpresa


porque era o primeiro palavrão de seu sobrinho, apesar de ter-lhe relatado
uma série de injustiças.

79
Índios Chefes (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Não se deixaram assim apenas - acrescentou o cacique com
orgulho -. Seu primo e os outros lanceiros resistiram. Dizem que foi uma
briga sangrenta e que muitos morreram, mas soubemos que Llancamil
sobreviveu. O padre Agustín nos disse isso. Depois de que capturaram
Llancamil, decidi abandonar o acampamento de Leuvucó, porque sabia
que, cedo ou tarde, viriam atrás de mim. Os tratados tinham sido quebrados
sem aviso. Muitos caíram assim, quando foram reclamar as rações:
Chancoleta, Chouquil, Leficurá, Huancamil. Muitos - disse, com tom e
olhar ausentes.

“Estão nos exterminando, - resmungou Nahueltruz -, como


uma praga de insetos”. Sempre tinha desconfiado dos acordos de paz;
tinham-lhe resultado humilhantes as rações e desonrosos os cargos
militares com salários miseráveis que lhes outorgava o Exército Argentino.
O rancor, entretanto, não o cegava até o ponto de não admitir que seu povo
tinha aderido com gosto a estes pactos, violados uma e outra vez por uma
ou outra das partes. A relação entre índios e cristãos tinha estado, em um
primeiro momento, viciada pela mesquinharia de uns e a ignorância e
teimosia de outros. Embora Agustín o pontuasse de pessimista, Nahueltruz
acreditava que a ruína era o lógico final. “Não consegue ver, - havia-lhe
dito Agustín em uma oportunidade -, que você é o vivo exemplo do que
poderia se fazer com os seus?”. Ele tinha respondido com sarcasmo:
“torná-los huincas? Eles jamais teriam consentido em semelhante traição”.

- E o que sabe de Guayquiner? - perguntou Nahueltruz,


referindo-se a seu meio-irmão, o segundo filho de seu pai.

- Você me perguntou pela sorte de todos seus irmãos -


comentou Epumer -, mas não o tinha feito pela dele. Nunca gostou dele -
apontou.

- Foi Guayqumer quem nunca me quis.

- Tinha ciúmes de você. - Nahueltruz não comentou a respeito


e Epumer prosseguiu - O certo é que seu irmão sabia que era o preferido de
Mariano e sofria por isso. Tinha ciúmes inclusive de minha mãe. Ficou
contente quando você partiu, e houve quem disse que Guayquiner fazia
pactos com o Hueza Huecubú através de alguma pucalcú80 poderosa para
que uma tragédia caísse sobre você. Mas Mariano não deu ouvidos e
nenhuma pucalcú foi levada ante o Conselho de los Loncos para saber o
que de verdade acontecia.

80
Feiticeira (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Fez-se um silêncio. Quando Epumer retomou, falou com
menos ímpeto, quase com tristeza.

- Guayquiner demonstrou pouca dignidade quando rechaçou o


posto que seu pai tinha deixado ao morrer.

- O que foi que dele? - insistiu Nahueltruz.

- Quão último soube foi que estava fugindo à frente de um


grupo de cem índios. Avistaram-no pela zona do Colorado. Acredito que
procurava aliar-se com Baigorrita e seu irmão, Lucho, para manter as tribos
unidas.

No momento de partir, Nahueltruz abraçou Epumer e reiterou


suas promessas. Este voltou a aplaudi-lo na bochecha enquanto expressava:

- Converteu-se em um homem importante, filho. Sua mãe


estaria orgulhosa de você. Seu pai também, que lhe amava tanto. Quero que
saiba que nem um só dia meu irmão Mariano mostrou irritação ou despeito
por sua partida, e que sempre lhe justificou quando os Loncos reprovavam-
no por tê-lo deixado fugir para tão longe.

Durante a viagem de volta, enquanto a corveta se afastava de


Martín García, Nahueltruz chegou a pensar que teria sido melhor que seu
tio se enfurecesse e terminasse por renegá-lo. “Ao menos, - pensou -,
deveria lutar com raiva e irritação e não com esta tristeza e esta culpa com
as quais não sei o que fazer”. Ansiava retornar para Laura e ao refúgio e à
distração que representava para ele.

Sentou-se sobre um barril e abriu a caixa de Mariano Rosas.


Passou os dedos por aqueles objetos tão diferentes e lhe ocorreu que seu pai
e sua mãe também os haviam tocado. Levou sua mão à frente para esconder
que chorava.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXVI.

O nobre inglês

Assim como nos dias em Martín García tinham transcorrido


lentamente para Nahueltruz, os de Laura em Buenos Aires tinham sido
vertiginosos e precipitados. Aos acertos para o casamento de Magdalena, se
somaram os necessários para atender lorde Leighton e a sua irmã, lady
Pelham, que chegaram um dia antes do previsto, no mesmo da partida de
Nahueltruz, pela tarde. Uma carruagem alugada, com dois pajens em libré
sujeitos à parte posterior, deteve-se frente à de La Santísima Trindad
provocando uma animação dentro do casarão, que ninguém possuía quando
saíram para receber os nobres ingleses.

Lorde Leighton voltou a causar admiração com seu porte de


cavalheiro e suas maneiras impecáveis. Lady Pelham, por sua vez, era
afável e desprovida dos melindres que se imputam às de sua classe, apesar
de suas joias e sua vestimenta deixarem claro que a amizade com a rainha
Vitória não era uma lenda. De imediato, depois das apresentações, lady
Pelham pediu a Laura que a chamasse por seu nome de batismo, Verity.

- Não tem sentido nenhuma formalidade entre nós, querida, já


que logo seremos irmãs - expressou, e Laura lhe sorriu, agradecida porque
lady Verity só falava inglês.

A criada de lady Pelham, a quem ela apresentou como “my


lady-in-waiting81”, e os pajens, que levavam a libré da casa de Newcastle,
ocuparam-se de baixar a bagagem e depositá-las nos quartos que lhes
indicou Maria Pancha, enquanto os Montes e seus recém-chegados se
acomodavam na sala para tomar um chá. Magdalena tinha-se informado
com uma amiga inglesa, Susan Miller, a respeito de como o serviam no
Império: o ponto exato da água, a proporção de folhas, a necessidade de
esquentar a bule previamente, o modo de incliná-la ao verter a infusão, o
famoso pingo de leite (que jamais devia ser fervido, mas cru), a quantidade
de torrões de açúcar, as geleias que mais gostavam e um sem-fim de
detalhes que só Magdalena e sua irmã Soledad atreveram-se a escutar e
respeitar.

O doutor Pereda se apresentou depois de iniciada a cerimônia


do chá, e Laura lhe deu as boas-vindas com sincera alegria, pois seu futuro

81
Dama de companhia da rainha, normalmente uma mulher nobre da alta sociedade (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


padrasto falava correntemente o inglês e manteve entretida lady Verity, um
pouco isolada pela barreira do idioma. Lorde Edward, ao contrário, tinha
melhorado consideravelmente seu castelhano nos dois últimos anos e
conversava com todos sem se amedrontar. Falou dos maravilhosos dias
passados no Rio de Janeiro e mencionou que, de volta, gostaria de passar
uma nova temporada naquela cidade, “se a senhora Riglos estiver de
acordo”, adicionou. Laura ficou incomodada.

Seus avós, sua mãe, inclusive tia Soledad, estavam tão à


vontade na companhia de lorde Leighton, pareciam tão orgulhosos de que
uma personalidade como ele quisesse aparentar com eles, que Laura sentiu
pena pela desilusão que lhes causaria. Certamente se tratava de um homem
atraente, seu estilo, mais que distinto era oposto ao de Nahueltruz e,
entretanto, não era menos viril nem estimulante. Tinha o cabelo e o bigode,
ambos de uma tonalidade indefinida entre o loiro e o castanho claro,
perfeitamente cortados e penteados. Sua camisa branca de popeline egípcia
aparecia sob a casaca cinza escura, que contrastava maravilhosamente com
a gravata de seda cinza pérola. Abotoaduras de ouro combinavam com o
alfinete preso no peitilho, enquanto a corrente do relógio pendurava-se do
pequeno bolso do colete. Tinha sapatos pretos de um couro polido como
Laura nunca tinha visto e que a princípio não lhe agradou. Sua colônia, ao
contrário, cativou-a.

Apesar dos detalhes demonstrarem a natureza exigente de


lorde Edward, ao conhecê-lo era difícil acreditar que desse importância aos
vaivens da moda. A maneira como falava, o estilo sereno que usava para
contemplar seu interlocutor e o carinho que prodigalizava a sua irmã
evidenciavam uma índole humilde e generosa. Desfazia-se em louvor para
agradar aos Montes e valorizar Laura. Seus olhos azuis a seguiam com
avidez e poucas vezes a perdiam de vista.

Essa noite jantaram na casa do doutor Pereda, que cometeu a


estupidez, em opinião da Laura, de convidar pessoas alheias ao círculo
familiar. Além da relação comercial que os unia, a ninguém passou
despercebido o trato preferencial que lorde Edward conferia à viúva de
Riglos e começou-se a especular sobre o objeto dessa segunda visita do
inglês, no momento em que completavam-se dois anos de luto. No dia
seguinte, no mercado da Recova Nueva, Maria Pancha se surpreendeu com
uma fileira de comentários sobre as motivações do lorde, que, para meia
cidade, já era neto da rainha Victoria. Entre uma e outra loja, em meio de
pregões e pechinchas, Maria Pancha suportou os interrogatórios encobertos
e tímidos das outras criadas até que as enxotou como galinhas.

Tradução Lauren Moon


Os cartões com convites choveram em La Santísima Trindad e
o salão de dona Ignacia nunca esteve tão concorrido. Lady Verity e lorde
Leighton se converteram na atração da cidade, e o interesse por sua
linhagem, suas riquezas e suas conexões com a coroa do Império Britânico
deslocaram aos temas políticos, os que, a cada instante, adquiriam um tom
mais escuro e belicoso. Todos os jornais, com exceção de La Aurora,
destinaram um espaço em suas colunas de sociais à visita dos aristocratas
ingleses. Os mais irreverentes, como El Mosquito e La Nación, atreveram-
se a mencionar um possível casamento entre lorde Leighton e a viúva de
Riglos, e especularam sobre o desconsolo do general Roca. Algumas das
senhoras que visitavam o salão de dona Ignacia, ansiosas por acomodar
suas filhas casadoiras, perguntavam-se se lorde Edward conhecia o passado
non sancto da viúva de Riglos, esse que a tinha por amante de um
selvagem, ou as intrigas que a associavam intimamente com o ministro da
Guerra e Marinha.

Ao final do segundo dia Laura decidiu que sua família, os


irmãos Leighton e ela passariam uns dias na quinta de San Isidro.
Necessitava de paz, tinha que afastar-se da anarquia e o delírio nos quais
tinha caído a sociedade de Buenos Aires, partiria para preservar lorde
Leighton, mas também para aplacar os ‘disse me disses’ que terminariam
por prejudicá-la. Além disso, não enfrentaria lorde Leighton em meio a
tanta agitação, ele merecia uma explicação que ela só poderia lhe dar se
pagasse distância e coragem. Maria Pancha permaneceria em La Santísima
Trindad, atenta à volta de Nahueltruz, que assim que soubesse de sua
chegada a Buenos Aires, enviaria uma palavra a San Isidro. Com a
desculpa de um assunto urgente, Laura deixaria lorde Leighton para trás e
sua família para reencontrar-se com ele. Não queria Nahueltruz e Leighton
na mesma cidade.

- Pretende partir para San Isidro nas vésperas do meu


casamento? - queixou-se Magdalena -. Ainda há tanto a fazer.

- Não há nada a ser feito - objetou Laura -, tudo está


preparado, nossos trajes, a cerimônia, a comida, tudo - insistiu -. Além
disso, Maria Pancha permanecerá em La Santísima Trindad para os últimos
detalhes. Viriam bem uns dias de descanso antes do seu casamento. Parece
muito intranquila. Suas olheiras delatam que não dorme. Não terá um rosto
bonito no dia mais importante. Você conhece o efeito que San Isidro exerce
sobre seu ânimo. Retornará completamente mudada, descansada e
tranquila. Se lhe parecer apropriado, pode pedir ao doutor Pereda que nos
acompanhe.

Tradução Lauren Moon


Dona Ignacia e Soledad também criticaram, relutantes depois
de terem convertido sua casa no salão mais concorrido e os Montes na
família mais invejada. A temporada prometia a pompa dos anos da
baronesa Pilarita. Mas, quando Laura ameaçou partindo para San Isidro,
levando consigo o motivo e centro de tanto animação, as mulheres
consentiram em segui-la.

A idéia de umas férias no campo agradou lorde Edward, que


em sua terra natal preferia o imóvel de Devon a seu estaleiro em Liverpool
ou à mundana Londres. Ele defendia que a natureza e os costumes simples
e relaxados propiciavam o bem-estar e a gentileza entre as pessoas.
Precisava cuidar de Laura, cortejá-la, seduzi-la e conquistá-la. Tinha
notado que ela estava esquiva, fugia-lhe o olhar e, em duas ocasiões, tinha
evitado ficar a sós com ele. No campo, encontraria o momento para falar
com ela e elevar novamente sua proposta. Ele mesmo procuraria sossegar.
Não atuaria precipitadamente como tantas vezes no passado.

Além dos anos corridos, ainda ressonavam em sua mente as


súplicas do velho lorde Leighton, quando insistiu para que ele abandonasse
a descabelada ideia de partir para a Crimea, para alistar-se em uma guerra
absurda e desnecessária; ele, acreditando-se imortal e dono da verdade,
desobedeceu a seu pai e se alistou no exército de Sua Majestade para
combater os russos. Edward jamais imaginou que algum dia veria as
vísceras de seu melhor amigo esparramadas no chão, ou que escutaria
gritos tão dilaceradores, ou que o aroma do sangue e da pólvora
produziriam enjoos, ou que a fumaça dos canhões o deixaria virtualmente
cego e sem fôlego em pleno campo de batalha. Sua idéia romântica de
guerra se deu estrondosamente de cara naquele dia de 54, durante a batalha
da Balaklava, em que ele poderia ter morrido, quando uma baioneta russa
se afundou em seu flanco.

Edward tampouco sabia por que se casou com Charlotte


Hamilton, condessa de Exeter. Possivelmente, depois dos horrores da
Crimea, atraíram-no seu acanhamento, seu recato e suavidade como
também suas fortes convicções religiosas que se opunham a todo tipo de
violência. Casaram-se poucos meses depois de se conhecerem e, ainda na
noite de núpcias, Edward soube que havia se equivocado. Embora ela,
pontualmente, tirasse o ferrolho de seu quarto, todas as quartas-feiras de
noite e permitisse que ele se esgueirasse em silêncio e às escuras para não
despertar a consciência de ninguém, Edward jamais tinha podido vê-la mais
além que seu umbigo. Helen tinha problemas, doía-lhe, incomodava-lhe,
molestava-lhe, assustava-a. A luz que permanecia apagada e a manta que os
cobria por completo conferiam ao ato a pecaminosidade que o gesto e os

Tradução Lauren Moon


olhos de sua esposa denunciavam sem gemidos nem ofegos. Edward
terminou percebendo que odiava as quartas-feiras. Uma noite mandou dizer
que estava gripado, outra teve uma reunião com a loja maçônica, outra
convidou para jantar Lorde Mayor, e não passou muito até que as desculpas
não foram necessárias. Ao completar quase onze anos de casamento, Helen
morreu depois de vários dias de padecimentos causados pela febre tifóide.

O desencanto com Helen o deixou taciturno e antagônico ao


casamento. Verity não desistia de lhe apresentar amigas e parentes de seu
marido na esperança de que alguma reavivasse seu desejo. Todas eram
bonitas e cultas, mas Edward suspeitava que atrás dessa aparência
irrepreensível se escondesse um ser retorcido e complicado que ele nunca
chegaria a entender. Não lamentava a falta de uma esposa.

Não a necessitava. Durante o dia se mantinha ocupado com


suas diversas atividades sociais e de negócios. O estaleiro em Liverpool
tinha sido um atinado investimento que requeria sua presença quase
constante, como também seu imóvel em Devon e seus interesses em
Londres. De noite, divertia-se na reunião de algum amigo ou na sala de seu
clube da Rua Saint James. Quanto às necessidades próprias de qualquer
homem jovem e saudável, ele as satisfazia com prostitutas nos bordéis do
Soho. Elas não perguntavam nem questionavam, não olhavam com espanto
ou se assustavam; tratava-se de mulheres livres e ousadas, voluptuosas e
apetecíveis, que passeavam nuas depois de copular, sempre ávidas de novas
práticas.

Existia um aspecto em Laura Escalante que lembrava as


prostitutas do Soho, e não se tratava de sua aparência, ao contrário, Laura
tinha o porte, as feições e os modos de uma inglesa de linhagem. O
atraente, na verdade, estava oculto em seu temperamento, que cada tanto
cintilava em seus olhos de azeviche. Laura Escalante o incitava de um
modo sutil e sofisticado, como espontâneo e desavergonhado era o das
mulheres do Soho. Seria possível que uma mulher fosse, ao mesmo tempo,
senhora à mesa e meretriz na cama?, que uma mulher reunisse a condição
de respeitável esposa, que pedia sua posição social e a de amante pela que
bramava sua natureza? Tinha tido que viajar milhares de milhas, cruzar um
oceano que o tinha humilhado dando-lhe volta noo estômago sem
consideração a sua ascendência, para descobrir essa sereia de compridos
cabelos loiros, pele de marfim e exóticos olhos negros, que tinha feito com
que ele voltasse a desejar uma companheira para sua vida.

Lady Verity encontrou a estância de San Isidro tão incomum


como encantadora, e assegurou que as construções espanholas, embora
menos elaboradas que as francesas ou as inglesas, possuíam uma
Tradução Lauren Moon
simplicidade em suas linhas que as tornavam adoráveis e pitorescas. Para
lady Verity, nada que se relacionasse com Laura ou sua família tinha
defeitos; ela encontrava tudo, sem exceção, digno de louvor, nem sequer a
condição de católica de Laura parecia desgostá-la e, quando soube que sua
futura cunhada escrevia folhetins e usava seu nome de solteira para assiná-
los, limitou-se a dizer, com um sorriso: “Very interesting82, very
interesting”. Esta predisposição de lady Pelham em admirar tudo que se
relacionasse a ela, fazia Laura ainda mais infeliz.

A primeira noite em San Isidro, enquanto lady Verity, ajudada


pelo doutor Pereda, ensinava os Montes a jogar whist83, Laura e lorde
Edward se retiraram para a biblioteca. Laura se aproximou do móvel com
pequenas gavetas para servir duas taças, mas lorde Leighton disse que ele o
faria. Laura assentiu com um sorriso e permaneceu a seu lado enquanto ele
as enchia. Alcançaram-nos as risadas da sala e se olharam com
cumplicidade.

- Parece que sua irmã está passando um grato momento -


comentou Laura, e sentou-se em um canapé.

- Minha irmã está feliz - manifestou lorde Leighton, enquanto


se acomodava na frente dela, em uma poltrona -. Sabe por quê? - Laura
negou com a cabeça -. Porque diz que você é a mulher mais bonita e
interessante que conheceu. Diz que nunca imaginou que teria uma irmã tão
maravilhosa.

Laura baixou o olhar e sorveu o brandy.

- Lorde Leighton - disse.

- Por favor, Laura, me chame Edward.

- Muito bem, Edward, me diga, como andam meus


investimentos nas minas de carvão e em seu estaleiro?

O dinheiro investido tinha crescido imensamente, e lorde


Leighton se esmerou em detalhar as circunstâncias que tinham propiciado
que tanto a construção de navios como o negócio de carvão tivessem sido
rentáveis nos últimos anos. Laura fazia pergunta e emitia opiniões, e lorde
Leighton se convenceu de que esta moça argentina tinha mais sentido
comum que alguns de seus associados.

82
Muito interessante (N. da Tradutora)
83
Jogo de cartas parecido com Bridget, ou Copas (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Edward - disse Laura -, tenho lido recentemente que as
condições de trabalho nas minas são cruéis, que os mineiros morrem muito
jovens devido às infecções pulmonares e à falta de descanso e boa
alimentação. Fiquei horrorizada com um comentário que assegura que, em
minas de acesso muito estreito, são meninos que trabalham lá. Eu não
poderia continuar investindo em suas minas, se esta for a realidade.

“Também por isso a amo tanto”, lorde Leighton disse para si


mesmo. Tinha pensado em Laura Riglos todos os dias durante esses dois
longos anos e nesse instante se dava conta de que não havia se equivocado
em pedir que fosse a nova lady Leighton.

- É certo - assegurou lorde Edward -, as condições em muitos


casos são deploráveis. Em nossas minas, entretanto, tomamos medidas que
tendem a melhorar consideravelmente. Não contratamos meninos, disso
pode você ficar tranquila. Embora deva lhe dizer que, não poucas ocasiões,
são os mesmos pais os que querem que seus filhos trabalhem. Enfim, a
fome e a miséria levam às pessoas a proceder com desespero.

- Sim, é certo - coincidiu Laura.

- Como lhe dizia - prosseguiu Leighton -, implementamos


medidas que, agrada-me dizer, são revolucionárias. Junto com um grande
amigo, dono de uma tecelagem à beira do rio Tweed, convoquei médicos e
engenheiros para analisar de que maneira poderíamos melhorar as
condições de vida de nossos trabalhadores. Os resultados até agora são
satisfatórios. A mortalidade caiu notavelmente nos últimos dois anos. Mas
a melhor prova de que em minhas minas e na tecelagem de meu amigo o
pagamento e as condições são superiores a qualquer outra da Inglaterra é a
longa fila de homens que, diariamente, nos pedem trabalho. Mas isso,
espero, você vai ver com seus próprios olhos.

- Os proprietários de outras minas, não trataram que imitá-los?


—perguntou Laura.

Lorde Leighton riu, e Laura não soube se o fazia porque ela


havia deliberadamente evitado sua última alusão ou pelo tenor da pergunta.
Dissimulou seu constrangimento. Levou sua taça aos lábios e manteve o
olhar fixo em lorde Edward.

- Imitar-nos? - repetiu Leighton -. Nada disso, Laura, nada


disso. Muito pelo contrário. Temos sérios problemas com nossos pares.
Chamam-nos de revolucionários e agitadores porque as melhoras chegam

Tradução Lauren Moon


aos ouvidos de seus mineiros, que começam a lhes exigir o mesmo para
suas minas.

- Onde está o problema? - impacientou-se Laura -. Acaso não é


conveniente que os mineiros estejam saudáveis e que trabalhem melhor e
mais contentes?

- As mudanças feitas tanto na tecelagem de meu amigo como


em minhas minas custam dinheiro, Laura, e nem todos estão dispostos a
baixar seus lucros.

- Oh, Por Deus Santo! Não lhes pede que deixem de lucrar, só
que baixem um pouco a rentabilidade pelo bem de seus empregados. Afinal
de contas, são os mineiros quem lhes permitem ganhar essas fortunas. Sem
essas pobres pessoas, quem se meteria nas minas para tirar o carvão? Eles?
Duvido-o. Arruinaria seus trajes e sapatos caros. Para que tanto dinheiro se
finalmente deixamos este mundo com o que estamos vestidos? - perguntou-
se.

Na ocasião em que a conheceu, lorde Leighton teve a


impressão de que Laura ainda padecia pela morte de seu marido. Mostrava-
se propensa à melancolia e à solidão, geralmente permanecia calada, como
que desapegada das coisas deste mundo. Ele, entretanto, tinha visto que por
baixo deste manto de aflição havia um temperamento apaixonado e audaz.
Seus julgamentos, seu modo de olhar, sua avidez por conhecer e aprender,
a maneira como conduzia sua casa e seus membros, a autoridade com a
qual se dirigia às pessoas, levaram-no a pensar que a viúva de Riglos, na
realidade, era diferente. Dois anos depois da morte de seu marido tinham
operado maravilhosamente seu temperamento. De repente sua verdadeira
natureza, essa que o atraía tanto, começava a aparecer.

- Temem - explicou Leighton - que, uma vez outorgados certos


benefícios, as reclamações não tenham fim.

- Mas os mineiros morrem e são infelizes - se entristeceu


Laura -. Não se dão contam de que se pressionarem, e pressionam, essas
pessoas, algum dia explorarão? Quem deseja uma nova revolução francesa?
As revoluções são sempre sangrentas e injustas. A ira do oprimido é para se
temer.

A impotência não a zangava, mas a deprimia. Lorde Leighton


deixou a poltrona e se sentou junto de Laura, em outro canapé. Tomou sua
mão e a beijou.

Tradução Lauren Moon


- Laura, Laura, por favor, não fique triste. Não viemos até aqui
para nos entristecer, mas para estarmos felizes. O certo é que somos pouca
coisa para solucionar os problemas de todas as pessoas. Este é um mundo
injusto, Laura, sempre o foi, sempre o será. Fique tranquila em saber que as
minas nas quais você investe tratam humanamente seus mineiros e que eles
são mais felizes que outros pobres desventurados.

- Sim, sim - sussurrou Laura, e soltou a mão de lorde Leighton


-. Edward - disse, passado um silêncio -, quero falar com você. Preciso ser
sincera com você. Quero lhe contar a verdade.

- Sei tudo - expressou, a voz de repente endurecida -. Mas lhe


asseguro que para mim nada mudou. Sejam infâmias ou verdade, eu a amo
profundamente e nada alterará esse sentimento. Minha proposta segue de
pé. Ainda quero que seja minha esposa.

Olhou-a com tal intensidade e demanda que Laura pigarreou.

- O que é o que você sabe, Edward? - atinou a perguntar.

Leighton tirou um sobre do bolso de sua jaqueta e o entregou.

- Leia-o - insistiu. Tratava-se de um bilhete anônimo no qual


se detalhavam os namoricos de Laura com “um selvagem desnaturado” dos
pampas, seis anos atrás e os mais recentes com o ministro da Guerra e
Marinha, o general Julio Roca, “um homem casado e com filhos”.

Tia Dolores nem sequer cuidou em dissimular a caligrafia.

- Recebi-o esta manhã - explicou lorde Leighton -, antes de


partir para cá. Veio na bandeja junto ao café da manhã. Preferi não lhe dar
importância e tomá-lo como uma calúnia, como a covardia que é. Agora,
entretanto, quando você disse que queria justificar-se comigo, imaginei que
o conteúdo da nota podia ser certo.

- Efetivamente, tudo o que diz esta nota é certo, Edward, à


exceção de uma coisa: não se tratava de um selvagem desnaturado, mas sim
de um ranquel, um nativo do sul de nosso país, que de selvagem
desnaturado não tinha absolutamente nada. Ele era um homem culto e
nobre, de coração muito humano, filho de um grande cacique e de uma
magnífica mulher. Amei-o com loucura, como jamais amei alguém. Amo-o
ainda com a mesma intensidade de seis anos atrás.

Tradução Lauren Moon


Lorde Leighton se levantou subitamente, como que afugentado
pelas palavras de Laura, e lhe deu as costas para ocultar a dor que lhe
provocavam. Sempre havia suspeitado que detrás de sua melancolia se
escondesse um amor contrariado. Acreditou que se tratava de seu falecido
marido, que com o tempo chegaria a esquecer. Nesse momento, entretanto,
podia ver nos olhos de Laura que jamais esqueceria esse selvagem
desnaturado. Não imaginou que uma confissão dessa índole o machucaria
tão profundamente. Mas não importava, ele ainda a queria, parecia-lhe que
já não podia viver sem ela.

- Agradeço-lhe que tenha sido sincera comigo - expressou -.


Isso me mostra sua valentia. Não obstante, nada do que diga esse bilhete
anônimo, verdadeiro ou falso, há movido um ápice de minha decisão.
Quero me casar com você. Eu a amo, Laura - disse, e voltou a sentar-se
junto dela -. Eu a amo como você ama esse nativo do sul. Não me importa
se você neste momento você não me queira. Serei paciente, nunca exigirei
de você aquilo que não esteja disposta a me dar. Iremos lentamente,
primeiro nos conheceremos, seremos amigos. Estou certo de que o amor
chegará com o tempo. Estou certo.

No ímpeto, lorde Leighton tinha começado a falar em inglês e


Laura o entendia pela metade. De qualquer maneira, sabia que estava se
declarando a ela sem condições nem exigências, sem recriminações nem
julgamentos. “Que distinto seria se esse bilhete anônimo tivesse caído em
mãos de Nahueltruz! Que diferente teria sido sua reação!”, se lamentou. A
desconfiança e o ressentimento teriam aflorado e prevalecido. Teria sido o
fim. Mas Laura disse a si mesma: “Por isso sei que amo tanto Nahueltruz,
porque o amo apesar de seus defeitos”.

- Lorde Leighton - disse, sem reparar em que tinha caído


novamente no formalismo de tratá-lo por seu título nobiliário -, não posso
me casar com você. Não posso.

- Laura! - suplicou o inglês - Não me diga isso, por favor.

- Lorde Leighton, preciso que escute atentamente o que vou


lhe contar. Saiba que esta história, minha história, só a revelei a três
pessoas, tão íntima e importante que é para mim. Entretanto, quero que
você a escute como uma explicação, para que consiga me compreender e
perdoar. Sem dúvida, posso contar com sua discrição.

- O que me confessar neste dia seguirá comigo à tumba.

Tradução Lauren Moon


Levou muito tempo para Laura detalhar os vaivens de sua vida
desde o ano de 73. Já não chegavam as risadas dos outros que jogavam
whist, e a paz e o silêncio denotavam que tinham ido dormir. Leighton
escutava com atitude concentrada e em contadas ocasiões a interrompeu
com alguma pergunta. Mas a deixava falar naturalmente. Laura se manteve
constante ao longo de seu relato e nem sequer se saltou as partes mais
tristes. De qualquer maneira, para Leighton ficou fácil entrever que as
feridas ainda não estavam cicatrizadas, que havia muita dor dentro dela,
que essa dor a desconcertava e a aturdia, às vezes.

- Edward, depositei a vida do homem que amo e a minhas em


suas mãos ao lhe revelar que Lorenzo Rosas e Nahueltruz Guor são a
mesma pessoa.

- Não duvido de que a morte do coronel Racedo tenha sido


justa - assegurou Leighton -. Guor fez o que qualquer homem de bem teria
feito em sua posição: defender o honra e a vida da mulher que ama.
Qualquer tribunal o teria absolvido.

- Não aqui, Edward. Os índios são pouco menos que animais.


Aqui teria sido executado sem julgamento. Acredito que por isso o general
Roca não o delatou, porque sabe que Nahueltruz só pode esperar iniquidade
da Justiça argentina.

- Compreendo.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXVII.

A malícia

Nahueltruz chegou ao porto de Buenos Aires no começo da


noite. Alugou um carro de praça e o fez parar na frente de La Santísima
Trindad. O casarão estava às escuras e apresentava um aspecto desolador
que o acovardou. Temia que dormissem. Já era muito impróprio apresentar-
se fora do horário de visitas ou sem convite para estremecer à família com
suas batidas.

Partiu inquieto para sua casa na Rua de Cuyo. Precisava de


Laura nesse instante. Começou a experimentar uma imperiosa necessidade
de seu corpo, queria despi-la, admirá-la, fazer amor com ela. Só nela
refugiaria sua alma aflita. Mas deveria conformar-se com sua família.
Tomar um banho, comer um prato preparado por Lucero e descansar sobre
um colchão pareceram-lhe bons paliativos. Em Martín García tinha
dormido sobre um colchão de palha cheio de protuberâncias, que se
cravavam em suas costas, e comido de forma inadequada. Estava exausto e
tinha o estômago fragilizado. “E pensar, - disse para si mesmo -, que eu
estava acostumado a dormir no chão, comer carne de égua e beber sangue
morno”. Às vezes tinha a impressão de que jamais tinha sido índio.

No dia seguinte se levantou as seis, tomou o café da manhã


com sua família e, entre mate e mais mate, teve que responder a uma
ladainha de perguntas. Mariana o escutava sem olhá-lo e, cada tanto,
escorria-lhe uma lágrima.

- Cucu - disse Nahueltruz, e pegou na mão dela -, prometo-lhe


que conseguirei liberar meu tio Epumer.

Antes de sair, encomendou a dona Carmen entregar dois


bilhetes, um em La Santísima Trindad e outro na casa da senhora Carolina
Beaumont. Perto das dez, partiu para a loja de artigos de luxo e comprou
uma caixa de charutos. Então, dirigiu-se à casa do senador Cambaceres.

- Alegra-me encontrá-lo em sua casa, senador - manifestou


Nahueltruz -. Vim lhe agradecer a permissão que me concedeu. Ontem à
noite retornei de Martín García. Tome - disse, e entregou a caixa com
genuínos de Havana -, esta é uma pequena amostra do agradecido que o
padre Agustín tem com você.

Tradução Lauren Moon


- Vá! - surpreendeu-se Cambaceres, enquanto abria a caixa e
cheirava os charutos -. Da melhor qualidade - expressou -. Obrigado, muito
obrigado, Rosas. Entre, por favor, e sente-se. Que deseja Beber? - Rosas
desprezou o oferecimento com uma sacudida de mão -. Espero que traga
boas notícias para seu amigo, o padre Escalante. Embora, na verdade, não é
para mim a quem deva agradecer o salvo-conduto, mas ao general Roca.
Ele foi quem o emitiu sem nenhum pedido de minha parte.

- Roca? - Nahueltruz estranhou, e um sentimento incômodo


ofuscou sua alegria.

- Pois sim, o próprio general Roca. Tempo atrás, convocou-me


em seu escritório e me disse que, como tinha se informado do desejo do
padre Escalante de visitar seu amigo, o cacique Epumer, ele mesmo se
encarregaria de emitir a documentação necessária para atender ao pedido.
Estranhei sinceramente. Roca não é um homem reconhecido por seus atos
benevolentes ou generosos.

- Não entendo - insistiu Guor.

- Bom, bom - disse Cambaceres, e se reclinou em atitude


confidente -. Eu acredito que, na verdade, quem está atrás disto é a irmã de
Escalante, a viúva de Riglos. Você possivelmente não saiba por que não é
de Buenos Aires, mas dizem que ela e Roca... Enfim, você me entende.

- Não, não entendo.

- Eu mesmo topei com isso dias atrás no escritório do general,


e o secretário me disse que tinha estado ali em outra oportunidade. Depois
de sua visita, daquela primeira visita - explicou Cambaceres -, o secretário
recebeu imediatamente a ordem de me convocar para falar sobre este
assunto da permissão. Eu não acredito em coincidências.

- O fato de a senhora Riglos ter pedido ajuda ao general -


raciocinou Guor - e de que o general a tenha concedido não é motivo
suficiente para supor que entre eles exista algo mais que uma amizade.

- É obvio que não - se apressou a dizer Cambaceres -. É obvio


que não - reiterou -. São só especulações e falatórios. Mas me atrevo a
dizer que essa mulher tem uma grande influência sobre ele.

Nahueltruz fez o caminho de volta de péssimo humor, que não


melhorou quando dona Carmen lhe explicou que tinha deixado o bilhete
nas mãos de Maria Pancha, porque Laura e sua família tinham saído da

Tradução Lauren Moon


cidade. Quanto aos Beaumont, Armand escreveu na mesma nota um
convite para almoçar naquele dia na casa da senhora Carolina. Nesse estado
de ânimo, Nahueltruz não tinha desejos de encontrar-se com ninguém, mas
a possibilidade de averiguar a respeito da Laura o fez trocar-se e sair. Dona
Carolina o recebeu com sua habitual doçura, e o fez sentir à vontade.
Armand e Saulina se mostraram carinhosos e interessados em sua viagem.
Em seguida apareceram as irmãs Montes, Iluminada, María del Pilar e
Eugenia Victoria, junto a sua mãe, a senhora Celina, a sua tia, a exilada, a
senhora Dolores Montes, e a sua cunhada, Esmeralda Balbastro.

- Ah, que agradável surpresa, senhor Rosas! - exclamou


Eugenia Victoria -. Quando retornou você de viagem?

- Ontem à noite, senhora, muito tarde.

- Espero que seus negócios tenham ido bem.

- Muito bem, obrigado.

- Já teve oportunidade de ver o senhor Tejeda? - interessou-se


Eugenia Victoria.

- Sim, esta manhã antes de sair para trabalhar.

- O senhor Tejeda jantará conosco esta noite - anunciou


Eugenia Victoria -. Por que não nos acompanha você também?

- Agradeço imensamente seu convite, senhora Lynch, mas


tenho um compromisso. Como se encontra seu marido?

- Muito bem, obrigado.

- E a senhorita Pura?

- Ela está fazendo grandes progressos com seu francês.

- E os meninos?

- Em excelente saúde, graças a Deus.

Fez-se um silêncio no qual Guor se debateu entre perguntar


por Laura ou dominar sua ansiedade. A anfitriã o pegou pelo braço e
anunciou que a comida estava servida. O almoço transcorreu sem
contratempos. Durante a sobremesa, Dolores Montes perguntou a tia

Tradução Lauren Moon


Carolita se sabia quando sua família e os Leighton retornariam de San
Isidro.

- Os Leighton? - repetiu Guor, sem perceber sua imprudência.

- Os Leighton - explicou tia Carolita -, os irmãos Leighton -


esclareceu -, lorde Edward e lady Verity, amigos de minha sobrinha Laura.
Acabam de chegar da Inglaterra.

Nahueltruz procurou esmeralda com o olhar e a notou


perturbada.

- Como o senhor Rosas esteve fora da cidade durante os


últimos dias - falou Dolores Montes -, possivelmente não conhece a grande
notícia que surpreendeu a todas as nossas amizades.

- Tia - atravessou Esmeralda -, por favor, ainda não se


confirmou...

- Oh, mas sim que se confirmou - interpôs Dolores -, todos já


sabem e é uma excelente noticia. Eu gosto de compartilhá-la com os
amigos da família.

- Senhor Rosas - disse Eugenia Victoria -, meu marido


comentava hoje que...

- Sabia você, senhor Rosas - interrompeu Dolores -, que minha


sobrinha Laura vai se casar com lorde Leighton, um nobre inglês, e que se
converterá em lady Leighton? Ele chegou dias atrás da Inglaterra para levá-
la. É um homem muito rico, um lorde - disse, enfatizando na palavra
“lorde” -, aparentado com a casa real...

Nahueltruz não escutou o resto. Um estupor profundo e


entristecedor se apoderou dele e deteve seu coração pelo que pareceu um
instante eterno. Levantou-se quando todos o fizeram e caminhou para sala
atrás de Armand. Desculpou-se com a senhora Carolina e partiu sem
compartilhar o café. Nunca soube se, se despediu do resto das senhoras ou
se partiu deixando-as boquiabertas. Um estremecimento o devolveu à razão
ao receber os insultos de um carreteiro, por cruzar a rua como um bêbado.
Olhou por volta de um e outro lado, desorientado, perdido. Não sabia o que
fazer, aonde ir. Caminhou sem rumo, meio cego pelas lágrimas.

~0~

Tradução Lauren Moon


Ao entardecer, Esmeralda Balbastro bateu à porta de La
Santísima Trindad. A casa parecia vazia, não havia luz no interior e
tampouco se escutavam os timbres do piano que Soledad costumava tocar a
essa hora. Era evidente que a família e seus convidados ingleses não tinham
retornado de San Isidro. A ponto de dar a volta e subir em seu carro,
Esmeralda escutou o som do ferrolho. Maria Pancha se surpreendeu ao vê-
la.

- Senhora Esmeralda! - exclamou -. Passe, por favor.


Desculpe se a tenho feito esperar, mas estava na outra ponta da casa. Estou
sozinha - explicou -, acreditei que os outros a atendesse.

- Sim, sim, claro - replicou Esmeralda, e Maria Pancha a notou


inusualmente nervosa.

- A família ainda não retornou de San Isidro. Precisa de


alguma coisa, senhora?

- Maria Pancha - disse Esmeralda, e certa solenidade em seu


tom alertou à negra- , podemos falar francamente?

- Pois sim, senhora, claro. Entre, por favor. Sente-se, por favor.
Maria Pancha permaneceu em pé, e Esmeralda pediu que se acomodasse a
seu lado.

- Não, senhora - respondeu a criada -. Jamais tomaria assento


na sala dos senhores.

- Está bem, como quiser. Vim logo que pude. Urgia falar com
Laura, mas o farei com você, porque estou certa de que está a par de seus
assuntos. - Maria Pancha assentiu com um movimento imperceptível de
cabeça -. Eu conheço - prosseguiu Esmeralda mais pausadamente - a
relação que une o senhor Rosas a Laura. Sei que são amantes - esclareceu,
mas Maria Pancha seguiu olhando-a, imperturbável -. Conheço também
que o foram no passado, durante o tempo em que Laura esteve em Rio
Cuarto cuidando do padre Agustín. Sei que Lorenzo Rosas é aquele
selvagem o qual Laura nunca pôde esquecer.

- Nunca - ratificou Maria Pancha -. Ela o amou sempre e vai


amá-lo até o dia que morrer. Teimosa assim é minha menina.

- E o que tem com lorde Leighton? É certo que vão casar se?

- Não, não vão se casar - assegurou Maria Pancha.

Tradução Lauren Moon


- Pois Dolores Montes disse hoje ao senhor Rosas que sua
sobrinha Laura e lorde Leighton vão se casar.

- Maldita Dolores - resmungou Maria Pancha -. Maldita


mulher.

- Fez isso com tanta malícia - explicou Esmeralda - que tive a


impressão de que ela também está a par do que existe entre Laura e o
senhor Rosas.

- É obvio que sabe! Fez isso de propósito. Fez para se vingar.


Fez para machucar minha menina onde mais lhe dói. - Maria Pancha
levantou a vista e olhou fixamente para Esmeralda antes de expressar -: E
se conheço o senhor Rosas, imagino que sua reação foi desproporcionada.

- Algo mais aconteceu que o pôs como louco, Maria Pancha. O


senador Cambaceres lhe disse que foi Laura quem pediu ao general Roca
que emitisse o salvo-conduto para ingressar em Martín García.

- Santo Deus!

- Temos que avisar a Laura imediatamente - urgiu Esmeralda -.


Ela tem que voltar a Buenos Aires. O senhor Rosas fala em retornar a Paris.
Tentei dissuadi-lo, de lhe dizer que só são só rumores, mas não consegui
fazê-lo encontrar a razão. A ira o consome, o rancor o torna cego. Em um
instante, Laura se tornou seu inimigo. Não a nomeia, chama-a “ela”, como
se mencioná-la lhe pesasse. Por vezes, sua fúria me dá medo, Maria
Pancha.

- A mim não - assegurou a criada, enquanto tirava seu avental -


. Chegou a hora, senhora Esmeralda, de falar a verdade. Esse índio,
concordando ou não, vai ter que me escutar. Eusebio! Eusebio! - gritou,
mas não obteve resposta, e em seguida se lembrou de que tinha-lhe dado o
dia livre.

- Vamos, Maria Pancha, troque-se. Levarei você em meu


carro.

- Não teria esperado menos de você, senhora. Uma Balbastro


de pura linha - rematou a negra.

~0~

Tradução Lauren Moon


Depois de deixar os Beaumont, Nahueltruz Guor caminhou
pela Rua Florida até chegar à Plaza de Marte, um lugar solitário e
pantanoso no extremo norte da cidade, que haviam renomeado “San
Martín” no ano anterior. Apesar do longo trajeto, não experimentava
cansaço nem sede nem fome; entorpeceu-se, caminhava sem sentir as
pernas, via sem olhar, ouvia sem escutar, respirava sem perceber os
aromas, recordava sem pensar. Seu corpo se separou dele fazendo-o perder
contato com aquilo que o rodeava. Seu padecimento não era físico, mas a
angústia doía-lhe no peito.

Pouco a pouco os pensamentos afloraram com mais claridade,


e sua mente repassou os eventos um a um, procurando uma justificativa que
o redimisse da tortura. Lembrou-se da inimizade entre Dolores Montes e
Laura, e se agarrou à possibilidade de que se tratasse de uma calúnia. Mas
não podia desfazer-se das expressões aflitas de Eugenia Victoria e de
Esmeralda, que tinham tentado sossegar Dolores, mas jamais desmenti-la.

- Por que não gritaram: “É mentira, é mentira!”? - exclamou, e


sua voz pareceu elevar-se e propagar-se na quietude do lugar -. Por quê?
Por quê, Laura? Por quê?

Um lorde inglês. Um nobre aparentado com a casa da


Inglaterra. Um homem muito rico que vinha para levá-la. Quando acreditou
que por fim a tinha, Laura voltava a escorregar de suas mãos, dava um
salto, subia mais alto; o tropeço que lhe dava era cada vez mais difícil de
saltar. Laura era inalcançável, superior. Laura era uma estúpida obsessão.
Mas também era sua vida, sua paixão, sua força.

Pensava mal dela e um instante mais tarde a justificava.


Algumas circunstâncias a acusavam, outras a exoneravam. Estava
tornando-se louco de tanto elucubrar. Não podia condená-la sem escutar
sua versão. Desejava acreditar nela, seu coração estava predisposto, não
suportaria separar-se dela. Um lorde inglês, tornou a pensar, um nobre
aparentado com a casa da Inglaterra, um homem muito rico. Como ele
podia enfrentar alguém assim?

Esmeralda Balbastro o aguardava em sua casa. Ele estava


cansado, sentia-se sujo e desalinhado. Pediu-lhe que partisse, mas
Esmeralda teimou em dizer que ia lhe falar. Guor lhe lançou um olhar
malévolo, descarregando nela sua fúria e, embora soubesse que atuava
injustamente, não tinha intenção de se controlar. Podia matar um inocente
nesse instante e não iria experimentar remorsos. Serviu-se de uma taça e se
jogou na poltrona do escritório.

Tradução Lauren Moon


- Só quero que responda uma pergunta e que depois vá
embora - disse, e virou os olhos -. É verdade que ela está comprometida em
casamento com esse lorde inglês?

- Acreditam que sim - disse Esmeralda, e Guor estrelou a taça


contra a parede -. Por favor, Lorenzo! Não atue como um... - Esmeralda se
deteve e ele completou:

- Como um selvagem? - enquanto se servia de mais um brandy


-. É isso o que sou, Esmeralda! Um selvagem. Um imundo selvagem.

Esmeralda correu para ele e tomou o rosto entre as mãos.

- Querido - lhe suplicou -, por favor, querido meu, não se


machuque, não se faça mal. É um grande homem, que diabos importa sua
origem se hoje é o que é? - Nahueltruz afastou o rosto bruscamente.

- Ora! - irritou-se -. Para ela sempre serei um índio.

- É injusto com Laura - atravessou Esmeralda, mas quando


Nahueltruz levantou a mão em sinal de ameaça, decidiu não continuar
defendendo-a.

Ficaram em silêncio; Nahueltruz fixava a vista no conteúdo de


sua taça sem piscar; Esmeralda o olhava em crescente alarme.

- Laura não tinha comentado a respeito de lorde Leighton? -


animou-se a perguntar, e Nahueltruz negou com a cabeça.

- O que sabe dele?

- Não muito - admitiu Esmeralda -. Sabe-se que é o agente de


negócios de Laura na Inglaterra e que seu pai era amigo íntimo do general
Escalante. Alguns dizem que eram membros de uma importante loja
maçônica. Esteve em Buenos Aires faz mais de dois anos, assim que
faleceu o doutor Riglos. Especulou-se muito naquela oportunidade, como
sempre quando corresponde à viúva de Riglos, mas lorde Leighton retornou
sozinho para Inglaterra e as fofocas sossegaram prontamente. Agora que
retornou, justo ao completar dois anos de luto, as pessoas falam.

- É certo que estão em San Isidro?

- Sim, é certo. Eugenia Victoria comentou que Laura tomou


essa decisão para afastar os Leighton dos portenhos, porque estava ficando
insuportável. Já sabe, Lorenzo, todos quisemos romper as correntes que nos
Tradução Lauren Moon
atavam à monarquia de Espanha, no ano de 10 e aderimos às máximas da
Revolução na França, mas quando nos dizem que estamos na presença de
um nobre europeu, que para piorar está de algum modo aparentado com a
coroa de seu país, dá-nos uma vertigem de emoção.

- Então - disse Guor -, foi da cidade para protegê-lo, para


preservá-lo da incômoda gentinha. Sua abnegação pelo bem-estar de seu
futuro marido é admirável.

- Lorenzo, por favor, ninguém sabe com certeza se estão


comprometidos. É um mistério.

- Vamos, Esmeralda! - prorrompeu Nahueltruz, e ficou em pé


para servir um brandy outra vez -. Sua tia Dolores admitiu, por que teria
que ser mentira?

- Porque Dolores odeia a sua sobrinha - raciocinou Esmeralda.

- E que mal faz comentando a respeito de um compromisso tão


favorável?

- Não sei, não sei. Possivelmente Dolores suspeite que entre


Laura e você exista um romance e quis machucar você. Ao machucar você,
machuca a ela. Semeando joio entre vocês, prejudica a ela também. Não se
dá conta, Lorenzo? Não vê?

- Seu raciocínio é impecável, exceto por uma hipótese errônea,


que faz com que se desmorone. Dolores Montes não sabe nada a nosso
respeito. Só você, Eugenia Victoria e Maria Pancha sabem. Nem sequer
confessei abertamente com Blasco.

Guor se deixou cair na cadeira e bebeu de um gole.

- Muitas mentiras, muitas - disse, muito abatido.

- Laura ama você, Lorenzo.

- Possivelmente, mas isso não é suficiente. Não confio nela,


Esmeralda. Fala comigo e penso: “Está me dizendo a verdade?” Como
posso mantê-la a meu lado se não confio nela? Desde o primeiro momento,
desde o dia em que a conheci em Rio Cuarto, desconfiei de sua natureza.

- Por que seguiu adiante com o romance, então?

Tradução Lauren Moon


- Ah. Porque estava tão cheia de fogo, era tão imprudente e
obstinadamente valente. Excitava-me tanto e ao mesmo tempo me
inspirava ternura porque era uma menina sob todas essas pretensões. Era
diferente das mulheres que tinha conhecido. Fui seu primeiro homem,
Esmeralda. Ninguém a havia tocado antes de mim. Fascinou-me, me
zangou, tornou-me louco. Amei-a com desespero desde o momento em que
pus os olhos sobre ela. Foi como uma espécie de enfermidade. É ainda
hoje.

Depois desse discurso, ambos permaneceram calados,


Nahueltruz repassando algumas cenas dos dias em Rio Cuarto, e Esmeralda
contemplando-o com estranheza porque parecia que, por momentos, seus
lábios se enviesavam em um pálido sorriso.

- Sabia que foi ela quem conseguiu a permissão para entrar em


Martín García?

- Não o conseguiu o senador Cambaceres? - estranhou


Esmeralda.

- Roca assinou o salvo-conduto porque ela o pediu.

- Como soube?

- O próprio Cambaceres me disse isso.

- Já sei o que está pensando, Lorenzo, mas deve ter em conta


que não precisa ser a amante de alguém para conseguir um salvo-conduto.

Nahueltruz estava exausto e bastante largado às taças. Não


desejava continuar falando, queria sumir-se na embriaguez de sua dor e,
com a garrafa na mão, esperar que o álcool fizesse efeito.

- Deixe-me sozinho, Esmeralda.

- O que vai fazer agora, Lorenzo? Tem que falar com Laura,
ela terá uma explicação.

- Não tem sentido, não vou acreditar nela.

- O que vai fazer, então?

- Não sei, não quero pensar, não me incomode. Voltarei para


Paris, possivelmente, junto de Geneviéve. Ela jamais me trairia.

Tradução Lauren Moon


- Mas você não ama Geneviéve, você ama Laura. Ela é sua
vida, Lorenzo! Não seja néscio.

Nahueltruz ficou em pé tão bruscamente que Esmeralda se


moveu para trás com um sobressalto.

- Deixe-me em paz, Esmeralda! Não quero que volte a


mencionar seu nome na minha frente! Ela não é minha vida, mas minha
morte. Deixe-me sozinho! Sozinho!

Caiu vencido na cadeira, agarrou sua cabeça com as mãos e


apoiou os cotovelos na escrivaninha.

- Por favor - repetiu, de bom modo -, me deixe sozinho, por


favor.

Esmeralda deixou a casa de Nahueltruz e, antes de subir em


seu Landau, já havia tomado a decisão de visitar La Santísima Trindad para
deixar Laura avisada da tormenta que irremediavelmente viria. Foi nesse
momento que topou com Maria Pancha e, sem rodeios, expôs-lhe os fatos
que provocaram na criada o impulso de encarar o homem que tinha poder
absoluto sobre o destino de sua menina. Subiram no Landau de Esmeralda,
que aguardou em silêncio uma indicação de Maria Pancha para dar a ordem
ao chofer.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXVIII.

Coração de pedra

Esmeralda surpreendeu-se quando Maria Pancha lhe disse que,


antes de ver Lorenzo Rosas, iriam ao longínquo bairro de San José de
Flores. Embora começasse a escurecer, Esmeralda não se atreveu a
contrariá-la. Durante o trajeto, Maria Pancha se perdeu em suas reflexões e
não falou sequer uma vez. Fez deter o carro em frente ao paiol de pólvora e
entrou em um chalé de boa aparência. Ao final, retornou na companhia de
uma moça, de tez mais escura e rasgos nativos, embora bem vestida, a
quem não se incomodou em apresentar. Esmeralda inclinou a cabeça em
sinal de saudação e a mulher fez o mesmo. Maria Pancha também guardou
silêncio durante a viagem à Rua de Cuyo, mas, quando o carro se deteve
em frente à casa de Rosas, voltou-se para a mulher jovem e lhe disse:

- Loretana, me espere aqui, junto à senhora Esmeralda. Eu lhe


chamarei quando for necessário - e desceu do carro.

Dona Carmen lhe disse que o senhor Rosas estava indisposto e


que não receberia essa noite. Maria Pancha terminou de entrar no vestíbulo
e repetiu que queria vê-lo.

- A menos que você me diga que o senhor Rosas acaba de


morrer, falarei com ele neste mesmo momento.

Dona Carmen fez o sinal da cruz repetidas vezes e desapareceu


depressa. Pouco depois pediu que a acompanhasse ao escritório. Aí o
encontrou Maria Pancha, aboletado em uma poltrona. Tinha uma taça cheia
na mão e a garrafa estava vazia.

- Traga café - ordenou a dona Carmen.

- Você não dá ordens em minha casa! - vociferou Nahueltruz


com dificuldade.

- Traga café que mandei!

Dona Carmen obedeceu. Maria Pancha se aproximou do móvel


com pequenas gavetas onde estavam as bebidas, pegou uma jarra de vidro e
jogou a água na cara de Nahueltruz, que tossiu e cuspiu entre maldições.

Tradução Lauren Moon


- Agora vá - indicou a negra - se arrume, que está falando com
a mulher que foi como uma irmã de sua mãe.

Nahueltruz, esparramado e empapado na poltrona, olhava-a


com olhos arregalados.

- Vamos - apressou -, que tenho muito para lhe dizer. Acredite-


me, senhor Guor, você vai querer me escutar.

Levantou-se da poltrona e, cambaleando, abandonou o


escritório. Retornou dona Carmen com o café e a seguir apareceu
Nahueltruz, que tinha-se penteado e trocado a camisa, inclusive cheirava a
lavanda.

- Beba isso - disse a negra, e lhe estendeu a xícara -. Beba -


insistiu, ante a reserva de Guor. A dona Carmen ordenou -: Fora, e que
ninguém nos incomode.

Nahueltruz sorvia o café sem tirar a vista de Maria Pancha,


entre zangado e agradecido. Gostava de Maria Pancha, sempre tinha
gostado, agradava-lhe que falasse de sua mãe; por alguma estranha razão,
respeitava-a e admirava, e teria desejado granjear-se seu carinho. O café lhe
sentou bem, e trocar-se e se limpar haviam devolvido, em parte, a
compostura. Assinalou a Maria Pancha uma cadeira, mas a mulher se
negou. Ela disse ao contrário:

- Você se senta, porque levará um momento. Eu, o que tenho


que dizer, direi em pé.

—Não sei se quero escutar o que veio me dizer. Não quero


falar dela. Para mim...

Maria Pancha indicou que se calasse. Nahueltruz suspirou


profundamente e se sentou.

- Eu digo sempre, senhor Guor, que o diabo sabe mais por ser
velho que por ser diabo. E eu sou velha e vivi e vi muito. Você tem que
saber, porque certamente sua mãe deve ter-lhe contado sobre mim, que ela
e eu fomos como carne e unha. Como lhe digo, passei por muito, conheci
toda classe de gente, lutei com a maldade, mas também com a bondade. Por
isso tenho autoridade para lhe dizer que em meus muitos anos, jamais fui
testemunha de um amor tão grande como o que minha menina Laura sente
por você. De você, eu não gosto, senhor Guor, isso é algo que não deve
surpreendê-lo, porque não sou mulher que costuma disfarçar o que sente e

Tradução Lauren Moon


pensa. Você é o filho daquele diabo que foi Mariano Rosas, que me tirou a
metade do coração no dia em que cativou Blanca. Mas, apesar disso, aqui
me tem, baixando a crista, porque minha menina Laura vai morrer quando
souber que você duvida de sua lealdade. Porque saiba que de amor também
se morre, que foi o que matou sua mãe. Quem vai saber por que desígnio
divino amou tanto a esse demônio que era seu pai! E você, que leva no
sangue o orgulho, a vingança e o ódio dos ranqueles, vai terminar por
matar a minha Laura, se não deixar de lado seu ressentimento e perdoá-la.

- Neste momento não posso perdoar. Foram muitas mentiras e


traições.

- Que mentiras? - chateou-se Maria Pancha -. De que traições


você fala quando Laura deu sua vida para salvá-lo? Saiba, senhor Guor,
que a alma da minha menina morreu no dia que teve que deixá-lo em Rio
Cuarto para casar-se com o doutor Riglos.

- Vá! - exclamou Nahueltruz, e ficou em pé -. Pois não me


parece que o casamento com Riglos a tenha prejudicado de maneira
alguma. Ao contrário, deu-lhe um sobrenome que eu não poderia lhe dar,
deu-lhe fortuna, deu-lhe prestígio, algo que jamais teria conseguido a meu
lado! Eu a vi muito bem quando voltei a encontrá-la meses atrás.

- Índio néscio e ignorante - espetou Maria Pancha -. Eu lhe


disse que se sente porque vai escutar uma história muito longa. E vai
escutar, ainda que tenha que atá-lo e amordaçá-lo! E não serei eu quem vai
contá-la, porque sei que não me acreditará. Vai contá-la alguém que a
conhece, possivelmente, melhor que eu, e em quem você acreditará, estou
certa.

Maria Pancha caminhou para a porta. Retornou depois;


conduzia Loretana pelo braço.

- Loretana? - pasmou-se Guor.

- Sim, Nahueltruz, sou eu. Loretana Chávez.

- O que faz aqui? Como chegou?

- Faz mais de seis anos que vivo em Buenos Aires, no bairro


de San José de Flores. O doutor Riglos me trouxe cá de Rio Cuarto. Fui
sua amante - manifestou, sem sinais de arrependimento, mas com
arrogância -. Tivemos uma filha, Constanza María.

Tradução Lauren Moon


Como Nahueltruz continuava olhando para ela, perplexo,
Loretana lhe explicou que Maria Pancha tinha pedido que detalhasse os
fatos depois da morte do coronel Hilario Racedo. Nahueltruz voltou a
sentar-se, arrasado, aturdido, e escutou sem olhar.

- Não sei por onde começar - disse, ela também desnorteada -.


Começarei por lhe dizer que estava apaixonada por você, que tinha posto
minhas ilusões em você e que lhe queria para mim como nunca quis
alguém. Mas quando vi você naquela noite na taberna de minha tia com a
senhorita Laura... amando-se da maneira em que estavam se amando...
Enfim, meu coração ficou em migalhas, e odiei você, e me odiei por não
ser como a senhorita Laura, e quis fazer mal a você e a ela por despeito, e
por isso, disse ao coronel Racedo naquela tarde que a senhorita Laura
estava esperando por ele no estábulo, porque eu sabia que você e ela
estavam ali, se beijando, dizendo que se amavam, eu os tinha visto.

Nahueltruz levantou a cabeça e atravessou Loretana com um


olhar. A moça sentiu pânico e balbuciou desculpas quando o viu
aproximar-se.

- Calma, senhor Guor - atravessou Maria Pancha -. Loretana


foi muito valente ao vir até aqui e lhe confessar seu pecado. Nada do que
faça agora mudará o passado.

- Continue falando - ordenou Guor -. Vamos, fale!

- Fui eu quem disse a Riglos que você se escondia no rancho


da velha Higinia. Deu-me dinheiro e eu disse. Sim, sim, como Judas!
Chame-me de Judas se quiser, mereço-o, porque isso é o que sou, uma
traidora.

- Maldita seja, Loretana! Arruinou minha vida e a da Laura!

- Perdão, perdão - soluçou, e permaneceu no mesmo lugar


como que resignada ao golpe que Guor lhe daria, mas ele não a tocou.

- Vamos, Loretana - urgiu Maria Pancha -. Conta tudo o que


sabe.

- O que sei - disse, enquanto secava seu rosto com um lenço -


sei por que eu mesma escutei. Depois daquela noite em que Julián e você se
enfrentaram no rancho de dona Higinia, Julián entregou à senhorita Laura
seu medalhão e disse que você pedia que ela esquecesse o ocorrido entre
vocês e que voltasse com os dela. Não acreditou nele, respondeu-lhe que

Tradução Lauren Moon


isso era impossível. Ainda ressoam em minha cabeça suas palavras. Disse-
lhe: “Está mentindo. Nahuel jamais diria isso. Ele jamais teria me pedido
para voltar para junto de minha família e que me esquecesse dele. Eu lhe
jurei que aonde ele fosse, eu o seguiria”. Por último, Julián a ameaçou em
denunciar seu esconderijo a Carpio, se ela não aceitasse sua proposta de
casamento. Disse-lhe que preferia morrer antes de unir-se a ele, e ele
insistiu que ia denunciá-lo, mas ela disse que você jamais permaneceria no
mesmo esconderijo, depois dele ter descoberto. Mas Julián lhe disse que
você não podia se mover por causa da ferida, que estava agonizando...
Enfim, a senhorita Laura se quebrou e concordou. Foi tudo muito triste,
muito triste. Ela chorou dias seguidos trancada em seu quarto, mas Julián
não mudou de ideia. Ele teria morrido se a senhorita Laura se casasse com
um índio. Uma vez me disse: “ Eu a teria entregue a qualquer um, menos a
um selvagem”. Julián não era mau homem, Nahueltruz. Ele atuou...

- Não me dele fale - bramou Guor -, não se atreva a defendê-


lo, sequer a mencioná-lo. Amaldiçoo seu nome pelo mal que me causou,
que ainda me pesa e me dói, e espero que arda no Inferno pelo que nos fez.

- Oh, não, por Deus!

Loretana se largou a chorar e Maria Pancha a mandou sair.


Antes de cruzar a porta, voltou-se e disse:

- Nahueltruz, eu quis muito você. Atuei mal e o fiz por


despeito. Rogo a Deus que algum dia me perdoe - e deixou o escritório
correndo.

- Embora dolorosas, você tinha direito a saber como foram as


coisas em Rio Quarto e de que maneira Laura agiu - declarou Maria Pancha
-. Era hora de saber. Tome - disse, e lhe estendeu um papel -, leia esta carta.
Devia tê-la recebido faz mais de seis anos. Laura a enviou com Riglos,
quando foi vê-lo em seu esconderijo, mas ele a jogou ao fogo. Eu a salvei e
a conservei todos estes anos.

Nahueltruz tomou o papel amarelado e enrugado, e leu aos


tropeções e nervoso, e, quando terminou, teve que recomeçar porque tinha
entendido a metade. Estava datada da vila de Rio Cuarto, em 13 de
fevereiro de 1873. Dizia:

“Meu amor, o portador da presente é o doutor


Julián Riglos, em quem pode confiar plenamente. Você
já sabe que é um grande amigo meu. Ele ofereceu sua

Tradução Lauren Moon


ajuda para que possamos escapar. Ah, Meu Nahuel,
meu amor! Que padecimentos esses ao saber que está
ferido! A ansiedade me consome porque está sofrendo,
porque não tem ninguém que cuide de você, que o cure,
que o assista. Você está precisando de mim e eu aqui,
sem fazer nada. Mas Julián disse que se for vê-lo, os
soldados me seguirão e cairão sobre você, uma
perspectiva que me aterra, imensamente pior que a
anterior. Vamos nos por nas mãos de meu amigo
Julián, ele encontrará uma saída. Iremos a Terra
Adentro. Desta vez não se negará a que eu parta a seu
lado. Nada me importa a pobreza e a simplicidade de
sua gente, se eu estiver ccom você. Jurei-lhe que o
seguiria aonde fosse e penso em cumprir minha
promessa até o dia em que Nosso Senhor resolva nos
separar. Perdoe minha caligrafia, treme-me a mão, não
posso ver bem por causa das lágrimas, já não posso
continuar escrevendo. Amo você, Nahuel. Sua por toda
a eternidade. Laura”.

Com a carta ainda entre as mãos, Nahuel cobriu seu rosto e


chorou amargamente. Que sina tão cruel! Apesar dos anos, nesse momento
descobriu que suas feridas estavam ainda abertas e sangravam. O ódio e a
desconfiança escureciam suas esperanças; temia entregar-se. Ah, como
sentia falta da Laura de Rio Cuarto! Desconfiava da Laura de agora,
parecia-lhe artificial e mentirosa.

- Jamais deveria ceder à chantagem de Riglos. Jamais deveria


ter-se casado com ele.

- Vamos, senhor Guor, não seja teimoso. Fez isso pressionada


por Riglos, pelo general escalante, por mim, inclusive pelo padre Donatti.

- Fez isso porque não confiava em mim, porque não acreditou


que eu era capaz de confrontar a situação. Sinto muito, mas não posso

Tradução Lauren Moon


evitar culpá-la por tudo o que aconteceu. Por causa de seus desacertos,
Riglos fez o que quis conosco. Destruiu-nos.

Maria Pancha notou que as mãos de Nahueltruz tremiam


enquanto se servia de uma nova taça.

- Pode ser - admitiu Maria Pancha -, mas naquele momento,


Laura era jovem e inexperiente, e teve que enfrentar sozinha a dois homens
de caráter e experiência, que a assustaram e a enrolaram. A situação se
apresentou como um inferno do qual não podia fugir e acreditou que você
tampouco poderia fazê-lo. Ela não é a de antes. Desde que perdeu você,
tornou-se uma mulher ressentida, desconfiada, vingativa, mas, sobre tudo,
infeliz.

- O que tem com Leighton?

- Nesse momento - disse Maria Pancha -, Laura já deve ter


rompido o compromisso.

- Existe um compromisso, então. Como vê, Maria Pancha, as


intrigas eram verdadeiras. Finalmente temos que admitir que é certo o
velho provérbio: “Quando o rio soa é porque traz água”. E eu tenho que
suportar que Laura esteja passando uns dias com seu prometido na quinta
de San Isidro. Agora entendo por que não quis ficar mais tempo comigo em
Cabalitto. Mentiu-me novamente ao me dizer que devia retornar por sua
mãe, para ajudá-la com o casamento, quando, na realidade, devia retornar
para recebê-lo. E agora eles estão juntos, passando uma temporada fora da
cidade. O que estarão fazendo? Eu me pergunto. Ele tentará tocá-la, beijá-
la possivelmente? A ela, a minha mulher! E eu, o bobo!

- Entendo-o, senhor Guor. Sei que Laura foi uma estúpida ao


não lhe confessar sobre Leighton. Depois de tudo, isto aconteceu faz mais
de dois anos. Mas assim como o ama, Laura lhe teme, senhor. Jamais teria
confessado sobre Leighton conhecendo-o como o conhece. Você reage,
senhor Rosas, como o ignorante selvagem que é.

Maria Pancha se deu conta de que suas palavras tinham-no


machucado profundamente. Nahueltruz, entretanto, refugiou-se na ira.

- Pois se sobrepôs rapidamente de minha suposta morte - disse


-. Tão logo como quando ficou viúva, comprometeu-se com outro. Mas
claro, não se tratava simplesmente de outro. Tratava-se de um lorde que a
converteria em lady.

Tradução Lauren Moon


- Pouco tempo depois da morte do doutor Riglos - falou Maria
Pancha -, lorde Leighton chegou a Buenos Aires. Seu pai e o pai de Laura
tinham sido grandes amigos e sócios. Lorde Leighton, encarregou-se dessas
questões da morte de seu pai, o velho lorde, viajou até aqui para resolver
com Laura assuntos pendentes; vinha também movido por interesses
pessoais, porque conforme dizia, queria comprar uma estância ao sul da
província de Buenos Aires. Apaixonou-se perdidamente por Laura, mas ela
o rechaçou, como aos outros, e tudo por você, por não poder desembaraçar-
se desse amor que a estava consumindo. É obvio, Laura se desculpava em
sua recente viuvez, mas eu, que a conheço como se a tivesse parido, bem
sabia que a morte de Riglos era o último no que pensava enquanto dava-lhe
o não. A senhora Magdalena e eu não estávamos dispostas que Laura
perdesse tão excelente oportunidade por uma lembrança da qual não podia
se desfazer. E começamos a insistir. Um dia lhe disse: “vai viver toda a
vida presa ao passado, pensando em alguém que nem sequer sabe se está
vivo?”. Laura terminou por aceitar lorde Leighton com a condição de que o
compromisso se anunciasse uma vez terminado o período de luto. Eu sabia
que essa era uma desculpa, porque Laura pouco se importa com essas
ninharias. Eu sabia que era você a quem tinha todo o tempo na cabeça,
porque ela pensava que estava traindo você. Mas a senhora Magdalena
acreditou prudente anunciá-lo depois que passasse o luto e não voltamos a
insistir. Transcorrido o tempo determinado, lorde Leighton retornaria a
Buenos Aires para reclamá-la e levá-la. Quando o tempo chegou e lorde
Leighton retornou, tudo tinha mudado porque você estava de volta na vida
dela.

Passaram longos minutos em silêncio. Pela primeira vez,


Maria Pancha se compadeceu do sofrimento de Guor. Via que ele estava
confuso e machucado. Parecia ter envelhecido anos, e o traço de sua boca
evidenciava as reflexões amargas que ocupavam sua mente. Guor a
surpreendeu ao disparar uma pergunta repentinamente:

- Foi a amante de Roca?

E Maria Pancha lhe respondeu com a mesma precipitação:

- Sim, foi.

A resposta surgiu tão direta e inequivocamente que Nahueltruz


demorou em reagir. Quando o fez, foi da pior maneira: rugiu e golpeou o
escritório com tanta violência que Maria Pancha correu para a porta.
Nahueltruz lançou uma fileira de impropérios e maldições contra Laura que
fizeram com que os olhos da negra se enchessem de lágrimas.

Tradução Lauren Moon


- Mentiu-me. Jurou-me que não tinha sido seu amante.
Traidora. Mentiu-me - voltou a dizer, acompanhando com golpes sobre a
escrivaninha, que rangia sob o peso de seu potente punho -. Não com esse
maldito, não com quem exterminou o meu povo. Meu tio preso, meus
irmãos e primos mortos, minha família destruída, e Laura derrubando-se
com o culpado de tanta desgraça. Não com ele, Laura! Não com ele!

Maria Pancha o observava com espanto, sentindo que a


impotência a deixava muda.

- Sim, Laura foi a amante de Roca - se animou a reiterar -, e


saiba que graças a isso, salvou sua pele. - antes de abandonar o recinto se
voltou para dizer -: Hoje me dei conta de que você não merece Laura.

Ao subir ao carro, Esmeralda e Loretana a olharam com


espera, mas Maria Pancha só disse isto:

- Nunca conheci um coração tão duro como o desse homem.


Não é um filho digno de minha Blanca.

~0~

Laura, sua família e convidados chegaram a La Santísima


Trindad dois dias mais tarde. A nota enviada por Maria Pancha a Sãan
Isidro anunciando a chegada de Nahueltruz a tinha deixado intranquila: “O
senhor Rosas soube de seu compromisso com lorde Leighton”. Na sala, em
uma confusão de baús e serventes, Laura se desculpou com seus
convidados e partiu a seu quarto. Ali disse a Maria Pancha:

- Estou esperando um filho de Nahueltruz.

A negra levou a mão à boca, e um gesto de confusão


transfigurou seu rosto habitualmente calmo. Laura ficou de pé.

- O que aconteceu? - incomodou-se -. Não vai se escandalizar


a estas alturas? Por que se espanta em vez de se alegrar?

- Tem certeza? - atinou a perguntar.

- Sim, estou bem certa.

- Poderia se tratar só de um atraso.

- Conhece quão regular eu sou - interpôs ela.

Tradução Lauren Moon


Maria Pancha a prgou pelos braços e a conduziu à cama onde a
obrigou a se deitar. Colocou-lhe travesseiros sob as costas.

- Vamos, Maria Pancha - se impacientou -, não me trate como


uma doente.

Poucas vezes em sua vida a negra Maria Pancha tinha


experiente essa falta de eloquência e segurança. O certo era que estava
assustada, não se atrevia a enfrentar Laura para lhe causar tanta dor. Olhou-
a com doçura e limpou sua testa de uma mecha rebelde. Apoiou-lhe a mão
sobre o ventre e benzeu ao menino.

- Laura - falou a seguir -, como eu disse na nota, Guor se


inteirou da pior forma de seu compromisso com lorde Leighton.

- Como soube?

- Sua tia Dolores disse em um almoço na casa de sua tia


Carolita.

Laura fechou os olhos e apertou os punhos, e Maria Pancha,


que ainda tinha a mão sobre seu ventre, percebeu que se endurecia.
Chamou uma das domésticas e lhe pediu um chá de valeriana bem
carregado.

- Vai precisar - assegurou- lhe -. Não são boas as notícias que


tenho para lhe dar.

- Fale já, Maria Pancha. Está me matando de angústia.

- Primeiro tomará o chá e depois falarei.

A valeriana não foi suficiente. Laura se quebrou sem remédio.


Por momentos chorava amargamente, por momentos a assaltavam
arranques de fúria que descarregava em sua criada, a quem não perdoava
por ter confessado a Nahueltruz seu namorico com Roca, e de nada
adiantava que o próprio Nahueltruz o tivesse suspeitado seriamente depois
dos comentários de Cambaceres.

- Eu o teria negado com meu último fôlego, teria jurado por


minha própria vida se tivesse sido necessário - exclamou -, mas jamais,
jamais teria admitido isso. Por acaso não o conhece? Não conhece seu
caráter diabólico? Seu coração é de pedra, jamais me perdoará.

Tradução Lauren Moon


- Perdoará, ele voltará porque você é a única pela qual esse
índio quer viver.

- Não, não! Jamais me perdoará. E meu filho não terá pai. Este
filho - sussurrou - que tanto tínhamos desejado, que ele tinha me pedido.
Meu filho nascerá sem pai. Irei vê-lo, tenho que falar com ele, algo lhe
direi, algo me ocorrerá. Pedirei perdão de joelhos, mas farei que volte para
mim.

- Não - se opôs Maria Pancha -. Deixará passar uns dias até


que ele se acalme. Não entrará em razão agora. Está muito ferido e será
pior. O tempo aplacará sua cólera e esse será o momento para falar. Mas
agora, Laura, deve esperar.

Em realidade, Maria Pancha temia que Guor batesse nela.


Tinha-o conhecido enfurecido, atiçado pelo álcool e o ciúme. Notícias de
natureza alarmantes chegavam diariamente quando visitava a casa da
senhora Esmeralda.

- Continua em seu escritório - ela detalhava -, obstinado à


garrafa, infamando ao próprio Deus.

Maria Pancha morreria antes de permitir que Laura estivesse


presente quando um ataque o acometesse. Laura, entretanto, foi até
Nahueltruz. Golpeou repetidas vezes, mas ninguém saiu para recebê-la.
Passou uma nota por debaixo da porta e partiu. Enquanto se afastava do
saguão, virou-se repentinamente e viu que alguém se ocultava atrás das
cortinas de voile. Subiu no carro chorando.

Lorde Edward e lady Verity continuavam hospedando-se em


La Santísima Trindad, e Laura devia ensaiar um sorriso a cada manhã
quando se encontravam na sala depois do café da manhã. Ela, que não tinha
forças para caminhar, devia servir de anfitriã. Lorde Edward, entretanto,
suspeitava que um grave problema a afligia e cada vez mais seguido saía
sozinho ou com sua irmã como única companhia. Apesar de ser francês e
para pior, parisiense, fazia bons contatos com Armand Beaumont, que o
introduziu rapidamente no mundo social de Buenos Aires. Não lhe
faltavam convites a cada noite, e pouco a pouco a presença dos Leighton na
mesa dos Montes foi uma raridade.

A família aceitou a ruptura do compromisso do mesmo modo


que, há alguns anos, aceitavam as inconstâncias de Laura: com total
resignação. Para eles tampouco tinha passado inadvertido o decadência da
moça e, embora receassem que devia tratar-se de uma contrariedade

Tradução Lauren Moon


importante, não ousavam perguntar. Por certo Maria Pancha sabia a
verdade, mas perguntar a ela teria sido o mesmo que fazê-lo a um muro.
Sobre tudo, inquietava-os que Laura tivesse deixado de escrever seus
folhetins.

Magdalena, dividida entre sua filha e o casamento, acreditou


que paralisaria. Uma noite, depois de um jantar em que Laura não tinha
participado, apresentou-se em seu dormitório e a encontrou chorando.
Talvez porque fazia dias que não falava com a Maria Pancha e um pouco
também movida pelo desconsolo, Laura confessou a sua mãe que havia
vivido um romance com o Lorenzo Rosas e que estava grávida. Magdalena,
que havia suspeitado do envolvimento entre sua filha e o moreno, como o
chamava intimamente, não se mostrou surpreendida pela notícia. Mas a
gravidez era farinha de outro saco e a impressionou profundamente. Depois
lamentou a reação tão inoportuna, mas nesse primeiro momento a
esbofeteou. Laura alisou a bochecha e chorou movida pela vergonha.

- Agora entendo por que se desfez do compromisso com lorde


Leighton - falou Magdalena quando se sobrepôs à confusão.

- Fui eu quem rompeu o compromisso para me casar com


Lorenzo.

- Case-se, então! - exasperou-se Magdalena.

- Lorenzo me deixou quando soube de meu compromisso com


Leighton.

- Oh, que enredo, Laura! Será que não pode levar uma vida
normal, como a de qualquer moça?

- Sua vida tampouco foi normal, mãe. Você viveu separada de


meu pai a maior parte de seu casamento.

Magdalena partiu ofendida. Na manhã seguinte, depois de


horas de insônia e reflexão, entrou no quarto de Laura e, com ar paciente,
expôs suas idéias. Laura as objetou uma a uma. Retomar a idéia do
casamento com Leighton lhe pareceu a mais indigna, pois, conforme
esclareceu, jamais impingiria um homem o filho de outro.

- Então, confesse a lorde Leighton sua situação, diga que


espera o filho de outro - teimou Magdalena -. Estou certa de que lhe
aceitará igualmente. Está apaixonadíssimo por você.

Tradução Lauren Moon


Mas Laura não titubeou e, quando Magdalena propôs visitar,
junto com o doutor Pereda, a “esse moreno canalha” para lhe exigir que
cumprisse com seu dever de cavalheiro, Laura perdeu a calma e o proibiu
aos gritos. Então, Magdalena se desesperou.

- Não quero um neto bastardo! - disse.

Apesar de não lhe dirigir a palavra, Laura permitia que Maria


Pancha continuasse se encarregando de sua roupa, da limpeza de seu
quarto, do cuidado de seu cabelo, da ordem de seus papéis, de lidar com
sua correspondência. Na verdade, Laura não suportava a distância de sua
criada por muito tempo. Maria Pancha era parte dela, a parte forte e
invariável, essa que, ao longo de sua vida, nunca a havia abandonado.
Tratava-se de uma constante: quando tudo se desmoronava e ameaçava
desaparecer, Maria Pancha surgia como um farol e a resgatava do
naufrágio. Como por exemplo, na ocasião da briga entre Agustín e o
general Escalante, quando seu irmão os deixou para tomar os hábitos; ou
quando seus pais se separaram, mas sobre tudo depois de perder Nahueltruz
e durante o casamento com Riglos. Ela sabia que jamais teria conseguido
sem sua adorada negra Maria Pancha. Inclusive sob as circunstâncias
atuais, apesar de culpá-la pela irritação de Nahueltruz, saber que Maria
Pancha estava ali, silenciosa e serviçal, consolava-a.

- Por que lhe confessou o meu romance com o general?, -


perguntou-lhe quando tornou insuportável não falar com ela.

- Já lhe disse que Guor suspeitava seriamente depois que o


senador Cambaceres lhe disse que, segundo ele, foi você quem tinha pedido
ao general a permissão para ir a Martín García.

- Eu o teria negado - insistiu Laura.

- Laura - falou Maria Pancha, com tom benevolente -, como


poderia seguir adiante em um casamento, quando um dos cônjuges alberga
dúvidas tão importantes sobre o outro? Quanto tempo teria passado até que
ele, com esse gênio de mil demônios que tem, tivesse lhe enfrentado e
exigido a verdade? A dúvida a respeito de seu romance com o general teria
sido como o pus em uma ferida, que cedo ou tarde infecta tudo, arrebenta e
sai para fora. Aprenda com seus pais, menina!

- Muitas mulheres e homens guardam grandes segredos e seus


casamentos seguem adiante sem problemas.

Tradução Lauren Moon


- Os matrimônios medíocres, sim - resolveu Maria Pancha -.
Mas um amor como o que vocês sentem, um amor tão profundo e
verdadeiro, que venceu quantos obstáculos teve que vencer, não merece a
mentira nem a ocultação. Pelo contrário, merece a luz que só dá a verdade.
Você não pode ter segredos com ele, assim como ele não os pode ter com
você. Vocês devem estar unidos - disse com veemência, enquanto
entrelaçava seus dedos com os de Laura -, tão verdadeiramente unidos que
nada possa separá-los. Vocês têm que ser um só. Você é ele e ele é você.

- Vou perdê-lo, Maria Pancha - soluçou Laura.

- Ora! - desprezou a criada -. Depois que lhe passar


apetulância, quando os ciúmes se esfumaçar junto com todo o álcool no
qual está se afogando, então voltará. Embora soe vulgar e de mau gosto,
Nahueltruz Guor não pode viver sem você.

Laura sorriu entre lágrimas e se agarrou a Maria Pancha. Com


seu rosto fundo no pescoço da mulher, enquanto os conhecidos aromas de
sua pele morena alagavam suas fossas nasais, enquanto sentia as carícias de
suas mãos sobre suas costas, e enquanto suas palavras de amor a
reconfortavam, Laura teve esperança.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXIX.

Profanação em Terra Adentro

Apesar de ao longo dos últimos anos Laura Escalante ter-se


convertido em uma grande dissimulada, foi difícil aparentar contente no dia
do casamento de sua mãe. Maria Pancha a tirou da cama, banhou-lhe e pôs
seu vestido e jóias. Laura já não chorava a não ser quando mergulhava em
seus sabidos estados letárgicos. Eduarda, a passos dela na capela da
baronesa, notou-a muito piorada.

Fazia tempo que não conversavam, e sentia falta das tardes de


literatura e música. Não pôde evitar relacionar o evidente mal-estar de
Laura com o de Lorenzo Rosas, que permanecia trancado em sua casa com
ordens de não receber ninguém. Eduarda, que tinha suspeitado um
namorico entre eles, não acreditava em casualidades e, apesar de querer
muito a Laura, disse-se que escreveria a Geneviéve para pô-la a par; afinal
de contas, sua primeira lealdade era para com sua grande amiga parisiense.

Mais tarde, terminada a missa, Magdalena e o doutor Pereda


recém-casados, Blasco se apresentou em La Santísima Trindad e pediu para
falar com a senhora Riglos. A doméstica informou que a senhora estava
almoçando e que não receberia até de tarde. Não obstante, a veemência
com que Blasco lhe disse que se tratava de um assunto urgente a convenceu
de interromper a sua patroa. Pura escutou que o jovem Tejeda estava no
vestíbulo e, depois de se desculpar com sua bisavó, dona Ignacia, deixou a
mesa junto a Laura.

- Blasco! - exclamou a moça, e quase correu a seu encontro.

Blasco tomou suas mãos e as beijou. Laura se manteve a parte,


olhando-os, tentando ao mesmo tempo impregnar-se da força e da sorte que
eles inspiravam. Pura se virou e pediu que se aproximasse.

- Blasco - disse Laura -, por que não veio à cerimônia? Por que
não passa à mesa? Que assunto tão urgente lhe impede de entrar e se reunir
com sua futura família?

Em silêncio, Blasco lhe passou um recorte de jornal que Laura


leu com olhos impaciente. Depois de passados os primeiros segundos de
leitura, Purita viu que sua tia empalidecia.

Tradução Lauren Moon


- O que acontece? - inquietou-se -. Que má notícia traz esse
artigo? Tia, por favor, sente-se, está muito pálida.

- É de hoje? - quis saber Laura.

- Sim - respondeu Blasco -. Do jornal La Mañana del Sur.


Mario e eu conseguimos ratificar a informação.

- É certo que foi Racedo?

- O próprio.

- Quem é Racedo? -perguntou Pura.

- Ele já sabe?

- Sim - afirmou Blasco.

- Quem é ele? Por favor! Não vão me explicar?

- Pura - disse Blasco -, é um assunto entre a senhora Riglos e


eu. Por favor, não pergunte.

Pura o olhou com desconsolo, e Laura interveio para suavizar


os ânimos.

- Purita - disse, e a agarrou pelos ombros -, minha querida,


acaba de ocorrer algo muito grave que em nada afeta você ou Blasco,
graças a Deus. Mas tem a ver comigo, com meu passado. Agora não posso
contar, mas lhe prometo que algum dia lhe direi do que se trata e me
entenderá. Agora tenho que sair.

- Sair? Agora? No meio do festejo pelas bodas de tia


Magdalena? Vai ficar furiosa.

- Por favor - falou Laura -, retorne à mesa e não diga a


ninguém o que acaba de ver e ouvir aqui.

- O que poderia dizer, se vi pouco e entendi menos ainda?

Pura se despediu a contra gosto e os deixou a sós. Então,


Blasco se expressou com liberdade.

Tradução Lauren Moon


- Está como louco - manifestou -. Minha avó Carmen diz que
bebeu a amanhã toda e perdeu o controle mais de uma vez. Nahueltruz
disse que viajará a Rio Cuarto para matar Racedo.

- Oh, não, pelo amor de Deus, não! Tenho que vê-lo, tenho que
vê-lo -repetiu, sem saber como.

- Ele não vai querer recebê-la, senhorita Laura. Deu ordens de


que não abram a porta para você.

- Sei - disse Laura, e os olhos se encheram de lágrimas.

- Nahueltruz me mataria se soubesse que estou aqui, contando


para você.

- Está bem, Blasco. Retorne à editora. Nahueltruz jamais


saberá de minha boca que você me pôs a par deste penoso assunto. Não
quero que tenha problemas com ele por minha culpa. Anda vá. Já verei
como farei para encontrá-lo.

- Não, senhorita, não vá. Você não conhece Nahueltruz quando


está assim, tão desnorteado.

- Equivoca-se, Blasco, sim, eu o conheço. Mas preciso estar


com ele neste momento, necessito isso. É meu desejo e meu dever estar aí
com ele.

Blasco baixou o rosto e sacudiu a cabeça em desacordo.


Despediu-se com os ânimos caídos, perguntando-se se não tinha cometido
um grave engano ao mostrar à senhorita Laura o artigo de La Mañana del
Sur.

~0~

Sozinha no vestíbulo, o artigo entre suas mãos, Laura se


sentou em um confidente e o releu. “O ÚLTIMO 17 DE AGOSTO,
ENCONTRANDO-SE O CORONEL EDUARDO RACEDO NAS IMEDIAÇÕES DA
LOCALIDADE DE LEUVUCÓ, COMPROMETIDO EM UMA DE SUAS CAÇADAS AOS
SELVAGENS, TOMOU CIÊNCIA DO LUGAR ONDE DESCANSAVAM OS RESTOS
MORTAIS DO GRANDE CACIQUE MARIANO ROSAS. E NA FORMA DOS ANTIGOS
GUERREIROS, MANDOU ESCAVAR A TUMBA E FAZER-SE DOS OSSOS DO
FAMOSO CHEFE RANQUEL COMO TROFÉU DA VITÓRIA ESMAGADORA DE
NOSSOS SOLDADOS SOBRE SUAS TRIBOS. OS RESTOS MORTAIS DO CACIQUE

Tradução Lauren Moon


ESTÃO PRESERVADOS NO FUERTE SARMIENTO, E O CORONEL RACEDO
PROMETEU LEGÁ-LOS A...”.

Maria Pancha encontrou Laura chorando no vestíbulo com um


papel enrugado entre as mãos. Tirou-o e leu, e quase imediatamente fez o
sinal da cruz e disse uma oração sussurrada, porque ela respeitava os
mortos e o eterno descanso das almas. Em sua opinião, incomodá-los podia
conduzir consequências ameaçadoras. Perguntou-se com horror se, no meio
do revôo que teriam armado os soldados para recuperar os ossos desse
demônio de Rosas, algum ossinho de sua adorada Blanca não teria
terminado também em uma bolsa. Voltou a fazer o sinal da cruz e a rezar.

Laura continuava chorando e pensando. Em especial,


recordava as palavras do coronel Mansilla quando resenhou em sua
Excursión a los indios ranqueles84 que “quanto aos mortos, têm-se por eles
o mais profundo respeito. Uma sepultura é o mais sagrado. Não há heresia
maior que desenterrar um corpo”. O padecimento de Nahueltruz e de sua
família devia ser atroz. Uma chaga a mais que se somava ao coração
machucado dos Guor. “Tenho que estar com ele, preciso estar com ele”, se
dizia, mas não conseguia reunir a coragem para deixar a cadeira e ir à casa
de Cuyo.

- Sua mãe - falou Maria Pancha - me ordenou que viesse lhe


buscar. Ela me disse que, qualquer seja o assunto que lhe mantém ocupada,
deixe-o e retorne à sala de jantar.

De volta à mesa, o primeiro que atraiu sua atenção foram os


olhos azuis de Esmeralda que a seguiam com intensidade. Chateava-a que
essa mulher soubesse os detalhes; sobre tudo, dava-lhe ciúmes que
Nahueltruz lhe tivesse confidenciado intimidades que só a eles pertenciam.
Enfurecia-se em saber que a Balbastro visitava a casa dos Guor diariamente
e que ninguém lhe impedia o acesso.

Esmeralda lhe sorriu timidamente, e Laura ficou olhando para


ela, desconcertada, descobrindo pela primeira vez que esses formosos olhos
aos que tanto havia admirado seu primo Romualdo expressavam
sinceridade nesse momento. Imediatamente pensou: “Se a deixam entrar,
pois o farei com ela então”. Depois das sobremesas, enquanto a família e os
convidados compartilhavam um momento na sala, Laura fez o que jamais
imaginou: pediu ajuda a Esmeralda Balbastro.

84
Obra da literatura de Lucio V. Mansill (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXX.

A tempestade

Esmeralda desceu de seu carro e detrás dela o fez Laura,


completamente camuflada. Dona Carmen se deu conta da trapaça quando
ambas as mulheres haviam ganhado a sala.

- Senhorita Laura! - exclamou -. Você não deveria estar aqui,


senhorita. Por favor, vá.

- Dona Carmen, me permita entrar.

- Não, não, melhor não, senhorita. Ele não está bem e temo
que ficará pior se vir você.

- Vamos, Carmen - disse Esmeralda, em tom conciliador -, nos


deixe passar. Se Nahueltruz nos pedir para irmos, iremos demorar.

- Como está dona Mariana? - interessou-se Laura, caminho ao


escritório.

- Mal - respondeu a Índia -. Profanaram a tumba do filho que


mais amou. Está mal - repetiu.

Nahueltruz apresentava o aspecto de um demente. Era evidente


que havia passado dias desde seu último banho e muda de roupa. Tinha as
pálpebras inchadas por falta de sono e os olhos frágeis e avermelhados por
conta do álcool. Ainda assim e apesar de seus sentidos estarem embotados,
só tomou um instante para reagir à presença de Laura. Precipitou-se sobre
ela com fúria assassina de maneira tão inoportuna e veloz que Laura ficou
paralisada sob a soleira, vendo como esse brutamonte se equilibrava sobre
ela.

- Não, Lorenzo! - gritou Esmeralda, e tratou de detê-lo


interpondo-se entre ele e sua vítima, segurando-o com forças ineficazes
frente aos músculos de aço de Guor, enquanto ocupava seu último fôlego
em ordenar a Laura que abandonasse a casa imediatamente.

Mas Laura permaneceu quieta no mesmo lugar, estranhamente


atraída por uma fúria expressa em gestos e insultos desconhecidos para ela.
Sua impassibilidade o atiçava, e os esforços de Esmeralda demonstraram

Tradução Lauren Moon


que logo seriam vãos. Só pensar que podia perder o bebê se caísse nas
mãos dele a fez partir para trás e soltar um gemido angustiante. A
respiração se tornou fatigante e sentiu que se enjoava. Pensou: “Em meu
estado, não deveria usar espartilho”.

Atraídos pela gritaria, Miguelito e Blasco se apresentaram no


escritório e conseguiram submeter Nahueltruz, que, depois de resistir um
momento, terminou por deixar sua atitude raivosa. Tinha os lábios
comprimidos, úmidos de violência, e caminhava de um canto ao outro
tentando recuperar o fôlego. Por fim, deteve-se e a olhou fixamente nos
olhos.

- Quero que saia da minha casa - ordenou.

- Nahueltruz - sussurrou ela -, por favor, querido, temos que


falar. Quero explicar...

- Explicar? - bramou -. O que quer me explicar? Como se


derruba com meu pior inimigo? Como lhe diz “amo você” ao que
exterminou toda minha família? Ao que mandou profanar a tumba de meu
pai!

Laura levou suas mãos ao rosto e começou a chorar. Guor fez


um estalo de saciedade com a língua e se afastou para sua escrivaninha,
mas não se sentou. Uma poderosa energia o mantinha em pé e mais
acordado que em dias. Apoiou ambas as mãos sobre a escrivaninha e
deixou cair à cabeça entre seus ombros. Só escutava o pranto de Laura. De
repente, experimentou um esgotamento incontrolável.

- Por você - disse, com acento lúgubre e pausado - me converti


nisto que sou, renegando meu próprio sangue, minha própria gente, para
lhe demonstrar que eu também podia merecê-la como o doutor Riglos. E
sinto asco de mim, porque o fiz por uma qualquer que não vale nada...

- Lorenzo! - interveio Esmeralda, mas uma olhada a fez calar.

Miguelito e Blasco escolheram não contradizê-lo.

- Fiz isso por uma qualquer - recomeçou- , por alguém que não
merece ser amada. Fiz isso por uma traidora - disse, e golpeou a
escrivaninha, provocando um estremecimento em quem o rodeava -.
Maldito o dia em que meus olhos lhe viram! Maldito esse dia!

Tradução Lauren Moon


Logo depois dessas duras palavras, só houve prantos mal
contidos e respirações agitadas. Quando Nahueltruz voltou a falar, sua voz
soou cansada, como de quem admite a derrota.

- Jamais acreditei que diria estas palavras, Laura, mas neste


momento não fica em mim nada do amor que senti por você, a não ser
desprezo e rancor. Agora peço que vá embora. Não suporto sequer olhar
para você.

Laura lançou um gemido grave e antinatural, e desmaiou. Ao


voltar a si, estava no interior de um carro, a caminho de La Santísima
Trindad. Esmeralda sustentava sai aromáticas sob seu nariz e lhe dava
tapinhas na bochecha.

- Já passou tudo, Laura. Já está a salvo - assegurou- lhe, e


Laura se sentiu inexplicavelmente reconfortada.

~0~

Dias depois, Blasco retornou a La Santísima Trindad e pediu


para falar com a senhorita Laura. Maria Pancha saiu para atendê-lo.

- Não pode ver ninguém, Blasco - manifestou a criada -. O


médico disse que deve guardar repouso e estar tranquila. O que aconteceu?
O que necessita?

- O médico? - estranhou Blasco -. Aconteceu algum mal à


senhorita Laura?

- Sim - afirmou Maria Pancha -. Aconteceu o mal de se


apaixonar por seu protetor. O doutor Wilde disse que sofrerá um colapso se
não repousar e se esquecer um pouco.

- Entendo. Vim aqui - começou a explicar o moço - porque não


sabia a quem recorrer. Nahueltruz sai esta noite para Rio Cuarto, e nem
sequer sua avó Mariana conseguiu mudar sua vontade. Temo que vá
cometer uma loucura.

- Como matar o coronel Racedo? - sugeriu a criada, e Blasco


assentiu -. Índio néscio!

- Não sabemos o que fazer.

- No momento - disse Maria Pancha -, não quero que Laura


saiba uma palavra a respeito desta viagem, entendido? - Blasco voltou a
Tradução Lauren Moon
assentir -. O único que me ocorre é enviar um telegrama ao padre Agustín e
lhe advertir que Guor chegará a Rio Cuarto, e que deve convencê-lo de
desistir de suas intenções. Certamente o padre Agustín já se inteirou da
bonita façanha de Racedo e atará os cabos. Quando acredita que Guor
chegue à vila?

- Irá de trem - informou Blasco -, no Central Argentino, que


faz escala em Rio Cuarto antes de seguir para Mendoza. Suponho que
chegará amanhã pela tarde.

- Bem, não há tempo a perder. Agora mesmo despacha o


telegrama e não se esqueça de repetir as palavras tal e como eu lhe disse.

- Que o senhor Guor - expressou Blasco— chega a Rio Cuarto


manhã e que deve convencê-lo a desistir de suas intenções.

~0~

Para Laura não doeu tanto o que Nahueltruz lhe disse, mas
como o tinha feito, sereno e decidido. Teria preferido que ele vociferasse
em um arranque de ira, assim teria sido de uma fanfarronice sem
fundamento. Nesse modo medido, ao contrário, suas palavras tinham
expressado a verdade de seu coração. Só quando dormia, Laura conseguia
desfazer-se da voz de Nahueltruz, profunda e lúgubre, cansada e resignada,
quando lhe disse o que lhe disse. Tampava seus os ouvidos, falava em voz
alta, lia, pensava em algo que gostasse, mas em vão, a voz repetia uma e
outra vez as palavras mais duras que alguém lhe tivesse jamais dirigido.

O risco de perder seu bebê a mantinha quieta, grande parte do


dia na cama. Do contrário, faria muitas coisas, entre elas, visitar o general
Roca e exigir que ordenasse ao coronel Racedo devolver os restos mortais
do cacique Rosas aonde pertenciam. Teria retornado a Nahueltruz, até
correndo o risco de sair machucada de novo, para praguejar seu perdão de
joelhos. Não ficava dignidade nem orgulho, não os necessitava. Só queria
que Nahueltruz voltasse para ela porque não suportaria o mesmo que seis
anos atrás, não lhe restava remédio.

De todas as emoções, principalmente a embargava a


incredulidade, pois não conseguia acreditar que Nahueltruz tivesse
terminado com ela. O amor que se professavam não podia terminar, não
terminaria nunca. Tratava-se de um amor eterno e todo-poderoso. Por
momentos, o mau trato de Nahueltruz a deixava ressentida e procurava mil
argumentos para condená-lo. Inclusive, dizia a si mesma que ela não o
necessitava, agora que teria um filho. Em ocasiões, até desejava que ele

Tradução Lauren Moon


retornasse a Paris para não voltar a vê-lo. Não queria cruzar com ele, não
toleraria seu ultraje nem seu desprezo novamente. E logo, uma manhã,
quando despertava melancólica, tudo voltava para começar e os
verdadeiros sentimentos dominavam seu ânimo por completo.

Às vezes se decidia a lhe confessar que esperava um filho.


Levantava-se, trocava-se e, a ponto de deixar seu quarto, as presunções a
abandonavam e se enchia de temores. Sobre tudo, temia Nahueltruz Guor.
Temia-lhe porque era das poucas pessoas que contava com o poder de feri-
la profundamente.

Maria Pancha opinou que Guor tinha que saber que ia ser pai.

- O mais provável - disse Laura - é que me diga que este


menino não é filho dele. E não estou preparada para escutar isso, Maria
Pancha. Além disso, não quero chantageá-lo com minha gravidez, não
quero que volte comigo por isso.

- Ninguém fala em retornar com você - manifestou a criada -.


Tão somente de que se faça responsável pelo menino e que lhe dê seu
nome,

- Eu me farei responsável por ele e lhe darei meu nome, o


nome de meu pai, que foi um grande general da Nação.

- Que em paz descanse - murmurou Maria Pancha, e não


insistiu com os direitos de paternidade de Guor.

Se Maria Pancha tivesse estado na La Santísima Trindad essa


tarde, Eduarda Mansilla não teria conseguido ver Laura. Mas Maria Pancha
tinha saído às compras e a doméstica encarregada a deixou passar. Laura a
recebeu no boudoir com o carinho de sempre. Eduarda a beijou em ambas
as bochechas dissimulando a impressão que causaram-lhe o aspecto pálido
de seu semblante e a tristeza que seus olhos negros transmitiam. Como de
costume, Laura tratou de esconder seu pesar, e falou muito e rapidamente.
Eduarda a escutava com paciência e sorria.

- Sua mãe parecia radiante no dia de seu casamento. O que


sabe dela?

- Nada ainda - expressou Laura -. Suponho que está


desfrutando de sua viagem de lua-de-mel no Rio de Janeiro. Lorde Edward
diz que é uma cidade maravilhosa.

Tradução Lauren Moon


- A propósito de lorde Edward, e os Leighton? - interessou-se
Eduarda -. Noto a casa muito calada.

- Os Leighton aceitaram o convite de meu primo José Camilo e


partiram para La Armonia, a estância dos Lynch. Faz tempo que lorde
Edward deseja adquirir um campo na zona sul de Buenos Aires. Suponho
que aproveitará a viagem para obter seu propósito.

- Acompanha-os Eugenia Victoria?

- Não só ela, também meus tios Lautaro e Celina e Esmeralda


Balbastro.

- O que me diz da designação de Pellegrini como novo


ministro de Guerra e Marinha? - perguntou Eduarda, e em seguida reparou
na ignorância de sua amiga -. Não sabia? Não tem lido os jornais
ultimamente?

- Não - admitiu Laura -. Só há más notícias.

- Pois Sarmiento pegou Roca intervindo nos assuntos de Jujuy,


na revolta que houve contra o governador Torino, e o delatou em uma
reunião de gabinete. Ao pobre Nicolás - Eduarda se referia ao presidente
Avellaneda - não ficou outra alternativa e teve que pedir sua demissão.
Roca a apresentou sem maiores pleitos. Fala-se de que pensa deixar a
cidade.

- Faria bem - disse Laura -. Buenos Aires se tornou muito


antagônica para ele.

- Quem deixou a cidade foi Lorenzo Rosas - soltou Eduarda.

Laura levantou o rosto e a olhou fixamente, e se deu conta de


que Eduarda suspeitava de seu namorico com Nahueltruz. Como não
desejava mencioná-lo abertamente, comentou com desinteresse:

- Terá retornado a Paris. Não me disse que tem uma mulher


que o espera lá?

- Pois sim, tem uma mulher que o espera lá. Geneviéve Ney se
chama. A primeira bailarina do Palais Garnier. Mas não, Lorenzo não
retornou a Paris. Para surpresa de todos, viajou a Rio Cuarto. - Laura
permaneceu calada, e Eduarda prosseguiu -: Saiu faz dias, na calada da
noite, sem despedir-se sequer de Armand, que ficou muito preocupado pois

Tradução Lauren Moon


pensava retornar a França em meados de novembro e não sabe se Lorenzo
estará de retorno para essa data.

De volta do mercado, Maria Pancha se topou com Laura na


cozinha.

- O que faz aqui? Por que está de pé?

- Escondeu-me que Nahuel viajou a Rio Cuarto, não é?

Maria Pancha começou a esvaziar a cesta com ar de


aborrecimento. Laura a agarrou pelos pulsos e a sacudiu levemente.

- Todo este tempo soube que ele viajou para Rio Cuarto e me
escondeu isso, não é verdade? Vamos! Responda.

- Viajou faz mais de uma semana - admitiu a criada.

- Por que não me disse isso? Por acaso ficou louca para me
esconder uma informação de tanta importância?

- O doutor Wilde disse...

- Ao diabo com o doutor Wilde! Hoje mesmo partimos para


Rio Cuarto. Já mandei Eusebio comprar as passagens para o trem e também
lhe disse que enviasse um telegrama a Agustín anunciando nossa chegada.

- De maneira nenhuma fará essa viagem - plantou-se a negra -.


Poderia custar a vida a seu filho.

- Irei a Rio Cuarto mesmo que tenha que fazê-lo a pé, está
claro?

- Tão desnaturada se tornou que não pensa no bem-estar de seu


bebê?

- Porque penso no bem-estar do meu filho é que vou atrás de


seu pai para salvá-lo de cometer uma grande tolice.

- Seu irmão Agustín - informou Maria Pancha - está a par das


intenções de Guor. Ele se encarregará disso.

- Não me importa. Poderia estar até mesmo o papa Leão XIII


encarregando-se de sua sorte que eu viajaria da mesma maneira.

Tradução Lauren Moon


- Por que tenho a horrenda impressão de que já vivi este
momento? - se perguntou Maria Pancha.

- Não permitirei que Nahueltruz liquide o sobrinho de Racedo


e volte a arruinar sua vida por minha culpa.

- Sua culpa? Qual culpa?

- Sim, minha culpa. Assim como foi minha culpa seis anos
atrás, será também agora.

- Seis anos atrás a culpa foi da Loretana.

- Não, foi minha. Fui uma maldição na vida de Nahueltruz.

- Laura, não exagere —expressou Maria Pancha, com


aborrecimento.

~0~

A relação entre Roca e o presidente Nicolás Avellaneda se


desenvolvia em um marco de formalidade, respeito e bom trato. Nenhum
confiava plenamente no outro, e possuíam naturezas tão diversas que era
admirável que nunca houvessem brigado. Entretanto, quando Avellaneda
decidiu que Sarmiento ocupasse o ministério de Laspiur, o do Interior,
Roca quase perde as estribeiras e o insulta. Convencido de que a idéia da
conciliação resolveria o litígio entre o governo portenho e o nacional, o
presidente julgou propício designar um político alheio à órbita roquista.
Para muitos, desacertada a nomeação evidenciava a confusão em que tinha
caído Avellaneda, que frequentemente se queixava de quão pesado havia se
tornado a carga do governo e do cansaço que sentia. Outros viam nesta
designação sua pouca autoridade e aprumo, e não entendiam por que o
presidente não respondia com dureza quando Tejedor o chamava “hóspede”
de Buenos Aires.

- Ora! - enfureceu-se Roca -. Agora ele consegue enganar.


Vamos ver com que maluquice sairá Sarmiento na primeira reunião de
gabinete.

Em sua ambição por ocupar novamente a presidência,


Sarmiento considerava tanto a Tejedor como a Roca adversários políticos e,
desde seu flamejante cargo, manobrava para tirá-lo de cima. Não passou
muito tempo, e o governador de Buenos Aires começou a padecer dos
ataques do ministro do Interior, que reclamava a criação de um exército

Tradução Lauren Moon


provincial, quando era proibido pela Constituição. “A questão militar, -
dizia -, é coisa da Nação”. Em uma atitude de desafio, Tejedor fazia
ouvidos surdos e continuava organizando suas forças e comprando armas.
A tensão aumentava, a guerra podia ser cheirada. Sarmiento já não sabia o
que fazer, aonde dirigir-se, a quem apresentar suas queixa, como aumentar
o teor de suas ameaças. Carlos Tejedor se mantinha inabalado. Suas
provocações tornaram-se intoleráveis o dia que, montado em uma
carruagem sem capota, passeou pelas ruas da cidade com os ares de um
imperador romano, que retorna triunfante da guerra. Escutavam-se gritos e
tiros, viva Tejedor e insultos e ameaças a Roca. Nessa oportunidade, os
portenhos que mantinham uma atitude ambígua começaram a suspeitar que
o governador de Buenos Aires tinha chegado muito longe.

Desde Córdoba, Juárez Celman consolidava a estrutura


eleitoral que levaria seu concunhado à poltrona presidencial, a chamada
“Liga de Governadores”. Além de Tejedor, muitas personalidades, entre
elas Mitre, seguiam advertindo sobre a renomada liga e denunciavam uma
aliança dos governos provinciais para impor a seu candidato, mediante a
fraude e a violência. Diziam, também, que não tolerariam os governos
eleitoreiros e demagogos que dirigem seus povos como gado, tal como o
tinham feito no passado os caudilhos. Embora a Liga de Governadores
fosse vox populi, não havia provas que demonstrassem sua existência.

Elementos tejedoristas se dispersavam pelas províncias leais


ao ministro de Guerra, tentando desestabilizar a frente comum que tinham
estabelecido. Como consequência se produziu um esforço de revolução no
Jujuy, que foi finalmente controlado. Não obstante, os telegramas e
mensagens trocados entre Juárez Celman, Roca e o próprio governador
Martín Tormo durante os dias em que se sufocava os revoltosos, foram
interceptados por Sarmiento e apresentados na reunião de gabinete como
provas autênticas da “reprovada” intervenção do ministro da Guerra nos
assuntos jujeños85 com frases pessoais e eleitoreiros. Furioso, Sarmiento
exigiu a renúncia do general Roca que a apresentou sem maiores
discussões.

- Não se exaspere, Artemio - pediu Roca, enquanto assinava as


últimas resoluções como ministro -. De todas as maneiras, cedo ou tarde,
teria tido que renunciar para me dedicar a minha candidatura. Não se pode
estar na procissão e repicar os sinos.

85
Natural de Jujuy (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Sim, general - concordou Gramajo -, mas ter tido que
apresentar a renúncia, porque Sarmiento se saiu com a sua, isso é o que me
indigna!

- Ele fez sua jogada. Eu farei a minha - foi a resposta do


general. Gramajo seguiu enchendo caixas com aqueles documentos e
correspondência que Roca não desejava que fossem dirigidos por outros.
Cada tanto estalava a língua e movia a cabeça em sinal de contrariedade, e
Roca sorria.

- Não seria melhor permanecer em Buenos Aires? - perguntou


Gramajo.

- Não, Artemio. Minha presença só exacerbaria até mais as


coisas, se isso fosse possível. Além disso, para que permanecer em um
lugar onde já está tudo perdido? Melhor vou às províncias onde há muito
por fazer.

- A Córdoba?

- Para Córdoba, certamente enviarei Clara e os meninos. Eu,


não sei. Possivelmente. Iriondo - Roca falava do governador da Santa Fé -
convidou a Rosário, onde, diz, receberão-me com grandes tambores
grandes e pompas. Mas não se aborreça, Artemio, não me partirei amanhã
mesmo. Aqui existem questões por resolver.

- Quer que vá ver Madero para arrumar o assunto da casa da


Suipacha e o pagamento da renda?

- Com quem quero que fale - manifestou Roca - é com a


senhora Riglos. Necessito que a chame na casa do Chavango, para me
despedir.

- Não é arriscado, general?

- É obvio que é, Artemio. Mas não cheguei até aqui por ter-me
acovardado ante o arriscado.

Uma semana mais tarde, Artemio se apresentou na casa do


general na Rua de Suipacha. Clara o acompanhou até o escritório enquanto
se queixava de quão afitiva tinha sido a mudança. No entanto, voltar para
Córdoba e reencontrar-se com seu família em La Paz tornava a tarefa mais
suportável.

Tradução Lauren Moon


- Vou trazer um café com rosquinhas de anis que acabo de
comprar - prometeu a mulher, e saiu do escritório.

Roca indicou a Artemio uma cadeira na frente dele e aguardou


que os passos de sua esposa se afastassem para começar a falar.

- O que sabe dela? - perguntou.

- Nada, general - disse Artemio.

—Como nada? —chateou-se Roca.

- Digo-lhe que nada, general. Ninguém sabe nada da viúva de


Riglos. De sua criada tampouco. Parece que deixou a cidade. Depois do
casamento de sua mãe, evaporou-se.

- E do inglês que a cortejava? O que averiguou dele?

- Lorde Leighton, chama-se. Ele e sua irmã viajaram junto aos


Lynch para sua estância em Carmen de Areco. Todos os que
prognosticavam um casamento entre ela e o lorde inglês ficaram sem
entender. Há quem a relacione com um tal Lorenzo Rosas, que a salvou de
Lezica, lembra-se? Mas não pude confirmar a informação. O certo é que
desapareceu burlando a todos.

- Não me surpreende - expressou Roca - quando é de Laura


Escalante de quem falamos.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXXI.

De retorno a Rio Cuarto

Embora não o mencionsse a Maria Pancha, Laura sentiu mal-


estar no baixo ventre depois que iniciaram a viagem de trem. Perto de Rio
Cuarto, o tal mal-estar se converteu em um ponto que não pôde continuar
escondendo. Maria Pancha a obrigou a se recostar no beliche e colocou
dois travesseiros sob seus pés. Ela conhecia diversas infusões para reter
fetos, mas, nesse minúsculo camarote, não contava com nada à mão.
Deviam esperar até chegar a Rio Cuarto.

Laura se pôs a chorar e Maria Pancha correu até ela


rapidamente.

- O que acontece, minha menina? Por que chora? Já falta


pouco para a vila. Não se inquiete.

- Estou sangrando - disse, e Maria Pancha sentiu um tombo no


estômago.

Tratou de reconfortá-la contando de outras mulheres grávidas


que haviam sangrado profundamente e o menino não se perdeu. Contou-lhe
da difícil gravidez de Blanca, da fraqueza e da doença que teve ao longo
dos nove meses, e do esplêndido bebê que tinha sido seu irmão Agustín.
Também se referiu à ocasião em que Magdalena, encontrando-se grávida,
sofreu um grande susto quando um cão tentou mordê-la, e todos
acreditaram durante dias que perderia o menino.

- E nasceu você, berrando como uma condenada, tão vermelha


que parecia uma granada. A parteira disse que quando os meninos nascem
tão vermelhos é porque logo terão essas peles brancas e diáfanas que
parecem transparentes. Já vê que não se equivocou. Seu bebê nascerá tão
saudável como você ou como seu irmão Agustín.

- Morrerei se também o perco - choramingou Laura.

- Assim como me chamo María Francisca Balbastro, você não


perderá este filho.

Tradução Lauren Moon


Maria Pancha a ajudou a descer do trem. Às vezes, a dor a
dobrava e não podia avançar. Agustín as esperava na estação e, ao ver sua
irmã tão macilenta, com o gesto da dor pintada no rosto e assistida por
Maria Pancha, correu a seu encontro.

- Leve-nos para a casa do doutor Javier - ordenou a criada.

Agustín saiu da estação e alugou um carro ínfimo, puxado por


um burro que piorou o martírio de Laura. No entanto, até chegar aos Javier,
encontrou fôlego para perguntar recorrentemente por Nahueltruz. Sem
precisar detalhes, Agustín insistiu em que nada de mal tinha-lhe
acontecido. Ela, entretanto, queria detalhes.

- E Racedo?

- Ele nem sequer se inteirou de que Nahueltruz estava em Rio


Cuarto. Fique tranquila, não se agite. Agora só pense em se recuperar.

No doutor Javier a receberam com o afeto de sempre.


Imediatamente, dona Generosa indicou que a levassem ao quarto que tinha
sido de seu filho Mario, onde a despiram e agasalharam. O doutor Javier
apareceu depois de uma breve conversa com a Maria Pancha em que
Agustín se informou que ia ser tio.

- Já soube que estou grávida, doutor? - perguntou Laura,


enquanto o médico aproximava uma cadeira à cabeceira.

Javier assentiu com um sorriso.

- Parece que os Escalante só sabemos lhe trazer problemas,


doutor.

- Enquanto possa resolvê-los, Laura, ficarei feliz. Minha


esposa e eu lhes devemos muito, tanto a você como a seu irmão. Nunca
esqueceremos o que ambos fizeram por Mario. Ele nos escreve
frequentemente e nunca deixa de mencionar sua generosidade.

- Ele é merecedor de toda minha confiança e afeto - assegurou


Laura, e um golpe de dor lhe tirou o fôlego.

O doutor Javier apoiou a mão sobre o ventre e o notou duro


como uma pedra.

- Laura, respire pelo nariz e exale pela boca. Vamos, faça o


que eu digo. Assim, muito bem, repetidas vezes. Não inspire tão
Tradução Lauren Moon
profundamente ou terminará por te enjoar. Assim, bem. Pouco a pouco,
lentamente, a dor remeterá e se sentirá melhor. Vamos, respire.

Javier a acompanhou com palavras de ânimo até que Laura


começou a relaxar sobre a cama. Controlava seu pulso continuamente,
limpava-lhe o suor da testa e e apalpava seu ventre. Dona Generosa
apareceu com uma infusão de flores-de-laranja que deu de beber a Laura na
boca. Um momento mais tarde, a moça dormia profundamente.

- Graças a Deus - expressou Agustín.

- O risco de perder o bebê é grande - diagnosticou Javier -. O


único que pode fazer nestes casos é repousar, movimentar-se o menos
possível e esperar.

- Não existe nenhum remédio, doutor? - perguntou Agustín -.


Algo que evite que o bebê permaneça?

- Só repouso - insistiu o médico -. Repouso e paz. Nota-se que


Laura padeceu durante os últimos dias. Tem o semblante abatido e a noto
muito magra.

- Padeceu - ratificou Maria Pancha - e por culpa desse


demônio do Guor.

- Maria Pancha, por favor.

- Virtualmente não se alimentou e dormiu muito mal -


prosseguiu a negra.

Quando se falou que Maria Pancha e Laura se instalariam no


hotel de France, o único aceitável da vila, tanto o doutor Javier como dona
Generosa se opuseram ferreamente.

- Não é conveniente sequer movê-la até o hotel - indicou Javier


-. Vamos deixá-la onde está, que nós cuidaremos dela como se fosse nossa
filha.

- Sim, nossa filha - repetiu dona Generosa.

- Maria Pancha - falou novamente Javier -, nem fale em


retornar a Buenos Aires até dar a luz ao menino. Outra viagem como esta e
não respondo pela vida de nenhum dos dois, nem a da mãe nem a do filho.

~0~
Tradução Lauren Moon
Foi dona Generosa quem salvou Laura de cair
irremediavelmente na desesperança. Com seu otimismo e ingenuidade,
soube atrai-la e convencê-la de que o bebê nasceria são e forte e de que
seus outros problemas se resolveriam simplesmente pedindo a Deus. Laura,
que se sentia vulnerável e sozinha, não demorou a ficar debaixo de sua asa
protetora e deixar-se levar por seus conselhos. Maria Pancha compreendeu
a ascendência que dona Generosa tinha conseguido sobre sua menina Laura
e, em um grande ato de amor, deu um passo ao lado e a deixou atuar sem
interferências. Encarregou-se dos afazeres domésticos para que a mulher
passasse a maior parte do tempo junto a ela.

- Deixe apenas, Generosa - lhe dizia frequentemente -, eu o


farei. Você vá com minha Laurita, que lhe faz tão bem.

Dona Generosa ensinou Laura a rezar. Catequizada na escola


de dona Ignacia, Laura tinha chegado a detestar a recitação do Rosário;
para ela, rezar significava declamar um parágrafo enquanto sua mente
remontava vôo e se perdia. Com dona Generosa era diferente. Ela falava
com a Santíssima Trindade, com Maria e com todos os Santos, como se o
fizesse com uma pessoa de carne e osso sentada na frente dela. Laura se
emocionava até as lágrimas quando dona Generosa fechava os olhos, unia
as mãos e começava a falar com Jesus ou Maria a respeito de seu bebê ou
de Nahueltruz. Frequentemente a fazia rir com suas ocorrências, por
exemplo, quando assegurou que rezar as ladainhas era como fazer elogios à
Virgem. Apesar de se tratar de uma mulher de pouca cultura, citava
versículos do Novo Testamento de memória e inclusive alguns salmos.
Ninguém ganhava quando de Santos se tratava, pois conhecia muito bem a
vida de muitíssimos deles; de alguns, Laura jamais havia escutado falar.

- Jesus prometeu que, se pedíssemos com fé, Ele nos daria


tudo o que desejássemos - contou-lhe em uma oportunidade, e abriu sua
Bíblia de folhas muito consultadas e lhe mostrou vários parágrafos a
respeito -. Jesus nos concederá tudo o que peçamos, assim teremos que
ganhá-lo por saciedade, já verá —assegurou, e até o padre Marcos soltou
uma gargalhada.

Laura permaneceu em estrito repouso por mais de três


semanas. Naquela ocasião, o doutor Javier a autorizou se levantar pela
tarde para que se sentasse no pátio onde o sol quente da primavera a
fortaleceria. A cama a debilitava, e se enjoava ao ficar de pé, mas aí
estavam todos para ajudá-la: dona Generosa, Maria Pancha, Agustín, o
doutor Javier e o padre Donatti, que a visitava diariamente e lhe levava a
comunhão. “Todos, —pensava Laura—, exceto ele”.

Tradução Lauren Moon


Agustín disse a si mesmo que não cometeria os erros do
passado e, quando o doutor Javier permitiu, contou a sua irmã os dias de
Guor em Rio Cuarto com pontos e vígulas. Disse-lhe que Nahueltruz tinha
chegado com o ânimo de uma fera descontrolada e disposto a matar Racedo
e recuperar os ossos do cacique Mariano Rosas, mas ele e o padre Marcos
Donatti tinham feito com que mudasse de sua atitude.

- Pobre meu amor! - suspirou Laura -. Que padecimento!

- Foi duro e às vezes acreditei que não o obteríamos, mas o


convencemos a deixar o assunto em nossas mãos. Nós já tínhamos
começado a falar com o coronel Racedo para persuadi-lo a devolver os
restos mortais de Rosas, e prometemos a Nahueltruz que o conseguiríamos.

- Conseguiram-no? - esperançou-se Laura.

- Não ainda. Racedo é teimoso e quer doar os ossos a um


museu de Ciências Naturais em Berlim.

- Que homem tão cruel! Acredita que profanando a tumba do


pai, vingará-se do filho. Acredita que espalhando seus restos mortais pelo
mundo, conseguirá fazê-lo pagar pela morte desse canalha que era seu tio.
Que remédio mais inútil!

- Às vezes me aflige tanto a injustiça com a que convivo


diariamente, as mortes, a vingança, o ódio, a mentira, que temo que chegue
a me acostumar. Às vezes, contra minhas próprias crenças, perco a
esperança.

Laura acariciou sua bochecha e o compadeceu, e Agustín


deixou descansar seu rosto na concavidade de sua mão.

- Como o persuadiram para que não acabasse com Racedo?

- Na realidade - disse Agustín -, acredito que Nahueltruz não


tinha intenções de fazê-lo. Se ele tivesse estado decidido, nem eu nem o
padre Donatti teríamos podido com sua vontade de ferro. Sim, falamos com
ele, e falamos muito, mas sinceramente acredito que ele chegou até aqui
movido por um sentido de dever e não por verdadeiro convencimento. Ele
se culpa por ter abandonado seu povo, já sabe de cor, e grande parte de suas
atitudes e ações nascem como consequência dessa culpa. Matar Racedo e
recuperar os restos mortais de seu pai, por exemplo, eram destas ações.
Quando percebeu que nós o desaprovávamos e escutou nossas razões,
deixou-se convencer. Isso, deixou-se convencer. E acredito que se sentiu

Tradução Lauren Moon


aliviado. No fundo, ele deseja acabar com esta história de morte e
vingança que tende a perpetuar-se. Acredito que está disposto a pôr um
bastá até aqui.

- O que foi feito dele? Continua em Rio Cuarto?

- Não. Viajou para Mendoza “para atender uns negócios”,


conforme disse, e eu não me atrevi a questioná-lo. Não tornei a saber dele,
mas antes de partir para Mendoza confessou-me que lhe urgia retornar a
Paris.

Laura baixou a vista para ocultar as lágrimas, que sem remédio


alagaram seus olhos.

- Vamos, Laura, não fique assim ou não continuarei lhe


contando. Já sabe o que diz Maria Pancha, que chorar tanto estragará o
menino. Terei um sobrinho chorão e frouxo ou uma sobrinha caprichosa
como você. Vamos. O Senhor é misericordioso e sabe de suas aflições.
Jamais lhe abandonará.

- O que mais me dói é que ele me odeie tanto, que pense tão
mal de mim.

- Sabe que não odeia você, não pode lhe odiar. Ama muito
você para isso.

- Disse alguma coisa? Disse algo a respeito de mim? -


perguntou, novamente esperançasa.

E embora Agustín tenha se proposto a lhe dizer a verdade, não


encontrou coragem para repetir as declarações de Guor a respeito dela. Tão
duras tinham sido que Agustín o ameaçou rompendo sua amizade se não
moderasse a sua linguagem.

- Não, Laura - mentiu -, não mencionou seu nome sequer uma


vez.

Agustín tampouco lhe disse que, dias atrás, tinha recebido


carta do Nahueltruz datada em Buenos Aires onde lhe anunciava sua
iminente partida para a França. E também evitou lhe dizer que,
imediatamente, tinha escrito a seu velho endereço em Paris para lhe avisar
que, em poucos meses, teria um filho.

~0~

Tradução Lauren Moon


Apesar de dona Generosa ter conseguido lhe transmitir sua fé,
Laura chegou a convencer-se de que Nahueltruz tinha desaparecido para
sempre de sua vida. Quando esse convencimento se arraigou em seu
coração, restabeleceu contato epistolar com Buenos Aires. Eugenia
Victoria foi uma das primeiras. A ela, como de costume, contou a verdade.
Também escreveu a Eduarda, a tia Carolita e a suas primas Iluminada e
María del Pilar, mas lhes disse que passaria uma temporada junto de seu
irmão. Por último, animou-se a escrever para Magdalena, que já tinha
retornado do Rio de Janeiro. Em todas as respostas, comentaram-lhe sobre
o súbito retorno de Guor a Paris, que nem sequer tinha esperado o
casamento de Beaumont. Para surpresa de Laura, sua mãe lhe respondeu
em um tom de maternal compreensão, que lhe fez desejar tê-la a seu lado,
mas não se atreveu a pedir-lhe por medo de gerar um conflito com seu
marido, o doutor Pereda. Desejava que sua mãe quisesse seu filho apesar de
ser ilegítimo. Necessita que todos o quisessem para paliar a falta de pai e a
crueldade de uma sociedade que o condenaria. Ao vê-la angustiada, Maria
Pancha lhe enumerava casos de filhos ilegítimos aos quais ninguém
menosprezava; citava como exemplo a Faustina, filha natural de Sarmiento,
ou a inumerável prole de Justo José da Urquiza, em geral todos bem
casados e aceitos (uma das Urquiza era a esposa do renomado portenho
Benjamim Victorica).

- Mas eles - se obstinava Laura - tiveram a sorte de que seus


pais os reconhecessem. Levam o sobrenome paterno. Esse não será o caso
do meu filhinho.

- Seu filho levará o sobrenome paterno e não será ilegítimo -


insistia dona Generosa -, porque assim estamos pedindo a Nosso Senhor.
Deve ter fé, Laura. Com fé, moverá montanhas.

Também escreveu a Julio Roca sem maiores esperança de


obter resposta, porque imaginava que o general e sua família já teriam
deixado a capital. Enviou o envelope à casa da Rua Chavango em nome do
coronel Artemio Gramajo. Maria Pancha lhe perguntou por que tinha lhe
escrito.

- Porque o quero, Maria Pancha. Porque lhe devo a vida de


Nahueltruz e outros favores. Além disso, prometi-lhe que seria sua amiga e
que sempre estaria disposta a ajudá-lo. Não quero que ninguém nunca volte
a me chamar traidora. Este é um momento difícil na vida de Julio e
possivelmente precise de mim.

Laura, no entanto, sabia que, em parte, o fazia movida por um


sentimento de vingança. Às vezes imaginava quão reconfortante seria
Tradução Lauren Moon
machucar Nahueltruz do modo com que ele a tinha machucado. Ao padre
Donatti, a quem tinha confessado toda sua história, também lhe mencionou
este perverso desejo.

- Trata-se do pai do meu filho - expressou -, e, entretanto não


posso evitar odiá-lo. Não quero odiá-lo - assegurou com paixão -, mas o
dano que me causou tornou-me rancorosa.

- Não pense só no dano que ele lhe causou a não ser no qual
você causou a ele. Não só você tem que perdoá-lo, mas também ele a você.
E como pensa obter o perdão se primeiro não for capaz de perdoar?
Outorgar o perdão, Laura, é uma ação que primeiro beneficia a quem o
concede. Imediatamente lhe alaga a paz do Senhor e as angústias começam
a desaparecer. Como dizia São Francisco “é perdoando que se é perdoado”.

- Eu quero perdoá-lo, mas me resulta difícil - aceitou sem


maiores brios.

Laura recuperou o espírito na manhã em que o doutor Javier


lhe assegurou que tinham superado o maior risco. Devia agir com extrema
prudência, mas deixaria a cama para levar uma vida normal e ordenada.
Fazia dias que não a atormentavam as náuseas matinais e tinha perdido o
asco à carne e ao leite. Dona Generosa cumpria de pés juntos as indicações
de seu marido e a alimentava “como se fossem comê-la no Natal”,
conforme se queixava Laura. O certo era que as comidas nutritivas e
variadas lhe devolveram as forças e as cores ao semblante, não se enjoava
ao caminhar e não se cansava nem a curvava a sonolência em qualquer
lugar que estivesse.

As amigas de dona Generosa tomaram-lhe grande afeto. Tanto


que do apuro em que se achava, só e com um filho a caminho, nenhuma
perguntava pelo pai do menino e, pelo contrário, falavam da ropinha do
enxoval, de possíveis nomes, de como amamentá-lo, de como trocá-lo, de
quanto era conveniente lhe dar o primeiro banho e os demais. Laura as
escutava com interesse e anotava alguns conselhos.

A vida em Rio Cuarto distava muito da de Buenos Aires. Não


havia teatros nem salões reluzindo; tampouco lojas de artigos de luxo nem
clubes tornados famosos. As pessoas eram mais simples e se comportavam
com soltura. Vivia-se de maneira relaxada sem prestar atenção à
parafernália de aspectos que deviam atender-se na grande capital. Embora
menos arrumados que os portenhos, os riocuartenses eram igualmente
aficionados à fofoca, e a presença Laura, uma dama tão distinguida como
misteriosa, alvoroçou as conversas em tabernas e reuniões vespertinas.
Tradução Lauren Moon
Cada dia tecia-se uma história e, frequentemente, se recordava aquela em
que ela tinha tido como amante o índio Nahueltruz Guor, que tinha
assassinado o velho coronel Racedo. Nos últimos meses, quando a gravidez
se tornou notória, Laura saía sem cobrir o ventre, o que provocou escândalo
entre as senhoras, e as fofocas recrudesceram. Embora soubesse que a
criticavam, Laura não percebia um ambiente hostil, mas bem se sentia
admirada, possivelmente invejada. As senhoras se esforçavam por saudá-la
à saída da missa e as mais jovens copiavam seus vestidos e penteados.

Para surpresa de Maria Pancha, mas em especial da própria


Laura, dona Generosa obteve que tecesse uma mantita de berço. Inimizada
com os trabalhos, Laura não sabia quão gratificante resultava elaborar um
objeto que depois abrigaria um ser querido. Seu entusiasmo a levou a
comprar na loja de Ricabarra toda classe de equipamento: agulhas, lã de
diferentes tipos e cores, botões, rendas, galões, fitas, fio para bordar, um
bastidor, tecidos e tesouras. Passava-se horas tecendo, costurando e até
bordando. Lia de noite e pouco, e escrevia sozinha a correspondência. O
doutor Javier insistia para que caminhasse meia hora por dia, bem cedo
pela manhã ou ao entardecer, quando o sol do verão minguava sua
inclemência; devia fazê-lo de maneira pausada e lenta, detendo-se quando
se cansasse. Dona Generosa, Maria Pancha e ela aproveitavam para ir
caminhando até a missa das sete no convento de San Francisco oficiada
pelo padre Agustín, que logo as recebia na sacristia onde benzia seu
sobrinho, apoiando a mão no ventre de Laura. De volta, tinham-se
habituado a parar na padaria porque Laura vivia desejada muito de uns
pães-doces fritos cheios de nata pasteurizada que desfrutava especialmente
no café da manhã. Se não se sentisse cansada, voltava a sair à tarde;
acompanhava dona Generosa para visitar alguma amiga ou parente ou
simplesmente ia às compras com Maria Pancha. Quando Laura expressou
seu desejo de acompanhar Agustín a El Tala, a terra que o governo tinha
entregue ao cacique Ramón “Platero” Cabral em troca de sua submissão, o
doutor Javier se mostrou inflexível.

- Onde há índios - pronunciou -, há varíola. Contagiar-se é


grave, mas, encontrando-se em estado, é muito grave. Se sobreviver, o
menino poderia nascer privado de visão ou o que é pior, com danos no
cérebro. Nasceria tolo, pois.

O doutor Javier não se caracterizava por ser alarmista, de


modo que, ao vê-lo tão severo, Laura o obedeceu sem falar. Para ela, não
havia nada mais importante que seu filho. Senti-lo dentro de si constituía o
momento mais feliz do dia, e se passasse um em que não o fizesse,
angustiava-se e recorria ao doutor Javier que, com um sorriso paciente,

Tradução Lauren Moon


dizia-lhe: “Certamente dorme”. Como saber se dormia ou se algo mau
ocorria? No dia seguinte, quando o movimento tão particular voltava a
produzir-se em seu ventre, a paz lhe retornava à alma. Fazia quanto dona
Generosa e Maria Pancha indicavam-lhe, apesar de que algumas práticas
resultavam cansativas e outras sabiam muito mal, como a colherada em
jejumas de azeite de fígado de bacalhau ou o tônico de casca de ovo,
invento de seu tio avô Tito. Assim como com Blanca Montes primeiro e
com Magdalena depois, Maria Pancha se ocupava de massagear
diariamente o corpo de Laura, em especial suas pernas e seu ventre, com
um azeite de amêndoas.

- Não é questão de que vai arruinar sua aparência - expressava,


enquanto sovava com perícia.

Também lhe ensinou a preparar seus mamilos para amamentar


porque Laura tinha manifestado que não queria que uma ama-de-leite se
ocupasse de seu filho.

~0~

Laura tinha evitado a horta dos Javier. Trazia-lhe lembranças


que, nessas circunstâncias, tornavam-se dolorosas e indesejáveis. Uma
tarde, entretanto, se aventurou no pátio e caminhou até entrar na horta, até
acariciar inclusive o tronco do limoeiro, testemunha de tantos beijos e
diálogos. Apoiou a mão sobre a grossa nogueira e fechou os olhos para
evocar as imagens que chegaram com vivida clareza; reteve o fôlego ao
experimentar novamente a áspera casca em suas costas e a virilidade do
Nahueltruz entre suas pernas. “Por que me faz isto?”, ele tinha-lhe
reprovado. “Não se dá conta de que me deixa louco? De que sou capaz de
tomá-la aqui mesmo, sobre a acelga e as cenouras de dona Generosa?”.
“Sim, sim. Não me importa”, tinha sido a resposta dela.

- Nahuel, meu amor! - choramingou, e apoiou ambas as mãos


sobre a árvore, enquanto deixava cair a cabeça para frente -. Como
chegamos a esta situação tão penosa se nos amamos tanto?

Essa noite, ela despertou subitamente por causa de um sonho


erótico. Surpreendeu-se porque jamais pensou que uma mulher grávida
experimentasse desejo sexual. Tinha acreditado que as grávidas passavam
os nove meses suspensas em uma espécie de limbo onde a concupiscência
não tinha capacidade, onde a maternidade as salvava dos arranques
passionais da carne. O certo foi que o desejo por Nahueltruz a acompanhou
com o passar da gravidez e, embora lhe provocasse uma grande
insatisfação, a ajudou a deixar de lado suas idéias de ódio e revanche, a tal
Tradução Lauren Moon
extremo que se convenceu de lhe escrever para dizer que esperava um filho
dele. De repente, as apreensões de meses atrás se desvaneceram.

- Agustín - disse -, decidi escrever a Nahuel e lhe contar que


vou lhe dar um filho. Preciso que me dê seu endereço em Paris.

- Apesar de sua oposição inicial, eu lhe escrevi.

- Disse-lhe que estou grávida?

- Essa foi a razão principal.

Laura guardou silêncio, enquanto pensava se deveria zangar-se


com Agustín por atuar a suas costas em um assunto de tanta relevãncia.
Não obstante, soltou um suspiro e se resignou. Estava farta de
recriminações e aborrecimentos.

- Permite-me ler sua resposta?

- Nunca houve resposta - Agustín sentiu pena -. Enviei duas


cartas e não obtive resposta. Faz dias enviei uma terceira. Temos que
aguardar.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXXII.

De retorno a Paris

Nahueltruz entrou no camarim de Geneviéve e a encontrou


sentada na frente de sua penteadeira, tirando a maquiagem. Seus olhares se
cruzaram no espelho e a jovem sorriu. Nahueltruz se inclinou e lhe beijou a
nuca.

- Tu as été merveilleuse, superbe —lhe sussurrou—, comme


86
d’habitude .

Sem se virar, Geneviéve acariciou sua bochecha e lhe dedicou


outro sorriso.

- Merci, mon chéri.87

- Acabo de cruzar com Leo - Nahueltruz se referia a Leo


Delibes, o compositor do balé Coppélia que Geneviéve acabava de
protagonizar - e me grantiu que ninguém o interpreta como você. Que
ninguém o interpretará jamais como você.

- Oh, tu sais, Lorenzo, il est un peu exagere.88

- Je ne suis pas d'accord. Il dit seulement la vérité.89

Nahueltruz pôs de lado um montão de vestidos e frufrus e se


tornou sobre o divã; acendeu seu cachimbo e aspirou várias baforadas antes
de voltar a falar.

- Iremos finalmente à recepção em casa de Didier?

- Mais oui, mon chéri. Todos meus amigos irão - observou


Geneviéve -. Além disso, sabe que esta festa é para celebrar o êxito da
Coppélia. Não posso faltar.

Nahueltruz gostava de passar o tempo com Geneviéve; de fato,


virtualmente vivia em seu apartamento na Place Vendóme. Mas seus

86
Você esteve maravilhosa, soberba, como de hábito (N. da Tradutora)
87
Obrigada, meu querido (N. da Tradutora)
88
Oh, você sabe, Lorenzo, ele é um exagerado. (N. da Tradutora)
89
Eu não estou de acordo. Ele diz apenas a verdade (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


amigos eram farinha de outro saco. Muito boêmios, intelectuais e
desorientados. Punham-no incômodo suas extravagâncias e o chateavam
suas conversas. Geneviéve, em troca, adorava-os e, embora admitisse que
fossem peculiares, deixava-se venerar por eles.

Didier du Lapoint era o benfeitor mais importante da Ópera de


Paris. Doava vultosas somas que não faziam falta em seu modo de vida.
Diziam que, na realidade, seu verdadeiro sobrenome era judeu, e que seu
avô tinha feito fortuna praticando a usura. Seu pai tinha ensaiado toda
classe de histórias para afastar-se desse passado abafadiço; igualmente
Didier ao seu devido tempo. A critério de Nahueltruz, os du Lapoint
delatavam que não eram aristocratas, porque nunca haviam aprendido a
comportar-se como tais. Didier gostava de pavonear suas novas aquisições
de arte, não para que suas amizades admirassem a técnica ou a beleza da
obra, mas para ver as expressões em seus rostos, quando lhes informava
quanto tinha pago por elas. O mesmo ocorria com seus cavalos. Estava
muito pendente da moda e estava acostumado a pagar preços ridículos por
trajes ridículos simplesmente porque se tratava da confecção do alfaiate
mais caro de Paris. Abarrotava as salas de sua mansão com caros adornos
que só a voltavam redeixavam carregada e de duvidoso gosto. Seu amor
pelo dinheiro não conhecia limite e, embora de certa forma todos os
parisienses o amassem, o que lhe atribuíam era que ele não tivesse a
elegância de ocultar sua paixão.

Por estas razões, Nahueltruz se surpreendeu ao topar-se com


os Monterosa, Ventura e sua irmã Marietta, a duquesa de Parma, no
apartamento de Didier du Lapoint. Eles, educados na estrita e formal
aristocracia veneziana, conversando com alguém tão por debaixo era
simplesmente incrível. A duquesa lhe falou em italiano.

—Lorenzo, que gratificante lhe encontrar em meio de tanta


gente desconhecida! Eu não tinha desejos de vir. Fiz isso só pela doce
Geneviéve, que quer a todo o mundo sem reparar em defeito algum. É sua
maior virtude, sem dúvida. Além disso, quis acompanhar Ventura que, ao
inteirar-se de que tinha retornado da América do Sul América, se interessou
em vê-lo.

O comentário era até mais inesperado que a presença dos


Moterosa, em especial se considerassem o término de sua relação com
Ventura, depois do último encontro em casa dos Lynch, durante o
aniversário de Eugenia Victoria, onde o motivo da disputa tinha sido Laura.

- Vou procurá-lo - disse a duquesa, e se afastou.

Tradução Lauren Moon


Geneviéve o surpreendeu entretido em seus pensamentos.
Pendurou-se em seu pescoço e o beijou nos lábios. Era uma das
extravagâncias que só Geneviéve tinha permissão; quando em outras teriam
provocado murmúrios mal intencionados, nela provocavam sorrisos
benévolos. Por sua vez, Nahueltruz pegou-a pela cintura e devolveu o
beijo. A duquesa de Parma se aproximou e aproveitou para felicitá-la por
sua atuação em Coppélia. Atrás dela, vinha seu irmão.

- Rosas - disse a modo de saudação, e inclinou a cabeça ao


tempo que estendia sua mão.

- Monterosa - replicou Guor, e apertou com firmeza a mão


oferecida. Certa tensão na troca de olhares provocou em Geneviéve uma
curiosidade pouco comum nela e, enquanto respondia às perguntas da
duquesa, seus olhos saltavam do rosto do Lorenzo ao de Ventura.

- Pensei que retornaria com meu cunhado e Saulina - foram as


primeiras palavras de Monterosa.

- Assim tinha-me disposto a princípio - admitiu Guor -, mas


circunstâncias imprevistas me obrigaram a retornar antes de tempo.

- Como está a senhora Riglos? - disparou Ventura ipso facto90.

A duquesa sossegou seu falatório, e tanto ela como Geneviéve


aguardaram uma resposta. Nahueltruz tomou a pergunta como uma
provocação e replicou de mau modo:

- Duvido que continue fazendo-se chamar senhora Riglos.


Neste momento deve ser lady não sei das quantas, pois conquistou um
nobre inglês imensamente rico que, dizem, está aparentado com a rainha
Vitória. Surpreso? Não estaria se a conhecesse. Já vê, querido Ventura, que
a senhora Riglos não se conformou com que fosse o irmão da duquesa de
Parma. Ela queria mais. Sempre quer mais. Devia ter-lhe advertido disso
quando ainda era tempo. Devia ter dito: “Cuidado, Ventura, este é um jogo
que a viúva de Riglos gosta de jogar: destroçar o coração dos homens”.
Com licença - desculpou-se e, depois de uma breve inclinação de cabeça,
afastou-se em direção à porta.

Geneviéve se desculpou com os Monterosa e o seguiu a passos


rápidos. Alcançou-o quando Nahueltruz chegava ao vestíbulo.

- Vou embora - disse -, estou cansado e um pouco bêbado.


90
Como consequência direta (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Irei com você - manifestou Geneviéve.

A viagem até a Place Vendóme foi incômoda para ambos.


Nahueltruz não emitiu uma palavra e ela não se atreveu a fazê-lo.
Entretanto, ao chegar, fizeram amor. Nahueltruz começou a tirar suas
roupas na sala e, antes de entrar no quarto, Geneviéve estava
completamente nua entre seus braços. Sem dúvida, Lorenzo Rosas era o
melhor amante que Geneviéve tinha tido. A princípio, suas práticas sexuais
a tinham assustado; até esse momento, ela só tinha tido dois amantes e,
pelo que podia ver, carentes de imaginação e egoístas. Mas Lorenzo a
ajudou a deixar de lado preconceitos e medos e a descobrir o mundo de
prazer oculto entre suas pernas, e o fez com tal mestria que não passou
muito até que ela, antes tímida e reticente, perseguisse-o pela casa lhe
rogando que a tomasse. Na cama ou onde quer que fizesse amor, Lorenzo
mostrava um aspecto distinto, bem diferente ao que detinha entre seus
amigos e com o Blasco. Na cama, Lorenzo abandonava seu ar bem cuidado
de chevalier91 para converter-se em um sauvage américain92; seu
comportamento se balançava sobre uma linha tão sutil entre a decência e a
indecência que Geneviéve mais de uma vez tinha terminado com remorsos.
Ele, entretanto, mostrava-se tão seguro e à vontade que logo varreu com
seus últimos temores. Estava acostumado a lhe pedir:

- Na cama seja tão livre como o é no palco.

Só de vê-lo entrar na casa acelerava seu coração. Sua figura


contundente e forte enchia sua cabeça de idéias; seu sorriso melancólico a
seduzia e seus olhos cinza a enfeitiçavam. Amava-o. Louca e
apaixonadamente, amava-o. E embora ela tivesse se declarado, ele nunca o
tinha feito. Em parte atiçada por Eduarda Mansilla, Geneviéve suspeitava
que no misterioso passado do Lorenzo existisse uma mulher que o marcou
fatalmente, que lhe impedia de entregar-se em sua plenitude. Depois de
fazer amor, tinha por costume mergulhar em um silêncio letárgico até que
dormia. “Que pensamentos tranca sua mente?”, perguntava-se Geneviéve.
“É ela quem o afasta de mim apesar do momento compartilhado?”. Tratava
de imaginar essa mulher sem rosto, de lhe encontrar um nome (por isso
sempre perguntava nomes em espanhol a Eduarda), de adivinhar seu
caráter, seu estilo para se vestir, as formas de seu corpo, as feições de seu
rosto. Porque, fosse como fosse, linda ou feia, culta ou rude, elegante ou
desgrenhada, Lorenzo ainda a amava.

91
Cavalheiro (N. da Tradutora)
92
Americano selvagem (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Por isso Geneviéve se aterrorizou quando Lorenzo disse que
viajaria a Buenos Aires para quitar questões de família. As dúvidas a
atormentaram a cada dia que Lorenzo se ausentou e, por momentos,
duvidou voltar a vê-lo. Mas Lorenzo havia retornado e estava com ela;
virtualmente não se separava de seu lado. A intuição, mesmo assim, ditava-
lhe que aguma coisa de natureza grave tinha acontecido na América do Sul,
porque o Lorenzo que havia retornado não era o que ela acompanhou até o
porto de Calais seis meses atrás. Muito contava a carta de Eduarda recebida
poucos dias atrás onde manifestava sua suspeita a respeito de um romance
entre Lorenzo e uma viúva de Buenos Aires, Laura Riglos se chamava, a
mesma por quem havia perguntado Ventura Monterosa e que tinha gerado
essa resposta tão insólita por parte de Lorenzo. Não restava dúvida, Laura
Riglos era a misteriosa mulher que por anos tinha desejado conhecer. Ao
menos, já sabia seu nome e algumas de suas características através do olho
de Eduarda Mansilla.

Geneviéve deixou a cama e partiu para a penteadeira.


Nahueltruz a seguiu com a olhar e não pôde evitar comparar esse corpo
gracioso e magro com o de Laura, cheio de curvas e formas. Os seios de
Geneviéve eram os de uma adolescente; os de Laura, os de uma ama-de-
leite; as pernas de Geneviéve pareciam as de um flamingo, enquanto as da
Laura eram carnudas e torneadas; o rosto de Geneviéve era anguloso com
maçãs do rosto salientes e lábios finos; as feições de Laura, ao contrário,
eram arredondadas e seus lábios, grossos; a pele morena de Geneviéve, que
tão bem combinava com seus olhos azuis, contrastava com essa brancura
de Laura, que se avermelhava com só de lhe passar um dedo; o andar de
Geneviéve era, definitivamente, distinto do de Laura; nenhuma carecia de
elegância e, entretanto, Geneviéve o fazia com uma sutileza adquirida
depois de horas de prática levada à barra, que conferia a impressão de que
deslizava como se flutuasse; o de Laura, ao contrário, não era suave, mas
decidido, quase soberbo; Laura entrava em um salão, e sua atitude e gesto
pareciam desafiar: “Aqui estou eu, quero ver quem se atreve”.

Geneviéve retornou à cama e lhe passou um prato com frutas


secas que Nahueltruz aceitou com agrado.

- Espero que Didier não fique desgostoso com você por ter ido
assim da festa, tão improvisadamente, sem saudar nem agradecer a
comemoração.

Geneviéve sacudiu os ombros e continuou procurando


amêndoas.

-Quem é a senhora Riglos? - perguntou um momento depois.


Tradução Lauren Moon
- Por que quer saber? - disse Guor para ganhar tempo.

- Deve tratar-se de uma mulher importante para que Ventura se


aproxime de você perguntando só por ela e não pelo Armand e Saulina, e
também para que você tenha reagido estranhamente.

- Estranhamente?

- Respondeu-lhe com ódio. Não - se corrigiu -, não com ódio.


Fez isso com a atitude de quem está com ciúmes.

Ficaram calados. Embora ela tentasse uma atitude indiferente


enquanto pinçava no prato de frutas secas, seu pulso tinha se acelerado.

- Fomos amantes - admitiu Nahueltruz.

O coração de Geneviéve deu um salto e imediatamente uma


sensação de perda a deixou aturdida.

- Agora, nesta última viagem? - disse, e imediatamente se


envergonhou por perguntar algo tão óbvio.

- Fomos em 73 - explicou Nahueltruz -, por escassos dias.


Voltamos a ser agora, também por escassos dias.

- Remarca o “escassos dias” como se pudesse me convencer de


que ela nada significa para você quando o certo é que não pode tirá-la da
cabeça. E me animo a dizer que do coração tampouco.

- Não falarei dela com você - expressou Guor, aborrecido -.


Ela é meu passado. Acredite-me quando digo que agora só você me
importa, o presente.

~0~

No dia seguinte, enquanto tomavam o café da manhã,


Geneviéve procurava no Le Figaro as críticas a Coppélia. Apesar de estar
habituada a que os jornais a mimassem, Geneviéve se deleitava com a
oportunidade de cada estréia quando os críticos voltavam para coroá-la
como a rainha do Palais Garnier. Servia para reafirmar seu triunfo e obter
a segurança que não encontrava em Lorenzo; ao menos, seu público a
adorava sem condições e ela não compartilhava o podio com nenhuma
outra; ela era unique. Leu em voz alta alguns parágrafos, os mais curtos, e
riu e comentou com a espontaneidade que tão atraente a deixava.
Nahueltruz tirou-lhe o jornal e a contemplou seriamente.
Tradução Lauren Moon
- O que aconteceu? - ela se impacientou.

- Case-se comigo, Geneviéve.

A jovem ocultou sua surpresa e desconcerto atrás de um


sorriso irônico. Quantas vezes tinha ansiado escutar essas palavras da boca
de Lorenzo! Mas, agora que as pronunciava, machucavam-na
profundamente.

- Ah, mon chére Lorenzo, não sabe o que diz. Sempre deixou
bem claro que você e eu seríamos livres, que nada nos ataria a este mundo
exceto a própria vida, não foram essas suas palavras?

- Isso foi há muito tempo. Não penso o mesmo agora -


expressou, sombriamente.

- Pergunto-me - continuou Geneviéve, sem abandonar o


sarcasmo - por que agora iria querer se casar quando tão somente meses
atrás a ideia lhe repugnava.

- As coisas mudaram. Eu mudei.

- Suspeito que a senhora Riglos tenha muito a ver com esta


mudança.

- Já lhe disse ontem à noite - pronunciou Guor em tom cortante


- que não falaria dela contigo.

- Lorenzo - pronunciou Geneviéve, e Nahueltruz entreviu certo


aborrecimento em sua voz- , ontem à noite me confessou que ela e você
foram amantes e não fiz um escândalo nem uma patética cena de ciúmes.
Quão único exijo é que seja sincero comigo e me conte a verdade sobre o
vínculo que une você a ela. Acredito merecê-lo.

Nahueltruz tirou o guardanapo de suas pernas e o deixou ao


lado do prato. Apoiou as mãos sobre a borda da mesa como se fosse ficar
de pé, mas não o fez. Levantou a vista até encontrar a de Geneviéve.

- É certo - admitiu -, merece a verdade.

Não só lhe contou a respeito de seu namorico com Laura nessa


última viagem, mas também se remontou ao dia em que se conheceram, no
verão de 73, no pátio da família Javier. Não lhe mencionou, entretanto, que
era índio, simplesmente disse que tinha sido “pobre”. Na opinião da
maioria dos europeus, os negros da África e os nativos da América eram
Tradução Lauren Moon
seres inferiores, inclusive alguns afirmavam que não possuíam alma.
Embora conhecesse a natureza bondosa de Geneviéve, não sabia como
reagiria ao inteirar-se de que fazia anos que se deitava com um ser
inanimado.

Em um momento do relato, Geneviéve notou que os olhos de


Nahueltruz se voltavam brilhantes e a voz, forçada. Afetou-a
profundamente ser testemunha de seu sofrimento porque ela só albergava
uma imagem dele, a de homem forte, duro e frio. Ficou em pé e o abraçou.

- Oh, mon amour, ma vie, mon bien aimé - exclamou -. Quanto


sofreu! Que injusta foi a vida com você!

- Não quero sua lástima, Geneviéve - disse Nahueltruz -. Só


quero que me diga se me aceita como marido.

- Não falemos disso agora. Deixemos passar uns dias até


recuperar a calma. Daí então falaremos.

Nahueltruz retornou a seu departamento da Rua Mont Thabor


e viu Geneviéve em poucas ocasiões, com motivo de reuniões sociais.
Embora Geneviéve seguisse sendo doce como de costume, Nahueltruz
percebia que o entendimento e a confiança se quebraram, e se arrependeu
de ter-lhe confessado a verdade. Semanas mais tarde, depois de uma peça
no Palais Garnier, escoltou-a até seu departamento na Place Vendóme e
voltou a lhe pedir que se casassem. Geneviéve, que tinha pensado
incessantemente e se sentia preparada para tocar no assunto, pediu-lhe que
se sentasse e lhe serviu uma taça de conhaque.

- Quando partiu para a América do Sul - começou -, acreditei


que nunca retornaria. Sabia que tinha deixado alguém muito importante ali
e intuí que voltava para procurá-la.

- Mas aqui estou, retornei - se defendeu Guor -. Vim procurá-


la. Ela já não conta para mim.

- Não, Lorenzo - pronunciou Geneviéve, com ar resignado -,


você não retornou para me procurar, mas para abrandar sua dor. E ela ainda
conta em sua vida. Tanto, que me pede para que me case com você só para
tratar de esquecê-la.

- Geneviéve, por favor - suplicou Guor -. Não é assim.

Tradução Lauren Moon


- Lorenzo, por favor, me deixe falar - pediu ela, e apoiou sua
mão sobre os lábios dele -. Escute bem porque só direi isso uma vez, de tão
doloroso que é para mim. Na realidade, é a coisa mais dolorosa que me
coube dizer. E o farei movida pelo imenso amor que sinto por você. Volte
para a América do Sul, procure essa mulher e se case com ela.

- Do que você está falando? Por acaso não escutou o que lhe
contei, de suas traições, de suas baixezas?

- Ela teve um amante, acreditando que você estava morto.


Você me teve sabendo que ela vivia.

- Ela se deitou com meu pior inimigo, que tanto dano fez a
minha família.

- Perdoe-a, Lorenzo. Como pode ter um coração tão duro e


ressentido amando-a como a ama? Por que insiste em forjar sua própria
infelicidade se unindo a quem não ama?

- Eu amo você, Geneviéve.

- Se você me amasse como a ama eu deixaria tudo, e escuta


bem porque digo tudo, meu balé, que é minha vida, meu teatro, meus
amigos, minha adorada Paris, e partiria com você aonde quisesse me levar.
Mas você não me ama desse modo. Tem um grande carinho por mim,
deseja-me talvez, mas não me ama. E eu, Lorenzo - disse, e seu acento
sofreu uma inflexão, repentinamente endurecido -, estou acostumada a ser a
primeira, a rainha! Não suportaria ocupar o segundo lugar em seu coração.

Nahueltruz a olhou com olhos arregalados, os lábios


entreabertos como procurando profundamente uma palavra que a
convencesse. Por fim, estalou a língua e ficou de pé. Caminhou ao móvel
com bebidas e se serviu de outra taça que bebeu de um só gole. Geneviéve
o seguia com a vista e se compadecia dele.

- Está grávida - disse Nahueltruz.

- Quem?

- Ela, pois.

- Laura Riglos, grávida? Como sabe?

- O padre Agustín Escalante me escreveu para me dizer. Ele


diz que é meu filho.
Tradução Lauren Moon
- E é obvio que é! Não seja néscio.

- Bem poderia ser de outros dois, de Roca ou do lorde inglês.

- Ah, Lorenzo - se incomodou Geneviéve -, nunca pensei que


tivesse uma natureza tão rancorosa.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXXIII.

J.A.R.

O verão avançava lentamente. A estridência das cigarras


avisava diariamente que o calor seria insuportável. Frequentemente caíam
torós que tornavam as ruas intransitáveis e o ambiente se tornava úmido e
asfixiante. Nestes dias de cão, Laura padecia de pés inchados em algumas
ocasiões e de pressão baixa em outras. O doutor Javier proibiu-lhe o sal
para a primeira afecção, para a segunda mandou que ela consumisse
enormes quantidades de água açucarada e respirasse amônia, se
pressentisse que estava às portas de uma vertigem. Laura estava muito
gorda, o que o fazia acreditar que o menino seria grande, situação que
preocupava o doutor Javier.

- Pode ser - resmungava Maria Pancha-, se levarmos em


consideração o tamanho do pai.

Estas preocupações, entretanto, não comunicavam a Laura


para não inquietá-la. Além de seus dias de pés inchados ou dos de baixa
pressão, estava com humor melhor. Continuava costurando e tecendo para
seu filho e, quando o sol baixava, caminhava de braço dado com dona
Generosa até o convento de San Francisco. Também escrevia, não só a
correspondência, mas seus folhetins longamente adiados, La gente de los
carrizos e Siete locos em um barco, a história para crianças. Mario Javier
havia-lhe pedido em reiteradas cartas que os terminasse porque os leitores
estavam impacientes. Também lhe contava a respeito da situação política
na capital, que dia a dia se complicava. Na última carta lhe mencionava as
eleições de deputados em 1° de fevereiro que tinham transcorrido
pacificamente. Dias depois, os rifleros anunciaram que no dia 15
desfilariam pelas ruas de Buenos Aires. Do ministério de Guerra e
Marinha, a cargo de Pellegrini, ordenou-se aos chefes que depuseram sua
atitude provocadora e beligerante, mas receberam por resposta que só
acatavam ordens de Tejedor. O desfile de rifleros se confundiu com o
feriado de carnaval e, embora se registrassem escaramuças, não houve
maiores incidentes. O governo, entrincheirado na Casa Rosada, custodiado
por um regimento completo, teve que tolerar insultos e algumas pedradas e
ovos atirados sem poder responder à afronta, porque os leais a Tejedor
eram, definitivamente, mais numerosos que os soldados da Nação. No dia

Tradução Lauren Moon


seguinte, Carlos Pellegrini ordenou o retorno das melhores formações que
ainda operavam no sul pois, em sua opinião, acabariam com Tejedor e suas
estúpidas idéias bairristas de uma só maneira: com as armas. “Quanto à
editora, - terminava Mario -, no dia 15, durante o desfile de rifleros, sofreu
um curto ataque que os soldados do Sétimo Regimento souberam sufocar
habilmente, apesar de estarem em menor número. O saldo foram alguns
vidros quebrados, que já mandei reparar, e alguns pontos na testa de
Blasco, que foi quem recebeu a primeira pedrada. Ao saber disso, a
senhorita Pura estava inconsolável. Blasco agora passa muito bem e lhe
envia seu afeto”.

No final de fevereiro, Eugenia Victoria lhe escreveu para dar


uma notícia que, que primeiro a deixou atônita, depois, a pôs contente:
lorde Leighton tinha pedido a Esmeralda Balbastro que fosse sua esposa, e
ela aceitou. Desse modo, Laura compreendeu a demora por parte dos
irmãos Leighton em retornar a Inglaterra. A bela Esmeralda o tinha
cativado. “Tiveram oportunidade de se conhecerem durante a visita dos
Leighton a La Armonia, - explicava Eugenia Victoria -. Dia a dia nos
dávamos conta de que o entendimento entre eles se acentuava. Se
saíssemos para caminhar, lorde Leighton e Esmeralda o faziam afastados,
enquanto conversavam incesantemente; se nos reuní semos em torno de um
jogo de mesa, eles se sentavam na sala, alheios a nossa diversão; e
igualmente durante as refeições, nos passeios em calhambeque, à saída da
missa (embora lorde Leighton seja anglicano, participava de nossas
missas). O certo é, querida Laura, que procuravam estar juntos em todas as
ocasiões. Se me perguntar, acredito que fazem um excelente casal.
Esmeralda, proprietária dessa beleza e estilo, não terá inconveniente em se
encaixar na corte inglesa; ele, vê-se feliz e orgulhoso de braço dado com
Esmeralda. Partiram rumo a Londres dois dias atrás, com lady Verity como
acompanhante. Casar-se-ão na catedral daquela cidade, Saint Paul se
chama, que, para nosso desconsolo, pertence à Igreja da Inglaterra.
Esmeralda não apresentou maiores melindres em trocar de religião. Quem
levou a mal foi minha mãe; chamou-a “apóstata” e não foi se despedir dela
no porto”.

- Ai, tia Celina! - suspirou Laura, enquanto dobrava a carta e a


guardava -. Quão pouco lhe importa a felicidade dos seus!

As cartas provenientes de Buenos Aires foram-se acumulando


e eram o vínculo que Laura se permitia com aquele outro mundo ao qual,
dizia para si mesma, teria que enfrentar sozinha e com um filho nos braços
quando decidisse retornar. Os medos não a abandonavam por completo e,
às vezes, analisava a possibilidade de estabelecer-se em Rio Cuarto, onde

Tradução Lauren Moon


contava com o amor incondicional de seu irmão e dos Javier. Mas sempre
terminava desprezando a possibilidade: Rio Cuarto não era suficiente para
seu ânimo inquieto e tampouco o seria para o de seu filho, a quem lhe
incitaria a avidez por aprender e superar-se. Ela queria lhe brindar com o
melhor. E o melhor estava em Buenos Aires. Era certo que deveria
aprender a viver com o estigma de ser o filho de uma mãe solteira,
usualmente envolvida nas falações e no escândalo; isso significaria um
inconveniente no início. Laura Escalante não estava acostumada a ter
medo, mas desde que soube que seria mãe, encheu-se de apreensões que
não tinham a ver com seu bem-estar, mas em preservar seu filho da dor.

- Seu filho - dizia Maria Pancha - virá a este mundo para viver
sua própria história, e todo seu dinheiro, seu poder e seus cuidados não
bastarão para torcer o destino que Deus lhe impôs. Será feliz ou infeliz de
acordo com a vontade divina. Não tem sentido que se aflija.

- Meu filho jamais será infeliz - disse Laura, e lançou um olhar


furioso a sua criada, que não se alterou.

- Será, se tiver que ser, e não restará outra coisa que sofrer.

- É muito dura às vezes.

- Não sou dura = corrigiu Maria Pancha -, eu gosto de ver as


coisas como são.

~0~

Alejandro Roca, irmão mais velho do general, apresentou-se


uma tarde na casa dos Javier e pediu para falar com a senhora Riglos. Laura
o recebeu na salinha onde passava principalmente o tempo, entretida em
seus trabalhos. Apesar do calor, jougou seu xale por cima para cobrir
apenas seu ventre. Assim que a viu, Alejandro Roca notou seu estado, mas
cuidou de mencioná-lo.

- Senhor Roca, sente-se onde quiser. Que deseja tomar? Aqui


tenho uma jarra com um tipo de refresco recém-preparado.

- Um copo com um tipo de refresco cairia maravilhosamente


bem com este calor - assegurou o homem, enquanto se abanava com seu
canolier93.

Laura lhe passou o copo e Roca bebeu um longo gole.


93
Chapéu de palha mais largo, refinado (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


- Ah, que refrescante! – expressou -. Muito saboroso, além
disso.

Laura estudou seu rosto e nada lhe lembrou do de Julio;


inclusive o olhar de Alejandro era indulgente, sem reflexos dos brilhos
matreiros, que tanto caracterizavam o de seu irmão. Dona Generosa tinha
comentado que dom Alejandro era um solteiro incurável, que ajudava
financeiramente o general em suas investidas políticas, mas que não
participava delas; dedicava-se exclusivamente ao campo. Parecia muito
elegante, e Laura deduziu que o corte de seu traje e os sapatos de couro
lustroso e perneiras só podiam encontrar-se nas lojas de Buenos Aires.

- Venho na qualidade de mensageiro de meu irmão Julio -


falou Alejandro -, como você deve ter imaginado. Hoje recebi um envelope
com uma carta dele e outra para você.

Passou-lhe a missiva, e Laura a recebeu com mão ávida, ao


tempo que desejava que dom Alejandro não notasse seu entusiasmo.
Ultimamente se emocionava com facilidade.

- Pediu-me que eu mesmo a entregasse - explicou, procurando


encher o silêncio que tinha caído sobre a moça -. Nestes tempos tão
convulsionados, meu irmão deve extremar as medidas para preservar sua
intimidade. Sabemos que interceptam sua correspondência, como na época
de Mazorca e que está rodeado de espiões.

- Sinto muito - disse Laura -. Parece que vivemos mergulhados


na pior tirania, verdade?

- Exatamente, como na pior tirania. Inclusive o envelope que


me enviou chegou no nome do meu capataz, enquanto que o remetente era
o secretário de meu irmão. Já vê o que devemos fazer para preservar um
direito inalienável como é o da correspondência privada!

- Evidentemente não estamos em um estado de direito com


Tejedor e seus vadios querendo impor suas idéias retrógradas - opinou
Laura.

- Temo, senhora Riglos, que esta luta terminará no campo de


batalha.

Alejandro ficou de pé e, quando Laura fez o gesto de imitá-lo,


ele indicou que não se incomodasse. Laura fez soar a campainha e apareceu
Maria Pancha.

Tradução Lauren Moon


- Em caso de haver uma resposta - expressou Roca antes de
partir -, envie-a por alguém de sua confiança a minha casa. Aqui deixo o
endereço - e entregou-lhe um cartão pessoal -. Eu a farei chegar a Julio.

Despediram-se cordialmente, e Laura não distinguiu no olhar


de dom Alejandro a condenação merecida por ter aceitado carta de um
homem, com o qual não a unia nenhum vínculo de sangue. Assim que ficou
sozinha, rasgou o envelope e leu.

“ROSÁRIO, 28 DE FEVEREIRO DE 1880.

MINHA QUERIDA LAURA, RECEBER SUA CARTA FOI UMA DAS


POUCAS COISAS GRATAS QUE ME ACONTECEU NOS ÚLTIMOS MESES.
ENTENDERÁ, POIS, QUE A MÃO VEM DURA. MAS, COMO LHE DIGO, SUA
CARTA FOI UM BÁLSAMO. DEMOREI A RECEBÊ-LA, PORQUE DEMETRIO NÃO
FOI À CASA DO CHAVANGO POR MUITO TEMPO. FOI ENGENHOSA AO ENVIÁ-
LA A ESSE ENDEREÇO E EM SEU NOME. DE MINHA PARTE, JÁ LHE MANDO
INDICAÇÕES A MEU IRMÃO ALEJANDRO PARA QUE SE ENCARREGUE DE SUA
RESPOSTA, EM CASO DE TER A HONRA DE QUE A ESCREVA.

QUERIDA MINHA, LAMENTEI PROFUNDAMENTE SUA DESAVENÇA


COM ROSAS POR MINHA CAUSA E SÓ POSSO DIZER QUE EM MIM SEMPRE
ENCONTRARÁ UM AMIGO DISPOSTO A LHE AJUDAR. DE QUALQUER
MANEIRA, ACREDITO QUE DEVERIA CONFESSAR COM ELE SOBRE SEU
ESTADO. NÃO PODE TER UM CORAÇÃO TÃO DURO PARA NÃO COMOVER-SE
ANTE SEMELHANTE NOTICIA.

EM MEIO À TANTA DESGRAÇADA, COM A SITUAÇÃO DE


RACEDO DE LEVAR COM ELE OS OSSOS DE MARIANO ROSAS, AO ME
INTEIRAR, SOFRI POR VOCÊ PORQUE IMAGINEI QUANTO TERIA LHE
AFETADO. EU MESMO CONDENEI ESSE FATO DESNECESSÁRIO E
DEGRADANTE. ENTRETANTO, LAURA, FALAREI COM O CORAÇÃO NA MÃO:
NADA POSSO FAZER. AGORA SOU UM POLÍTICO, QUER DIZER, UM HOMEM
QUE NECESSITA DE MEIOS PARA CONSEGUIR UM FIM, MEIOS QUE NEM
SEMPRE SÃO LIMPOS E HONESTOS, MAS QUE JUSTIFICAM O FIM AO QUAL ME
PROPUS: FORMAR, DE UMA VEZ POR TODAS, ESTA BENDITA DE NOSSA
PÁTRIA. MINHA FORÇA SE APÓIA EM DOIS PONTOS: A ALIANÇA QUE, COM
MEU CONCUNHADO, JUÁREZ CELMAN, CONSTRUÍMOS NO INTERIOR, E O
EXÉRCITO, QUE AINDA RESPONDE EM MEU NOME COM A MESMA
VENERAÇÃO QUE DURANTE A EXPEDIÇÃO AO SUL. EDUARDO RACEDO É UM
DOS MEUS OFICIAIS MAIS IMPORTANTES E EFICAZES. GRAÇAS A ELE,
PRINCIPALMENTE, PUDE OBTER O QUE OBTIVE NO DESERTO, NO ANO
PASSADO. SE LHE ORDENASSE QUE RESTITUÍSSE OS OSSOS, EM PRIMEIRO
LUGAR, NEGARIA-SE PORQUE JÁ NÃO É MEU AJUDANTE; E EM SEGUNDO,

Tradução Lauren Moon


PERDERIA SEU VALOROSO APOIO. ENFIM, NESTE ASSUNTO TÃO PENOSO
ESTOU DE PÉS E MÃOS ATADOS.

NO QUE DIZ RESPEITO AO CACIQUE EPUMER, PREOCUPEI-ME


PESSOALMENTE DO ASSUNTO E ESTOU FAZENDO GESTÕES (AS QUE POSSO,
EM RAZÃO DE MINHA DUVIDOSA POSIÇÃO) PARA CONSEGUIR SUA
LIBERDADE. AINDA FICAM “AMIGOS” EM BUENOS AIRES QUE ESTÃO
INTERESSADOS EM QUE LHES DEVA FAVORES, O SENADOR CAMBACERES É
UM DELES, QUE MENCIONOU A POSSIBILIDADE DE LEVÁ-LO PARA
TRABALHAR EM SEU CAMPO LE TORO EM BRAGADO. NÃO TENHO DÚVIDAS
DE QUE A TÃO ESPAREDA LIBERAÇÃO DE EPUMER E DE SUA FAMÍLIA ESTÁ
PERTO. ESPERO, SINCERAMENTE, QUE ISTO COMPENSE O REVERSO
ANTERIOR.

NÃO QUERO ABORRECÊ-LA COM TEDIOSAS INTRIGAS DE


POLÍTICA QUE VÃO URDINDO ESTE COMPLEXO EMARANHADO QUE SE CHAMA
“CAMPANHA ELEITORAL”. DEVE SABER QUE MAIS DE UMA VEZ ME ABORRECI
PORQUE TENHO TODAS CONTRA MIM. JÁ DEVE TER SABIDO DOS
DISTÚRBIOS DE 15 DE FEVEREIRO NAS RUAS PORTENHAS, ENCABEÇADOS
PELOS RIFLEROS E EM UMA TENTATIVA DE DERRUBAR DEL VISO EM
CÓRDOBA, DOIS DIAS ATRÁS. TEJEDOR NÃO FICA QUIETO E ENVIA
REVOLTOSOS A TODAS NOSSAS PROVÍNCIAS, PARA PROVOCAR
LEVANTAMENTOS QUE DERRUBEM OS GOVERNOS LEAIS. SINTO-ME UM
BOMBEIRO QUE NÃO TEM TEMPO DE APAGAR TANTOS INCÊNDIOS. OS DO
COMITÊ DA PAZ TÊM-ME PRESSIONADO COM O REFRÃO DE QUE DEVO
RENUNCIAR A MINHA CANDIDATURA. POR QUE, PERGUNTO-ME, DEVO ME
SUBMETER À CHANTAGEM DESSE AMBICIOSO TEJEDOR? EU TENHO DIREITO
A ME APRESENTAR COMO CANDIDATO PORQUE NADA LEGAL ME IMPEDE EM
RELAÇÃO A ISSO. SE DEPUSER MINHA CANDIDATURA, ESTARIA AGRADANDO
A ESTES QUE AINDA SE ACREDITAM OS DONOS DO PAÍS, SIMPLESMENTE
PORQUE VIVEM PERTO DO PORTO E DA ALFÂNDEGA. SE O PROBLEMA É
EVITAR UMA GUERRA, POIS DIGAM AO IRRESPONSÁVEL DO TEJEDOR QUE
PARE DE ARMAR SEUS EXÉRCITOS PROVINCIAIS, QUE SE PAVONEIAM PELAS
RUAS DE BUENOS AIRES INSULTANDO AVELLANEDA E DESEJANDO MINHA
MORTE. SE ISTO NÃO FOR POSSÍVEL, ENTÃO, HAVERÁ GUERRA, SOMENTE.
TODOS SABEM QUE NÃO ME AMEDRONTO FACILMENTE.

PERDÃO, MINHA LAURA, POR TER DESCARREGADO MINHAS


QUEIXAS SOBRE ESTAS PÁGINAS, QUE PRETENDIAM SER DE OUTRO TEOR,
MAS AO SABER QUE SERÃO SEUS OLHOS QUE AS LERÃO, MUNHA MÃO VOA
LIVREMENTE E SEM ATADURAS PARA ESCREVER OS PESARES QUE ME
CURVAM. NÃO ACREDITE QUE DUVIDO DA VITÓRIA, SEI QUE OCUPAREI A
POLTRONA DE DOM BERNARDINO ANTES QUE TERMINE O ANO, MAS, ÀS

Tradução Lauren Moon


VEZES, ME DESCONSOLO PORQUE ME PERGUNTO SE TANTO SACRIFÍCIO E
RISCO VALEM A PENA, ISTO É, SE PODEREI CONSEGUIR FAZER DESTE PAÍS O
QUE DESEJO: UMA PÁTRIA GRANDE E PRÓSPERA, RESPEITADA NO MUNDO
CIVILIZADO.

ESPERO SUA RESPOSTA COM ÂNSIAS, FICO A SUA INTEIRA


DISPOSIÇÃO.

SEU SERVIDOR, J.A.R.”

~0~

Laura tirou o bastidor e os carretéis de linho da saia, e se pôs a


escrever. A carta de Roca tinha-lhe feito bem; havia-lhe devolvido a
confiança ao fazê-la sentir-se querida por um homem a quem ela admirava.
Nem sequer ficou incomodada com sua negativa para ajudá-la a recuperar
os ossos de Mariano Rosas; conformava-a que tivesse sido sincero. Quanto
à liberdade de Epumer, Agustín ficaria mais contente que ela, que tinha
perdido interesse. Os brilhos de rancor que, em ocasiões, dominavam-na
alcançavam também aos familiares de Nahueltruz, embora depois se
envergonhasse por albergar sentimentos tão mesquinhos.

Terminou de escrever a carta e a entregou a Maria Pancha


junto com o endereço de Alejandro Roca. Vinte dias mais tarde, um
servente de dom Alejandro trouxe outra carta, desta vez escrita de La Paz,
Córdoba. A comunicação epistolar se manteve fluída e sem interrupção, e
tanto escrever como ler essas cartas constituíam um momento de distração
para ambos. Laura tinha a impressão de que sua amizade com Julio Roca
era das coisas mais sólidas com a qual contava.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXXIV.

Perdoar é divino

Nahueltruz lia uns documentos que requeriam sua assinatura


quando a governanta anunciou que uma mulher desejava vê-lo.
Apresentou-lhe seu cartão pessoal que rezava «Lady Leighton».

- Fala francês - disse a mulher -, mas com acento espanhol.

Acaso Leighton não era o inglês comprometido com Laura?


Será que seria tão descarada de visitá-lo depois de casada?

- Como é? - perguntou de mau humor e, ante o desconcerto da


governanta, refez a pergunta -: Eu me refiro, madame La Roche, a como é
fisicamente. É loira?

- Não, não. Seu cabelo é castanho, puxando para avermelhado.


Seus olhos, muito azuis - adicionou.

- Faça-a entrar na sala. Alcançarei-a em um minuto.

Em seu dormitório, penteou-se, perfumou-se e vestiu a casaca.


Avançou pelo corredor a passos rápidos. Na sala, aguardava-o Esmeralda
Balbastro, recentemente convertida em lady Leighton.

- Santo Deus, Esmeralda! - exclamou, enquanto se aproximava


para saudá-la -. Que surpresa me deu! - Abraçaram-se e se beijaram em
ambas as bochechas, e Nahueltruz pediu que voltasse a se sentar.

- Espero que a surpresa seja grata, querido. Não reprovou


Blasco por ter-me dado seu endereço em Paris, não é? - E enquanto pasava
um dedo pela bochecha, adicionou -: Já não está zangado comigo, não?

- Zangado? – estranhou Guor.

- A última vez que nos vimos em sua casa, não nos


despedimos, precisamente, em termos amistosos.

Guor lhe dispensou um sorriso sutil para indicar que


desprezava a briga.
Tradução Lauren Moon
- Suponho que lhe moveram boas intenções - disse, e
imediatamente mudou de assunto -: O que faz em Paris? Parece-me incrível
vê-la aqui.

- Uma mulher recém-casada tem direito a sua viagem de lua-


de-mel, não?

Guor levantou as sobrancelhas e aguardou a explicação.

- Sim, acabo de me casar, Lorenzo, e devo confessar que este


segundo casamento me faz melhor do que imaginei. Lorde Edward
Leighton é meu marido. Agora me chamam de lady Leighton - adicionou,
com fingida soberba.

- O mesmo Leighton que ia desposá-la?

-A Laura - remarcou Esmeralda -. Sim, o mesmo - assegurou.

Madame La Roche entrou com uma bandeja e a deixou na


frente deles, sobre uma mesinha. Perguntou se tomariam chá ou café, mas,
como Esmeralda se ofereceu para servi-lo, Guor a despediu.

- Não se surpreenda tanto, Lorenzo - disse, enquanto vertia


café em uma xícara -. O fato de Laura ter rechaçado Edward por sua causa
não significa que o homem tenha-se dado por vencido com as pessoas de
meu sexo. Já vê, conhecemo-nos, nos apaixonamos, casamo-nos. Simples
assim. E devo admitir que estou feliz como jamais pensei que voltaria a
estar. Feliz - recalcou, com ar sereno, e Nahueltruz sentiu inveja.

- Suponho que o aceitou porque o tal Leighton é um homem


valioso. Não imagino você ao lado de um tolo por mais brasõs que ostente.

- Embora para você o nome Leighton seja mais parecido a um


insulto, acredito que se chegasse a conhecer Edward o apreciaria,
sinceramente. É um homem extraordinário. Agora entendo por que Laura,
apesar de continur apaixonada por você, se permitiu pensar em um
casamento com ele.

- Não a nomeie - ordenou Guor, e escondeu o olhar na xícara


com café.

- Vamos, Lorenzo. Ainda obstinado a rancores inúteis?

Tradução Lauren Moon


- Você também? - incomodou-se -. Será que ninguém vê o que
eu vejo? Ninguém pode imaginar o que eu sinto? Converteram-me no vilão
da história e a ela, na pobre e doce princesa necessitada.

- De certa forma, sim.

- Uma mulher ladina e matreira, isso é o que é - disse


Nahueltruz -. Voltei a acreditar nela apesar do que aconteceu em Rio
Cuarto, voltei a confiar e a amá-la, e uma vez mais mentiu para mim e me
traiu. O único culpado sou eu. Como um estúpido caí novamente sob seu
feitiço, voltei a me deixar seduzir. Desta vez, entretanto, não me custou tão
caro porque pude apaga-la de meu coração de uma vez só, não fica em mim
nenhum vestígio do amor por ela - recalcou com muita paixão para parecer
verdadeiro.

Esmeralda bebeu seu chá, enquanto aguardava que Nahueltruz


recuperasse a calma.

- Está grávida —disse ao final, mas imediatamente se


arrependeu, porque a notícia não causou efeito que ela imaginava em
Lorenzo -. Já sabia?

- O padre Agustín escreveu para me dizer isso. Na verdade,


para me repreender, para exigir que eu me encarregue do bebê.

- É seu filho, Lorenzo - advogou Esmeralda.

Guor deixou a xícara sobre a mesa, fazendo-a cambalear e


ficou de pé.

- Bem poderia ser o filho de Roca!

- Sabe que o que diz é injusto. Fazia tempo que Roca e Laura
tinham deixado de se ver, simplesmente porque ele estava no sul.

- Sim, exterminando minha gente.

- Sim, querido, exterminando sua gente. Mas agora discutimos


outra questão. Agora falamos de uma criatura inocente, que sofrerá
consequências dolorosas por culpa do rancor cego de seu pai.

- Não sou seu pai! Roca e Laura voltaram a encontrar-se


quando fomos amantes.

Tradução Lauren Moon


- Fizeram-no em qualidade de amigos, e sabe. Ela foi vê-lo
por você, Lorenzo. Não se dá conta? Fez isso movida pelo imenso amor
que lhe tem. E por esse mesmo amor, voou a Rio Cuarto, quando soube que
você tinha partido para lá em busca de quem profanou a tumba de seu pai.
Estava com a saúde delicada e, mesmo assim, viajou contra a vontade do
meio mundo.

Guor se amaldiçoou por afrouxar tão facilmente quando do


bem-estar de Laura se tratava. Deveria lhe importar um maravedí94 se vivia
ou moria; no entanto, importava-lhe.

- Por que estava com a saúde delicada? - perguntou.

- Por causa de sua gravidez. - Nahueltruz permaneceu em


silêncio e Esmeralda prosseguiu -: Ao chegar em Rio Cuarto, depois dessa
viagem tão longa e fatigante de trem, começou a sangrar, com dores muito
fortes no ventre. Quase perde o bebê. Um doutor da vila, Javier, conforme
entendo, é este seu sobrenome, a tomou sob seus cuidados e tem-se
ocupado dela. Manteve-a na cama por semanas e proibiu-a de retornar a
Buenos Aires. Outra viagem como essa, disse, custaria a vida do bebê,
possivelmente a dela. Por tudo isso, seu filho nascerá em Rio Cuarto, onde
tudo começou sete anos atrás.

- Como sabe tudo isto?

- Maria Pancha escreveu para me contar.

Esmeralda deixou o sofá e se aproximou de Guor. Passou-lhe


as mãos pela cintura e apoiou a bochecha sobre seu peito.

- Ah, Lorenzo, querido, por que sofre inutilmente? Em Rio


Cuarto lhe aguardam sua mulher e seu filho. Por que encasqueta em
permanecer a tantas milhas da felicidade?

- Porque não seria feliz junto dela - expressou Guor, sem tom
de raiva -. Deitou-se com o assassino de meu povo e por isso não posso
perdoá-la.

~0~

O doutor Javier calculava que o bebê nasceria nos primeiros


dias de maio. Durante as últimas semanas, Laura tinha começado a sentir-
se melhor. Apesar de estar “redonda como um tonel e pesada como a mesa
94
Antiga moeda espnhola, correspondente ao centavo (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


de carvalho de La Santísima Trindad”, o clima fresco fazia-lhe maravilhas.
Para trás tinham ficado os abafadiços dias de verão, quando parecia que a
falta de ar ou as permanentes ameaças de vertigens terminariam por deixá-
la louca. O doutor Javier mantinha sua prescrição, e Laura tinha que comer
alimentos sem sal. Insistia para que não permanecesse muito tempo sentada
para evitar o inchaço dos pés, mas Laura custava a se mover. O peso do
ventre, que se fazia sentir na parte baixa da coluna e na cintura, deixou-a
lenta e desajeitada. Caminhava como podia, esquecendo-se das lições de
decoro da avó Ignacia. Dormir tampouco lhe era fácil, e já não encontrava
maneira de acomodar a barriga sem que a incomodasse. Às vezes desejava
que seu bebê nascesse logo para recuperar a poder sobre seu corpo e suas
funções, mas logo se arrependia, ao refletir que em nenhum lugar como em
seu ventre, seu filho estaria tão protegido.

Magdalena decidiu viajar a Rio Cuarto para assistir ao


nascimento de seu neto, eassim o comunicou a Laura em uma carta, que
chegou na terceira semana de abril. O doutor Pereda e tia Carolita iriam
acompaná-la. Laura não cabia em si de felicidade e suas aflições passaram
a um segundo plano, enquanto planejava a recepção. Em sua carta,
Magdalena perguntava-lhe como chamaria o bebê em caso de ser varão, e
sugeria o nome José Vicente.

- Neste aspecto - manifestou Laura – Vou levar em


consideração a velha Alcira, a criada de minha bisavó Pilarita, e terei
extremo cuidado em nomear meu filho. Não o chamarei José Vicente,
porque meu pai nunca foi um homem plenamente feliz. Vou chama-lo
como ninguém se chamou em nossa família. Se for varão eu o chamarei
Gabriel, como o arcanjo que anunciou a boa notícia a María. Meu filho
também será um mensageiro de boas notícias para mim.

- Só Gabriel? – estranhou Maria Pancha.

- Só Gabriel - ratificou Laura.

- E se for menina?

- Se for menina, vai se chamar Rosa Maria. Rosa, porque será


simples e bela como a flor, e Maria, em honra da Virgem, porque a ela a
consagrarei. - “Laura não é a mesma”, pensou Maria Pancha. Tratasse-se
de sua maternidade ou da influência de dona Generosa e do padre Marcos,
o certo era que tinha mudado; notava-se serena; não resignada, mas sim
contente, como se tivesse aprendido a encontrar satisfação em
acontecimentos e pessoas que não se reduzissem a Nahueltruz e a seu
mundo. Fazia tempo que não dormia chorando nem reclamava contra sua
Tradução Lauren Moon
sorte; a vontade de Deus devia ser aceita. Nunca tinha sido frívola nem
apegada ao dinheiro, mas sim se manteve ocupada em resolver problemas
econômicos, em administrar seus bens e em mostrar-se batalhadora a uma
sociedade que a condenava, circunstâncias que a tinham tornado incrédula,
belicosa e até depreciativa. Agora, entretanto, dava valor às questões
espirituais e falava de Deus e da Virgem com a devoção de uma beata.
Apesar de ter perdido a silhueta e de um sem-fim de mal-estares, queixava-
se pouco e amanhecia com um sorriso. “Mas nunca deixa de pensar nele”,
lamentou-se Maria Pancha.

Dois revezes a deprimiram nos últimos dias de abril: a certeza


de que Nahueltruz não responderia a última carta de Agustín e que o
coronel Racedo, finalmente, doou os ossos de Mariano Rosas a Estanislao
Zeballos, estudioso da matéria e grande conhecedor dos índios do sul e seus
costumes.

- A animosidade entre o doutor Zeballos e eu - se desalentou


Laura - é tão manifesta que nem sequer me atrevo a lhe escrever rogando
que restitua os ossos.

- Não o faça - disse Maria Pancha -. Não jogue em seu ombro


todos os problemas que existem no mundo. Deixa que seu irmão e o padre
Donatti lutem com ele.

- Sabe muito bem que não jogo em meu ombro os problemas


que existem no mundo. Só me importam os dele.

- Mas para ele - ironizou Maria Pancha - importa bem pouco


se você se ocupar dos problemas dele. E mais, iria se enfurecer se soubesse
que o está fazendo.

Como a resposta nunca chegava, Agustín a consolou com a


possibilidade de que Nahueltruz tivesse se mudado. Entretanto quando
chegou carta de Blasco, ratificando o endereço de Guor em Paris, Laura
disse a si mesma que Nahueltruz tinha morrido e se preparou para receber
sozinha seu filho.

~0~

Tudo estava preparado para Gabriel ou para Rosa María. O


carpinteiro entregou a berço em meados de abril e um criado de dona
Generosa o pintou de branco. Na loja de Ricabarra, compraram uma cesta
de vime enorme que faria as vezes de Moisés, e dona Generosa doou o pé
que tinha usado com Mario, depois de mandá-lo restaurar. Por tardes

Tradução Lauren Moon


inteiras, as três mulheres se dedicaram a embelezar o berço e a cesta com
rendas, fitas de cetim e tule, até o ponto que o padre Marcos disse que
enquanto isso tecido, seria difícil que elas encontrassem o bebê. Também
assegurou que “a pobre criatura” não teria tempo de usar tanta roupa, pois o
enxoval não parava de crescer.

- Enxoval digno de um príncipe – gabava-se dona Generosa,


enquanto desdobrava e voltava a dobrar os diminutos objetos mantidos em
caixas com cravos da índia, casca de canela e vagens de baunilha. Cada vez
que se abria uma destas caixas, até o doutor Javier se aproximava para
cheirar.

Não só Maria Pancha, Laura e a proprietária de casa se


dedicavam a tecer ou a costurar, também as amigas de dona Generosa que,
diariamente, apresentavam-se com uma roupinha nova, ou uma mantilha ou
um par de saptinhos. O chocalho foi comprado por seu tio Agustín, e Laura
se emocionou até as lágrimas. O padre Marcos lhe deu de presente o
rosário de madrepérola e prata que sua mãe tinha levado no dia de seu
casamento, colocando-o na cabeceira do berço para que a Virgem o
protegesse e acompanhasse. Enquanto o padre Marcos dizia estas palavras
e acomodava o rosário entre ao grades, Laura o contemplava e se lembrava
de quanto tinha significado, durante sua infância, esse missionário
franciscano, e não só para ela, mas também para Blanca Montes, para seu
pai, para sua mãe e, sobre tudo, para Agustín. Ninguém os conhecia como o
padre Marcos. Ninguém os queria como o padre Marcos. Abraçou-o e o
beijou-o em ambas bochechas, incomodando-o decididamente.

- Já deveria ter-se acostumado às ousadias de minha irmã,


padre - riu Agustín.

- Bendito seja Deus - expressou Donatti, enquanto aplaudia a


bochecha vistosa de Laura -, porque hoje parece tão feliz.

Começou maio. A espera se apalpava entre os muros da casa


dos Javier. Qualquer queixa, gesto ou movimento da Laura provocava
sobressaltos. Só o doutor Javier mantinha a calma e repetia: “Virá quando
tiver que vir, nem antes nem depois”. Convencido, assim como o doutor
Leopoldo Montes, de que o parto não era âmbito exclusivo de mulheres,
tinha decidido, para tranquilidade de todos, assistir ele mesmo a Laura.
Cansou-se de ver morrer parturientes e recém-nascidos por causa de
práticas selvagens ou de falta de higiene. Em certas ocasiões, maridos
desesperados convocavam-no quando não havia nada mais a fazer, e ele se
horrorizava ao verificar que a parteira nem sequer tinha lavado suas mãos.
Sabia que o parto de Laura não seria fácil; suspeitava que a criança fosse
Tradução Lauren Moon
grande e a pélvis da mãe, estreita. Em ocasiões, a sorte da moça e de seu
filho tirava seu sonho, e optava por imitar sua esposa, encomendando-a a
Deus.

No dia três de maio, depois que ocupou um quarto no hotel de


France, Magdalena enviou um bilhete aos Javier avisando de sua chegada.
Apesar da oposição de todos, Laura vestiu sua capa e partiu para o hotel,
incapaz de sobrepor-se à vontade de ver sua mãe e a tia Carolita. Escoltava-
a Maria Pancha de cara feia.

- Pretende parir o bebê no meio da rua? É isso que pretende?

- Oh, Maria Pancha - respondia Laura de maneira agitada -,


não chateie.

Na recepção lhe informaram que a senhora Pereda se


encontrava no quarto 12, no primeiro andar ao final do corredor. O zelador
ofereceu enviar o empegado do hotel para anunciá-la, mas Laura, disposta a
surpreender Magdalena, pediu-lhe permissão para subir até a antessala.

Maria Pancha tampouco conseguiu dissuadi-la de empreender


semelhante ação em seu estado. Nessa tarde, a alegria a deixou cheia de
presunções e se acreditava capaz de subir essas escadas e “de cruzar os
Andes se fosse necessário”. Levantou a bainha do vestido e subiu o
primeiro lance com dificuldade. No descanso entre as escadas, deteve-se
para recuperar o fôlego. Ali topou com Nahueltruz.

Ele a contemplava fixamente, e era óbvio que fazia um


momento que a olhava; por certo teria zombado, enquanto ela subia os
degraus com a graça de uma vaca. Embora soubesse que tinha
enrubescido, não atinava afastar a vista da dele. Perguntou-se: “O que faço
agora?”.

Nahueltruz avançou uns passos e a estudou de perto. A


mudança operada no corpo e na fisionomia de Laura o afetou
conideravelente, mas evitou demonstrá-lo. Apesar disso, desejou-a.
Desejou seu corpo de mulher fértil e plena, com suas bochechas
avermelhadas e seus seios cheios de leite, seus quadris alargados e seu
ventre volumoso. Desejou-a intensamente e, entretanto, disse:

- Já sabe o general Roca que vai dar-lhe um filho?

A malícia da pergunta roubou seu fôlego, e os matizes de


sentimentos que tinham prevalecido em seu ânimo ao longo desses nove

Tradução Lauren Moon


meses, a tristeza, a desesperança, a melancolia, a alegria, a ilusão e o amor,
transformaram-se em apenas um: pura e irrefreável ira. Lançou um grito
que soou como rugido e, com punho fechado, golpeou Guor no rosto, no
peito, no ventre, em qualquer lugar que suas mãos descontroladas caíssem e
conseguissem machucá-lo.

- Maldito! Mal nascido! Canalha! Desgraçado! Miserável! -


exclamava.

Guor e Maria Pancha tentavam detê-la, mas Laura se


converteu em uma fera incontrolável. As pessoas se amontoaram na
recepção do hotel e ao pé da escada. Guor escutou correrias no corredor e
uma voz de mulher que gritava o nome de Laura. Queria lhe agarrar as
mãos, porque temia que fizesse mal a si mesma ou que machucasse o bebê,
queria apertá-la contra seu peito e protegê-la, queria levá-la ao seu quarto e
fazer amor com ela, mas Laura parecia ter-se tornado escorregadia e não
conseguia dominá-la. Finalmente, segurou-a pelos pulsos, mas ela se
liberou com um forte gesto que a impulsionou para trás, para o vazio da
escada.

Laura teve consciência de que caía, de que seu corpo


ricocheteava contra os degraus e de que o hotel dava voltas em torno dela.
Também conseguiu ver o gesto de espanto na cara de Nahueltruz, que
estendia os braços em uma tentativa de apanhá-la, e viu também como seus
lábios se moviam para pronunciar seu nome, mas não escutou sua voz; na
verdade, não escutava nada. Depois, tampouco pôde ver; o entorno se
tornou escuro e começou a flutuar.

Guor se precipitou escada abaixo e, aos trancos, abriu


passagem entre as pessoas que estavam acima do corpo inerte de Laura.
Tomou-a em seus braços e, enquanto subia, a chamava aos gritos. Maria
Pancha pegou o desorientado zelador pelo braço e ordenou-lhe que
mandasse chamar o doutor Javier e o padre Agustín Escalante no Convento
de San Francisco.

- Vamos, homem! - chateou-se ante a perturbação do


empregado -. Faça o que lhe ordeno, imediatamente.

Guor entrou em seu quarto e acomodou Laura sobre a cama.

- Laura, Laura, meu amor - repetia sem êxito, enquanto


tamborilava suas bochechas.

Tradução Lauren Moon


Viu que a saia branca de Laura estava empapada e que uma
mancha sanguinolenta se estendia sobre o tecido com rapidez. Alguém o
afastou bruscamente: Maria Pancha, que junto à senhora Pereda e à
madame Beaumont, inclinou-se sobre Laura e o privou de sua visão.
Retirou-se em atitude submisa, sentindo o peso da angústia no peito;
tremiam-lhe as mãos e seus dentes tremiam.

Tia Carolita passava sais aromáticos sob as narinas de Laura,


enquanto Maria Pancha tirava sua capa e abria-lhe a jaqueta e a blusa para
facilitar sua respiração. Magdalena a desfez dos sapatos e massageou seus
pés gelados.

- Rompeu a bolsa - informou Maria Pancha.

- Por que o sangue? - angustiou-se Magdalena, mas não obteve


resposta.

Laura recuperou a consciência sacudida pela dor de uma


contração. Incorporou-se repentinamente, surpreendendo às mulheres que a
rodeavam, e inspirou como se tivesse retido o fôlego sob a água. Soltou um
grito e voltou novamente sobre o travesseiro. Nahueltruz caiu de joelhos e
tampou seu rosto com ambas as mãos.

- Meu Deus, tenha piedade dela! - exclamou.

Laura superou a contração com dificuldade e começou a


chorar ao descobrir o sangue.

- É mais água que sangue - tentou acalmá-la Maria Pancha,


mas Laura não acreditou e repetiu uma e outra vez que não queria que seu
bebê morresse.

- Não, meu filhinho não. Não quero perdê-lo também. O filho


de Nahuel não.

- Nahueltruz está aqui - disse Maria Pancha, ao perceber que


Laura não se lembrava dos momentos que antecederam a queda -. Está
aqui, veio vê-la.

Maria Pancha o obrigou a se levantar do piso e o guiou junto à


cama. Nahueltruz se inclinou sobre ela e Laura passou as mãos
ensanguentadas pelo rosto dele, porque não sabia se, se tratava de uma
visão ou de um ser de carne e osso. Nahueltruz tirou as mechas de sua
testa, onde descansou seus lábios trementes.

Tradução Lauren Moon


- Perdoe-me - a escutou dizer -. Perdoe-me por tê-lo traído.

Com um gesto, tia Carolita indicou a Magdalena e a Maria


Pancha que os deixassem a sós, e, de uma vez, as três mulheres
abandonaram o quarto e fecharam a porta.

- Nada a ser perdoado - disse Guor, entrecortadamente.

- Diga que me perdoa. Diga-me, por favor.

- Sim, perdôo você. Amo você, Laura. Amo tanto que... –


quebrou-lhe a voz -. Minha Laura – murmurou -, minha vida, meu amor,
meu tudo. Não me deixe, pelo amor de Deus, não me deixe. Não me deixe
sozinho porque me dá medo enfrentar a vida sem você.

- Nahuel - falou Laura -, se algo me acontecer...

- Não! - espantou-se ele -. Não lhe escutarei. Não lhe escutarei.

- Nahuel, se algo me acontecer, quero que jure pelo amor que


nos professamos que cuidará de nosso filho.

- Nada vai lhe acontecer. Tudo sairá bem.

- Este bebê é nosso filho - pronunciou e, tomando a mão,


guiou-a até seu ventre -. É o filho que me pediu naquela noite na quinta de
Cabalitto. É seu, meu amor, seu e meu.

- Sim, sim, sempre soube que era meu, sempre, mas estava
com muito ciúmes e ferido e queria machucar vocë.

- Jure que se algo me acontecer...

—Não volte a dizê-lo, nada vai acontecer com você. Você não
pode me deixar, não deve!

Laura cravou as unhas em sua mão, apertou os olhos e


reprimiu um grito quando a contração endureceu seu ventre. No meio do
padecimento, deslizou-se em sua mente um parágrafo das Memórias de
Blanca Montes que lembrava o parto de Nahueltruz: “O nascimento de um
filho – dizia ela - é um milagre, e a felicidade que nos inunda, ao escutar os
primeiros gritos, apaga de uma só vez a dor indescritível que nos fez
acreditar, segundos antes, que íamos terminar partidas ao meio pelas
pernas”. Mas nesse momento, Laura não estava tão certa de que sua tia
Blanca tivesse razão. Ela terminaria partida ao meio e morta se essas dores
Tradução Lauren Moon
não cessassem. Por fim, desafogou-se com um grito que arrepiou a pele de
Nahueltruz. Espantado, soltou-lhe a mão e correu para a porta.

Entrou o doutor Mario Javier, seguido por várias mulheres,


entre elas dona Generosa, que se precipitou sobre Laura para lhe
descarregar uma enxurrada de conselhos. Javier as espantou sem
cerimônias e informou que só Maria Pancha o ajudaria.

- Generosa - ordenou a sua mulher -, peça ao zelador toalhas e


lençóis limpos e vários litros de água quente. Antes de abandonar o quarto,
Nahueltruz pegou o doutor Javier pelo ombro e, olhando-o nos olhos,
ordenou-lhe:

- Salve a mãe.

A espera teve lugar em uma salinha contigua, comunicada com


o quarto por uma porta que o doutor Javier fechou com chave. Nahueltruz
permanecia em pé junto a essa porta; tia Carolita, Magdalena e dona
Generosa se acomodaram em cadeiras em torno de uma pequena mesa,
onde uma funcionária tinha deixado café e uma garrafa de brandy. Faltava
Narciso Pereda, que tinha preferido aguardar notícias em seu quarto,
afastado dos gritos de Laura. Magdalena, tia Carolita e dona Generosa
rezavam em voz baixa; quando ouviam um ruído, interrompiam para
recomeçar logo depois.

Assim que entrou na salinha, Agustín avistou Nahueltruz no


outro extremo e caminhou rapidamente para ele. Abraçaram-se.

- Está muito mal, Agustín. Caiu pelas escadas por minha culpa.
Eu tive a culpa. Fui muito duro com ela, muito duro. Disse-lhe... Disse-lhe
algo imperdoável. A ela, o amor de minha vida, a mãe de meu filho. Vai
morrer? Ninguém me diz nada. Eu não sei nada. O que vai ser de mim se
ela me deixar, Agustín? O que vai ser de mim?

-Basta, Nahueltruz - pronunciou Agustín, com tom tolerante -.


Basta, não se torture deste modo. Laura está nas mãos do Senhor. Ele a está
protegendo, a ela e ao filho de vocês. Além disso, já conhece a perícia do
doutor Javier.

O doutor Javier levantou a voz para dar uma ordem, também


se escutou a voz de Maria Pancha seguida por um grito de Laura que fez
pôr em pé a quem ainda ocupava sua cadeira. Nahueltruz tampou seus
ouvidos. Segundos depois, Agustín se aproximou dele e separou as mãos de
suas têmporas.

Tradução Lauren Moon


- Escuta - ele disse -, escuta o choro de seu filho.

O doutor Javier, com as mangas da camisa dobradas e cara


cansada, entrou na salinha contigua para informar que se tratava de um
menino, são, completo e forte.

- Como está Laura? - precipitou-se Guor.

- Foi um parto muito duro. O menino é grande e Laura, estreita


de pélvis. Temi o pior quando se rasgou, mas, por sorte, pude controlar a
hemorragia. Laura é muito bonita e lutou com a valentia de um homem.
Deve saber que sua mulher padeceu terrivelmente, mas ela está bem agora.
Felicito-o, seu filho é um garotinho saudável, de excelente textura.

- Laura não corre perigo? Assegure-me isso? - insistiu


Nahueltruz.

- Está exausta, mas bem.

- E a queda? Não há consequências pela queda?

- A queda foi um acidente infeliz que acelerou o processo do


parto, mas, incrivelmente, não prejudicou nem à mãe nem ao menino.
Laura não apresenta quebraduras, só alguns machucados.

- Mas havia sangre na saia da Laura - instou Nahueltruz.

- Provocada pelo rompimento violento da bolsa - explicou


Javier -. Foi uma hemorragia sem importância. Ela está bem, o menino está
bem - ratificou, com paciência -. Agora devemos esperar que Laura
reponha suas forças e se recupere deste momento traumático. Apesar de ser
um processo natural, o parto implica riscos tanto para a mãe como para o
filho. Imagine você pelo que passaram, neste, caso quando as
circunstâncias eram tão adversas. Tivemos a sorte de que tudo saísse bem.
Atrevo-me a dizer que se tratou de um milagre.

- Bendito seja Deus! - proclamou dona Generosa.

- Por favor, Generosa - falou o doutor Javier -, me acompanhe


ao quarto para ajudar Maria Pancha a assear e preparar Laura.

Para Guor transcorreu uma eternidade até que o doutor Javier


voltou a abrir a porta e o convidou a passar.

- Apenas um por vez - indicou o médico aos demais.


Tradução Lauren Moon
Logo que entrou, Nahueltruz viu Laura e ficou quieto junto à
porta, acovardado. Mergulhada entre os travesseiros, com os olhos
fechados e uma palidez alarmante em seu rosto, tinha aspecto de morta.
“Só está exausta”, tentou se animar. Maria Pancha se aproximou com o
menino nos braços e, antes de mostrar-lhe o repreendeu:

- Não se atreva a dizer que este menino não é seu, que,


podendo ter sido loiro, branco e de olhos azuis, o pobrezinho é sua viva
imagem, moreno e feio.

Maria Pancha levantou a mantinha, e Guor pensou: “Certo,


que feio é!”. Mais que moreno, era de uma tonalidade violácea, e o cabelo,
abundante e muito negro, avançava-lhe sobre a testa e até nas orelhinhas.
Tinha as pálpebras inchadas e sem cílios; tampouco havia sobrancelhas.

- Assim como sua mãe, sofreu muito ao nascer - pronunciou


Maria Pancha, como se lesse sua mente -, por isso está tão inchado. Quer
carregá-lo?

- Não, não - se assustou Guor -, não saberia como.

Animou-se a afastar a mantinha; tinham-no vestido de branco


e só se viam as mãos. Como podia dizer o doutor Javier que se tratava de
um bebê grande, quando suas mãozinhas eram tão pequenas que as unhas
quase não se viam? Teve a impressão de que seu filho era do tamanho de
seu punho. Uma onda de ternura encheu seus olhos de lágrimas. Inclinou-se
e o beijou delicadamente sobre a testa, impressionado pela vulnerabilidade
que emanava de seu corpinho. Cheirava bem e era suave.

- Meu filho - sussurrou, e ao dizê-lo, sentiu-se feliz.

- Quero ver meu filho - pediu Laura, e sua voz surgiu com
esforço.

Nahueltruz se precipitou a seu lado e, de joelhos junto à


cabeceira, pegou suas mãos. “Obrigado, obrigado”, repetia, mas Laura não
lhe prestava atenção. Pelo contrário, seguia com o olhar em Maria Pancha
que se aproximava com Gabriel. Nahueltruz ajudou-a a se incorporar e
Laura recebeu seu filho nos braços pela primeira vez. Limpo, sem sangue
nem despojos, parecia normal. Estudou-o intensamente, contou-lhe os
dedos das mãos e Maria Pancha lhe assegurou de que tinha todos os dedos
dos pés. Por fim, levantou a vista e olhou para Guor.

- Parece com você. Não tem nada de mim.

Tradução Lauren Moon


Nahueltruz, que tinha a garganta embargada, limitou-se a
assentir.

- Quero chamá-lo Gabriel.

Nahueltruz voltou a assentir.

- Quer outro nome para ele?

- Eu gosto de Gabriel - disse, e um momento depois,


acrescentou -: Eu gostaria que também levasse o nome de meu pai. Gabriel
Mariano Rosas - pronunciou, e gostou de como soava.

- Está bem - aceitou Laura, sem afastar os olhos do menino.

Nahueltruz, pelo contrário, olhava para ela.

-Sei que sofreu muitíssimo - disse.

- Sua mãe tinha razão, Nahuel. Já não me lembro de ter


padecido.

Magdalena entrou no quarto com tia Carolita atrás, incapazes


de continuar aguardando que Rosas se decidisse a sair. Ele podia ser o pai
da criança, mas ela era a mãe da parturiente e a avó do menino e faria valer
suas prerrogativas.

- Licença - disse, de modo cortante, e Nahueltruz ficou em pé


e se afastou. Como em conclave, as mulheres se fecharam em torno da
cama para admirar o recém-nascido e conversar com a mãe, Nahueltruz
caminhou na direção de Agustín, que lhe dispensou um sorriso de
cumplicidade e tolerância. Pôs sua mão sobre o ombro e o felicitou. Em
seguida, abriu-se passagem entre Magdalena e dona Generosa e, a pedido
da Maria Pancha, benzeu sua irmã e a criança. Ao retornar junto a Guor,
expressou com seriedade:

- Não duvidará de que se trata de seu filho, verdade? Poucas


vezes vi um recém-nascido com traços tão distintos. Em geral, todos
parecem iguais para mim. Este, ao contrário, é sua miniatura.

- No meu coração, nunca duvidei de que fosse meu filho.

- Por que não respondeu minhas cartas, então? Laura se


angustiou por causa de seu silêncio.

Tradução Lauren Moon


Guor estalou a língua e sacudiu a cabeça, e falou sem levantar
a vista porque para ele era difícil confrontar a reclamação de Agustín e sua
própria vergonha.

- Não sei. Fui um idiota, o que posso lhe dizer? Estava louco
de ciúmes. Sentia-me traído e só pensava em machucá-la. Queria me vingar
- admitiu, ao final.

- Por que retornou?

- Por meu povo - respondeu, sem hesitar -. Comprei, em


Mendoza, as terras onde está o rancho da velha Higinia, para estabelecer
um campo e dar trabalho e asilo aos ranqueles que vagam sem rumo pelo
deserto.

- Para isso viajou a Mendoza antes de retornar a Buenos Aires?


-Nahueltruz assentiu -. É uma obra muito louvável - manifestou o padre
Agustín.

- Para você eu não posso mentir - admitiu Guor finalmente -.


Na realidade, estou aqui por ela. Porque, apesar de tudo que aconteceu,
minha vida começa e termina em Laura. Às vezes penso que se trata de
uma maldição, mas não me importa.

- Não pode se tratar de uma maldição quando lhe faz tão feliz -
raciocinou o franciscano.

- Na verdade lhe digo que, junto dela, os momentos amargos


foram mais que os felizes. Mas estes foram tão intensos e plenos que
mesmo assim quero voltar a tentá-lo. Acredito que o tentaria uma e outra
vez, arriscando a sorte com qualquer armadilha; até com o último fôlego,
eu o tentaria.

- Perdoou-lhe, então?

- Não sei se a perdoei, Agustín. Só sei que, quando não estou


com ela, custa-me encontrar sentido para o dia que começa.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXXV.

Gabriel Mariano Rosas

Sem estarem casados, de maneira nenhuma o senhor Rosas


ocuparia o mesmo quarto que Laura por mais filho que tivessem.
Magdalena teimou, e Guor teve que mudar-se a um quarto no andar de
baixo. Laura nem sequer tentou contradizer sua mãe simplesmente porque
não lhe importava. Nesse momento, Nahueltruz havia passado a um
segundo lugar: Gabriel Mariano era o primeiro. Certo que a proximidade de
Nahueltruz a reconfortava e a punha feliz, mas, assim como o tinha
desejado intensamente durante a gravidez, agora não suportava que a
olhasse com desejo. Ela pertencia a seu filho, e a ninguém mais.

Nahueltruz sofreu um duro reverso no dia que Laura lhe


comunicou que o doutor Javier tinha autorizado que ela deixasse a cama e
que retornaria para sua casa.

- Pensei que permaneceria no hotel – expressou -, desse modo


eu poderia estar todo o tempo perto de você e do meu filho.

- Não estou cômoda aqui, Nahuel - interpôs Laura -. Pelo


contrário em dona Generosa tudo está preparado para mim e para Gabriel.
Poderá me visitar quando quiser. Já sabe que é bem recebido na casa dos
Javier.

Nahueltruz sentia-se profundamente machucado com a


indiferença de Laura e a interpretava como uma vingança pelo mau trato
que lhe tinha dispensado. Animou-se e perguntou a Maria Pancha. Nunca
tinha desejado tanto ganhar a avaliação de uma pessoa como a de Maria
Pancha. Mas sabia que ela não o queria, primeiro por ser o filho de
Mariano Rosas, depois por seu comportamento. Juntou coragem e lhe
perguntou.

- Embora com meu pesar - manifestou a criada -, Laura segue


amando você, desse modo tão louco como inexplicável. Não se confunda,
ela não é como você, senhor Guor, propensa à vingança. Mas, sua natureza
é bem misericordiosa. Laura não está distante e fria por vingança, mas sim
porque seu instinto de mãe assim o dita. Ninguém é mais importante que
Gabrielito, nem sequer você. Hoje em dia, a vida de Laura se reduz a seu
Tradução Lauren Moon
filho. Mas não se desanime, logo voltará a ser com você tão amorosa como
no passado.

As palavras de Maria Pancha o reanimaram, mas não


conseguiu tirar de cima dele aquele abatimento. Via pouco Laura, sempre
comprometida em uma tarefa na qual ele não devia tomar parte; sobre tudo
o chateava que Magdalena lhe impedisse a passagem, quando Laura
amamentava Gabrielito. Ele desejava ver como seu filho se alimentava dos
seios de Laura, queria ver os seios de Laura, que sempre tinham exercido
uma fascinação especial sobre ele, mas lhe estavam vedados. Devia se
conformar com visitas curtas e concorridas, nas quais não podia sequer
roubar-lhe um beijo, parecia que lhe incomodava.

Pouco a pouco, Nahueltruz conseguiu uma aproximação com


Maria Pancha. Procurava nela as explicações e a atenção que nenhuma
outra mulher da casa se mostrava disposta a lhe oferecer. Teria que ser
valente para entrar em contato com a negra Maria Pancha. Sua sinceridade
e imprudência a tornavam capaz de empreender qualquer ação e dizer
qualquer verdade; por exemplo, perturbou-o o dia que pôs em pratos
limpos o espinhoso tema do general Roca.

- Você deveria estar agradecido da amizade entre o general e


Laura – assegurou -. Graças a isso, você está vivo.

Ante o silencioso desconcerto de Guor, Maria Pancha se


explicou:

- O general descobriu que você é Nahueltruz Guor, que


assassinou Hilario Racedo.

- Como?

- Atando cabos, senhor Guor. Não lhe custou muito,


verdadeiramente. Conseguiu-o graças a uma velha carta de um tal coronel
Baigorria, que conhecia bem a sua família de Leuvucó. Nessa carta, você é
mencionado como filho do cacique Mariano Rosas, onde também se diz
que, por ser você filho de uma cristã, leva um nome cristão: Lorenzo
Dionisio Rosas. Você e o general, conforme entendo, conheceram-se na
festa do Club del Progreso. Seu aspecto, indiscutivelmente chamativo, e
sua oportuna intervenção no ataque de Lezica puseram em alerta ao
general, que é uma raposa bem esperta, sem um pingo de tolo.

- Chantageou Laura me denunciando? Assim a obrigou a


retornar com ele?

Tradução Lauren Moon


- Como acredita nisso? - chateou-se a criada -. O general Roca
a ama verdadeiramente. Jamais teria se comportado como um miserável.
Não se confunda, Roca não é Riglos. Ao contrário, calou a verdade a
respeito de sua identidade só porque Laura o implorou. E não lhe pediu
nada em troca - adicionou, com tom ameaçador -. Conforme entendi, nos
relatórios da expedição ao sul, você figura como uma baixa a mais das
batalhas que mativeram. Assunto terminado - adicionou.

- Como posso confiar na palavra de um homem como Roca?


Uma espada de Dâmocles95 pesa sobre minha cabeça. Minha sorte está nas
mãos de meu pior inimigo.

- Roca é um cavalheiro - se ofendeu Maria Pancha -, e um


cavalheiro não desonra a palavra empenhada. Mas se não acreditar nisso,
creia no amor que Laura o inspira. Jamais faria algo para machucá-la. Ele
sabe que se machucar você, irremediavelmente prejudica a ela. Não, senhor
Rosas, o general jamais vai delatá-lo. Pela Laura, jamais o fará.

- Foi muito duro para mim, quando eu soube que Laura tinha
amado o assassino de meu povo - disse Guor, assombrado de sua própria
soltura.

- O assassino de seu povo – mofou-se Maria Pancha -. Bem


sabe você que entre seu povo e os cristãos existia uma guerra suja que,
cedo ou tarde, terminaria com o extermínio do mais fraco. Sem dúvida, os
mais fracos eram vocês, por serem selvagens e ignorantes. Mas já desde
antes do ano 10 existiram assassinos de seu povo. Acaso os vice-reis não
enviavam seus oficiais para acabá-los como a moscas? Acaso o governador
Rosas, no ano de 33, não tratou de exterminá-los ou escravizá-los? Vamos,
senhor Guor, não se engane. Roca terminou o que muitos começaram e
tentaram antes dele. A expedição ao deserto não se tratou de um capricho
do general, mas sim da expressão da vontade do povo argentino, que já
estava farto de ser burlado, uma e outra vez, por vocês, ladrões de gado, de
mulheres e de meninos. E atreva-se a me contradizer quando tenho muito
para lhe contar a respeito!

- O huinca nos roubou a terra!

- É certo - concedeu Maria Pancha -. Mas assim são as leis


deste mundo. E quem disse que, por serem leis, elas são justas? O poderoso
esmaga ao fraco. O meu pai, príncipe de uma tribo do sul da África,
herdeiro ao trono por ser primogênito, os portugueses o apanharam com
95
Representa a insegurança daqueles com grande poder (devido à possibilidade deste poder lhes ser tomado de repente). (N. da
Tradutora)

Tradução Lauren Moon


uma rede como se, se tratasse de um macaco e o venderam no mercado de
escravos como uma bolsa de farinha. Não venha me contar a respeito das
injustiças deste mundo, senhor Guor, que as conheço e de sobra. O único
que posso lhe dizer é que aqui sobrevive quem é bem safado e se ajusta a
estas leis. Enfrentar os poderosos é dos néscios. E isso foi o que vocês
fizeram. E assim terminaram.

Nahueltruz não quis mencionar a honra e a glória de morrer


por uma convicção, porque teria sido em vão tratando-se da Maria Pancha,
a mulher mais prática e cética que conhecia.

- Você - retomou a criada - está simplesmente com ciúmes,


porque Laura se permitiu estar com outro. Diga-me, senhor Guor, quantas
foram suas amantes durante estes anos longe de Laura? Sem contar, é
obvio, à senhora Esmeralda Balbastro.

- É diferente.

- Por quê? Porque você é homem e Laura, mulher?

- Não, mas...

- Porque você tem direito e ela não?

- Refiro-me...

- Porque você tem que satisfazer suas necessidades e ela não?

- Um homem sabe distinguir quando ama e quando


simplesmente compartilha uma cama - se desgostou Nahueltruz -. Uma
mulher, ao contrário, ao compartilhar a cama com um homem, também lhe
entrega seu coração.

- Quão pouco conhece as mulheres, senhor Rosas! Acreditava-


o conhecedor da matéria. Pois saiba, eu amei só uma vez em minha vida e
tive tantos amantes como me deu vontade. Laura é admirada e desejada em
qualquer lugar que vá. Mas saiba que, apesar de ter sido adulada por
homens como Roca ou lorde Leighton, há-se mantido sempre fiel a você,
até acreditando-o morto. Por acreditar que você estava morto, ela também
assim estava. Acredite-me, senhor Guor, porque eu fui testemunha de cada
dia, cada hora, cada minuto na vida de Laura desde que o senhor Riglos lhe
assegurou que você agonizava e a obrigou a casar-se com ele: ela viveu
morta todos esses anos, tão morta como acreditava que você estivese. -
Sem irritação, em um tom cansado, Maria Pancha adicionou -: Teria sido

Tradução Lauren Moon


misericordioso de sua parte, senhor Guor, permitir que o padre Agustín
revelasse a Laura o que tinha sido de sua sorte.

- Suponho que queria machucá-la.

- Não volte a tentá-lo porque, por muito filho de Blanca que


seja, verá-se comigo.

- Você - expressou Nahueltruz - é a mulher mais incrível e


desconcertante que conheço.

A declaração pareceu agradar Maria Pancha porque lhe


dedicou o primeiro sorriso e lhe aplaudiu o ombro com maternal afeto.

Nahueltruz terminou por aceitar que, no momento, não era


bem-vindo ao mundo de Laura e Gabriel. Crédulo na palavra de Maria
Pancha, persuadiu-se de que a situação retornaria a seu leito e que Laura
voltaria a ser exclusivamente dele. Ajudava dedicar-se ao trabalho,
mantinha-o afastado de questionamentos absurdos. Esgotava-se até o ponto
de cair rendido na cama sem necessidade de beber para conciliar o sonho.
A existência de Gabriel Mariano o impulsionava a construir o que desejava
e, de repente, progredir e acumular fazia sentido. Além disso, contava a
necessidade de redimir-se ante os ranqueles. Seu campo e seus cavalariços
dariam trabalho a quem se aproximasse a pedir-lhe, e ali encontrariam teto,
comida e salário digno. Na verdade, era pouco se comparado com o que sua
gente tinha perdido; de qualquer maneira, convenceu-se de que, no
momento, não podia fazer mais.

Também tinha encarado a construção da casa. Construiria no


mesmo lugar que ocupava o rancho da velha Higinia, que finalmente
apareceria sob o trabalho dos capatazes. Não foi fácil recrutar trabalhadores
entre os riocuartenses e os povos vizinhos, temerosos da vingança do
fantasma da feiticeira. Teve que buscá-los em San Luis, San Juan e até em
Mendoza. Viajou a Córdoba, onde contratou os serviços de um arquiteto
que o satisfez, ao plasmar em um projeto bastante ambicioso o que ele
tinha in mente para agradar Laura. Retornou quinze dias mais tarde com
cilindros de papel manteiga sob o braço e um feixe de professores e
aprendizes que chegaram no dia seguinte em carretas. Na noite anterior à
demolição do rancho de dona Higinia, Nahueltruz passou um momento
sentado no degrau da galeria, admirando a extensão de terra que chegava
até o Rio Cuarto e que era completamente dele.

Quando o trabalho permitia, almoçava no Javier. Às vezes se


somavam o casal Pereda e a senhora Beaumont. Laura, ao contrário, rara

Tradução Lauren Moon


vez ocupava seu lugar. Quando se sentava com os outros, um momento
mais tarde Gabriel a reclamava com seus choros e desaparecia sem se
desculpar. Dona Generosa se admirava pela voracidade do bebê.

- Mas se acaba de comer. Não passou nem duas horas -


assegurava.

Notava-se que o menino comia bem e que o leite de Laura era


gordo e abundante. Disto se encarregavam dona Generosa e Maria Pancha,
que a alimentavam com mais esmero que durante a gravidez. Tinham seus
segredos para que não lhe faltasse o leite, entre eles o mate cozido, o malte,
o queijo, a carne, envolver os seios em toalhas quentes e outros ardis dos
quais Nahueltruz havia perdido a conta. O certo era que Gabrielito crescia
dia a dia. Depois de sua viagem a Córdoba, quando Laura o pôs nos braços,
teria jurado que se tratava de outro menino. Seus traços, entretanto, eram
inequivocamente Guor. Não obstante, descobriu certo refinamento em suas
feições que falava da influência da mãe. Nessa tarde, na sala dos Javier,
com seu filho nos braços e Laura sentada junto dele, sem nenhuma matrona
que cacarejasse em volta, Nahueltruz se disse que era feliz.

~0~

Laura soube de punho e letra do próprio Roca os pormenores


de sua infrutífera entrevista com Carlos Tejedor no estreito Pilcomayo;
inclusive soube da ironia com a que o general se despediu de seu
adversário, quando este lhe disse que certamente não voltariam a se ver.
“Como, doutor!, - exclamou Roca -. Você é uma pessoa muito amável para
que eu não tenha prazer em vê-lo de novo”. Laura riu e Maria Pancha a
olhou de soslaio.

- Não teme que Guor saiba que escreve para o general?

- Não - respondeu Laura -. Se chegasse a saber, teria que


conformar-se. Jamais deixarei de lado minha amizade com Julio. Devo-lhe
muito. Além disso, quero-o e não me envergonho de dizê-lo.

- Surpreende-me - manifestou Maria Pancha, sem ironia.

- Sabe que a ninguém amo mais neste mundo que a


Nahueltruz, mas aprendi que também tenho direito a ser como sou, doa a
quem doer, inclusive a ele. Não posso apagar seis anos de minha vida, nos
quais ele esteve ausente. Se durante esse tempo cometi enganos, pagarei
por eles, não tenha dúvida. Mas Nahueltruz deverá me aceitar como sou, ou
será em vão tentar uma reconciliação.

Tradução Lauren Moon


- Inclino-me a pensar que Guor já aprendeu essa lição - disse a
criada.

Laura não comentou a respeito e terminou de ler: “ADMITO


COMIGO MESMO, MINHA QUERIDA LAURA, SINCERAMENTE ALIVIADO AO
SABER QUE VOCÊ ESTÁ EM EXCELENTE ESTADO. PADECI ATÉ RECEBER SUA
CARTA ONDE ME INFORMAVA QUE SEU FILHO TINHA NASCIDO EM BOM
ESTADO E QUE VOCÊ ESTAVA A SALVO. SEU MAIS FIEL SERVIDOR. SEMPRE
TEU, J.A.R.». Nenhuma palavra a respeito de Guor, apesar de ter
mencionado sua volta. Depois dessa carta, Laura não voltou a ter notícias
do general até depois de vários meses, e os detalhes da guerra civil que
aconteceu em Buenos Aires soube por Mario Javier, que escrevia
assiduamente, com o esmero de um cronista.

Em 11 de abril, houve eleição presidencial, e os eleitores de


Roca dobraram os de Tejedor. “Entretanto, - esclarecia Mario Javier -,
ainda deve correr muita água sob a ponte para que o general alcance a
vitória”.

Assim foi. Em 1º de maio, em um discurso acalorado à


Legislatura, Tejedor conseguiu que lhe aprovassem uma quantia de cinco
milhões de pesos para armar a província. Dias depois, em 10 de maio, veio
a entrevista entre Roca e Tejedor, seguida de uma série de conciliações,
reuniões, acordos de palavra, acordos assinados, disse me disse, que
tornaram lamacento e confuso o cenário político. Roca aceitava renunciar a
suas aspirações presidenciais, mas habilmente exigia uma condição que
sabia de impossível alcance: Sarmiento, o único candidato a quem ele
doaria seus eleitores, devia obter o consenso dos partidos em Buenos Aires.
Não se chegava a lugar nenhum, o tempo transcorria em um ambiente de
violência que aumentava dia a dia.

Em uma reunião em Campana, Roca e Pellegrini planejaram a


derrota de Tejedor, coincidindo sobre dois pontos: primeiro, a necessidade
de aguardar o primeiro golpe para logo derrubá-lo, e segundo, a de manter
a figura de Roca à margem da luta: era o governo nacional que defendia
sua honra sem implicâncias partidárias de nenhuma índole.

O desembarque de centenas de caixas com fuzis adquiridos no


estrangeiro por parte do governo provincial foi o princípio do fim tão
anunciado. Ao não contar com suficiente força militar para impedir que os
fuzis tocassem chão portenho, Avellaneda abandonou Buenos Aires junto
com ministro da Guerra, Carlos Pellegrini e, por simples decreto, designou
o povoado de Belgrano como sede do governo nacional. Seguiram-no a

Tradução Lauren Moon


metade dos legisladores, todos os senadores, a Corte Suprema e os
ministros.

Por parte de ambos os mandos, o provincial e o nacional,


aconteceram-se medidas militares e políticas que, no caso de Avellaneda,
demonstraram que tinha superado a letargia e recuperada o bom
julgamento, enquanto, no caso de Tejedor, puseram de manifesto que,
frente à iminência da guerra e suas consequências, perdia força e se tornava
atrás. Tejedor se apropriou do edifício da Alfândega, enquanto Avellaneda
ordenou o bloqueio do porto de Buenos Aires, e a cidade ficou virtualmente
sitiada. O governo nacional mandou cortar os cabos de telégrafo, destruir
conexões ferroviárias e tomar posse de todos os caminhos que levassem a
porto. Os comerciantes e os cônsules de vários países, entre eles o ministro
norte-americano general Osborne e seus colegas da Austria, Brasil, França,
Grã Bretanha e Hungria, solicitaram ao presidente Avellaneda permissão
para que os navios ancorados realizassem suas operações de carga e
descarga. O presidente concedeu um período de graça de dez dias e assim
os navios de todas as bandeiras atracados no porto de Buenos Aires
completaram seus negócios. Em 12 de junho, uma esquadra norte-
americana que atracou em Buenos Aires trocou saudações com a esquadra
Argentina, em manifesto respaldo ao governo nacional. No mesmo dia, o
colégio eleitoral conformado por eleitores das províncias da memorada
Liga, proclamou na localidade de Belgrano a fórmula presidencial Roca-
Madero, como a que dirigiria os destinos do país nos seis anos
subsequentes.

Quando os exércitos provinciais, uma vez superadas suas


disputas internas, se decidiram a atacar, as forças nacionais tinham tido
tempo para rearmar-se. A luta civil começou em 17 de junho. Em 20 e 21,
os sangrentos combates de Ponte Alsina e de Corrales obrigaram às forças
de Tejedor a recuar dentro da cidade sitiada. As tropas nacionais a mando
do general Levalle impediam o contato dos cidadãos com o exterior,
enquanto o porto permanecia bloqueado pela esquadra. Tratou-se de uma
luta parelha e dura, e houve muitas baixas em ambos os bandos. Entretanto,
foi Buenos Aires que terminou por capitular pois, como consequência da
luta, saltou à vista que esse penoso processo carecia de outros fundamentos,
além da teimosia e da estupidez de um grupo de fanáticos liderados por
Tejedor. Nos dia 22, o general Bartolomeu Mitre assumiu o comando das
forças com a única intenção de quitar a luta armada e negociar.

No mesmo dia, um Comitê de Paz pediu ao general Osborne, o


ministro norte-americano, que mediasse. Tanto o governo provincial como
o nacional aceitaram a arbitragem que derivou na renúncia de Tejedor, o

Tradução Lauren Moon


encarregado do vice-governador José María Moreno e a permanência da
Legislatura provincial. Mas o entorno roquista não admitia termos tão
brandos com quem tinha posto em perigo a unidade da República,
propiciando uma guerra que claramente haviam perdido. Na opinião de
Roca, a oportunidade merecia um castigo instrutivo para evitar novas
intentonas. Em princípio, o presidente Avellaneda, firme em sua postura
conciliadora, negou-se a endurecer nos termos da rendição, mas finalmente
prevaleceram as ordens do presidente eleito, que determinou a dissolução
da Legislatura Provincial, a renúncia do governador Moreno e a designação
de um interventor federal. O processo concluiu em 20 de setembro, quando
o Congresso sancionou a Lei do Federalização da cidade de Buenos Aires.
Em 12 de outubro, Julio Argentino Roca assumia o cargo de presidente da
República Argentina.

~0~

O dia de Nahueltruz começou com uma surpresa: o empregado


do hotel que chamou a sua porta, enquanto tomava o café da manhã,
entregou-lhe um cartão de madame Beaumont, onde solicitava que ele a
acompanhasse durante o almoço em seus aposentos no andar de cima.
Apesar de ter trabalhado duramente e resolvido vários problemas, não tirou
da cabeça o convite; embora convencido de que se tratasse de mera
cortesia, estava intrigado. Carolina Beaumont tinha setenta e cinco anos
que não aparentava; facilmente confundia-a com uma de sessenta, no
máximo sessenta e cinco. Na opinião de Armand, o segredo de sua
madrasta radicava em uma eterna alegria e nessa esperança inquebrável que
ele adjudicava a sua religiosidade. Nahueltruz tinha aprendido a aceitar o
tratamento diferente de madame Beaumont, o mesmo que conferia a todos
os amigos de Armand, mas intimamente lhe doía pensar que ele, como
sobrinho neto, tinha direito ao carinho dessa mulher extraordinária.

Madame Beaumont o recebeu na sala de sua antessala com um


sorriso que, alguns diziam, guardava a candura de sua juventude. Sem ser
formosa, quando sorria, Carolina Beaumont ganhava a avaliação de
qualquer um. Embora miúda, ainda conservava uma silhueta de curvas
marcadas e uma cútis sem manchas nem rugas visíveis, que falavam de
uma vida disciplinada, carente de excessos e vícios. Vestia-se sem alardes,
mas, assim como sua mãe cinquenta anos atrás, com seus trajes, adereços e
penteados podia marcar moda. Nahueltruz se sentiu estranhamente
orgulhoso de por suas veias e as de seu filho correrem o mesmo sangue
desta mulher.

- Por favor, Lorenzo - disse, e assinalou uma cadeira em frente


a ela.
Tradução Lauren Moon
A pequena mesa estava primorosamente decorada. Uma
empregada do hotel os serviu o gazpacho96 e se retirou ao quarto.
Principalmente, falaram de Gabrielito, de quanto tinha crescido em apenas
dois meses, de quão bem via Laura, “embora eu a note cansada”, demarcou
Nahueltruz, e Carolina lembrou-lhe que, nesse período durante a noite,
amamentava-o a cada três horas.

- Seu filho é um grande comilão, senhor Rosas. A essa altura,


minha sobrinha teria desaparecido se dona Generosa e Maria Pancha não a
alimentassem com o esmero que o fazem. Suponho que Gabrielielito
terminará tão alto e corpulento como você.

Apesar da calidez de madame Beaumont, Nahueltruz se sentiu


repentinamente incômodo. A irregularidade de sua situação com Laura,
diariamente marcada pelos olhares e comentários de Magdalena Montes,
pesou-lhe como uma bigorna. “Estas são pessoas decentes, - pensou -, que
têm na mais alta estima a reputação de sua família e especialmente de suas
filhas. Que opinião terá de mim madame Beaumont?”, Carolina sacudiu a
campainha e a empregada serviu o segundo prato.

- Madame - expressou Guor, ao ficarem sozinhos -, suponho


que você me chamou para falar de minha situação com Laura.

- Absolutamente - assegurou Carolina -. Minha sobrinha e


você são adultos, não me atreveria a me misturar em suas questões, a
menos que me pedissem por isso. Confio em que resolverão sua situação da
maneira mais conveniente e apropriada.

- É obvio.

- Na realidade, convidei-o para almoçar porque desejava um


momento a sós com você, algo incomum por estes dias com tanta gente
pululando em torno. E desejava um momento a sós com você para falar a
respeito de sua mãe, minha sobrinha Blanca Montes.

Nahueltruz apoiou os talheres e olhou a sua anfitriã com


perplexidade.

- No dia da lamentável queda - explicou a anciã -, escutei


Maria Pancha chamá-lo Nahueltruz. “Eu conheço um Nahueltruz”, disse
comigo mesma. Na realidade, não conhecia um Nahueltruz; havia-o ouvido
nomear centenas de vezes por sua mãe, minha querida sobrinha Blanca.

96
Sopa fria que se prepara com hortaliça, bem típico na Argentina (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Não foi difícil determinar que aquele Nahueltruz, o de Blanca, e você eram
a mesma pessoa. E por fim soube por que seus olhos atraíam tanto minha
atenção: porque são iguais aos de minha mãe, sua bisavó. É um cinza tão
incomum, tão puro, um cinza pouco comum. - Ante o silêncio do Guor,
Carolina adicionou -: Não necessito que me ratifique o que digo. Meu
sobrinho Agustín o fez por você. Também explicou-me os pormenores de
sua vida e quão arriscado seria se sua verdadeira identidade caísse nas
mãos da Justiça. Por que não me disse a verdade quando nos conhecemos
em Paris? Teria sido uma imensa alegria, para mim, receber em minha casa
o filho de quem considerei minha filha.

- Naquele momento, eu, enfim... A situação era tão


complicada, tão confusa, minha vida se converteu em um inferno e eu...
Também houve um pouco de vergonha – admitiu- . Vergonha de ser índio,
de ser um fugitivo, de ser o filho do homem que lhes tinha arrebatado
minha mãe.

- O filho do homem que sua mãe amou.

O sorriso de Carolina Beaumont emendou o mal-estar, e o


carinho que lhe oferecia converteu-se em um paliativo, depois de semanas
de mendigar inutilmente o amor de Laura.

- Sempre quis lhe dizer a verdade, madame.

- Daria-me imensa alegria se me chamasse como todos meus


sobrinhos, tia Carolita.

- Não será fácil - admitiu Nahueltruz.

- Meu querido - disse Carolina, com repentino ardor, e lhe


segurou a mão -. Querido meu, quanto desejei lhe conhecer! O Senhor me
outorgou esta graça antes de eu morrer. Se sua mãe pudesse ver em que
homem tão magnífico você se converteu, que orgulhosa estaria de você!
Minha pobre Blanca - disse, e lhe quebrou a voz -. Desculpe-me, mas quis
tanto a sua mãe que poucas vezes a menciono sem me emocionar.

Carolina queria saber de Blanca e pediu a Nahueltruz que


detalhasse sua sorte, depois de abandonar a estância em Ascochinga até o
dia em que morreu. Nahueltruz satisfez amplamente esse pedido e a
conversa se estendeu até bem entrada à tarde.

- Que ser tão extraordinário era sua mãe, Nahueltruz! Deve


estar orgulhoso dela.

Tradução Lauren Moon


- Estou sim. E também estou orgulhoso de meu pai, o cacique
Mariano Guor, um grande líder do povo ranquel, reconhecido por sua
generosidade, seu sentido da justiça e seu coração nobre. Um apaixonado
por seu povo.

- Deve ter sido um homem muito valioso, pois sua mãe o amou
tanto. Lamentei sinceramente ao saber que sua tumba havia sido profanada.

- É uma grande dor para mim - confessou Nahueltruz -,


igualmente para minha família. Lutarei até recuperar seus restos mortais e
devolvê-los a Leuvucó, onde descansarão em paz junto de minha mãe.
Agustin e o padre Marcos Donatti prometeram me ajudar.

- E Laura e Gabrielito serão o estímulo para que nunca baixe


os braços - acrescentou Carolina.

- Tudo o que sou e o que tenho, tudo o que quero ser e ter é
para eles.

Ao deixar os aposentos de madame Beamont. Nahueltruz


consultou seu relógio: cinco da tarde. Não tinha sentido retornar à obra,
tampouco desejava fazê-lo. Só queria estar com sua mulher e seu filho. Nos
Javier, Maria Pancha lhe informou que Laura e dona Generosa tinham
saído às compras: Gabrielito estava com elas.

- Saíram sozinhas e levaram meu filho com este frio!

- Como acredita! - ofendeu-se Maria Tranquila -. A senhora


Magdalena e o doutor Pereda as acompanhavam. Quanto ao frio, Gabrielito
foi abrigado por estas mãos - e as pôs perto do rosto -. Se ao chegar tiver
sequer a ponta do nariz frio, eu não me chamo María Francisca Balbastro,
escutou-me? Se desejar, espere na sala. Vou trazer o jornal e um café. Ou
quer outra coisa?

- Café está bem - respondeu Nahueltruz.

Não tinha terminado de ler a primeira página de La Gaceta de


Rio Cuarto, quando alcançou-o um alvoroço na porta principal. O pranto de
seu filho se distinguia sobre o resto das vozes. Soltou o jornal e correu ao
vestíbuo. Laura tirava depressa o capote e o chapéu, enquanto Generosa
sacudia Gabrielito para acalmá-lo e Magdalena repartia ordens. Narciso
Pereda, o único que conservava a serenidade, olhou para Guor e lhe disse:

- O menino tem fome.

Tradução Lauren Moon


Nahueltruz voltou a respirar. Laura lhe passou o casaco e o
chapéu e ele os recebeu com mãos torpes, ao mesmo tempo em que
descobria que sua blusa estava empapada em leite e deixava a anágua
transparente. As mulheres entraram na salinha de costura e fecharam a
porta. Um momento depois, Gabrielito tinha se acalmado.

- Que pulmões! - exclamou Narciso Pereda; acomodou-se na


poltrona da sala, pegou o jornal e começou a ler.

Guor continuava no vesíbulo, com o chapéu e o capote nas


mãos. Pensou em voltar para a sala e aguardar. Mas já tinha aguardado o
bastante; na verdade, estava farto de fazê-lo. Laura e seu cortejo não lhe
impediriam de tomar posse do que, por direito natural, pertencia-lhe. Jogou
o casaco e o chapéu sobre uma cadeira e entrou na salinha sem bater.

- Por favor - trovejou sua voz -, quero que me deixem a sós


com minha mulher e meu filho.

Magdalena insinuou queixar-se, mas o gesto de Guor não


admitia interferências. Dona Generosa foi primeira a se levantar e
abandonar o recinto; Magdalena não demorou a segui-la. Nahueltruz
fechou a porta e passou a chave. Laura o contemplava impassivelmente, e
lhe dirigiu um sorriso quando seus olhares se encontraram. Incomodaram-
lhe seu descaso e esse sorriso condescendente, que parecia expressar que a
solidão e a marginalização às quais o tinha submetido lhe importavam um
cominho. Agarrou uma cadeira pelo respaldo e a colocou junto dela.

Gabriel mamava com as mãozinhas obstinadas ao seio de


Laura, e o quadro que se apresentou, aconchegado ao colo de sua mãe,
extasiou Nahueltruz. O rítmico movimento de sua boca que transbordava
de leite ao sugar, operou como um encantamento sobre seu ânimo alterado.
Permaneceu por um longo momento com o olhar fixo nesse rosto de traços
diminutos e morenos em contraste com a brancura dos seios que o
alimentavam.

Gabriel franziu o cenho antes de começar a se queixar.

- O que aconteceu? - assustou-se Guor.

- Nada. Acabou-se o leite - explicou Laura, enquanto o


colocava do outro lado.

O mamilo desprezado estava coberto de gotas brancas, e


Nahueltruz experimentou a irresistível tentação de senti-lo dentro de sua

Tradução Lauren Moon


boca. Quando Laura tentou cobrir-se com a anágua, deteve-lhe a mão e,
inclinando-se sobre ela, procurou seu mamilo e sugou. Ainda saía leite,
doce, morno e grosso, que encheu sua boca e desceu por sua garganta com
a suavidade do veludo. A experiência era fascinante, e continuou sugando
apesar de já não ter mais. Sentiu os dedos de Laura entrelaçarem-se em seu
cabelo e quis olhá-la nesse instante, porque soube que, ao levantar a vista,
ela estaria contemplando-o com essa ternura que ultimamente só
dispensava a Gabriel.

- Eu também preciso de você - disse, sem pensar.

- Sei - respondeu ela, e lhe beijou várias vezes a testa.

Gabriel tinha dormido com o mamilo na boca e os dedinhos


ainda beliscavam a carne de sua mãe. Laura colocou um pano de gaze
sobre o ombro antes de acomodá-lo para que arrotasse, e Nahueltruz
admirou sua destreza; frente à vulnerabilidade de Gabrielito, ele se tornava
desajeitado e medroso. Igualmente teve que carregá-lo, enquanto Laura
arrumava a blusa meio dura de leite seco.

Da sala vários pares de olhos os seguiram, mas ninguém se


animou a juntar-se a essa família de três. A atitude de Guor intimidava.
Como um carcereiro, caminhava atrás de Laura, sua mão sobre o ombro
dela e a vista fixa na cabecinha de seu filho adormecido.

- Logo terei que passá-lo para o berço, de tão grande que está -
comentou Laura, enquanto agasalhava Gabriel no moisés.

Os braços de Guor se ajustaram em torno de sua cintura e a


obrigaram a se virar. Olhou-a e a fez ruborizar. Fazia tempo que não a
olhava desse modo, fazia tempo que ela não o permitia e, contra o que seu
instinto materno lhe ditava, deixou que ele a arrastasse até a parede, onde,
aprisionada, sucumbiu ao frenesi da boca dele. O beijo de Nahueltruz se
prolongou até enervá-la e fazê-la gemer de maneira relaxada. Esse beijo
conjurou a frigidez que por semanas se apropriou de seu corpo e foi
contagiada por uma excitação como a qual a tinha escravizado durante os
meses de gravidez.

- Está pronta para me receber de novo? - perguntou Nahueltruz


com voz rouca, e ela assentiu -. Então, vamos a meu hotel.

Maria Pancha entrou sem bater, e Guor e Laura interromperam


o abraço.

Tradução Lauren Moon


- Vamos sair - informou, sem olhá-la, enquanto trocava sua
blusa -. Voltaremos antes que Gabrielito desperte.

- Não se apresse - disse a criada -. Se o menino acordadar e


tiver fome, enganarei seu estômago com água açucarada.

Tradução Lauren Moon


Capítulo XXXVI.

A promessa de Laura

Estavam nus na cama, amando-se, redescobrindo-se. Laura


ainda mostrava os vestígios da gravidez, e ele a achou mais atraente com
suas formas arredondadas, suas curvas cheias e seu ventre mai volumoso,
doces estigmas da maternidade. Amava esse corpo generoso, porque tinha
lhe dado um filho, e lamentou os nove meses de cegueira, que o impediram
de deleitar-se com sua gravidez. Incomodou-se também pela angústia que
tinha causado em quem mais amava, pelo abandono ao qual a condenou.

- Desculpe-me pelas coisas que lhe disse e lhe fiz, e rogo que
me perdoe.

- Poderia dizer que perdôo você, Nahuel, mas sou tão feliz
que não sinto que deva fazê-lo. Vivemos o que vivemos, sofremos o que
sofremos, e agora estamos aqui, juntos. Nada me importa exceto você e
nosso filho.

—Nada vai voltar a me afastar de seu lado, Laura. Nunca vou


desampara-la. Vou protegê-la sempre, com minha vida.

- Sempre me protegeu com sua vida, Nahuel.

- Poderia ter morrido ao cair pelas escadas - se estremeceu, e a


apertou contra seu peito -. Meu Deus, teria morrido por minha culpa.

Laura pôs a mão sobre sua boca e pediu que ele recordasse os
momentos bonitos que tinham compartilhado. Entesourava um
especialmente e o citou:

- Aquela manhã, à beira do Rio Cuarto, quando depois de nos


banhar, fizemos amor sob o salgueiro.

Laura emitiu um som de prazer, como um ronrono, e


mencionou por sua vez:

-A manhã que fizemos amor no celeiro do convento


franciscano, a manhã em que soube que era o filho de Blanca Montes.

Tradução Lauren Moon


- Quando a possuí sobre o feno e umas mantas sujas? –
estranhou Guor, e Laura assentiu -. Ou à noite - ele continuou -, em que
fizemos amor na horta de dona Generosa, contra o tronco de uma árvore.

- De uma nogueira – lembrou Laura -. Voltei para nogueira


recentemente e revivi cada instante dessa noite. Desejei tanto você naquele
momento que quase grito. Oxalá voltasse para me tomar ali ou em qualquer
outra árvore - disse Laura, e começou a tocá-lo.

- Seus desejos são ordens para mim, senhora.

- Senhora Rosas - completou ela -. Como soa bem.

- Faz sete anos que desejo que lhe chamem assim.

- Minha mãe me chateia diariamente com nosso casamento e o


batismo de Gabriel Mariano. Ela e o doutor Pereda devem retornar a
Buenos Aires, mas não querem fazê-lo até me verem com a cabeça no
lugar.

- Quando, então? - impacientou-se Guor -. Eu não o


mencionei antes porque ultimamente notei você distante e fria. Confesso
que tive medo que já não me amasse mais.

- Nahuel - se surpreendeu Laura -. Que idéias tem, às vezes.


Eu não estive nem fria nem distante. Ocupada com Gabrielito, sim, mas
jamais fria e distante. Vai me dizer que, depois do que acabamos de fazer,
sente-me fria e distante?

- Não fiquei muito convencido - fingiu Guor -. Deveria voltar


a tentá-lo para me convencer definitivamente.

- Seus desejos são ordens para mim, senhor Rosas - parodiou


Laura.

Mais tarde, suado e cansaço por tê-la amado como só a ela


podia amar, Nahueltruz afundou seu rosto no pescoço de Laura e inspirou
profundamente.

- Desde que conheci você, o aroma de rosas tem um efeito


devastador sobre mim. Às vezes, em Paris, buscava você entre as pessoas
seguindo o rastro deste aroma. Mas você nunca estava ali. Em ocasiões –
disse -, sua ausência se tornava insuportável.

Tradução Lauren Moon


-Esses tempos tristes chegaram a seu fim, Nahuel. Não sei por
que Deus nos pôs tantas provas, mas as derrubamos uma a uma. Isso não
faz você se sentir mais forte? Não começa a pensar que nosso amor é
imortal?

- Sim, meu amor, sim.

Ficaram em silêncio, cômodos e entorpecidos no calor de seus


corpos saciados. Eram sete da tarde, noite fechada lá fora; no quarto,
apenas se percebiam as silhuetas dos móveis. Á pouco tempo o sol tinha
deixado de passar pelas frestas da persiana; por debaixo da porta, ao
contrário, ingressava a luz amarelada do abajur a gás do corredor. Os sons
externos prosseguiam, mas não eram estridentes, e acentuavam a quietude
do quarto.

- Pensa em Linconao ao ver Gabrielito? - murmurou Laura.

- Claro - respondeu Guor -. Hoje, por exemplo, enquanto o


amamentava, lembrei-me muito dele.

- Parecem-se? De verdade?

- Nos traços gerais, sim. Linconao também se parecia comigo,


embora ele fosse mais moreno que Gabriel e não tivesse olhos tão grandes,
mas bem puxados.

Falaram do futuro, da construção da casa, do projeto das


cavalariças, do campo com peões ranqueles, da família dele, da família
dela, de retornar a Buenos Aires, de empreender uma longa viagem, de
terem mais filhos, do medo de Guor a perdê-la nos partos. Também
tocaram no assunto de Geneviéve Ney e do general Roca. Nahueltruz
confessou que tinha pedido Geneviéve em casamento por despeito, e Laura,
que tinha sido Roca, a pedido dela, quem havia emitido o salvo-conduto
para ingressar na ilha Martín García.

- Meses atrás também lhe pedi a liberdade de seu tio Epumer.

- Esse foi o último favor que lhe terá pedido - pronunciou


Nahueltruz, e Laura não se atreveu a replicar -. Nunca enquanto eu viver
voltarei a recriminar sua relação com ele, mas, de agora em diante, o trato
entre vocês será limitado à cortesia e ao protocolar. Está claro?

- Sim, Nahuel - e, para mudar de assunto, perguntou-lhe -: por


que não se casou com ela? Finalmente se arrependeu?

Tradução Lauren Moon


- Ela me rechaçou. Por sorte, dos dois, Geneviéve conservava
o juízo e me disse não.

- Por quê? - pasmou-se Laura -. Eduarda sempre dizia do


interesse que Geneviéve tinha em você.

—Mas Geneviéve sabia de meu amor por você. Rechaçou-me


porque não teria suportado ser a segunda em minha vida. Ela está
acostumada a brilhar em qualquer lugar que esteja. Ela é a rainha de Paris.
Não teria permitido para si mesma a humilhação de unir-se a um homem,
que amava outra mulher do modo que ela desejava ser amada.

Não voltaram a falar, absortos em reflexões que envolviam um


passado que desejavam enterrar para sempre. Um momento mais tarde,
Laura percebeu que Nahueltruz tinha adormecido e, movendo-se
devagarzinho, se desprendeu de seu abraço e deixou a cama. Tinha que
retornar aos Javier; era hora de amamentar. Acendeu um abajur e recolheu
sua roupa dispersada pelo chão. Vestiu-se e voltou junto a Nahueltruz, que
ainda dormia. Tocou-lhe o cabelo, grosso, liso e preto, e pensou que o
sangue ranquel era forte e predominante, como em Gabriel Mariano.

- Eu prometo, Raposa Caçadora de Tigres – sussurrou -, que


algum dia os restos mortais de seu pai descansarão junto aos de sua mãe em
Leuvucó. E para consegui-lo lançarei mão de quantos recursos me
apresentrem, mesmo que, às vezes, eu tenha que ocultar-lhe isso para que
não se zangue comigo.

~0~

Casaram-se em uma tarde aprazível no final de julho, de céu


rosáceo e brisa fria e aromática. Laura chegou no cabriolet emprestado de
seu padrasto e caminhou junto com ele até o altar da capela de San
Francisco, em sua mão o rosário de pérolas de Magdalena e um ramo de
flores-de-laranja confeccionada por Maria Pancha. O vestido era singelo,
de seda branca, com um casaco justo que delineava sua cintura já mais
afinada. Nahueltruz levantou o véu de gaze e, apesar de conhecer de cor, a
beleza de Laura o comoveu profundamente. E ele, que desde seus anos com
os dominicanos de San Rafael não rezava, pensou. “Senhor, que esta
felicidade nunca acabe”.

Agustín celebrou a missa e, mais tarde, quando Nahueltruz e


Laura já eram marido e mulher, o padre Donatti batizou Gabriel Mariano,
que abriu os olhos e respirou rapidamente, quando lhe derramaram água
benta. A escolha dos padrinhos foi resolvida rapidamente, um assunto no

Tradução Lauren Moon


qual houve consenso logo a princípio: dona Generosa e o doutor Alvaro
Javier, que insistiram em dar uma pequena recepção em sua casa, a qual
participaram quem tinha acompanhado Laura ao longo de sua gravidez.
Magdalena sabia que essas pessoas estavam bem abaixo deles, mas se
sentia igualmente à vontade. Mulheres e homens sem maior refinamento,
criados ao uso de uma cidade jovem, habituados às atividades do campo,
pessoas rústicas e sem ambições, que acolheram sua filha, quando em
Buenos Aires a teriam destroçado. Conversou com todos e, embora a
surpreendesse escutar “pra’as casas” em vez de “a casa”, que a chamassem
“dona Magdalena” – a fazia sentir-se velha -, que se dissesse ‘face97’, ‘ocê’,
‘ninguéns’, ‘apretou’, ‘a calor’, que se marcasse o R e outros modismos ao
estilo, não se sentiu incomodada. Quanto a seu genro, não precisava que
Maria Pancha lhe confirmasse que esse elegante cavalheiro, vestido à moda
parisiense, que falava várias línguas e declamava Petrarca, fosse o
selvagem que em 73, havia arruinado a vida de sua filha. “Nahueltruz” ele
tinha sido chamado por Maria Pancha na tarde do incidente no hotel, na
tarde que nasceu Gabriel Mariano. Sua teimosia em afastar o malfadado
romance de Laura com um ranquel, não a preservou de conhecer certas
particularidades, entre eles que o índio se chamava Nahueltruz Guor e que
era muito amigo do padre Agustín. Olhou-o e sorriu com complacência ao
pensar: “Vê-se tão feliz”. Nesse dia, com Gabrielito em seus braços, seu
genro lhe inspirou uma ternura de mãe.

Laura estava contente, mas era a euforia de Nahueltruz que


todos desfrutavam. Conversava, ria e se preocupava com manter as taças
cheias de champanhe trazidas de Paris, para a maioria, uma novidade. Seus
olhos procuravam incansavelmente por Laura e, se um sorriso cruzasse
entre eles, quem estivesse o observando seria testemunha de como se
iluminava seu rosto moreno. Tinha perdido o medo de Gabriel Mariano,
que, com seus quase três meses, já não parecia desarmar-se e carregava-o
em seus braços, pavoneando-se com seu filho para que todos o elogiassem.

O doutor Javier os surpreendeu ao contratar a orquestra do


povoado, a mesma que amenizava as noites no hotel de France, e dançaram
até a meia-noite. Era a primeira vez que Laura dançava com Nahueltruz, e
se admirou por sua destreza na valsa. Nahueltruz convidou também sua
sogra, a quem encontrou especialmente afável, sua tia Carolita, dona
Generosa e, embora assegurasse que só deveria deixar-se levar, Maria
Pancha se desculpou dizendo que ela sabia fazer muitas coisas, menos
dançar, e retornou à cozinha.

97
E não Faça (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


Com a retirada da orquestra à meia-noite, a festa acabou.
Laura se sentia cansada, doíam-lhe os seios e ansiava por um momento a
sós com seu marido. Partiram antes que o último dos convidados se
despedisse e, com Gabrielito nos braços de seu pai, caminharam até a casa
que Nahueltruz havia alugado tempos atrás. Apesar de pequena e sem
luxos, contava com a vantagem de encontrar-se próxima aos lugares
importantes para Laura. Ainda cheirava a pintura fresca, os móveis
lustravam à luz do abajur, assim como os pisos de madeira recentemente
encerados. Ao pôr o pé na sala, Laura experimentou uma sensação tão
agradável de bem-estar e plenitude que a levou a refletir: “Já consegui tudo
o que ansiava nesta vida”. Virou-se, e seu olhar se deteve na figura de seu
marido que carregava Gabrielito profundamente adormecido. Ele a olhava
com esperança, aguardando o veredito pela casa.

- É maravilhosa – assegurou-lhe.

- É provisória - se justificou Guor -, até que o casarão esteja


terminado.

Laura se aproximou, sorrindo. Nahueltruz a abraçou e a atraiu


para seu peito, beijou seu cocuruto e depois o do menino, embargado de
felicidade. Tinha sofrido tanto que custava acreditar que era sua adorada
Laura quem descansava sobre seu peito, e que era o filho que tinha lhe
dado que dormia entre seus braços. E desejou que Laura já não fosse mais
conhecida como “a viúva de Riglos”, mas sim como à senhora Rosas, a
senhora de Lorenzo Dionisio Rosas.

Terminaram os três na cama. Embora dormido, Gabrielito se


alimentava com fruição, e seus ruídos os faziam rir. Em voz baixa, Laura
enumerava seus avanços precoces, e Nahueltruz se regozijava ao vê-la tão
orgulhosa. Recostaram o menino entre eles e, por um bom tempo, não
falaram; limitaram-se a contemplá-lo, a contemplarem-se, a entrelaçar suas
mãos, a acariciar seu rosto, seu corpo. Um pouco mais tarde, Nahueltruz
mencionou seu desejo de levá-la a Europa.

- Será nossa lua de mel - acrescentou.

- Não deixarei Gabrielito.

- Como pensa que eu pediria sacrifício semelhante a você? -


ofendeu-se Nahueltruz -. Iremos os três, e levaremos Maria Pancha.

- Retornaremos algum dia a Buenos Aires? – ela se animou em


perguntar.

Tradução Lauren Moon


- Retornaremos quando puder delegar a alguém de confiança a
construção da casa e das cavalariças. Faz uns dias enviei um telegrama a
Miguelito, anunciando-lhe nosso casamento e pedindo que viajasse de trem
para cá, e que trouxesse meu cucu e a sua família. Ele será minha mão
direita como foi de meu pai. Não sabe sobre cavalos, mas sim de plantações
e manejo de peões. Será perfeito para lutar com os meus, que têm suas
manhas e vícios, como todos. Da criação de cavalos eu me encarregarei,
exclusivamente. Em definitivo, acredito que, depois de um ano, passaremos
uma temporada em Buenos Aires e outra por aqui.

Nahueltruz interpretou o silêncio de Laura como desacordo e


se apressou a explicar:

- Não poderei me ausentar muito tempo da estância sem o


risco de encontrar com grandes problemas a minha volta. Verá, Laura, eu
iniciei esta empreitada quando o nosso caso tinha terminado, e o fiz movido
pela culpa que albergo por ter abandonado minha gente. Pareceu-me o
único modo de paliar minhas faltas do passado. Agora não posso voltar
trás, desampará-los, deixá-los à deriva. Estão sofrendo fome e
enfermidades, vagam pelo deserto sem rumo, não sabem o que fazer. Devo
ajudá-los, é meu dever, devo isso a meu pai.

- Ponho minha vida e a de nosso filho em suas mãos,


Nahueltruz Guor. Minha confiança é cega; meus passos seguirão os seus
aonde quer que nos levem e respaldarei suas decisões confiada em sua
sensatez.

Ante a declaração de Laura, Guor ficou mudo, incapaz de


achar as palavras que expressassem sua gratidão. A promessa pronunciada
o insuflou de uma energia que o fez se sentir invencível, e disse a si
mesmo, também, que a confiança de sua esposa converteria-se em sua
força, e o amor que os unia, na energia para cumprir o plano que tinha
esboçado, seu companheirismo seria seu refúgio, seu sorriso seria sua
distração, seu corpo, uma fonte inesgotável de prazer, a inteligência e
valentia de sua mulher, seu orgulho. De repente, veio-lhe à mente e recitou.

- Bendito seja o dia, o mês, o ano, a estação, o tempo, a hora, o


momento, o charmoso povoado, e o lugar no qual seus lindos olhos me
acorrentaram.

Tradução Lauren Moon


Epílogo.

Promessa cumprida

LEI 25.276 (publicada no Boletim Oficial em 28 de agosto de


2000)

Artigo 1º.- O Poder Executivo, através do Instituto Nacional


de Assuntos Indígenas, procederá ao traslado dos restos mortais do
cacique Mariano Rosas ou Panguitruz Gour, que atualmente se encontram
depositados no Museu de Ciências Naturais de La Prata “Florentino
Ameghino”, restituindo-os ao povo Ranquel da Província de La Pampa.

Artigo 2º. - A tal fim se transferirão seus restos mortais a


Leuvucó, Departamento do Loventuel, da Província de La Pampa.

Artigo 3º. - A Subsecretaría de Cultura do Ministério de


Cultura e Educação da província de La Pampa, em consulta com as
autoridades constituídas da comunidade ranquelina, fixará o lugar onde
serão depositados em sepultura.

Artigo 4º. - Ao momento de cumprir-se com o ordenado por


esta lei, renderá-se comemoração oficial ao cacique e declarará-se de
interesse legislativo a cerimônia oficial que será realizada em reparação
ao povo ranquel.

Artigo 5°. - Comunique-se ao Poder Executivo Nacional.

Jornal La Gaceta de Rio Cuarto

Tradução Lauren Moon


Victorica, O Pampa, 24 de junho de 2001

DEVOLVIDOS OS RESTOS MORTAIS DE UM


CACIQUE RANQUEL

Em 22 de junho passado, á noite, aconteceu, no salão


municipal de Victorica, o velório de um conhecido cacique ranquel,
Mariano Rosas, morto 124 anos atrás. Nos dia 21 seus descendentes
viajaram a La Plata para buscar seus restos mortais que por anos ficaram
expostos em uma vitrine do Museu de Ciências Naturais “Florentino
Ameghino”. Depois da profanação de sua tumba em 1879, ordenada pelo
coronel Eduardo Racedo, o primeiro destino dos ossos foi à coleção do
doutor Estanislao Zeballos, estudioso dos índios do sul. Com a morte deste,
os herdeiros doaram os restos mortais ao museu, onde permaneceram até
que uma lei do Congresso Nacional (a lei 25.276) ordenou sua devolução
ao povo ranquel.

O crânio de Mariano Rosas se velou ao longo da noite e seus


parentes tiveram oportunidade de se despedir dele. Dois chefes do povo
ranquel (que em araucano são chamados Loncos), Carlos Campú e Adolfo
Rosas, sobrinho bisneto do cacique, presidiam o velório e se mantinham
firmes em ambos os lados do crânio. A reunião apresentava um aspecto
composto de funcionários de traje e gravata e de ranqueles de poncho,
faixas na cabeça e lanças. A solenidade do ato se refletia nos rostos sérios e
nas lágrimas que rodavam pelas bochechas morenas e desenhadas de
alguns ranqueles.

Antes de partir, o intendente de Victorica pronunciou um curto


discurso e apontou a generosidade de Osvaldo Ramón Borthiry, que tinha
doado a terra para o caminho que conduz ao descanso final de Mariano
Rosas. Uma mulher, claramente ranquel, expressou: “Que as doou?
Devolveu-as!”, manifestando deste modo a percepção geral da comunidade
indígena que sustenta que, com o passar do século XIX, foram selvagem e
cruelmente despojados de suas terras e que receberam um tratamento
vexatório por parte dos brancos.

Ao amanhecer do dia de ontem, 23 de junho, quatro ranqueles


conduziram a cavalo a urna com os restos mortais até a localidade de
Leuvucó, distante a vinte quilômetros de Victorica, que, nos tempos de

Tradução Lauren Moon


Mariano Rosas, foi a capital do País dos Ranqueles, estrategicamente
localizada no ponto de convergência das trilhas ou caminhos mais
importantes de Terra Adentro. Os concorrentes chegavam em todo tipo de
veículos: caminhonetes, automóveis, carretas, cavalos e mulas. Foi
sepultado perto da lagoa de Leuvucó que, segundo expressa o coronel
Lucio V. Mansilla, em seu Excursión a los indios ranqueles, tinha uma
relevância preponderante na vida da comunidade que habitou essas terras
ermas e inóspitas. Seu aspecto é triste e desolado, mas afirmam que no
século XIX apresentava mais vegetação e água.

Para o descanso final do cacique Rosas se preparou um


catafalco de troncos de caldén (a madeira típica da região) de dois metros
de comprimento sobre o qual descansa uma pirâmide, cujos lados estão
orientados aos pontos cardeais. Cada lado representa as dinastias mais
importantes do povo ranquel: o rosto que olha para o norte corresponde aos
Carripilún, o do oeste aos Plumas de Pato, o do leste aos Zorros98, a qual
pertenceu Mariano Rosas, e o do sul aos Tigres. No rosto dos Zorros se
encontra a abertura por onde se colocou a urna sobre terra de Leuvucó.
Perto da pirâmide foi levantado um camarote para os funcionários e as
autoridades do povo ranquel; em torno, outros ranqueles, os porta-
bandeiras das escolas da região, os jornalistas e outros convidados, entre
eles a cantora Gabriela Epumer, descendente do irmão mais novo de
Mariano Rosas, o cacique Epumer, que o sucedeu ao trono.

A cerimônia começou com uma melodia de notas lânguidas,


tristes e arrastadas, proveniente de instrumentos ranqueles, alguns como
cornetas, que as chamam trutukas, outros se assemelham a flautas
(pifilkas); havia também grandes cascavéis, os cascahuillas, e os mais
tradicionais, os kultrunes, que são tambores mapuches. Depois dançaram a
dança do ñandú99 ou choique purrún100, agitando a cabeça, dando passinhos
curtos e brilhando muito com o poncho de cores e desenhos estridentes e
atrativos.

Na hora de falar, deu-se prioridade aos Loncos, que o fizeram


em araucano. De qualquer maneira, foram as palavras expressas por uma
anciã de porte distinto que se sobressaíram. A senhora elevou o olhar ao
céu e, com esta frase, abriu seu discurso: “Promessa cumprida, avó Laura”,
o que suscitou a gritaria entre o povo ranquel e estranheza em outros. Os
Loncos lhe dispensavam um tratamento familiar, em especial o senhor
Adolfo Rosas, que ao terminar seu discurso em araucano,abraçou-a e lhe

98
Raposas (N. da Tradutora)
99
Avestruz (N da Tradutora)
100
Típica dança dos Ranqulles, em que são usadas peles dos animais para cobrir o corpo (N. da Tradutora)

Tradução Lauren Moon


beijou as mãos. Tratava-se de Evangelina Rosas, a parente mais direta de
Mariano. É sua bisneta, neta de seu primogênito, Nahueltruz Guor, filho de
uma cativa, conforme se assegura.

Terminada a reunião, ao ser consultada a respeito da


enigmática introdução a seu discurso, a anciã explicou: “Minha avó, Laura
Escalante de Rosas, prometeu a meu avô, o cacique Nahueltruz Guor, lá
por 1880 que, algum dia, os restos mortais de seu pai, Mariano Rosas,
retornariam para descansar em Leuvucó. E, apesar da ousadia com que
lutou para conseguir seu objetivo, batendo em quantas portas conhecesse,
Laura Escalante morreu com enorme pesar por de não tê-la cumprido.
Tiveram que transcorrer cento e vinte e um anos para que o povo argentino
deixasse de fazer ouvidos surdos a esta legítima reclamação e devolvesse o
que jamais deveria ter saído daqui. Então, como não ia elevar os olhos ao
céu e compartilhar este triunfo com minha querida avó?».

***

Tradução Lauren Moon


Índias Brancas II

Dizem que os índios jamais esquecem uma ofensa, e que tudo


o que têm de agradecidos e humanitários, têm-no de rancorosos e
vingativos. E embora Lorenzo Rosas se vista à última moda parisiense e
fale três línguas, em seu íntimo segue sendo Nahueltruz Guor, o ranquel
que seis anos atrás jurou destruir a culpada de sua infelicidade: Laura
Escalante.

Na sociedade portenha ela é conhecida como a viúva de


Riglos, uma mulher formosa, rica, inalcançável. Proprietária de uma
editoria, compara-se ideologicamente com figuras do calibre de Sarmiento
e Mansilla e escreve um folhetim que mantém em vigília muitas leitoras. A
ela são atribuído, além disso, vários casos, o mais ressonante com o general
Julio Roca, que se prepara para sua conquista dos índios. Mas o certo é que,
atrás dessa imagem de mulher fatal, Laura esconde uma alma sensível e um
coração destroçado.

O rancor de Nahueltruz parece tão profundo como o amor que


ela sente por ele. Em meio dessa luta de vontades poderosas, os fantasmas
do passado reaparecem para complicar a situação e interpõem novos
obstáculos e mal-entendidos. Poderá Nahueltruz vencer o ódio que o
domina e perdoá-la? Sua felicidade e a de Laura dependem da resposta.

Amparada em um manejo impecável de intriga e em uma força


narrativa envolvente, Florência Bonelli ata e desata em Índias Brancas os
fios de uma trama palpitante destinanda a deixar rastros fundo na
lembrança de seus leitores.

Tradução Lauren Moon


RESENHA BIBLIOGRÁFICA

FLORÊNCIA BONELLI

Florência Bonelli nasceu em 5 de maio de 1971 na cidade de


Córdoba, Argentina. Desde pequena, seu pai lhe fomentou o interesse pelos
livros e a leitura, que com o tempo se converteram em sua grande paixão.
Ao terminar a escola secundária e devido a sua paixão pela matemática,
optou por cursar Ciências Econômicas. Era estranho que apesar de sua
marcada avidez pela leitura, nessa instância de sua vida não pensasse em
ser escritora.

Aos vinte e dois anos conseguiu seu título de Contadora


Pública na Universidade Católica do Córdoba e dez dias mais tarde estava
trabalhando em Buenos Aires, cidade que exerceria sobre ela uma
influência determinante. Toda uma metrópole, a capital da Argentina a
fazia sentir livre e independente. A novela romântica não só constituía o
gênero literário que mais a entretinha e comovia a não ser aquela que
expressava suas próprias fantasias, e terminou por cair na conta de que ela
também imaginava histórias de amor. “E por que não escrevê-las?”, foi a
sugestão de seu marido. E por que não? Assim começou com sua carreira
de escritora.

Tradução Lauren Moon

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