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Vale Abraão

Agustina Bessa-Luís

Os Escritores Portugueses Actuais

PLANETA DeAGOSTINI

Contracapa

Dirão os leitores que uma mulher como Ema não existe. Eu direi que sim. A
beleza de Ema tornara-se tão evidente que causava uma espécie de paralisia.

Página de Rosto

Agustina Bessa-Luís

Vale Abraão

PLANETA DeAGOSTINI

Colecção Dirigida por Urbano Tavares Rodrigues

Ficha Técnica
© Agustina Bessa-Luís e Guimarães Editores, Lda., Lisboa - 1991
© Editora Planeta DeAgostini, SA, Lisboa - 2000, para a presente edição
Todos os direitos reservados.
ISBN: 972-747-438-1
Depósito legal: 153792/00
Impressão: Cayfosa-Quebecor, Santa Perpètua de Mogoda (Barcelona) Printed
in Spain - Impresso em Espanha

NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA

Agustina Bessa-Luís é congenitamente romancista, mordaz e aforística, mas


também visionária, erudita, caudalosa contadora de histórias, retratista psicológica,
trabalhando incansavelmente sobre o tecido da vida e o do passado, próximo ou
distante. Nasceu em 1922, no concelho de Amarante.
O livro que a consagrou foi A Sibila, de 1954, onde ela, construindo e
analisando um gineceu arcaico, em que se movem em cenário minhoto as mulheres
da alta burguesia rural e as suas servidoras, soube combinar o romanesco e o
sociológico, o trivial e o excepcional, compondo personagens fascinantes de tão
«verdadeiras», locais e universais.
Quase sempre Agustina vela de ironia a pungência e espreita maliciosamente
por detrás da fundura das suas análises e do atrevimento das suas sentenças.
Por vezes desarrumada na estruturação das narrativas, o certo é que nelas
brilham sempre o seu espírito singular e a beleza da sua escrita, de raiz vernácula
mas aberta à modernidade.
Fez a história da vida privada e até pública de vários decénios do segundo
quartel do século XX, com particular incidência nos períodos que se seguiram à
Revolução de Abril.
De entre o imenso caudal dos seus romances, biografias, crónicas, peças de
teatro e raramente contos, citamos Mundo Fechado (1948), Os Super-Homens
(1950), Contos impopulares (1951 -1953), Os Incuráveis (1956), A Muralha (1957),
O Susto (1958), O Inseparável (1958), Ternos Guerreiros (1960), Embaixada a
Calígula (1961), O Manto (1961), O Sermão do Fogo (1962), A Brusca (1971), Santo
António (1973), As Pessoas Felizes (1970), Crónica do Cruzado Osb (1976), As
Fúrias (1977), Florbela Espanca (1979), Conversações com Dimitri e Outras
Fantasias (1979), Fanny Owen, O Mosteiro (1980), Sebastião José (1981), Longos
Dias Têm Cem Anos (1982), Os Meninos de Ouro (1983), Adivinhas de Pedro e Inês
(1983), Um Bicho da Terra (1984), A Monja de Lisboa (1985), O Apocalipse de
Albrecht Dürer (1986), Contos Amarantinos (1987), A Corte do Norte (1987), Dentes
de Rato (1987), Prazer e Glória (1988), Aforismos (1988), Eugenia e Silvina (1989),
Ventos, Areia e Amoras Bravas (1990), Vale Abraão (1991), Breviário do Brasil
(1991), Estados Eróticos Imediatos de Sören Kirkegaard (1992), Ordens Menores
(1992), O Concerto dos Flamengos (1994), As Terras do Risco (1994), Alegrias do
Mundo I (1996), Memórias Laurentinas (1996), Party (1996), Um Cão que Sonha
(1997), Garrett - O Eremita do Chiado (1997), O Comum dos Mortais (1998), A
Quinta Essência (1999). Além da trilogia As Relações Humanas e de A Bíblia dos
Pobres, que abrange Homens e Mulheres e As Categorias.
Deste imenso acervo de fábulas, memórias, reflexões, relatos de ódios, amores,
ambições e sofrimentos, o grande capital é o fervor da vida, num fluxo apaixonado e
crítico, temperado com o sal da ironia de Agustina.

CAPÍTULO I
O ROUXINOL

A margem esquerda dos rios não apetece tanto, seja porque o sol a procura em
horas mais solitárias, seja porque a povoa gente mais tristonha e descendente de
homiziados e descontentes do mundo e das suas leis. A região demarcada do Douro,
que ocupa quase na sua totalidade a margem direita, prova pelo menos que o reflexo
solar tem efeito no negócio dos homens e lhes determina a morada.
Porém, há na curva que apascenta o rio pelo rechão areento, ao sair da Régua,
um vale ribeiro de produção ainda de vinhos de cheiro e que se estende, rumo à
cidade de Lamego, comarca a que pertence, até às águas medicinais de Cambres. É o
Vale Abraão, com suas quintas e lugares de sombra que parecem acentuar a memória
dum trânsito mourisco que de Granada trazia as mercadorias do Oriente e,
porventura, os gostos de pomares de espinho e dos vergéis de puro remanso.
Almansor teve residência em Lamego e escreveu aí a história da campanha com os
seus aliados, os condes moçárabes. Talvez por isso, porque corre um fio de tinta
desde a fronteira duriana até às águas do Tedo e do Távora, os poetas e os letrados
obstinados produzem as suas obras naquele território que, antes do trato da índia,
conheceu verdadeiro esplendor agrícola e comercial.
No século XIII, o rio Paiva servia de limite sul à tenência de Lamego, e lá
vivia, cerca de S. Pedro de Castro-Daire, um físico engenhoso e curador de fleumões
malignos chamado Abraão de Paiva.
Apanhado em maus lençóis com uma dona de Moimenta, que abortou em
condições desastrosas, ele deu-se ao cuidado de descer a ribeira do Balsemão e ir cair
em lugar recatado, como convinha à sua sina ofuscada. O Vale Abraão passou a ter
nome no mapa, ainda que fechado à curiosidade dos topógrafos. Com o Liberalismo,
Lamego não cessou a sua inclinação absolutista, até que o movimento Setembrista
acabou com as suas pretensões no domínio político e eclesiástico; ficou reduzida a
uma cidade estagnada, onde os parques e os monumentos condescendem em recordar
o passado feirante, alegre e próspero.
O que aconteceu ao físico Abraão de Paiva não se pode supor, excepto que
enriqueceu e morreu de febres, deixando um saquitel de peças de ouro e um gabinete
de experiências; não com ratos e porcos da Índia, mas com a famosa massa de vinhos
de Riba Douro. O estudo da Medicina fez-se tradição de família, e em 1910, data da
República, vamos encontrar um doutor Paiva casado com Maria Coelho, do Portelo
de Cambres, que era senhora de bens e que tinha nas fragas de Santos de Deus uns
pardieiros com restos de pedra de armas. As mulheres dos Paivas eram, por atributo
de sangue e linhagem, muito convencidas do seu génio em negócios e vontade de
poder e afirmação. Desde tempos remotos que carregavam o sobrenome de Pai voas.
Maria Coelho teve um neto, pachorrento e dado a letras menores, que ela quis
fazer vinhateiro e produtor de vinhos de feitoria. Não teve muito êxito com o plano, e
Carlos Paiva estudou Medicina no Porto. Era um rapaz sonso, bonitão, de alta
estatura. Casou com uma viúva e ficou ancorado em Vale Abraão, fazendo uma
clínica modestíssima e comendo requeijão e cavacas. Era guloso da mesa; do leito,
não sabia, que a mulher tinha os pés frios e o coração enroupado em flanelas. Os
Paivas gostavam de mulheres maduras, de pele branca e propensão matriarca. Houve
um Araújo de Paiva que casara em Paris com uma judia russa, informadora de
Bismarck. A biografia dele não ia além disto, mas Carlos chamava-lhe, com respeito,
"o meu tio banqueiro".
No que Carlos de Paiva se distinguiu foi em ser monitor de mulheres um
pouco solitárias de maridos vadios e que elas corriam dos braços com o pretexto de
achaques que iam até à histerectomia pura e simples. Ele falava-lhes de livros e
deixava-as crer que eram poetisas duns versos coxos em que ele efectuava uma
ortopedia de rimas óbvias. Um dia Carlos Paiva foi a Lamego por altura das festas
dos Remédios e deu com um homem de bons modos, com a filha de quinze anos, a
comer uma cambulhada de enguias num restaurante da praça. Reparou na menina,
que estava vestida de luto e que tinha tranças. Dos torcidos de cabelo escapavam-se
uns anéis lustrosos e na nuca enrolavam-se mais anéis, que pareciam azuis na luz
fulgurante da tarde. Era tão formosa que Carlos deu em atarantar-se, oferecendo-lhe
um prato de figos que lhe serviam à mesa.
— São pingo-de-mel e frescos, colhidos de manhã, da figueira.
Ema recusou com tanto brio, que o pai intercedeu por Carlos. Quis remediar os
modos da filha e tornou-se bom conversador.
Quando Carlos se apresentou como médico e agricultor, a alma do velho
iluminou-se; contou-lhe as doenças passadas como quem conta a viagem da Nau
Catrineta. Sobre a mulher falou pouco. Era remota a viuvez, mas sentira a falta da
bonita esposa, que era de Loureiro.
— Tenho um tio na Penajóia, em Estremadouro — disse Carlos. O calor fazia-
o arfar; havia uma ventoinha, e os cabelos dele voavam nas fontes. Ema reparou que
ele tinha algumas brancas.
De Estremadouro saíram com um parentesco que os aproximou mais. O velho
deu-lhe o endereço, no Romesal; era a margem direita do Douro, uma quinta
mediana, com jardim sobre a estrada. Paulino Cardeano convidou Carlos e disse que
se estivesse doente o chamava.
- Má sina a dos doutores, que só são benvindos para purga e sangria — disse
Carlos, a rir-se. Ema achou-o parvo; ninguém mais se purgava para aliviar os
humores e, muito menos, lancetava as veias. Mas depois percebeu que ele falava com
arte e varonil graça. Não o viu mais, nem pensou nele nunca. Tinha a imaginação dos
quinze anos, que não cuida do presente senão para o julgar importuno e contrário às
ilusões, que são mais preciosas do que as promessas da vida real.
Carlos Paiva voltou para casa, a mulher estava a lavar os pés, que tinha um
impetigo nos dedos e aplicava-lhes pós amarelos e federorentos. Era carrancuda,
ralhava alto, vestia-se mal. De repente Carlos Paiva deu conta disso tudo e tornou-se
manso e amável com ela. Deu-lhe razão em tudo, ela desconfiou, pôs-se a espiá-lo.
"Viu alguém" — pensou, com uma lucidez de condenado à morte. Mas Carlos não
lhe deu ocasião a mais reparos. O tempo passou e não aconteceu mais nada. Sabe-se
lá quando o coração esfria ou ganha carvão para manter o calor! Carlos de Paiva viu-
se um dia a sair do seu carrinho sujo e que cheirava a álcool canforado, a perguntar
pelo Romesal a dois moços que desciam pela estrada.
— Depois da curva, mas vá com cuidado.
Riram-se alto e foram pelo caminho abaixo, rasteirando-se um ao outro. Carlos
pensou que eram amadores de futebol, havia um campo ao lado, com redes
desmanteladas. Avistava-se a nobre vastidão das montanhas, o cálice do rio ao fundo,
a mata sombria e pesarosa sombreando a estrada. Era um lugar de delícias mas com
algo de tenebroso, rompendo dum passado de solidão inveterada. O século XVIII
povoara-o de vinhedos, havia ainda o solar e o casão de quinta, com a capela e a
escada de alpendre e colunata. Mas o mais eram pequenas casas de telhados caiados,
com neves aparecendo sobre o roçagar verde dos laranjais. O proprietário de módicos
rendimentos, às vezes saído da faixa militar, ou o negociante de panos, ou o clérigo
com filhos e cães de caça; ou o consignatário de companhias inglesas, era o que mais
havia.
Sempre endividado, sempre com hipotecas a vencer, sempre lutando com o
aumento dos salários e dos adubos, sempre abatido pelo preço dos vinhos, o lavrador
do Douro era um colosso de persistência, de afinação com o destino, de secura
empresarial. Ainda tinha um vislumbre poético para plantar um cipreste ao canto do
jardim, que via crescer, apontando-lhe o espaço como uma bala negra e moldada ao
sabor dos séculos. Esperava pacientemente um ano bom para casar as filhas e refazer
o telhado. Era dado a extravagâncias, comprava um pónei para as crianças, e uma
peliça para ele próprio. Gastava, quando tinha; quando não tinha, era arrogante e
frequentava as mulheres com uma sensualidade catastrófica. Carlos sentiu no ar o
cheiro da queimada, ardiam nas vinhas as vides da poda que dantes serviam de
combustível nas lareiras. Agora era caro transportá-las e ardiam mal, carregadas de
água. Um fumo branco e enrolado agachava-se como uma oferta mal aceita por
Jeová.
Não soube que dizer quando Paulino Cardeano o mandou subir. Estava
enroupado numa velha samarra, e não havia aquecimento na sala.
— Que surpresa! Mas que surpresa! E eu que tenho andado esquisito. Tenho
umas ouras e formigueiro nas mãos.
Carlos ofereceu-se para o medicar. Mas o que o trazia, disse, era a procura dum
vinho fino para oferecer; uma coisa garantida, de adega particular.
— Não tenho, mas pode-se arranjar. Mas é caro, doutor. É bebida de reis; e
mesmo os reis bebem zurrapa e julgam que são bem servidos. Eu sou conhecedor e
posso jurar.
Ema entrou na sala. Estava mais alta, a delgada cintura balançava dentro do
grande pull-over de pescador. E os cabelos pretos caíam sobre a grossa lã como um
rio de tinta entornada. Ela não deu mostras de o reconhecer.
— É o doutor Carlos. Lembras-te, em Lamego?
— Não me lembro — cortou Ema, com aquela dignidade infantil que cria
distâncias e se previne contra os estranhos. Mas recordava-se; achara-o bonito, com
dentes certos e brancos, uns dentes de caixeiro.
Ela pensava que os caixeiros tinham que sorrir muito e deviam ter dentes
assim. O Beto das Escadas, que lhe vendia as róbias de Verão, tinha dentes assim.
Ema reconhecia as boas famílias pelos dentes acavalados e a deformação congénita,
a cor de velho marfim, as serrilhas, o crescimento dos caninos, o atrofiado do siso;
quando se começaram a acertar os dentes por um padrão regular não foi mais
possível descobrir a nascença, os vícios, as castas, os cruzamentos, as dietas e até os
nomes de dinastias inteiras. Ela perguntou para si própria quem era aquele rapaz
corpulento demais para a idade, com um bigode chorudo e que a olhava
embasbacado.
— Em Lamego? — Ema sorriu tão depressa e tão depressa ficou séria e um
pouco desdenhosa, que Carlos Paiva se sentiu escorraçado. Levantou-se e despediu-
se.
— É visita de médico e é mesmo. Ema, traz um cálice e umas bolachas.
— Não há bolachas nenhumas.
— Não se incomode — disse Carlos, ferido.
Cardeano foi acompanhá-lo, fê-lo sair pelo portão principal, que não se abria
quase nunca. Uma varanda envidraçada ocupava toda a frontaria sobre as escadas de
pedra, obra mais recente e com mostras de obedecer a uma alta financeira. Um cão
pardo, de patas curtas, veio ladrar com uma ferocidade pronta a tornar-se em pânico.
— Cala-te, Jordão! És parvo, ou quê? — disse Cardeano, desculpando-se. Mas
Carlos ficou ainda mais sentido, jurou não voltar mais. Atirou-se para dentro do carro
com uma amargura absurda; tinha lágrimas nos olhos. Não olhou para trás. Se o
tivesse feito, veria Ema encostada à grade do jardim, acima da estrada; ela compunha
o cabelo com a mão, e aquilo podia parecer um aceno. "Quem se julga ela?" —
pensou. Atacou-o uma tristeza tão funda que perdeu o apetite, e a mulher, mais uma
vez, percebeu que estava enfeitiçado, em guerra com o mundo e com ele próprio.
O velho Cardeano foi para dentro pensativo. Ali estava um genro que lhe
convinha, era tempo de colocar a filha, ia fazer dezassete anos, a tia não a podia
segurar se à pequena lhe desse para variar. E, depois, uma virgem velha, como a irmã
Augusta, não lhe punha embargos aos prazeres; enquanto que com Ema era diferente;
queria-a criada no bom exemplo e confiada nos homens, que é sempre garantia de
paz doméstica.
Ema cresceu em condições precárias para o sentimento e favoráveis aos
segredos da vida, que em tudo se identificam com o desejo e os seus imperativos. A
solidão desperta cedo o coração humano e distancia as pessoas da unidade em que as
coisas acontecem. Aos quinze anos Ema já tinha amado, e o amor para ela era algo de
passivo e tão distante como uma ideia que já não surpreende porque é uma ideia
inatingível. Amara por efeito dum olhar que mal se aflora e tudo põe em causa: a
liberdade e a vontade de expiação. Era uma menina dócil, no entender das mestras e
das criadas, mas era sobretudo distraída de tudo o que não fosse uma fuga, um plano
de fuga, sempre adiado e sempre prestes a resolver-se. O pai achava-a um pouco
assustadora. Percebia que a estrutura da família despertava nela um movimento de
repulsa, e não a obrigava aos deveres domésticos nem a nada muito concretamente.
Cresceu nessa perigosa eventualidade que é a liberdade demasiada. Faltou-lhe a mãe,
para que pudesse redigir o protesto a um inimigo; a mãe é a primeira face do
antagónico em que pousa o imperativo do amor. Só tinha dela recordações em que
não punha confiança; eram trazidas por objectos pessoais que nunca vira usados pela
mãe. Uma mantilha, um terço, uma volta de ouro, ganham significado conforme a
história que os qualifica. Deixam de ser objectos para ser parte dum todo
indissolúvel, o espírito duma grei que pode não ter maior dimensão do que um
quadro de família.
Ema ficara órfã aos seis anos e parecia-lhe muito mais tempo. A mãe sempre
fora doente, recolhida, quase invisível no quarto. A única coisa de que se lembrava
era dum cheiro adocicado, de leite, escorregando-lhe nos ouvidos. Tivera uma vez
dores de ouvidos e deitaram-lhe leite materno para suavizar-lhe o sofrimento.
Lembrava-se desse lento gotejar e do seio brando a que se encostava. O resto era um
secreto e alucinado parentesco com o ventre donde viera, um quarto onde ressoavam
sons, palavras; onde tudo se movia e possuía uma elasticidade confortável. Talvez as
paredes do útero, raiadas de pregas que cediam ao seu peso, à sua nutrição, ao
crescimento das mãos e dos pés. Do resto, não se lembrava: do rosto da mãe, da voz
dela. Quando estava na igreja e os coros elevavam os seus cânticos, tentava distinguir
neles a voz diurna da mãe. Não conseguia. Perdia-se, como se farejasse um rasto
sempre interrompido. O suor borbulhava nas asas do nariz, pensavam que ela tinha
calor ou que se sentia mal. O pai proibiu-lhe assistir a cerimónias muito longas,
missas de festa e sermões. Vivia muito em casa e ganhou um gosto expansivo e um
pouco selvagem pelo reino doméstico, onde ela dominava, no coro das criadas que a
adulavam e que lhe rendiam toda a espécie de agrados. De resto, não faltava entre
elas um aconchego erótico, feito de segredos, de punições, de confidências, de
quezílias partilhadas, de afeições preteridas e ciúmes desesperados. A casa duma só
ama, e uma ama jovem e muito formosa, é um ves-peiro de amores e seus contrários,
que são ainda amores. Quando Ema adoeceu gravemente, tinha cinco anos, não
faltaram promessas, pactos com os santos e santas, choros de mulheres que se
aproveitam da tragédia comum para exaurir a pena que não sabem qualificar: pena de
pobreza e de preguiça em remediá-la; pequeno vestígio de harém mal terminado na
lembrança moira ou goda. Ema restabeleceu-se mas ficou lesionada da perna
esquerda. Era um defeito enorme para tantos encantos que possuía, e, se ela se
conformou, o pai tomou isso como ofensa pessoal. Dizia sempre que era pena ser
aleijada, e dizia-o como se a punisse desse demérito; como se uma mercadoria lhe
saísse mal aviada.
Enquanto durou a doença, veio tratá-la uma tia paterna que vivia no convento;
tomara o véu de noviça mas não fizera os votos. Era acanhada de espírito, feia e
bondosa. Tanto se acomodou a Ema e à casa, mais do que lhes ganhou afeição, que
transferiu o enxoval e o livro de Kempis para o quartinho que lhe destinou o irmão.
O oratório, enorme móvel do século XVII, deslumbrava-a. Para ele viveu, como se
desposasse aquele armário verde, com dourados; era como se desposasse uma farda,
cheia de bordados e condecorações. Tia Augusta comungava todos os dias e dizia a
Ema que tinha no céu uma cadeira de braços.
— O Senhor sabe que eu não posso estar muito tempo sentada sem pousar os
cotovelos — dizia, sincera.
As criadas riam-se dela; mas riam-se só durante duas semanas, porque se
habituavam às condições da casa e a rotina proibia a ironia. Por fim, os dislates de
dona Augusta pareciam razões tão normais como as outras. Ema não gostava que
mofassem da tia, como não gostava que quebrassem as xícaras ou deitassem uma
nódoa nos aventais. O espaço do lar era um santuário que ela queria bem tratado; o
respeito, e às vezes a veneração, pertenciam ao ritual doméstico. E também uma
memória teatral e inumana, a memória da mãe defunta estendida diante do oratório,
que funcionava como um cenário. Ema via-a pela chapa de latão do confessionário,
perfurado em cruz e que era um simples ralo entre a sala de jantar e a sala de entrada.
Já não havia capelão em casa, e o confessionário não era usado. Daí Ema vira a mãe
morta. Estava amortalhada com o vestido de noiva, que lhe ficava apertado, apesar de
ela parecer tão sumida debaixo das pregas de renda. Ema disse para si que gostava de
estar ali deitada, tendo à cabeceira o oratório aberto de par em par e, dentro, Santa
Brígida, advogada das cozinheiras, ao que se dizia, porque carregava um grosso livro
supostamente de receitas culinárias.
— Porque não pode ser outra coisa? Por exemplo, um livro de árias ou de
sermões?
Tia Augusta disse que as mulheres não liam livros. Não era coisa que lhes
interessasse, e isto não as diminuía em nada. Eram muito poderosas mesmo sem ler o
Amadis de Gaula e Rolando Furioso que, no entanto, amavam senhoras sem letras e
sem latim nenhum.
Ninguém sabia se Ema era inteligente ou se era simplesmente adequada ao seu
meio. Tinha alguns estudos e sabia um pouco de piano. Num colégio de Lamego
aprendera alguma coisa de etiqueta e de redacção. Sabia comer com elegância, mas
depressa retomou as grosseiras maneiras das servas e das jornaleiras que limpavam a
boca com as costas da mão e fincavam na mesa o cotovelo. Escrevia-lhes, no entanto,
as cartas de namoro das mais analfabetas, pondo-lhes sentimentos finos, dizendo
"esta que te ama", o que soava estranho e parecia frase de novela. Beijavam-lhe os
pésinhos brancos quando os lavavam e admiravam-lhe os cabelos negros, cacheados.
E os olhos, aqueles olhos cor de ágata, com estrias pretas, debruados dum friso
escuro que parecia tinta; tinham ao canto um ponto róseo como nas bonecas de
porcelana.
Tia Augusta receava por ela, queria que fosse freira. Imaginava-a com touca e
rosário à cinta; um rosário grande, cujo crucifixo de cobre brilhava, saltando na
cadência do andar contra a perna, em que as saias rugiam levemente.
— Freira, a nossa menina? — Marina punha-se furiosa. Era pequena, bonita,
de pestanas duras como varetas. Tinha um génio bravo, como Medeia, e os rapazes
que a pretendiam recuavam, repensavam o caso. Branca era mais dócil, gostava de
homens, sem submissão, apenas por vício. E Alice, que tinha como plano casar acima
dos seus meios, mostrava-se distraída, fazendo deslizar o fio da faca no molho de
couve apertada no punho. Era o "caldo verde", segado como fios de linha, e que
enchia a bacia de folha, tocado às vezes duma gota de sangue espirrado do dedo.
Todas amavam Ema e lhe traziam novidades. A casa fervia de ditos, intrigas,
assuntos de fora, coisas maliciosas e sentidas, de morte, de sexo, de paixões várias. A
casa era um ninho de abelhas, agitada, enrolada no próprio zumbido, cativeiro de
sonhos e de avisos; promíscua, doce, pachorrenta, zelosa. O gado pequeno grunhia e
piava, os tanques tinham sempre uma baba de roupa que foi posta em primeiro sabão.
A lavadeira era uma espécie de Core que velava sobre os sinais de vida e de morte.
Procedia à lavagem das toalhas enegrecidas do lastro gordurento da cozinha ou
manchadas de vinho espesso e roxo. Ela sabia a casta da uva só de ver a sua nódoa;
sabia das regras das mulheres e da sua vida genital, só de tocar os panos
sanguinolentos. Sangue fresco e vermelho, se era o de virgens; escuro e corrompido,
se de mulheres casadas, já perto da idade crepuscular do sexo. A lavadeira era muda,
duma família de mudos e de idiotas. Mas ela, Ritinha, singularmente curiosa e alegre
de perceber o mundo. Parecia um sarmento de videira, seca e cinzenta, com aqueles
cabelos que tinham sido sempre como uma grossa teia de aranha, presos na nuca com
um travessão com brilhantes e dois rubis de cada lado. Eram bonitos enfeites de feira
que já se não usavam. Ainda se vendiam nos pequenos estancos, de mistura com
"punaises" e ganchos invisíveis, em pacotinhos. Ema sempre encomendava da
Régua, a pequena Babilónia do distrito, as suas coisas de costura e toucador. Havia
sempre uma mulher em recados, de cá para lá na estrada, aproveitando às vezes os
carros de praça em retorno, muito íntima com os motoristas, gente vivida do tempo
do volfrâmio e que conhecia a lenda da comarca inteira.
Ema não gostava de sair. Até aos quinze anos, excepto para comungar, podia
dizer-se que não pôs o pé fora de casa. E mesmo no dia da comunhão solene, tão bem
organizado por tia Augusta, recebeu o Senhor no oratório, e o fotógrafo veio retratá-
la entre vasos de aspidistras, na varanda que era ao mesmo tempo estufa. Saiu apenas
para se mostrar às senhoras Mellos, gente distinta, avaliadora, culta, que passava o
Inverno em Cascais.
Eram duas irmãs, uma viúva; tinham casa no Viso, que era pouco distante das
termas. Ema entrou na sala, com o seu andar ligeiramente cambaleado, e ficou
assente que ela era uma mulher assustadora. A beleza dela era tão manifesta que as
senhoras Mellos, da directa linhagem dos Mellos, de Ataíde, do célebre marquês, se
endireitaram nas cadeiras como se recebessem uma visita ameaçadora.
Ema percebeu o efeito que causava com o vestido comprido, armado e cheio
de pregas, à religiosa. Nesse momento, houve como que um crepitar dum fogo
desconhecido, no fundo do seu inocente coração. As palmas das mãos foram
percorridas por um formigueiro, como sempre que se emocionava. Medo, emoção
fria e desprezo, era o que sentia. Tudo isso ainda mal destacado duma candura
infantil e generosa que, de resto, nunca perdeu completamente.
Voltou para casa e o pai deu-lhe a primeira jóia valiosa, uma medalha de ouro e
um cordão. A medalha tinha turquesas, que era pedra destinada às raparigas solteiras.
Em tudo havia uma regra, produzida pela necessidade; uma ordem que a experiência
tinha posto à prova e depois adoptado com uma determinação quase cruel. Por
exemplo: as filhas da casa não tinham o mesmo tratamento dos rapazes; eram criadas
à parte, debaixo duma severidade paternal que se destinava a moderar nelas as
fantasias eróticas e as paixões que, se mal disciplinadas, lhes seriam fatais. Embora
as coisas tivessem mudado, o lavrador Paulino Cardeano conservava restos dessa
educação austera, sem risos e sem intimidades. Rezava à noite o terço, passeando no
corredor e não dando mostras de fazer qualquer oração; abandonara os costumes
antigos que eram o de reunir a família e os criados, à luz dos candeeiros de bocal, e
rezar, com uma piedade nobre e vinculada aos acontecimentos do dia, aos trabalhos
da vinha, aos apetites do corpo. Ele era um homem bom mas, às vezes, atordoado
com as mulheres. Ema não lhe conhecera nunca amiga ou "amantilhona", como se
dizia. Era extremamente cauto, para surpresa dos vizinhos, informados de todas as
histórias escabrosas das redondezas.
Mas até os padres eram menos facciosos, gracejavam sobre o amor, o que era
indício de não estarem submetidos nem julgados. O Porto, como cidade grande,
consumia os pecados de toda a província como se consumisse fruta fresca. Já não
havia a legenda inflamada do eros burguês, e as mulheres podiam francamente
receber homens em casa sem que isso as comprometesse e as infamasse. Tinham
tantos amantes como queriam e havia sempre maneira de os esquecer, pessoal e
colectivamente. Na realidade, as coisas sempre foram moderadamente conduzidas
pelo espírito clerical, que não era rigoroso mas nassa-culpas. Grande parte da doçura
dos costumes, em Portugal, é devida ao cura de família, que assistia a todo o
movimento surdo das paixões humanas, encaixando-as na teoria do perdão e nos
quadros da sobrevivência, que a moral frequenta com pés de lã. Tinham o cuidado de
não tomar a imaginação pelo coração e muito menos pelos interesses públicos e
privados.
Não se pode dizer que houvesse uma província doentia, reprimida, em que a
hipocrisia fizesse ninho e a ave da lei ali chocasse. Tudo eram arranjos, medidas
cautelares e sentimentos improvisados. Não havia com que fazer uma tragédia; ela
consumia-se à luz da razão popular, que, se não era douta nem escrita, era a razão do
possível. Não havia outra moral senão a agilidade da alma. Mas, com Ema, as coisas
começaram a decompor-se. Ela significava a extremidade dalguma coisa, a sua
beleza constituía uma exorbitância e, como tal, um perigo.
O que sentiram as senhoras Mellos quando a viram vestida como para casar, de
branco e com um sorriso indefinível, ligeiramente cruel, como se fosse um animal de
presa farejando a sua dieta de sangue quente, não foi nada agradável. A educação
delas, própria para cabeças duras e nervos a condizer, informava-as de que estavam
diante dum caso único; uma rapariga capaz de livre decisão e que nem sequer tinha
ideia do que era a submissão.
Podia, era seguro, levar até ao crime a sua rebelião, só que não tinha qualquer
pensamento nesse sentido, tão tranquila estava de poder fazer o que queria.
— Há qualquer coisa nela que repugna — disse a irmã mais velha, cujo
vocabulário agressivo era inexistente. Quando se dava ao trabalho de censurar
alguém, limitava-se a chamar-lhe "uma pessoa de critério". Chamara assim a sogra
odiosa, a quem devia vexames imperdoáveis e que a levara à beira da loucura. —
Tudo nela tem um ar sinistro, a começar pela beleza.
— Acha-a assim bonita? — disse a irmã mais nova, tocada no pressentimento
de animal doméstico que vê o seu território invadido.
— Não sei como explicar. A beleza dela confunde-se com uma espécie de
génio.
Em geral, a irmã mais velha, cujo nome não adianta lembrar, só chegava a um
grau de inteligência superior quando se tratava de defender a sua espécie; ou seja, a
de pessoa convencida dos seus direitos da idade adulta, a sua cultura, em suma. A
cultura não é mais do que isto: um conjunto de prerrogativas.
Quanto a Ema, as irmãs Mellos sabiam que ela não possuía uma cultura. Era
completamente desafectada de tudo, inclusive da beleza que tinha e do orgulho ou
ambição que ela podia desencadear. Limitava-se, com quinze anos feitos, a inclinar-
se da varanda do jardim e interrogar toda a gente que passava. Usava um tom
desprendido, como se fosse uma princesa que via mover-se o mundo a seus pés, mas
com o qual não tinha muito em comum. Não por vaidade, mas por pura desinibição e
desfrute do seu tempo. Respondiam-lhe com a altivez amigável que se estabelece
entre gente que dispensa a resistência de classes. Eram seus inimigos por princípio e,
ao mesmo tempo, reciprocamente reconheciam-se como motivo para agir. O que uma
pessoa vê na outra não é o seu semelhante mas o seu dissemelhante, o que lhe
proporciona a espontaneidade dos seus actos.
O facto de Ema frequentar muito a varanda provocava bastantes precalços. Ao
desfazer a curva da estrada, era forçoso levantar os olhos para a figura ali debruçada;
e não havia motorista que ficasse indiferente. O choque da beleza ofuscava-o, isto
sem querer exagerar. Perdiam por momentos o controlo e eram rudemente
projectados contra a parede; outras vezes chocavam de frente com o carro que subia
em sentido contrário e que não tinha maneira de se desviar, posto que o muro da
propriedade de Ema era uma espécie de baluarte com quatro metros de altura.
Também acontecia atropelarem gatos e cães, ou seguirem em ziguezague até à recta
seguinte, causando o pânico sobretudo entre os frequentadores da taberna do
Alexandre da estrada, que vinha à porta, com a camisola manchada de vinho e o ar
fleumático dum Poirot de tasca e ramada. As coisas foram piorando e chegaram aos
ouvidos das autoridades. Uma manhã, pelas onze horas e pico, o Paulino Cardeano
teve a visita do presidente da Câmara em pessoa. Recebeu-o no salão de baixo, com
móveis de jacarandá e um piano, verdadeiro monumento de respeitabilidade e de
sensatez algo vertiginosa que há nos salões de província, com dois espelhos dourados
e cinzeiros em forma de folha lanceolada, com uma ninfa das águas como remate.
Como é que uma tal deidade celebra as exéquias dum cigarro ou dum havano, não é
fácil de explicar. Mas ela láestá, vestida de verde, com cabelos soltos e muito
parecida às senhoras de Klimt. O presidente da Câmara, um homem doentio e de
grandes olhos esbraseados, por causa da fadiga e do nervosismo constante, entrou
imediatamente no assunto.
— A sua filha é um perigo para o trânsito nesta estrada.
— O quê? — disse Cardeano, estupefacto.
— Desculpe-me pôr as coisas assim, mas é um facto.
O Cardeano pensou que os presidentes da Câmara são sempre desprovidos de
substância interior, de tutano, de calor humano. Conhecera um que se chamava
Homero e nada mais fazia senão prometer o saneamento nos lugarejos mais atrasados
e acabar com os pobres. Era acometido por uma estranha fixação, a de agradar ao
povo. Era nele como uma inferioridade, como se uma melodia interior o prevenisse
dum fim inesperado.
— Não sei o que a minha filha. — ia a começar a dizer o Cardeano. Mas o
presidente interrompeu-o.
— Ela não tem culpa, é evidente. Mas aquela varanda é muito capaz de não
estar bem colocada. Seria bom mudá-la de sítio.
— Mudar a varanda? — disse Cardeano. A sua pequena cabeça calva cobriu-se
dum tom arroxeado que alarmou o presidente.
— Não digo isso. Não sei se me faço entender.
— Não percebo absolutamente nada.
Quando Cardeano usava o advérbio "absolutamente", fazia-o como os
advogados, para ganhar tempo. Estava perto de entrar na questão que tinha a ver com
Ema à varanda. Seria ela causa de alguma cena imprópria? Se assim fosse, ele teria
sido informado, de tal modo a casa era percorrida por um zumbido de novidades e de
notícias de que nada escapava. Mas Ema, acima de tudo, era uma criança e
comportava-se como tal. Falava tão alto da varanda que se podia ouvir até à curva,
entre Fontelas de Cima e Fontelas de Baixo. Não tinha segredos nem sabia nada das
armadilhas da vida. À cautela, Cardeano pediu explicações mais detalhadas.
— Não é nada de mal — disse o presidente, tomando o seu ar afável das
sessões da vereação. Cruzou a perna e pediu licença para fumar. A ninfa verde, que
podia autorizá-lo ou não, não foi consultada. — O certo é que esta curva já está a ser
encarada como a curva da morte. Todos se despistam aqui, e o motivo é essa maldita
varanda.
Não aludiu a Ema, mas Cardeano compreendeu, de repente, onde estava o
carácter inteligível da questão. Ema era a causadora. Ao que parecia, o povo tinha
apresentado queixa, mães e pais e esposas também, quanto à presença de Ema na
varanda. Ela causava como que uma rápida resolução de jogar o carro contra o muro,
gerando um procedimento irreversível. Os jovens motociclistas também eram
atingidos e ficavam em estado deplorável.
— Se ao menos não usassem capacete! Mas é de lei, e não morrem, na maioria
dos casos. Ficam incapacitados para o trabalho e são um encargo para a família
durante toda a vida.
— Mas será que as coisas são mesmo assim? — Cardeano estava com muitas
dúvidas. Aquele jardim à beira da estrada podia bem ter entrado nos cálculos do
presidente e talvez ele esperasse chegar a um acordo sobre isso. Ouvira dizer que ele
procurava terreno para fazer uma casa, e que melhor sítio do que aquele, arejado,
descoberto e voltado ao Sul? Cardeano cada vez achava razões maiores para
desconfiar. Mas prometeu tomar medidas.
— Ou recua a varanda ou faça o que entender. No sentido de afastar a sua filha
dali.
— Não vou pôr a minha filha numa torre. Não é nenhuma princesa encantada
— disse Cardeano. Não se ria, nem nada. Estava simplesmente com cara de caso.
Perguntou a Marina o que se passava, e ela não foi uma testemunha muito
prestável. Mas Alice teve uma explicação, esperta como era e, sobretudo, pouco
disposta a garantir a beleza da ama. Preferiu dizer que os janelões de cima deviam
encandear os motoristas, porque o sol abrasava os vidros e eles despediam faíscas.
Era a célebre varanda-estufa, construída nos tempos áureos, quando Cardeano se
casara. Estava cheia de plantas, begónias e avencas e cóleos vermelhos. No Verão,
secava-se lá a marmelada e os figos pingo-de-mel. Uma gota de âmbar ficava
cristalizada na sua boca rebentada e que deixava ver as sementes rosadas. Dali se
acenava ao comboio das quatro que levava para o Porto os parentes e as visitas: o Dr.
Carmezim, professor de surdos-mudos, e a esposa Chelinha, feia como um
manipanço mas tão boa que até dava pena. Eram os padrinhos de Ema e vinham
todos os anos passar o Natal, trazendo uma caixa de passas de Alicante. Gente séria e
ponderada. O doutor Carmezim era ateu, mas muito conservador. Cínico, com falas
de livre-pensador, bonito homem, ria-se superiormente da Igreja e dos padres.
Quanto a Ema, não se davam bem, apenas se toleravam. A beleza dela, cada vez mais
inegável, produzia no professor Carmezim um despeito e uma arrelia difícil de
explicar.
— Ele desadora-a — disse Alice, que era muito despachada em burlas e em
acusações. O jovem seminarista Nelson, de mãe beata e fina como um coral, atrevia-
se com pensamentos mais profundos. Dizia ele:
— Não me admira. A beleza é aquilo que mais abate o nosso fingimento.
Amava Ema como se fosse um favor que lhe devia. Não julgava acabar os
estudos e dizer missa, embora a mãe o exortasse nesse sentido; era um belo rapaz,
romântico e sem escrúpulos, pronto a vender-se para sossego do corpo e da alma.
Rezar muito parecia-lhe baixeza, se era por humilhação e falta de recursos. Durante
anos viu Ema como uma estátua e servia-a com deleite e não com imitação de
obediência. Era realmente o seu escudeiro e até o seu trovador. Escrevia versos para
ela e pensava casar rico um dia para que Ema não se envergonhasse dele. Teria
propriedades muradas e uma grande casa com sofás floridos e persianas. Não queria
emigrar, mas travar relações com alguma herdeira a banhos na Póvoa em quem
pousaria os olhos dourava como se padecesse desconsolos gravíssimos. A leitura dos
pensadores cristãos dera-lhe um vocabulário irresistível.
— Qual maior amor do que o do esposo para quem a formusura é obra do
muito amor? — dizia Nelson. Alto e delicado, com uma tristeza varonil, fazia grande
impressão nas mulheres. Branca engravidou dele e depois abortou, tudo com muito
sigilo e escusa da casa inteira. O doutor Paiva veio vê-la, mostrou-se reservado e não
a denunciou. Foi um pretexto para voltar a ver Ema. Entretanto ficara viúvo e usava
uma braçadeira preta, o que lhe dava um ar de confraria; Ema achou-o abatido e
descobriu nela própria um apetite pelas coisas tristes, como se fossem o galardão dos
seus sacrifícios. Os seus sacrifícios eram aborrecer a vida que levava, as revistinhas
baratas com receitas de cordeiro ensopado e moldes para saias.
Já não lhe apetecia frequentar a varanda do jardim nem mostrar-se em toda a
sua arrebatadora beleza. Para que queria a beleza se não podia ser admirada senão
por caixeiros e trabalhadores de pau e pica? Quando ela passeava na quinta, indo
sentar-se num banco de xisto donde se descobria a radiosa face do rio e as vinhas
baixas dum verde extremoso e protector, os homens paravam de sulfatar, tinham
ditos vulgares; um brutal desejo voava como mariposas negras. Ema tomava aquilo
como injúria, como uma forma de posse. "Hão-de pagá-las" — pensava. Não sabia
como enfrentar esse grupo tão acirrado, capaz de a desnudar com um furor cego e
fútil. Mas não seria imaginação e eles estavam inocentes e só ela era a causadora
duma vontade aterradora, fechada a qualquer generosidade? O desejo deles parecia-
lhe uma coisa lúcida e criminosa, a única coisa por que se esperava tão
pacientemente a morte. Começava a deter-se sobre esse rodeio que os homens fazem
para chegar à injustiça, fonte do sumo prazer. Entendia já a hesitação do professor
Carmezim em aclamá-la como perfeita afilhada e beleza perfeita. Insultando o que
havia de belo em Ema, ignorando-o, ele produzia nela um temor, o de não ser capaz
de agradar, o de ter que duvidar dos seus dons. Aqueles homens, furiosos de desejo e
de culpa, porque insultavam nela a inocência e a graça, queriam apenas gozar com a
injustiça praticada. Alguma coisa em Ema era força impressionante e neles fraqueza
absorta; a batalha tinha que se dar e esvaziar o instinto feroz lançado em combate
singular. A fraqueza imitava a força, bastava um golpe hábil e Ema cairia. O golpe
não tinha leis, tomaria as mais absurdas formas. Já aquela petição para a proibir de
assomar à varanda, com a vinda do presidente da Câmara e a sua secretária (tudo
absolutamente viável e selvagem), era um golpe parecido a um crime. Ema percebeu
que só podia fazer uma coisa: ceder, dissimular, dar-se por morta.
Mas não haveria tréguas. O próprio pai a considerava sujeita a um mandado de
prisão; tinha-a à sua mercê, prolongava o momento de manifestar o seu poder sobre
ela.
Era um carcereiro afectuoso, mantinha-a em perpétuo conhecimento das suas
regras de cativeiro e espertava nela o apetite da liberdade com pequenos efeitos
paternais, a licença para sair, gastar dinheiro, vestir-se bem. Casar-se, sobretudo isso.
Ela cravava os olhos no rio, que se ampliava na bacia da Régua, ainda seguindo um
curso natural e banhando as vinhas de Vale Abraão, onde se percebia um eixo de
prosperidade e de luxo. Ema ia buscar o velho binóculo para decifrar o que acontecia
nessa lonjura lancetada de sol. Percebia rapazes que se banhavam e a copada massa
do parque da Caverneira, meio lendária, aberto ao público aos domingos. A varanda
de madeira da casa do médico Paiva distinguia-se mal na subida que ia dar à
grandiosa entrada dos Lumiares, cuja moradia escurialesca causava um pouco de
intranquilidade. Ema pensava que era habitada por gente detestável e snobe, mas cujo
mérito estava nessa mesma evidência de pri-vatividade irascível.
O que Ema descortinava com o binóculo, verdadeiro caso de progresso no
Romesal e que a mãe trouxera com o enxoval de noiva, era completamente
exorbitante. Mais do que os primeiros folhetins da televisão ou do que os segredos de
boca a orelha que se contavam.
O binóculo, forrado de pele castanha e com poderosas lentes Zeiss,
desempenhava uma função quase telepática. Ema tinha a impressão de que, quando
assentava a mira num vulto à entrada da Régua e reconhecia nele Branca ou Marina,
elas apressavam o passo, sentindo-se observadas. E que os banhistas, defronte da
Caverneira, ficavam de repente enervados e tratavam de se enrolar nas toalhas. Com
o binóculo, mais do que aparentando a Terra com a Lua, Ema ficava íntima do espaço
varrido pelo olhar; minuciosamente devassado, com uma lentidão arcaica, como se
tratasse de seguir dinossauros ao longo do areal de Vale Abraão.
Porque era sobretudo Vale Abraão que ela desencantava da sua solidão em que
pairava algo de antiquíssimo e perdido da memória dos homens.
Algo de cruel, aliado ao banditismo pós-liberal e às incursões dos comuneros
foragidos de Toledo. E, para lá da linha da água, um canto esbranquiçado da casa que
lhe constava ser a de Carlos Paiva, com uma balaustrada de varanda de madeira que
o tempo estremecera, causando-lhe lesões incuráveis. "É lá que ele vive" — pensava
Ema. Chamava-se Ema, como a mãe. E, ao olhar para o retrato da defunta, com
cabelos soltos até à cintura, parecia-lhe ter que contribuir para algo que ela deixara
incompleto — uma vida de prazer, em que o coração faustoso e nobre pudesse ter o
seu refrigério. A toda a hora, com escândalo de tia Augusta, o binóculo era assestado
na paisagem. Não ficava uma vinha por reconhecer, uma figura por adivinhar, um
cão até por assinalar. Os perdigueiros, os guardiões da Serra, de pêlo fulvo, os
fraldiqueiros, os lazarentos, os rafeiros, como Jordão, que tinha o seu carácter, no
entanto, entre perverso e educado. E os filhos do feitor Marcolino, que eram oito, de
duas mães, e a quem ele dera nomes iguais: o Cândido e o Candidinho, ambos
atrasados e com algo de espiritual e ausente que lhes tornava a miséria prodígio
imerecido.
"É lá que ele vive" — pensava Ema, malucando nesse desconhecido que se lhe
tornava próximo e desejável pela fantasia de que o rodeava. Mas não pensava em
casamento. No Natal, o padrinho, que veio consoar, com a madrinha, disse:
— Ema não tem namorado? — E deitou-lhe um olhar que a enxovalhava, que
lhe rompia as entranhas como uma arma branca.
Ema pensou, pela primeira vez, que o casamento estava a preparar-se como
uma nova condenação, como uma injustiça mais elaborada. Carmezim deu-lhe a
notícia de que precisava de tomar as águas. Tinha o fígado avariado, era o termo que
usava, como se se referisse a uma máquina, um motor que, de tempos a tempos,
precisasse de reparação. Mas o que pretendia, no absoluto da sua vontade, odiosa
apesar de afectar complacência e grandeza de alma (outro dos seus termos favoritos),
era despertar na afilhada a perturbação sexual que iria resolver-se no casamento.
A juventude, minada assim na sua substância equivalente à eternidade, teria
que receber o golpe que não cicatriza mais; seria corrompida pelo desejo revelado; e
a aventura humana começaria para Ema com todos os seus males do século, a
ansiedade e o tema da senilidade. Convidou-a para os acompanhar às termas.
Ema preparou-se para veranear, fez alguns vestidos leves e vaporosos, ficando
com o ar algo postiço de postal ilustrado. Aqueles postais em folhetim que enchiam
caixas de chapéus e que a mãe recebia de Lausane, e de Paris, quando lá vivia por
temporadas um irmão nefelibata. A mãe de Ema era a quarta filha duma dessas casas,
primeiro abastadas e depois decadentes, em que se criava uma geração de criaturas
aluadas, em quem as paixões não faziam efeito algum e pareciam inúteis sob o ponto
de vista biológico. Eram de tal maneira exangues e apáticas, que não era possível
combiná-las com a realidade. Quanto a Ema, ela herdara dessa gente um
pressentimento de que a vida era outra coisa e que aquela que vivia não passava dum
sistema de agressões e defesas, como um jogo que só a morte podia resolver.
Ficou um pouco intimidada com o Palácio das termas, feito para receber o rei
nos tempos das suas caçadas. Era um Palácio como nos contos de fadas, iluminado,
no meio dum parque que parecia ampará-lo com a sua elevada, frondosa
personalidade. Pela manhã, estando as alamedas desertas, Ema encontrava nesse
parque uma sedução perniciosa: como se fosse seguida por alguém que, de repente,
se ia deixar ver, misto de vassalo e soberano, um amante ideal, em suma.
A permanente presença dum casal de noivos, que chegavam à sala de jantar de
mãos dadas, que trocavam a comida dos pratos, que se mostravam galantemente
apaixonados, produzia em Ema um êxtase até aí desconhecido. Até aí, a casa era o
seu mundo, os tesouros da casa de que era a herdeira bastavam para lhe dar a
sensação de felicidade. Limpava os santos do oratório com um algodão embebido em
leite; polia as salvas de prata vendo na sua lua azulada o rosto delicioso e quase
imaterial.
Mas agora uma outra estrutura do seu direito de viver assomava da
profundidade do parque, aparecia na fragilidade dos gestos amorosos dos noivos e na
lógica duma nova noção de ser. Teve vergonha de andar só ou ter apenas como
companhia o padrinho, que achou pesadão, desajeitado no vestir, familiar demais
com os criados. Reparou que ele limpava as unhas com a própria unha, quando
estava desocupado e se aborrecia. De resto, Carmezim sentiu-se mal com os
primeiros tratamentos e caiu de cama dois ou três dias, ficando a mulher a cuidá-lo.
Ema vagueava como um fantasma pelos grandes corredores, deitando um olhar aos
quartos dos hóspedes, se as portas estavam abertas. As roupas deles, como acabadas
de despir, davam-lhe uma sensação de intimidade, duma mão forte que fosse arrastá-
la, agarrando-a com uma brutalidade feudal, iniciando-a para a idade do desejo.
— Estás amarela como a cera. Não te sentes bem? — O padrinho pousou nela
um olhar apagado, quase indiferente. Mas estava atento à infinidade de práticas que o
corpo da mulher sofre só por efeito da imaginação.
Ema acabou por ganhar gosto aos seus passeios no parque, gosto em estar
sozinha, medindo a sua insatisfação e demorando qualquer tipo de solução para ela.
Queria ser eternamente jovem, naquela expectante certeza de alguém que pudesse
adivinhar a sua invisível grandeza. O noivo reparou como ela era bonita e fez disso a
primeira chantagem matrimonial; a noiva debulhou-se em lágrimas e mostrou a Ema
uma aversão violenta. Era a comédia da rivalidade com todos os efeitos da
humilhação e da frustração; com todas as condições para a inexorável etiqueta do
amor.
Ema ficou impressionada e ferida. Não se sentia culpada, mas instalou-se nela
a desconfiança. Passou a proteger-se dos seus próprios sentimentos, mesmo os mais
insignificantes.
Quando voltou para casa, tia Augusta estava doente. Morreu pouco tempo
depois, e Ema verificou que, modesta e silenciosa como era, lhe fazia imensa falta.
Não se podiam avaliar as pessoas pela comparação a que eram submetidas;
cada uma era uma lição em que a aspiração se esconde. Tia Augusta deixou expressa
a sua última vontade: queria ser amortalhada no hábito de Nossa Senhora de Lourdes,
o que resultava muito caricato, dado que se tratava duma senhora velha e hidrópica.
Sobretudo o nariz volumoso e picado de crateras escuras dava-lhe um ar
completamente bufo. Parecia postiço e, além do mais, burlesco. Mas a ordem de tia
Augusta foi cumprida, e ninguém se riu. Estava depositada em frente do oratório,
tendo por cabeceira essa peça admirável, pintada de verde e ouro, com o Jesus nas
palhinhas que ela tanto amara. A faixa azul tocava-lhe os sapatos brancos e tinha em
cima deles uma rosa amarela, segundo a revelação de Bernadette. As pessoas faziam
por não olhar para o rosto de dona Augusta, nem para o seu ventre inchado. Subiam
as escadas e paravam um pouco no patamar de colunas, como para retomar o fôlego,
mas na realidade para reunir forças e concentrarem-se naquele acto sepulcral.
Entravam e deitavam em cima do corpo umas gotas de água benta com o hissope.
Branca tinha pousado uma folha de papel transparente sobre o cadáver para que não
se molhasse. Ema pôs luto fechado e não o quis tirar senão passados seis meses. À
noite, quando se foi deitar, sentiu enormemente a falta da velha senhora; senil como
estava, unicamente empenhada em devoções, abanando a cabeça com um tique que
parecia escândalo triste mas era só um descontrolo motor, ela fazia-lhe falta. Ema
desenrolou lentamente o cabelo, que tinha atado como para dar-lhe mais severidade,
e pensou que alguma coisa estava encerrada, na sua vida. Já não era mais a menina
da casa tendo por protectora aquela alma dócil e, no entanto, sem ser conivente com
as curiosidades do mundo. Deitou a cabeça para trás, e as veias do pescoço
desenharam-se, azuladas na pele palidíssima. A beleza parecia abrir-se sobre a
superfície sedosa duma dor dormente. Era como uma fera que tem fome, um animal
pequeno ainda, mas cujo porte denuncia já todas as graças da vontade predadora.
Sentia que os laços com a mediocridade e o amor dos caminhos da infância
estavam soltos; assim como soltara a massa dos cabelos pretos, também o coração
perdia uma espécie de constrangimento onde, no entanto, ele bebia uma felicidade
nunca mais recuperável.
Trazia ainda luto pela tia Augusta quando o doutor Paiva foi chamado. Branca
estava de cama com uma cólica, e o sofrimento dela parecia perturbar-lhe a razão.
Não entendia quando lhe falavam, e apenas repetia, duma maneira ansiosa e
assustadora: "Vai passar vai passar" Carlos ficou só com ela no quarto e voltou com
uma cara tão indiferente que Ema achou motivo para se tranquilizar. Estava sentada
no contra-luz da janela e o estore corrido desenhava-lhe no vestido um corte como se
emergisse dum poço. As longas pestanas carregavam a cor dos olhos, que pareciam
negros. Eram, na realidade, claros, entre o verde e o loiro, o que, sem saber porquê,
surpreendeu Carlos. Estes primeiros movimentos em que a sedução actua decidem
das paixões, dando-lhes uma resistência que não teriam se elas enfrentassem logo as
suas consequências. Parecia só que ele se distraía com uma visita de rotina e nem
sequer pensava que Ema era bela.
A casa, a situação dela e o seu recheio, interessou-o de repente. Como uma
pessoa que tem em conta a operação duma hipoteca, deitava os olhos em volta para
uma primeira avaliação. O que viu agradou-lhe. A mesa sólida, de patas elefantinas,
tinha aos cantos revistas antigas, de assuntos caseiros, como moldes de vestidos e
bordados. Era evidente que Ema não as consultava; estavam ali desde o tempo da
mãe dela, "a defunta", como Paulino dizia, e eram uma espécie de homenagem aos
seus gostos e à sua presença já muito apagada. Paulino tinha-a ido buscar, e trouxera-
a em carro de aluguer, feliz por ter encontrado uma mulher bonita, caseira e de
poucas ambições. O doutor Paiva pensou que a casa não era de boa construção e que
o mirante, revestido de lousa, ameaçava ruína. Mas havia livros e objectos valiosos,
vindos por heranças obscuras guarnecer um desses lares frios e cuja abundância é um
vício do ganho miraculoso dos vinhos finos entesourados nas adegas, e por fim
resgatados para a mesa dos opulentos, com o carácter dum pacto selado.
O doutor Paiva dissimulava a sua vontade de cortejar Ema, com aquele súbito
cálculo em que se envolvia perante a fortuna dela. Há homens que nem submetidos a
tormentos confessariam o seu amor por uma mulher, sobretudo tratando-se de uma
mulher honesta. É como se a palavra amor trouxesse um ar pestilento ou, pelo
menos, um ar em que se respira o conflito dos sexos. Já de si, homem e mulher são
muito difíceis de harmonizar; são precisos padrinhos, sacramentos, certidões e um
sem número de provas que lhes permitam coabitar sem perigo. Quanto mais se o
amor se instala com eles; de certeza que não podem aguentar essa partilha de
emoções e delitos, tanto morais como sexuais.
O doutor Paiva tinha já a experiência dum casamento que só não falhara
completamente devido à paciência que era nele uma forma de esperança adiada
resistindo aos sentimentos fortes e a sua demonstração. No seu entender, tratava-se
de humores desfavoráveis a uma compleição que se quer virtuosa e bem ordenada. A
figura de Ema, sentada na cadeira de palha e com um gato pequeno ao colo (ela
apanhara-o do chão como se apanhasse um lenço que lhe caísse, e acariciava-o com
alguma melancolia, o que fazia ressaltar nela um desejo suave), a figura de Ema
embriagava-o. Lembrou-se da esposa azeda e meio selvagem que lhe deixara uma
fortuna regular em vinho generoso e algumas pratas. Mas era cáustica, de peito chato
e ciumenta, a ponto de lhe cheirar os lenços do bolso e suspeitar amantes em todas as
criadas. Por fim, ela fez-se tão apegada com uma, a Natália, que não podia privar-se
dela nem destiná-la a outra coisa que não fosse essa espécie de secreta praxe que há
entre amos e escravos: uma indecifrável relação de amor e desprezo mútuo.
A mulher de Paiva morreu, constou que se envenenara, e tudo se tornou de
repente claro na vida dele. Era como um banhista que volta à superfície depois dum
mergulho em que os sons se reduzem a uma atordoada vibração nos ouvidos e a cor é
um registo de verdes baços. Respirou e não pensou mais em casar-se.
Mas agora reparava naquela rapariga cuja beleza ele não comentava com
ninguém e que ninguém parecia notar, pois falar nos dotes físicos duma pessoa com
mais de quinze anos pode despertar desejos ou confessar pensamentos lúbricos.
Coisa de que se acautela a sociedade por a ter por desintegradora das suas regras.
Todavia, dessa discrição, que vinha sendo dada pela má catadura do pai,
incapaz de mostrar alegria perante as graças duma filha, resultava que a rapariga
crescia insatisfeita de si própria, e era assaltada muito cedo por uma curiosidade
sobre o amor que era uma forma narcísica de se comprometer nele. O
descontentamento em que crescia, a recusa em louvar os seus dons e tomá-los como
uma oferta da natureza para que lhes desse destino nobre, fazia com que a mulher
ganhasse depressa um desdém pelo casamento, tão parco em prazeres da imaginação.
Suspeitava que os amantes eram melhores provas do seu conhecimento interior; que
só eles podiam ser uma via de acesso para ela própria. Enquanto se iniciava no
período de enamoramento, a mulher vivia espontaneamente, amava-se por
intermédio do retrato que dela fazia o amante. Mas isso não durava; voltava a cair
nas dúvidas impostas desde a infância: que era insignificante e efémera em todos os
seus actos.
Com Ema as coisas não foram muito diferentes. O pai não era por cautela que
impedia a revelação das suas perfeições; era por ignorância. Era com profunda
insinceridade que optava pelo dito popular, quando se elogia a beleza dum filho: "É
perfeitinho", diz a mãe, com uma ponta de aristocrática secura. Paulino Cardeano via
a filha desabrochar, mas negava esse facto para que a sua negação tomasse o carácter
duma lei universal.
Queria-a recatada, portanto não a podia entregar à aventura humana de se
reconhecer bela e capaz de contrariar a sua condição feminina, isto é, a sua
obscuridade. Uma vez informada dos seus dotes físicos, da inteligência fecunda, ela
iria passar para o lado dos homens e tornava-se nalguma coisa de indecifrável e com
destino mal parado.
Não sabia Paulino que as "heroínas", mulheres das histórias de cordel que se
apresentavam munidas dum apetite sexual fora do comum, eram afinal simples
fugitivas dessa condição milenária da solidão e do esquecimento. O que elas
invejavam nos homens não eram os órgãos genitais, mas o que eles representam: uma
criatura completamente prestável aos jogos do acaso e livre da submissão que
constrange o perverso, o mal visto, o apaixonado pelo seu próprio mérito, a lançar-se
debaixo dum comboio ou a comer um punhado de arsénico. Ema conhecia esses
casos limite que faziam eco na região e que passavam, como uma onda mole e
salobra sob os pilares das pontes familiares, e que iam esbater-se longe, uma vez
desgastado o trabalho das agitações do amor.
O que era o amor? Ema achava-o um derivativo duma vocação profunda e
inflexível; um luxo que simboliza paisagens que a ninguém é dado ver; sonhos,
apetites, manias que nada mais são do que o desejo de ser uma outra pessoa, de
arrancar desses símbolos do corpo (o sexo e os olhos que primeiro pecam) a natureza
da pessoa, em toda a sua difusa corrente de movimentos. Movimentos ignóbeis
porque são idênticos à antiga hoste de mulheres profetas, consagradas a uma ascese
que os homens proíbem, para lhes atribuir a mediocridade vivida por Eros. Ema sabia
os casos de indizíveis precalços em que o amor desempenhava um papel decisivo
porque sustentava a permanência da juventude através desse espírito da submissão. O
que lhe estava destinado era uma doce miséria de relações matrimoniais, com um
homem que pagaria as suas contas e que ela amaria como se corresse o fio do terço;
com uma distracção embebida de iniquidade porque estava cheia de pensamentos
fantásticos que sucediam na sua mente como parte duma realidade ideal.
Na Primavera Ema estava noiva de Carlos Paiva, e sentiu-se de certa maneira
embrutecida de felicidade. Ele vinha vê-la, mas evitava estar a sós com ela;
precavido como era, não pensava sequer em combinar o seu estado de promessa com
algo de mais solícito, já designado como direito dum marido. Ema quase lhe
repugnava quando se aproximava demasiado, trémula no vestido de algodão claro,
um pouco calada demais, capaz de o embaraçar pela angústia recalcada do desejo.
Pressentia nela alguma coisa que nada podia suspender, algo que era questão de vida
ou de morte. Adiou duas vezes o casamento, sem pretexto quase, como para provar
que resistia a essa mulher que o amava e que, no fundo, lhe fazia medo. Lamentou a
sua viuvez e teve uma recordação agradecida para a esposa embirrenta e de macabros
pés frios; e que, de certo modo, o tranquilizava porque não era de todo real na sua
vida, mas como um fantasma feito de água e de luz. O que ele temia era a resoluta
presença de Ema que se distinguia tão bem da submissão fútil em que se criara. Um
dia particularmente difícil dos seus encontros, que sempre decorriam em público, no
jardim ensombrado por caneleiras e ramos espinhosos de buganvíleas, Carlos Paiva
teve a noção de que tudo aquilo era embaraçante porque era falso. Ema sabia muito
mais do amor do que ele podia conjecturar. Percebeu, ainda que não se demorasse
nessas conjecturas que humilhavam a sua honra de homem, percebeu que uma
virgem era algo de complexo e inqualificável. Chegava às mãos do marido, ou num
estado de embrutecimento em que os sonhos tinham uma parte de desvio
embaraçante, ligados como estavam a favores da carne na heráldica familiar, com
pais e irmãos e parentes de todos os lados chegados para o festim de iniciação; ou
então, como Ema, eram raparigas inseduzíveis mas capazes duma sinceridade que as
punha à beira de situações difíceis.
Quando se anunciou o resultado da sua assiduidade junto de Ema, apareceram
certos fragmentos de revelações a respeito dela e que, sem lhe ferir a reputação,
deixavam uma interrogação no ar. Mas não era de esperar outra coisa na terra em que
ela crescera e se fizera mulher, e que a observara em todos os estados de mudança.
Sobretudo, aquela famosa varanda, que tantas colisões e despistes provocara, deixava
o nome de Ema um tanto maltratado. Também havia um ourives que prometera a
Branca uma volta de ouro, caso o aproximasse de Ema. O que ela tentou, mas sem
resultado. Depois disso, um viúvo apresentável, dono duma loja de panos, sondou a
possibilidade de obter a mão dela. Não eram muitas, porque Ema lhe disse, num
bilhetinho quase amistoso, que não pensava casar-se cedo; o que era verdade,
satisfeita como estava com a sua corte de criadas e de bufões, e um pai que a amava e
os padrinhos que a enchiam de presentes.
A luz não caía sobre as grandes operações sentimentais de Ema nem ninguém
as podia vislumbrar, mergulhadas como estavam em actos insignificantes. Por
exemplo, os filhos de Mabília, um, companheiro de jogos e seu capitão de aventuras
que deveras a assustavam, como chamar nomes feios às pessoas mais gradas do
território e que não lhe caíam em graça. Francisco era tão irreverente que o coração
de Ema pulsava só de o ver aparecer. Que maroteira imaginava ou que pequeno
escândalo ia desencadear, era excitante supor. Não era amor o que sentia por ele, mas
o amor andava perto dessa angústia selvagem que a fazia refugiar-se atrás de
Francisco enquanto ele atirava pedras desde a ribanceira do quintal. Queria acertar no
chino do Mendiz, funcionário pobre da Casa do Douro. Era um homenzinho meio
assustado, que passava a horas certas para o emprego e que parecia completamente
fora do seu ambiente na Estrada Larga, ao sol de Verão. Os Mendiz eram de casa
decaída, mas mantinham um aprumo de Ossian no cativeiro.
Quanto ao outro amor obscuro de Ema, era sem dúvida Nelson, o outro filho
de Mabília. Ele era o seu pajem e o seu trovador. Sabia versos e lendas, falava até
latim. A graciosa figura, Os olhos verdes, dava-lhe grandes possibilidades junto das
mulheres. Seduzira Branca e muitas outras; para Ema guardava uma doce e
encantada visão da sua juventude de homem, algo que não era possível alcançar e
muito menos perder. Ele servia-a; ela deixava-se adorar. Saía à janela, de manhã,
com os cabelos desfeitos e a camisa desabotoada, sabendo que Nelson estava debaixo
da ramada e podia vê-la em aparato de tanta sedução. Os seus desejos encontravam-
se; desejos como borboletas, parte da ilusão humana que se não quer consumada. De
repente, Nelson foi para o Porto e teve uma vida que parecia vir a ser de perdição.
Não foi. Casou com uma herdeira, como nos filmes um pouco frouxos cuja
sensualidade está no que se omite. Constou que a noiva quase o violou antes e depois
de casar, e que morreu cedo, deixando-o a uma amiga, como quem deixa um colar de
pérolas. Nelson voltou a casar e fez-se um proprietário estimado e de bons costumes.
Tinha a moral de convento, que é cauta e furtiva, dada a secretas desinibições.
Esqueceu Ema, provavelmente; mas era propenso a súbitas emoções, os olhos
enchiam-se-lhe de lágrimas por causas insignificantes: uma criança que aprende a
andar, uma moça que canta com voz trinada, no campo, cortando erva. Vivia entre
Ribeirão e a vila da Trofa, que se tornara rica e carregada d palacetes exorbitantes.
Mas deixamos a sua história para outra ocasião, se a houver.
Paulino Cardeano tinha herdado a casa do Romesal duma avó que fora
acompanhante duma senhora de título e que lhe deixou a propriedade. Pequena de
rendimento, porque as vinhas foram distribuídas ao longo dos anos, por partilhas ou
troca de outras vinhas, a casa representava ainda a antiga família, morgados de
Gervide. Era um paredão corrido, com seis janelas de guilhotina e dois portões de
armazéns por baixo. Os soalhos, assentes em vigas de castanho, deixavam passar
pelas frinchas o odor fermentado dos lagares. Mas Paulino Cardeano não era rico.
Hipotecara a quinta e vivia entre a fartura fictícia da colheita e as dívidas de todo o
ano.
Ema não dava conta das dificuldades, tanto era lauta a mesa, sem faltar aquela
abundância provinciana onde tudo floresce e a fruta se mede aos cestos e não ao
quilograma. A Ema não faltavam os vestidos de estação, as luvas até, que eram um
luxo que depois se tornou um pouco maníaco. "Quando for velha durmo de luvas."
Dormia em nova, pelo rigor do frio; e Marina ia virar-lhe a folha do livro, se estava
deitada e não queria destapar os dedos, metidos em guantes de lã que mandava fazer,
com trancinhas. Caprichava muito nessas coisas, o que desviava o coração doutros
apetites.
Em tempos, o enxoval representava um quinto da erótica feminina, que nele
empregava desejos, fantasias e até as funções mais abissais do tédio. Os bordados, as
bainhas, as rendas aplicadas, as cambraias e os linhos, tinham um significado
ligeiramente bestial; um significado de rogo e praxe amorosa que roça pela
obscenidade. Fazer ilhós e abrir os riscos de folhagem em volta duma haste em
cordão perle tinha quase o significado dum himeneu. Ema já não estava senão na orla
final dessa praxe de gineceu, mas tinha ainda nos ouvidos as recomendações de dona
Augusta, ela própria uma dama dos enxovais, que arrumava em armários altos como
oratórios; nunca se casou, mas o enxoval cumpriu o seu simbolismo, deu-lhe as
alegrias fabulosas do encontro dos corpos e a sensual presença do noivado
aromatizado de camoesa e lavanda. Ema percebeu que quanto mais o casamento
desagradava e tinha espinhos que feriam de maneira profunda, mais as mulheres
voltavam para esse enxoval as suas atenções quase libidinosas. No tempo de Ema, a
roupa interior tomou a dianteira sobre o enxoval de casa; fez-se subtil, ardente e
requintada. Cumpriu com a missão de encobrir desejos sem os deixar de ouvir. Ema
teve uma das maiores colecções de camisas de noite, de seda e de algodão fino.
Vestia-as, e sentia-se outra: uma deusa na sua concha, embalada pelo mar. Eram
espuma, algas e leves folhos de sal. Levou as coisas ao extremo de usar toucas para
dormir, o que lhe dava um ar violável e excitante.
Mas tudo se passava numa ingenuidade de gestos que deixavam Carlos
tranquilo. Para ele, Ema era um achado: talvez pouco carinhosa, mas também não
muito informada do poder da sua beleza, ela seria uma esposa adequada à posição
dele, que se tornara respeitável. Marcaram o casamento para Setembro, quando
Paulino Cardeano tinha assegurado o pagamento do vinho. Os lagares estavam
vazios, as cooperativas aceitavam a produção vinícola e tinham-se acabado as
vindimas báquicas dos tempos de cardenho e pisa.
Nas vésperas do casamento Ema abriu a janela do quarto e pousou os olhos
sobre o Romesal, e pareceu-lhe que o rio na curva mole que se ia desfazendo desde a
Régua trazia no ventre inchado algo de monstruoso. Era um rio que descera de
Espanha com o seu cardume de grandes peixes negros e que eram aprisionados em
viveiros nas margens. Depois sofreu assaltos de barqueiros e pestes que dizimaram as
espécies; saltavam na água apenas uns bodiões e percas, pouco apreciados. Mas Ema
pensou que, porventura no fundo, havia ainda desses peixes gigantes, que raramente
assomavam das profundidades a cabeça brilhante. Voltou-se, assustada, porque
Marina a chamava.
— Olha além. O rio não está diferente?
— Não. É o rio Douro, que esteve ali sempre.
Mas Marina chegou-se à janela para ver melhor. Uma tromba de água levantou
a massa lamacenta das bordas; algo se movia sob a toalha da água.
— É um homem — disse Ema. Mas, a tão grande distância, um homem faria o
efeito dum alfinete. Tudo ficou sossegado, um barco parecia andar à deriva;
transportava passageiros desde o cais das termas. Ela lembrou-se dum bonito rapaz
que lá encontrara num Verão, aleijado das duas pernas e depois curado como por
milagre da piscina de Siloé. Não o viu mais, nem sabia quem era. "Vou casar-me. É
um disparate, nem sequer gosto dele." — pensou. Mas Marina distraiu-a com as
perguntas que lhe fazia, e depois Branca veio ajudá-la a vestir-se, trazendo a
costureira Judite como se fosse uma portadora de oferendas.
Era o vestido. Parecia enorme, com folhos e saias de baixo, e uma laçada azul
na cinta.
— Uma coisa azul, para dar sorte.
De facto, era uma extravagância de Ema. Quis sapatos azuis, para acompanhar.
De qualquer forma, ficou esplêndida, tendo frisado os cabelos e posto neles cachos
de muguet. No peito brilhava o medalhão com turquesas, não quis privar-se de o
levar.
— Outra coisa azul, para dar sorte; nunca é demais…
Nelson, quando soube do casamento de Ema, chorou como uma vide e
recostou-se na cadeira de palha como se fosse morrer. A mulher acariciou-lhe as
fontes, que embranqueciam.
— Deixa lá, não te ponhas assim.
Protegia-o com um enorme gosto da renúncia e despedia-se em cada prova de
amor que lhe dava. Nelson queria uma propriedade em Romesal, para apagar a
memória da sua mocidade pobre e da casa de Mabília, tão mal casada com um
bêbado que acabou no asilo e que a espancava. Nelson comprou, já a inclinar-se para
a cova, velho e sombrio, uma quinta em Gervide. Ema não morava mais lá, nem
sabia mais do seu paradeiro. Lembrava-se da mocidade, de Branca que ele tivera nos
braços naquela mansarda onde se criavam periquitos e que, ao ouvirem os gemidos
dos amantes, piavam de alegria. O sol entrava como um deus que se alimenta da
matriz do corpo astral que é o homem. Um rouxinol cantava ao cair da noite, com um
trinado tão genial que arrastava a alma de quem o ouvia.

CAPITULO II
O POBRE-NADA QUE ENAMORA

Sim, é certo, das janelas do Romesal via-se o Vale Abraão, terra de Paivas e de
Semblanos. Destacavam-se as propriedades mais sumptuosas, entre maciços das
árvores de jardim; o resto eram casas agaioladas com mansardas revestidas de lousa,
mas raras. Que o vale era sobretudo recatado na sua abastança, que decaíra muito
com a alta dos salários e as vocações migratórias.
As casas "maison", com estabelecimentos ao rés-do-chão e uma escada
exposta como um fémur partido, não eram do estilo do vale, que se reduzia a três ou
quatro quintas ribeiras; para cima da estrada era a encosta de Cambres, onde se
exploravam águas medicinais. A mãe de Ema tivera uma paixão fulgurante por um
engenheirozinho polonês, que gerira em tempos a empresa falida e se distraía do
fracasso construindo no quintal "o poço da morte", onde girava na sua moto de
grande potência. Agora Cambres era pobre e sem recursos; ao sol de Maio, as
raparigas sentavam-se nos muros, gozando a civilização da ganga e da bota alta.
Em Vale Abraão não havia, como no Romesal, "o povo", com as suas
escalavradas escadas de antigo solar e gente remexida que se insultava, a ponto de a
Guarda achar Gervide cova de facínoras e Fontelas-de-Cima um lugar de maus
ladrões. Havia assassinos bem comportados, abades agiotas, rapazes viciosos mas
pondo na libertinagem uma travagem que proporciona a censura viril, muito próxima
da virtude.
Não havia nada parecido à venda do Alexandre, cheirosa de cascos de vinho,
de iscas secas de bacalhau, de azeitonas em talha. O que havia era a Caverneira, com
o parque de cerejeiras do Japão e umas fontes que se ouviam de noite como risos de
palácios encobertos. E, ainda impressionante na sua estrutura de velho alcazar, as
Jacas, onde vivia com a mulher Pedro Lumiares, boémio arrependido e erudito sem
carreira; amavam-se, aquele casal tenebroso que a miséria rondava, tendo no fio os
rendimentos e os lençóis da cama.
Em Vale Abraão estava a casa de Carlos Paiva. Nada de orgulhar ninguém; um
amontoado de sobrados, de pequenas salas e alcovas, e eidos que se foram juntando,
como para se aquecerem, e que resultara num incongruente encosto de telhados e
goteiras, portas esconsas e janelas desiguais. Ema, que conhecia a casa dos domingos
de piquenique, em que fora recebida pelas Paivoas, mulheres de cidade com
correntes Chanel, achou-a mudada. Era um dia de vento, o lugar pareceu-lhe sinistro,
com o estradão resvaladiço de cascalho até ao rio e um padrão das velhas
demarcações postado a uma esquina como uma sentinela.
Ela levava, como uma sultana dos emiratos, uma bagagem de sedas e de
tapetes que alarmou Carlos; criado numa pequena abundância de mesa, não conhecia
nada de elegância e muito menos de luxos sibaritas. Tomava como estratégia a
grandeza opípara dos Semblanos, com as suas pelicas de vison e os blazer de botões
brasonados. Mas ele próprio, Carlos Paiva, vestia no Inverno uma samarra desbotada
para se agasalhar das geadas.
As Paivoas achavam Ema leviana encoberta e induziram o irmão a tirar
informações da vida dela. Já casado, Carlos caiu na infâmia legítima de investigar a
moral de Ema, sobre a qual parecia pesar uma disfarçada opinião de impostura. Mas
nada encontrou de mal. Ela era pura como as estrelas. Compensou-a com extremos
de galanteria que Ema estranhou, sabendo-o acanhado em inspirações de amor.
Se interrogasse, no entanto, o pai Cardeano, podia ficar algo mais esclarecido.
Ele conhecia um secreto pendor de Ema para a exploração das ocasiões e, sobretudo,
a veia do orgulho que, às vezes, a enlouquecia. Como gostava de vestir bem e não
tinha os meios suficientes, entendeu um dia fazer chantagem com o pai e revelar os
seus amores com mulheres da vinha à pobre tia Augusta, que o tinha por casto e
viúvo exemplar. Cardeano fez-lhe frente, ameaçado mas não desprevenido. Rasteiras
de mulheres não lhe pareciam causa de susto. Achou que a filha pouco sabia de
homens. Quando a viu casada, porque a amava, chorou e bebeu demais, o que o pôs
mais sombrio ainda. Tinha a impressão de que Carlos não era marido que convinha a
Ema. Era um desses homens, mais numerosos do que se pensa, que, sem conhecer as
paixões, as tinham por denunciantes de segredos que é melhor guardar. Ele venerava
os valores medianos, como a dignidade da profissão e um lar de que nada constasse.
Na véspera do casamento teve uma crise de dúvida, esteve prestes a romper com
Ema. Tomava como uma espécie de rivalidade tanta beleza junta. Como ela se
mostrava enervada com o efeito que podia causar, Carlos disse-lhe:
— No fim de contas, não vai estar lá gente que perceba muito disso.
No dia da boda, Ema verificou quanta razão ele tinha, ao ver chegar as primas
de Além-Douro com as capelinas cheias de fitas e as horríveis bolsinhas bordadas.
Teve de repente um baque; pareceu-lhe estar a dar um passo estouvado, embora
Carlos fosse o mais sensato dos homens e bem cotado no quadro médico. "Um truta"
não era. Riam-se das suas receitas e do jeito dele para arrancar dentes a alicate. Mas
essa mediocridade tornava-o simpático e fazia-lhe perdoar a mulher que mal
apresentava, deixando-a atrás dele, como uma criada. Só o Semblano velho disse que
ela era encantadora. Disse isso como se usasse um direito de ancião; mas não a
desejava, por ser sacudida e talvez impertinente. Ele gostava de raparigas pobres em
estado de necessidade que é vizinho de Eros. Foi dizer a Maria Semblano, a esposa,
que gozava de fama angélica, que Carlos Paiva tinha casado mal.
— É uma mulherzinha que lhe vai trazer dissabores — disse.
— Que dissabores? — Maria Loreto Semblano era alta, ruiva, de porte
"imperial", como diziam as suas inimigas. Escrevia contos exemplares e tinha algum
sucesso com a sua erudição pastoral. — Que dissabores?
— Não sei, o costume.
Ele despiu o casaco e, dando conta de que não arriscava essa intimidade há
muito tempo, junto da mulher, voltou a vesti-lo. Maria Semblano sentiu um arrepio
de tristeza, incurável como uma maleita. Amara o marido com uma admirável
dedicação de que as raparigas frias têm o segredo. A infidelidade dele não a
desiludira; dera-lhe asas para uma certa vacuidade nobre que a surpreendia como um
desejo suspenso.
Carlos Paiva era o seu consultor ortográfico, não o seu médico de cabeceira.
Oferecia-lhe as suas horas mais especiais, de confidência intelectual e que ele achava
arrasantes. Com o casamento, esperava livrar-se de Maria Semblano, que o
convocava às sextas-feiras para jantar e rever provas tipográficas. Mas tal não se deu.
Maria continuou a convidá-lo, sem parecer notar a chegada de Ema, a quem, de resto,
mandava regularmente morangos e bolos de fécula.
— A minha mulher ficou encantada.
Mas Maria Semblano não deixava ocasião a maiores expansões. Levantava a
colher da mesa e comia a sopa em silêncio. Vestia-se tão bem que parecia deslocada
naquela orla de Vale Abraão, servida de três criadas velhas e mentirosas que trouxera
da casa dos pais há muitos anos. Ema invejava-lhe o trem discreto, a elegância
frugal, a raça, que era, de resto, atravessada de negociantes de Lugo e moageiros da
Maia. "A farinha fê-la branca e com aquele ar de profetisa'' — dizia Pedro Lumia-res.
E falava do tempo em que Maria vendia beijos nas quermesses, divina como Juno
acolitada por pavões reais.
Ema não conseguira que Branca a seguisse, temerosa que estava de perder
casamento com um cabo da Guarda; e Marina também se escusou, porque estava
noiva e passava as tardes nos tanques, a molhar peças de pano. Só Ritinha, a muda,
foi durante algum tempo para Vale Abraão. Era uma espia extraordinária. A falta dos
sentidos do ouvido e da fala desenvolvera nela faculdades finíssimas de
entendimento. Nada lhe escapava. Conhecia toda a clientela de Carlos, sabia as
doenças de que se queixavam, as contas que pagavam, as casas e os bens que tinham.
Ema chamava-a como se chama a um cão, entregava-lhe tudo — chaves, garrafeira,
jóias e correspondência. Mas, um dia, as Paivoas acusaram-na de perder um lenço de
bolso e Ritinha partiu, muito seca, sem dar explicações. De resto, Carlos achava-a
inútil porque não podia atender o telefone. Ema esteve um tempo amuada, Ritinha
fazia-lhe falta. Era o seu bobo, a sua aia; era o elo que a ligava ainda ao Romesal, ao
seu belo espaço de corredores e átrios grandes como gares. Em comparação, a casa
de Vale Abraão parecia-lhe um labirinto de tabiques e tectos baixos demais.
— Os tectos baixos favorecem as paixões. — Pedro Lumiares, que ela
encontrava na missa das onze na capela das Jacas, informava-a de que era uma
fórmula de Le Corbusier.
— Olhe que se enganou. Paixões são ali coisa que não há, nem nunca houve.
Ema riu-se. Era um riso rasgado que lhe descobria os dentes brancos e sólidos;
dentes que tornavam o riso agressivo e triunfal ao mesmo tempo, e que Marina dizia
serem tão belos como postiços. Marina fazia-lhe falta, e as saias dela presas com um
alfinete de segurança para marcar melhor a cintura. Teve saudades de tudo, até do
internato em Lamego e das lições de estilística e de desenho com moldes de pés de
gesso. A mesa do Romesal, sempre posta, com o queijo dentro duma redoma de vidro
e a fruteira de estanho donde pendiam os cachos de uvas, que quando o pé secava
eram retirados. As romãs abertas mostravam o róseo grão, e a película brilhava como
algo de arrancado à profundeza da terra e aos seus veios diamantinos.
Sobretudo Ema estranhou o dinheiro contado até ao último tostão, o peixe
congelado que lhe sabia a papel, todos os truques da economia que a primeira mulher
implantara e que Carlos seguia como um testamento. Os mimos, os pequenos sonhos
perdulários que o pai lhe permitia, estavam proibidos naquela casa que era pior do
que pobre, era mesquinha. Ema tinha saudades de tia Augusta e do tempo em que se
sentava nos joelhos dela para tomar o café e se fingia distraída para exasperar a boa
criatura. Olhava para a parede, como se pela primeira vez visse o besugo e os
mexilhões da litografia. — Bebe, menina — Tia Augusta era ainda nova mas parecia
pronta para um lar da terceira idade, com o seu grosso e disforme nariz crivado de
buracos como um dedal. Nunca se zangava, excepto se lhe tocavam na reputação dos
seus santos e santas, o que até o professor Carmezim evitava fazer, apesar da sua
vulgaridade laica. Tia Augusta, se apoquentada, limitava-se a abanar repetidamente a
cabeça, dizendo "que mania", com uma expressão afligida que Ema queria logo
apagar da cara dela. Não suportava ver tia Augusta molestada pelas ínfimas doses de
malícia que fazem o centro de gravidade das famílias felizes. As alterações do génio
contribuíam para criar formas de convivência e aliança. Ema era na casa um pólo
afectivo seguro, tocado de azedume e competição que produzem movimentos
constantes de reconciliação, animando as almas para o trabalho e dando-lhes
merecimento para suportar a ideia da morte. A trama carnal de todos esses
sentimentos servia a composição do quadro do crescimento moral e conduzia às
vezes a um desfecho imprevisível. Marina foi praticamente violada pelo noivo, que a
deixou depois de perceber que as suas relações eram infecundas. "Quem não faz
filhos não faz vontades", disse, cruelmente. Quis oferecer-lhe uma gargantilha de
ouro, mas Marina recusou.
— Quem és tu para me pagares favores? — disse-lhe. E o coração dela estava
oprimido porque o amava muito. Era o mais belo mancebo de Gervide, mas Marina
tinha orgulho em o esquecer. "Sem ofensa" — disse ela. "Só porque é justo".
Ema pensou nestas coisas, uma vez que foi ao Romesal, tendo o pai já
falecido. Tia Augusta também já não existia e a buganvília roxa crescera
desmedidamente ao longo do gradeamento do jardim. As camélias anãs desfolhavam-
se tristemente e as pétalas secas rodeavam o pé como papel queimado. Os objectos
Kitch que pertenciam aos seus lugares e seria um sacrilégio mudar, estavam, ou
perdidos ou fora do sítio. Talvez alguém os roubasse, ou então Paulino Cardeano os
oferecera às amigas como presentes de emergência.
Ouviam-se as varejas como um pelotão inimigo, e Ema chorou de cólera
quando deu com a troca do oratório. Não era o mesmo. O pai tinha-o vendido para
fazer dinheiro e substituíra-o por portadas miseráveis pintadas de verde garrafa.
Pegou no Menino Jesus, ainda intacto na manjedoura com palhas de trigo, e,
embrulhando-o numa toalha de altar, levou-o com ela.
— Que levas aí? — disse Lolota, que tinha sete anos e era uma criança pouco
dotada.
— Nada. Umas coisas — Ema nunca entregaria às filhas as suas recordações
mais profundas, nem deixaria que tocassem no Menino que só raramente tia Augusta
lhe deixava pegar. Ema sentava-se com ele no colo no degrau do oratório, e o
Menino parecia olhar para ela, risonho e pronto a falar.
Dessa vez teve a impressão de deixar o Romesal para sempre. Estava casada
há perto de dez anos e caía nessa vulgaridade ritual que era fazer um balanço da sua
vida. Aborrecia-se e tomava isso como uma capacidade de se emancipar das suas
desilusões.
Tivera duas filhas, Lolota e Luisona, mas não aprofundara as alegrias da
maternidade. Antes disso revelou-se-lhe o coração para as paixões do risco,
desprender-se dos medíocres trajectos que o casamento lhe oferecia. Sem repelir
Carlos, achava-o cada vez mais desinteressante, e essa lucidez de opinião parecia-lhe
funesta para o equilíbrio que pretendia.
Porque em tudo punha uma febre de ambições que não sabia qualificar, pois
não eram de índole social nem se preocupava por igualar as mulheres mais
afortunadas. Era um delírio que se tornava cada vez mais exigente e que a lançava
por caminhos desconhecidos.
Tudo começara há muito tempo quando Carlos Paiva a levou ao baile das
Jacas. Teve um convite expresso dos Lumiares que, de resto, aproveitavam para
conhecer Ema sem se comprometerem a aceitá-la.
A casa, iluminada, florida, com o seu célebre centro de vermeil atribuído a um
discípulo de Celini, pareceu a Ema um castelo que se abria por efeito de mágica. A
grande álea de plátanos, cuja folha caía lentamente, estava cheia de carros cujos
pneus rangiam no areão molhado. Tinha chovido mas fazia luar. O brilho das estrelas
percebia-se por entre os ramos das árvores e dava à noite um tom de compaixão
sublime. Ema vestia uma toilette de seda cor de açafrão, e o modesto colar de pérolas
envergonhava-a. Mas os cabelos escuros, repuxados para trás, deixavam a descoberto
o formoso rosto, tão pálido e regular como o de um manequim. As longas pestanas,
que ela prolongara mais com uma franja postiça, tocavam-lhe as faces dando-lhe uma
expressão voluptuosa mas não vulgar. Os homens acharam-na deslumbrante, e
durante toda a noite evitaram-na.
Só um deles, Fernando Osório, um primo dos Lumiares, a foi buscar para
dançar. Ela não sabia andar nos saltos altos, e os pés enrolaram-se num tapete curto,
esteve em riscos de cair. Osório segurou-a pela cinta, e a mão dele, mão nervosa de
rapaz, pareceu-lhe familiar; como quando o filho de Mabília, o mais novo, a agarrava
nos braços, ajudando-a a pular dos muros quando iam ambos em busca de míscaros
pelas matas de Gervide.
Um outro homem a notou e lhe deu atenção. Era o dono da casa, Pedro
Lumiares, um excêntrico, com efeitos lendários na região. Viviam na propriedade das
Jacas, ele e a mulher, sonsa e de tipo flamengo, que o adorava. A casa das Jacas, de
estilo acastelado, estava em ruínas.
Pairava algo de repugnante sobre esse idílio dos Lumiares: ele erudito e
jogador, ela obediente como um cão, fazendo tarefas desprezíveis, dispensando
criadas para qualquer serviço. Era o amor a dois, tão maligno como um ódio puro.
Em volta deles não crescia nada, os animais morriam, as vinhas secavam, os frutos
apodreciam., Paixão tão absoluta convertia tudo em pó. Ouviam-se pela casa os
passos de Simona, que andava descalça mesmo com o tempo mais frio. Não
recebiam. Só Pedro Lumiares tinha algumas visitas, mas não as retribuía. Parecia
esperar um acontecimento que por fim decidisse a sua vida separada do mundo como
por uma rede de prisão. Havia um carro abandonado no pátio e há muito que não
funcionava. Era um carro grande, verde, com assentos de couro, e fora posto em
marcha a última vez, há mais de dez anos. A buzina de prata anunciava como um
arauto a chegada desse Magriço inteligente que era o dono das Jacas. O baile, o
último, ficou presente no imaginário sensual que a sociedade comanda. Reuniu na
maioria as burguesas com "muito de seu", como se dizia no Romesal para referir
bens de fortuna; elas consideravam o baile uma trégua no silêncio do corpo e da
alma, silêncio em que, entre elas, se reconheciam. Sem deixar de ser neurótica, a
mulher quebrou em parte esse silêncio. O tom de inimizade, que identificava a sua
"impureza", prontamente notada quando se aproximavam entre si, se não foi abolido,
também não tomou proporções maiores. Justamente porque o silêncio foi quebrado e
o símbolo tornou-se desnecessário. Entre os quais, o baile.
O baile, tal como o das Jacas, tinha ainda o carácter de entreter a fábula sexual
e confirmar o conselho das famílias. Ema, que provinha duma casa onde ela era
soberana e onde não tinha que justificar os impulsos, e em que bater em Ritinha era
tão natural como sentá-la à mesa e servi-la ela própria, sentiu-se desadaptada. E, no
entanto, o baile fez nela uma impressão fulminante. Mediu, de repente, a sua situação
de jovem esposa de um homem medíocre, cujas peúgas escorregavam para os
tornozelos e que usava sapatões de marcha com o smoking mal talhado.
Ela própria, bonita como era, irritou-se com a figura que via nos espelhos: uma
provinciana demasiado enfeitada e cujos brincos de minas pareciam um ex-voto da
Senhora das Dores. De nada valeu a dança com Osório que, farto de a tentar distrair
sem que ela sorrisse, a largou junto de duas senhoras que falavam agitadamente das
doenças dos filhos pequenos. Punham na conversa tanto empenho, que ela soava
falso. Estavam decerto assustadas com a ideia de ninguém reparar nelas e parecerem
abaixo da condição que desejavam representar. "São, como eu, modelos de
domésticas, e o livro de cabeceira delas é uma agenda com calendário e horário dos
comboios" — pensou Ema. A sua própria insignificância apresentou-se com nitidez
tal, que Ema sacudiu com força os cabelos, donde se desprendeu um ramo de rosas-
chá. Foi nessa altura que Pedro Lumiares passou e levantou do chão as flores. Olhou
com desprezo as rosas fingidas, mas entregou-as duma maneira cordial. A beleza de
Ema pareceu-lhe deliciosa, e os olhos dele semi-cerraram-se para a apreciar. As duas
senhoras calaram-se instantaneamente, expulsas do seu domínio prático onde se
refugiavam com alcofas de crianças e uma dignidade domingueira. Pedro disse:
— Não é tipo de pessoa que se espera encontrar aqui, apesar de eu a ter
convidado.
— Porquê? — Ela estava tão infeliz que a sua originalidade sobressaía, como a
de alguém que não tem nada a perder. — É um baile como outro qualquer.
— Conhece outro qualquer?
— Não. Por isso digo "outro qualquer". Não se parecem todos? No cinema, são
todos iguais.
Lumiares não a estava a ouvir. Pensava que se Ema aprendesse a vestir-se ia
causar algum sobressalto naquela sociedade que nem se dignava pronunciar-lhe o
nome. Era a "mulher do doutor", e Carlos Paiva recebia assim um tratamento
inconfundível, que o ligava à Caverneira para sempre, embora não fosse jamais
consultado em casos graves.
Mas Maria Semblano concedia-lhe a sua protecção ao confiar-lhe os seus
manuscritos. Ele corrigia-lhe os originais com uma discrição tumular, não lhe
divulgando os erros de ortografia. Ela passou, Berenice arrastando a fulgurante
cabeleira, e havia um murmúrio extasiado atrás dela, feito de sincero amor e
adulação áulica. Maria Loreto vestia uma espécie de túnica pesada, dum beije escuro
que agia na pele como uma maquilhagem. Os seus famosos brincos de esmeraldas
percebiam-se entre o crespo cabelo. Era uma ruiva grande, de nariz curvo e olhos
amendoados, a quem não faltava uma simplicidade trágica, tomando por modelo as
mártires dos primeiros tempos do cristianismo, Santa Petronilla e Santa Justa
avançando no meio da turba agitada. Mas ali pouco faltava para se porem de joelhos
e pedirem a sua bênção. Ela parou uma fracção de segundo quando viu Ema. Mas,
decerto incomodada com a presença de Pedro Lumiares, seguiu, dispensando-lhe um
sorriso áspero.
— Que foi que eu lhe fiz? — disse Ema.
— Oh! Não pense que ela se preocupasse com qualquer coisa que lhe fizesse.
É um tigre de circo, nunca conheceu a selva nem sabia como comportar-se lá. O mal
é só um tema de homilia; não sabe se existe.
— É assim tão invulnerável?
— Todos gostam dela. Até os inimigos dela os conta como amigos.
Ema viu o marido que dormitava, tendo uma das horríveis peúgas com baguete
a descobrir a pele branca em que se enovelavam pêlos brilhantes. Pedro Lumiares,
distraído ou insolente, não o reconheceu. — Este aqui parece um enfermeiro da noite
— disse.
Ema agarrou-lhe rapidamente o braço, e esse gesto parecia ousado demais para
outro que não fosse Pedro Lumiares. Para ele, parecia uma súplica; e era o que
realmente era.
O baile das Jacas, que nunca mais se repetiu, ficou muito tempo no
pensamento de Ema. Via-se dançar airosamente (mais airosamente do que dançara de
facto) nos braços de Fernando Osório; o cheiro dele, cheiro de bom tabaco e de sabão
caro, lembrava-lhe como algo de distinto que só a ele pertencesse. O seu ar
pachorrento e másculo fazia-lhe saltar as lágrimas. Devia ser bom ter em casa um
homem assim, que a ouvisse durante todo o tempo que ela tivesse para se queixar das
suas decepções. Ele tirava do bolso a bolsa do tabaco e lentamente enchia o
cachimbo, pondo na operação um fleumático enlevo que podia parecer, prazer de
compartilhar a festa íntima do casamento, os seus pequenos segredos de finanças a
que o amor imprimia um efeito de risco e desafio comum. Carlos não se parecia com
esse retrato que ela todos os dias embelezava com novos pormenores. Como
Fernando Osório se esquecera da bolsa do tabaco em cima duma mesa, Ema
apoderou-se dela e meteu-a no saco de mão disfarçadamente. Durante muito tempo
aspirava o cheiro do tabaco, e o ventre comovia-se com um desejo brutal, que ela só
acalmava saindo de casa e dando pelos arredores um passeio que a fatigava. Ia até ao
rio e voltava, muito pálida, com um fio de febre, calada. Carlos não reparava nesses
sintomas a não ser para lhe receitar vitaminas. Vivia ocupado com os doentes e as
intrigas da profissão; sentia-se feliz porque a mulher não parecia exigente nem se
queria juntar aos casais cristãos que a Semblano aplaudia sem nunca captar o marido
para esse exercício. O velho Semblano, lúbrico como um macaco mas espirituoso em
coisas da carne, disse que não apreciava os retiros espirituais dos casais.
— Tenho medo de perder a graça. — E fez uma pirueta, rodando sobre um pé
só, como sempre que estava contente consigo próprio.
A casa que Ema encontrou em Vale Abraão não se comparava com o Romesal.
Era mais acanhada, mais escura, com móveis baratos, louceiros de alçado onde se
viam muitas xícaras rachadas e pires soltos. As cortinas pingavam dos varões e não
se tinham substituído desde que a última Paivoa se casara e fora viver para Lisboa.
Há uns bons vinte anos.
Ema fez algumas transformações, mas Carlos cortava nas despesas porque o
consultório era caro e tinha uma empregada que lhe exigia sempre aumentos e que
ele lhe pagasse um curso de informática. Ele lembrava-se de quando o avô, médico
também, fazia circuncisões em casa e fervia seringas na chama duma vela. Esses
tempos históricos pareciam-lhe bem melhores. O cliente entrava pela porta da
cozinha e deixava azeite e vinho para todo o ano. Agora a burocracia abafava a
iniciativa, o doente não era mais um convidado para o rito nobre da doença e cura.
Era mandado para um terminal de saúde onde lhe faziam exames e donde saía
munido de papéis que se acumulavam sobre o seu caso como provas dum crime.
O telefone tocava só para Carlos, chamando-o à sua clientela; ou então eram
vendedores de adubos que lhe propunham novos compostos. Ema cansava-se de nada
fazer, as filhas não a interessavam, achava-as um pouco tolas, com caras de anjos de
barro mal cozido, embirrando, sujando tudo. O belo sofá forrado de linho inglês, que
Ema copiara dum que havia nas Jacas, aparecera rasgado e imundo. Pilhas de roupa
suja amontoavam-se no quarto, e a cama ficava o dia inteiro por fazer. Carlos, para a
contentar, deixou que ela comprasse um carrinho amarelo, em segunda mão, um
carro de rapaz, descapotável e muito rápido. Ema achou que devia usar roupa a
condizer, e quis vestir-se duma maneira mais ousada. Pedro Dossém, que era seu
pajem, embora casado com uma inglesa aficcionada ao golf, deu-lhe alguns
conselhos. Depressa Ema tomou o gosto duma extravagância que, para não ser de má
nota, tinha que ser dispendiosa. Apareceram no seu guarda-fato os casacos de alpaca,
de caxemira e de couro. Os sapatos eram tão caros que Carlos nunca soube o preço;
tinha luvas que a própria Maria Semblano não suspeitava existirem. Trazia-lhas
Pedro Dossém de Paris, e Ema tornou-se conhecedora do seu talhe, da pele, do forro,
e recusava tudo que não tivesse marca estrangeira. Os Dior, os Hermes, os objectos
de toilette com monograma, os lenços de cambraia com bordado expressamente
encomendado para ela.
Lendo um dia o romance da Dama das Camélias, ficou impressionada com o
leilão, depois da sua morte, onde só havia ouro e prata nas coisas pessoais dela. E
ouvindo dizer que não há nada mais vulgar do que um falso Chanel, ria-se das
cunhadas que usavam em profusão imitações desse tipo, cinturadas com cadeias de
metal.
Pedro Dossém era o seu guia, o seu confidente, o seu compère, no espectáculo
que Ema se dava a si própria. E ele, homenzinho snobe mas sem o atractivo dos leões
do gosto, revia-se naquele manequim admirável em que Ema se transformava.
Parecia mais alta, as botas e as calças escondiam-lhe a perna aleijada; e a beleza dela
mostrava-se como algo de impróprio no quadro vegetal da província, vaidosa, cínica
e cheia de compromissos de opinião. Ema não era ainda alguém de quem se espera
uma surpresa má; mas começavam a olhá-la com um pouco de interesse, que era o
começo duma ameaça.
Ema ia regularmente ao Porto, e Pedro Dossém acompanhava-a às passagens
de modelos e apontava-lhe o que devia usar. Ela contrariava-o, movida por uma
arrogância de tímida que a levava a comprar à toa coisas que não usava porque era
demasiado inteligente para se cobrir de bagatelas. Também era demasiado insegura
dela própria para acreditar em Deus. Isso dizia-lhe Pedro Lumiares, que lia, sem
intenções piedosas, Inácio de Antioquia e que a crivava de conversas exigentes. Se
ela não seguia o seu pensamento, pelo menos criava uma elevação de meios que cada
vez mais a afastavam de Carlos.
Só três anos depois do casamento "ficou de esperanças", como dizia Maria
Semblano, a quem repugnava um vocabulário popular. Estar prenhe era para as gatas,
e cheia para as vacas; e as raparigas que se deitavam com o velho Semblano, no
chalé ao fundo do jardim, essas podia-se dizer que engravidavam. Enquanto que o
termo "alcançar", antiquado e plebeu, se destinava a recém-casadas de baixa
condição, mas honestas.
Carlos pareceu apropriar-se da gestação da criança. Engordou, fez-se
preguiçoso, saía tarde de casa; e havia nele singularidades que eram a convalescença
do primeiro casamento, que não gozara e que o deixara ignorante das coisas da cama,
como uma experiência má ou, pelo menos, um pouco incómoda.
Com Ema, percebeu que a felicidade estava ao alcance das suas posses e dos
seus direitos. Era aquela mulher turbulenta e sempre em vias de o deixar ficar mal,
com inconveniências que não eram vulgares, mas espirituosas. E que a beleza dela
tornava menos agressivas.
Quando a criança nasceu, Ema mandou vir Ritinha e teve-a em casa só como
engomadeira da menina. Depois quis uma nurse que alojou fora de casa com a
pequena Lolota, que teve a sua área privada, decorada com um luxo desconhecido até
nas famílias mais abastadas. Só os filhos de Maria Semblano tinham tido ama e um
pónei de crinas douradas. Vendo Carlos preocupado com as despesas que se
tornavam excessivas, ofereceu-se para falar com Ema e chamá-la à razão. Carlos
recusou. Receava que se fechassem mais as fronteiras do seu entendimento com a
mulher. Não sabia o que esperar dela. Mas amava-a muito; amava as suas
extravagâncias, os seus penteados, e até a ligeira insinuação de pecados que ela usava
como se fossem perfumes. Outro dos seus delírios eram os perfumes. A casa
rescendia a incenso, a aloés, a sândalo, a nardo, a almíscar. Um relógio floral girava à
volta dela, e Ema foi das primeiras mulheres a pintar os olhos como Jezebel quando
esperava Jehú. Maria Semblano, quando ela saía, ia abrir de par em par as janelas.
Raramente recebia Ema, mas o perfume dela ficava por toda a parte, nos
guardanapos, que, depois de muito lavados, ainda denunciavam o cheiro de jasmim e
da rosa damasquina. Carlos viu-a fumar e entrar tarde; viu-a com amigos que ele não
conhecia e que mal o cumprimentavam, tratando-o de alto, bebendo-lhe o seu bom
vinho e deixando queimadelas de cigarro nas toalhas. Paulino Cardeano disse-lhe:
— Você é um bodas. Deixa-a fazer tudo quanto ela quer e pede-lhe desculpa
por existir. As mulheres são como os cavalos: rédea curta e antolhos, cilha apertada.
- Não, Ema é diferente. Damo-nos bem, afinal. Não me posso queixar, damo-
nos bem.
Paulino Cardeano achava que era melhor não interferir. Tinha um fraco por
Ema, estava pronto a acusar Carlos e a receber de braços abertos a filha, se ela se
separasse. Mas quando a via, vistosa como uma actriz, com écharpes que voavam em
volta dela e vestida com uma elegância exasperante, arrependia-se de a imaginar de
volta ao Romesal. Apetecia-lhe consolá-la da manqueira de que ela sofria; até sentia
um certo gosto azedo em reparar naquele defeito e atribuir-lhe o sentido dum castigo.
Carlos habituou-se a ver duplicadas as despesas, trabalhou mais, fez dívidas e pagou-
as. As pessoas viam na sua obstinação profissional o sinal duma competência. Ema
era o seu emblema, a pluma no seu chapéu, a flor na sua lapela. Da jovem que ele
qualificara como angélica e a quem oferecera um prato de figos no restaurante, em
Lamego, já não restava nada. Às vezes, porém, enternecia-se a contemplá-la, vindo-
lhe à memória a mãe dela, de quem Ema tinha a beleza casta e o porte levemente
distante. Ela era uma Guedes, de Loureiro, gente que nunca enriquecera mas tinha
casa de sobrado e alpendre desde o século XV. Com o tempo, degeneraram, sem
perder um acabamento polido como o que se dá aos móveis de alta marcenaria. Os
cabelos tornavam-se finos demais, os dentes ficavam acavalados, as mãos e os pés
reduziam-se. Mas tinham uma graça que é parente da morte que se tem por
perfectionista. Os Guedes de Loureiro, de origem bretã, eram todos indolentes, "uns
perdidos", no entender das formidáveis Paivoas, as irmãs de Carlos. Mas havia uma
inveja opiniosa nessas considerações. A inveja era o carácter das Paivoas; se a cobiça
não fosse o medo de não corresponderem ao respeito e apreço do seu público, elas
não eram senão sacos de tripas, como o senhor de Talleyrand.
Uma coisa Ema apreciava na casa de Vale Abraão: a varanda. Dizem que
varanda é uma palavra celta, que significa barreira. Talvez seja. Não se sabe porque
teve tão alto crédito na arquitectura rural e urbana.
É uma espécie de ventre que se projecta sobre a rua; é uma demonstração de
poder e afectação de desejos. Serve para cortejar o mundo e dar prova das condições
do indivíduo, comparando-o ao imaginário em que a sociedade cresce e perdura.
A varanda, tanto permite o olhar que avalia, até ser pecaminoso (a varanda
onde Goya instala a Celestina, velha observadora e profunda nas suas rapacidades,
encobre na sombra a virginal pécora, que se destina a ser descoberta para glória dos
desejos humanos), como serve de recreio às mulheres demasiado fechadas e
consumidas de obrigações. A varanda é mais sensual do que licenciosa. É um lugar
de aprazível pausa; enquanto que a reixa é uma forma de confessionário e um
obstáculo permissivo dos apetites.
A varanda de Vale Abraão, pintada de zarcão e em mau estado, sendo que os
barrotes de madeira estavam podres e toda ela em vias de ruína, conheceu, com a
chegada de Ema, um novo afecto. Ela deu-lhe serventia e até gosto que prolongava o
conforto do interior, abrindo para a sala nobre através de portadas com maçanetas de
porcelana e que Ema se apressou a mudar por outras, de vidro verde facetado.
Na varanda Ema passou os dias cálidos, com as filhas recém-nascidas no
regaço, Lolota, que era uma criança grande demais e que parecia atrasada; e Luisona,
a mais bonita, doce e tão sossegada que não chorava nunca, mesmo quando
contrariada ou doente. Ema perguntava-se que género de insuficiência ela teria,
lembrando-se que as Guedes eram todas estranhas e a própria mãe de Ema não tivera
dores de parto e, se magoada, não sentia nada, nem pelo fogo, nem pelo ferro. Aos
poucos, a memória dessa gente, insigne alguma dela, os do senhorio de Murça, por
exemplo, apagara-se. Ema não tinha particular respeito por eles; antes os achava um
peso nos seus ombros, que ela sacudia sempre que podia. Outras vezes, já quando
arrebatada pelas suas desastrosas aventuras, falava dos Guedes como se os trouxesse
no sangue e gozasse da sua investidura e grandes feitos.
Quanto mais sentia que descia no respeito da opinião, mais se vingava em
bater-se, tendo por parceiros os Guedes de Murça e os de Loureiro, de quem nada se
sabia senão que um deles morrera em Alcácer-Quibir e outro tivera amores no Paço.
Da varanda Ema ouvia o salto das bogas no rio e via os pescadores retirar os
muges mortos dos ceirões de ouriços que se acumulavam no fundo das margens
quando do tempo das castanhas. Ofereciam-lhe o peixe, ao passar no caminho; e ela
não respondia, pousando o braço na barra da varanda, deixando-se amar num olhar
de gula que lhe dirigiam os homens, pálidos das primeiras névoas de Outubro.
Vencidas as febres da dentição, livres já das doenças da infância, tanto Lolota
como Luisona foram muito requisitadas pelas Paivoas, que deram em ser mães de
papel e as levaram para Lisboa e as educaram quase de contínuo. Ema não reagiu.
Ficava livre para uma espécie de solidão que cultivava como uma promessa. Carlos
não a importunava; habituara-se a andar sem ela e a dispensar-lhe a companhia. Se a
senhora Semblano, da Caverneira, lhe pedia que a levasse aos jantares que dava todas
as primeiras quintas-feiras do mês, Carlos desculpava Ema. Chegava a dizer que ela
sofria duma depressão singular e incurável devido ao defeito da sua manqueira.
— Não a posso obrigar. É tímida e tem problemas muito complicados — dizia.
Mas como Ema atava relações com as pessoas mais desabusadas da região, ou
as mais excêntricas, Carlos Paiva caía no ridículo. Ultimamente ela visitava muito
Tomásia do Fafel, que era feia mas extraordinária em brios que só aos homens
competiam. Era caçadora e bom ginete; e foi a primeira mulher da alta a ter um filho
de solteira e a criá-lo à vista de todos, com honra e vagares de muita filosofia.
Gostava de andar pela serra em tempo de trovoadas e cheirar o enxofre das
descargas. Ema admirava-a, como admirava tudo que era desordenado e atrevido.
Carlos só conseguia viver em paz porque lhe tolerava todos os caprichos,
esperando que a idade fizesse de Ema uma senhora, já esquecida da época de
provocação que atravessava. Às vezes pensava que ela não era de todo normal; era
uma escapatória para não ter que se desiludir sobre si próprio. Ema usava a arma dos
profetas, que é assustar para obter atenção. O seu defeito, a leve manqueira, era às
vezes mais pronunciado, como quando estava mais perturbada e infeliz. E nunca
parecia coisa de que ela gostasse de privar-se; despertava, com a deformidade, uma
inquietação súbita nos outros, o que não poderia conseguir com uma presença banal.
A casa tomara um aspecto irrealista, introduzira nela modificações, como a
cozinha modelo, com balcões de aço e uma geladeira onde cabia uma pessoa de pé. A
cozinha modelo e o quarto de banho estilo anúncio de sais e sabonetes, ou mesmo
como lugar onde se bebe um whisky de malte, entravam nos costumes burgueses
com a embriaguez da promoção pessoal. Ema mandou fazer cadeiras de espaldar
alto, forradas de cetim branco, para a sala de jantar. Passou a adquirir quadros e, um
dia, dando de cara com o seu desenho de Minerva, mandou-o para o sótão onde
estavam também quase todas as prendas de casamento, taças para azeitonas com
colher de prata perfurada, e um serviço de louça aos raminhos. Quis pratos de prata
para marcar os lugares, e Carlos teve que desdobrar a sua cirurgia para pagar em
prestações essa extravagância. Mas tirava algum proveito dessas fantasias; corria o
boato de que Ema era muito rica e que herdara muitos bens de tios e tias. A confiança
tomava proporções sólidas, pois há uma conexão lógica entre as razões e os actos. Se
os Paivas gastavam assim, era porque havia uma fonte de rendimento por detrás. Não
sendo o volfrâmio e a emigração, motivos de riqueza já injustificáveis, restava o
favor político e as suas combinações redentoras. Mas Carlos fazia o seu trabalho,
dormia muito e confiava na sorte. Ema desempenhava um papel cada vez mais
excitante, embora não se lhe conhecessem aventuras. Os homens são gratos para com
as mulheres que servem de pretexto sem querer servir de prova.
Às vezes pensava na cândida nobreza do Romesal, nos quartos onde a castanha
se amontoava, no cepo à entrada da cozinha onde dantes se sentavam os mendigos e
que servia de degrau para o cardenho das mulheres. Parecia-lhe tudo muito distante e
não sabia se lhe interessava recuperar aquilo. A corte de mulheres, que a amavam,
que a penteavam lentamente falando dos amantes que estavam em África, dos irmãos
que voltavam e se drogavam. Morriam uns e outros no tumulto dos acontecimentos e,
passados alguns meses, não se falava mais deles. Enterravam-se os caixões com
pedras dentro, ficavam os corpos ao crepitar do sol abundante e justo. Um sol
kantiano, de acordo com a liberdade de todos e de cada um, para fazer germinar e
para fazer apodrecer. Ema perguntava às vezes por eles, os jovens maridos, os primos
que escreviam cartas um pouco fúteis, de não ter que dizer nem motivos morais para
o dizer. Ema soube por Ritinha que Nelson dera um tiro nele próprio para o trazerem
depressa para casa. As condições não eram favoráveis para o heroísmo, morria-se em
emboscadas, por simples azar. Francisco era piloto aviador, foi vender um avião
roubado a Pretória. Era inconcebível como ele se safava daquelas histórias, a não ser
que houvesse uma ordem que se opunha à razão de direito, que fundava um preceito
novo da razão prática; assim, era possível Francisco, que fora mau aluno do
seminário e filho extremoso da Mabília, entrar numa relação de conveniência em
tudo contrária aos princípios morais. Como ele nunca se filiara profundamente numa
regra de vida nem se importava com actos virtuosos senão como condescendências
aos transportes histéricos da mãe, não sofrera com a passagem a um mundo
sacrílego, mundo de crime em que nem sequer se vislumbrava a colisão de direitos:
tudo era possível se não era abolido pela morte. Ema sentia alguma fascinação por
esse mundo se pensava em Francisco, que, de resto, vivia impunemente a sua carreira
de piloto, convencido de que a força criava o direito, embora não se devesse
subestimar a eficácia natural que resulta dos contratos e do poder afectivo das
pessoas. Casara e costumava censurar a anarquia geral em que o país estava
comprometido.
Francisco era ainda um dos seus suportes sentimentais, um elo com a
juventude no Romesal e, de certo modo, um ideal de companheiro, fora de qualquer
intenção sedutora. Homens como Francisco podem ser, como ele era, inteligentes e
delicados, capazes de desempenhar um cargo com competência, mas totalmente
cegos à moral. Isto foi o que Ema conservou daquela lição que fora a sua convivência
com Francisco, no Romesal. Ele foi o seu protótipo que a infância absorveu com
singular paixão. De certo modo, era o protótipo da sua época.
Ema tinha ainda presentes as festas de Lamego, decorridas na concha do Verão
abismado no disco do sol, e lembrava-se das corridas de cavalos de amadores em que
concorria uma mulher: Tomásia de Fafel. Não era feia, mas só hombruna e desabrida.
Corria sem selim e sem estribos, e mesmo assim ganhava com grande avanço; numa
nuvem de pó branco Ema via-a, mal vestida com umas calças de algodão e calçando
sapatilhas. Tomásia era chegada às casas melhores da região, e teve um filho sem pai
conhecido que ela criou para lorde, deixando-lhe uma fortuna. Nunca se quis casar.
Era mais velha do que Ema um par de anos e representava uma casta de mulheres
que não sabem medir a força das suas paixões senão pela capacidade de as debelar.
Ema sentia-se mesquinha e insignificante face à fogosa personalidade da Fafel que,
na realidade, se chamava Maria Tomásia Bernardina. Essas mulheres originais
desapareceram cedo da face da sociedade, que não alimenta bocas ociosas. Aos
quarenta anos já ninguém falava dela; nem bem nem mal. Era um enterro sem
epitáfio, e Tomásia caiu num poço de silêncio onde se amarrou às antigas virtudes
raciais que desprezara antes. De resto, a revolução de 1974 sepultou essas vistosas
marcas de elegância feudal e substituiu-as pela devoção partidária. Não se admirava
mais ninguém, trocava-se o voto pelos benefícios do supermercado e os serviços
sociais. Tomásia via o filho crescer para a vida diplomática e sentia-se feliz em tê-lo
feito tão rico que o consideravam apto para ser tratado londrinamente, como um
inútil de carreira.
Esta Tomásia foi mais tarde confidente de Ema, quando a confidência era uma
operação indolor e não significava mais do que um derivativo da alma que ganhava
cabelos brancos. Viu Tomásia em Lamego, pela primeira vez. Na romaria de
Lamego, Branca contara-lhe que perdera a virgindade e um brinco de bolinha. A
mata, como o bosque de Arícia, guardava segredos que não cabiam no eucológico
pastoral. Era imensa, de grande poder testemunhal quanto a prazeres e a seduções.
Três quartos das raparigas da região tinham passado por lá com mais ou menos
objecções e proveito. Até Carlos, que se podia nomear como virtuoso, que é uma
palavra indizível para homens triunfais, levara à mata dos Remédios duas
enfermeiras com quem teve amores passageiros ou simples entrevistas que o
garantiram na lista dos licenciosos da família hospitalar; o que era falso, porque
Carlos nunca conhecera a virulência das paixões da adolescência, e como rapaz
adulto nem sequer era sensível às coisas malsãs que às vezes corrigem os efeitos das
coisas sãs. Não era um Tartufo, mas desprezava as condições falsas do amor
clandestino. A imaginação não era o seu forte, e ele dava mais ouvidos ao orgulho da
sua consciência de quadro.
E, além do mais, Ema bastava-lhe. Amava-a com a teimosia que as pessoas do
campo põem nas coisas da sua propriedade; não se via como infiel, assim como não
se veria ladrão ou falsá-rio. Era uma questão de desconfiança por caminhos que não
cabiam na sua aritmética existencial. Há coisas que se aprende serem para os outros,
e isso permite um domínio dos nervos e um toque de má fé para com o género
humano. Estamos senis quando nos consideramos definitivamente amadurecidos.
A partir dos sete anos de casamento, Carlos tornava-se, sujeito a desesperos
brutais com respeito aos colegas mais bem situados na carreira ou que tinham subido
muito depressa. Atribuía-lhes carácter duvidoso e um comportamento dúbio e
corrupto. Não perdoava as menores faltas, sobretudo aquelas que podiam significar
para ele qualquer humilhação.
Encarava a vida do ponto de vista do defunto, como disse Simona um dia,
olhando-o com não se sabe que celerados pensamentos. Carlos tinha-lhe medo mas,
como era mais forte do que o medo a passagem curiosa pela casa das Jacas, perdia-se
entre a repulsa e a atracção daquela mulher.
Quase por efeito duma soma de desesperos conjugais que não chegam a
significar um desgosto, mas só a inibição do próprio desgosto, Carlos começou a
entrar nas Jacas com uma naturalidade "branqueada". Como dinheiro de origem
crapulosa entra num banco e sai limpo das suas máculas. Ele queria chegar ao fundo
dum enigma, Ema, que ele não ousava interrogar nunca, sob que pretexto fosse.
Constituíam um casal feliz, com vidas um pouco separadas e sustentadas por uma
tonalidade irónica que diz bem a todos os casais. A ridicularizar-se esse limbo
premeditado do casamento, consegue-se iludir uma consciência abissal dos seus
perigos. Eram desconhecidos bem intencionados, interessados num sonambulismo
em pantufas que partilhavam, não partilhando mais nada.
Quando, pela mão do marido, Ema entrou na casa das Jacas, aparentemente
não fez mais do que uma visita de cortesia. Era um jantar simples, mas tão bem
organizado e servido, que despertou em Ema uma fascinação singular. Simona estava
vestida como se acabasse de alinhavar o vestido que lhe caía com uma
sumptuosidade merecida. Era magra, e a sua nudez não devia resultar muito
atractiva; mas havia nela um desprezo pela felicidade mesquinha, e a sua beleza era
apenas isso. "Como é? — disse Ema — Ela percebe que todos nós estamos aqui
reunidos à custa de mutilações terríveis." Recuou para o fundo do seu cadeirão, e um
frio viscoso percorreu-a.
Nessa mesma noite declarou a Carlos que Simona lhe desagradara e que
achava o marido dela uma espécie de corvo, à cabeceira da mesa, crocitando.
— Não percebi nada do que ele dizia. Tem uma cultura acima do vulgar, mas
tem também qualquer coisa de criminoso.
Carlos, que desatava os cordões dos sapatos, mostrou-se distraído com essa
operação. As conversas de carácter íntimo causavam-lhe apreensão e até medo. Mas
gostava de proporcionar a Ema ocasião para ela desenvolver as suas aptidões,
oferecendo-lhe um luxo de imaginação que ele próprio não era; capaz de lhe dar.
Receava talvez perdê-la se ficassem demasiado a sós. Por isso, em dado momento,
foi tão importante para ele sair com amigos e entabular novas relações, arrastando
Ema com ele, como a vítima para o holocausto. A casa das Jacas parecia o local
apropriado para nele se efectuar um sacrifício: para que o amor de Carlos por Ema
fosse degolado e daí resultasse um renascimento. As paixões têm que ser feridas de
morte para atingirem a encarnação de qualquer outra relação humana, como a que a
cultura proporciona ou o dinheiro admite. Há uma história de bestialidade vencida
em todo o sucesso dum argentário ou dum filósofo.
Carlos percebia que Ema estava perto de cometer uma loucura, e achou que
devia premeditar outra loucura mais conforme o plano da família. Deu-lhe a escolher
Pedro Lumiares, que era, no seu entender, um robot com vantagens sobre os outros
homens: sabia falar de amor. Era de Pedro Lumiares que Ema precisava para não se
sentir inferior à casta de mulheres amadas. Duma maneira astuta, mas sem grandes
prodígios psicológicos, Carlos conhecia Ema. Amava-a, mas era irredutível a
qualquer originalidade; como o amor é e será sempre. Como conservar Ema, até que
o sexo se tornasse menos vingativo, era a sua preocupação. Chegara ao ponto do
casamento em que o consentimento da mulher é pior do que a recusa; é uma
saciedade ainda inocente. Percebia que Ema estava prestes a cair nos ciúmes
persecutórios que são afinal um desânimo do amor. Já lhe fazia perguntas
intempestivas, lia-lhe as cartas, tentava encontrar-lhes um sentido dúbio e
comprometedor. Estava alterada, tinha crises de indolência, não se vestia durante dois
dias. Depois arranjava-se de ponto em branco, pintava-se como se fosse pisar um
palco e descia a escada com passo desafiador.
As filhas olhavam-na maravilhadas, e Lolota, que era um pouco parada,
balbuciava:
— Como tu estás linda!
— Como tu és tola, minha filha!
Não amava as crianças, mas queria-as bem tratadas, servidas, mantidas com
luxo para não destoarem da casa e dela própria que parecia um quadro, como Ritinha
dizia por gestos largos e espaventosos. De facto, a beleza de Ema tornara-se tão
evidente que causava uma espécie de paralisia. Aquilo que se não critica desenvolve
uma obediência capaz de, para encontrar saída, cair noutras reprovações. Ema passou
a ser pasto de maledicência e ainda não tinha feito nada de condenável. Foi nessa
altura que lhe inventaram o título de madame Bovary.
— A Bovarinha — disse Lumiares, divertido. Nunca tinha reparado nessa
mulher senão para comentar consigo mesmo que ela era bonita demais para as suas
posses. A beleza que não se ajusta aos meios que a garantem entra no temor de
ofendida. Para provar esse pensamento, na linha das suas denúncias morais,
Lumiares convidou Carlos e a mulher quando deu o baile; foi a última vez que se
abriram os velhos salões das Jacas. Depois a Revolução mudou tudo, fortunas e
paisagens. Lumiares e a mulher deixaram de receber e fecharam-se para o mundo.
— Eu — disse Lumiares — orgulho-me de ser um robot bem afinado, muito
além do meu século. E do meu sexo. — Ele riu-se.
A mulher ouvia-o com uma deliciada frieza; percebia-se que eram
inseparáveis, mas que se privavam um do outro no que em geral as pessoas julgam
ter em comum: os desejos, que tantas informações falsas dão sobre a pessoa.
Lumiares e Simona eram pessoas duma espécie incalculável, em contraste com os
casais que eles consideravam apenas como um sonho fantástico. Na casa das Jacas,
tão solitária como convinha àquele par "colado à parede", como dizia Lumiares,
quase não se sentiam passos. Às vezes, uma porta fechava-se devagar. A um lado, no
terraço, estava um velho Buick que se ia desfazendo sem que servisse senão para
abrigo dos gatos vadios.
Uma criança passava, de raspão, sem se deixar ver bem, filho ou filha dos
caseiros e, como eles, com um subtil passo de veado, que os levava como que para a
densidade do bosque silencioso. Lumiares aparecia à entrada, alto e desengonçado,
sempre com um livro na mão; o portão ferrugento estava entreaberto, mas, se
reparássemos, uma cadeia de ferro impedia a passagem. Parecia que as Jacas estavam
sob o efeito dum feitiço; os caseiros, ao menos, diziam isso. Mas não. Lumiares era
um sábio, à sua maneira, e tinha uma disposição íntima para uma letargia quase
semelhante a um estado de senilidade.
Foi ele que quase levou Ema pela mão à casa da Caverneira e a apresentou,
antes de Carlos pensar nisso. Mas Carlos acompanhou-os. As vinhas, com oliveiras a
cercá-las, estavam carregadas ainda da uva de mesa, a última a ser cortada. Foram a
pé, a distância era curta, bastava subir uma estrada entre bardos; a noite não caíra
ainda. Ela sentia-se tremer no vestido de seda clara, que Lumiares escolhera para ela.
Dera-lhe instruções de como devia vestir-se, era como se a preparasse para cometer
um crime.
— Tens frio? — disse Carlos. Ela negou, mas chegou-se ao braço dele, e sentiu
com indignação o cheiro do seu tabaco vulgar e da loção da barba, uma loção de
anúncio, quase pestilenta. Ele nunca se habituaria a gastar, embora fosse já rico e
fizesse operações bancárias bastante avultadas. Dizia-se que extraía mais lucros do
jogo da Bolsa, do que pedras das suas vesículas. A fadiga tornava-o macilento e
envelhecido. Além disso, nunca dançara na vida, a não ser um twist nas festas de
curso, com colegas ligeiramente embriagadas que o tratavam como irmão. Ela
lembrava-se: que fora ele fazer àquele baile, com o smoking apertado nas cavas e os
sapatos de grossas solas de celeiro? Por economia não comprara outros, de
polimento. Ema pensou que iam dar triste espectáculo da sua mediania, e carregou o
semblante; isto fê-la parecer altiva e favoreceu-lhe o rosto miúdo, os olhos largos
puxados para as fontes.
No meio de tantas mulheres desenvoltas e picantes, que, no seu meio,
parodiavam as mulheres galantes e até as rameiras, Ema sentiu-se ignorada. De facto,
davam pela presença dela, mas seria abrir uma brecha no baluarte de defesa, se o
manifestassem. Pedro veio em socorro dela, e nunca Ema percebeu melhor as
incoerentes fases da amizade, fabricada às vezes por intermédio duma infelicidade
imediata. Estava apavorada e aceitou a companhia de Lumiares com uma sofreguidão
que a ela própria surpreendeu. Carlos deixou-a entregue e foi beber o seu whisky
aguado que ele recomendava como vaso-dilatador. Ema disse-lhe, em voz um pouco
alta demais, que fosse prudente.
— Ah, sim, está descansada. — Ele sorriu, ternamente tocado por aquele aviso,
e ficou um momento mergulhado na doce persuasão de que aquilo era uma
demonstração de amor da parte duma mulher bonita, a sua mulher. Pedro Lumiares,
com o laço meio desfeito, que ele usava para se distinguir, os míseros papillons hirtos
e prontos a servir, encaminhou Ema para um canto da sala onde um grupo ria de
maneira hilariante, com esse riso de província, bem humorado e abençoado pelo
patrão da casa, o parente rico com quem é possível fazer graças. Imediatamente
tomaram Ema como centro de apetites velados por uma malícia irreflectida.
Lumiares disse:
— Calem-se lá! Vocês não têm órgão espiritual, e os outros não são assunto de
conversa diante de senhoras.
— Ó Lumiares, as senhoras são uma ideia que já não é deste tempo. Usas
chapéu de plumas e gola de renda? Não.
— Há quem use. Satanás usa, mas vocês que sabem disso?
— Ora esta, Satanás! Ele que disse? Vais falar das forças do mal? Eu fujo —
disse um rapaz franzino, de olhos claros. Chamava-se Fernando Osório e tinha uma
quinta na foz do rio Tedo; estava arruinado, e isso dava-lhe direito às suas fantasias
abusivas. Mas arruinado, para um Osório, era estar enterrado em ouro até aos joelhos
em vez de nadar nele.
Lumiares deu por acabada a conversa e levou Ema com ele. Quisera só mostrar
que ela lhe obedecia e que dispunha da sua beleza, embora não a desejasse.
Nesse ponto, ele sofria por não amar as mulheres, inclusive a dele. Para dizer
doutra maneira as mulheres eram o que ele menos amava, embora as tomasse a sério.
Elas retribuíam-lhe com reconhecimento, porque preferiam ser levadas a sério, a ser
amadas. Desejadas, sim, que riam ser; e alimentavam essa condição satânica nos
homens que era o desejo indestrutível, dócil, afogado na escravidão que tem algo de
espiritual porque, ao servir a matéria, projecta para além dela o fantasma da sua
alma.
Lumiares entendeu depressa que Ema tinha a capacidade, muito rara, de
iluminar o desejo e fazê-lo correr como um fogo fátuo sobre os cadáveres da
virilidade mítica e obstinada mas, de facto, sofredora, dos homens. Ele podia
aproveitar Ema no sentido de subornar os outros homens. Era só questão de a
oferecer e distribuir em doses proporcionadas e ligeiramente venenosas. Agora
tratava-se de a fazer gozar o baile, mostrar-lhe os primeiros passos na ambição,
começar a produzir a obstinação que principia com a melancolia duma alma sem
corpo. E Ema, embora tivesse um corpo delicioso, estava separada dele por uma série
de tristezas, umas fornecidas como educação moral, inflexível às maquinações dos
apetites, outras exploradas no sentido de manter até à morte a mulher amorosa,
visionária duma felicidade incorruptível.
Fê-la andar pelos salões, três salões com tectos brancos, debruados a ouro, e
onde se dançava alegremente. Algumas raparigas usavam sapatos de ténis para se
destacarem da formal toilette de noite; mas não eram por isso menos soberbas, e os
vestidos compridos eram caros e bem cortados. Quando Ema passava, seguiam-na
com um olhar de repente batido e cansado. Reconheciam nela uma irrealidade que
produz a capacidade do sofrimento para quem a descobre. E aquela pele ligeiramente
cinza, onde brilhavam os olhos castanhos, sem lamentação e sem medo, fazia com
que, de repente, se aliassem com ela. Os rapazes sentiam, de imediato, um ciúme
profundo; e tratavam de as cortejar, profundamente.
Tal era o efeito que Ema causava. Sentia-se feliz, mas também surpreendida
com tantas emoções, entre as quais se destacava um desejo absoluto e constante.
Tudo era inferior ao seu desejo e, ao mesmo tempo, tudo lhe parecia inatingível. Tal é
a força do desejo, que mais imagina do que consome.
— Está feliz, Ema? — perguntou-lhe Lumiares.
— Sim, estou — Mas deixou-o ignorar aquele tormento que se ia tornar
familiar, a avidez permanente para uso da sua fome de luxo. Não só de luxo, mas de
oposição ao vazio, à castração de que a ameaçava a vida conjugal e a sociedade no
seu conjunto. Uma imensa vontade de lesar, de fazer mal, levantava-se nela como
uma onda de frescura, de vitalidade. Voltou para casa pelo braço de Carlos, deixando
que a cauda do vestido se esfiapasse no areão do jardim.
— Olha que estragas a saia — disse Carlos, meio repreensivo. Ela parou, não
deu resposta alguma. Depois olhou para o céu escuro e coalhado de estrelas.
— É uma coroa por cima da minha cabeça.
Um sentimento negro, que lhe aparecia em toda a sua limpidez e grandeza,
revelou-a nesse momento único de sinceridade. Quando acordou, no dia seguinte, o
quarto pareceu-lhe pobretão e a cama de bilros desproporcionada nas quatro paredes
exíguas sobre a alcatifa que tinha manchas da papa das crianças. Ralhou porque
descobriu uma nódoa de café na dobra do lençol. Durante oito dias quis que se
tomasse o primeiro almoço na sala de jantar, preparando um bufete com ovos e
fiambre. Resultava caro e ninguém apreciava. A fruta cortada não tinha mais proveito
e acabava por ser deitada fora. Carlos reprovou aquilo timidamente. Gostava de
almoçar no quarto, fumando depois o primeiro cigarro, antes de fazer a barba. Ema
mostrou-se, de repente, incompatível com esse hábito, falou em ter quarto à parte.
— É mais saudável e não tenho que acordar quando chegas tarde. — Foi um
golpe para o marido.
Amava a intimidade da mulher, a carne nua, a carícia que o sono torna pueril;
amava o todo desejável que completa a vida conjugal, a conversa de cama, a
felicidade de berçário que se respira num quarto de casal nas horas em que reina uma
ordem espiritual, de paz profunda, ininteligível, em que todas as humilhações ficam
ofuscadas, em que o orgulho negro de amantes desaparece. São apenas dois seres
inocentes, a alma é o risco proposto pelo corpo, mas um risco suspenso e reduzido
apenas a uma ferida secreta, adormecida. Ema manteve a ideia dos quartos
separados, mas seria preciso fazer obras na casa e reduzir mais as proporções da
entrada, já assim acanhada. Preferiu deixar as coisas como estavam.
Mas um sem número de caprichos assaltaram-na. Quis viajar, mas não tinha
paciência para correr as estradas nem admirar catedrais. Ficava, sedenta e irritada,
nas esplanadas, a beber, como um homem, um whisky puro ou um café muito forte.
A beleza de Ema era notada, ela parecia ofendida, saía de rompante; Carlos tinha que
levar-lhe a bolsa e os óculos de sol que ela abandonara.
Outras vezes gastava doidamente em produtos de maquilhagem, pintava-se
como uma actriz, usava cabeleiras e pestanas postiças. Tinha o ar duma deusa
egípcia, os enormes olhos rasgados pelo lápis negro, as sombras azuis das pálpebras
a carregar-lhe o olhar. Voltavam-se para a ver, Carlos começou a receber indirectas
dos colegas, outros mostravam um empenho insinuante em frequentar-lhe a casa, e a
mulher. Ele tinha ciúmes mas guardava recato e, sobretudo, não deixava perceber a
Ema quanto o afligiam as suas fantasias e como ela o fazia sofrer. Chegava a perder o
interesse pelo corpo de Ema, de tanto que a via exposta ao desejo dos outros homens.
Só confiava em Pedro Lumiares, e pedia-lhe humildemente que se ocupasse de Ema.
Vagamente, deixava perceber que ela era frígida e que não era ameaça para os casais
bem ligados. Pedro ouvia-o com alguma reserva; os princípios incoerentes que
Carlos manifestava não deixavam de o preocupar.
— Que quer dizer com os casais bem ligados? Por acaso o casamento é uma
maionese? Deve ser. O dele destalhou e não sabe o que há-de fazer.
Simona, sempre agachada no chão a limpar calçado ou a mudar plantas dos
vasos, não respondeu. Os cabelos lisos cobriam-lhe a cara e não se via a expressão
que ela tinha, possivelmente não estava interessada senão em dar brilho aos sapatos,
fazendo entrar a graxa nos finos vincos do cabedal. Simona sempre fora educada para
não temer as rivais. Não era capaz dum pensamento virulento contra ninguém, não
por generosidade mas por coesão indestrutível com o seu próprio meio. Tudo o que
acontecia fora dele não lhe dizia respeito.
— Que vou fazer, não me dizes?
Simona levantou a cabeça e olhou para ele com aqueles olhos pálidos, nobres e
incapazes de ironia. Às vezes, Pedro Lumiares achava-a poderosa em demasia e, por
isso, fechada numa espécie de letargia. O duelo com Simona era impossível; o amor,
com o seu infinito comportamento batalhador, era impossível.
Sentiu uma tentação quase dolorosa de conhecer de perto a história
contemporânea dos seus vizinhos. Carlos parecia esperar dele auxílio. Mas que
espécie de auxílio? Via-se a braços com uma mulher que se lhe opunha inteiramente,
como uma mulher faz quando está possuída de forças sobre-humanas. Enfeitiçada,
possessa, como se dizia em tempos mais experientes e em que o fogo era um recurso
contra a resistência da matéria. Pedro Lumiares foi ver Ema.
Encontrou-a pronta para sair, como estava sempre, tendo umas luvas de
conduzir nas mãos pequenas e que, Pedro reparou, não eram bonitas. Esse pormenor,
que escapava ao milagre de tanta beleza, tranquilizou-o.
— Venho falar consigo — começou, sem preâmbulos. — Para principiar, acho
que está a passar-se consigo o que se chama a febre da ascensão. Não tem asas, nem
poderes sobrenaturais, e não quer arriscar-se a atirar-se dum quinto andar porque
acredita na lei da gravidade. Em suma, precisa dum psiquiatra ou dum amante.
— Está muito enganado. Essa ideia imbecil de que tudo se resolve com uma
queda ou com um banho frio! Não é assim tão simples.
Ela pareceu derrotada por ter usado palavras duma urgência que lhe repugnava.
Ofereceu-lhe lugar no sofá, mas não se sentou. Aborrecia-a que alguém a perturbasse
tão pacatamente quando o seu estado era o de alguém que sabe ter a vida por um fio.
Que se pode dizer a alguém, nesse caso? Não podia explicar-lhe que uma mulher, ao
ser engendrada no ventre da mãe, está já marcada para o insucesso. Enquanto o
homem trata de se aplicar à vida por diferentes meios, a arte, a guerra e os: negócios,
a mulher não tem hipótese de escapar ao braço de ferro que acabará por destruir
todas as suas partículas. Ela sabe que está protegida da matéria exterior pela
manipulação dosl sentidos e pelas fraudes da oposição a si mesma. Mas tudo é inútil.
Ema usava para com Pedro o método que se usa para com os doidos: a
simulação. Discutiam de maneira inteligente, mas] nada daquilo se ajustava à
realidade. Para Ema, tratava-se dum profundo fracasso que ele, como homem, não
podia compreender. Ema dava-lhe conta dos seus movimentos, que apenas atingiam
um raio muito breve dos seus objectivos; como comprar um objecto caro, mais uma
vez imitar a independência económica e, com ela, toda uma independência física de
que o casamento a privara. Cada vez estava mais distraída dos seus deveres, Carlos já
não sabia como falar-lhe, e as filhas escapavam dessa instabilidade com promessas
de compensações, mais livros ilustrados, mais aparelhos de vídeo e mais roupas de
marca. Já não suportavam nada que não fosse garantido por um estilo, eram criadas
para ser belas e decorar uma empresa como dantes se decorava um harém.
Ema, quando cruzava com Lolota, que era tímida e assustada, pensava, como
uma treinadora, o que poderia ser feito por ela no sentido duma carreira. Mas Lolota
só tinha dez anos, era melhor não se preocupar demasiado.
Não se preocupar era o estribilho de Ema, que, entretanto, aumentava as suas
queixas, nunca estava em casa e arranjava divertimentos novos. Carlos via-a sair com
estranhos, quase implorava a Pedro Lumiares que travasse aquela vadiagem sempre
justificada com ocupações que se multiplicavam. Ia ao Porto pentear-se e fazer
ginástica aerobiótica. Era tudo bastante inocente; Pedro Lumiares dizia que as
mulheres professavam no seu quadro de criatividades, como dantes professavam num
convento. Mas Carlos não ficava convencido. Para ele, Ema tinha amantes e, o que
era mais grave, podia a todo o momento abandoná-lo. Ignorava que os homens se
tinham tornado completamente ofuscados pelo jogo dos determinismos, e a paixão já
não tinha para eles o mérito dum acontecimento. Uma beleza como a de Ema não era
vista como uma revelação dalguma coisa inspiradora. A época tudo absorvia, não
havia em circulação obsessões que produzissem o amor lírico; os prazeres da
hipocrisia superavam os prazeres do leito. Não havia sequer sensibilidade para um
ciclo histórico, que se fecha: como a batalha de Alcácer-Quibir ou o cerco de
Leninegrado; ou Waterloo e Trafalgar. O peso das instituições e a transferência rápida
das classes impediam os sonhos, calculados ou só românticos, das pessoas de cultura.
Havia toda uma composição de atitudes novas sobre o dinheiro, a doença, a vida
sexual. Não se vivia para ser feliz, para suportar uma angústia, para medir forças com
o destino; vivia-se para entrar numa estatística.
Ema queria saborear ainda um horror qualquer, detestar o marido medíocre e
fora das leis do sucesso; amar um desconhecido que encontrasse na gare, enquanto
ela, por detrás dos vidros da carruagem, pousasse nele os olhos profundos, como se
não quisesse mais acabar de olhar para ele.
Quem era? Onde vivia? Ema pensava que podia amar assim, mas logo era
interrompida por um telefonema, tinha hora marcada no massagista, passavam-se os
modelos de Primavera num hotel, ela tinha que correr, beber o seu Campari, ir à
garagem buscar o carro, ficar presa no engarrafamento das sete da tarde. Chegava a
casa desfeita, comia um bacalhau com natas já repousado, abria os convites para
exposições, concertos e sessões de animação ou recepções consulares. Nem sequer
estava ao par do serviço da casa, as criadas pareciam todas iguais, só as batas lhes
assentavam melhor ou pior. Já não se lembrava de ter despedido uma criada; elas é
que saíam, nervosas, fartas, cheias de exigências com que superavam a sua
necessidade de mudança e as catástrofes da insedução de tudo.
Quase sem reparar, Ema aceitou a corte de Fernando Osório, e deixou-se
conquistar a ponto de pensar em separar-se e começar outra vez com um homem rico,
comprometido na política e que tinha alianças apreciáveis. Ele divorciara--se e tinha
três filhos a estudar. Ema pediu a Lumiares informações.
— É um parvo e bebe muito — disse Pedro, pondo de lado o livro e tirando os
óculos devagar. Ema tinha chegado às Jacas como um furacão e deitou para cima do
tapete o casaco vermelho forrado de peles pretas. Mostrar desprezo pelo luxo
parecia-lhe dum refinado gosto. — Como é? Andas a dormir com ele?
— Não, estás doido. Não é isso.
Mas confessou que Fernando Osório lhe soltara as alças do vestido, uma vez,
na piscina, à noite. Não estava ninguém, e a água negra brilhava com pequenos
sulcos como se fosse agitada desde o fundo.
— As alças do vestido? Não deixes fazer a nenhum homem o que podes fazer
sozinha. Doutro modo, nunca te vais emancipar na vida. Que queres dele? É um
unhas-de-fome e tem três filhos como três carraças, que lhe levam tudo.
Acho que comprou no nome deles os prédios no Porto. Gasta com eles o que
tem e o que não tem, para os subornar. Onde o conheceste?
— No baile, aqui mesmo. Foste tu que mo apresentaste.
— O baile. Só sabes falar desse baile. Parece que não te aconteceu mais nada
na vida. Foi como o primeiro Congresso para um médico da Assistência. Melhor:
para uma médica da Assistência. O Fernando Osório é burro. Nem sabe quem
escreveu Os Lusíadas.
— Para ti não há ninguém que preste, ninguém que valha nada. É um
desespero falar contigo.
Ela baixou-se para pegar no casaco, um pouco corrida, sem saber como manter
as suas propostas de vivacidade e de audaciosos amores. Lumiares cortava pela base
o que ela tinha por seguro e, mais ainda: impedia-lhe imaginar afinidades com
qualquer coisa de provocador. Não era a concupiscência que a movia, era a
provocação que dela se socorria, o que a lançava no seu romance com Osório, ou
com outro.
Levou por diante essa história, uma história dum julgamento em que, de
antemão, o réu, o amante, estava condenado. Enquanto o amou, não deixou de
acumular na memória factos que pudessem um dia servir para instruir-lhe o processo
e para o levar ao fracasso. Isto era nela o contraponto da ânsia de poder que os
homens lhe ensinavam. "O amor tem má memória" — dizia Lumiares. Mas estava
desconcertado; via Ema agir fora das suas instruções, dos seus panfletos contra o
sentimento inculto do heroísmo. O que Ema propunha era sair do seu papel de
desapontamentos feitos de opções ligeiras, ocupações duma nova integridade, a
distribuição do tempo na sua vida que já não era materna nem marital; era uma vida
com espaços que era preciso preencher com horários, esperas, encontros, boletins,
para ser comparável a uma profissão e um cargo.
Mas a arte da liberdade, que qualquer pessoa obscura inventava, a arte de
agradar que não era a intenção de conseguir uma clientela, isso tinha desaparecido.
Que heroísmo havia nessa bonita mulherzinha que, se nem todos evitavam, muitos
deixavam no seu canto porque ela era o que menos sugestiona o pagão civilizado —
era uma desconhecida? Simona deixava que ela entrasse e saísse da casa das Jacas,
porque a considerava inofensiva. Lumiares nunca ia ficar tocado por ela, uma vez
que só a libido livresca lhe interessava. O que não fosse escrito, passado pela
ortografia correcta, fazia-o bocejar. Quando estava com ele na sala de entrada, Ema
ouvia os pés nus de Simona no corredor esteirado; ou ouvia-a lá fora regar as flores,
deixando correr a água nas lousas, muito tempo, como se esse desleixo fosse
interromper o colóquio deles. O que decidira a intimidade de Ema com as Jacas fora,
antes de tudo, a vizinhança e também o assombro incutido pela grande fachada
escurialesca da casa velha. Havia outro edifício nas traseiras, datado dos anos
quarenta e que representava uma euforia financeira, a última, dos Lumiares. Era um
piso térreo, confortável, combinado com um estilo que fora audacioso e que
subitamente envelhecera e que parecia subsistir apenas nas comédias de Hollywood.
Tudo se degradara, mas era ainda bela a porta de ferro forjado e o quarto de Simona
todo em palissandro, a cama sobre um estrado alcatifado.
O que impressionava mais era a avenida dos plátanos e a ruína insidiosa dos
espaços entregues ao movimento das estações. Ouvia-se, claro, o apito dos comboios
do outro lado do rios; e um bater de barcos no ancoradouro da Caverneira, que tinha
sempre duas lanchas ao serviço dos hóspedes em trânsito para o Moledo, defronte.
Ema deixou-se deslumbrar pela grandeza secreta dos lugares, esse Vale Abraão,
derrotado, mas soberbo, com o seu padrão de demarcação ao canto do caminho
solitário. Achou que não era tolice amar todo esse adereço de riqueza, que lhe dava
esperança para ela própria ser candidata a qualquer forma de glória.
Depois, Pedro Lumiares revelou-se um bom conversador e um mestre que lhe
serviu para não ter de se ignorar a ela própria. Foi ele que lhe chamou a Bovarinha,
com o desprendimento senhorial de quem põe nome a um cão. E, ouvindo-o,
rapidamente Maria Semblano divulgou a alcunha, sem esquecer retirar-lhe o fel da
maledicência. Era uma brincadeira, embora cruel, mas não mais do que isso. Ela
achava-se por demais senhora da sua vontade, para se diminuir com a malícia.
Que podia fazer Ema quando estava presa numa era de alquimia sentimental,
meias verdades e paixões difusas? Queria amar e repartir-se em amor profundo, sob
qualquer pretexto, sendo o conjugal o menos a propósito. Carlos Paiva teria preferido
que ela passasse dez anos de infidelidade, junto dele, sem o incomodar muito,
recebendo bem os amigos e dando às filhas um bom exemplo entre os notáveis,
guardas da sua imagem, pecadora mas não funesta. Quem ia levantar o véu das suas
escapadelas, tocar abertamente nos seus prazeres que garantiam a mensagem
libidinosa em circulação? Mensagem que era ao mesmo tempo implacável e
saborosa; que permitia a visão duma aliança de grupo muito mais vasta e profunda
que os elos familiares e as combinações parentais.
Mas Ema estava pronta a estragar essa rede de boa vizinhança com algo de
revelador, longe de qualquer cumplicidade. Ela queria amar duma maneira heróica,
abusiva, selvagem. O amor assim é blasfemo. A emergência dum amor pessoal, que
levanta a suspeita antiquíssima da feitiçaria, era insuportável e era iníqua. Porque a
sociedade cada vez mais procura estar precavida contra a paixão cega que sintoniza o
desejo de dominar a morte, de deter o envelhecimento, de prolongar o prazer carnal
como um direito divino. As multidões têm que estar cada vez mais submetidas,
capazes de optar pelo fim sem sofrimento, desaparecendo modelarmente nas rampas
que conduzem à morgue e aos fornos crematórios. Rapidamente, sem deixar
vestígios.
Entretanto a permissividade, tanto mais efémera quanto não é consultada a
sensualidade do indivíduo, empobrecido nos elementos naturais que a sugerem, é
imposta como uma nova alquimia fáustica. Os limites do prazer parecem ser
vencidos e levar a melhor sobre a autoridade de Deus. Mas o que na realidade
acontece é que o homem se distancia do desejo, não habitando mais a sua alma que
se alimenta da paixão pelo absoluto. A imediatez técnica basta-lhe, os segredos da
volúpia não lhe interessam, parecendo estar desvendado com o texto duma pedagogia
sexual.
Ema adivinhava que, nela, a obsessão do prazer era muito mais do que uma
história de costumes. Subitamente entregou-se a uma espécie de doença que estava
enraizada na insatisfação profunda do seu ser. Julgou que a libertação sexual a ia
curar, mas durou pouco esse convencimento. Desde o primeiro momento em que caiu
nos braços de Osório, percebeu uma coisa: ele não ia senão tentar deslumbrá-la com
palavras, como de resto Pedro Lumiares fazia, à sua maneira fáustica.
Os primeiros tempos foram compensadores, tendo em vista o esforço poético,
o lugar, a quantidade de liberdade concedida à sua imagem social. Osório levou Ema
para uma propriedade que tinha na região mais solitária do Douro, e ficaram sós três
dias. Era tenebroso o rio, altas paredes de granito negro modelavam as águas; e eles
saíam na lancha a motor, das margens nem viv'alma os podia surpreender. Só, ao
longe, uns restos de muros, que foram em tempos casa de pequenos fidalgos
arruinados pela filoxera. Ainda se viam as vinhas devastadas, como dentes podres na
fauce da montanha. Tudo era silencioso, e as águas, mais profundas pela descarga das
barragens, deixavam suspeitar um abismo mole, de lodos que se acumulam e que a
corrente não logra vencer. Ema sentia-se abordar por um pequeno atentado de
loucura; a loucura que todos trazemos connosco e que precisa só dum composto de
representações humanas, a suspeita dum crime, uma troca de libertinagem, uma
companhia do desencanto, para se manifestar. Ema estava feliz, Osório não a
decepcionava. Era um homem de boa índole e estava apaixonado.
Aqui podíamos manifestar um gosto de bordel privado, como acontece quando
o amor se torna assunto educativo. Mas, à parte o despertar, às nove da manhã, em
que o mordomo Caíres intervinha, levando ao quarto um almoço de chá e torradas,
não se passava nada de escandaloso na casa do rio. É verdade que, debaixo do
mosquiteiro de tule, que o mordomo ia descer à tarde, pondo novas toalhas nos
toalheiros, podia surpreender os amantes nus, mas, mesmo assim, decentemente
velados. Caires, só quando a cozinha estava arrumada e quando a mulher se recolhia
aos quartos exteriores, que tinham nomes como Vintage e Tawny, para melhor os
situarem, é que ele contava aquelas cenas íntimas de que não era grande apreciador.
Gostava muito mais de dinheiro e tinha um jeito rapace de receber as gorgetas,
fazendo-as desaparecer no bolso da farda de sarjão branco, com ferrugem na base dos
botões de latão. Ema vestia todo o dia um macacão azul deslavado e lançava-se em
corridas no barco a motor, os cabelos desfeitos e um riso quase feroz na linda boca. O
perigo e as coisas um pouco desabusadas agradavam-lhe, como se provasse ao
experimentá-las o seu lado exasperado de rapaz de liceu, uma virilidade capaz de
proezas como doutras tantas seduções para mulheres. À noite, porém, Ema dava
largas ao seu luxo de interior, vestia grandes roupões com laços e golas de rendas,
mostrava, nos decotes profundos, um deslumbrante clarão de seda, que era a sua
lingerie dum preço exorbitante. Jantavam à luz das velas, Caires servia, a chama
amarela a reflectir-se na sua cabeça calva.
— Não parece um espião russo? — murmurava Ema. O olhar saciado acendia-
se com os vinhos quentes e adamados. Não pensava se era feliz; aquela história
picante e deliciosa de gosto, com boa comida e a preguiça de férias, deixava-a
agradecida, um pouco enervada, também. Telefonou para casa, Carlos estava fora; as
crianças alegraram-se, contaram as doces banalidades do dia.
— Tenham juízo. Eu vou na quarta-feira; aviso antes.
— Onde estás, mamã? — Lolota, que era a mais sensata, tinha a voz
embaraçada. Ema voltou-se para o lado, para que Osório não visse que estava
comovida. A filha tinha andado febril, eram anginas e um pouco da morbidez do
crescimento.
— Os teus filhos não vêm para aqui? — perguntou. Rolava nos dedos bolinhas
de pão; há muito tempo que se esquecera de fazer isso. Uma onda de recordações
veio misturar-se àquela hora em que, como um dever, os amantes se entendiam para
os gozos de alcova. Ouvia-se rir na cozinha, apareceu à porta o procurador, rapaz
loiro e com olhos desbotados, que se encarregava dos visitantes e dos negócios
conduzidos por eles. A quinta era bastante importante, situada já no limite do Cachão.
Um ermo. Um pequeno comboio de desvio passava-lhe em frente, e o jardim da
estação, florido de cristas de galo, punha na paisagem um sorriso carnal. Ema não
punha o pé fora de casa que não recebesse a impressão duma cratera esfriada dum
vulcão. De resto, o lugar chamava-se o Vesúvio. Causava admiração que tão
solitários e agrestes caminhos fossem um dia explorados por gente aparentada na
corte e com hábitos de cultura. Eram juízes corregedores, fidalgos de luva e espora.
Osório tinha-se por herdeiro dessa gente rústica mas que não desleixava certas
práticas cristalizadas em rotinas fantasmas. Chamavam cantores célebres para, com
as janelas abertas sobre o rio, então cristalino e pedregoso, darem concertos
espirituais. Dizia-se que a Banti fora ao Vesúvio, assim como Caruso fora a Manaus.
Ema ouvia contar a Osório essas coisas, caía num cismar respeitoso, deixando-se
aparentar à família com o que tinha de saudoso pelo Romesal, as salas de Verão, com
esquadrilhas de moscas e os estores brancos corridos. Exagerava o gosto e o luxo da
solteiria, descrevia o pai como um titular e a mãe uma senhora fina dos Guedes de
Loureiro.
- Morreu tinha eu seis anos, mas ainda me lembro dela.
Entrava em descrições, com uma tal doutrina de família, que Osório se
entediava. Amava-a, mas fazia um esforço para suportar certos aspectos da
provinciana ensaboada, como classificava Ema. Ela não ignorava o desprezo que,
como cavalheiro europeu, Osório tinha por quem não guardava as distâncias. Só no
leito ele tolerava a igualdade de casta. Embora amasse Ema e a achasse uma beleza
difícil de igualar, o seu snobismo latente vinha ao de cima quando tinha que a ouvir
falar de dona Augusta, o protótipo da papa-hóstias, cuja bondade era uma história de
cordel. Osório tinha espírito, mas só o manifestava quando a sua consciência de
classe acordava; ou quando estava bêbado.
Ema viu depressa que ele bebia demais, o que o tornava um amante
arrependido, quase casto. Deitava-se na cama tendo um ar incompatível com o amor,
e dormia toda a noite, enrolando-se no mosquiteiro no tumulto dos sonhos. No outro
leito, Ema esperava; se não fosse a imprevisível energia sensual de Osório, ela teria
partido mais cedo. Ele sabia demorá-la com a surpresa duma lição em coisas do
sentimento, ofereceu-lhe uma pulseira de pedras, de preço módico, mandou vir
lagostas da sua peixeira na Foz, e um goraz grande como o peixe de Jonas. Mas há,
pensava Ema, uma felicidade para noivos e outra para amantes. Para uns as regras da
iniciação, talhadas numa experiência do desconhecido; para outros a liberdade que se
abre ao improvável, um desregramento que significa um rapto em relação à
existência conhecida e da qual se receberam avisos desoladores.
Ema saía para o cais, um pontão de tábuas onde a água batia com um rumor
sinistro; e fazia-se ao largo do rio, lançando-se numa corrida que tinha muito de
imprudente. O mordomo olhava do terraço e achava-a maluca. Era diferente das
outras, estranhava em Ema as iras repentinas que faziam parte do seu misterioso
poder de atracção. Essa veemência fazia supor formas inimitáveis de paixão. Mas
depressa se estancava o delírio que a acometia.
Aparecia para jantar, vestida e decotada a rigor, as unhas pintadas de ocre ou
de prata, tão bela que o mordomo Caires se distraía e servia pela direita o famoso
goraz de pinta num molho de alcaparras. Havia visitas, os amigos de Osório, entre
eles, Pedro Dossém, que se dizia parente de Santo António de Lisboa. A prova era
fraca, baseava-se no testemunho do cronista paduano Giulielmo Ongarello, que em
1441 referiu Doson como sendo o seu nome de família.
Pedro Dossém tinha propriedade valiosa em pleno Douro vinhateiro, no
Pinhão, na estrada das Covas. Era um homem de bom sangue, mas um pouco
desleixado pela Natureza naquilo em que a Natureza é todo-poderosa: o sexo e a
morte. Pedro Dossém não pensava nem no amor nem na morte; era uma alma-de-
cântaro, como se diz, oco e soando a vazio. Mas naquela sua visita ao Vesúvio a vida
dele transformou-se. Nunca acreditara que uma mulher pudesse ser tão bela e tão
desenganadora. Ema não iludia ninguém, não tinha táctica, tinha só o sentido do
espectáculo. Vestia-se e agia como se tivesse de conquistar Holofernes no seu arraial,
mas, na realidade, não passava dum erotismo tabelado pela utopia do poder e da
importância social. Ainda que temporariamente ela fosse a companheira sentimental
de Osório, tinha um marido que a tutelava em muitos aspectos e que podia
reivindicar os seus direitos a todo o momento. Pedro Dossém pensou imediatamente
entrar nas boas graças do marido, o que lhe oferecia vantagens no sentido de
frequentar a mulher. Não seria um rival, mas um coadjutor do casamento, papel mais
útil e necessário do que se pode supor.
Com as suas acanhadas luzes, foi Pedro Dossém que afastou Ema de Osório e
a encaminhou para a vida que ela ambicionava. Limitado como era, tinha, no entanto,
pelo lado das afinidades de sangue, relações numerosas e escolhidas que
ultrapassavam as fronteiras. Ia caçar para as coutadas reais em Espanha, e era
recebido pela aristocracia romana, ao abrigo duma sensibilidade ortodoxa que se
apegava à sotaina de Monsenhor Lefebvre.
Pedro Dossém gostava de gloriar-se, ainda que sem perder a discrição que é
timbre dos autênticos áulicos. Como era desprovido de humor, o sentimento que
tinha por Ema parecia profundo. Mas era um sentimento como a arte musical, uma
maneira de modelar as paixões. Ema dedicou-se a ele, e com ele atingiu paradeiros
diferentes dos da vida física. Não havia senão um jogo, mais inocente do que se fosse
embebido de sonhos libidinosos. Pedro Dossém tinha uma esposa e numerosa
família; nunca faltou à lealdade que lhes jurara; mas contraiu com Ema uma espécie
de segundas núpcias, levando-a ao altar mundano, com a promessa de lhe dar a
conhecer as alegrias da vaidade e das finezas.

CAPITULO III
O VESÚVIO
Quando Ema voltou do Vesúvio, achou a casa duma mediocridade exasperante.
A criada, de aspecto pobre, andava descalça a lavar o pátio da cozinha. Havia
bacalhau cozido para o jantar, e o cheiro pareceu-lhe plebeu, capaz de denunciar até
aos limites da comarca o seu viver mesquinho. Uma sebe de campânulas azuis tinha
crescido muito por cima do muro; dizia-se que dava azar, mas Ema ficou a olhar com
um sentimento de respeito por um código eterno em que ela se incluía. Despiu-se e
olhou de relance as ancas finas mas bem talhadas. A segurança duma vida conforme
as normas, confortável e apagada, por um momento seduziu-a. Tinha só que
introduzir na casa alguns melhoramentos, um sofá de chintz vermelho, um pouco de
talha dourada, nichos com louça inglesa. Talvez isso fosse o bastante. As filhas
cresciam e casavam cedo, era de prever. Carlos talvez morresse de enfarte, ela ficava
bem. Não eram ricos, mas também estavam longe de pedir esmola. Pousou as mãos
abertas nos joelhos, sentada na cama; ouvia correr a água na banheira, e aquele som
de água estalando na superfície da água fez-lhe lembrar a massa escura do rio onde, à
tarde, fazia circuitos velozes no barco a motor parando para estremecer com o
paredão das margens, num silêncio que a convidava às lágrimas; um silêncio que lhe
parecia uma figura nova da paixão.
Carlos encontrou-a assim, quieta, olhando os pés descalços. A água tinha
arrefecido na banheira. Ele precipitou-se a apagar algumas luzes; e esse gesto de
economia acendeu em Ema uma cólera triste. Deixou-se beijar, como se fosse
sonâmbula. Carlos disse:
— Todos têm perguntado por ti! Julguei que nunca mais chegavas.
Parecia intimidado; o amor não gosta de reflectir. E ele reflectia sobre Ema e a
maneira de não ser abandonado por ela. Perguntou: — Como era a casa?
Nada perguntou sobre a gente que lá estava; a indiferença irritou Ema, porque
sabia que ele queria ocultar-lhe o ciúme que tinha. Um ciúme obeso, como ele estava
agora, com patilhas que lhe davam um ar de taberneiro. — Que fizeste lá?
E como Ema disse que nadava e guiava a lancha, ele mostrou-se sarcástico,
ridicularizou tudo.
— "Nadar, nadar, mas vir morrer em terra" é o que dizia o meu pai. E uma casa
ao pé do rio é uma coisa que ninguém fazia dantes. "A par do rio, nem vinha, nem
casa, nem olival." Há muitos mosquitos e as cheias levam tudo.
— A nossa casa é perto do rio também.
Ela impacientava-se. Estava constantemente nervosa, mudava de penteado,
vestia-se dez vezes antes de sair. Subitamente recaía nos hábitos monótonos, tinha
medo de não voltar ao Vesúvio, Osório não dava notícias. As suas empresas
retinham-no ou faziam-no viajar muito. Já não havia homens sedentários, com tempo
para um amor de sentimentos nimbados de filosofia, um amor de especialistas, que
tinha um pouco a ver com a carreira das armas, entre a disciplina, a libertinagem e a
morte. Ema ficava na banheira, agitando a água espumosa com o movimento dos
ombros. A pele era brilhante e lisa, apercebia-se a gota negra duma mestiçagem
muito apagada, vinda não se sabe de que escrava parda, de ancas estreitas. Era nas
pernas, longas e secas, que a raça se denunciava mais. Daí, talvez, o exemplo
extremo duma sensualidade que enchia a atmosfera dos acontecimentos quando Ema
entrava numa sala.
As mulheres projectavam sobre ela uma ameaça, cientes como ficavam
daquela sedução animal que, no entanto, Ema repartia por objectos e a genialidade
duma fuga contínua.
Mas agora fixara-se em Osório, queria-o condenado ao prazer que, de resto, ela
não suportava como finalidade. O sentido fugidio do prazer era o que Ema captava.
Pedro Dossém rondava-lhe a porta com uma persistência minuciosa. Era um snobe
de província, não lidava senão com nomes e nunca com pessoas. As suas relações
ramificavam-se por toda a Europa, tinha guarida em palácios e castelos do mais
recôndito da aristocracia, de filhos segundos e tias desbotadas e insignes. Amava os
duendes e os fantasmas, conhecia-os pelas manias e as extravagâncias; as suas
inferioridades de tipo sexual e as suas indignações face ao destino tosco e
desmantelado duma pátria que não o honrava nem prometia nada, libertavam-se por
esse meio de acreditar em lendas e em criaturas obscuras e poderosas. Nesse aspecto,
pouco apreciado pela concreta gente de campanário, Pedro Dossém era um homem
interessante. Agora enfrentava a paixão por Ema, a cigana da sua vida, a mulher que
queria que fosse a Lola Montes do seu reinado de Covas.
Em primeiro lugar, tratou de ligar-se ao doutor Paiva, adulando-o com uma
constância, uma prudência, uma arte com que nenhum profissional da vassalagem
podia ombrear. Fez-se seu acólito, sem ser seu íntimo. Deu-lhe a consolação
necessária aos maridos infelizes que sempre esperam doutro homem a garantia da
honestidade e pureza de intenções. Carlos confiava-lhe a mulher como se lhe
confiasse a vida. Com Pedro Dossém sentia-se seguro ou, pelo menos, enganado a
meias.
Admitia que não era possível segurar Ema em casa; nem pela força, nem pela
persuasão. As leis que moderavam a libido estavam usadas até ao fio, as mulheres
andavam por fora como caixeiros-viajantes dos seus encantos e travavam
abertamente relações com qualquer recém-chegado. Sem, no entanto, descurar o
casamento e as condições de estabilidade que, com ele, procuravam.
Se Ema fosse menos inteligente, contentava-se com um prazo conjugal de
cindo a dez anos e divorciava-se para se instalar na tribo de feiticeiras poligâmicas
que era cada vez mais populosa. Mas ela tinha uma aspiração frugal quanto aos
homens, não os desejava senão como condutores duma importância social que
apetecia como uma forma de sexo mais recitativa do que prática. Pedro Dossém
percebeu rapidamente o que Ema esperava dele: contactos com uma sociedade que
ela, por si só, não podia frequentar. Há coisas a que uma mulher dum médico, mesmo
o mais douto e bem lançado na carreira, não tem acesso: a ante-câmara das alcovas
verdadeiramente polémicas, infalíveis e por onde passa a História. Nem o médico
nem o padre se aproximam muito desse nombrilismo político que é o confuso
segredo das mulheres com poder. Poder sexual ou simplesmente influência indirecta,
a mais cobiçada, porque redime qualquer constrangimento dum drama pessoal. Ema
não sabia o que podia esperar duma sociedade fechada sobre os seus próprios riscos e
proteccionismos; mas fez ver a Pedro Dossém o que esperava dele: uma apresentação
formal, como na corte. Há uma epidemia de ambições que nunca se extingue
completamente no corpo social e que promove a História em todos os sentidos.
As primeiras avançadas de Pedro Dossém não obtiveram resultado. Ema fez
sensação pela beleza, mas o grupo que a recebeu uma noite, para um jantar seguido
de bridge, tomou uma atitude que é típica da burguesia: a de medo. Uma ousadia e
um gosto sanguinário deviam fazer-se notar na figura deliciosa de Ema, porque
homens e mulheres a deixaram só com Pedro Dossém, embora não sublinhassem
qualquer hostilidade.
À segunda tentativa para frequentar a casa duma rica argentaria, não foi
melhor sucedida. Convidou-os para a sua mesa, onde se jogava forte, e fez perder
uma soma avultada a Ema, que deixou ali as suas economias dum ano. Pedro Dossém
sentiu-se magoado e disse a Ema que não voltava lá.
— Bem me enganou. Eu tinha-a por uma senhora, e saiu-me uma marafona.
Uma marafona era pior do que uma prostituta: tem o gosto de trair e a bazófia
do enredo. A senhora costumava receber na sua sala pequenas aprendizas da intriga
privada, em busca de um sucesso social e amoroso, e a quem ela dava conselhos
sábios.
— Nunca diga que é divorciada ou separada, minha filha: diga que é viúva. A
viuvez tem uma relação decente com o dinheiro, o trabalho e o amor.
Em tempos, tivera amantes, entre os quais um herói da República que
negociou com ela as cartas de amor e que se fez rico dessa maneira. Ela revelou-se
acima de qualquer discurso crítico, amando-o até morrer. Porque ela, no exílio em
Cascais, solicitada por um destino de milionária que a província interdita aos seus
prazeres simples, morreu seis anos depois da Revolução de 1974, sem ter tempo para
um conveniente aggiornamento. Ema não soube de nada tanto mais que estava outra
vez arrebatada pelo reatar dos amores com Osório, que teve a coragem de se mostrar
em público com ela e de a apresentar quase como uma noiva. Aconteceu o que Carlos
temia: Ema estava em risco de dar atenção a um só homem e a comprometer-se.
Pedro Dossém mais uma vez foi em seu socorro e convenceu Ema a espaçar os
encontros com Osório. Não se sabe o que se passa na cabeça dos viciosos que, de
repente, se tornam duma mediocridade a toda a prova quanto à vida de família.
Osório, desiludido com Ema, voltou à esposa que desprezava e aos filhos que
aborrecia; fez-se um pouco libertino sem cair na devassidão, mas nem ele nem Ema
se esqueceram dos amores no Vesúvio e dos poéticos conflitos de que o mordome
Caires era testemunha. Ela saía para andar de barco, arremessando-o pelo rio fora
com uma violência sombria. Os paredões de pedra pareciam escoltar-lhe o génio de
furores e de paixões feridas. Ema não se dava bem com os amantes. Não brigava,
mas era desabrida por efeito dum incessante mal-estar crónico, provocado pela
própria incoerência dos desejos.
Mas tinha sedução naquele espalhafato de cóleras mal acabadas, de risos
cruéis, de entusiasmos que iam dar a maquinações vingativas. Osório havia de
recordar sempre com uma espécie de mágoa cáustica os detalhes desses amores e o
pouco prazer que auferira deles. Ela era distraída no leito, tinha dificuldade em levar
a sério os sentimentos romanescos, precisava de mover-se para dissipar os seus traços
autênticos de solitária. Pedro Dossém, que não tinha pretensões a ser seu amante,
recebia a melhor parte que era uma amizade arrapazada e a fidelidade que está acima
de todos os acontecimentos.
Enquanto durou "o noivado" de Ema com Osório, houve um período que
Carlos não achou ser o pior da sua vida. Ele dormia muito, parecia que o sono o
protegia duma realidade que lhe podia ser fatal. Deitava-se praticamente vestido, por
respeito ao corpo que a repelia ou, o que é pior, o ignorava. Ema desenvolveu um
estilo fantástico, que lhe grangeava muitos admiradores; mas logo estacavam,
receosos de irem muito além com uma mulher inteligente e cujo desequilíbrio parecia
uma forma de má consciência. Não era. Ema via que o marido sofria, preferia que ele
a deixasse e levasse com ele as filhas. Mas ele afectava não dar por nada e depositava
em Pedro Dossém, como dantes em Pedro Lumiares, uma confiança tão absoluta que
roçava pelo ridículo. Dizia que os seus afazeres não lhe permitiam dar a Ema o
género de vida turbulenta que ela queria ter; e mostrava-se grato por ela dispor de
acompanhantes de boa índole e moral intocável como Pedro Dossém, cuja mulher,
uma inglesa desportiva, tomava o amor conjugal como uma partida de ténis, às vezes
de pares. De resto, ela era golfista muito reputada.
Num Outono muito chuvoso, Pedro Dossém foi a Vale Abraão convidar Ema
para uma caçada onde estariam cabeças coroadas, como ele dizia, de maneira que se
prestava à galhofa. Ficou surpreendido com a casa dos Paiva, tão cheia de talha
dourada que mais parecia um altar barroco.
Ema introduzira o ouro e a seda pérola, quase branca, depois de ver no cinema
O Grande Gatsby. Tinha uma sala toda branca que abria sobre um relvado, e pusera lá
um baloiço de jardim com riscas cor-de-rosa. Embora Pedro Dossém tivesse bom
gosto, tudo o que Ema decidia era para ele uma lei. Achava que ela brilhava num
lugar assim e que a forma fica enquanto a matéria se perde. Ema era a forma perfeita
num bricabraque de aves de cristal e de cofres orientais. Gastava tanto dinheiro, que
Pedro Dossém se interrogou aonde ia Carlos buscar as somas exorbitantes precisas
para aquele luxo anárquico. Mas rematava os seus pensamentos com a ideia de que o
médico dispunha agora duma clientela rica, que o ocupava indiferenciadamente para
redigir as memórias de senhoras pias, ou para controlar negócios. Vivia numa espécie
de dependência feudal, dando a essa gente, na maioria arruinada, o sentimento duma
comunhão ainda poderosa que os perigos da revolução tinham feito convergir para a
mesma consciência. Consciência de desastre comum e de ambições novas que
subiam dos novos estamentos sociais, até então ignorados do jogo do poder.
Em pouco tempo Carlos Paiva foi nomeado director do Hospital e candidato a
presidente da Câmara. Ema disse que ele se instalava no reino da corrupção que é o
que obtém o poder por meio de discursos.
— És um parvo, não sabes falar e nunca hás-de saber. O melhor que pode
acontecer é construíres frases sem verbo e acharem que és um oráculo. O país precisa
de oráculos, já que não tem estadistas.
Ema estava a esfregar as pernas com um creme destinado a dar-lhes uma cor
bronzeada. O sol brunira-lhe o rosto, e os olhos dela, com pestanas azuladas,
brilhavam profundamente. Como todas as mulheres que não gostam de ficar à mercê
dos olhares demasiado entendidos em beleza, ela mostrava pouco do corpo. Usava
grandes roupões de felpo e sandálias, como uma actriz que vai entrar no seu filme de
estúdio e banhar-se entre flores de lótus. Pedro Dossém estava a admirá-la como se
rezasse uma oração.
Ela riu-se com uma doçura muito rara e que dedicava a imbecis com juízo,
como Pedro Dossém era, no seu entender. — Uma caçada, onde? — perguntou.
— Na Itália.
— Na Itália? Que se vai caçar à Itália, com um tempo destes? Com efeito, a
chuva fazia no jardim um ruído de metralha.
Mas Ema continuava a preparar-se para aparecer em público, como se
chegasse na véspera das grandes férias de sol mexicano. Embora a fama dela se
ampliasse, muito tecida em calúnias e fantasias, o certo é que os Paiva só recebiam
gente menor ou ferida de qualquer suspeita: empresários entre a falência e a burla,
negociantes da praça do Porto que faziam contrabando, filhos-família que
carregavam um vício, como a droga ou o gosto pelos rapazes. Ema dava cobertura a
tudo; não se envolvia demasiado e, excepto Osório, de quem esperava um rapto,
como dum Tenório, ela não se interessava muito por homens. Pedro Dossém era o
seu pajem, e Lumiares o seu filósofo. Amantes não tinha, mas atribuíam-lhe uma
quantidade deles, cada qual o mais insípido e desanimador. Às vezes Ema pensava
que a vida dela estava acabada e que não lhe restava senão resignar-se, engordar e
dedicar-se a promover a carreira do marido. Tentou perceber quais eram os
horizontes dele, e o que viu deixou-a prostrada. Carlos Paiva jantava uma vez por
semana com um banqueiro, redigia as memórias duma cliente rica, metida a
pensadora cristã; e fazia uma clínica cada vez mais reduzida, com consultas das cinco
às sete da tarde. Tinha uma auxiliar venenosa e que quase expulsava os doentes
porque, dizia, "o doutor não tem tempo para tratar mazelas.". A própria Ema era mal
recebida ao telefone, e um dia que apareceu no consultório de surpresa encontrou
Carlos a dormir, com os pés em cima da mesa. Reconheceu que era um caso perdido
e foi dizer a Pedro Lumiares que não aguentava mais.
— Não aguento mais e acho que estou a perder o meu tempo.
— Que tempo, que nada! És uma trafulha e hás-de ser sempre assim.
Acumulas pontos de vista, como nos romances, e és uma escritora sem escrita.
— Que devo fazer?
— Mobila outra vez a casa. À mourisca, se puderes. Com muitas almofadas
como rodas de carro. E compra um samovar. Não queres comprar um samovar? Eu
tenho um para vender. Se não o quiseres, tenho que dá-lo como presente de
casamento.
Era o famoso samovar dos Lumiares que dava a volta por todos os casamentos
da região e acabava por voltar às mesmas mãos, como por encanto. Simona tratava
de o manter brilhante e limpo, pronto a servir para a corbeille dos noivos a seguir.
Ema não dava ouvidos a Lumiares, nem ia ter com ele para lhe dar ouvidos. Estava
cada vez mais presa na vaga dos acontecimentos, sem chegar ao centro deles,
sentindo-se incapaz de se impor em público. Não sabia, como dizia Lumiares, servir-
se dos seus dons. Pertencia à escola do desencantamento, e a sociedade em declínio,
rotas as bases da própria decomposição, não a podia ajudar em nada. Deixava-a livre,
o que era o mesmo que escorraçá-la.
Conheceu um período de desânimo profundo. Já não pensava em Osório senão
como pertencendo a uma lenda, e o mordomo Caires, que lhe roubava todos os dias
pequenas quantias de dinheiro, fazia-lhe falta para lhe trazer a correspondência numa
salva. A criadinha Aurora andava descalça na alcatifa, todas as vezes que podia, e não
compreendia nada de etiqueta. Dizia "Ema", quando falava dela às visitas, e ia ver
telenovelas para o quarto, deixando o serviço interrompido a todo o momento.
Fumava erva e sonhava com os anúncios da Coca-Cola, ágeis e com personagens
dum amor ginástico e radioso.
Ema desinteressava-se de tudo, ia para o Porto comprar roupa, colares e
brincos tão grandes como chaveiros. Em toda a parte fazia sensação. Um dia, um
homem seguiu-a num Ferrari e entrou pelos portões dentro de Vale Abraão, julgando
seguir uma mulher fácil. Ema saiu do carro, tinha um fato de homem de seda crua e
um bolero de vison claro. Em tudo sugeria o deboche e uma dimensão sentimental do
espectáculo. O homenzinho, calvo, ao volante do Ferrari, olhou para ela meio
descoroçoado.
— Acho que me enganei — disse.
— Dê a volta devagar, não me estrague as hidranjas. — Ela olhava-o com uma
severidade pomposa e foi, como uma rainha, arrastando um pouco o casaquinho de
pele no areão da entrada; orgulhava-se dela própria.
Mas momentos como esse eram raros. Os tempos eram pouco próprios para
situações romanescas; o discurso igualitário, puramente tagarela, dominava tudo. O
povo estava entregue à sua desilusão, perante o acontecimento histórico da revolução
que o ultrapassava, como sempre acontece. Era, agora, uma burguesia dejeans e
dissimulava a melancolia com assomos de virtude face aos novos especuladores.
Declarava-se um ódio fomentado pelas paixões moderadas, mais perniciosas do que
as vivas explosões da autoridade moral. O falhanço das ideologistas trazia consigo a
susceptilidade da nova burguesia, ansiosa de poder e capaz de todas as fraquezas, o
que não lhe garantia o sucesso hereditário. Queria, pois, triunfar depressa, antes de
ter de se descobrir como inapta.
Só Carlos Paiva se esquivava a servir as opiniões, deixando-se ficar do lado
dos grandes moribundos que podiam contemplá-lo no testamento. O que era melhor
do que debater-se com uma posição política cujas causas reais nem eram claras nem
sequer prometedoras.
Havia uma brecha entre a sociedade que acumulara uma educação com a
importância que se atribuía, e uma História falsificada por todos com o fito de se
poder dormir tranquilamente. A descolonização criara uma geração pronta ao
sentimentalismo histórico e em que faltava o sentido do drama. O estado psicológico
de pessoas como Carlos Paiva era pedido emprestado ao clerical e ao pedagogo. Ema
decifrava um tartufismo nascente no marido, que via com olhos cada vez mais
denunciantes, embora não deixasse a parte de cúmplice que lhe cabia como esposa e
que não estava disposta a sacrificar ao seu carácter romântico. Ela tinha deferência
pelo chefe da casa, que de qualquer modo mantém unida a família e a tira de apuros;
mas, ao mesmo tempo, Carlos parecia-lhe cobarde, servindo o processo da
imbecilidade, caro a todos os sobreviventes.
— É um chacal capaz de pedir esmola e nunca de atacar — dizia, a Lumiares.
Ele tinha a capacidade de se divertir com uma mulher tão oposta à democracia
virtuosa instaurada há muito mais tempo do que podia crer a fase sentimental de
Portugal de 80. Era um regalo para ele, Ema, tão inteligente e devorada por uma
cupidez sem nexo, semelhante a um ciúme de odalisca. Ele detestava Carlos Paiva ou
no que se tornara aquele médico de província, que fora primeiro um leitor de Camilo
Castelo Branco entregue a uma seriedade ortográfica, e aos seus deveres com
parturientes pobres. Em Vale Abraão adoravam-no, com a sua mala preta e a
corpulência bonacheirona, no fundo serviçal com os ricos ou o que deles restava, mas
reservando-se uma pequena vingança de honorários para com os herdeiros. "Alma de
cangalheiro", como dizia Ema, a quem as altas facturas mandadas depois dos enterros
escandalizavam.
— Mas, minha filha, quem paga as tuas cortinas de seda creme e os vestidos de
vidrilhos? Hás-de concordar que o dinheiro tem que vir de algum lado.
Ela repetia que ele era um gato pingado, até nas leituras que fazia. Queixava-se
a Lumiares que o marido lia novelas de terror.
— Menina, todo o médico é um estripador bem comportado. Não te admires.
Está rico, não está?
— Não sei. Esconde o que ganha, mas faz dinheiro com tudo. Especula na
Bolsa, compra e vende jóias. Agora há muitas mulheres que estão a desfazer-se do
ouro que têm em casa, por medo dos ladrões.
Pedro Lumiares olhava para ela com os olhos semi-cerrados, pensando se Ema
não seria, em tempo mais oportuno, uma Lavalière de muito boa apresentação. Não
lhe faltava o defeito físico, excitante da beleza que a corrupção contempla. Também
Satã era representado manco, porque a formosura precisa de ter um aviso nela. —
Para salvação dos homens — disse Lumiares.
Notou como Ema fumava, acendendo o cigarro no cigarro dele e parecendo
que ia beijá-lo ou que o tinha feito. Isto porque Simona se desenhava no contra-luz
da porta do jardim e podia vê-los. Ema gostava do mal, como se gosta duma iguaria
fina, um vinho muitas vezes filtrado, passado ao longo dos anos duma vasilha a
outra, rolado, misterioso, profundo. Era o seu cadastro antiquíssimo, esse mal que a
mulher mistura a todos os actos, a todas as delícias, deveres, condições, sofrimentos.
Mas não era possível imaginá-la a realizar o mal; só a macerar o coração dos homens
nessa espécie que salga a terra e a faz fecunda.
— Não ouves? Enganaste alguma vez Simona?
— Não. Não sou tão medíocre como isso. Não tenho êxito com as mulheres,
acredita.
— Será que os homens se estão a tornar inteligentes? O que vai suceder se
desaparecer a vaidade humana? O riso há-de secar, e todos hão-de suspirar como
mulheres doentes.
— Parece um cântico de luto. Que linda és, Ema! Linda a valer.
— Envergonho-me de o ser, se não te tentar.
— Não o faças, Ema. Só aos sedentos se deve dar água. Eu não tenho sede.
Ela pensou que Lumiares se ria dela, e saiu arrebatadamente. Ouviu-a derrapar
na areia do terreiro, e Simona veio perguntar porque fugira Ema daquela maneira.
— A lua há-de corar porque ninguém faz caso dela. É isso o que acontece com
Ema.
Mesmo se Luís XIV fosse vivo, e Ema fosse a Lavalière em pessoa, as coisas
não se passavam melhor. Era uma mulher que sobrevivia a um sem-número de
fracassos nas fileiras do passado feminino. Os homens construíam castelos,
fechavam-se lá dentro e reinavam de qualquer maneira entre os seus serviçais,
incluindo as esposas e as concubinas. Mas as mulheres tinham que se comparar a um
cão, ou um vegetal. Havia algumas que não aguentavam isso, e o mais simples era
parecerem-se com homens.
Ema, ao afastar-se, teve ainda a imagem da casa de Lumiares, igual a um
alcazar bombardeado. "Ele está lá — disse ela — a jogar o xadrez com as palavras, e
eu que me arranje".
Quando ela saiu, Pedro Lumiares fez um gesto que parecia de perdão, e
Simona, quase de rastos, correu para os braços dele. Era um amor que tocava o
delírio, em que se empenhavam forças extraordinárias, sensual e casto ao mesmo
tempo. As lágrimas embargavam a voz de ambos, e todas as misérias e alegrias do
mundo contribuíam para esse momento de comunhão; como se a decepção profunda
os ligasse com o sagrado que a decepção evoca. Pedro Lumiares sabia quanto a
injustiça cria uma poderosa sedução. Cortar uma flor não era só um acto de
vandalismo; era um ritual de guerra cruelmente inútil, excepto se fosse uma
arquitectura do desejo humano contido nesse gesto breve. E as mulheres, durante
milénios, foram sabedoras desse pacto com a injustiça. Tiravam dele o seu à-vontade
com os homens; os sonhos da intencionalidade atingiram ali a sua fascinação maior, e
a paixão tinha encontro com a sua finalidade: o arquipélago dos desejos
transformava-se na face do absoluto. Mas só o sacrifício podia conduzir além do
afecto banal, produzindo uma paz que a morte não ousava impressionar. Ema nunca
aceitaria o sacrifício, debatia-se com os seus fantasmas de infância, o amor em
grande estilo: o amor que nasce das alusões, das memórias, dos debates, da teologia,
da erudição, das promessas, das leituras, de toda a espécie de mensagens e de formas
que o revelam; um amor imaginário e sagrento; um amor protector e hospitalar, de
despedidas e ressurreições mágicas.
Quando entrava em casa, como nesse dia em que deixara bruscamente Pedro
Lumiares, era para sentir aversão pelo quartinho de cujas janelas se viam as ramadas
agora nuas e que pareciam uma rede negra de vides. A chuva escurecia os pelados
sarmentos, tudo tinha um ar de abandono e de miséria instaurada, fiel, acumulada
pelos acontecimentos do passado.
Ela deitou-se na cama; ouvia um cão que sacudia a chuva do pêlo, fazendo
tinir a coleira. Isso, não sabia porquê, acabou de a enfurecer. Era para isto que se
casara. O pai, Cardeano, depois de a criar com tantos mimos, que eram promessas
quase em vias de satisfação, entregara-a ao primeiro desconhecido. Sim, porque
quem era Carlos Paiva? Um desconhecido, que bem podia descender do bandido
Espadagão, um soldado profanador de igrejas. Ouvia-o às vezes, animado pelo seu
cálice de bagaço, falar de antigos casos, dos cabecilhas liberais, chefes de guerrilha
que se acolhiam pelos lugares mais esquecidos e ermos e que acabavam envenenados
no canto duma taberna, ou varados pelas balas da cavalaria no fundo duma ravina.
Ele falava dos cismáticos da Granja do Tedo como se tivesse deles conhecimento
directo, como se fossem avós e tios e primos carnais. Que sangue lhe corria nas
veias? De ateus, de facínoras, envolvidos na perseguição dos cartistas, tornados em
violadores e incendiários. Às vezes tinha medo dele; se ouvia a chave na fechadura,
levanta-se dum salto e procurava com o olhar um sítio para se refugiar. A criada, que
lidava com os talheres, pondo a mesa, restituía-lhe a presença de espírito.
Era diferente com Fernando Osório. Ao menos, sabia que ele era aparentado
duma Clara Carolina, primeira mulher dum juiz de fora de Lazarim, que se casara
com uma tia de sua mãe, do lugar de Ariz. Os Osórios eram pessoas nobres que
andavam na vereação e em cargos políticos do alto poder e sentimento. Justino
Osório enriqueceu com o despojo dos jesuítas expulsos do reino, ficando como
depositário de grandes somas. Daí a fortuna enorme que ainda lhes dava uma espécie
de coroação menor, fazendo-os respeitados e escolhidos. Com Fernando ela podia
associar a união do casamento com um território sobre o qual reinassem
espontaneamente. Fora tola em não esperar, tola em acreditar que o pai queria
oferecê-la à felicidade conjugal com outra intenção que não fosse livrar-se da filha
importuna dum viúvo ainda bem conservado. Cardeano, mesmo antes de tia Augusta
sofrer um derrame e ficar confinada à sua cela abacial, contraíra umas núpcias
morganáticas com uma modista. Ema chorou de raiva.
— Não esperava isso. Os homens são muito fingidos. Quanto mais velhos mais
garotos.
— Ele não é velho — atalhou Carlos. Aquela peripécia provocava-lhe o bom
humor; Ema pensou que ele queria vê-la humilhada. Gostava de a ter segura, de a
inferiorizar. Engordou, ele ficou encantado; ficaria mais se a visse disforme com
bócio e manchas na pele. A beleza dela era uma ameaça à sua tranquilidade. Ema
imaginava estas coisas e muitas outras, o casamento abafava-a, sentia-se isolada,
diminuída, prestes a cair na maior das vulgaridades, a ter outro filho que se chamasse
Bruno. De repente sentia saudades de Fernando e do tempo em que o conhecera;
saudades daquele baile, de quando ele a segurara para impedir que caísse, quando
tropeçara num tapete. O vestido cor de açafrão claro deixara passar o calor da mão
dele, mão de homem, que transmitia desejo e provocação. Escreveu-lhe e rasgou a
carta, optando por telefonar-lhe depois. Mas tinha medo, não sabia como retomar
esse amor casual, que ela aceitara para desconfiar dele e tendo-o por iniciação e não
por culpa. Por fim decidiu-se; uma secretária, com uma frieza soberba, disse que ele
andava em viagem.
— Se quiser deixar algum recado.
Ema riu-se, pensou que tratava com uma dessas parceiras de escritório que se
deixam amar entre a hora das visitas e do expediente, e conservam um sentimento
caseiro entre a intriga que se dramatiza e a desilusão que resvala para a franqueza de
amigos.
— Pode dizer-lhe que o amo.
— Quem fala?
— A Bovarinha.
Era a primeira vez que ela fazia uso do título que sabia darem-lhe e que,
primeiro, a exasperava. Mas agora estava mais madura, um cinismo semelhante ao
bom humor acompanhava os seus pequenos impropérios. Não se gostava dela, mas a
verdade é que alguma coisa correspondia à expectativa do seu público.
Porque Ema tinha um público, mais do que amantes. Mesmo aquela tentativa
para se ligar a Fernando não fora bem sucedida. Não gostava da cama nem para curar
uma gripe; e isso prejudicava-lhe a linguagem do amor.
E, todavia, a sua fama crescia. Fama de cortesã privada, que frequenta as artes
e não os lupanares. Também aumentava nela o nervosismo, o desejo de acumular
objectos, o livre jogo do epigrama, a volúpia de sugerir, mais do que praticar.
Começou a acreditar que, se pusesse nisso a força do pensamento, podia obter dum
homem total obediência. Sozinha no seu quarto, a cabeça inclinada no peito, sem se
mexer, achava que Fernando Osório recebia a mensagem imperiosa e que voaria para
ela desde outro continente. Ele viajava continuamente, o mundo tornara-se uma
caldeira de negócios, de projectos, de vibração financeira que levantava da terra uma
esquadrilha de aviões, sempre cheios de passageiros com pastas recheadas de papéis;
com uma escova de dentes e um cartão de crédito dava-se a volta ao mundo, sem sair
de hotéis de cinco estrelas e das suas salas de congressos. O amor era fornecido com
os chinelos de quarto e a bíblia de cabeceira. Osório entrara nesse rebanho duma
promiscuidade perfumada a colónia, tornara-se no personagem de ficção que povoa
as gares, os halls, os gabinetes dos vips. Uma espécie de combinação de riqueza,
facilidade, código bancário e mesa reservada, dava-lhe uma força astral que rompia o
cordão umbilical com o pecado. Quando estava em casa (divorciara-se, embora
tivesse relações esporádicas com a mulher, o que devia ser o oitavo pecado capital,
voltar ao vomitado), entretinha-se com serões de vídeo pornográfico, medindo em
companhia dos casais amigos a quantidade de liberdade concedida ao gozo do corpo.
Em geral, não era muita, arrastados que eram todos para representações errantes do
poder, a consumação de negócios e a frequentação das grandes relações; gente de
meia-idade, conhecedora do catecismo dos interesses, navegantes entre uma ganância
dissoluta e um puritanismo capaz de alimentar paixões ideais.
De repente Fernando Osório podia ser atingido pela doença que Ema lhe
transmitia, a fascinação por valores imaginários, pela arte, pelo amor. Foi isso o que
os uniu durante uns tempos, não sem sofrimentos. Foi isso, de resto, que fez a grande
aura do Sotheby de Londres e que é afinal a consolação do cavalheiro, a noção de se
ter descoberto uma região que transcende a vida quotidiana e que desculpa a
mediocridade humana.
Assim cresciam as paixões absurdas, sempre no sentido de inovação duma
nova liberdade, duma mercadoria de elites. O que Ema sentira no baile dos Lumiares,
que representava formas propícias à paixão, em que os sorvetes de morango, meio
derretidos em taças de cristal, lhe davam uma impressão duma carne sacrificada na
batalha do consumo sumptuário, fora um desejo de desperdício, de competição,
sucedâneo dum poder absoluto que simulasse uma auto-destruição. Os jovens
recorriam à droga e ao sexo; os adultos apelavam a formas de sociabilidade
exasperadas, de razias morais, de excitantes fantásticos como a memória de lendas
antigas e proezas acontecidas.
Na sua casa, que Ema enchia de talha, de imagens sacras, de objectos semi-
preciosos, dum efeito de bijuteria que cristalizavam a ilusão do poder, o génio do
barroco, a esperança da paixão feérica, tudo continuava a estar assente em ideias
práticas: como cozinhar as refeições, lavar a roupa, fazer as camas. Não era por
encanto que essas coisas apareciam feitas. Mas, como a criada era insuficiente para
todo o serviço, Ema dava às vezes uma ajuda, valendo-se do sentido prático que
nunca perdera e que recuperava a sua vida solteira, entre serviçais, jornaleiras,
mulheres de fora, mendigas até, que faziam recados, as costureiras que remendavam
os sacos da grainha. O trabalho diário, à margem duma cultura de leituras e de
espectáculos, deixava pouco espaço às ciladas da imaginação. E a própria televisão,
que dona Augusta aparentava com um inferno portátil, servia de recreio medieval,
onde, em vez de fiarem, as mulheres se encontravam para controlar o seu universo;
embriagando-se com as paixões heréticas, com a realidade convulsa, que de facto não
as atingia senão pelo lado duma provocação irrisória.
Elas, as mulheres da casa, criavam o movimento dos sentimentos, optavam
pela inteligência do desenlace, punham em causa a alma, se fosse preciso. Tratava-se
duma espécie da metafísica do desgarramento entre o que são as coisas demonstradas
e as coisas que podem ser vividas. À luz dessa recordação, Ema ia varrer o pátio de
entrada, vestida com uma bata desbotada e às vezes até descalça. Gostava do calor
das pedras nos pés nus e da brisa que arrefecia o suor no corpo sem roupa de baixo.
Muitas vezes não usava calcinhas, ou então vestia coisas duma beleza um pouco
indecente a que chamava a roupa de bordel.
Um dia, um carpinteiro que vinha executar uma obra viu-a a lavar a escada e
ficou subitamente atraído por Ema. Não a conhecia, julgou que era uma criada.
— Deixe isso para os patrões. Eles que façam isso — disse. Não lhe ocorreu
melhor galanteio e serviu-se duma imagem ofuscante, que era a liberdade que a
revolução propunha.
Mas, tão depressa como se fazia mesquinha, mercê duma arquitectura afectiva
que era o seu encanto, Ema voltava a ser uma vagabunda estilizada, com o seu
relógio de ouro e calças esfarrapadas. Nada lhe dava maior prazer do que meter-se
num comboio asmático, dos que só funcionavam nos ramais em vias de extinção, e
atirar-se para um banco com o seu casacão de marmota e ir até ao fim da linha às
vezes, para voltar da mesma maneira, depois de tomar um café aguado nos bares da
gare. Causava uma estranheza tão delirante, que as crianças vinham à beira dela para
lhe tocarem, e as velhas recoveiras falavam mal, para que Ema ouvisse, retribuindo
como podiam a surpresa a que as sujeitava. Pedro Lumiares avisava-a dos perigos
daquele comportamento. Dizia-lhe que ela não podia invadir o território duma classe
que não era a dela sem ficar sob a mira dos demónios dum poder que não era
impassível. Há compromissos que é preferível respeitar; certas maneiras de vestir e
de falar que só como emergência se podem levar além do seu espaço próprio.
O telefonema que Ema fez a Osório não deu o mínimo resultado. Ele andava
em viagem, ou a inseparável secretária não lhe dera qualquer recado. Cartas e
bilhetes já não se usavam, pelo menos para marcar uma intimidade. Ema sentia-se
muito desamparada na sua situação de amante tão abandonada como era como
esposa. Não que Carlos não a amasse. Mas o desejo legítimo é já a projecção dum
desejo insatisfeito. Ela queria uma dramatização somática que estimulasse as suas
relações com o mundo. O marido opunha-lhe o trabalho, incluindo as suas visitas a
Maria Semblano que lhe garantia o futuro, porque ele esperava acumular uma conta
astronómica dos seus serviços, como quem faz um pé-de-meia.
— Vais ver quando me pagarem. É uma fortuna, é como ganhar a lotaria —
dizia, cabeceando, porque andava derreado, comia mal e a desoras; nunca tinha
dinheiro suficiente para as coisas mais elementares — a padaria, as propinas das
filhas, a roupa de Inverno. Fechava os olhos aos luxos de Ema, fingia que ela os
resolvia com as economias, uns tostões aqui, uns escudos acolá. O provérbio de que a
mulher com unia agulha a arrecadar e um homem com uma pá a deitar para fora de
casa, dá para que vença a mulher, repetia-o até à saciedade. Ema censurava-lhe o
feitio irrealista, achava-o mal pago, acanhado nas contas, que reduzia sempre à
última hora, com medo que as achassem exorbitantes.
— És um parvo. Afinal que fazes lá tardes inteiras?
Ema referia-se à sua cliente mais respeitável pela fortuna e pela fama de casta
e que a voz pública beatificara. Fora linda, ruiva, de porte grave, e apaixonara-se
muito nova por um primo bacharel, a quem chamavam o Mosco pelo interminável
zumbido das suas alegações.
Cedo se romperam as relações conjugais, ficando a ternura insultuosa da
mulher baseada nas primeiras ilusões. Ninguém, excepto Carlos Paiva, sabia o
motivo desse corte nos amores, de resto fecundos. Havia dois filhos. Maria de
Loreto, ou Maria Semblano, tinha Carlos como seu leitor e seu guia nas letras em que
ela queria professar. Escrevia versos e contos piedosos. Carlos via-se apertado com
esses deveres literários em que tinha que achar um sentido que não o desgostasse
completamente. Ele sabia que jogar com o sacrifício e jogar com a poesia significa
abordar a vida comum acrescentando-lhe uma chamada à transcendência, para a
poder suportar. E ele, Carlos Paiva, se ia tão assiduamente visitar Maria Semblano,
era porque alguma coisa nela teatralizava as suas próprias misérias e, de certa
maneira, as enriquecia. Porque falava ele em acumular uma fortuna com essa
paciente duma bondade que era um rito de desarmamento? Porque, de facto, Carlos
se enriquecia com uma luz que, se não era mística, era pacífica.
Maria Semblano escrevia cartas ainda. Selava-as com o seu anel, ou com os
seus anéis, porque tinha uma variedade deles, gravados, como um rei de França.
Parecia andar com eles num cestinho, entre a costura e o caderno de versos, para
poder escolher o que melhor dizia com o seu estado de espírito. Ema recebia às vezes
essas cartas, se Carlos não estava, e o prestígio que irradiava delas punha-a furiosa.
Tinha ciúmes do que não compreendia.
— Ela é doida, não é? Há uma forma de sensibilidade que tem que ver com os
rendimentos das pessoas. Uma forma de consolação dos ricos, o cu de ouro dos
beneméritos, dos Mecenas, dessa gente toda.
— Porque dizes isso?
— É Lumiares, não sou eu.
Ela fazia gala das suas entrevistas com Lumiares, da companhia amorosa de
Pedro Dossém, ambos metidos num labirinto de sentimentos que a aborrecia, que a
punha selvagem e capaz de dar um tiro em alguém. Fernando Osório, ao menos, não
era como eles. Mas, também, que amante, que homem representava? Lumiares
fornicava com a distância do que é humano; Pedro Dossém, com as suas manias
aristocráticas; enfim, Osório, com as gatas dos congressos e as assistentes sexuais
dos hotéis, sem mais tempo do que fazer gemer a cama e não as mulheres. Eram uns
tagarelas e mais nada.

CAPÍTULO IV
A BOVARINHA

Ema pensava que o desregramento consola de se ser inútil. E ela sentia-se


muito inútil na sua casa cada vez mais cheia de coisas discordantes, peças de leilão
que a saída de pessoas bem situadas no antigo regime convertia em imaginário duma
nova burguesia.
Pessoalmente, Ema conhecia já toda essa tralha de antiguidades, muitas vezes
vulgar, unicamente uma herança de térmitas desmanteladas no seu ninho. O Romesal
era igualmente uma barca de despojos à deriva, com os seus quadros com lavagantes
e coelhos mortos, com xícaras de Cantão e outras, esbeiçadas, com cabelos de terem
estalado ao frio das bancas de lousa. Mas tudo isso fazia parte da forma estável da
vida, dava segurança ao espírito colectivo, transmitia oraculares mensagens e
rejuvenescia os conteúdos morais pela afectividade que despertava. Como mulher
casada, Ema sentia-se tentada a compor o seu universo com ritos dum nomadismo
antigo, venerando outros ídolos e, à falta deles, reunindo outros objectos que devesse
amar; como uma forma de repetir o milenário gesto de comer, evacuar, procriar,
deixar um montão de ossadas, de detritos, de restos, que eram esses objectos, a
cultura da sua caverna. Só que isso não lhe bastava.
Bovarinha que era, Ema queria sobreviver acima dessa fauna, de patos,
galinhas, perus, e papagaios, que circulava pela casa em horas pré-estabelecidas,
rigorosamente iguais: Natal, Ano Novo, dia de anos, festa de comunhão, de
Ascensão, de Reis; ou então casamento e mortório, com as degolações e bebidas de
praxe, o Porto servido em copos curvos, o champanhe em taças, o licor de laranja em
cálices pequenos como dedais, assim como a aguardente vínica que se bebia dum
trago para produzir calor, acendendo nas veias uma chama brusca, seguida dum
vagado, dum mortal desmaio. E os canários de Paulino Cardeano, a quem ele
ensinava a cantar, tendo para isso um método assaz misterioso, como papas de vinho
e colocando-os à luz da manhã nos alboios da mansarda, falando-lhes, solfejando,
segredando! Ema lembrava-se subitamente; admirava-se de lembrar uma coisa a que
nunca prestara atenção. Quem era o pai? Como o amor se serve do mais invisível do
ser humano para poder criar a sua história!
Estava já no fim o Inverno quando recebeu notícias de Osório. Entretanto
estivera em Roma, com Pedro Dossém, que a levara a um serão musical em casa
duma princesa palatina. Ema nunca vira tantas mulheres formosas, vestidas com
gosto, com a extravagância do gosto, que tem que ser uma forma natural da
extravagância. Eram mulheres recrutadas no mundo da moda, cortesãs algumas,
outras esposas legítimas mas trazidas das valetas onde se fazem contratos com toda a
espécie de energia, intelectual e sexual, que deixavam Ema deslumbrada. Demasiado
belas para espias, mas contudo ligadas ao fumo que o anuncia, elas representavam
essa combinação de Eros com a filosofia dos valores e que existe paredes-meias com
o celerado no estado de génio.
Eram mulheres que não se encontravam senão no serralho do grande capital e
que, longe de serem estúpidas vénus de ancas de ânfora, sabiam línguas e cantavam
Schubert. Sempre existiu um amor cortês mesmo para além do laço de vassalagem
que liga os homens às mulheres que servem um misticismo qualquer. Elas
pertenciam ao grupo que não precisa de vocação para ser alguma coisa na vida. Não
precisam de ser amorosas para serem amadas; não precisam de ser ambiciosas,
porque tudo lhes é dado.
Não há nelas cumplicidade, há apenas a naturalidade e a revelação do
feminino. Ema invejou-as profundamente. Achou-se, nessas salas embalsamadas de
flores, uma intrusa. Trataram-na com uma doçura que não permitia que se devolvesse
atitude igual. A princesa, inclinada sobre os pés calçados de preto, uns pés que
brilhavam e pareciam pertencer a um palmípede desconhecido, perguntou-lhe se no
seu país fazia frio.
— Frio? — disse Ema. — Algumas vezes. É um frio que não se vê, o pior dos
frios. As pessoas andam vestidas de Verão, e tremem, e têm a cara roxa. É um frio
que não se vê, é isso.
A princesa não esperava uma resposta espirituosa, sentiu-se humilhada. E
voltou o rosto. Ema disse a um homem loiro e muito alto, tão alto que parecia feito
para servir, porque a grande estatura, mesmo nos reis, é serviçal e está longe da
magia satânica dum pequeno Bonaparte, ou Villon. Quando Villon escreve o seu
testamento na véspera de ser enforcado e diz "Ma tête saura ce qui pèse mon cul",
avalia a sua estatura exígua com uma espécie de satisfação. Não vai ser demasiado
custoso ao volume das ideias a queda do espaço, a morte ignóbil, tudo isto medido
pela estatura pequena.
Mas que disse Ema ao homem loiro e aprumado? Disse-lhe que lhe apetecia
fumar. Um fumador sempre ouve outro; às vezes isso custa-lhe a vida, mas nada
melhor do que um catarro que se partilha.
Ema estava muito longe do baile em Vale Abraão e não queria lá voltar.
Olhava, como se tivesse acesso a um tabernáculo, as sedas pálidas e a grande mesa
onde se levantava uma fruteira enorme de vermeil; dos três pratos suspendiam-se
flores e doces, de massa tão fina que parecia carne loira, cristalizada, com um suor de
pérola, com um trigueiro açúcar de Demerara. Ela provou um, arrependeu-se. Não
sabia se devia ou não tocar-lhes.
— Vamos embora — disse, a Pedro Dossém. Tolo como era, ele servia a todas
as situações, como uma casaca de adelo. Estava entretido com uma mulher gorda e
alegre apresentou um dos convivas.
— Não é o meu marido, é o meu amante. — Ela riu-se, saboreando a
licenciosa doçura que lhe ia nas veias, o serão tão romano, duma libertina alquimia
de clero e nobreza e povo. Pedro Dossém qualificou-a como sendo uma espécie de
Flora de Ticiano, mais entrada em carnes e em idade. Filha dum polícia, que era bom
começo para a corrupção e a obsessão do prazer que implica a ordem.
Um casal de ingleses instruía-se como num museu; as paredes estavam
cobertas de alto a baixo duma colecção admirável dos melhores pintores. As belas de
Giorgione elevavam o flanco como se fossem surpreendidas e se preparassem para
sair dali. Os verdes sacros, dos grandes loureiros, protegiam-lhes as formas lisas e
com um quê de cerimonioso; como se não fosse seu hábito despirem-se e tivessem
em cima a lembrança de trinta quilos de saiotes, de golas, de cadeias de pérolas e de
oiro. Na sala prelatícia, num pequeno cavalete, estava o retrato do Papa da família;
na sua sotaina branca, parecia resistir ao retratista com uma dose de humor ríspido.
Pertencia ao fim do Grande Cisma, e um brilho astuto consagrava-o mais do que o
voto conciliar.
De repente Ema pensou que eram precisos quinhentos anos de intrigas,
guerras, cárceres e História escrita, para pertencer àquele lugar. Pensou se não fazia
mal em sair de Vale Abraão e ganhar hábitos que era mais cómodo censurar. Há na
censura uma esperança indestrutível, mesmo quando parte da humilhação sufocada.
Agora sentia-se condenada pela sua insignificância. Não era só pobretona, aleijada,
mal vestida; mas era sobretudo marcada pela insuficiência do desejo. Faltava-lhe
arrojo verdadeiro, vontade como um suspiro de recém-nascido que nos acompanha
até ao ralo da morte e que mesmo aí se reconhece. Ela não queria senão pequenos
desafios e pequenas culpas. Esse cortejo de poderosos, letrados, eminências,
condutores de mesnada, príncipes e poetas danados, tinham ganho o seu espaço com
a espada e a mitra, com o rastejar da cobra e o faro da raposa.
Cometiam crimes, faziam leis, abatiam e salvavam povos. Para isso era preciso
mais do que um apetite de ostra que coça a sua praga para produzir uma pérola. Era
preciso o amor, não pelo sucesso e pela competição de sala; era preciso — o quê? O
amor pela destruição. Ema era só um elo de vingança passiva que acorrenta a
humanidade; não tinha direito a ser maldita, era apenas indesejável.
Não nas salas da princesa, uma Sforza, uma garibaldina, uma guerreira
hereditária, que fazia frente ao aggiornamento e com uma insolência tranquila, como
se Deus lhe ficasse reconhecido. Estava sentada numa espécie de trono, e uma aia
servia-lhe água muito fria, com uma gota de menta. Por um momento deteve o olhar
em Ema, e ela sentiu um gosto amargo duma senilidade que a via como o símbolo da
beleza que não interessava mais admirar. "És bela — dizia a princesa —. Mas aqui
não chegaste a tempo. A minha criada tem mais razão de ser do que tu. Vê como ela
serve, como ela deixa escorrer o licor da menta nas paredes do frasco, e espera, para
o pousar sem ruído; só depois de a gota regressar ao verde e fangoso conteúdo do
frasco, ela o pousa, assegurando-se de que tudo está em ordem. Eras capaz dessa
firmeza, essa entrega ao Outro absoluto? Capaz de se ignorar na sua solidão, porque
servir é isto? Não, não és capaz. Volta para os teus pequenos desarranjos mentais, a
tua declaração piegas dó coração puro que perdeste. Um coração puro não se perde,
não se gasta, não se transforma. Aquela passagem inédita da Madame Bovary, que se
refere a "um coração puro como a água das pias de água-benta", ainda bem que ficou
inédita. Um coração puro! Tinhas que ser idiota, mansa perdida como uma vaca no
pasto, capaz de dedicação, de respeito, de ser impessoal e atrasada; como a minha
criada que aqui vês, e que não te vê a ti. Porque só tens olhos para a servidão e a
honra que é dobrar o joelho, e vencer o orgulho. Vai-te embora. A tua beleza é
ansiosa e não terrível.
Terrível era a beleza de Minerva porque nasceu do fanatismo pelos homens;
não do amor por eles, isso é demasiado banal, mas do fanatismo, radical servidão e
praxe militar como é própria de Minerva, a chapeada de bronze e sabedoria, com
casco e gládio, e, no entanto, serva dos homens."
Quando Ema chegou ao hotel, abriu a janela sobre a Vila Borghese, e o doce e
claro agitar dos pinheiros pareceu-lhe um exército que avançava. Assim devia ter
sido a impressão de Macbeth, no seu leito, à noite; só no seu leito, com o frio lugar
da esposa ao lado dele, e os passos no pátio do castelo que denunciavam a ausência
de servidão. Só a natureza macha que só machos gera; só o terrível abandono à
ambição rancorosa; só o delírio que conduz à obsessão e ao crime. E ele, Macbeth,
ouvindo o gemido das folhas e ramos que rangem, e pensando na floresta vagabunda
e, com ela, a perdição. A mulher vagueia, secas as veias do ventre, seco o útero e sem
doces licores do ventre molhando a camisa de linho. Só o gesto de castrar, decapitar,
reduzir as viris ameaças a uma súplica de ladrão. As Macbeth, os olhos fechados, as
mãos de sangue, dão a volta ao ameado castro; e as águas sonolentas da Dinamarca
rodeiam o seu sono implacável.
Por muito tempo Ema esteve arrependida e quis remediar a sua vadiagem.
Sentimentos de vergonha e de cólera serviam para a levantar da sua prostração. Fez
um esforço para amar Carlos e reconhecer a sua boa índole. Mas ele não a amava
mais como ela julgava ter sido amada durante o noivado; aquilo que era vacuidade,
porque os sentidos tudo interceptavam, ela pensava ser amor puro. Que ideia tinha
Ema da pureza? Uma espécie de privação que nos consola de não nos lançarmos em
perturbação sem nexo. Privação do desejo, humor que despreza, fonte duma
soberania em que vacila o saber muito sobre o mundo. Branca, a uivar, na cama,
enquanto o aborto não se resolvia, dava-lhe essa sensação de pureza, de honroso
espaço acima desses mistérios, torpes ou injustos porque o corpo lhes era infiel, o
corpo não combina com o mistério. Nelson estava na cozinha a fingir que esperava
ordens, mas, na realidade, aterrado com a agonia da amante.
Carlos Paiva pôs-lhe a mão no ombro, e Ema ficou-lhe grata por aquele gesto
de homem que não reprova, só presta auxílio. Era o coração puro de Ema que batia?
Era o seu fanatismo pelo amigo, o irmão da mocidade que Nelson e Francisco eram
para ela. Puro ou não, o coração batia mais forte quando estava a sós com eles.
Francisco, tão travesso e cheio de invenções maldosas, o que trazia a mãe sempre em
apuros, travava um pouco os seus planos, se Ema lhe pedia. E Nelson adorava-a.
Deitava-se com Branca mas para iludir-se, para sofrer depois desse prazer confuso,
pensando que Ema talvez um dia estivesse mais perto, ao alcance duma fortuna que
ele não tinha ainda. As mulheres foram a sua carreira; casou com duas que o
tornaram rico, mas, no entanto, foi ganhando um véu de esquecimento pelo caminho,
afeiçoou-se às propriedades e velou por elas com o resto de paixão romântica de
moço pobre que ele tinha sido. Coisas para lembrar, o que Ema raramente fazia.
Osório disse que a queria ver, e Ema partiu para o Porto no seu carrinho
amarelo, deixando recado ao marido. Carlos nem abriu a carta, e só no dia seguinte
reparou nela e meteu-a no bolso. Estava cansado de Ema, desejava às vezes livrar-se
dela; observava-lhe a cor, o brilho da pupila, um tremor das mãos. Talvez tomasse
droga. Começou a informar-se sobre os efeitos das pílulas, dos diversos fármacos de
que Ema se servia em quantidade. Analisava as mudanças que se operavam nela;
revistava-lhe a bolsa e as gavetas com a intenção de lhe surpreender o vício.
Desejava que fosse verdade; traí-lo com morfina era melhor do que traí-lo com os
homens. Porquê? Achava a paixão pela droga uma atitude inferior, como a devoção
duma beata; mas a paixão por alguém inclui o impensável e o indizível. Disso, ele
tinha ciúmes. Ruminava pensamentos que o punham louco, imaginava Ema com os
seus desejos precisos, egoístas, fortes, por um homem; pelo prazer feito de mínimos
gestos, do elo interior que une duas criaturas e a criatura ao seu Deus.
Ficava em estado miserável, deixava de atender a clientela, desligava o
telefone. O sogro veio vê-lo um dia e encontraram-se como duas pessoas que têm
uma religião em comum sem procurar decifrar os seus sofrimentos e as suas
emoções] Para Paulino Cardeano, a filha estava simplesmente desencaminhada; para
Carlos ela estava perdida. Esperava sempre que lha trouxessem morta, os cabelos
arrancados pelo efeito dum acidente. Disse a Paulino, que o olhava espantado:
— Um rosto como o dela pode justificar a vida dum homem.
O sogro achou-o meio doido, não disse nada. Talvez Ema precisasse doutro
marido; aquele era brando demais, corrompera-a pelo consentimento e talvez pela
castidade que se instala no casamento como a alma dos medíocres. Tinha o que
merecia. Paulino Cardeano deixou-o, convencido de que não] é bom aproximarmo-
nos dos infelizes; via em Carlos o sintoma] da insignificância, que é apregoar uma
tristeza da qual não se tem a prova.
Ema foi outra vez atraída para a sua história amorosa com Fernando Osório,
mas já não lhe achou o primitivo sabor; a aura da clandestinidade e da aventura era
substituída pela renovação dum caso prestes a tornar-se em amargura terna, que é o
caso do amor sem desfecho. Não havia mais sentimentos piedosos, como os que se
experimentam por um culto; nem a impressão de viverem a excepção, minada pelas
consequências duma atitude e, por isso, com crises de negros desafios, vontade de
tudo perder, de ser cego e surdo a todas as leis. Ele tratava-a com desprendimento,
dizia que ela era egoísta, se o esperava em vão e o sujeitava depois a recriminações
violentas. Porque Ema tinha um génio de preceptora, adivinhava-se o cepticismo de
classe, que têm os professores pelos alunos.
— Não és uma amante, és uma doutora.
— Doutora em quê?
— Em orgulho. Não é o amor que te interessa, mas o amor como uma ciência.
É isso que parece paixão, o amor da ciência.
Bebiam pelo mesmo copo um champanhe cor-de-rosa, Ema estava encantadora
no seu vestido com rendas amarelas e ouvia música.
Osório não lhe resistia, excepto quando a esquecia, andando em viagem e
fazendo a corte a homens, mais do que a mulheres. Eram os homens que tinham que
ser seduzidos, tratados com atenções desmesuradas, servidos, amimados, divertidos
com anedotas e agrados. Quase se sentia na obrigação de mandar flores a um leitor
de contratos, para que ele desse uma informação favorável. E, como ele dizia,
desarticulava as maxilas em sorrisos para dar boa impressão, para ser escolhido,
preferido, recebido. Ema era apenas o cómodo refúgio; junto dela, Fernando Osório
ia falar dele próprio, como se ia ao confessionário pedir o esquecimento da própria
limitação. Não era pedir a esperança numa vida eterna, mas sim a coragem de romper
com a eternidade e ser apenas um pouco de insatisfação resignada.
Isto não convencia Ema a esperar o amante, bebendo um bom vinho ou
saciando-se de pensamentos vingativos a respeito da vida matrimonial. Não era que
deparasse nas planitudes do adultério com os aborrecimentos do casamento. No fim
de contas, dedicava a Carlos um espaço singular, uma espécie de integralidade feita
das primeiras agitações do espírito causadas pela descoberta do amor físico. Por isso
era tão difícil o divórcio; e nunca chegou a pensar nele a sério. Sabia que ele é uma
espécie de cisma moderno, que deixa sempre uma incógnita, pela unidade que se
desmorona. Ema disse:
— Não vou divorciar-me. Para mim, a queda é isso e não o adultério.
— Para ti o que é o adultério?
— Não posso dizer sem te magoar. Mas digo-te: é uma distracção da
passividade. Estás a rir-te de mim?
— Não… não… Ainda que, deixa-me ver o riso sempre alimenta a fé, mais do
que as lágrimas. O adultério é qualquer coisa como o riso que me defende da
murmuração contra tudo o que tenho de mais positivo na vida, até um bom marido. É
como uma campanha em terras estranhas. Procura-se a glória, e aparece a lama do
degelo.
Os incêndios; e quando vemos o carvão e a cinza, ficamos espantados, mas
sem que os prazeres da imaginação sofram com isso. Todos nós temos uma fraqueza
que nos impede de acreditar profundamente seja no que for. Penso que cometer um
erro nos ajuda a acreditar.
Ela atravessava uma época má, Osório desculpava-se, não aparecia mais. Ema
pedia apenas uma razão para se comover, e isso não acontecia. Quando ia ver
Lumiares, percorria a pé a pequena avenida de plátanos, luxo que lhe tirava mais de
dez pipas de vinho, pela muita sombra que faziam; sentia-se abandonada por todos,
não tinha forças para chamar a atenção comi o seu aspecto, deixara completamente
de se pintar e de cuidar o cabelo. Carlos disse-lhe:
— Não queres comprar alguma coisa de que gostes?
Ema compreendeu que não era tão nova como dantes e que se notava andar
desleixada. Isso enervou-a. As filhas cresciam, em breve ela seria uma avó, talvez lhe
desse para ser beata como tia Augusta, que ela não conseguia recordar senão como
uma catequista pobre. Não era. Deixou-lhe alguns bens, afinal tinha fortuna, terras
encravadas noutras propriedades e que se ven-j diam a peso de oiro. A roupa de cama
era modesta, com remendos como a das criadas antigas, que agora já era tudo de
tecido de fibra e não se viam mais as noivas corando peças de pano dos enxovais.
Mas o que era surpreendente era a roupa de baixo de tia Augusta, tão fina e delicada,
com monogramas e fitas. Porquê essa extravagância, Ema não entendia. Até que
Ritinha deu a perceber, com gestos voadores, que tia Augusta vivia apreensiva com o
mistério das levitações. Temia a qualquer; momento ser levantada no ar, e, para isso,
usava saiotes e calças de cambraia, e até seda, para não parecer mal se lhe vissem os
"dessous", Era como ela dizia: "os dessous", com muita compostura e gravidade.
Ema não repetiu a ninguém aquele segredo, bem ou mal guardado pela muda, a
Ritinha, que continuava a ser a lavadeira do Romesal, embora tudo fosse entregue já
ao estrepitoso trabalho da máquina.
Mas para esfregar, tirar nódoas de fruta, fazer desaparecer traços de bâton e
manchas de tinta, não havia como Ritinha; até caruncho vermelho ela tirava, e os
tingidos do suco de carne fresca e de vinho velho. Corava, espremia leite e limão,
fervia e tornava a corar, com cinza e mais pós da sua botica. Ritinha era uma
alquimista, uma bruxa de pequenos ofícios, sempre atarefada com as suas barreias e
tachos onde cozia rendas. Agora menos. Tinha as mãos engelhadas e sofria muito no
Inverno, doíam-lhe como se os ossos estivessem moídos de pancadas. Carlos disse
que ela ia ficar paralítica e que o melhor era morrer depressa. Mais de vinte gatos
viviam com ela e havia um cheiro de felino por todo o lado, um cheiro almiscarado.
Tudo isso Ema repudiara, parecia-lhe outra vida que vivera. Apenas
conservava aquela memória pela trémula cabeça de dona Augusta quando encarava o
pecado. Não o pecado fulminante e sem defesa, mas o desabuso, o sinal do infiel, o
salpico de lama na alma reincidente e fraca.
— Credo! — disse Ema, pousando o pente na penteadeira e olhando-se meio
de lado. — Será que eu não posso sentir o mal? O pecado não me diz nada. Estarei
amaldiçoada?
Mas não. Quanto maior era o sentimento de maldição, mais o pecado actuava.
A pessoa achava-se banida, separada, lançada no abismo. Mas ela, não. Quase podia
dizer que o pecado lhe fazia tanta impressão como as nódoas nas roupas que Ritinha
torcia, espalmava, ensaboava, torcia de novo. Estendia na relva e nos arames, atirava
nas sebes de silvas, pendurava nos muros, batendo as franjas, soprando as rendas,
fazendo estalar no ar as fitas. O prazer estava em ousar para pôr à prova o criador do
próprio pecado; havia um diálogo permanente entre Ema, que aceitava a oferta do
mal, e o seu criador. De facto, os homens eram o seu meio de captar o mal e
assegurar-se da existência de Deus. E tanto acreditava nisso quanto o pecado lhe era
indiferente. Praticar um pecado era o mesmo que entabular uma conversa cujo
motivo fosse a realidade. Do pecado, evidentemente.
A Bovarinha, tal como a designavam, não era outra coisa senão esse desejo de
compromisso, essa raiva de atingir o criador do pecado e pedir-lhe explicações. Os
amantes, tal como, Osório, não lhe serviam senão para através deles consagrar o
pecado. Mas só amando se consagra alguma coisa; senão era apenas o silêncio.
Esse silêncio cada vez mais a confrangia, dava-lhe claros sintomas de
desarranjo mental. Carlos já não sabia como tratá-la. Ignorava-lhe as cóleras e as
infidelidades; receitava-lhe banhos, e Ema ia, por troça, mergulhar nua nas piscinas
sulfurosas, aparecendo no vapor da água, como uma alma dantesca, fazendo fugir as
tímidas banhistas, que se queixavam às criadas. Estas chegavam, como guardas de
presídio, o mesmo ar repreensivo e ausente, defendidas da pobreza pelo uniforme e
certa gravidade de ofício que distribuíam conforme a clientela. Para as banhistas de
modestos recursos, que tomavam os banhos com camisas antiquadas, coladas à carne
mole e desgastada, elas eram comunicativas, tomavam confiança, alguma coisa de
fútil e ignóbil ligava-as, como se ligam estranhas e amigas num bordel. Mas para
Ema eram sentenciosas e distantes; faziam-na esperar, olhavam-na com um desprezo
risonho depois de receberem as gratificações. Ema recusou-se a continuar o
tratamento. De resto, as Caldas traziam-lhe recordações que a feriam; o primeiro
amor, por um rapaz inválido, o fresco ramalhar das árvores acima da sua cabeça, a
manhã que anunciava o dia quente e, do lado de lá do rio, a copada margem até onde
descia o parque dos Semblano. Às vezes, muito raro, Maria Semblano, com um
vestido de linho, vinha de barco às termas e parecia uma princesa em excursão, com
a sua aia e o cocker amarelo. Todos a olhavam, ela deixava-se ver com a simpatia, a
serenidade, uma solidão que diziam quanto ela era para si própria o seu melhor
público e a sua melhor recompensa. Era ainda nova, muito branca, com esse orgulho
de mulher que prefere a aristocracia da castração, aos fulgores da vida sexual. Ema
admirava-lhe a elegância parisiense naquele ermo frequentado por burguesas com pé-
de-meia e caseiras de quintas, cujos pergaminhos eram as receitas do médico.
Mais tarde, quando já vivia em Vale Abraão, voltou a ver Maria Semblano.
Pareceu-lhe velha e desfigurada; experimentou uma desilusão ansiosa como se
deparasse com um antigo amor já longe de corresponder ao génio da passada
mocidade. Não encontrava motivos para ter ciúmes dela, mas também não ficava
indiferente à assiduidade de Carlos Paiva junto da exemplar Semblano. O ciúme é
um receio do prazer dos outros. Ávida como era da sua força dominadora, Ema
considerava toda a liberdade do marido, ou dos amantes, como um rasgão ou mancha
no seu manto. Continuamente enchia Carlos de alusões derrisórias, fingia não
perceber que motivos tinha a soberba Maria para o receber a toda a hora.
— Ela ri-se de ti. Os fanáticos riem-se de toda a gente. O que excita neles a
compaixão pode fazê-los rir. Tudo o que é inferior nos causa riso.
Quase estava perto de acrescentar que os cornudos despertam o riso e Maria
Semblano lhe negava o direito de sofrer, rindo-se dele. Como ela fazia, Ema, jogando
forte contra a pena e o respeito, e rindo-se para negar a piedade pelo marido.
Mas Carlos não parecia mortificado. Só a ausência dela o atormentava;
tornáva-se imediatamente distraído, não atendia os doentes nem lhes prestava a
atenção devida. Deixava mesmo de visitar a Semblano e de ter prazer em corrigir os
seus cadernos. Faltava-lhe o desgosto, a fatalidade, indirecta ou frontal, que Ema
propagava à volta dela; os seus repentes, as suas mudanças de humor, os pequenos
cuidados que ela lhe dispensava como se dispensa a um gato, um mimo divertido,
pronto a transformar-se numa sevícia sem consequências. Ela não queria comparar-se
às adúlteras conhecidas, aquelas que tinham dado escândalo com os seus casos quase
sempre rodeados de circunstâncias cómicas, palmares, que se furtavam à seriedade,
que se davam em espectáculo como um número de circo ou de revista.
Porém, Ema desprezava as mulheres galantes, algumas de alta sociedade, e que
tinham o retrato nas casas caras de rendez-vous. Elas não eram ridículas. O dinheiro
paralisa o músculo do riso.
Agora havia uma juventude para quem o riso não era a mesma coisa. Ao
nivelarem-se as classes, o riso era dispensado como meio de as transpor e vencer.
Ema queria fazer do seu adultério uma instituição. Mas não chegava senão ao vício
raciocinador; o resto era parte da inocuidade com que o mundo se protegia.
O seu refúgio era o Vesúvio. Chegava lá depois de muitas horas de viagem,
num comboio a vapor, com transbordo, cheio de gente meio selvagem,
completamente desbocada, feliz na sua promiscuidade. Gozavam em dizer palavrões
para que Ema os ouvisse; ela gozava em dar-lhes a entender que se candidatava, por
todos os meios, ao respeito deles. Oferecia-lhes cigarros e chocolates, como os
marines desembarcados na Europa da guerra. Era uma provocação, e ela sabia.
Provocação, sobretudo, porque ela não se levava a sério, excepto em desempenhar-se
como pessoa humana, e só o amor era capaz de o fazer. Mas o amor não era mais
uma ilusão ou uma desordem. Era um tráfico. Ema saía no Vesúvio com o seu saco
de viagem, tiritando, se era o tempo frio, tão cortante que o rosto se arroxeava e
deixava de sentir os dedos dentro das luvas. Os grandes cães lobeiros vinham farejá-
la, com um suspiro baboso de vadios aceites pela comunidade e que serviam vários
donos. Eram pardos, desengonçados, um ar de vingança esquecida nos olhos
amarelos. Ema subia, deixando a bagagem na estaçãozinha sinistra, que cheirava a
urina e a pó. Vinha buscá-la um empregado loiro, entre jockey e rapaz de recados,
que não teria mais de quinze anos. Ema tratava-o com um desabrimento doce, e ele,
chamado Fortunato, tremia de felicidade. Ema era algo de irreal naquele lugar cavado
nos braços negros do rio; algo de maternal acordava nela para aquele menino
andrógino e cheio de coragens sonhadas, como a de a possuir e talvez a matar.
Durante muito tempo Fortunato tratou Ema como se ela fosse a esposa de
Osório; não permitia que o Caires, velhaco e ladrão que era, a difamasse nem
incluísse nas conversas de cozinha e camarata, supondo-lhe depravações de mantida.
Caires era o macho que, no fundo da sua solidão, se atrevia a imaginar a submissão
dos outros machos. A mulher, pesada e bela, tratava-o com uma confiança cega que
pressupunha a partilha de todos os segredos, mesmo os mais obscuros.
Muitas vezes Osório não aparecia. Ema ficava bloqueada pela chuva, passava
no Vesúvio quatro ou cinco dias, aborrecendo-se de morte, folheando revistas velhas.
Fortunato andava perto, ela via-o dobrar um canto do corredor ou desaparecer na
escuridão da vinha, mal abrigado num casaco que tinha sido de Osório e que lhe
ficava acanhado. Era baixo, de ombros largos, tinha ar de trapezista, pensava Ema.
Para Fortunato ela seria inesquecível, com aquele amplo casaco de marmota, coberta
pelo fumo do comboio que se enrolava com a humidade do rio. Os cães,
reconhecendo-a, davam corridas, levantando o pó da estrada.
— São os mesmos? — perguntava Ema. Compunha os cabelos para debaixo
do gorro de lã, e o rosto ficava livre e tão fino como se fosse cortado à goiva. Lindo
nariz, de asas delicadas, olhos dum castanho acobreado. Fortunato não sabia que
dizer, de tão surpreendido, cativo, humilhado até pela beleza dela e tudo o que dela
esperava: sujeição, vingança, malícia.
— Não sei se são os mesmos. Às vezes um ou outro fica debaixo do comboio.
— Temos então cães suicidas. — Ela disse aquilo, com voz neutra e sem ironia
nenhuma. Pressentia a presa, recuava um pouco para a avaliar. Só à entrada de casa,
mandando-o subir à frente, apreciou a anca estreita nos jeans de lona azul e a
pequena cabeça loira. Era loiro, com melena crestada pelo sol e mais basta sobre a
testa. Agora, os rapazes da vinha deixavam crescer o cabelo; este caía em cachos na
nuca, davam-lhe um ar virginal e um pouco ambíguo. Ema perguntou ao mordomo
Caires quem ele era.
— É sobrinho da minha mulher. Não fez ainda a tropa nem nada.
Disse isto como se ele fosse imberbe e esperasse o rito da iniciação. Estava já
excluído da guerra ultramarina, e isso pesava contra ele. Outro irmão dele viera
desfigurado e drogava-se; mas ninguém os via, a esses rapazes destroçados. O mundo
sabia esconder os seus desastres, e não se viam os inválidos nas ruas e nos cafés; nos
cinemas, nos estádios. Ema jantou sozinha na sala enorme, com aparadores como
capelas onde brilhavam os dragões rosa da louça da China. Era a casa dos Osório do
Vesúvio, construída no estilo barroco, com escadas de pedra e um terraço sobre o rio.
Uma casa lendária, que cheirava a vinho fino, a aguardente vínica, a vinagres de
cheiro. Do lugar onde estava, Ema via um ângulo da copa e os pratos cobertos, de
casquinha inglesa. Fortunato estava lá, sentado, as pernas abertas, o rosto apoiado na
mão como se dormisse. De repente levantou-se, e desapareceu. Ela teve um pequeno
choque, ficou parada, o garfo espetado no puré de batata que arrefecera. Sentiu frio.
— Ligaram o aquecimento?
— Só hoje à tarde, não houve tempo para ficar quente.
— E o meu quarto? Acenda o lume no meu quarto.
Saiu da mesa, irritada, com modo autoritário, como se fosse ali a ama, livre
doutro compromisso que não fosse esperar o amante e servir-lhe as sobremesas,
deitando-lhe no prato fios de ovos. Demorando, enquanto lhe perguntava coisas de
amor e ciúme, pronta a verter na toalha o vinho e o doce e romper a toalha com a
faca. Tinha cóleras destas, se Osório a descontentava ou chegava tarde. Mas, desta
vez, estava distraída, fumou pela metade um cigarro e apagou-o com os dedos sem
reparar que se queimava.
— Vou-me deitar.
Caires olhou-a com suspeita, tudo o que Ema fazia o enchia de sórdida
curiosidade que ele transformava em cobiça. Roubava-lhe dinheiro e até peças de
roupa. Esperou até ouvir o chuveiro e depois os passos dela, que eram leves mas
faziam gemer as tábuas assentes sobre vigas. Ema já estava na cama quando
Fortunato trouxe fitas e aparas de madeira para acender o fogão. Um perfume de
rosas bateu-lhe no rosto, e ele entreviu Ema na doce névoa do mosquiteiro, quieta, as
mãos no peito e as mangas da camisa abotoadas, como uma noviça que recitasse as
orações. Ele deitou na lareira a carga de lenha, acendeu o lume com os dedos
trémulos. Virou-se, parecia esperar ordens, Ema não lhe disse nada. Mas subitamente
afastou as cortinas da cama, ele aproximou-se, tocou-lhe os cabelos com uma paixão
fria, que não aspira senão a despertar, ignorando ainda as promessas maiores. Ema
escorregou nos travesseiros, os grandes travesseiros de plumas que eram o luxo dessa
hotelaria secreta, entre amantes e convidados de prestígio. Não o deixou possuí-la,
tratou-o como a um eunuco trataria no serralho a sua sultana; permitindo-lhe carícias
que a surpreenderam pela força de domínio que era como um ferimento no sexo dele.
Nessa última recusa havia ainda a fidelidade ao amo e ao soberano. Não cometia uma
falta, inaugurava um vício. Fortunato, foi, durante muito tempo, com a sua tez de
colegial e a cabeleira loira, a volta à ingénua placidez da puberdade em que o fruto
do amor é compaixão; o desejo, cuja brutalidade se quer merecer está presente, nunca
será tão profundo, subornado depois pelos hábitos e as suas variantes. Ema disse que
Fortunato era ela própria, a sua comunhão pascal de corpo e sangue.
Vale Abraão sofrera uma transformação já antes da Revolução de Abril, com a
saída dos emigrantes, mas sobretudo com a sua volta.
Regresso periódico para a festa de Natal ou para casar as filhas. Pediam
emprestados os salões ermos das casas meio arruinadas e aí davam um jantar opíparo
e ruidoso. Cortava-se a gravata do noivo para leiloar, e esse era o primeiro pecúlio,
símbolo da nova economia e do novo compromisso da família que se constituía. O
grande cardenho dos Lumiares, desfeitas as tarimbas, servia agora para esses jantares
de boda um tanto bruegelianos ainda, mas já injectados duma euforia burguesa, dum
gosto teatral em que a abundância não prescinde do êxtase documental: das flores, do
bolo de noiva, das tapeçarias de seda fingida nas paredes escalavradas. Todos os
salões serviam para as festas de emigrante, tanto o dos bombeiros como os dos
centros recreativos ou discotecas. Mas os preferidos era ainda os dos velhos solares,
cujas tábuas gemiam com o peso dos convidados, mas que aguentavam firme como
os convés das antigas urcas. Ema e Carlos foram convidados para padrinhos duma
filha de Marina, que vivia em França; e depois a velha Mabília casou uma neta e
pediu-lhes para comparecer. Não se tratava de emigrantes, mas neste caso, de Nelson
e do seu estado-maior.
Nelson fizera uma carreira de flibusteiro das damas, casou-se duas vezes e teve
sorte com as mulheres. Ambas eram ricas e amavam-no. Ema encontrou um homem
maduro e de bela aparência que a tratou como uma estranha, acentuando o tratamento
de excelência.
— Sempre foi um burro, mas isto é demais — disse ela, compungida. Mas
depressa verificou que Nelson era o mesmo e que não a esquecera. Tinha quatro
automóveis de grandes marcas, comprara muitas terras e exagerara a febre de
capitalizar. Por isso passou maus bocados e chegou a pensar fugir para o Brasil, onde
vivia já uma elite de milionários e de intelectuais do ensino superior, saídos de
África. As coisas compuseram-se, o antigo seminarista achou quem lhe desse a mão e
entrou facilmente na nova classe burguesa, obrigada ao mote da corrupção e do
espírito acumulador. O casamento da filha de Nelson mostrou quanto os tempos eram
de ouro e prata para os que passavam da angústia do medo à euforia do ganho.
Tudo era fausto, e não do mais suspeito e irrisório. Um gosto um pouco
indecente, pela exibição, mas original. A noiva vestia pomposamente; e o poeta
Régio, que já tinha morrido há muito, ficaria escandalizado a ponto de escrever uma
sátira, só que mais melancólica do que as que já escrevera "no tempo do fascismo".
Nelson usava fraque e, depois disso, o fraque deixou de estar na moda. A aristocracia
não gosta que lhe invadam os seus alfaiates, mesmo quando não se importa de
partilhar os mesmos prazeres.
Nelson tinha um dom, mais raro do que se julga, que era o de aprender o que
liberta e esquecer o que sujeita. Ema, tinha, do lado da mãe, uma costela aristocrática
que a punha ao lado dos senhores de nome, que já não eram mais os detentores dos
benefícios. Sempre tivera uma inclinação por Nelson que a levava a imaginar
sentimentos celibatários e a esperar um romance pastoril com ele. Mas o que
prevalecia era a vassalagem por pessoas como Pedro Dossém, que ela sabia ser um
inútil de tipo vitoriano; ou Pedro Lumiares, um corruptor aposentado; ou Fernando
Osório, que tinha uma biblioteca cheia de louvores à história política dos seus avós.
Nelson seria sempre "o padreca", em cujas veias corria o sangue de incendiários de
conventos e coveiros de afrancesados. Ao ver o fausto que ele ostentava, Ema
arregimentou-se com os seus inimigos e não lhe deu tempo a comover-se com a
senhorinha do Romesal, que ele amara. Era um tempo sem heroísmos, só com a má
consciência da perda das colónias e a sua guerra policial sem batalhas, com
armadilhas e liamba. Todos queriam esquecer; uns porque tiravam da boca o gosto
carniceiro, outros porque se recompunham com outras combinações em que o
armistício funcionava com uma gaveta falsa donde se tiram contratos concebidos por
novos gestores. Ema podia ter chegado mais alto se fosse mais constante nas suas
perversões. Mas escolhera a irrealidade.
Na verdade, com um marido bem sucedido e pronto a reparar as suas
infidelidades com um presente caro, ela seria exactamente a mesma, o contrário
duma mulher-criança que pensa no futuro com uma boa dose de vocação secundária.
Não queria submeter-se a uma vida privada cautelosa, esperando do homem a
satisfação dos seus desejos, os carnais e os outros. De resto, ela começava a entender
que o desejo não corresponde à ideia que se tem dele. Os doces favores que se
sugerem e as miragens que o desejo põe ao alcance dos sentidos não eram outra coisa
senão avisos do amor, e não seus cúmplices.
Depois daqueles dois dias no Vesúvio, debaixo do fogo cerrado que era a
espionagem do mordomo Caires e depois os ciúmes de todos, que se propagaram
como um incêndio, Ema não viu mais Fortunato. Até que um dia, quando esperava
no Porto as filhas que vinham a férias, a gare inundou-se com uma turba de soldados;
reconheceu Fortunato, embora ele tivesse rapado o cabelo e estivesse escuro e com
um ar mais usado. Mais libertino, com essa frieza que é própria do colóquio franco e
selvagem com a tribo de iniciados; via-se que o seu rito de passagem se dera e que
ele guardava a respeito das mulheres um sentimento esquivo e que todo o diálogo
não poderia desvanecer nunca mais. Ele viu-a, ficou parado no meio dos camaradas,
todos mais altos do que ele e que o arrastavam quase, entre risos disciplinados e
despedidas distraídas. Era uma tropa de elite, muito diferente do pequeno recruta
treinado para sofrer a morte. Estes eram preparados para matar; o olhar deles, com
uma espécie de sinceridade clandestina que era a vontade de destruir, impressionou
Ema. Sentiu frio na espinha; mas também um desejo, entre sentimental e carnal,
pareceu-lhe a realidade mais autêntica da sua vida. Ficaram um em frente do outro,
sorrindo, partilhando uma felicidade total em que as palavras eram supérfluas. Lolota
teve que puxar-lhe pela manga, com uma indignação que Ema não percebeu logo.
Amava Fortunato; vivia tão intensamente esse amor, que o homem lhe era quase
indiferente. Podiam separar-se durante vinte anos, que ele não lhe fazia falta, tanto o
amor produzia nela a ideia de profunda e única realidade.
Tiveram alguns encontros, mas eles foram inferiores àquela representação do
desejo. Tudo era processo de liquidar o amor, até a satisfação e a maneira de o
provar. Separavam-se, se não como inimigos, então como obstáculos à realização do
amor. Ela mudou muito. Longe de se fazer cada vez mais irritável, tornou-se capaz
de perceber Carlos e evitar as agressões que dantes lhe destinava com particular
frialdade. Ele não se sentiu poupado, mas mais confortável. Nunca deu por certo que
ela não o amava. Morreria se aceitasse uma coisa dessas. Passou a evitá-la para não
interferir entre Ema e alguma coisa de intocável que era a reciprocidade dela com o
amor. Podia chamar-lhe assim? Carlos Paiva acreditava que, dissimulando e
deixando secretos os seus sofrimentos, conseguia convencê-la, por caminhos
absurdos e mágicos, de que, abandonando-o, Ema ficaria inteiramente desprotegida.
Merecia Ema a alcunha de madame Bovary? Pedro Lumiares ficou muito
surpreendido quando ela lhe fez saber isso, como uma espécie de auto-elogio.
Porque, embora não esperasse nada dele e qualquer intimidade fosse impossível entre
os dois, Ema não recusava nunca a ocasião de produzir a comédia da sedução. Ser
muito franca com os homens, como agora se usava, obtinha efeitos negativos quanto
às relações que se diziam neutras e apenas solícitas. Acontecia que, pela força dum
trato que era tão independente quanto possível, a perturbação erótica se
desencadeava, às vezes, da maneira mais inesperada. Porque o homem, através da
sua amigável tutela das situações está a ser, mais do que a mulher, desfrutado. E
nunca os tempos foram mais exigentes nas coisas da paixão que se interroga. Ao
querer esclarecer tudo, ao dar um direito clínico ao aparelho sexual, ao favorecer o
diálogo que aparenta a liberdade com a cultura literal do corpo, o que sucede é uma
ignorância maior que leva aos caminhos frequentados pelo amor, que nada tem a ver
com a pedagogia.
— A Bovary, tu? — disse Pedro Lumiares. Na casa, que parecia deserta, havia,
no entanto, um respirar de pessoa viva e alerta que se escondesse pelos cantos e
deixasse o espaço livre às preciosas confidências dos dois; que depois iam enriquecer
a relação do casal, sem o excitar porém, dando-lhe a garantia dum sentimento mais
duradouro do que o amor procriador. Ema ouvia, se deixasse de falar, se a música
parasse, o vento se detivesse como um platónico movimento isento de obrigação
fecundadora, ouvia os passos de Simona; e até as fitas do seu avental a serem
desatadas; ou, no lavadouro de pedra, um ligeiro roçar de pano a ser esfregado
enquanto a espuma de sabão vai abrindo bolhas cor-de-rosa. E também o vibrar do
arame esticado sobre a beira do tanque e onde estava sempre um farrapo pendurado,
como o resto duma carcaça branqueada pelo sol, uma costela ressequida, por
exemplo.
Mas uma Bovary, como? Ema não sentia desejo senão em imaginação, e tudo o
que reclamava dos homens era atribuirem-lhe a ela um valor de objecto desejável.
Não era prazer, porque isso logo se tornava uma espécie de pagamento ao desejo do
homem. Fortunato percebeu que Ema resumia nela própria todas as estruturas do
sexo e que, por isso, ele não era um amante a quem ela se rendia, mas um acidente
vivido. Todas as coisas, como ela as integrava pela inteligência, e todas as radiações
dela, eram sexualizadas e, desse modo, encontravam apoio nas mais diferentes
espécies, tanto humanas como inumanas. Ema tivera uma vez uma prova
extraordinária. Amava Fortunato e raramente lhe ocorria entrar em contacto com ele;
e, pelo abandono da imaginação, o desejo totalizava tudo o que vivia; os menores
factos tornavam-se absurdamente presentes, como o de olhar para uma planta, até aí
de pobre floração. Mas, de repente, a planta tornou-se gigantesca e produziu grandes
flores duma cor gritante. Contou o caso a Pedro Lumiares, e ele ficou pensativo.
— O que é a cor, na natureza? — disse. — Uma alienação sexual,
possivelmente.
Parecia muito alterado e apertou Ema nos braços. Nesse momento achava-a
admirável e era capaz de a sequestrar para lhe arrancar mais informações como
aquela.
Então saberia o que é o amor e o que o produzia ou o que representava na
ordem das hierarquias. Passou a requestar Ema como o mais ardente dos
conquistadores e passava com ela muitas horas; até que Ema se fatigou e disse que
não tinha mais nada que lhe dizer. Sentiu-se explorada para além do comércio
erótico, e não quis manter mais aquele tipo de relações. Como a do economista com
os números, que o excitam como um corpo físico e nos quais ele deposita a mesma
espécie de cego apetite dum verdadeiro libertino.
Gradualmente Ema ia-se confinando numa permanente passividade, estado
semelhante ao dos místicos; só que a diferença estava em que ela aceitava a relação
com os outros seres, até os seres vegetais, como se viu pelo episódio da flor escarlate.
Também aconteceu outro caso com uma gata vadia que passou a invadir-lhe a casa,
miando alto, como se estivesse em período de cio. Dava saltos por cima dos móveis e
procurava o contacto com Ema. Torcia-se sob as suas carícias duma forma tão
indecorosa, que Carlos se indignou e a expulsou duramente.
— Não sei o que tem essa bicha. Parece doente.
Pedro Dossém assistiu a uma investida da gata pela casa dentro e percebeu que
alguma coisa se passava. Havia em Ema um êxtase de que ela não dava conta, mas
que atingia a natureza por inteiro. O que causava esse êxtase? A passividade que ela
adquirira ao amar Fortunato e ao renunciar a ele? Mas porque renunciava? Porque a
passividade era mais sexual e mais fecunda do que qualquer forma de participação
activa? O papel que Carlos tinha nessa série de fenómenos era muito ambíguo. O
sofrimento dele tomara uma proporção que parecia limitação de espírito; mas ele não
queria mudar nada, com medo de causar mudança na própria Ema.
O ponto de referência mais importante para Ema era o Vesúvio. Chegava e
partia de lá sem que Osório lhe pusesse a vista em cima, o que ele achava algo
propositado da parte dela. Um dia encontrou-a, Ema pôs-se a fazer as malas.
— Como é isto? É raro um encontro destes e tu vais-te embora mal eu chego?
Tornamo-nos parentes, ou quê?
— Não te aborreças. Meu marido pediu-me que o acompanhasse, tem um
jantar muito formal, coisas dessas.
— Coisas dessas que tu não aturas e de que te livras a toda a hora. Estás mas é
a safares-te. És uma mulher insuportável. Fria e remexida como uma cobra.
Ema não fez caso, dobrava a roupa com os gestos desastrados que tinha, e
meteu tudo no saco de viagem. Nesses momentos era capaz das maiores fúrias para
recuperar a sua liberdade. E como Osório não quis dar ordens para a acompanharem
à estação, meteu-se a caminho, aos tropeções, mas decidida a levar a cabo a sua
ideia, que era fugir dali custasse o que custasse. Chegou no justo instante em que o
pequeno trem parava, em honra do lugar histórico da Senhora. Viam-se de baixo as
palmeiras imóveis e, na balaustrada, Osório que parecia aguardar a partida dela. Sem
um aceno, sem um gesto. Ema voltou-se, com uma indiferença sensual, pensou que
nunca mais se deixariam, embora as suas relações fossem áridas e sem prazer. Mas
ele interceptava os encontros que ela tinha na solidão da casa. O mordomo Caires
garantia-lhe que havia gente pelos lugares todos das redondezas, nem mortos nem
vivos, presentes e ausentes ao mesmo tempo. E a avó de Osório, que fora rica
lavradora, e cujo retrato escuro estava no salão de entrada, andava pela quinta a
recolher do chão varas de videira, como fazia quando era viva. A economia era para
ela uma mania, um jogo com a morte. Aproveitava, juntava, guardava, como se o
tempo fosse medido nesse percurso rasteiro, contabilizado até ao mais ínfimo
pormenor. Ema gostava de Osório pelo que ele possuía desses traços cabalísticos da
avó, hirta e competente nos negócios e de quem se dizia que não deixara
descendentes, só deixara herdeiros. Ele tinha o mesmo rosto ovino que aparece nos
quadros dos donatários flamengos e as mãos rapaces e poderosas na sua palidez
ossuda. Ema invejava essas mãos. As dela, como notara Carlos quando a conhecera,
não eram belas, tinham sempre um pouco de cor nas falanges e uma leve sarda
precoce a manchá-las.
Viu o mordomo Caires que se aproximava de Osório e decerto o avisava duma
chamada ao telefone. Não tardava que ele saísse também numa das suas viagens-
relâmpago. Às vezes um helicóptero vinha buscá-lo. Era insólito aquela descida de
ave a ondular por cima do terreiro onde se juntavam cães e crianças; e o rio descrevia
uma curva, como se obedecesse a uma ordem dada de cima dos penhascos. Lugar de
muitas bruxas e de laranjais calados como lápides. O contraste com a casa de Vale
Abraão, gerida por temporadas pela sogra de Ema, fazia-a entrar numa decepção tão
grande que ela própria se envergonhava. Na cozinha, a televisão transmitia as
telenovelas gritantes e, aos domingos, a senhora Paiva ouvia missa na sala, servindo-
se dum rádio que a acompanhava sempre, os ouvidos tapados pelos auriculares. Ema
passava por ela, às vezes quase nua, esfregando o cabelo húmido com uma toalha, e
ela não se apercebia. Cada um vivia protegido pela intensidade de direitos que se
atribuía, como um muro de informações estranhas ao espaço familiar. A senhora
Paiva conhecia melhor a história das actrizes com que se identificava no comércio de
paixões que partilhavam com o público, do que sabia a respeito de Ema e do marido.
À mesa mal se falavam. Ema era a primeira a levantar-se. Irritava-a a humildade de
Carlos quando a mãe estava em casa. Evitava beijar Ema, ou até demonstrar-lhe
algum agrado. De noite, fingia que adormecia depressa, para não se trair ao mover-se
na cama e deixar que a mãe pensasse que se entregava com Ema a prazeres
conjugais. Se Ema falava alto, pedia-lhe que baixasse a voz, embora ela não dissesse
nada de secreto. A mãe atrofiava nele a franqueza de homem, furtava-se a dar uma
opinião antes de a senhora Paiva assegurar um acordo antecipado.
— Ela faz-te medo? — perguntava. Aquela casa carregada de talha dourada e
anjos barrocos, terminado o período de decoração, já não lhe dizia nada.
Admirava-se como Simona, sempre metida num avental de cozinheira, tinha
na casa das Jacas um lugar circular, desempenhando papéis de toda a espécie com a
sua natureza meio andrógina e essencialmente passiva. Ela acarretava a lenha para
lareira, limpava os galinheiros sem se incomodar com o cheiro de penas e
excrementos. Dava brilho aos metais, lavava a louça, torcia os panos de cozinha,
fazia o caldo para os cães, servia-os nas gamelas como se fossem seus hóspedes,
cuidando em agradar-lhes ao paladar e provando ela própria a lavagem dos porcos
com um leve embeber do dedo no farelo húmido. Não havia nada de bastante
humilde, nada a fazia recuar quando se tratava de remediar a desordem, nem que
fosse a das cavalariças. Sabia escovar um cavalo como um tratador, e reconhecia as
intoxicações, as febres, as pneumonias, nos animais da casa, com só olhar para eles e
tocar-lhes o focinho. Nunca estava parada, comia a correr, raramente se via ao
espelho. Ema chegara a dar-lhe conselhos sobre penteados e maneiras de se vestir;
mas Simona não a ouvia senão por amabilidade. Com o seu ventre chato e os grandes
pés ossudos, tinha, no entanto, uma nobreza que Ema achava imerecida em mulher
tão apagada.
Quando estava com Lumiares, sempre rodeado de livros e ouvindo música
erudita, se percebia Simona que andava descalça a varrer o pátio, sentia uma espécie
de frustração. Porque a amava ele? Não compreendia que não chegassem ali os
ventos da emancipação, e um dia disse a Pedro Lumiares:
— A tua mulher espanta-me. Tanta paciência é uma infâmia.
— Não te iludas. Quando ela se entrega a trabalhos tão humilhantes, dá-se ao
prazer de se desvirilizar. É uma forma de heroísmo, essa passividade feliz a que se
abandona. Eu amo-a porque me sacrifica tudo o que faz de mim o seu mestre.
— Dizes isso com uma calma! E se ela fosse mais inteligente do que tu?
— Ela é mais inteligente. Merece ser punida por isso; pela impostura. E
quando ilude completamente, quando se apresenta oca e idiota, cheia da ternura
duma cortesã, duma cortesã humilhada, nós dizemos que ela é a mulher perfeita.
— Não acredito. O que eu acho é que a força da inércia produz os mais belos
pensamentos. Pensamentos dos homens, bem entendido.
Pedro Lumiares riu-se, e disse que Ema estava a revelar-se mais inteligente do
que ele; o que a expunha a muitos perigos.
— Quais, por exemplo?
— Ao perigo de tornares os homens virtuosos.
— Eu sei. A virtude é a coisa mais danada que há. Carlos vinga-se com a
virtude.
Calou-se e foi abrir as portas do jardim, embora o tempo estivesse fresco; um
pouco de vento fez entrar as folhas que Simona estivera a varrer. Pedro Lumiares
encolheu-se no sofá, mas não disse nada. Uma cólera invencível apoderou-se dele, e
percebeu que seria capaz dum crime ignóbil e violento contra Ema e face ao qual
todo o seu percurso de civilizado não servia de nada. Lembrou-se duma narrativa de
Pedro Dossém que, no momento em que ele a fizera, não lhe merecera atenção. Mas
agora interessava-lhe.

CAPÍTULO V
A CAVERNEIRA DO LADO NASCENTE

Maria Semblano estava gravemente doente e era perfeitamente claro que


Carlos não podia salvá-la. Ela dispensava os médicos mais sabedores, para se fechar
tardes inteiras com aquele doutor embrutecido e cabisbaixo, mas que tinha bons
conhecimentos de gramática. Corrigia-lhe os rascunhos dos livros piedosos e
acrescentava-lhes até algumas palavras que os ilustravam de maneira mais erudita.
— Devia escrever as suas memórias, Carlos Paiva. Tem jeito para escrever.
A cabeça dela, dum ruivo claro, destacava-se na almofada enorme, toda frisada
de rendas. Era uma mulher grande e fleumática, a quem a fortuna fizera espiritual
como uma forma de leviandade. Operada dum tumor uterino, deliberara uma recusa
dos prazeres matrimoniais que era também uma vingança que encontrava o pretexto
certo. Crescera em virtude, afastados os riscos da concupiscência, cujas rédeas são
difíceis de segurar. Um dia, na juventude solar que ela tivera, inquieta das paixões
que entendera cristalizar no amor pelo marido, ela vira o Auriga num museu de
Delfos e contemplara-o com pasmo. As rédeas quebradas, e ele esplêndido, como se
não perdesse nunca mais a galopada dos negros alazões cujos cascos fendiam as
quebradas e que ingressavam no tropel das manadas. Maria Semblano puxara a
manga do marido, atraindo-o a ela com uma precipitada palpitação.
— É um convite? — disse ele, mas sem riso, apenas estafado da viagem, morto
por virar costas àquele exército de efebos e oradores. — São tudo maricas, vê como
se encostam às colunas e enrolam o manto no braço.
— Não sei. — Maria duvidou, suspensa duma curiosidade que a levava para
além do sexo, esse mistério modelado pelo arquipélago das ficções. Ela fizera a
aprendizagem do sexo através do quadro da infância, os gestos, a fecundidade dos
animais, a existência em comum entre as idades que se mascaravam. O avô, que
sempre falava alto demais como se fosse obrigado a atingir a última fila da plateia; a
mãe, aparecendo da esquerda-alta, com o peignoir de cauda, como ela supunha que
usavam as patroas de bordel. Tudo tinha um ar tetral e indefeso, tal e qual uma cena
capaz de ser alterada, tendo a mãe que recuar e aparecer de novo, pintada, grotesca,
levando nos braços o gordo rateiro com coleira de brilhantes. Ninguém acreditava
que fossem verdadeiros, mas Maria concebia bem o prazer de enganar que a mãe
usava e que lhe dava uma tranquilidade especial, mesmo face à morte. Desprezava
essa linda filha, Maria Semblano, que não se parecia a ninguém, como um anjo
hebreu, de cabelos ardentes e uma brancura de queijo fresco. Mas ela desfigurava-se
e era agora uma santa parda no seu nicho, se bem que esta tivesse as dimensões da
corte celestial. Tudo era branco e azul, vaporoso e, apesar de tudo, cavernoso. Muito
antes de Maria Semblano ter nascido, a casa intitulava-se a Caverneira. No rechão
demarcado do vinho generoso, a quinta constituía uma raridade, porque possuía um
parque saudoso e carregado de sombras altas, coroado de espécies exóticas, como as
árvores tropicais de flores mais excêntricas e os pinheiros prateados que subiam nos
ares como ogivas em busca doutros planetas. Aos domingos, a entrada era livre na
Caverneira; embora isso repugnasse aos Semblano, vendo a propriedade devassada,
coio de amores furtivos e de merendas de frango assado.
Todavia, toleravam isso tudo por respeito a Maria, que repartia assim os seus
privilégios, como se repartisse uma herança em vida. Em toda a região só Ema a
detestava. Achava-a como as personagens de teatro, com aquela serenidade resoluta
frente à morte e que era tão artificial como o próprio teatro.
— É uma mentirosa, vê-se logo. Só tu não vês nada, doutor de lanceta e
sinapismos — dizia Ema. Em volta dela, o cinto rodopiava como uma serpente, e ela
tinha dificuldade em prendê-lo. Às vezes apetecia-lhe maltratar Carlos, tão
convencido com a sua sereia desovada, como Ema dizia, cheia de espírito guerreiro e
quase alegre. Ela não era mulher para Carlos Paiva. Porque se empenhava no
casamento, quando podia retomar o fio da vida em melhores condições? Bastava-lhe
ir para a cidade, Lisboa, naturalmente, mais frequentada de candidatos a todas as
fortunas, do dinheiro, do amor e da política. Mas acobardava-se; fora criada para mãe
de família, para ficar limitada pelas leis urbanas e jurídicas, para os prazeres sem
risco e os fantasmas de prazeres maiores. Uma distância imensa separava-a do
mundo onde reinavam os furores, onde havia laços de sangue feitos pelo desejo e a
ambição. "Sou uma tola, vou ficar velha e sei lá se debochada, a dormir com um
caixeiro." Mas recompunha-se, admirada como era por Pedro Dossém, polida por
Pedro Lumiares, eunucos que a moralidade creditava como suporte dos casamentos
menores. Carlos facilitava-lhe as amizades, recusava-se a conhecer os telefonemas
dela, os recados. Para ele, Ema era tão desinteressante como uma inspectora escolar,
e dava-lhe a entender que a sua sedução era uma questão de nostalgia de rapariga.
Não perdia a ocasião de lhe fazer notar uma ruga leve, um cabelo branco, um ligeiro
amarelecer dos dentes. Ria-se se Ema se preocupava.
— Já não és uma menina, que querias?
— Podias calar-te, que diabo!
Outras vezes Ema percebia uma punição sangrenta no aspecto sério dos
conselhos que ele lhe dava. Reagia brutalmente, embebedava-se.
Carlos via-a caída no sofá, com a boca murcha e os olhos debruados de negro,
os seus olhos egípcios que ele amava e que, de repente, de tão humilhados, lhe
pareciam parte do mito amoroso que o obsecava. Porque ele vivia para Ema, não
sabia como enquadrá-la na sua realidade e permitia-se uma conduta aberrante que era
dissimular o amor, castrando-se e obrigando-a ao acordo da sua impotência. Já não
sofria por suspeitar dela. Algo como uma utopia dourava as relações de ambos. Os
vestidos, o carrinho amarelo, as extravagâncias, serviam para interceptar os
momentos mais limitados da vida colectiva e desviar o seu carácter repetitivo. De
súbito, Ema dava um jantar, retomando simplesmente uma certa quantidade de bom
senso que a punha em dia com a sociedade. Era tão digna e moderada nas palavras,
que criava a ilusão de transpor as suas contradições e, mais ainda, fazer aliados nesse
sentido.
Mas Pedro Lumiares não se deixava enganar. Esses períodos calmos, em que
Ema retomava a condição trivial dentro do recinto demarcado da respeitabilidade,
prestavam-se a uma confusão de máscaras; umas vezes até ela chegava a contagiar as
outras mulheres com a sua efémera candura, tornando-se na criança irresistível na
qual convergiam todas as figuras dum quadro. Embora a Vénus adormecida estivesse
presente, e os pastores, e os donatários, e os bispos com mitras douradas e báculos
em forma de clave musical, era para o bambino que os olhares desciam. Ela reunia a
federação das solidariedades, reunidas as errâncias e os temores nascidos da
insegurança humana. Ema sabia que a criança podia conjugar todos os serviços da
vassalidade e todos os atentados do poder. Só uma mulher muito nula ignorava isso.
Simona não o ignorava. E por esse motivo ela gatinhava, balbuciava, tinha sempre
um joelho arranhado e um pouco de chocolate ao canto da boca.
— Podes ver, Ema, podes reparar como Simona deixa a criança morar nela
mais do que se a trouxesse no ventre. A criança faz-nos medo, ela transforma-se
nalguma coisa que nos vai vencer; opõe-se a nós com a simples capacidade, de
crescer e de representar-se como uma pura ficção.
Se te deres a esse trabalho, verás que Simona é uma refugiada aqui nestes
lugares da jaca. Tomou a forma drástica da criança obediente, mas conserva a
depravada herança da cortesã e sabe todas as artes do prazer e do ócio. Se vires bem,
vê como te deseja e te lança um olhar vicioso, sem dares conta que ela te alveja com
ele como com uma seta. Não te acontece teres de repente que virar a cabeça sem
nada te chamar? O que vês? Simona que se arrasta em volta dos canteiros e arranca
ervas, como um irmão leigo que de nada sabe a não ser de obediência e do toque dos
sinos do convento. Não te iludas. É mais provocadora no silêncio, do que na palavra.
É mais terrível na virtude, do que tu na desordem. É por isso que os homens
procuram as marafonas, as descaradas, as chegadeiras, as bêbadas, as fornicadoras.
— Por estranho que pareça, eram palavras de Pedro Lumiares.
— Não me deixas alternativa — disse Ema. — Espera, não sou assim tão
procurada. Porque será? A minha criada tem mais probabilidades de seduzir o
cobrador da luz, do que eu de me fazer amar. Não vais dizer que sou lésbica ou uma
coisa assim.
— Isso só servia para melhorar as nossas relações. Mas não é nada disso de
que se trata.
— Do que se trata, não me dirás? Não estou bem em nenhum lugar, não há um
território social e mental para alguém como eu. Os casais que trocam injúrias e
bofetadas criam uma solidariedade qualquer; mas tens de admitir que já são raros. Eu
posso fazer tudo o que me apetece, menos exagerar.
— Pelo lado da vontade de poder, podes exagerar. As mulheres circulam por
esse lado, protegidas pela civilização da técnica. Mas isso basta-lhes? Não, com
certeza. Elas acabam sempre por estabelecer um contrato qualquer com o diabo,
porque isso afecta uma paixão obscura que todos nós alimentamos: o domínio da
morte e do prazer da carne. Não procuras os homens para gozar com eles, mas para,
se puderes, os vencer de alguma maneira, tirar-lhes a alma em troca do amor.
— Não te quero ouvir. — Ema rebolou-se nas almofadas que juncavam o chão,
e a sua beleza ganhou uma forma alegórica de concubina num serralho. Os belos
cabelos pretos deixavam passar os raios do olhar imenso. Ela lembrava-se de
Fortunato e do ambíguo mistério que tinham partilhado, ela violadora e autoritária,
ele surpreendido nos seus desejos mais profundos e deixando-se possuir até ter que
reprovar-se e sentir-se votado à maldição. Já quase não o via; a última vez
encontraram-se numa pensão sobre o rio, e Ema achara que tudo se reduzira a um
esforço para se enganarem sobre o amor e o desejo. Ele queria uma mulher que
tivesse um emprego e lhe desse filhos; pensava que, se ganhasse um automóvel num
concurso da televisão, seria invejado e bem recebido em toda a parte. A sorte era uma
prova do favor divino; e onde quer que estivesse um deus, parente duma entidade
patrocinadora, era bom aproveitar-lhe as fraquezas que se manifestavam pela sorte
dos mortais. Não deixava de ser engenhoso ver Deus daquela forma; alguém cujo
fraco era deixar ao acaso certos factos que poupavam as pessoas ao trabalho e ao
sofrimento. Mas não era prudente exagerar. Fortunato empreendeu a sua fuga para o
deserto quando Ema foi além das solicitações banais da amante. Ela estava a servir-
se dele para resolver a sua angústia de querer possuir, querer ser, querer valer.
Fortunato sentiu-se logrado.
Mas era uma epidemia a que bem poucos escapavam. As salas dos psiquiatras,
os clubes, os sindicatos, os partidos, as confrarias, os grupos corais e religiosos,
estavam atacados desse vírus absurdo e devastador. Ninguém era mais um lírio do
campo, ninguém.
Ema encostou-se ao peitoril da janela e viu o rio correr, já carregado das
chuvas de Outono. Era na Ribeira, do Porto, e atrás dela Fortunato penteava os
cabelos loiros que estava em vias de deixar crescer até aos ombros. Parecia uma
mulher e, visto de costas, não se podia distinguir. Usava ao pescoço uma cadeia de
oiro e depois um brinco na orelha, mas tudo isto um pouco ao acaso, sem lhe atribuir
sentido algum.
Ainda que inculto, Fortunato percebia o bastante do comportamento de Ema,
talvez porque, criado no meio de mulheres sós, se acostumara às suas paixões
imaginárias; e, mais ainda: a um certo apego à pobreza, que a ganância e o desfrute
do luxo nunca podiam apagar. Reparava como Ema gostava de viajar nos vagões de
tábuas, pequenas caleches verdes de montanha que trepavam custosamente os
desfiladeiros do Tua, movidos a lenha e a carvão. Ela aceitava partilhar do farnel de
velhos casais que voltavam do internamento do hospital para ir morrer em casa,
ciscando a côdea de milho como pardais friorentos.
— Não vai acreditar, mas tenho sessenta anos. Todos dizem que não pareço, eu
sei que não pareço — dizia a viajante, que era como uma cadelinha de tetas bambas e
olhos suplicantes. Ela queria ser convencida e adulada; o velho marido há muito que
não lhe prestava nenhuma honra conjugal, nem se lembrava disso, o coitado, às
voltas com a hipoteca, os seguros, as letras, os filhos que, casados, eram mais
pedinchões do que nunca e conspiravam a sua morte, a dele, proprietário de vinhas
perdidas nas traseiras do Corgo. Ema aceitava uma coxa de pomba, cinzenta e mole,
e que sabia a algo como estrume seco. Comia delicadamente, ela era boa a desastrada
Ema que tinha uma capacidade de indiferença e desapego fundada numa obscura
confiança em qualquer coisa de nobre que a vida não merecia. Era humilde; e doida,
todos sabiam. Ao mesmo tempo, todos a encobriam e antes esfolavam vivos os
vizinhos, do que escreveriam sequer um bilhetinho malicioso ao santo Carlos Paiva.
Porque ele passava por santo ou, pelo menos, pelo cornudo mais simpático e
prestável que era possível conceber. E, por outro lado, ninguém surpreendera Ema
em adultério, tudo se resumia a vê-la andar numa constante corrida no carro amarelo
descapotável e que dava sinais de senilidade.
Obstinadamente, Carlos Paiva recusava-se a aceitar a infidelidade de Ema.
Viúvo experiente, apesar das suas aparentes ingenuidades, que exasperavam Ema e a
tornavam caprichosa e insegura, Carlos conhecia bem os sintomas da histeria, tipo de
vida oculta que as mulheres mascaram de conflitos monótonos e cegos.
A sua primeira mulher, que o amava sem esgotar, porém, um pudor
matrimonial que confina com o arrependimento do laço contraído, habituara-o a ser
prudente quanto a levar a sério as representações até do vício. Ele sabia que são raras
as mulheres absolutamente devassas. É uma grandeza que requer força e destemidos
reflexos; em geral corresponde à virilidade e não à área doméstica a que o amor
pertence.
Ema, que presumia do amor dos homens, nunca poderia acreditar que o amor
faz parte dum período obsessivo e, na melhor das suas fases, inclui o sentimento, que
é a cultura dos sentidos. O sentimento pertence a um capítulo da memória histórica
do homem; a mulher não tem por ora memória histórica senão aquela que lhe é
emprestada pelo homem. Mas não derivemos do estado de Ema perante a sociedade.
A sociedade não lhe atribuía culpas, na medida em que os seus métodos de
sobrevivência não se achavam ameaçados. Pelo contrário: Ema era deixada à vontade
porque o escândalo favorecia o que se pode chamar obra de salvação. Quando um
grupo se acha incapaz de afrontamentos verdadeiros, quando tudo concorre para
soluções imediatas a favor duma rentabilidade urbana de bem-estar, o génio do
escândalo é reclamado e corre a intervir. Sem ele dava-se a destruição do reportório
dos sinais; o mal fazia-se imitador das paixões; e o bem perderia a sua natureza do
poder, seria uma pista fechada para o sofrimento.
Ema não queria sofrer; a sua religião constava duma aritmética afectiva que
negava o sofrimento. Quando chegava ao Vesúvio, na perspectiva de reunir-se a
Fernando Osório, era para se integrar num território fantástico, que continuava a ser
o seu principal património. O Romesal, com o seu eixo de imprecações e alegrias,
parecia precipitar-se naquele abismo do Vesúvio, não para se perder, mas para fazer
parte dum misterioso fundo da memória. As águas negras do rio, no local do Vesúvio,
pareciam conter uma pilha imensa de factos, precipitados ali com o ritual dos antigos
povos que deixavam afundar-se nos lagos virgens e mancebos, e jóias, e flores, não
apenas como rito sacrificial, mas sobretudo como política de construir a memória.
Ema entrava na casa, quase um palácio, guardado por palmeiras gigantescas, e,
na primeira sala (que abria para outra e esta ainda sobre a terceira, todas igualmente
quadradas rigorosamente), recebia logo o olhar da Senhora, um olhar de
insuspeitável sensualidade, como certos momentos mozartianos. Tudo em volta era
um silêncio de vinhas com os seus corredores de calhaus saibrentos. Algumas
cerejeiras de jardim mostravam as suas galas durante cinco dias de Maio. O
mordomo Caíres costumava abaná-las para que as flores caíssem depressa e ele
pudesse dar ordens para serem varridas duma vez.
Fernando Osório não estava lá, telefonava a desculpar-se. As suas conferências
de negócios retinham-no em Tóquio e em Nova-Iorque, e ele tinha uma mulher na
cama quando lhe falava, ou, simplesmente, tomava precauções com a sua hepatite e
repousava. Parecia tudo muito irreal, como se um universo reconciliado com o
absoluto existisse para lá dos fios telefónicos.
— Amas-me? — perguntava Ema. Tinha, de repente, vergonha de confiar a
uma tal distância a forma arcaica da sua imagem de amante. Seria Fernando que a
ouvia ou algum outro, cínico e talvez perturbado, porque ela notava uma curiosidade
desgarradora na voz dele?
— Sim, amo-te. Onde estás?
Então Ema servia-se dessa tímida identificação com um estranho para falar do
Vesúvio como duma pintura. Subitamente agarrou no ar a sombra da Senhora, o
guarda-lamas do vestido dela, de tafetá escuro, e encarnou nessa imagem típica de
proprietária que levantara toda a região ao nível dum condado. Falava como ela, com
a pronúncia local que nunca remediou, fiel aos ritmos da infância, sem ortografia,
embalados nas velhas tonalidades populares, os seus erros e a sacralização deles que
a Senhora às vezes sublinhava com uma pedanteria do mau-gosto. Do outro lado do
fio, um homem escutava, cheio dum reconhecimento de espectador que não pagou a
entrada e que espera, a todo o momento, ser posto na rua, ou, pelo menos, mudado de
lugar.
— Amo-te — disse ele, tímido, porque receava interrompera e deixar escapar o
fantasma da voz nas fronteiras do desconhecido e que ele não podia perseguir nem
trazer às colunas dum assinante da lista telefónica. Ema habituou-se a deixar-se
surpreender por esse número errado, marcando no entanto o de Fernando Osório, só
que não em Nova-Iorque, mas em Londres. Ema sentia um arrepio, as palmas das
mãos eram percorridas por um formigueiro, porque a Senhora fora uma espécie de
marani em Londres, com o seu ouro e as peripécias romanescas da fuga dela com a
filha ameaçada de rapto. Ela vivia num palácio que era costume arrendar às divas por
temporada de ópera e onde elas recebiam os amigos, titulares, de luvas cor de pérola
e colete de melton, homens do mundo ou simplesmente provincianos amadores de
cães e de cavalos. O mordomo Caires vinha escutar à porta, e a mulher seguia-o, com
o pano de limpar os copos na mão, irritada com a demora de Ema para ir jantar.
— Com quem está ela a falar? — Mas Caires punha-a à distância, ocupado
como estava em entender o que Ema dizia; ela usava um inglês, ainda que
rudimentar, que ele não percebia bem. Estava acostumado às visitas da colónia
britânica, que falavam uma espécie de dialecto e não propriamente a língua de Sua
Majestade. Desistiu de compreender, mas não de espiar Ema e de lhe causar
pequenas contrariedades, como mandar desferrar o cavalo que ela tencionava montar
ou servir-lhe comida de que ela não gostava, fígado frito, por exemplo. A granulosa
carne de fígado e o seu sangue de ferida, assim como um cheiro de bílis, agoniavam-
na.
— Não quero isto. Por favor, leve para dentro.
Era o sinal de que a guerra ia estalar. O desejo de Caires, a sua calva vermelha
e o casaco branco com manchas de ferrugem no pé dos botões, causavam-lhe uma
cólera incontrolável. Todas as suas decepções se juntavam naquele homem espesso,
correcto, de curtas mãos sempre a adejar sobre a mesa brilhante onde os candelabros
punham esteiras claras.
E lá estava a célebre Senhora, tendo um livro na mão, a olhar a vastidão do
corredor e, no fim dele, o retrato do seu amigo mais caro, o seu curador de negócios e
provador de vinho que ela, na viuvez, chamava "o bom herege", porque nunca o
absolvera de não ser católico romano.
Não que a Senhora fosse pia e rezadora. Os contratos, a administração das
grandes quintas, a colocação dos dinheiros, a exportação das pipas, que iam, pelo rio
abaixo, no tropel do cachão, ocupavam-lhe o tempo todo. Um dia, ela própria
naufragou e morreu-lhe afogada a criada e o herege que ela amava, homem de
algumas artes e que sabia desenhar paisagens. Ema ia verificar se era certo o que se
dizia: que os olhos da Senhora acertavam no olhar do seu curador, estando ele à
distância dum tiro de besta, como dizia, a rir, Fernando Osório, trineto da Senhora,
que tinha por ela um respeito misturado de reprovação. A família afidalgara-se e fora
expatriando da memória a figura real da grande capitalista, de maneiras rústicas e que
os barqueiros achavam sua parenta em juras e palavras grossas. Ela sabia zangar-se,
conheciam-na os velhos lavradores do jogo do besigue, depois da ceia, sendo ela
ainda de pequena raça de vinhateiros endividados e que mal se endireitavam com a
venda dum vinho de feitoria, e, casando uma filha, ficavam de novo a braços com um
saibramento e o remendo dos telhados. Mas a Senhora, entre emprestar uma libra
aqui e comprar um bardo acolá e uma ramada além, enriquecera e levantara casa em
toda a parte. Génio de finanças, se tivesse à mão a Santa Rússia, por ela seria outra
Catarina II e, como ela, caluniada; e, como ela também, com mau ouvido para ópera.
Sorria com precaução diante das coisas da arte, mas não gostava. Ao pé dela, Maria
Semblano não passava duma seresma.
Ema ouvia falar dela ao pai, no Romesal. Era uma lenda, a Senhora,
aparentada ainda com Dona Augusta que, ao falarem desse portento, abanava a
cabeça, tendo-a por raça de heroína. Mas Ema disse sempre: "Uma mulher assim
deve ter seis dedos, para que se reconheça logo que nasce, e não se perca tempo a
ensiná-la a tocar banjo ou viola".
— Quem disse que ela tocava banjo?
— Não sei. Tinha cara disso, quando era nova. Alguém contou que ela teve um
professor e que lhe pagava para ele fingir que lhe dava a lição. E a Senhora descia à
vila para arrematar cabazes de sardinha em salmoura por preço mais abaixo,
regressando num cavalinho de cigano, e levando no bolso cinco réis de rebuçados de
avenca. Ia encontrar o mestre de banjo a dormir na cadeira de braços, ela fazia-o
levantar para que não lhe gastasse o estofo de veludo alemão; pagava-lhe, contando
uma a uma as moedas, fingia enganar-se para o favorecer um pouco. Era larga nas
gorjetas; o crédito faz-se com vozes pequenas, dizia.
Ema perguntava se quanto havia de amor saudoso naquelas visitas ao Vesúvio,
ou se era a Senhora que ela queria cumprimentar, como uma criada que vai recorrer à
casa da primeira servidão. Fernando Osório, com a pasta de marroquim vermelho e o
feitio alegre e convidativo com as mulheres, não a interessava muito. Excepto
quando o via como um vassalo da Senhora, à qual não escapava e que o mutilava,
proibindo-lhe tudo o que não fosse a submissão respeitosa. A sua finalidade era a
submissão. Ema pensava, com sobressalto, se não seria a finalidade de toda a gente.
Via-se perdida no palácio do Vesúvio custodiado por palmeiras; via-se como
Cleópatra a munir-se de ideias histriónicas para ir ao encontro de César; César, que
era um corredor de fortuna e não um amante sedentário, e que a havia de esquecer ao
canto do pavilhão de guerra, como Ema estava esquecida naquela casa da Senhora,
ainda da Senhora para todo o sempre. Um dia disse a Pedro Lumiares:
— Não sei a quem pedir o que quero. Dantes pedia-se a um homem comida,
roupa, amor, mas isso passou. Ganha-se a vida, tem-se um emprego, somos os donos
da casa, vestimos calças como eles. Não temos mais a quem pedir, só a quem cobrar
um salário.
— Faz-te falta a abjecção? É isso que queres dizer?
— É. A injustiça faz-me falta como o pão para a boca. Senão não posso rir-me
do meu carrasco, nem ser livre como um cadáver.
Pedro Lumiares, em momentos como esse, pensava se Ema teria merecido a
alcunha de Bovarinha. Ela dispersava-se continuamente e abolia-se em pequenas
representações que estilhaçavam a sua personalidade. Era rara a mulher que se
obstinava num objectivo sem necessidade de aprovação exterior. Mas, de qualquer
maneira, Ema deixava-o estupefacto, com as suas provisórias interpretações da
aventura trocada em miúdos e, em geral, por moeda falsa. Por exemplo, Ema deixava
aquela espera ao amante, para acompanhar a cozinheira a quem morrera o pai numa
aldeia tão retirada que era preciso usar espinhaço de mula para chegar até lá. Ema
aprontou-se logo, e foram as duas ao abrir da manhã, indo a criada diante levando à
cabeça um cesto vermelho com comida e chinelos de quarto. Ema gostava de receber
os cumprimentos dos homens que, entre a taberna e o largo da aldeia, pareciam
esperar a vinda do profeta. Eram velhos, mas o desejo ardia-lhes nos olhos viscosos,
vendo Ema montar a cavalo e as pernas desenhadas nas calças de couro preto. A
cozinheira não ia ao enterro, mas receber a herança.
— Que herança? Algumas terras ou quê?
— Um lençol de linho e uma galinha — disse a cozinheira. Era mulher do
mordomo Caires e tinha dinheiro em títulos e outro emprestado. Roubava os
hóspedes e o patrão com a maior sem-cerimónia; Ema dava por falta de objectos e de
lenços, nunca perfume, porque o que cheira é difícil de calar, como dizia Fortunato,
seu sobrinho carnal. Ema admirou-se por ela ir tão longe por tão insignificante
partilha.
— Uma galinha? Você tem quarenta ao pé da porta, suas mesmo.
— É verdade. Que quer, dona Ema? São feitios. O que me pertence não fica no
mato. Além disso, vejo muita gente que não via há anos e anos. O meu homem, se eu
lhe disser "vou por aí acima, ver os meus irmãos", põe-me tantos embargos que tenho
que desistir. Mas se é para receber, nem que seja uma maçaroca de milho, já não diz
nada. São feitios, dona Ema.
— Mas uma galinha! Não é uma vaca nem um porco! Mas refez-se da surpresa
ao chegar aos lugares de Carlão, onde as esperavam com um ensopado de lebre que
ela achou suculento. Tinham-na caçado para o moribundo, mas, achando-a mal
empregada em paladar já morto, deram-lhe coelho. Ele, que tinha por última vontade
o ensopado de lebre, ergueu-se na cama e disse.
— Se é lebre, não sei, mas que me soube, soube. — E morreu, muito cansado
de enganos mas sem rancor ou fastio. Ema riu-se com a história; não lha contavam
para rir. A casa era abastada, suja, com um luxo de fogão de lenha que nunca se usava
e candeias de petróleo penduradas nos pregos da chaminé. Admirou-se de não a
notarem como mulher formosa; as cunhadas da cozinheira só perguntavam se era rica
e dotada de bens ao luar.
— Aqui, uma marranchinha vale mais do que uma lindeza, se tiver ouro ao
pescoço e um pinhal de vinte anos.
Era essa avaliação que decidira a Senhora. Nascera no limite da pobreza que
era ter para o almoço mas não para o jantar. Comia castanhas cozidas à ceia,
alternando com a batata enqueijada que era refugo e não manjar. E sempre aquela
indignação interior de ver louvadas as casas com capelão e as mulheres de grilhão de
oiro e libras nas orelhas, nem que fossem tolas como parrecas. Mas Ema não estava
na mesma sina, distraía-se até de ter um amante que lhe protegesse o nascimento
mesquinho e que desse a mão ao marido.
— Não gosto de prisões - dizia, escorregando pelo sofazinho cor-de-rosa do
seu quarto, numa atitude de preguiça cómica rindo-se de si mesma e do mundo
inteiro.
— Assim não te safas. — Pedro Dossém, castrado sentimental, queria ensiná-
la a ser uma senhora ou, pelo menos, uma Lola Montes de muito futuro. Deparava
com um humor agressivo, Ema não queria tácticas, queria só distrair-se um bocado!
E comprar coisas, fazer dívidas, fumar até um pouco de erva e beber às vezes até
perder toda a noção da decência. Adeus a mulher-vampiro que Pedro Dossém queria
que ela fosse. — Assim não te safas. És desobediente e acabas por matar-te. É o
cúmulo da desobediência o suicídio, e é o que tu vais fazer qualquer dia. — Amava-a
como se estivesse sujeito a uma vontade que lhe era estranha; Ema agradecia-lhe
tanta dedicação, mas não o ouvia; tratava-o como a um bobo, achando-o inaceitável
como amante e até como amigo. E, no entanto, Pedro Dossém era de boa linhagem,
tinha uma esposa golfista e sabia tratar de negócios; mas é certo que quem atinge um
grau de passividade lírica perante uma mulher, fica aí cristalizado numa gota de
âmbar ou como uma bolha de ar no vidro quando ele é soprado.
Viagens como a que Ema fez a Carlão com a cozinheira eram as suas
preferidas. Melhor do que Paris com o Boulevard des Capucines e tudo isso onde ela
podia colher louros sentando-se no Café de la Paix tomando bebidazinhas amargas e
sentindo uma malha desprender-se na meia cor de fumo. E também era melhor do
que o Grand Hotel, onde os porteiros lhe tocavam com o olhar entendido,
destinando-a aos árabes, cuja desgraça favorita eram as mulheres. O petróleo e os
cavalos vinham depois; as mulheres estavam antes, com o seu ressentimento que
nada podia desvanecer e que tomava todos os aspectos, até o de vítima, dilacerada na
carne e teologicamente condenada.
Mas, nessas viagens, como a da ida a Carlão, pela entrada do Inverno, estando
os soutos carregados de castanhas e as ravinas cheias de ouriços abertos, isso era
qualquer coisa que não existia em mais sítio nenhum. Até a cozinheira tinha uma
desconfiança que lhe roía a alma, ficando sem perceber Ema.
— Podia ter ficado no quente e a beber chávenas de chocolate, que o meu
marido sabe fazer o chocolate à espanhola.
E Ema ria-se, ainda com aquela imagem da Lola Montes a desafiá-la, enquanto
as cunhadas, mamudas e de coturnos de lã parda, contavam a morte do velho.
— De repente ele fez "tac", e morreu. Eu disse "está morto, segurem-me, que
não sei como vou ficar. Posso não fazer nada, e posso fazer" — disse a cunhada do
meio. A mais velha suspirou.
— Ora, a morte é para cada um.
E deitou-se a espremer os queijos, que ligara com fitas de pano branco. Nas
grossas mãos corriam fios de água leitosa, e ela punha um gosto de oleiro naquele
moldar da coalhada, batendo-lhe com quem acaricia nádegas de mulher. Ema pelava
castanhas cozidas, fazendo-as saltar duma mão para a outra. Percebeu que falavam
dela. "Daqui a pouco estão com raiva de mim e não vão deixar-me sossegada."
Ofereceu-se para entreter duas crianças que choravam. A cunhada mais velha tirou-
lhas das mãos.
— Deixe estar, que se suja.
Dissimulava mal um despeito glacial; a cozinheira devia ter-lhe dito coisas
pecaminosas, mas sobretudo o lugar subalterno que ela ocupava no Vesúvio. Essas
mulheres grosseiras e entregues a uma luta insustentável para vencerem a perfídia da
natureza, encontravam em Ema a vítima ideal. Durante milénios tinham afinado o
gosto para a profissão de carrasco de alguém, e agora Ema atraía o mal que elas
cuidadosamente guardavam para as ocasiões. E os homens procediam como elas, de
atalaia ao momento asado para soltar as amarras que os prendiam à civilização e dar
largas aos seus fantasmas rancorosos, desejando a morte de alguém quando não
tinham cobertura para executar, ao acaso, as ordens das suas paixões. Paixões que
não eram engendradas por um desgosto sexual, mas pelo movimento do azar, à vista
da presa indefesa. Ema percebeu repentinamente que alguma coisa estava a acontecer
e que ela ia ser arrastada na desordem que começava a agitar os demónios
adormecidos.
As cunhadas eram como bacantes no cimo das montanhas; tendo morrido o
último velho, que organizava os seus preconceitos e as explicava perante a sociedade,
elas estavam prontas a despedaçar e a beber o sangue dum inocente. Bastava que ele
se apresentasse, e fosse reconhecido pela diferença, estigma de morte. Quem melhor
do que Ema, que era exemplo de insinceridade e que, de maneira indolor, era todavia
a rival indicada? Ela bateu em retirada, não receando a noite fria e os caminhos
desconhecidos. Saiu para fora e caminhou a passo estugado, sem tentar reaver a mula
que estava a recato e cujos cascos ela ouvia na palha.
Ema não teve medo, só que começou a ser acometida por pensamentos
desgarradores. Estaria louca e as mulheres eram afinal inofensivas e prontas a
agasalhá-la e a servi-la? Mas não. A recusa delas explodia nos gestos, na exasperação
dos gestos que ferem a alma. "Não há mulheres boas" — disse, alto; a voz parecia
não lhe pertencer, e o grande luar branco acompanhava-a como uma serva com uma
toalha. Ela era a vítima absoluta que era preciso explorar, maltratar e deixar com vida
porque, se fosse destruída, o ressentimento não se produziria mais nem dava à vida o
calor da culpa. Ser culpado era o melhor atributo, e o baptismo foi uma invenção
errada. Não se deve apagar a culpa, mas deixá-la florir, dar frutos como uma ramada
alta e sombria. Se alguém nasce sem esse estigma da culpa, está perdido. As
mulheres farejam logo a inocência e armam-se contra ela, derrubam-na, põem-lhe o
pé em cima. A inveja delas torna-se ardente como um rubi vermelho e deita raios
vermelhos. Ema deitou a correr, sentindo atrás dela o rosnar de cem cadelas e um
turbilhão de folhas que lhes abafavam o trote. Era uma noite morna, sem a grandeza
da estação no seu auge de frio ou de calor nevoento, quando da terra sobe um vapor
calmoso. Não teve medo de perder-se, o caminho até Carlão não oferecia alternativas
e estendia-se entre altos taludes; ouvia rolar às vezes uma pedra solta, como se
escapasse de baixo dos pés de alguém.
Havia trezentas bruxas nas cercanias; mesmo à chegada ao Vesúvio havia uma,
sempre carregada de clientela e fazendo-se difícil para as consultas. Eram, em geral,
mulheres com um sentimento de terem vivido, ou só previsto, uma usurpação. A
inveja dócil, quase compassiva, que experimentavam perante uma rapariga amada e
que tinha os filhos ao redor dela, puxando-lhe pela saia, essa inveja mortiça e pálida,
universalizava-se. A invejosa tornava-se primeiro melancólica ou agitada; depois
tornava-se maldosa. Muitas mulheres passam por esse ciclo que germinava e se
reproduzia em diferentes humores. Não eram as regras menstruais que afectavam os
seus sentidos, que embotavam o paladar, que as tornavam extraordinariamente finas
para se ajustarem aos acontecimentos ainda em perspectiva. Não era a vibração
uterina que decidia dos venenos exalados pela pele, fazendo com que destalhassem
os caldos e o pão não levedasse. Era a inveja. Uma inveja que vai endurecendo a
alma e a faz estranhamente aferrada aos actos malignos e que impede o
arrependimento. Essas mulheres caem num estado sonâmbulo, árido, pretendem-se
poderosas, desdenham das coisas santas e acham que as podem superar. Não entram
nas igrejas senão por provocação interior, para medir o limite do seu desafio. E, ao
verem à mesa da comunhão uma fila de pessoas, grotescas e obedientes, dominam-se
para não rir dessa piedade que é prova de exigências medíocres. Estão prontas para
abrir as portas aos consultantes, quase sempre invejosos como elas, que se perderam
antes de atingirem as ruminações do mal. A Igreja queimava as bruxas julgando
localizar o diabo nas suas orgulhosas confissões; mas o que queimava era a inveja,
tentando isolar a comunidade da sua aversão, do seu maciço desejo de vencer tudo o
que brilha — rosto formoso, seara abundante, glória de espada ou de pena. O
invejoso começa por esperar prodígios da sua impotência, e acaba por querer reduzir
tudo à sua medida.
Trezentas bruxas (havia quem dissesse que eram quatrocentas e pico)
abrigavam-se em tugúrios dispersos, ou eram conhecidas por notáveis no núcleo
familiar, que as venerava. Subitamente Ema entrou na sua área; o medo não a tocava,
seria capaz de percorrer a montanha como se passeasse numa avenida, à luz do dia.
Ela era uma invejosa, uma delas; se fosse pobre, abria nicho de adivinha, de tal
modo estava convencida de que só a tolice domina as paixões. Desde aquele baile em
que sofrera com a glória das mulheres ricas e que lhe pareceram usurpadoras, sendo
Ema a verdadeira herdeira da terra, ela não sossegara mais. Quando Fernando Osório
a apertara, deixando-a perceber a secura dos seus dedos abaixo da cinta, como um
instrumento de tortura, ela deixara-se conduzir, morta para os prazeres passados e as
doces relações do casamento. Transformou-se ali num ser invejoso em toda a sua
plenitude. Subitamente, as mulheres carregadas de jóias pareceram-lhe fantasmas que
se afastavam, deixando-lhe espaço para valsar com o seu par, o seu aliado, o seu
guerreiro destinado à morte, que é o sucesso da humilhação humana.
Ema pensou que, se visse luz numa daquelas cabanas, que às vezes serviam
para guardar palha e machados para o derrube das árvores, pediria auxílio. Um cão
estava sentado no meio do caminho e parecia aguardá-la. "Não é um lobo" — pensou
Ema. Não sentiu medo nem parou. Tratava-se de facto dum dos cães do Vesúvio, que
a saudava sempre com mostras de a reconhecer, cada vez que ela chegava à gare com
o seu enorme casaco de marmota. Talvez a tomasse como uma espécie canina algo
surpreente; ajustava-se ao seu passo e não a largava. Como agora, em que, farejando-
lhe as botas, se ligara imediatamente ao cheiro e a precedia, estacando prontamente
se um ruído o advertia, algo que podia decifrar no silêncio em que se escondiam mil
vestígios de vida e de morte.
Chegou já quando estavam abertas as portas dos armazéns e os homens
começavam o trabalho. O que Ema estranhou foi que a cozinheira tinha voltado.
Usaria ela a vassoura em que viajam as bruxas, ou simplesmente se deitara ao
caminho, seguindo Ema à distância? Viu-a sentada diante duma tigela de café o
bastante grande para afogar um gato recém-nascido. Não lhe falou, e, ao passar pela
Senhora na parede de damasco verde, perguntou-lhe:
— Também foi bruxa, não é verdade? — Pareceu-lhe que a Senhora crispava a
boca firme e lhe dava a entender que perguntas dessas não se faziam.
Como Fernando Osório não dava mostras de voltar tão cedo ao Vesúvio, Ema
decidiu ir-se embora. Sentia-se, mais uma vez, frustrada e estava pronta a retomar o
seu papel na família, vestindo a capa da humildade, que era o orgulho com má saúde.
Quando ficava assim, Carlos podia esperar dela uma modéstia exemplar. Abandonava
as roupas extravagantes e comprava vestidos de preceptora, o que a tornava mais
excitante. Sem jóias, sobretudo sem aquelas peças de fantasia que lhe inundavam o
peito como cataratas de pérolas e berloques, Ema dava mais na vista. Os homens
olhavam para ela com desejo que não era completamente conferido aos atractivos
dela, mas que era sobretudo um prémio pela submissão. Submissão que se
interpretava com satisfação dada ao outro, não conhecendo a plenitude senão através
do prazer que se proporciona; não implicava amor, mas algo como uma capacidade
serviçal, mais irresistível do que o amor. A experiência da inveja, no caso de Ema, foi
feita através do clã familiar. A sua beleza era surpreendente e a inteligência notável.
Tinha, portanto, recebido dons excessivos que só podiam ser admitidos se ela desse
algo em troca: a submissão e, com isso, o direito a ser sacrificada. Mas a inveja que
Ema desenvolveu, como um tumor no seu seio, datava do momento em que a sua
manqueira lhe foi imposta como uma deformidade. Foi-lhe revelada a injustiça como
o mais formidável dos poderes eróticos; percebeu que coxeava, e que isso era uma
injúria à beleza de que dispunha, percebeu também que esse insulto a ia elevar aos
olhos dos homens e que podia atrever-se a vencê-los, manejá-los e negociar com eles.
Ela estava incluída no número dos pestíferos, no número daqueles cujos direitos
dependem do abismo que lhes foi criado para uso exclusivo.
Ema, quando crescia no Romesal, surpreendia os olhares, como os de Ritinha,
uma sua igual na privação e no acabamento negado pela Providência. Eram olhares
de pura raiva. Ritinha sempre a serviu com lealdade, como um forçado serve outro,
com essa objectiva e honrosa noção de que não há entre eles intermediários; como
não há intermediários para a beleza, também eles não existem para a matéria que foi
anulada por qualquer tipo de falha, de prodigiosa intenção. Porque a Providência é
intencional. Ela é obsecada pela supressão da justiça. Os homens produzem leis e
tentam remediar esse poder negativo do azar ou da Providência. Mas limitam-se a
deixar em liberdade a praxe da injustiça enquanto parecem acautelar o seu exercício.
O mundo repousa sobre um imenso espaço de matéria inerte; só a injustiça o
faz balouçar no desejo dos seus direitos. O que triunfa é o anti-valor, ou seja, o mal
incorruptível. Porque a beleza tem em si mesma o princípio da corrupção; é ele que a
inflama e que produz o desejo por ela. Perante a suspeita de que havia algo de
irremediável em todas as coisas e que não era possível vivê-las senão com uma morte
sentida como tal (por exemplo, os sonhos de poder e de amor fora de qulquer mal-
entendido), Ema voltava para a realidade do matrimónio. Voltava a ser a esposa de
Carlos Paiva e dedicava-se a tarefas simples, as compotas de Outono ou a renovação
das cortinas. Substituía o desejo pelo sentido prático, e, por uns tempos, era feliz
assim.
Carlos não modificava nenhum dos seus hábitos. Maria Loreto Semblano
retinha-o uma parte do tempo, e ele não saberia já viver sem as ocupações que ela lhe
dava, a correcção dos seus livrinhos morais em que naufragava um amor desesperado
por um impossível puro. O platonismo das suas relações convinha às suas
preferências de madona a quem os primeiros prazeres decepcionaram. E Ema, às
vezes, enternecia-se com aquele quadro de amores sem projectos; pensava que, se o
marido fosse mais insaciável, podia receá-la menos.
Porque Carlos temia Ema; temia o seu secreto furor de amar e de completar o
seu direito à volúpia e ao crime que ela podia desencadear. Há um momento em que
qualquer mulher adivinha esse direito, e o homem estremece de a imaginar no
caminho da satisfação absoluta. Intercepta-lhe os passos nem que seja com o
sacrifício da própria vida. Assim, a liberdade sexual, indiscreta ou pitoresca, de que a
mulher desfruta em eras determinadas, é, no fundo, uma forma de interdição aos seus
desejos mais profundos; o desejo duma eternidade que não se confunde com uma
eternidade privilegiada das almas. Platónica mas não frígida. Pedro Lumiares não se
cansava de citar O Cortesão, livro de cabeceira para as damas que se querem
entendidas sobre os homens. E uma tal senhora Felice delia Rovere, filha do papa
Júlio II, é importante dizê-lo, era a sua preferida.
— De mulheres como essa é que temos de precaver-nos. Ela viveu quinze anos
com um marido impotente, e não só ocultou a enfermidade do marido, como se
recusou a obter a anulação do casamento. Foi pressionada de todas as maneiras para
sair dessa espécie de viuvez, chegando os parentes a ameaçá-la com o exílio e a
miséria; mas manteve-se inabalável. Não se entende que a tentassem com a
libertação de tão triste casamento, a não ser para a desviarem do regime de vestal,
que os homens tanto temem nas mulheres. Antes devassas do que distraídas. Pois o
que é senão distracção do desejo o que se basta com a injustiça?
Ema dava mostras de se aborrecer, mas não perdia uma única palavra. Não
cuidava em comparar-se à duquesa Felice delia Rovere, achava-a mesmo um pouco
inclinada por demais ao sofrimento, o que era, segundo Lumiares dizia, sinal de
grande qualidade.
Mas fica dito que Ema, a Bovarinha, parecia desistir das suas corridas e
vendeu mesmo o carrinho amarelo, deixando-se de viagens grandes e pequenas. O
marido não ajudava nada essa transformação. Era o insignificante que fora sempre e,
se não tinha muitos desastres clínicos na carreira, era porque se limitava a consultas
auxiliadas pelas bulas dos medicamentos.
Abstinha-se dos diagnósticos antes de ver o caso meio resolvido pela natureza.
Tinha um provérbio que aplicava como uma filosofia: "Quem de novo não morre, de
velho não escapa". Isto punha termo às acusações sobre o desleixo em que trazia os
doentes graves. Enfim, não era desrespeitado nem era de fiar em coisas mais subidas
do que uma gripe vulgar; que a gripe asiática já o punha em apuros. Não aplicava já
sinapismos e ventosas, mas não estava longe de os julgar boa receita, assim como as
purgas e a tintura de iodo. Para os dentes, essência de cravo, e para os ouvidos leite
de mulher. Isto constava das suas notas, tiradas da ciência popular. No entanto,
salvara algumas vidas quando era um médico serrano e a primeira mulher o
encorajava a sair nas noites frias, fazendo ele a pé distâncias solitárias, sem estradas,
sem recursos a não ser uma padiola para transporte dos doentes ao hospital. Carlos
Paiva fora ajuda carinhosa para muitas mulheres em trabalho de parto, e elas davam-
lhe de paga uma toalha de linho caseiro ou uma pega numa gaiola e que, diziam,
sabia falar. Ele voltava para casa exausto, molhado até aos ossos, os olhos vermelhos
da insónia. Esquecia tudo o que sabia diante dessas paridas, algumas já avelhadas e
sumidas numa resignação de fêmeas; e que morriam de tétano ou de pós-parto como
galinhas de febre, virando o pescoço como se fossem abafadas pela mão que decerto
batia nas costas de Carlos, com amigável compadrio. Ele fervia as seringas na chama
das candeias, improvisava talas para uma perna partida, receitava águas para os
nervos e o fígado. Sobretudo atribuía ao baço todos os transtornos cuja origem
escapava à sua ciência cada vez mais embotada.
O casamento com Ema pôs cobro a essa clientela pobríssima e, de resto, as
coisas foram tomando outro rumo. Os serviços sociais deram melhores condições à
população, e Carlos perdeu a ocasião de se mostrar abnegado. Ema detestava esse
tipo de bom doutor com a maleta preta e botas de atanado. Para Carlos Paiva, a
descoberta de Maria Semblano foi providencial.
Ela dourou a sua profissão oferecida à clínica particular come uma bênção de
Epicuro. O primeiro dia em que a viu, chamado à casa da Caverneira, foi um dia que
constou na sua vida como profético.
Maria Loreto Semblano tinha cinquenta e três anos, era grande, dum loiro
escuro, e tinha sardas em todo o corpo. Era, no entanto, um belo corpo, ao gosto da
Renascença, de ombros largos e membros carnudos. A sua origem era das Espanhas,
talvez de Lugo, e o avô descera a vender rendas pela fronteira de Chaves, trazendo à
arreata dois burros sonolentos. Fez fortuna com negócios que não excluíam o
contrabando, e viu-se rico quase de repente com uma venda de aguardentes que não
chegou a entregar porque se desfez a sociedade e tudo foi arrastado na enxurrada da
falência. Tudo, menos o lucro do Semblano, que se achou abastado e livre de
sobressaltos. Casou as quatro filhas com proprietários, e Maria, sua neta, já educada
para destino mais alto, enamorou-se dum primo que era o que se chama "um
perdido". Quando uma mulher é, na voz do povo, "uma perdida", sabe-se que faz do
leito um uso desabusado, e do mais não consta quase nada. Mas "um perdido" é em
geral jogador, perdulário, com gostos e aventuras fáceis em cada canto. Este
Semblano era assim. Era dos raros homens que usam peliça em Portugal, que é terra
de modesto clima e pouco luxento. Ele tinha uma peliça de vison e passeava a Régua
fumando charuto e saudando alegremente o seu vizinho droguista, levando ao peito
um cravo branco. Maria amava-o tanto que entendeu acabar os amores da cama, para
não ter que sofrer mais humilhações da carne. Fez-se freira dentro do casamento, e
com isso adquiriu presença de espírito e honra conjugal.
Quando Carlos Paiva apareceu pela casa da Caverneira, ela atravessava uma
época má. Estava doente e, sobretudo, estava quase a desistir dos votos que fizera.
Semblano dera-lhe a entender que mulher casta é mulher esquecida. Ela sofria,
porque os sacrifícios querem consolação, e ela não tinha sequer alegria em praticá-
los.
Carlos Paiva fez-lhe uma impressão estranha. Achou-o tímido, o que é
desastroso para um médico de província; um cientista pode ser tímido, disso não
dependem os seus direitos. Mas a clientela precisa dum imperativo qualquer: duma
voz bem articulada, duma irradiação do grupo social que se manifeste num dos seus
membros, o médico, o advogado ou o deputado. Maria Semblano viu logo que Carlos
era uma negação para tudo o que não fosse um mundo à parte. Mas que mundo à
parte, se ele não era culto nem espirituoso? A mediocridade tem também o seu lado
profundo. Foi com essa ideia que Maria Semblano admitiu o marido de Ema à sua
cabeceira. Para Carlos, a Caverneira foi uma espécie de Éden sem seduções
perigosas. O parque assegurava a imagem paradisíaca, tinha um lago com carpas
negras e por toda a parte veredas que se cruzavam. A casa era um amontoado de
paredes e telhados, resultado de obras nunca acabadas. Não era na Caverneira que se
davam as festas mais brilhantes. Isso era nas Jacas, às vezes com o patrocínio dos
Semblano, que invejavam a grande moradia ao gosto espanhol, como um grande
dormitório de freiras, de estilo hospitalar. Mas a Caverneira era uma estranha
combinação de torreões e escadas, de quartinhos quadrados e mansardas onde
dormiam crianças — e tudo isto traduzia um prazer de rito de família, com os seus
aniversários e partos domésticos, com os cães que se escondiam debaixo das camas
quando traziam de fora as patas enlameadas. Gritos, ralhos, bater de almofarizes e
cutelos na tábua de picar, acrescentavam a alegoria duma abundância que presumia a
visita, o padre cura e, naturalmente, o médico.
O médico era Carlos Paiva. Maria Semblano disse:
— É gordo demais para a idade. Deve ter bom feitio e paciência, que é o que
faz os homens saudáveis.
Com o tempo tornaram-se inseparáveis. Durante oito anos eles verificaram que
nem só o interesse está na base de todos os sentimentos. O interesse ou o prazer.
Há pequenas fantasias do coração que precisam de interlocutor; não
correspondem aos mistérios gozosos nem aos cálculos da inteligência, mas são eles
próprios, motivos de concentração e representam um tesouro. O desejo não faz parte
das condutas possíveis entre um homem e uma mulher, quando ambos são
desiludidos profundos; e, no entanto, mais do que o desejo, actua neles uma veia
sentimental que afirma a primazia da esperança sobre o nada.
Ema não compreendia a ligação do marido com aquela mulher desdenhada e
que mantivera a virgindade dum amor impossível de ser repetido porque isso seria a
violação dum objecto finito. O amor, como finito que é, tem que ser cumprido;
substituído, pretende-se desse modo torná-lo infinito e capaz de saciar o que define o
amor: o seu carácter insaciável. Para Ema tudo se resumia a um tema romântico,
tanto mais ridículo quanto o marido era sujeito às inflexibilidades do destino: nascera
vulgar e sem méritos, e o tempo havia de desqualificá-lo cada vez mais. E Maria
Loreto não passava duma mal-casada sujeita à vaga ternura da sua memória que a
impedia de gozar a vida e de libertar-se para a ferocidade da indiferença.
No entanto, às vezes tinha ciúmes. Como invejosa que era, Ema sentia-se
privada dum privilégio que era o pobre afecto daqueles dois seres que nem eram
condenados pelas aparências e a quem o mundo não prestava atenção e que não
sacralizava nem sequer por meio da calúnia.
— Achas que eles se amam? — perguntava a Pedro Lumiares. Ele notou-lhe
um ligeiro tom de exasperação que o divertiu.
— Sinto a volúpia da lama em que os queres meter. Para ti não há homem nem
mulher puros.
— Não se trata disso. Eles aborrecem-me com aqueles segredinhos.
— Porque estás tão enervada? Tens medo de ter que os admirar por qualquer
motivo que te escapa. Ficavas menos à vontade para a tua malícia se manifestar.
Acusar os outros é a melhor maneira de nos livrarmos das nossas culpas.
— Qualquer dia não volto cá — disse, sobriamente, Ema. Sabia que isso o
atingia profundamente. Os homens não passam sem as mulheres com quem têm
conivência e que consideram seus opressores. Pedro Lumiares não a amava, mas o
que é afinal o amor senão um sem número de envenenamentos a que se resiste para
experimentar outros mais letais? Se tivesse de optar entre Simona e Ema, Lumiares
sentia-se embaraçado. Simona era-lhe indispensável para fortalecer o que ele
chamava "o homem desmoralizado". Mas Ema era a sua carnificina. Quanto mais ela
caía em erro e recebia desgostos e vexames dos seus amantes, mais ele exultava e lhe
dizia: "Eu esperava isso mesmo, não me espanta". Espantava-se porque, no fim de
contas, Ema não era muito incomodada, a sociedade esquecia depressa e já não se
recreava com a baixeza de ninguém. Ser um ordinário vilão, cometer adultérios e
desfalques, não interessava mais as pessoas. Assim como as damas nobres da
Renascença se faziam retratar despidas, desmitificando o sexo por meio duma nudez
casta, porque era a nudez duma ninfa e não duma mulher, também agora a
publicidade das relações mais escabrosas não queria dizer nada; não sugeria nenhum
postulado maligno; era um assunto que não acumulava ressentimentos, porque podia
ser livremente transformado na situação real de cada um. A inveja suprimida, o efeito
moral era desnecessário e perdia a intensidade.
Mas com Pedro Lumiares as coisas passavam-se duma maneira diferente. A
delicadeza do seu estado nervoso criava obstáculos à condição humana assim
interpretada como uma máquina bem afinada. Preferia ser um macaco, a ter que se
integrar na falsa virtude mais satânica que era o vício para todos. O prazer
combinava com a falta da lucidez que parece ser o princípio do mundo. A lucidez é o
sofrimento.
O sofrimento de que se não é como os outros marcava o princípio da lucidez; é
o passo de reflexão a que não se pode escapar, e ao mesmo tempo o passo que decide
do crepúsculo do prazer.
No Vale Abraão, lugar dum homem chamado inutilmente à consciência do seu
orgulho, da vergonha, da cólera, passavam-se coisas que pertenciam ao mundo dos
sonhos, o mundo mais hipócrita que há. O patriarca Abraão tinha um costume
arcaico: o de usar a beleza da mulher, Sara, como solução das suas dificuldades. Para
isso intitulava-a sua irmã, o que lhe deixava caminho para o desejo dos outros
homens. Não entrava em competição sexual com os poderosos e não deixava de ser
pretendente à justiça. Este comportamento obscuro vai muitas vezes a par duma alma
dedicada e soberba; vai a par duma paixão profunda e desgarradora e da consciência
lúcida.

CAPÍTULO VI
OS CONTOS DA CAVERNEIRA

Não é de agora a tentativa de esclarecer o discurso amoroso das pessoas e


atingir respeitosamente as relações que as podem ligar. Na verdade, uma vida
consumida no amor de outro é uma vida reprovada pela sociedade, sobretudo se o
sexo toma ascendente sobre a personalidade, ou seja, sobre tudo o que se define
como relação circundante. Carlos amava Ema e ela amava um tempo teatral e
imaginário que tentava destacar duma realidade que a desgostava. Mas contra a
realidade que nos subjuga só o mal a pode dominar. Assim é que a obra de perfeição
que os grandes santos arrancam da realidade insatisfatória recorre à fantasmagoria
para se elevar; o poder imaginativo é pelo mal que se afirma; o mal é obra de todos
os que interiorizam os seus desejos profundos.
Ema queria passar do seu orgulho ferido para outro orgulho, o de pertencer ao
meio de que se desviara. Recomeçava uma vida mesquinha, com um marido que, em
certo sentido, era o modelo dos maridos: fiel e capaz de ganhar o suficiente para
sustentar a casa e criar as filhas. Estas cresciam, consagradas à sua época em que o
culto do grande homem estava em desuso. Não se aplicava mais o nome de
irrepreensível a um cidadão; o sentimento de excepção desaparecera, e alguém que
tomasse o partido dum comportamento "admirável" arriscava-se a ser ridicularizado.
A aceitação da mediocridade era a melhor prova de não forçar as coisas e ser-se um
bom parceiro.
Na verdade, ser um bom parceiro incluía algumas aberrações. Fumava-se
menos e bebia-se menos até e comia-se cada vez mais prudentemente. Mas o peso da
realidade, ainda que fosse um segredo de gabinete, e ocupasse os temores da idade
juvenil, ia procurar uma fuga através de recursos contagiosos: a droga, heroicidade
quase passadista; e algo que começava a tomar corpo nas generalidades de superfície
— a noção de que as pessoas aspiram a uma felicidade subversiva, sem família, sem
Deus e, sobretudo, sem academia de qualquer espécie. A futilidade era o melhor meio
de escapar ao horror constante de se ser inútil.
Todos os amigos de Ema eram fúteis. E ela, nos seus melhores dias, não se
apresentava como objecto de temperança, mas como uma mulher que tomava os
excessos como travessuras. As figuras mais prestigiosas do espectáculo, as que
arrastavam milhares de pessoas num delírio de aplausos, eram como ela. Essas turbas
que se juntavam por efeito duma aglomeração catastrófica, agiam em nome duma
interrogação clownesca: quem sou eu para ser virtuoso? A virtude é um crime que
deixa vestígios. Preferimos a totalização do abandono.
Ema podia encarnar como profetiza desse espírito. Mas não estava desprendida
do passado, e o que restava da memória da mãe, cedo desaparecida, enternecia-a a
ponto de abandonar tanto a virulência da linguagem, como a fantasia de amores
desconhecidos. Então instaurava uma certa bondade que a incapacitava para as
amizades geniais como a que tinha com Pedro Lumiares. Ele ria-se de Ema quando a
via tão afável, tão apegada ao marido, que tratava com solicitude. Um dia, Lumiares
estava tão desesperado por não ver Ema, que foi procurá-la. Era a primeira vez que ia
a casa dela, e achou que era a casa duma pega a tender para o intelectual. Os velhos
desenhos a carvão que ela executara no colégio, sob a direcção duma freira
habilidosa, não estavam mais na parede da sala.
Em vez deles, havia duas grandes telas abstractas que não condiziam com a
sua colecção de loiça inglesa em nichos iluminados. Ema recebeu-o com
constrangimento. Parecia doente. De facto, estava grávida, e os traços inchados, a
pele baça, quase a tornavam irreconhecível. Pedro Lumiares sentiu-se esmagado por
um sentimento que não podia explicar.
— Não devias ter vindo — disse Ema. — Estou bem como estou e tu vens aqui
censurar-me.
— Censurar-te porquê?
— Pela mediocridade da minha alma.
— Tínhamos chegado a um acordo: de que não tinhas alma.
— Ninguém tem. Por precaução, inventamos essas coisas. Mas eu não gosto de
precauções.
— Que é isso então de teres outro filho?
— Isto é um acidente de trabalho.
Ele riu-se, contente de descobrir um pouco do espírito que Ema tinha dantes e
que parecia ter-se evaporado. Como era de lamentar na sua impecável interpretação
de mãe de família, debruçando-se sobre os cadernos de Luisona e Lolota, que tinham
voltado dum cruzeiro de jovens filhos de quadros! Mas não se podia dizer que Ema
fizesse mal o seu papel. Usava um vestido freirático, de gola branca e uma fila de
botões que pareciam pastilha elástica. Lumiares lembrou-se duma frase que tinha
lido: "Ele podia ter passado por um Santo se a figura do seu espírito não o tivesse
feito passar por um Demónio". Em que ficávamos? "Ter passado" não queria dizer
que "fosse" um Santo ou um Demónio. Tratava-se dum preconceito, dum lugar-
comum que não podia fazer prova. Também Inácio de Loyola estabelecia essa
distinção entre espíritos finos e verdade pura. Os demónios tinham finos espíritos,
fulgurantes, capazes de atrair e deslumbrar. A verdade não possuía sentimentos à
mistura; oferece uma nudez que dispensa o pudor, que não o tolera mesmo. E, por
isso, facilita o diagnóstico.
Ema era um fino espírito, um demónio? Ou, pelo contrário, participava duma
monstruosa inocência, aquilo que as mulheres de Carlão tinham adivinhado?
Qualquer coisa como a falta do pecado original, o que não lhe dava direito à
santidade, mas sim ao mal radical, sem tristeza nem alegria, o mal que não se produz
por obra do desejo, mas que é consequência do mal insuficiente praticado pelos
outros.
Pedro Lumiares voltou para casa como que derrotado. Ema era agora uma boa
senhora, e pareceu-lhe que as filhas olhavam para ele de modo triunfante. Elas
estavam de posse da mãe e suspendiam-se nela como os morcegos numa árvore
morta. Esta ideia enojou-o e pouco faltou para vomitar, tendo já atingido a alameda
das Jacas. Viu uma mulher esbelta, com um vestido florido, que se dirigia para ele;
não podia distinguir quem era, e esse anonimato, essa alusão talvez aos deliciosos
temores da primeira idade, deu-lhe asas para se reunir a ela. Afinal era Simona; a sua
decepção foi imensa. Porque é que aquela mulher, que ele amava e sem a qual não
saberia passar, carregava de ressentimento a sua alma, só porque a identificava com
uma coisa sem surpresa? Ela fez-lhe notar a perturbação que ele manifestara, e
Lumiares viu-se obrigado a mentir.
— Julgavas que era outra pessoa — disse Simona.
— Não, não digas isso.
A vulgaridade das suas desculpas situava-o longe do prestígio marital a que ela
se submetera sempre. Um pensamento inquietante assaltou-a. Seria que ele não era a
pessoa que lhe inspirava temor e amor? Uma terrível futilidade estava expressa
naquele rosto fino e que parecia de repente transtornado pelo receio. Que receava
ele? O que de facto acontecera; que a dúvida surgisse no coração da mulher e o
edifício da sua devoção começasse a tremer nos alicerces. Mas, aparentemente,
Simona não deixou perceber que o tempo da sabedoria estóica estava a principiar
para ela.
Há um momento dramático na vida de um homem: é quando ele pressente que
a sua imagem está em risco, o que o obriga a mentir às mulheres. Em geral, os
homens amam, sofrem e ocupam-se do seu ofício sem ter necessidade de mentir
profundamente.
A confiança deles repousa na premissa de que eles constituem objecto de fé.
São parte desse ser relativo que é o Pai admirável, ao mesmo tempo justo e injusto,
que ordenou a vida profunda das mulheres. Nenhum olhar perscrutador atingiu e
violou a interioridade, fictícia ou não, dos homens. Mas, um dia, o sentido da
meditação toca a mulher e ela desarticula o mistério em que se funda o amor. Parece-
lhe então que ele gesticula para fazer-se presente, mas que está longe de ser um
homem verdadeiro, como foi previsto no momento da sua criação. Este momento é
decisivo. A mulher adquire a sua forma mística e desconcerta o mistério que era para
ela o homem. Um mistério tem que ser imprevisível e incalculável, produzir um
espanto admirável. Entende-se por isso mesmo e sem necessidade de ser inteligível.
Produz um sentimento de nostalgia pela proximidade dum mistério supremo; e o
amor é a possibilidade primigénea do mistério.
Um olhar como o de Simona, referindo ao humano o marido e não mais do que
isso, produz a rebelião absoluta. Não se trata da rebelião feminista, mas de muito
mais do que isso; uma espécie de fim da admiração e princípio do colóquio da
misericórdia, não menos capaz de proposta amorosa.
Mas essa transformação é dolorosa. Para Ema, não se resolvia sem que ela
tomasse parte na exasperação do mundo. Queria experimentar o amor dos homens
para se desculpar de não os amar. Eram experiências que os faziam cair em estilhaços
a seus pés, e ela não tinha forças para resistir à desilusão.
Quando as filhas saíram outra vez de casa para os estudos, Ema sentiu-se
subitamente assustada. Percorreu a casa vazia e apurou o ouvido para os ruídos
domésticos: Ritinha, que lavava as passadeiras no tanque e o piar das galinhas que
debicavam as couves traçadas. Eram ruídos familiares, ouvia-os desde que abrira os
olhos no Romesal, assim como muitos outros, embalado res e surpreendentes, como
o enxaguar das pipas no armazém com o cheiro abundante do vinho velho. Ela
sempre se aconchegava nesses sons como num colchão quente.
Tia Augusta dizia que Ema dormia melhor quando a casa estava no seu pleno e
a cozinha transbordava de chispas e de golpes, e tudo batia e funcionava, desde o
barro ao ferro fundido, desde a tábua de picar até ao leve estalar dos interruptores. A
pequena Ema dormia extasiada naquele fulgor cavernoso da cozinha onde, já nesse
tempo, Ritinha vinha carregar os potes de arroz para os homens da vinha, o que ela
gostava de fazer porque gostava dos homens. Velhos, olhavam-na com paciência e
humor; novos, acenavam-lhe de maneira alegre e obscena. Não se escandalizava; ria-
se, com o seu riso de muda, que parecia sair-lhe das entranhas sem preâmbulos e sem
admoestações dos outros sentidos. Ema foi à janela para repreender Ritinha; ela
estava a esfregar as passadeiras com tanta força que ia reduzi-las a tiras. Lembrou-se
que a lavadeira não a podia ouvir, e voltou para dentro caindo numa meditação
sombria. Faltava muito tempo ainda para o Natal e, antes disso, não havia hipótese de
recorrer a qualquer animação. Toda a gente ia para a cidade, toda a gente que era
deveras interessante. Deu conta que não era assim tanta e que os ídolos da sua
infância, incluindo os filhos de Mabília, tinham envelhecido. O belo Nelson
comprara uma grande quinta, depois de ter estado meio fugido no Brasil, implicado
numa rede bombista. Um proletário como ele, do lado dos capitalistas, ninguém
podia imaginar. Tanto mais que Mabília era, na mocidade, cabecilha das insurrectas
e, por um arroz salgado, chamava à greve as companheiras. Era briosa em coisas de
justiça, e nem a Igreja, que ela venerava, atalhava as suas catilinárias.
O Vale Abraão estava parado como um cargueiro cuja tripulação o
abandonasse. As multicionais iam ocupando o terreno e lançando o negócio do vinho
em moldes menos aristocráticos como ele fora; se bem que o grandioso Porto se
falsificasse desde o início, pronto a correr nas tabernas de Londres, mais do que na
mesa dos czares. Quando Carlos bebia a sua porção de vinho fino, sempre depois do
jantar, com bolos secos, não dava conta que era um hábito luxuoso e quase proibitivo
para o comum das pessoas.
Essa diferença pela realidade, a nobreza local dos rituais, que fora dali seriam
exorbitâncias, produziam na sua natureza vulgar uma espécie de demonismo oculto.
Todos os homens tinham os mistérios difíceis de ocultar, mas que criavam entre eles
uma solidariedade de que se não falava. Bebiam demais, amavam demais, mas isso
era assunto que não se confessava e passava despercebido; sendo, no entanto, a mola
dos seus laços reais com a comunidade. Quando pretendiam um favor, quando era
preciso apoiá-los numa culpa exterior ao comportamento profundo, essa suspeita que
a sociedade acalentava sobre eles funcionava como uma atenuante. Sabia-se que,
depois das dez horas da noite, Carlos não estava muito sóbrio e que era preferível não
o chamar para acudir a um doente. Ainda estava na memória de todos a carnificina
que ele fizera numa mesa de cozinha operando uma mulher como um autêntico Jack
Estripador e julgando estar a realizar uma cesariana. Morreu a mãe e morreu a
criança, e Carlos disse, balbuciando: "Nunca vi tantas tripas na minha vida." Era tão
deplorável tudo aquilo, ele inundado de sangue e a mulher morta, com os braços
abertos e lívidos, que todos quiseram esquecer.
— É uma besta e bebeu demais. Ele que trate panarícios e unhas encravadas, e
não se meta em mais nada.
Foi a opinião do médico-chefe do hospital onde a morta foi levada para ser
cosida e decentemente fechada. Mas aquele desatre criou em volta de Carlos um
clima semelhante a uma protecção; e a justiça não pôde actuar porque no âmbito do
segredo ela recua sempre. Ema soube apenas que o marido ganhou a imunidade do
incompetente e que o não incomodavam, evitanto tudo o que pudesse violar o
segredo da sua estupidez.
Mas era efectivamente estúpido esse homem grande, corpulento, com as abas
do casaco sempre a pingar sobre os joelhos e que as mulheres estimavam? Maria
Semblano achava-o capaz de diagnósticos acertados, por intuição, se não por
capacidade médica. Ele sabia tratar com as mulheres e fazia-as dizer coisas que
nenhuma aceitava dizer a outra pessoa sem corar. Coisas íntimas, em que andava um
fio de perversidade, tão ténue que era possível confundi-lo com uma má
interpretação dos factos.
Maria Semblano fez-se sua protectora desde que percebeu que Carlos não
amava tanto a mulher dele como se dizia. No parecer de Maria, Ema estava acima do
marido e, ao mesmo tempo, recusava-lhe o direito à vassalidade, que o podia salvar
dessa terrível inferioridade. Ser admirada e servida por Carlos parecia a Ema a pior
das futilidades. Ela podia aceitar as leis da cavalaria, como a de uma mulher ter um
suspirante, tanto mais platónico quanto era famoso pelos seus dons para inspirar
amor. Mas um homem que ama dentro do laço matrimonial tem que pertencer à
hierarquia da desilusão e ser, dentro do sistema, uma síntese passiva modelada pelo
ressentimento. Nunca um vassalo. Por exemplo: não era porque lhe reconhecesse
direitos sobre ela que Ema se deixara engravidar mais uma vez; era porque havia
nesse acto qualquer coisa de indeciso que ela queria dissipar com a maternidade que
daí resultava. Em todo o acto carnal essa indecisão perdura; mas quando só o prazer
o inspira, a indecisão perde o direito a ser prova e transforma-se em vaidade, um dos
mistérios gozosos menos esclarecidos que há. Na relação matrimonial, a indecisão
ultrapassa a satisfação; a integridade do corpo refaz-se com a gravidez.
Maria Semblano notava como o velho Semblano, e até o novo Semblano,
sentiam desejo por Ema. Porém ela era julgada uma mulher perigosa, sobretudo
depois que Fortunato tivera parte muito activa na Revolução e fizera em África
campanhas de esclarecimento depois da descolonização. Falava disso com
entusiasmo dez anos depois e já quando se afeiçoara à vida sedentária e se batia pela
promoção e o aumento de salário; Fortunato era um romântico com atenuantes, e um
misterioso metabolismo falava-lhe continuamente da sua infância no Vesúvio e dos
constrangimentos de classe que tivera que superar. Considerava-se uma espécie de
herói da selva armada, e o facto de se achar parecido com um actor de cinema dava-
lhe um bom-humor fantástico, pronto a definir o massacre como um processo de
cura.
Dizia, não sem alguma verdade, que uns matam e outros deixam morrer. Era
esta vivacidade quase libertina o que o mantinha perto de Ema; mas não nas boas
graças dela, como amante. O bom moço, de cabelos loiros e traços finos, dera lugar
ao atleta de nariz quebrado por um estilhaço de granada e que lhe dera o traço
anatómico propício à análise psicológica. O que viam nele de franco e irresistível
guerreiro era uma obra do acaso. A fisionomia humana tinha de nobre o anunciar a
verdade. Mas, agora, essa verdade era um produto de série; um enxerto substituía a
marca de nascimento, e Lombroso perdia terreno ao querer explicar o criminoso pela
sua estrutura óssea.
Ema, por isso mesmo, não fazia tanto efeito como faziam há cinquenta anos as
mulheres muito formosas, as cortesãs que devoravam um erário só porque tinham
ancas de potro e olhos profundos. Quanto a isso, Maria Semblano não tinha receio.
Ema, a Bovarinha, não fazia nenhum efeito prolongado nos homens da Caverneira.
Eles preferiam raparigas de ambições modestas, ainda que às vezes incluíssem
pretensões a um casamento. Ema despertava a suspeita de ser uma informadora da
CIA nos tempos livres, o que era sempre motivo de trocadilhos e risos; excepto Pedro
Dossém, que a amava incondicionalmente, todos os outros vingavam assim o ter de
avaliá-la acima das próprias mulheres. Maria Semblano nunca se rebaixara a alterar a
mecânica das relações sociais e prestava-lhe cobertura, convidando mesmo Lolota e
Luisona para as festas de Verão na Caverneira. Fazia-o pelo pai, mas sobretudo por
entreter a sua revanche sobre as outras mulheres.
— Não há dúvida de que ela é uma senhora — dizia Lumiares, porque havia
momentos em que ele se tornava possidónio como um cavalo de circo.
— Que queres dizer com isso? Parece que o resto tem um cheiro de
excremento — disse Ema, enervada. — Uma senhora não tem suor, tem transpiração.
Uma senhora ri-se quando é insultada. És um chato.
— Uma senhora não se refere a ti como uma mulher coxa, mas como uma
mulher bela.
Nestes momentos Ema era tomada de insanidade e fazia qualquer coisa de
mau. Era por isso que não a convidavam. Ema reagia às vezes com efeitos
retroactivos à menor das provocações ou que ela encarava como tal. Mas
ultimamente ela não saía por causa da gravidez, e só Pedro Dossém a distraía e lhe,
levava bombons de ginja. Ele comia-os todos antes de sair; os bombons de ginja
eram a sua perdição.
— Estou desesperada — disse Ema. — Agora usam-se vestidos com folhos
que até parecemos as rosas de Múnchhausen, como diz Lumiares, e eu não os posso
usar. Quando eu voltar a estar em forma, já não estão na moda. Perder uma moda é
como perder uma vértebra do pescoço. Diminui-nos muito. Nada mais nos diminui
como isso.
— És doida. A moda aqui dura dez anos; até se venderem todos os monos, a
moda não passa. Conheces a Tomásia? Pois ela vai a Paris e compra qualquer coisa
que se usou no tempo da Mata-Hari e volta para cá feliz da vida. "Quem é que sabe
que não se usa mais?" — pergunta ela.
— Eu sei — disse Ema, salvando dum salto o último bombom de ginja. — Eu
estou informada.
— Julgas tu. Mas é diferente. — Olhou para Ema com uma ternura aflita, e a
fealdade dela doeu-lhe como uma punhalada.
— Tu percebes sempre muito bem.
Ema pensou se Pedro Dossém teria uma alma suficientemente grande para
sofrer por ela e sofrer sem esperança. Podia não passar dum exercício social aquela
arte de comungar as próprias mentiras.
Chovia e o barro escorria, amarelo e pastoso, nos bardos nus. Era a época mais
triste no Vale; lembrou-se de alguém ter-lhe dito que a tristeza é um estado de
riqueza. Os poetas são tristes, algumas crianças são tristes e gozam atrozmente com
isso. Lembrava-se quando, no Romesal, se sentava no degrau do oratório com o
Menino Jesus nos joelhos e Tia Augusta olhava para ela embevecida, julgando ver
despertar uma vocação religiosa.
Mas Ema estava só a provocar a tristeza, como um vómito. Tinha necessidade
de lançar de dentro um excessivo peso da ficção da vida, o que sonhava acontecer-lhe
ou o que não ia acontecer-lhe nunca mais. Levantava os estores da sala grande do
Romesal e via a Régua toda iluminada, e uma coroa de luzes mais longe. Sabia os
nomes dos lugares e quando havia fogos e avarias eléctricas. Contava-se o caso na
cozinha, e o lume tinha no escuro um crepitar triste.
— Faltou a luz em Poiares. — Ema entrava com a novidade, e Ritinha ria-se,
com o riso boqueaberto dos mudos, saltando à sua frente como um gafanhoto. —
Olha que me fazes cair, mondongo.
Ela usava termos locais, de efeito cómico na sua boca formosa. Gostava de
deformar a cultura que recebera, fingia ser uma rapariga da vinha, agradava-lhe
engajar-se numa classe maldita ou só irreversível, a dos pobres, propriamente ditos.
Nunca perdeu essa evidência arquetípica, de pertencer ao passado comum duma raça
na qual estivesse em causa a experiência e não as proporções do sucesso pessoal. Isto
fazia dela uma maldita, alguém que se dobrava apenas a uma intuição fundamental e
para quem as regras da vida, variáveis como as civilizações, não interessassem. Essa
paixão pelo que era imutável contrariava tudo e todos. Às vezes, Carlos achava Ema
insuportável; ela era um obstáculo à sua pequena carreira submetida aos laços lógicos
que se aceitam como sabedoria. Ninguém gostava de Ema, e a parte de favoritismo
que Carlos conseguia era para compensar essa antipatia pela mulher. Maria Semblano
ia mais longe: percebia que o que fazia a grandeza daquele médico de pequenos
recursos de inteligência era o contraste entre ele e a mulher. Talvez não reparasse
nunca em Carlos se não fosse por causa de Ema, das suas extravagâncias e o símbolo
negativo da sua feminilidade. Atribuía-lhe demasiados amantes para poder declarar a
sua raiva ao próprio sofrimento, que era a de ceder ao amor-próprio durante toda a
vida.
Pôs-se a escrever uns contos morais que ultrapassavam as suas pequenas
homilias de catequese. Deu-lhes o nome de Conto da Caverneira, embora os situasse
nas termas de Vidago, onda em tempos ia acompanhar a mãe, e onde se realizavam
assembleias regionais, de famílias, entre as quais estavam os primos que a
pretendiam. Nesse tempo Maria Loreto Semblano era uma bela mulher, de tipo
estatuário, grande e bem feita, com sarda» como caviar rosa, o que até aos vinte anos
a tornava picante! Escrevia bem, e isso era considerado como uma prenda e não
como um talento. Só depois dos quarenta e muitos anos Maria se apercebeu que era
uma escritora. Demasiado tarde. Tinha perdido o tempo do exercício que conduz à
maestria. No entanto, o gosto desenvolveu-se, ainda que pelo lado da anti-verdade e
dos efeitos sentimentais. Carlos, que a tratou duma anemia e transtornos hormonais
que ele medicou como pôde, com o auxílio do seu roteiro de fármacos, chamou-lhe a
atenção. Ela percebeu que lidava com uma nulidade, mas que Carlos tinha um
mérito: era bom ouvinte e capaz de a guiar pela floresta gramatical que a preocupava,
porque Maria Semblano era pouco versada em ortografia. Escrevia com erros e, o
que era pior, era incapaz de se corrigir. Carlos Paiva serviu-lhe de copista, e uma
amizade terna e sem escrúpulos, como são as amizades de velhos, veio trazer às suas
vidas um combinado, de prazeres virtuosos. No fundo ambos praticavam a virtude
sem pensar se acreditavam nela.
Os Contos da Caverneira foram escritos para Carlos, e eram uma espécie de
divertimento e de autonomia sentimental duma mulher até aí incapaz de resolver os
laços que a aborreciam: os laços com o pai e com o marido. O primeiro conto era
uma pequena farsa doméstica em que não se podia distinguir entre as boas intenções
e a vaidade interior do protesto, a que as mulheres muito se prendem. De resto, o
protesto é um idealismo feminino; encobre muito da ocupação, falhada ou não, do ser
humano e do seu egoísmo.
O conto começava com o casamento duma herdeira rica, no primeiro quarto do
século, e, embora ela não confessasse o seu amor pelo marido, depreendia-se que
estava, pelo menos, disposta a amá-lo. Eis como Maria Semblano expôs os factos:
"Quando se foi educada com a profecia da decepção, nunca se ama ninguém. É
por isso que as mulheres são submissas, mas não entendem muito do amor". E por aí
fora. O interesse da narrativa estava no seu mecanismo interior, que era mais
vingativo do que criador. Demonstrava uma unidade satânica desde a primeira linha e
tornava-se mesmo um objecto de danação para o leitor. Só que Maria Semblano não
destinava os seus contos a outros olhos senão os de Carlos Paiva, e isso porque o
achava digno dela. O que era ser digno dela, nem a própria senhora da Caverneira
sabia bem. Mas percebia indistintamente que, tanto Carlos como ela, estavam
submetidos a uma condenação dolorosa: a de amarem pessoas que lhes impunham
um destino, ou seja, uma vontade mais forte.
Quando Maria se apercebeu de que o marido, não só a enganava como só
assim lhe impunha a crença no princípio da masculinidade, dependente que este é do
princípio da autoridade, Maria deu-se por informada e tomou precauções geniais.
Parecendo-lhe que o velho Semblano, e depois o novo Semblano, apareciam em casa
deprimidos e com mau parecer, concluiu que as amantes não tinham condições de os
tratar cuidadosamente. Achou que eles se degradavam em camas pouco limpas e
casas desprezíveis; mandou fazer um pavilhão nos fundos do jardim e velava para
que o conforto não faltasse; tudo estava previsto, tanto a higiene como o prazer do
luxo, e os Semblanos habituaram-se a receber amigas naquele recato bem servido,
sem o cunho da tolerância que se aplica a essas situações. Maria disse a uma das
belas raparigas que frequentavam o pavilhão que esperava dela, em vez duma
adorante atitude pelo homem que a convidava (convidar tinha o sentido de
presentear), um respeito pela pessoa que rompia com os tabus conjugais, ela própria
Maria Semblano.
As moças ficavam-lhe gratas e, embora cedessem aos desejos carnais dos
homens, não cediam menos à aventura moral que Maria lhes impunha. Ela
emancipava-as pelo consentimento de simples folias em que não participavam com
nenhuma espécie de traição, segredo e rivalidade. Ficavam assim implacavelmente
unidas à vontade da esposa, que agia como um torniquete nas relações do sexo e
apenas isso. O velho Semblano (diga-se que não teria mais de cinquenta anos nessa
altura, e o novo Semblano tinha dezanove e pouco) sentia-se muito bem tratado e
desistira de ter ideias sobre o assunto. Ele dizia, não sem espírito, que se começava
por adoptar uma ideia como verdadeira e depois, aparecendo a dúvida, abandonava-
se o caso, e quem quisesse que tirasse lições duma ou outra coisa. Como se vê, Maria
Semblano estava a braços com um marido que não era vulgar, e pensava que alguém
como Carlos Paiva lhe pouparia muitas complicações.
Com o pretexto de que estava imprópria para as alegrias sexuais, Maria
obtinha um direito reivindicativo parecendo usar apenas de fanatismo pelo homem;
fanatismo em que era apoiada por todas as gerações de homens, passadas e presentes.
O nome dela era venerado; era dada como exemplo e elevada à categoria de santa.
Santa Maria Loreto soava-lhe e compensava-a da vida morosa na Caverneira. Mas o
que era aliciante em tudo isto é que os homens todos, e não só o marido dela, tinham
um ciúme platónico, se é que se pode dizer assim. Maria libertava das suas angústias
o comportamento masculino, mas criava outras, o que era indispensável para que os
homens se sentissem no papel de inovadores.
A Bovarinha era para Maria Semblano uma inimiga potencial. Enquanto Maria
adquirira nas frustrações de infância uma vocação espiritual proferindo um voto de
simplicidade, Ema era uma aberração maligna, talvez pelas mesmas razões. As duas
tinham uma dupla personalidade; só que em Ema predominava a inveja e todos os
átomos contestários que disso resultavam. Em Maria Semblano era diferente: o seu
egoísmo levava-a a pôr limites a tudo, mesmo ao ilimitado.
A generosidade era uma forma de egoísmo, e a cortesia conjugal era uma
forma de brutalidade que suprime o que há de mais fascinante nas relações das
pessoas — o seu laço sintético de amor e ódio e a sua insatisfação.
Aos poucos foi aparecendo o cerne do problema, fonte da realidade das duas
mulheres. Muito raramente se viam, e depois evitavam-se francamente; mas a sua
personalidade dupla entrou em luta aberta. Dum lado, Ema, que tinha desde a
infância desenvolvido um certo grau de insatisfação e de desejo aplicado às coisas
viáveis, ao amor das coisas e dos homens; do outro lado, Maria Semblano, a cujas
aspirações amorosas juntava o sofrimento para lhes dar uma forma de
transcendência. Ema repelia o sofrimento, Maria pode-se dizer que o tomava como
uma constituição do carácter. O fascínio que ela exercia, mesmo no marido leviano e
cobarde, dependia disso. Era irresistível, porque o carácter é irresistível com os seus
imperativos da dor sofrida e da dor oferecida. Ema não podia deixar de detestar
Maria (se bem que Maria exercesse nela uma estranha tentação, pronta a transformar-
se em memória que visa o desejo) e referia-se a ela com prudência. Foi para sugerir
um sinistro deboche entre o casal que Ema engravidou. Pedro Dossém ficou muito
chocado, porque para ele Ema estava longe da horrível plenitude do sexo que ele
cumpria, bem ou mal, com a própria mulher. Não sabia como explicar, mas teve pena
dela. A beleza assim decaída e insultada causava-lhe comiseração. Ele acreditava que
o potencial infinito das pessoas não podia ficar submetido à iniciativa da carne.
A criança nasceu em Novembro e era um rapaz. Ema ficou orgulhosa dele, mas
a sua alegria durou pouco. Não alimentou nenhum dos sentimentos que eram de
esperar numa mãe bela e afortunada. Carlos acabava de ser nomeado professor numa
universidade privada e atingia o renome adequado à misantropia dos outros. Era um
notável, embora todos soubessem que era uma nulidade.
Ema passou a dedicar-lhe uma ironia céptica mas discreta. O sucesso do
marido parecia-lhe usurpado a ela própria. Maria Semblano, por seu lado, fazia tudo
para adoçar a visão da sociedade a respeito de Carlos e reforçar o sistema dos valores
que o podiam manter no topo. Era preciso que acreditassem em Carlos, e não que o
tomassem como verdadeiro, fosse no que fosse. A verdade, seja a do mérito ou de
qualquer outra coisa, causa medo. Maria contava com isso para fazer do seu amigo
de cabeceira, se não uma celebridade, pelo menos um cidadão reconhecido ao nível
do sistema.
Ema teve uma recaída, e a sua personalidade malévola manifestou-se. Fez
grandes dívidas e envolveu-se outra vez com elementos suspeitos que faziam uma
política intelectual, sobra dum republicanismo cheio de rugas e de generalizações.
Isto ajudava-a a sentir-se no centro duma capciosa vaidade que parecia comunhão de
ideias. Pedro Dossém não podia acompanhá-la sem afectar a sua convicção de não
agir nunca em que circunstância fosse. Pedro Lumiares previu que Ema dava início a
um processo histérico que a levaria longe demais.
Frequentar as tardes da Caverneira era comer palha em forma de ovos em fio.
Maria não se fazia ilusões: estava muito longe de achar Lumiares apropriado aos seus
jantares clericais que terminavam em recitais ou coisa pior. Coisa pior eram leituras
de originais, o que Lumiares tomava como um purgante. De facto, ele não podia
iniciar em Emily Dickinson aquela gente pegajosa que rodeava Maria Semblano e
que tomava a alta literatura como uma aberração.
— Desculpe mas não entendo nada do que diz, ou receio entender. "A pior
matéria mórbida do homem, a alma"? Ouvi bem? — Maria Semblano sorria com
superioridade amável; estava, no entanto, curiosa sobre o que Lumiares chamava "os
sapateiros da morte". Havia uma clara alusão aos métodos de Carlos Paiva, os seus
sinapismos e os seus emplastros vesicatórios, espécie de coturnos e pantufas com que
se marcha silenciosamente para a morte. Tratava-se de glosar uma ideia de Jean-paul,
cheia de espírito cáustico.
Lumiares não podia adiantar nada neste sentido senão correndo o risco de se
fazer pôr na rua. Nada como aquelas reuniões de cultura para o exasperar. Era a
maneira de teorizar o que o indignava; como a maneira de fazer a guerra, com armas
escolhidas e aprovadas e que não ofendessem um sentido unânime da moderação.
Matar, sim, mas com termos; senão era um acto criminoso, como era falar dos
grandes escritores e não de piolhos enfermos que causam comichão livresca. Nada o
aborrecia tanto como aquelas conversas intermináveis sobre o Bem e o Mal.
Duravam até que os olhos se fechavam de pura confiança no sono e em nada mais.
Lumiares seria capaz de chorar se o acordassem, como nos interrogatórios policiais,
só que não era possível dar a entender a abusadora indelicadeza que cometiam com
ele dizendo, para além do mais, que não o compreendiam — nem a Emily Dickinson,
nem a Jean-Paul, nem a nenhum desses mortos na sua urna de cristal que esperavam
a ressurreição dos colossos entre o meio-termo terreno. Ele, Lumiares, chorava
mesmo, atingido por um colapso nervoso, quando Maria Semblano lhe ofereceu uma
xícara de chocolate quente. Um afrodisíaco, sem tirar nem pôr. Era a bebida da meia-
noite que espertava o olhar dos velhotes e punha uma rosa nas faces das mulheres
tísicas. Um papagaio vesgo baloiçava-se duma para outra pata e gritava com voz
roufenha o seu nome de Jacob. As luzes tiravam-lhe o sono e, na passagem
ajardinada, ele parecia uma pessoazinha culta esperando a entrada em cena. Lumiares
pensava com quem ele se parecia e não encontrava a parecença. "Quem será?" —
dizia. Isto distraiu-o durante algum tempo, até que o jovem Semblano veio tirá-lo da
sua trabalhosa meditação.
— Vamos sair, contamos consigo?
— Para quê? — disse Lumiares. Foi com ele pelo corredor fora, carregando a
xícara de chocolate que se cobria duma película aveludada. Não se atrevia a tocar-
lhe, não sabia porquê. Era a hora em que saíam para jogar, ele e Semblano, ambos
viciados no bridge e que frequentavam um primeiro andar sobre os bilhares da
cidade.
Pequena cidade rente ao rio, com um ar obstinado de fronteira comercial.
Quando chovia, a lama subia como um vómito pastoso; os antigos bordéis por cima
dos muros da estação sugeriam ainda a violenta face da orgia que se limitava a um
recrutamento de mulheres sem encantos e sem nada que pudesse identificá-las com a
fatalidade. Um dia, num desabafo de boa fé, Maria Semblano dissera uma coisa que,
na boca dela, parecia inacreditável:
— Ema pode muito bem acabar num lugar como aquele, na estação.
Presume-se que ela escreveria estação com letra grande, dando-lhe título
atenuante, mas nem por isso menos infame. Era o que no Brasil se chama "a zona",
um lugar proibido e em comunhão com os corações simples, que da imaginação do
pecado se aproveitam para a cerimónia dos seus votos. Como ser puro, se o pecado
não existisse? Maria Semblano teria dificuldade em inventar a sua heroicidade e o
seu discurso sobre o Bem e o Mal. Havia homens de letras muito razoáveis que se
diziam ateus e a interessavam com essa espécie de sermão de encomenda. Não eram
ateus, mas tímidos ferozes que nunca confessariam os seus sentimentos para com
Deus; sentimentos parentais, de primos e sobrinhos de Deus. Maria Semblano,
vestida por uma modista célebre, que as havia no Porto e sabiam trabalhar o chiffon e
o moiré com as pálpebras meio fechadas, como quem bebe licores, Maria Semblano
confiava nos seus convidados. Eles nunca ultrapassavam a decência das dúvidas que
se acomodam às vaidades.
Quanto ao marido, mais velho do que ela seis anos, e gasto pelas orgias de
capoeira, como dizia Lumiares aludindo ao pavilhão do jardim, não oferecia estorvo
a ninguém e estava pronto para o caixão, como outros estão para mudar de casa. Era
ainda um velho elegante e usava uma camélia ao peito depois de os cravos se
tornarem um símbolo da revolução. Os cravos vermelhos vendiam-se até mais
baratos, pela procura inferior que tinham. Era um sintoma.
As sociedades aliam-se pelos factos e comunicam pelos sintomas. Observando
o velho Semblano, via-se logo que era um cadáver bem conservado. Vestia bem e
tinha mãos bem tratadas. Nunca falava de sexo nem das partes íntimas, como os
netos, que descarregavam a libido por dá cá aquela palha. Resultado: a obscenidade
não tinha mais efeito do que um bilhete de comboio para destino previsto; era uma
maneira de separar os cretinos dos idiotas. Para os primeiros, a obscenidade, como o
bilhete de comboio, significava uma linha contínua sem passagens de nível; para os
outros era uma excursão de férias, sempre cara demais para as suas posses.
— Como as coisas mudaram — disse o velho Semblano, que continuava a
tratar as unhas na manicure e a chamar-lhe "rapariga", com acento mórbido. — Até
nos asilos se respira sexo, e o macarrão guisado faz acudir à ideia coisas marotas. Eu
fico-me no meu tempo, em que começávamos por achar que as meninas eram como
peixes de barriga branca, como aparecem, mortos, no rio. Era um nojo que não nos
deixava nunca mais. E elas por nós. Vencer esse nojo era a verdadeira virilidade.
— Eu disse, quando era pequeno, que as meninas tinham uma frente como um
Volkswagen. Já é uma impressão que combina melhor com o amor — disse
Lumiares. Cambaleava, não porque tivesse bebido muito, mas porque gostava de
fingir um estado grotesco e isso o divertia. —Já sei com quem se parece o papagaio.
Com… — Não acabou a frase, o que lhe acontecia constantemente. Um dia, ouvindo
a voz dele gravada, deu conta de quantas vezes se interrompia. Eram imensas. Ficou
muito preocupado, porque se julgava um sofrível conversador. Mas como se pode ser
bom conversador com aquelas frases suspensas, e reticências?
— Seja como for — disse ele —, o pecado faz-nos muita falta. Dá-nos a ideia
duma vida elegantíssima, com togas e mantos a que com algum esforço poderemos
chegar. Enquanto que o pecado não tem nada de fino, é coisa de criadas. Esta ideia
ficou--me, como muitas outras, dos mistérios do sótão e da cave, de quando eu era
pequeno como o chão.
— Pequeno como o chão! Já não lembrava disso. — O velho Semblano tinha
perdido uma forte soma, e isso comovia-o. Aguentar a perda era como aguentar um
fusilamento, vagamente suposto que não havia balas nas espingardas. O que o ligava
a Lumiares (fora o compadrio do jogo, que abate as hierarquias como se abatem os
girassóis todos ao mesmo tempo para receber a flecha do sol) era a curiosidade. Não
percebia o entendimento que havia entre ele e Simona. Deixava-o boquiaberto uma
tal paixão que tinha origem num desespero comum; eram como enterrados-vivos,
ouvindo e sentido tudo, mas incapazes de se mexerem daquele sítio das Jacas,
abominável pelo seu silêncio em que a missa do amor era dita. Simona servia-o de
rastos, e nunca um amor de mulher fora tão capaz de reduzir a realidade a um vazio
absoluto. Ela amava-o sem pôr pequenos deslizes de permeio, sem pensamentos
estranhos ao dogma do amor, sem distracções, pecadilhos, viroses da mente, cálculos
doutras situações que não fossem ele e ela nas Jacas. A propriedade que se arruinava,
a casa cujo reboco enfolava e caía, as caleiras rotas que deixavam vazar a chuva
como prantos que roíam a sua ferrugem. O banco, no mirante, que era situado numa
elevação da vinha, estava podre. Mas iam lá para se encostarem um ao outro, ela
despertando um estremecimento da pele que era mais êxtase do que desejo. Falavam
pouco, quase não falavam. O rosto de Simona, belo, nu de todo o artifício, de
sobrancelhas longas e acentuadas por um brilho, como se marcassem um trilho de
caracol, voltava-se para Pedro; ele recebia aquela indignidade da submissão,
respondia-lhe como Deus responde aos homens: amando. Isto não podia ser contado.
No entanto, não havia um só logista na cidade, um groom de hotel, um criado de
mesa, que não conhecesse esse signo da paixão, e não se calasse. Deixavam-nos sós,
sós com a sua hóstia de entrega de que a reflexão se apartara. Mas não podiam deixar
de ter curiosidade, como o velho Semblano tinha. Ele, que possuíra tantas mulheres,
exercera o seu ofício de macho com ilusória competência (como exercem a profissão
os actores de teatro, sem perceber o seu papel, dizendo-o, representando-o), ficava
admirado com aquele caso.
— É melhor não falar do que se não entende, pronto — dizia Semblano. Tinha
prazer em que Lumiares se sentasse a seu lado, e esperava talvez captar-lhe uma
informação, um dia. Como era ser amado assim; que fazer, que contemplar no
horizonte dos sonhos, que invenção completar depois do sentimento, que era
invenção do homem. Não se imagina que pensamentos urbanos e em espiral sobem
ao cérebro dum sedutor de quintal.
Apesar de enferma, conservada em bulas do Papa e bulas da farmácia, Maria
Semblano ia-se introduzindo no campo das Letras que, ela também, escrevia com
maiúscula. Era, como se dizia à boca pequena, "uma mulher das Arábias". Não sei a
que mulheres se referiam, a não ser às das Mil-e-uma-Noites, espertas e batalhadoras
quanto à liberdade sexual. Debaixo dos seus véus e fartos capindós, lutaram mais
pelos amores saltimbancos, do que todas as sufragistas juntas e as suas
continuadoras.
Só que Maria Semblano se retirara do amor da cama para melhor se adereçar
para a luta. O seu estado virginal, como o de Sir Lancelot, dava-lhe forças sobre-
humanas. Encontrava energias que correspondiam a uma humilhação ilustre. O corpo
pedia-lhe carícias, e ela dava-lhe discursos. Mas tais discursos, que começaram por
ser piedosos e a que ela chamou "Pão nosso", sendo que o pão é para repartir e não
para engavetar, passaram a ser cada vez mais ambiciosos. Não se tratava de ambição
literária, mas qualquer coisa que tinha a ver com a sua sexualidade imaginária, o que
culmina a ambição dos sentidos, tanto nos homens como nas mulheres. O que fazia
correr Ema entre Vale Abraão e o Vesúvio, entre o Porto e Roma, se acham bem esta
nota cosmopolita? Era, sem dúvida, a sexualidade imaginária, capaz de ocupar a
tempo inteiro as agências de viagens de todo o mundo. Escrever os Contos da
Caverneira tornou-se para Maria Semblano uma forma de iludir uma natureza
grosseira.
Porém, Ema não iludia essa natureza que não era capaz de demonstrar ao
marido.
Ele ficaria horrorizado e havia de opor-lhe a menina do Romesal, que colava
diligentemente papel de seda sobre as tigelas de marmelada. Mas, então, que fazer
com aquele amor furioso, aquelas palpitações, aquele apetite de drama e de vertigem
que às vezes a assaltavam? Maria Semblano, com conhecimento de causa, diria: "ela
pode acabar no muro da estação" — o que parecia cruel e despropositado. Mas quem,
senão a prostituta, absorve tanta grosseria, capaz de fazer desertar o amor como
exausto duma guerra sem glória? Os amantes com toque de família não serviam,
como Ema pôde verificar a respeito dos seus amores no Vesúvio, ora com Fernando
Osório, ora com Fortunato. Despertar para as relações conjugais, que realizam uma
higiene espiritual mais do que física, era só possível à custa duma mentira. Por isso,
Fernando não respondia às entrevistas e se mantinha afastado, usando porém a
imagem de Ema para obter prazer com outras mulheres. E Fortunato, depois dalguns
encontros sobre a taberna no cais da Ribeira, quase a ignorava. Só a suportaria se
pudesse bater-lhe, afirmando assim o seu desprezo de homem. Mas Ema não
consentia uma jactância dessas, sabendo que Fortunato ia contar para a caserna
aqueles desvarios, escondendo que a amava com furor, para não ser explorado pelos
camaradas, que pressentiam que ele estava do lado da fêmea e que amar muito é
prova disso.
Ema, que enganava os amantes e o marido, e toda a gente, tinha ciúmes.
Manifestava-o com crises que iam até perseguir Carlos, esperando-o à saída da
Caverneira e fazendo-lhe cenas. Maria Semblano via-a pela janela barafustar e bater
com a porta do carro, arrancando quase contra uma árvore, em guinadas perigosas
pela avenida do parque.
— Qualquer dia esbarra-se. Detesto o feitio dela — dizia, mas a sós, porque
nunca se atreveria a falar abertamente de Ema. As duas mulheres adivinhavam-se,
percebendo o que havia de semelhante na energia de que dispunham. Uma vez em
que Ema compareceu a um jantar na Caverneira, bela como nunca, decotada, com
brincos enormes que faziam o efeito de diamantes saindo-lhe das orelhas, diamantes
falsos mas que a embelezavam extraordinariamente, nesse dia ambas ficaram ao par
da sua natureza.
Tomavam o café, Ema pousou a mão no rebordo do sofá onde Maria Semblano
se tinha sentado. Aquela sensação de tocar a pele crivada de sardas, uma pele
dourada onde as pérolas brilhavam, atacou Ema como um golpe nas entranhas. Se
tivesse sido trespassada por uma espada, não sentia o mesmo, aquele frio, aquele
conhecimento de que a vida se extinguia ali e que toda a ligação com o mundo estava
quebrada para sempre. Ouviu vagamente que Maria falava de golfe. Ela jogara o
golfe e, em tempos, ia para Chiberta passar temporadas. Ema achou que se dava nela
a aliança de confusos sentimentos que não pressagiavam qualquer felicidade.
Estava longe do primeiro baile de gala, ela era uma noiva ainda e Osório
carregara quase com o seu corpo leve e trémulo, impedindo-a de escorregar no
parquet. Ela sentira gratidão e doce alegria por ele lhe prestar atenção e lhe elogiar o
vestido cor de açafrão.
— É como um sol de Maio no meio destas fúnebres senhoras — disse ele,
olhando-a com a distracção dum homem do mundo, que nunca declara em público o
seu desejo, mas sabe demonstrá-lo pelo afecto firme que consolida os sentimentos.
Ema amara-o porque ele a protegera no meio da hostilidade sensual das outras
mulheres. Agora percebia, quando era já mais madura e menos abandonada à
turbulência dos desejos, percebia que as mulheres a tinham excluído, como se
proibissem a entrada à feiticeira. Não porque ela lhes corrompesse os maridos, mas
porque exercia um efeito fatal nelas próprias. O que acontecia era do domínio do
proibido e do negado; era a intervenção da musa negra que tem relação com a Parca
e, ao mesmo tempo, com Eros de asas que não voam, que o seguram à terra, que são
só fingimento e indefinição do sexo. O sexo é uma combinação de naturezas
diferentes cujos poderes se emancipam da letargia de todas as coisas.
Maria Semblano percebeu aquela confissão do sexo em Ema, só com receber a
notícia da sua mão pousada no rebordo do sofá, enquanto que a outra mão
equilibrava a xícara de café.
Tratou de a despedir, mas sem chegar ao extremo de proibir-lhe a entrada em
casa. Carlos Paiva era o mensageiro, quem lhe trazia a irresistível presença de Ema,
tornada assim num vício escrupulosamente expurgado da sua interpretação. E o
médico percebia que era de Ema que ele dependia para o seu sucesso e as variantes
de aceitação que a sociedade oferecia.
As tímidas carícias de Carlos, a sua contrafeita maneira de amar
conjugalmente, ao mesmo tempo que protegia Ema e lhe dava uma segurança glacial
de que faziam parte os filhos e o seu sentido educativo, e as funções de dona da casa,
também a conformavam a ter aventuras.
Não se sabe se S. Paulo teve do mistério conjugal um conhecimento profundo,
a ponto de sugerir o ajuntamento temporário dos casais e depois a sua separação.
"Para que não se defraudem um ao outro" — diz. Ele sabia provavelmente que duas
naturezas diferentes estão no risco de se infligirem ferimentos mútuos, que podem ir
até ao crime que é a carga dominadora do inconsciente. Que significa "ser submissa
por respeito aos anjos e não aos homens"? Prodigioso conselho, que preserva a
personalidade a que a mulher tem direito e pode ser abolida gradualmente sob os
auspícios da cumplicidade conjugal. Os anjos são homens redimidos das injustiças
em que concluem o seu domínio. Só a esse homem redimido a mulher deve
submissão, sendo este o pacto definitivo do sexo.
Quando a criança ficou suficientemente criada, depois de baptizada na capela
das Jacas, Ema voltou a sair muito desabrida. Já não informava o marido das suas
ausências e, por estranho que parecesse, Carlos confiava nela. Cada vez menos agora
a achava capaz de o enganar; algo lhe dizia que a corrupção de Ema se tornava
impossível de consumar. Não se referia à prática dos excessos, mas ao seu
envenenamento com as suspeitas. Amava-a, e era tudo. Maria Semblano instruía Ema
da sua vontade regeneradora, embora nunca lhe falasse disso; não lhe falava, posto
que ambas se evitavam. Contudo, no inconsciente das duas mulheres permanecia
uma promessa de catástrofe, à medida que o imaginário tomava o ascendente sobre a
realidade, crua, violenta e, sobretudo, usual.
Tinha passado o tempo em que Ema ia, no comboio estafado e sujo, pintado de
verde, apear-se na estaçãozinha do Vesúvio para se encontrar com Osório. E para se
entregar com Fortunato a depravações que iam desde misturar alimentos contrários
de paladar, como peixe com compota ou especiarias com o chá, o que ela vira fazer
aos amigos de Osório, ingleses com um pequeno pendor para a brutalidade. Depois
possuía Fortunato como se ele fosse uma adolescente virgem e que era preciso
seduzir com uma crueldade doce, uma enérgica emancipação da feminilidade dele. O
mordomo Caires escutava à porta, mas só ouvia a música e, às vezes, uma tossezinha,
um ruído da cadeira arrastada. Pretendia interromper os amantes e batia para
perguntar tolamente se a água quente corria no lavatório. Ema aparecia-lhe, vestida
dos pés à cabeça; tinha um livro aberto na mão. Fortunato não estava.
Isto decepcionava o mordomo Caires. Andava tão perturbado como se os
encontrasse em flagrante. E quando Ema deixou de aparecer no Vesúvio, com o seu
casacão de marmota, ele julgou acabadas as suas vigílias; porque passava parte da
noite a pé, vigiando as idas e vindas da hóspede, que se deleitava, afinal, com as
confusões que armava. Via as olheiras de insónia do mordomo Caires e perguntava-
lhe se estava doente.
— Estou. Não me sinto bem — queixava-se Caires. Ali, no meio das cafeteiras
de prata que brilhavam, como se contivessem um pensamento feito de muito serviço
secretíssimo e antigo, ele parecia inconsolável e algo abúlico.
— Trate-se quanto antes. Pode ter um tumor na próstata. Começa assim, com
tristeza e olhar de cão.
Caires não sabia se ela se ria ou, pelo contrário, o queria animar. Tremia só de
contemplar a pintura que lhe cobria o rosto, pintura de guerra, azul para os olhos,
ocre para a cara nefertitiana.
Era tão bela que o deixava absorto, pressentindo um perigo real, como as aves
que dizem ser paralisadas pela serpente.
Mas Ema não voltara durante muito tempo. Caires caiu em desgraça, já não
sabia impor-se como mordomo, roubava pouco, esquecia-se de vasculhar os quartos
dos hóspedes, servia o café quase frio. Acusavam-no a Osório e esperavam que ele o
punisse. Mas Osório tinha em mente o conselho da Senhora, que conservava os
criados ladrões, em vez de os substituir por outros que ela teria que engordar. Caires
só sairia do Vesúvio quando tivesse título de proprietário. Até lá continuava a ser alvo
de intrigas e a responder-lhes com o seu refrão: "Quem tem o brasão no umbigo
sempre salva a honra". Mas também era certo que um mal escondido piora sempre.
Ele amava Ema e, com todos os embustes e planos de a perder colocando-a mal aos
olhos de Osório, ele só conseguia agravar o seu próprio desejo.
— Bom, que fazemos? — perguntava ao espelho todas as manhãs, quando
espalhava a espuma na cara para fazer a barba. Estava sempre assombrado com o
próprio sofrimento e não encontrava saída para aquela situação. Até que Ema deixou
de aparecer e ele se entregou a negócios completamente abomináveis. Dizia-se que
vendia crianças a casais estrangeiros, porque aumentou de repente a fortuna; mas
também falsificava os vinhos das cubas, com a cumplicidade dos encarregados dos
armazéns. Criava cães de raça, enormes, de tipo S. Bernardo; e para os manter em
forma tinha um canil climatizado, para que no Verão não sufocassem com o calor.
Eram bichos lentos e amigáveis, de grande preço. O mordomo Caires ouvira dizer a
Ema que, se tivesse um cão, seria como esses; vira-os numa fotografia antiga, com as
crianças e mulheres vestidas de branco, jogadoras de cricket. Isto insubordinara-a
mais para a vida metódica e sem graça de Carlos Paiva, as suas saídas para a
Caverneira ou o hospital, levando o forro descosido do casaco. Agora avaliava os
homens pela maneira como vestiam, os tiques da indumentária, as cores das peúgas.
Um dia em que reparou no chapéu lançado para trás à Gene Kelly num amigo
de Pedro Dossém, esteve apaixonada durante uma semana, a pensar nisso. Achava
que era um sintoma de humor e boémia e que ele era um homem que merecia
atenção.
— Meu Deus — disse —, faz com que ele seja alguém, e que eu o ame.
Chorava por nada, feliz, sentindo as lágrimas correr no rosto que retomava o
esplendor da rosa-chá.

CAPITULO VII
LUISONA E LOLOTA

O insucesso de Ema com os homens (porque se tratava de insucesso,


implicando a calúnia em que a envolviam e que dava um cunho feminino à
maledicência deles) situava-se na sombra de corrupção que ela transportava. Eles
perguntavam-se que espécie de experiências ela tivera, o que punha em causa a
virilidade deles. Os desejos bizarros de comer fora de horas, de beber champanhe
sem que nada o justificasse, de deitar fora roupas e objectos que outra teria
aproveitado, punham Ema no número das mulheres cuja extravagância denuncia uma
passagem dum sexo a outro. Eram vontades de homem e não apetites de grávida o
que ela manifestava. Os cheiros violentos do fumeiro que seca nos caibros das
cozinhas, como era ainda a cozinha dos trabalhadores no Romesal, trazia-lhe uma
memória desnorteada de montarias e caças antiquíssimas; assim como o cheiro do
couro molhado e um afiar de facas na pedra dos amoladores que passavam ainda nas
cangostas do Vale, trazendo um guarda-chuva meio desmanchado como emblema, o
que os fazia anunciadores do Inverno. Ema sentia-se possuída por essas sobras duma
memória que não partilhava como mulher casta e ajustada ao seu meio. Era como se
outro ser a habitasse, um ser sinistro e, no entanto, glorioso, mas que causava medo
aos homens. Fortunato dera-lhe o nome de "Corisco", mas não se atrevia a
pronunciá-lo.
Só quando Ema adormecia, ao lado dele, coberta até ao queixo com o édredon
de penas, velha relíquia da Senhora, é que ele se lembrava do nome. Ema nunca
deixava a sua nudez exposta, não confiava em nada que escapasse ao culto de si
mesma. O ligeiro defeito da perna um pouco mais delgada, que ela disfarçava com
botas altas e com calças, parecia-lhe que se tornava repugnante se ela não pudesse
controlá-lo. Como Mata-Hari, que nunca se abandonava aos amantes com os seios
nus, porque não os achava duma beleza bastante para suportarem o olhar dum
homem saciado, também Ema se cobria, enrolando-se no édredon de flores, como se
hibernasse depois do amor.
Por isso, raramente Ema ia à praia, agora frequentada por uma multidão sem
atractivos e a quem ensinavam a nudez como uma desmitificação da carne. O sexo
era controlado, mais do que se podia supor, por essa liberdade que o infantilizava,
retirando-lhe a perturbação como presa, ou a objectividade do caçador.
Mas ninguém apreciava o estado de sonho que Ema podia desencadear; ou,
pelo menos, ninguém queria admitir as desgraças que, por ela, seriam capazes de
enfrentar. Isso envergonhava os homens, ligados, por compromissos e hábitos de
ganância material. Uma mulher como Ema podia deitar a perder uma reputação e,
mais do que isso, o arranjo das dependências em que os cargos e as profissões se
mantêm, às vezes e exclusivamente obra de mulheres. As exigências sexuais que
Ema sugeria eram poderosas, na medida em que tocavam a irrealidade dos desejos
humanos; as suas tendências de travestimento, as suas maldades turvas em que há a
passividade mais confiante. Assim, Ema não podia jamais ultrapassar um certo
limite, era deixada à porta como um objecto desnecessário, e os homens aceitavam
como um pacto essa situação. Maria Semblano, pela idade e pelo nome que tinha,
punha-a no lugar com o seu:
— Acaba no muro da Estação, se não se acautelar.
— Quem? — alguém perguntava. E ela não respondia.
Por tudo isso, desencadeavam-se as fúrias de Ema que o marido se habituara a
suportar com humor vago, deixando-a à vontade para partir, sabendo que ela não era
uma mulher enérgica, e que estava destinada ao fracasso. Que espécie de fracasso,
ele não queria aprofundar. Talvez se esbarrasse no seu carrinho demasiado veloz e
que ela conduzia perigosamente. Mas Carlos não insistia nesses pensamentos. Amava
Ema ou, então, não gostava de encarar a sua falta porque ignorava a reacção que
teria.
Luisona e Lolota estavam a crescer como couves galegas, no dizer da mãe, que
não se enternecia com a transformação delas. Eram um pouco paradas mas bonitas.
Tinham pretendentes mais velhos, e Ema estranhava a corte desses homens que
podiam ser mais propriamente seus protectores. Eles pareciam ignorá-la para cortejar
as filhas, chegando a falar em casar com elas. Era absurdo, porque Lolota, a mais
velha, tinha só catorze anos e só gostava de ouvir música e de folhear revistas de
casos sociais. Conhecia todas as famílias reinantes da Europa e os casamentos que
faziam. Como o avô do Romesal lhe disse que tinha nas veias sangue de marqueses,
Lolota tornou-se muito snobe e só falava por favor a toda a gente. Luisona não podia
acreditar naquelas maneiras e, com os seus jeans deslavados e brincos dignos duma
Dama de Elche. Ninguém fazia caso dela. Um dia anunciou que estava grávida, e foi
um burburinho que ela apreciou, sentando-se a devorar caramelos. Carlos falou-lhe
com muita delicadeza, quis saber o nome do responsável.
— Não é ninguém. Não posso ter ficado assim no banho?
Ema disse que Lolota era uma comediante e que o melhor era comprar-lhe um
violino. Isso dava-lhe um sentido de excepção e ficava mais sossegada. Disse isto
depois de consultar Pedro Lumiares, que foi de opinião que Lolota sofria de
insuficiência de imagem mental.
— Não é capaz de sonhar com amantes nem com nada. Não tem aqueles
devaneios de raparigas que se sustentam dos ídolos do rock. Tu não eras assim?
— Oh, sim — disse Ema, subitamente transportada à casa do Romesal e aos
seus ritos iniciáticos. — Eu vivia apaixonada como uma toupeira. Uma toupeira cava
galerias desesperadamente quando está apaixonada. Não sabias?
— Não sabia e é indesculpável.
Era desses raros momentos em que a sedução de Ema se recortava como, num
contra-luz, uma figura apagada. O seu lado devorador não era posto em evidência,
por razões obscuras e que precisam da forma teatral para se manifestarem. Ela
actuava como no teatro, tomando os outros como verdadeiros comparsas que ela
quisesse ultrapassar e deixar na sombra. Ria e gesticulava com tal arte e desenfado,
sem ser jamais ridícula ou banal, que Lumiares se apagava para lhe deixar todo o
espaço, consciente de que Ema queria o amor de todos os homens nesse momento e
que, para isso, seria capaz de dar a vida pelos aplausos. Ela realizava-se no espectro
da sua grandeza: era Dido, coroada duma torre de oiro, símbolo da cidade, para se
lançar na pira onde ardiam as suas jóias e a baixela inteira; era Ifigénia, suspirando
pela infância na sombra do pai, deixando-se sacrificar por amor e levando com ela o
frio desejo do incesto. Era a duquesa de Praslin, vingativa e arrastando as saias de
seda castanha nos tapetes do seu boudoir, gritando por um crime porque só o sangue
podia selar o pacto com o ciúme.
— Acho que nunca tive ciúmes de ninguém — disse Ema. Ficou pensativa,
mordendo a unha vermelha. — Inveja, sim, mas ciúmes não. Afinal, não fui feita
para o prazer. Só as mulheres de prazer são ciumentas.
— É pena. Não há nada tão belo como as mulheres que nos convidam ao
prazer. Podem não nos dar nada, mas conseguiram de nós o melhor que é a
descoberta da sede e da fome femininas. Aquilo que nada satisfaz e que produz o
ciúme.
Ema percebia que ele se adiantava por regiões que ela não queria pisar. Tudo
estava à superfície, e o amor e as suas formas mais delirantes, o sadismo da
imaginação que a criança tão bem executa e explora, isso ela evitava.
Ema só queria do homem os favores do poder; não queria ser descoberta como
mulher que era. Ser desconhecida parecia-lhe mais seguro para ela, porque era
convertida em arquétipo; ele, porque não lhe importava senão a presença menor da
mulher e a sua insuficiência bastava-lhe. Lumiares amava em Ema a sua energia para
o fracasso em que ela convertia os encontros mais prometedores. A entrega do corpo
não se daria nunca, porque o que estava em causa era uma subtil provocação entre a
carne submissa e a fútil adulação do poder sexual. Era nisto que estava a sedução de
Ema. Quando ela passava dois dias no Vesúvio, aparentemente para se encontrar com
Fernando Osório, deixava sempre imprecisa a data desse encontro, ou partia antes do
combinado; por um astucioso jogo de horários, sempre confusos e que dependiam do
seu desejo de trair, e nisso punha um empenho que era a chave do romantismo, Ema
conseguia deixar a sua imagem com a sensação de ser sonhada e não disponível
senão através dos abandonos da memória.
Era o mordomo Caires quem mais aproveitava da sua forma visível. Era ele
que, ao inclinar-se sobre o seu ombro, enquanto servia o soufflé de camarão ou
deixava cair um gole de vinho no copo azul, mergulhava na realidade da pele pálida,
no agudo brilho dos olhos pintados, na linha da mão nua que, por não ter anéis,
parecia conter a objectividade da carne disponível. Era o mordomo Caires, cada vez
mais obeso no seu casaco de sarja branca, que tinha acesso ao desejo de Ema, um
desejo torpe e imediato, que dispensava as palavras e era capaz de excessos brutais.
Se ela pudesse parar a memória desse homem, que lhe repugnava, deixava-se possuir
ali, na sala, debaixo do olhar gelado da Senhora que parecia espreitar pela porta
entreaberta. Mas toda a memória é uma prova; toda a reminiscência é um
prolongamento dos factos. Ema não queria que os factos tomassem posse dela, e
deixava-os intactos na imaginação de Caires, que se torcia de desejo na cama, ao lado
da mulher adormecida. Às vezes, ela ouvia-o gemer, porque se masturbava ou porque
tinha sonhos eróticos.
Desprezava-o, com uma boa consciência matriarcal, dando-se ao prazer do
dinheiro com a vaga impressão de enganar o marido com a conta bancária; com o
poder que dela emanava como a transcendência do sexo convertido em agressor
financeiro.
Mas eram cada vez mais raras as idas ao Vesúvio. Caires enriquecia, Ema
tornava-se preguiçosa, lia muito e nunca acabava um livro. Estava bem informada
sobre as novidades políticas e até científicas; começava a ser perita nos jogos da
televisão tidos de interesse público porque ilustravam os espectadores. Carlos
orgulhava-se dela, mas tinha o cuidado de não a elogiar diante de Maria Semblano;
como rainha da Caverneira, ela não admitia preferências. O velho Semblano morreu
duma crise cardíaca, e ela sofreu com a perda desse vassalo mais constante do que se
supunha. Era o homem da sua mocidade, o carrasco da sua alegria; mas Maria
Semblano vivera com ele muito tempo e sabia que lhe dera a consciência dos desejos
que só ele poderia satisfazer.
A prova mais dolorosa de Maria Semblano estava para vir. Faltando o marido,
o filho acentuou o lado estróina que não deixava de agradar a Maria como o reflexo
dum universo feudal muito da sua predilecção. Tinha vocação para protagonista dum
romance de cavalaria, e isso não é, de modo nenhum, sintoma de estar fora de moda.
As mulheres raramente se corrompem ao adoptar atitudes que confinam com a
loucura, como, por exemplo, reinar, nem que seja só ilusoriamente, numa corte igual
em todos os tempos e que parece prometida ao amor senhorial. Mesmo as mais
ínfimas rameiras afectam essa realidade do vassalo imaginário que beija a orla do seu
vestido e nada pede senão um olhar de generosidade eterna. Por isso é que elas
suportam os patrões do sexo que as ameaçam e domam, que as exploram e tratam das
mazelas, das escoriações, das herpes, da descalcificação, dos vírus, da asma nervosa.
Elas sempre guardam a imagem do amante essencial, para quem reservam uma
virgindade fora da profissão devastadora.
A perversão das intenções puras supera as outras perversões, as dos desejos
que querem ser satisfeitos. Essa determinação do desejo, intenso, cru, facinoroso, só
não se confunde com a loucura porque elas têm de parte o amor senhorial e o seu
jogo libertino mas lento como uma partida de xadrez. Maria Semblano era uma
cortesã do amor senhorial. Ele arrastava a gratidão sem causa, a dedicação sem
finalidade, o consentimento sem compromisso. Maria desempenhava o papel de
donante, já fora do contexto do quadro, mas cuja intenção formal não se podia
ignorar; era o donante quem pagava a obra e quem comandava o motivo. A sua corte
da Caverneira, morto o marido, ficou mais solene, mais estável, mais medieval. Ema
era aí uma peça importante. Ela convinha como o contraste da soberania de Maria
Semblano; era benvinda quase, porque se identificava ao génio perturbador que se
tinha que exorcisar. As duas mulheres, sendo antagónicas, eram, de certa maneira,
inseparáveis agora.
Maria Semblano sabia que o filho ia ser alvo dos ataques de Ema e que ela ia
criar com ele o modelo de todas as relações que se estabelecem com as pessoas que
são classificadas como inferiores. Primeiro, relações de sexo, de idade e de fortuna.
Depois, relações mais complexas, de talento, se o houver.
O jovem Semblano teve certos escrúpulos em deixar-se seduzir por Ema, que
tinha mais doze anos do que ele. Mas isso nada significou quando chegou a uma
intimidade como a de Henrique II com Diana de Poitiers. A beleza dela, que
pareceria um desperdício se não fosse admirada, não podia deixar de fazer efeito
carnal. Vencidas as repugnâncias do ideal, tudo se passou conjugalmente. Semblano,
o jovem, submeteu-se. E não há maior submissão do que aquela que resulta dum
abandono dos escrúpulos quanto à idade ou o parentesco de sangue; quanto à fortuna,
igualmente.
Semblano era tão rico que a consciência dos seus desejos sofria da certeza de
que ele e só ele, podia satisfazê-los.
O jovem Semblano era aborrecido das mulheres e nunca entendeu a razão;
nem mesmo se preocupou com isso. Comprava o prazer da vassalidade, mas sem
perceber que ela não passava duma forma de constrangimento.
Não era um acto senhorial a que ele submetia as amantes; era uma liquidação
da imagem dos outros.
Mas Ema, já porque era mais velha e combinava o amor com um outro aspecto
da obediência, tornou-se muito querida para ele. Em Ema desprezava a mãe sem a
destronar. Maria Semblano imaginou os mais absurdos meios para os separar, e a
Caverneira tornou-se num desses antros de intriga que só os autores dramáticos
parecem conceber. Contudo, a paixão é a arte do quotidiano; o que julgamos ser a
economia do coração é a pele da paixão e as suas verrugas.
Maria Semblano, achando que uma mulher que envelhece é pretexto para fácil
desapego, começou por cativar Lolota e fez menção de a querer casar com o filho.
Levava assim até às últimas consequências a sua singular animosidade contra Ema.
Lolota tinha quinze anos e já por duas vezes saíra de casa, uma delas para ir viver
com uma amiga, igualmente imatura e desmiolada. Vestia-se tão mal que era bem
recebida em toda a parte; nas lojas e nas repartições davam-lhe a preferência porque
parecia aliada do espírito rancoroso do pequeno burguês em que enquistara o
proletariado. Havia agora necessidades mais numerosas e que tocavam ao
imaginário; a generosidade era um fingimento para fazer cair Lolota na área dos
fingimentos: fingir a pobreza para libertar os homónimos da inveja.
Lolota não ia interessar-se por um rapaz rico, porque tinha mais prazer na sua
espontaneidade, mesmo falhada, do que na entrada no Paraíso. O Paraíso era a
Caverneira, com os seus lagos e arvoredo oriental; com as grandes carpas de ar
voraz, nadando nas águas escuras. Lolota era linda, um pouco débil mental, o que
reforçava a sua sedução. O jovem Semblano achava-a insípida comparada com Ema
que, de resto, não se mostrava alarmada com qualquer competição. Não se divertia,
nem com os homens nem com nada, e isto tirava-lhe a vontade predadora. Maria
Semblano reconhecia que era muito difícil vencê-la. Mas era de a vencer que se
tratava?
Ambas as mulheres se sustentavam dum pacto entre a mentira em que se
geram as soberbas das afinidades. A alma de cada uma era cativa da outra, e todo um
processo de libertação e de sujeição operava-se até ao desespero, até aos umbrais da
morte. "Morte, onde está o teu poder?" Estava no objecto indiscutível que é a alma
humana e que se debatia debaixo do império doutro ser.
Maria Semblano era quem mais reconhecia as forças que a tinham sujeita.
Enquanto que Ema se espantava de não ter já efeito sobre os outros e não querer
impressioná-los, que é o mesmo que dominá-los; ela sentia a felicidade de servir, e,
para lá da sua repulsa em amar alguém que não podia arrancar da sua soberania, da
sua solidão perfeita, de dia para dia tornava-se uma mulher tímida.
Os amigos uniram-se para impedir aquele processo que negava toda a
desordem. Na desordem, eles podiam obter alguns benefícios. E Pedro Lumiares, que
era o mais afectado, debateu-se ferozmente. Mandou bilhetes a Carlos Paiva
denunciando Ema, ele que era tão cioso dos sentimentos mais fidalgos e que optava
pela filosofia quanto à matemática dos sentidos. De que acusava Ema? Ela estava
mais apagada, parecia resignada a qualquer coisa que intimamente a repartia entre a
alegria e um profundo desgosto. Maria Semblano operava nela uma tão grande
transformação que já não se lembrava de ter sido diferente algum dia. Era assim que
os discípulos seguiam o Cristo, deixando para trás as redes, as mulheres, os barcos
que apodreciam nas margens do Tiberíades. Um vento de paz arrebatava-os; o amor
da vassalidade levava-os pelo mundo, ordenando o amor pelos homens, consequência
do amor pelo mestre.
Mas que tinha nela Maria Semblano para constar como mestra? Era uma rica
senhora de mãos alvas e envelhecidas com rezas e costuras para os pobres. Nos
tempos que corriam, o espírito de missão parecia ridículo, ninguém mais pedia
esmola, e Maria Semblano não tinha já autoridade paroquial. O seu confessor tinha
morrido, o padre que viera substituí-lo tratava-a com ironia. Sentava-se no cadeirão
de veludo e fumava um cigarro que empestava a sala. Parecia ver na dama da Caver-
neira uma inimiga.
— Os tempos mudaram. A senhora foi criada no espírito vitoriano, que era a
humilhação do desejo. Pode perguntar se não há hoje a humilhação da virtude. Talvez
haja. Mas o corpo é uma necessidade, e o sexo é tão natural como ir à retrete.
Maria riu-se, evitando mostrar-se escandalizada. Mas estava receosa de não dar
suficiente importância àquelas palavras. Parecia-lhe vaidade argumentar, assim como
lhe parecia frieza do coração calar-se. Ela disse para si própria que os néscios tinham
adquirido muito poder e que o poder na mente dum tolo começa por banir a lei. "Até
os sacerdotes andam errantes por uma terra que não conhecem." — Não está zangada
comigo? — disse o cura. Tinha uns olhinhos sagazes e cheios de melancolia. O pai
era tamanqueiro e ele tirava dessa genealogia uma deliberação progressista. Sentia-se
bem naquela sala quente, fastidiosa, cheia de livros e loiça da índia. Aquela mulher
alta, duma brancura celular, parecia-lhe própria para ser sacrificada a fio de espada.
Ela acompanhou-o pelo jardim, até ao portão de duas grades onde as crianças
da escola costumavam trepar, visionando os belos cisnes, pretos que havia dantes;
agora só havia carpas enormes, com um deslizar de répteis entre as escuras águas.
"Se ele caísse lá dentro, elas devoravam-no" — pensou Maria, sem deixar de falar na
doçura do tempo.
— "Então haveis de vos envergonhar das árvores que tanto estimáveis e sereis
cheios de confusão diante dos jardins que preferistes" — disse, de repente, o jovem
cura. Não era um ignorante, e Isaías parecia ser-lhe familiar. Também escrevia, livros
para crianças, e servia-se das lembranças da infância, que eram limitadas e cheias de
amargura. Dirigia-se a meninos como ele, que eram aos seis anos alugados para
trabalhar na plantação dos morangais. Isto quebrava neles a fantasia e o pacto com o
destino.
— Havemos de nos ver mais vezes — disse Maria. Do cimo da sua estatura
elevada dominava o pequeno padre de fato secular e que trazia um pull-over
deformado cor de telha.
"Cor de telha", dizia Ema, assombrada com essa recordação que chegava de
muito longe. Não se dizia "brique", ou tijolo, mas "cor de telha". Marina tivera algo
assim, um vestido, uma saia, quando entrou para o serviço do Romesal. Logo que
encarou com Ema decidiu aceitar as condições de Paulino Cardeano, que eram
leoninas. Saídas de quinze em quinze dias, a cozinha dos jornaleiros e dos amos, dar
a lavagem aos porcos, fechar as galinhas, lavar as mantas dos cardenhos, apanhar as
castanhas, os figos para secar, e pendurar as uvas nos pregos da copa. Não havia
pratas; só dois cinzeiros de brecha, uma fruteira de estanho em que se embutiam
pratos de porcelana. O maior do luxo consistia no recheio do oratório, com os seus
castiçais, lamparinas, santos, pagelas com iluminuras, palmitos, alguma haste de
oliveira benzida no Domingo de Ramos, e o Menino Jesus duma beleza flamenga, na
mangedoura forrada de palhas. Marina disse:
— Limpo o que estiver em casa. O que vier depois de mim, quem quiser que
limpe.
Ficou nisto. Em vão Paulino Cardeano a queria obrigar a polir duas salvas que
herdara duma tia de Medrões. Marina recusava--se, toda esperta, lavantando a arca
do peito. Os seios dela eram tão altos que pareciam crescer-lhe desde os ombros.
— Não limpo isso, já disse. Que carago!
Ema, que tinha catorze anos, admirava aquela soberba e fé nos contratos. A
pequena Marina, com a saia cor de telha, não evitou ser seduzida pelo noivo, que era
um cabo da milícia, com autoridade para prender os caçadores furtivos e os ladrões
de lenha. Ele deixou-a, porque o orgulho dela lhe pareceu mau presságio. Marina,
bonita como um sol e olhos verdes, ficou solteira até tarde. Casou na entrada da
velhice, quando o amor generoso sucedeu ao amor heróico. Mas tudo isso o Romesal
tinha devorado e reduzido a detritos na recordação.
Depois de despedir o novo cura, Maria Semblano fez o caminho de volta para
casa com passo primeiro vagaroso e depois mais ligeiro, quase a correr. Percebia o
ruído das tílias sobre a sua cabeça, e as folhas caíam, douradas e cinzentas, batendo-
lhe no rosto. Acumulavam-se e o vento voltava a espalhá-las. Nada tão bonito com
um parque ao começar o Inverno. As gotas de chuva voavam como pirilampos e
tremiam nos fios eléctricos, onde as aves pequenas pousavam para se orientar. Mas
nessa tarde Maria não estava de humor poético. Ao entrar no seu salãozinho azul,
com livros por todo o lado e um tinteiro de prata em frente da sua pasta de escritório,
o telefone estava a chamar. Sem dar mostras de nenhuma exaltação, foi atirá-lo ao
chão com uma força que nela era incompatível com os seus sofrimentos. Era muito
raro zangar-se e entregar-se a excessos desses. Voltou a pôr o telefone no lugar e
tomou precauções para que se não notasse qualquer desordem.
Pensava que não fora a indecorosa frase do cura o que a indignara, mas porque
ela a convidara à hilaridade. Ela preferia os sádicos à vulgaridade da pseudo-
informação. Maria Semblano nunca se atrevera a fazer afirmações sobre o sexo,
ainda que se aventurasse a pensar sobre o assunto. Percebia que não se tratava de
algo supérfluo que o velho Semblano gastava com as suas cigarrilhas, e o novo
Semblano usava com uma brutalidade que escondia a timidez e a decepção. Era o
único ponto de contacto com a realidade das coisas. Era o único ponto de acesso à
realidade do mundo; tudo o mais eram locais de vigilância e de fracasso. Ela esteve
algum tempo sentada na cadeira baixa cujo veludo rapado lhe dava uma sensação de
companhia. "Esta encalveceu a aturar-me", pensou, já mais calma. Às vezes achava
que os móveis e os objectos a podiam ouvir. A tendência da matéria era a de
conservar a sua certeza objectiva face à vitalidade que lhe era confiada.
— A esmola é para mim o que é para Ema a dissipação: maneiras de nos
amarmos, de ter respeito por nós. Não sei que fazer. Tudo é uma comédia sem
nenhum valor — disse. O telefone voltou a tocar. Era Carlos Paiva, que se
desculpava por não lhe ter mandado as provas corrigidas dos Contos da Caverneira.
— São admiráveis — disse ele, com calor. Era uma escusa, não os tinha lido
ainda. Maria teve a ideia de que ele não estava virado para lhe reconhecer um valor
sério e indiscutível.
— Volte a trazer-mos, por favor.
— Faltam-me algumas páginas, depois levo-os. — A voz dele era assustada;
estava prestes a contar-lhe os seus tristes casos de família, Lolota que tinha febre e
estava de cama; Ema, sobretudo Ema, pedra de escândalo que ele gostava de
empregar com uma baixeza verdadeiramente subtil. Mas Maria Semblano não lhe
deu tempo dessa vez.
— Traga-me tudo, não vou publicar.
— Porquê? Desculpe, mas tenho que saber porquê.
— Não sei. Vou deixar de fazer muitas coisas. Estou cansada de fingimento.
Mas agora não lhe digo mais nada.
Pousou o auscultador tão devagar que isso diminuiu a sua culpa. Estimava
Carlos mas não lhe dava um lugar muito próximo, ele não servia senão para adoçar a
mediocridade de que Maria se sentia invadida. Mas valorizar-se a partir de pessoa tão
vulgar não lhe parecia uma consolação. "Que devo fazer?" — repetiu. "Se eu fosse
pobre, tudo partia desse mérito fácil, os aplausos não se faziam rogar. Assim, esbarro,
com aquilo da "velha senhora rica", a não ser que saiba rodear os sentimentos
ignóbeis e ser gentil com o que pouco me importa." Percebeu, por um acesso de
lucidez semelhante a um acesso de loucura, que o que procurava era a mediação com
alguma coisa desesperadamente justa. Ela estava não só descontente do mal que
recusava, como descontente do bem que se propunha. Porque amar o marido fora um
esforço demasiado, uma táctica para obter palmas, como se pisasse um palco. Onde
fora buscar a ideia de que ele não merecia a sua inocência, a sua fidelidade que era
quase um defeito de nascença, como a perna manca de Ema? Ema surgiu como um
suporte para o mutismo angélico em que vivia. Gostava dela, amava-a porque fora
tão espontaneamente construída; tudo nela era o contrário do dever, o contrário dum
mecanismo culto e sublime.
Ema era inteligente, mas não se curvava aos pensamentos; tendia para o
fracasso como um fio de água para o oceano. Amava-a porque era vadia sem
despudor; mentirosa sem escrúpulo; indigna sem preâmbulo; fútil sem vaidade;
centro vivo duma história, mas não heroína dela. Era a face esquerda que aceita as
censuras e as bofetadas sem disfarce e que é o epílogo de todas as fachadas e de
todas dissimulações humanas, simplesmente uma garantia da sobrevivência e mais
nada. Era o lado proibido da sociedade, o seu veneno em que a delinquência se
mistura a essa cobardia que é, ao mesmo tempo, ruína e fantoche da liberdade, mas
que está muito próxima, como um bastardo está do sangue legítimo. Ema fascinava-
a, mas mantinha-a longe porque o que nos fascina corrompe, e o que se ama, no
fundo da nossa natureza fracturada pelo livre arbítrio, pode destruir-nos. Não era
possível nenhuma negligência neste sentido. Todos os grandes corações são
propensos a uma irrealidade que, como a cólera, se abate sobre o mundo e pode
causar-lhe danos imensos. Maria Semblano tinha que manter a conversação erudita
com pessoas sérias e não descer aos infernos com Ema, ou como ela, encorajada pela
sua constituição em que a alma não se manifestava nem se tinha por nada de urgente.
Ema era para as filhas um osso muito duro. Continuamente enervadas,
descontentes, na penumbra em que ela as deixava com a beleza de que nunca
afrouxava a corrida e o estandarte, tanto Luisona como Lolota estavam sempre em
risco de depressões graves. Valiam-lhe as tias, as irmãs de Carlos, chamadas as
Paivoas, porque presumiam de aristocratas, e eram grandes e vistosas. Cedo
divorciadas, abastadas, com vários filhos, pequenos e crescidos, elas levavam as
sobrinhas e crivavam-nas de perguntas. Não eram as perguntas indiscretas das
vizinhas do Romesal, a que se misturava uma combinação de astúcia e de
afectividade.
As Paivoas gostavam de saber para armadilhar o caminho maternal de Ema,
que detestavam, como a primeira mulher de Carlos a detestara, sem a ter conhecido.
Odiavam a sua imprudência, os seus contactos, os hábitos ruinosos e o toque de
cultura entre Madame Figaro e as reportagens mundanas. Tinham olhos grandes,
soberbos, velados sempre por uma ira irónica; Ema, com a sua desastrada nota de má
actriz, nunca poderia ser uma pedante. E uma pedante era o que as Paivoas mais
admiravam. Admiravam tudo o que mexe e tem cauda, a verve comandada dos
locutores, os vestidos das primeiras damas, as declarações dos ministros, entre a
ênfase e a censura negligente. As Paivoas, lisboetas de segunda geração, que casaram
com beirões chegados aos ministérios, criadas por madrinhas ricas, cuja vulgaridade
burguesa era uma recomendação de prestígio, as Paivoas não eram únicas, mas
tinham-se como tal. Faltava-lhes escrever um livro para se julgarem cúmplices da sua
época, contaminadas pelo "never more"que embalava a razão do passado. Ema
admirava-se das suas injúrias afáveis e mandava-as à merda.
— São minhas irmãs — dizia Carlos, com a preocupação ligeira que nunca se
emprega com uma afirmação directa.
— É bom saber isso, mas não mudo a palavra.
Ema tinha enveredado para grandes caçadas, outra vez guiada por Pedro
Dossém, que tinha castelos em Espanha franqueados para ele. A sua natureza servil e
confidencial alegrava-se nesses meios que lhe permitiam ir ao extremo da sua
tentativa de procurar um suserano. Pequena natureza e coração delicado, Pedro
Dossém sentia-se bem no grupo dos homens do poder, que o tratavam com uma
simpatia que excluía a deferência. Ele era o eterno rapaz, o trovador desajeitado que
transmite ao lacaio a ordem do senhor e, ao mesmo tempo, trava com ele uma
conversa entre pública e privada que impede que seque de todo o espírito da
hierarquia e ela seja um tolo cerimonial. Pedro Dossém, acompanhado por Ema,
levava ao espectáculo já montado daqueles divertimentos, que eram também uma
missão, o toque do acaso que permitia a improvisação da pessoa.
As cabeçadas de Ema introduziam no carnaval das caçadas um pouco de
poesia e de tentação. Ela recebia, com Pedro Dossém, convites consecutivos para a
iniciação verdadeira no mundo; esse mundo que faz parte do sonho da vida, que é ao
mesmo tempo sério e vulgar, e que ela deixava escapar das mãos porque temia a
obrigação do prazer. A cabeça louca de Ema proibia-lhe o vício interessado em que o
desagrado não tem lugar. Ora, ela gostava de desagradar, de puxar a cortina quando
os personagens não estavam ainda nos lugares e o ponto não se encontrava na sua
caixa. Percebendo essa queda para o mau efeito, para a gaffe, para a réplica a roçar
pelo escandaloso, estabelecia-se um acordo: mandavam-na sair, reservando-se a
garantia de a ter como aliada numa ocasião a aprofundar. Ema sabia que, não sendo
paga, se arruinava. Qualquer peça de vestuário importava num preço exorbitante; era
roupa de teatro, destinada a condizer com a fábula, e não adequada à realidade. Devia
já muito dinheiro nas lojas mais caras, e Pedro Dossém recomendava-lhe o
vestidinho preto, à Edith Piaf, que assegurava o efeito e a economia.
— Não fui feita para me vestir de preto. Não sou o género. Tenho uma cor
péssima para isso. O preto é vulgar à força de ser recomendável.
— Pinta-te, de rosa, por exemplo. Ou de verde.
— Não dá… não dá. — Ema estendeu-se pelo sofá, e a perna defeituosa ficou
em evidência. Pedro Dossém desviou os olhos, como se surpreendesse uma nudez.
Depois do parto, Ema não recuperara. Tinha um feixe de cabelos brancos que ela
punha em destaque. Estava a empobrecer, a sua imaginação já não era o que tinha
sido. O prazer já não lhe parecia indicado para ela, uma vez que admitia que o pior é
sempre mais seguro: envelhecer e contrair uma doença que fosse a sua companhia, a
sua margem de liberdade permitida. Nunca se elevara até às esferas mais altas da
sociedade; faltara-lhe qualquer coisa, talvez jogar a raiva até à última instância, ser
avara e estúpida como as mulheres que acabavam bem, com uma situação de prima-
donas ou de espias reformadas.
Ela não deixava de admirar as velhas sultanas do vício, que sabiam proteger-se
com um ou dois amigos bem situados à escala do Governo ou da finança e que eram
até à morte os seus oráculos nos negócios, deixando que elas tivessem voz e voto na
sua circularidade familiar. Elas sabiam tudo sobre as hemorragias, os distúrbios
nervosos, os cabeleireiros, as viagens das esposas; o curso dos rapazes e os eventuais
casamentos das filhas. Aconselhavam com uma autoridade que pressupunha a
vontade sagrada de enriquecer a sociedade com o êxito e a eficácia que a experiência
maneja. Mas Ema achava-as estúpidas, a essas megeras sentimentais, concubinas
para quem o amor já não significava senão o sentimento do vivido e que nunca se
rebaixavam a pedir o favor do prazer aos velhos amantes. Tinham para isso moços e
moças que as satisfaziam na contingência do tédio e do medo, e que elas
recompensavam mal, avaras como eram e como Ema sabia que eram; porque as
conhecia, porque a solicitavam, trémulas e receosas, na última fronteira do desejo
que é o querer ser amado pela beleza, dando-se ao luxo da vertigem que ela ensina
mesmo aos corpos mais decaídos, mesmo ao coração mais seco.
Mas Ema achava-as estúpidas, com os seus cabelos pintados, os olhos
alargados como se um golpe de cinzel os abrisse; com as suas roupas estritamente
elegantes, sem nada de provocante, até um pouco clássicas demais, denunciando-se
apenas por um pormenor, um lenço no bolso do peito, um lenço caro, de chiffon ou
de seda; um lenço que era uma bandeira e em que o leito estava amarrado e a alcova
estava invisível no perfume, na morbidez, no cálculo.
— São incapazes dum pressentimento, excepto sobre a desvalorização das
acções bancárias — disse Ema. — São incapazes de adivinhar que o amante está com
outra e que as coisas se vão precipitar, que a morte vai cortar o nó do destino…
Ela roía uma unha, séria, inimitável na sua ferocidade romanesca. Lumiares
achava-a soberba.
Estava convencido de que Ema um dia desapareceria de vez; a sua intuição do
irreversível avisava-o. Havia dois tempos que a projectavam: um na sua verdade
normativa de burguesa pronta à repetição de todos os actos, inclusive o da
maternidade; outro que se exprimia por sinais como que desesperados e casuais,
como a noite em que voltou sozinha de Carlão e achou um cão à espera dela no
caminho onde não tinha maneira de se orientar. Sendo a salvação, era também o
presságio da sua perda, porque o Vesúvio, onde o rio tinha uma profundidade
tumular, era o seu destino. Lumiares pensava que, um dia, Ema seria chamada a
precipitar-se na cratera da água amansada pelas barragens, mas não por isso menos
sinistra e provocadora. O Vesúvio atraía-a, como atraíra a Senhora e lhe propusera a
morte, voltando o barco e deixando-a debater-se com o seu frio ânimo de negociante
que com tudo faz um pacto e com tudo assinala uma demarcação, adiando assim a
fatalidade, criando limites ao costume e ao azar. A Senhora sobrevivera. Via-se, nos
seus olhos (em que se combinavam a duração vegetativa e a instância da profecia que
a conduzia mais longe, com as suas libras, os vinhedos de folha roxa, as casas com
gravuras inglesas e bules de chá pançudos, dum búdico e amistoso calor de deus
caseiro, como os Lares no altar da entrada; sendo o bule cúmplice mais do que
soberano, pousado na pequena salva que era sua interlocutora banhando-o no reflexo
da prata escurecida e amolgada por cinco gerações de limpadores de pratas), via-se
que ela sobrevivera.
— Não voltes ao Vesúvio — disse Pedro Lumiares. — Vénus não ama as
mulheres como tu, que não conheces o ofício da ilusão. Não se nasce mulher ou
homem: aprende-se. Tu e eu somos uma negação para isso. Eu sei porque te chamam
a Bovarinha. Ela também não aprendeu o ofício.
— Faz sentido o que dizes, e isso explica muitas coisas. Mas não vou maçar-
me a pensar nisso. O que se aprende não é com o que se pensa, mas com os mal-
entendidos. Nunca percebi porque me chamam a Bovarinha, e já li o livro duas
vezes.
— É um mal-entendido, com certeza. O que aprendeste com isso?
— Que não devemos ter amigos em parte nenhuma. São eles que criam os mal-
entendidos. Quando ela foi pedir dinheiro ao antigo amante, caiu em cima dum tipo
que tinha aprendido o ofício de homem. Sabes o que ele fez? Disse-lhe que não o
tinha; disse, com a calma perfeita com que se cobrem as cóleras resignadas.
— Bem dito e bem feito. Os homens são avarentos consumados; é o único
papel que não representam, que vivem em cheio. O meu pai, quando lhe pediam
dinheiro, nem que fosse para fósforos de cozinha, parecia um muro, polido, sem
fendas, um muro que não era possível escalar. Eu roubei-o muitas vezes. Rodeava
assim a insondável estupidez da avareza.
— Não me digas. De ti, é de esperar. Não distingues muito bem o real do
imaginário. A comédia leva a melhor sobre a vida, a tua vida. Um desempenho teatral
reduz a culpa a uma estratégia. Não é devastadora nem tem efeito sobre a realidade.
— Dá gosto ouvir-te falar — disse Ema. — Mas será verdade?
— Não sei. Há um espaço vazio no nosso pensamento que nunca será
preenchido. É isso que nos permite uma linguagem, um exercício de cálculo que
produz as relações das pessoas. Nós dizemos: "a terra é redonda" ou "a mulher é o
útero", não tem sentido se pretendemos com isso ser exactos. Tudo o que te lança na
desordem é o adiamento do acto de julgar. Tu dizes: "Amanhã chego a um lugar onde
tudo fica claro". Mas queres a vida presente como ponto de apoio e não só como
expressão de ti própria. Fornicar não é só ausência de dúvida, um acto simples e
comunicativo; é também algo que te desagrada ou que conduzes até ao desagrado.
Isso é a menira de sentir a importância de qualquer coisa.
— Queres dizer que não serei feliz no amor?
— Quem é feliz no amor é um imbecil.
Agora Pedro Lumiares visionava para Ema um destino trágico. Ela ia
aumentando cada vez mais a pressão da sua vida usando os meios ao seu alcance,
como contrair dívidas e provocar o maior escândalo possível. Ela estava prestes a
atingir um objectivo através dum sofrimento ilusório.
Há felicidades ilusórias e sofrimentos que o são também; a mente humana tem
praticado nesse sentido, e inúmeras causas de dor foram detectadas sem que possam
ser classificadas como dor real. As reacções emocionais produzem-se na mesma
proporção duma operação matemática, mas há sempre alguma coisa que sempre
soubemos e que não vamos dizer. Não porque não queremos. Mais do que isso:
porque simultaneamente pertence ao poder do silêncio e à desconfiança da palavra.
Mas, o quê? Como a cripta mortuária dos faraós, o caminho está vedado até lá. Pedro
Lumiares sabia que não ia fazer nada por Ema. Era mais conforme o seu desejo
profundo contribuir para uma perda, do que para uma salvação; esse é o elo mais
significativo que nos liga à natureza, e ele sobrevive até à mais ínfima das nossas
opções. O que repugnava em Ema era o facto de ela não agir de acordo com nada já
sujeito a conselhos; não se conduzia como alguém que aprendeu, mas alguém que
está posto num deserto de significados. Quando era criança e perguntava o nome
duma flor, diziam-lhe "rosa", ou "malmequer"; ela punha em dúvida essa resposta.
— Porquê rosa?
— Porque é assim que se chama. Que disparate! — Tia Augusta impacientava-
se como se tivesse de provar a existência de Deus. Ela percebia que a existência de
Deus estava implícita, e alheava-se daquele diálogo. Rosa, como Ema soube mais
tarde, significava, de origem sânscrita, balançante ou a que baloiça. Tão breve
imagem duma flor na sua haste, tocada pelo vento e prestes a deixar cair as suas
pétalas, dera ocasião a um sem número de ideias, sentimentos, símbolos e
expressões. Profundo foi o movimento que se apoderou do espírito que o notou. Rosa
não responderia nunca à pergunta: "Porquê rosa?" Mas a resposta respeitava o
princípio universal nela reconhecido, o princípio que harmoniza duas coisas, o vento
e a flor que, ao contacto, deixa de ser. No balouçar é; e deixa de ser.
Continua apenas noutras pretensiosas demonstrações de uso, como nome
próprio, cor, formato, objecto, estado de alma; mas partiu dum princípio
surpreendido na sua origem pelo olhar humano — o acto de baloiçar, e nisso negar-se
imediatamente.
Ema era rosa; nela se comprometia o movimento e a liquidação do mesmo. Se
a mãe tivesse vivido com ela mais dez anos, transmitia-lhe o significado de mulher, a
que é construída para parir filhos, o que não constituiria surpresa. Mas seria esse
critério apropriado ao objecto? Havia muitas categorias de objecções em causa, assim
como para "o homem é um macho". Nenhuma linguagem é definitiva. Ema procedia
dentro dessa noção; e causava repugnância por isso. Os homens não tinham por ela o
desejo que seria para esperar. Surpreendiam-se com a sua beleza e quase se
interrogavam entre eles quando Ema aparecia. "Será que algum de nós vai dar o
exemplo de corresponder à nossa categoria de homem? Será que algum a vai seguir e
consumar o coito com ela?" Um acordo mútuo era reconhecido ali, mas não
alteravam muito as suas intenções. Afastavam-se dela. Para tal, tinham às vezes que
exibir-se com conversações excitadas, nomeavam o sexo de maneira clara ou velada,
mostravam-se conforme a tradição mandava; e isto era mais prova de recuo do que
de propósito. Só Maria Semblano percebia que Ema estava fora de qualquer
trivialidade crítica. Reagira amando-a, mas isto não era uma verdade; era o
fingimento duma verdade.
Como Maria Semblano não podia logicamente mostrar-se inimiga de Ema (os
costumes não lhe permitiam mais julgar comparativamente a virtude face ao pecado,
e toda a intenção pedagógica fora posta em causa), mas não podia ignorá-la. Não a
ignorando, era, potencialmente, sua inimiga; restava-lhe produzir um motivo
contemporâneo para se mostrar como tal. A suspeita de bruxaria estava reprovada; a
de herege também. Situá-la numa área de esquerda, perdia significado e perdia a
poderosa energia da oposição. Como Ema convivia com homossexuais, restavam
ainda as alusões a um mundo aberrante. Mas a crise de autoridade tornava difícil
aplicar um julgamento.
Ema não era judia, não entrava no jogo racial que corresponde a um sistema de
propostas que se apoiam mutuamente. Maria Semblano não sabia como tratá-la e,
sobretudo, como reduzi-la a uma forma de vida que decorre dum fenómeno
experimentado. Evidentemente que, se Maria Semblano dissesse e acreditasse que
Ema era uma extraterrestre, as coisas não se modificavam. Ela não podia deixar de
acreditar, porque o espírito humano está aberto à persuasão e prefere-a a tudo no
mundo. Só que Ema era uma persuasão tardia; antes dela, Maria Semblano tinha
recebido muitas outras que não podia ignorar e que colidiam com a imagem de Ema.
Nesse momento era que a malícia se manifestava. O mal era portanto um recurso
contra qualquer coisa que decorre duma relatividade de meios impossíveis de
humanizar.
Uma vez o mal desencadeado, era impossível fazê-lo parar; o seu objectivo
tinha que ser atingido, para a primeira proposição ficar de pé. A primeira proposição
de Maria Semblano era a sua heróica vida matrimonial; ao morrer o velho Semblano,
com a peliça de castor e o cravo branco ao peito, ela não se libertara duma fidelidade
que tirava a sua certeza da prova seguinte: ela estava de acordo com os factos. O
velho Semblano, noivo muito amado e encantador, enganava-a de maneira impudica,
e fazia o seu prestígio de homem desse impudor. Podia ela impedir que essa honra
viril se desarticulasse, ficando Maria a braços com o empobrecimento erótico do
marido, com a sua chantagem sexual, com a obrigação de o satisfazer, o que era
impensável e até um risco pessoal? Ficava completamente submetida a situações
sobre as quais não poderia mais fazer julgamentos; como ser um objecto de prazer, o
que de certeza diminuía a sua autoridade e, por isso, a matéria das coisas era afectada
de maneira fundamental. O seu cão Doberman podia rir-se da sua cara, por exemplo;
porque ela perdera o poder de concluir e julgar.
O que tinha a fazer era afastar Ema definitivamente, perdê-la, causar-lhe um
dano irreparável.
Só assim a sua persuasão era estancada e Maria Semblano retomava os seus
contos morais que todos esperavam dela tendo-os como guia espiritual. Lembrou-se
de atacar pelo lado de Lolota, que era uma menina um pouco deficiente,
extremamente crédula e simples. Sem que parecesse capaz de fomentar uma intriga
amorosa, deixou ao seu advogado de confiança a oportunidade de ver Lolota
frequentemente e de a violar. Conhecia os homens; eles não resistem a merecer o
nome de sedutores nas circunstâncias menos próprias. Reivindicam com obstinação o
que seria fácil de ignorar. Lolota fugiu com o amante, que era pessoa avelhada e de
feia catadura. Ema, em vez de se afligir, disse que a filha estava entregue e que não
seria indicado entrar em conflito. Todo o conflito esconde uma concorrência, e era
isso o que não lhe interessava.
Acharam Ema desnaturada, mas Lumiares concordou em que Ema não
pertencia a nenhum tipo social e que não dispunha duma história própria que desse às
emoções uma cor aprovada pelas instituições. As paixões esbarravam na sua cultura
indecifrável e, em vez de se estancarem, propagavam-se de forma desordenada. Foi o
que aconteceu com Lolota, que, no intuito de se fazer centro de gravidade dos
acontecimentos e de que a mãe participasse, se encontrou numa situação absurda. O
advogado batia-lhe, uma vez enfrentado com uma experiência a que faltava o
conceito. Ema não achava moral nem imoral o caso de Lolota, e ria-se até dos seus
esforços para a arrastar no escândalo.
— Nada do que se faz hoje tem sentido. Não há paixões, há só estados de
nervos — disse Pedro Lumiares. Deixou a caneta, que fechou cuidadosamente, e
ofereceu a Ema uma xícara de chá. Raramente oferecia qualquer coisa a alguém; a
casa dele era duma penúria elegante, e até as formigas desertavam pela miséria de
migalhas. Ema entornou a maior parte com os seus gestos sacudidos, e Lumiares
repreendeu-a: — Não te importas com o que seguras nas mãos, como vais importar-
te com o que não podes segurar?
— São todos uns doentes, todos querem governar o impossível; e o impossível
chega a ter dimensões ridículas, a dimensão das pessoas comuns. Quem quer
ultrapassar uma anomalia, e isto de Lolota é uma anomalia, encontra sentimentos que
não espera. Eu fico onde estou e não me mexo. Não condeno nem aprovo. Há muita
gente para o fazer.
— Não pensas que estás assim a cortar todo o acesso à liberdade da tua filha.
Se não a reprimes, não lhe deixas ocasião para a conivência e a hostilidade. Fica
condenada ao mais vil esquecimento. É injusto que os jovens tenham de ser
esquecidos em nome da tolerância.
— Injusto ou não, não estou para cenas. Detesto cenas.
— Aquilo a que chamas cenas é a paixão para ultrapassar um obstáculo. Tens
medo de te despentear, de arregaçar as mangas, de bater com os pés no chão. Nunca
fizeste cenas quando eras pequena e não te davam o que querias?
— Não. Minha mãe morreu novíssima. Ela podia ter sido a minha inimiga para
as ocasiões. Morreu e fiquei com tia Augusta, que era uma imbecil carinhosa e mal
compreendia que me pudessem contrariar. Uma órfã parecia-lhe o cúmulo da
indigência, e passou o tempo a dar-me esmolas de felicidade. Não tive
ressentimentos, nem fúria verdadeira. Tudo isso me parece tolice.
— Não amas porque nunca odiaste — disse Lumiares. — Percebo porque és
tão perdulária. Dá-me essa xícara, que ainda a partes.
— É uma xícara velha e já rachada.
— Ela significa um prazer partilhado, acredites ou não. Como o amor deve ser.
Acho que Lolota espera de ti que te zangues e a vás buscar.
— Não me ouvia. Além disso, que vinha fazer para casa? Não há uma segunda
vez para quem aprendeu a sofrer.
— Mas ficava convencida de que era livre para decidir. Como podes ser tão
cruel que lhe recuses a imagem tradicional da mãe infeliz com a loucura cometida
pela filha?
— Não é meu jeito.
— Quando se destrói a possibilidade do prazer comum ou do desprazer
comum, a existência não vale nada. Acabas mal, Ema; acabas mal.
— Talvez eu tivesse começado mal — disse ela. Levantou-se e arrebatou o
casaco vermelho, levou-o de rastos até à porta do jardim.
— Espera aí. Há uma coisa que me escapa. — O quê?
— És pior do que Sade e Casanova juntos. Eles nunca falavam do prazer; a dor
que causavam era mais importante. Tens a mesma maneira de viver.
— Carlos diz que tenho sempre umas contas a ajustar com alguém. Isto não é
ser depravado, que eu saiba. Nada do que me possa acontecer me modifica, porque
eu já esperava.
— Então a glória e o prestígio que tanto queres?
— Não é nada que eu não dispense.
— O que te fica então?
— A vingança, essa fica sempre.
Ela saiu desastradamente e, como um pano de casaco ficasse preso na porta,
arrancou-o, o que fez com que Pedro Lumiares se indignasse e lhe chamasse
estouvada. Se havia coisa que ele não suportava era essa delinquência fictícia que as
mulheres usam como uni derivativo dos seus impulsos profundos. Quais eram eles,
no caso de Ema? Talvez não existissem e ela receasse sair dos seus limites.
Encarregava os homens de a demover de qualquer coisa com que parecia ameaçar
alguém, e não lhes perdoava se eles não se sentiam muito interessados. Carlos
amava-a, mas ela achava insuficiente essa vida acanhada, o amor "à papá", a
estabilidade sem brilho e sem surpresas. Além de que a mediocridade dele a irritava
como uma ofensa, e tomava a admiração agressiva que a Semblano lhe manifestava
como outro logro. Achava que Maria queria atingi-la, e, para isso, distinguia Carlos
com tantos favores.
Ultimamente até chegara ao ponto de querer casar Lolota com o seu advogado,
quando Ema sabia que se passava algo de tenebroso no espírito da dama da
Caverneira. Efabulava cada vez mais e estava no limiar duma depressão nervosa. Em
tudo via maquinações, e ela, Ema, era o alvo das mais sórdidas suspeitas. Estava
doente, o seu feitio fantástico acentuava-se cada vez mais; e nesse lado enfermo e
alucinado residia a sua força, se não fascinadora, pelo menos atractiva. Pedro
Dossém era-lhe tão dedicado como um fiel é a uma estigmatizada. Se Ema tivesse
um espírito com fulgores místicos, podia talvez gozar de aparições. Havia momentos
em que a sua palidez lhe dava um aspecto deslumbrante. Pedro Dossém sentia que
podia ajoelhar-se diante dela sem perigo de ridículo. Tudo o que vinha de Ema era
pernicioso, incendiário, capaz de mover a alma da monotonia e o que a sustenta.
— Não sou uma pessoa saudável, mas se não fosse isso era muito
insignificante — reconhecia Ema. — Ser insignificante faz nascer em nós paixões
que nem se imaginam. Mas, em geral, nada acontece, e a insignificância serve-nos de
desculpa.
Ela dizia isto com uma lucidez surpreendente, o que punha os homens de
sobreaviso. As mulheres sedutoras, que são mulheres sujeitas a pressões interiores e
que duvidam das possibilidades da lenda que pretendem afirmar, não costumam ser
inteligentes ou, para dizer melhor, raciocinadoras. Mas Ema era. O que fazia o
insucesso de Ema com os homens era que o seu poder ilusório ficava comprometido
pelo seu apego à realidade. Isto não era feminino, era um mal-entendido com o
feminino tal como os homens o supõem.
A mulher aprende o seu ofício, como se fosse telegrafista; aprende a mexer em
todos os botões que a tornam necessária — os que a mostram como um proveito da
sociedade, seja ela criatura de risco ou de boa reputação, que é um risco às vezes
maior. Ema não aprendera nada, desperdiçara as ocasiões de ser respeitável; e até a
vocação de comediante que há em todos nós ela desrespeitara. Era incorrigível, eis
tudo.
Carlos sabia isto e procurava tirar efeitos dessa desvalorização secreta que a
sociedade impunha a Ema. Muitos diziam "coitado", com uma discrição, uma polida
crispação, como se a caricatura de Carlos lhes desagradasse sinceramente. O garante
da paz em que se vive é que a notoriedade nos faz rir.
Carlos era notável como o médico de cabeceira da mulher mais rica da
província, e isto era um cumprimento que lhe faziam a toda a hora. Mas por detrás
estava Ema, que o enganava e que se opunha a todo o ressentimento que a
celebridade de Carlos podia acarretar. Falando de celebridade, não era aquela que
Ema podia reverenciar; mas uma pequena impostura que se baseava na protecção
duma mulher admirável e votada às alegrias do orgulho.
De qualquer modo, uma mulher nunca é capaz de admirar, a não ser que isso a
persuada de ter parte no talento dos outros. É um sentimento meio servil, a que não
falta o desejo oculto de ver as coisas falharem. A mulher ama ver falhar, é essa a sua
volúpia favorita. Por isso se apaixona por homens tristes e mal encarados, com a
propensão para serem atropelados. É muito estranho, mas pessoas como Pedro
Dossém, que era uma negação para a arte, o desporto e o amor, encontravam junto de
Ema uma simpatia que não era vã e que pode muito bem significar o fundamento de
qualquer coisa de bom. Pedro Dossém, era uma espécie de Petrónio envergonhado e
que só tinha um aspecto encantador: a sua rendição a Ema. Não a desejava, ele
cumpria conjugalmente com a mulher dele, que era figura marcante nos open de
golfe, e não pensava deitar-se com Ema. De resto, essa história de que os homens são
machões endiabrados falta muito à verdade. Eles não vivem obcecados pela cama e o
sofá, e os mais sexy actores do filme horizontal são dobrados pelos seus duplos. Em
geral; o que deixa infinitas probabilidades à imaginação.
A beleza de Ema, que teve uma época emblemática (ela parecia moldada na
forma dos manequins que infestam as lojas e galerias da Europa dos Dez ou dos
Doze), não parecia o bastante para arrebatar os homens. "Ó amor, onde está o teu
agulhão?" — podia-se dizer.
Eles ficavam fartos só de ter que sustentar as suas desencorajantes manias. O
seu estado nervoso agravava-se de dia para dia, e Carlos era o bastante perspicaz
(perspicácia conjugal, que se atreve com todos os enigmas do comportamento) para
compreender que a cura de Ema resultaria no seu abatimento. A personalidade, não
só dupla mas constelada de caprichos e ousadias absolutamente destemperadas, havia
de estilhaçar-se por efeito duma consciência dos acontecimentos; sobretudo os
acontecimentos que a tinham golpeado bem fundo no coração da infância. Ema
tornava-se então numa pessoa tristonha e sem alma, entregue às ocupações
domésticas com uma monotonia arrepiante. Carlos não desejava isso; preferia a
mulher imprevisível e o escândalo dentro das portas. Ema era uma doente, mas tentar
dar-lhe remédio era prostrá-la na maior escuridão dos sentidos. Havia uma certa
heroicidade nesse homem obscuro, que amava a imagem duma Ema prisioneira das
finas redes da loucura. Ele aceitava a comédia do marido enganado, porque a
realidade era infinitamente mais opressiva e desastrosa para ele. Amava ver Ema no
auge das suas conquistas, vestida opulentamente, convidada por gente famosa. Ela
era um adorno, uma ilustração, dessa chamada sociedade ilota, que funcionava em
reservas, que comia iguarias importadas e para quem os sentimentos eram uma
anestesia bem sucedida. Às vezes o retrato de Ema aparecia nas revistas mundanas,
Carlos coleccionava-as, enternecido por aquela volúpia favorita que era amar o
cinismo da perda iminente do objecto amado. Maria Semblano censurava-lhe aquela
humilhação permanente.
— Ela acaba por matá-lo com desgostos — disse-lhe.
— Cada um morre conforme calha. Mas com desgostos não morro. De tédio,
talvez um dia. Quando a velhice se acelerar e eu for invadido pela misantropia, que é
o meu escalão moral. Não tenho outro. Ser famoso, é ser infame de alguma maneira.
Mas ser obscuro é ser defunto.
Maria pegou-lhe na mão, o que era um gesto impensável para ela. Estava
comovida e sentia a segurança que um destino dum pigmeu nos pode dar.
Não lhe apertou a mão; isso seria demasiada intimidade. As mulheres decidem
terminar o ciclo duma amizade quando algo de invulnerável se descobre nos seus
olhos. Carlos amava a mulher, queria a glória de se sacrificar a Ema, que não
esperava dele outra coisa. O vento de Verão sacudia as altas tílias, que tinham
deixado cair a flor, e os netos de Maria Semblano estavam na alameda a mover um
carrinho de tamanho reduzido, um brinquedo caro que o próprio pai invejara. O novo
Semblano tinha-se casado; e divorciava-se agora, afogado em incertezas e whisky de
malte. Engordara, e a mãe achava que a frequência dos elogios que lhe dedicava
tinha diminuído. Mas, se ele se distinguisse nalguma coisa, nem que fosse como
atirador aos pratos, ela ia sentir-se decepcionada. Ela gostava de Carlos porque a
mediocridade dele não a rebaixava. Gostava-se do lado risível das pessoas pelo
mesmo motivo; era uma maneira de puxar as rédeas ao génio cujo triunfo se pretende
retardar o mais possível.
Lolota disse que se ia casar com o advogado e que tinha razões para isso. Ele
fizera-lhe um filho, na gruta do parque da Caverneira, em posição muito incómoda, o
que ela achava bastante ridículo.
— De pé, como os cães — disse. Mas não parecia nada uma rapariga sabida e
que frequentava as altas esferas do pecado, como ela julgava. Ema perguntou-lhe se
não era melhor parar por ali. No entender dela, o amante de Lolota não ia querer
casar.
— És muito nova e completamente parva. Vê-se logo que foste seduzida, e
isso não dá glória a um homem público. Ele é ambicioso e precisa duma mulher que
não o faça dizer que se enganou. Recomeçar é perder tempo. Os casamentos dos
ambiciosos têm que ser duradouros.
Lolota atirou-se para cima da cama e chorou um bom bocado. "Sou muito
infeliz" — disse, com a vaga sensação de estar a repetir uma história muito estafada.
Os cães, Drago e Marcuse, vieram rojar-se junto dela, e Lolota sentiu-se menos só.
Ema mandou-a para casa das Paivoas, as cunhadas, e Lolota deu à luz uma criança
com quem ninguém se preocupou mais do que seria próprio.
Esperava-se que Lolota casasse e refizesse a vida com qualquer dos rapazes
que davam a alma e as conveniências pelo elogio das suas asneiras. Foi o que
aconteceu. Ema riu-se desse desfecho. O humor negro era uma das suas vocações, a
mais bem sucedida. As filhas causavam-lhe mais embaraço do que preocupação, e
não se sentia disposta a carregar com as culpas da juventude. Elas aprenderiam
depressa, o que é uma maneira de desaparecer discretamente. Nada resiste ao que se
arrepende, e, uma vez sabendo isso, tanto Lolota como Luisona sairiam de apuros.
Talvez o jovem Semblano, filho da mãe que tinha, se lembrasse até de desposar uma
delas. Ema conjecturava que seria Lolota, e que ela lhe daria muitas crianças, como
por encanto e sem fazer objecções. Raparigas assim eram já muito raras. Maria
Semblano não deixaria de ponderar as coisas pelo lado melhor.
Ema, uma vez, pensou no pai com surpresa. Lembrou-se duma tarde em que
fora com ele à Régua num carro de praça, ao dentista, se não estava enganada; ao
fechar a porta, um dedo de Ema ficou entalado e a dor quase a fez desmaiar.
Recordou o olhar do pai, ávido de paralisar aquele facto e fazê-lo desaparecer.
"Minha filhinha!" — disse ele. Um amor assombrado, meio demente, espelhou-se no
rosto dele, e as lágrimas encheram-lhe os olhos azulados. "Olhos de ganga", como
dizia Ema, rindo-se, extasiada dessa felicidade vulgar de jovem bem-amada.
Também se esquecera da maneira como comia laranjas, cinco seguidas,
fazendo-lhes um furo e aspirando o sumo, com voracidade. Essas laranjas doces,
ferruginosas, cujo pé verde ela arrancava pelo prazer de lhes notar a frescura, e que
trazia aderido um bocado de casca, impregnada dum licor que espirrava e fazia arder
os olhos. Agora já não comia laranjas assim. Nem lhe apetecia fruta como dantes;
nem melancia fresca, pela calma da tarde.
Um dia, quando o pai já tinha morrido, Ema foi ao Romesal para reunir
algumas peças de mobília antes de vender a propriedade, e verificou que o oratório já
não era o mesmo. Cardeano tinha cedido à tentação de o negociar com um antiquado,
com a condição de ele o substituir por outro mais barato. O que aconteceu foi
aparecer um armário verde, com todo o aspecto dum aparador e que parecia
escarnecer da memória de Ema. Ela, que nunca chorava, rompeu em pranto. O lindo
oratório com portadas douradas e cuja laca estalava em mil fios das suas cãs, não se
encontrava lá. Era um roubo feito à sua infância. De repente, Ema viu-se com um
vestidinho de lã preta a espreitar pela grelha do confessionário, tendo um ramo de
flores de cera nas mãos. Ema tinha seis anos, e a mãe deitada no esquife, como uma
noiva, e atrás dela gemia o soalho da sala de jantar quando alguém vinha guardar os
copos lavados. Eles tilintavam baixinho como campainhas, e Ema sentiu que a mãe
se despedia dela na companhia de pequenos seres voláteis que produziam aquele
barulho fino e deslumbrante. Retirou-se pé-ante-pé. Mas através do ralo do
confessionário descobria-se o fulgor dos círios que ardiam em tocheiros de latão
pintado de rosa. Ema sentou-se no chão, no quarto onde se guardavam as castanhas, e
ficou a ver contorcerem-se, no serrim da fruta que mirrava, os vermes brancos como
contas de marfim rolando num torno invisível.

CAPÍTULO VIII
A SENHORA

Desde esse tempo duma orfandade dissipada pelo riso das numerosas mulheres
do Romesal, Ema foi a senhora absoluta da situação. Ela comandava o riso,
preservando a sua identidade superior que exclui de si mesma o que é risível. Sabia
que, se não superasse o seu defeito, que a obrigara a usar um aparelho de aço até aos
dez anos, ia ter que suportar que a reduzissem a uma matéria inanimada, como um
fantoche. Foi desenvolvendo o espírito de exibição escandalosa, para proibir ameaça
da maldade humana pronta a lançar-se sobre o objecto de riso, a sua deformidade.
Aos dez anos, os médicos mandaram retirar o aparelho de tortura. Ema não
quis olhar para a perna, ligeiramente mais delgada e mais curta. Não estava
desgostosa, porque sabia que com esse defeito tinha direito à razão da seriedade.
Ninguém, de algum estofo moral e pronto a salvar a dignidade humana, ia rir-se dela.
Excepto Ema, que não queria integrar-se no seio duma grave sociedade, depravada
ao ponto de maldizer o riso e tê-lo por ofensivo. Se não fosse essa escola do riso em
que Ema se fez mestra, começando por se amoldar à sua infelicidade, ela não teria
talvez conseguido elevar-se à beleza que depois adquiriu. Porque, em criança, Ema
não era sequer bonita. Tinha um rosto inexpressivo, uns dentes grandes demais, e não
controlava o andar.
Parecia um gafanhoto ferido, tentando equilibrar-se nas magras patas. Às
vezes, diante do espelho, ela exagerava esse efeito e ficava satisfeita por não sentir
nenhum sofrimento. O riso desmascarava as intenções agressivas dos outros e
causava pânico no grupo dominante. É por isso que alguém que é marcado com um
defeito físico, ou que se marca a si próprio por meio de tatuagens e símbolos de
terror, pinturas, cabelos eriçados, roupas ostensivas e macabras, sabe que está a
valorizar o seu lado sério e a causar um efeito de superioridade que é um efeito
sagrado; o riso fica interdito.
Desde que se dispôs a frequentar uma sociedade acima do seu meio e da sua
educação, Ema optou por usar, a título de ameaça, um comportamento
desequilibrado. Encarnou a personagem associa, primeiro desajeitadamente, o que
era quase o segredo do seu sucesso. Nunca parecia uma mulher industriada na
prostituição, mas alguém que se distancia da baixeza humana por meio duma infantil
falta de jeito. Dava a impressão de que, para além das suas provocações, não se
amava muito e oferecia uma conformidade ao soberano julgamento dos homens. Isto
tornava-a fascinadora, porque a imagem fundamental é aquela que deixa aos outros o
direito de não reflectir os seus actos.
— Como tu és tola, minha filha — dizia ela a Luisona que, aos cinco anos, se
ajoelhava para lhe rezar, quando a via vestida para uma noite de gala. Mas Ema sabia
que aquela imbecilidade era a sua protecção mais forte. Embora o velho advogado, a
seduzisse e deixasse grávida, ela ia sair de apuros na melhor das ocasiões, porque o
seu mau contacto com um homem servia de pretexto à dialéctica salvadora dos
outros.
Ema tinha uma conduta estudada ou, na realidade, era impelida a um
procedimento vil para se evadir do papel que inspira piedade ou riso? Não amava os
homens porque não se amava a ela própria. Na sua ligeira e quase mecânica
interpretação da mulher pública mas de bom-tom (como seria a Dama das Camélias,
libertina e candidata à catástrofe como no teatro, conservando a dignidade pela
surpresa da catástrofe), Ema não deixava de deslumbrar.
Toda a teatralidade deslumbra porque se afirma contra o riso. A vida real
convida à hilaridade porque é previsível e todas as coincidências convidam o lado
cómico a aparecer. Mas no teatro as coincidências têm um texto a conduzi-las, e um
texto não é obra do bufão, nem do acaso; é prova da seriedade.
Ema aspirava ao grande mundo, mas ao seu irreal, à sua montagem cénica.
Evidentemente que a cocote, com as carnes que amolecem e os olhos vidrados pela
bebedeira, não estava na sua mente. Nem as doenças infamantes que, em vez de
serem dominadas, reapareciam como as cabeças da hidra. A sida sucedia à sífilis e
assumia o significado que lhe era imposto, de desonra táctica e de imaginário dum
poder injusto e eminentemente sério. A ética do mal ficava em causa, não pelo
trabalho da doença, mas pelo seu fermento risível: como se a cigarra fosse mais uma
vez troçada pela formiga laboriosa, ao perder as asas que a faziam rechinar de prazer.
A Dama das Camélias, provinciana adorável e vadia sem escrúpulos, no seu
camarote de Ópera, podia bem significar um manequim mitológico, se não fosse a
mensagem que ela mandava aos amantes: cinco dias, camélias vermelhas, ou seja, o
impedimento da menstruação nauseabunda; e vinte e cinco dias de banhos de aloés,
com champanhe gelado. Todos os seus objectos de uso eram de oiro e de prata, e isso
tornava transponíveis as contradições: a sordidez e o luxo cúpido; as dívidas ignóbeis
e a glória dos festins.
Ema fora uma leitora absorta da Dama das Camélias. Ela era a sua fada
madrinha, assim clara de pele, de estatura elevada, opondo ao riso aberto da honesta
ralé, que apupa a miséria e o vício que com ela se desonra, opondo-lhe o bom gosto,
fruto da escola que doma o carácter e faz rastejar a opinião. Ema admirava a cruzada
do luxo, que faz mais vencidos do que a cruzada da Terra Santa. O vencido era o
espectador desse teatro radicalmente estranho ao corpo que sofre e goza com as suas
praxes carnais; o espectador que aplaude, mais do que participa, é um vencido da
irrealidade social, um comparsa que gesticula e grita, fazendo-se entender pelo que é
mais falso — o entusiasmo.
Ema sabia que não provocava senão um entusiasmo colectivo, que
privilegiava, não a sua forma de mulher, mas sim a transformação dela em objecto
oferecido à tentação do grupo. Se não fosse assim, o riso deslocava-a dessa
solidariedade do massacre; e o ventre tomava as conformações obscenas que o riso
acentuava. E até a sua deformidade, a perna delgada e coxa, ficava desprotegida e
entregue à desabusada conduta do homem, da sua febre genocida moderada pelo riso.
Ela nunca se precipitaria na carreira da rameira nuclear que se inscreve numa
lista, como os vinhos de qualidade. Não seria jamais pasto do sadismo absoluto, que
lhe exigiria o pleno emprego da sua passividade. Quando Fernando Osório
telefonava, confirmando a sua chegada ao Vesúvio, Ema simulava que não recebia a
chamada, e partia; às vezes, na sua pressa, abandonava parte da bagagem, um estojo
de toilette, umas chinelas de quarto, como um general que, para não cair cativo, deixa
no arraial as suas condecorações e o chapéu de campanha.
O mordomo Caires tentava ainda obstruir-lhe o passo, com pretextos, dúvidas,
ruminações. Ema não o queria ouvir. Seria capaz de clamar, como no mau teatro, "o
dever chama-me", e dizer que tinha a velha mãe às portas da morte. Desculpa de
cozinheira, que Caires havia de entender sem sequer se pronunciar pela falsidade
dessa escusa.
Só a Senhora, lívida e enguantada de preto, cravava nela um olhar de família,
sem ironia e sem significado. "Vai, minha filha, eu cá estou para o receber, esse asno
que não merece a tua ignomínia". Ema tinha a impressão de que a Senhora
conseguira reunir toda a derisão e atirá-la, do alto do Vesúvio, ao fundo do rio. Mas
que implacável génio era preciso, e quanto oiro para apagar a linha do baixo ventre,
as nádegas, os seios, tudo o que podia alimentar o riso e os sonhos cruéis do
optimista sexual!
Havia quem desafiasse tudo isso. Tomásia da Silveira, por exemplo, que tivera
um filho e não se mostrara interessada em reconhecer o pai. Talvez não soubesse
quem era, ou mantinha-se fora da contaminação dos valores, optando pela
maternidade desportiva. Riram-se dela e acentuaram a sua fealdade. A Camafeu era
rica e bateu-se bravamente com a maldade humana e até a bondade. Mas nunca
pensou que, ao proceder assim, tomava a personalidade masculina; abandonar os
seus direitos sobre o pai da criança era uma desfiguração dum sedutor, ela própria.
Uma vez arrumada Lolota, com a participação das Paivoas, que davam
amplidão às suas vidas de divorciadas fazendo o que queriam e simplificando as
intrigas de amor e de dinheiro, restava Luisona. Comprida, de pernas como fusos e
uma alma de gato persa, sem jovialidade nenhuma, Luisona era a que ajoelhava
diante da mãe julgando-a aparentada com as imagens dos altares. Ema mostrava-a o
menos possível e mantinha-a fechada num colégio, como dantes se guardavam nos
conventos as ingénuas filhas de mães inteligentes; que lhes preparavam a cama sem
se desviarem da inspiração de mulheres: sonhar todas as paixões que, se não podem
ter, transmitem às filhas como uma corbeille de noivas.
Luisona havia de sair do internato para se casar com um rapaz de queixo à
Carlos V e que era o sobrinho preferido de Maria Semblano. Ela abençoou aquele
casamento e serviu de madrinha. Ema não compareceu, inventando um compromisso
que não passava duma das suas fúrias repentinas contra o que se punha de permeio
entre ela e o seu mandato de prima-dona. Invejou Maria, que se prontificou a
substituí-la com uma discrição que raiava pelo cinismo.
— Ela detesta-me — disse Ema. A sua impaciência tomava foros de demência.
Partia os objectos mais preciosos, e tinha prazer em vê-los em migalhas.
— Para ti, toda a gente te detesta. — Carlos aparentava uma calma tão
singular, que Ema acabou por se rir. Olhou para ele com comiseração e fastio.
Carlos não entendia que viver era uma catástrofe solitária, ou então fingia,
perante o mau cheiro das perfídias que ela lhe impunha. Queria fazê-lo sofrer, ou
simplesmente ignorava os sintomas que ele apresentava, a sua prisão de ventre, a
obstinação do trabalho, as visitas a Maria Semblano, a quem tratava por Loreto,
como se sufocasse uma confidência? Ema não o tomava a sério, mas às vezes ficava
picada, fula, achava-o indigesto com os seus pequenos mistérios, a sua arte cómica
de se fazer notar. E, sobretudo, escondendo dela quanto ganhava e deixando, ainda
que raramente, que ela suspeitasse uma fortuna, uma herança, um lucro inesperado.
Ema vestia-se para sair, levando duas horas a pintar-se, como um modelo
profissional. Carlos admirava-se sempre, cada vez que a via, já pronta, com os olhos
debruados dum traço negro e alongados até às fontes como as figuras egípcias.
Admirava-a pela soberania das suas entradas em cena. Algo de tétrico a levava pela
mão, algo que ela se acostumara a esperar como "o pior"; pior do que o escárnio e a
pobreza e que lhe dava força para avançar na direcção do grande desejo da
insinceridade. Porque mentia sempre, fingia sempre, atirava um remoque à mais
sagrada das ocasiões, dizia alto o que pensava, era incorrigível ao mesmo tempo que
generosa; era selvagem ao mesmo tempo que elegante até às unhas, até ao fio dos
cabelos. Cabelos que ela pintava em casa, deixando jorros de tinta preta na banheira e
manchas nas toalhas, porque não era capaz de mostrar as suas cãs em público e fazer
saber que as encobria. Até um dia em que tomou a decisão de aparecer com elas,
quando subitamente embranqueceu e isso lhe deu um tipo exótico, como num sonho
que mergulhasse na mais impiedosa imaginação.
E então Ema causava um calafrio de desejo, curiosidade e receio. Os jovens
sentiam-se chamados à sua irrealidade que eles queriam converter em inspiração,
mas que resultava num mal-estar entre a desistência e a vertigem.
A beleza de Ema, preparada até parecer intocável, dava-lhes a ideia de que o
mundo fabrica em surdina coisas que pertencem ao isolamento real dos seres, e que
se não partilham, como o sexo e o pão. Queriam segui-la, mas ficavam no circular
caminho das suas interdições, convertidos à mediocridade como a um credo, dizendo
para eles próprios que tinham de crescer, estudar, casar-se e ter filhos; enveredar por
uma profissão e viajar com uma pasta de couro onde guardavam a pasta de dentes e
apontamentos de marketing.
Entretanto Ema foi entrando na via das mantidas com quem tinha afinidades
fantasmais, sem hábitos conhecidos, aparecendo num hotel ou num bar, ostentando a
sua imagem de recusada, de quem perdeu a dimensão social e se projecta entre um
leito fictício e um caos de efabulações em que entrava o play boy jogador de pólo, o
príncipe homossexual com os seus cãezinhos Yorkshire, ou o chefe de mesa que
conhece o Verbo da gastronomia e cujo conselho lisonjeia mais do que a admiração
dum eunuco. Ela frequentava os lavabos dos hotéis de luxo onde desciam as
concubinas bonitas, frias, cautelosas, como se pisassem gelo fino. Falavam de
homens; velhos, novos, das suas paixões domadas, das trocas que faziam e da
floração do amor comprado em cujas raízes se embebem todas as ambiguidades do
mundo. Quando Ema aparecia, um arrepio imperceptível percorria-as, não sabendo
se aliar-se ou ignorá-la, o que era difícil, porque o seu ego fictício era insaciável e
elas surpreendiam em Ema um valor que partilhavam todas: o valor das suas
exigências impossíveis de satisfazer porque eram também fictícias. Todas eram
tocadas pelo desejo de amar, e, assim, alguém que superava a sua figura e
apresentação, fazia-as sentir uma avidez infinita pelo que viam mais longe, feitas as
contas às suas probabilidades. Entabulavam conversas inocentes, nasciam daí
amizades profundas; essas amizades de mulheres que protegem o seu desejo
incessante fazendo-o entender-se com a abnegação dos prazeres.
— Bonito vestido, e a cor. Sempre gostei dessa cor de cravo seco. Faz a pele
mais macia.
Ema sentia vontade de despir a roupa e dá-la de presente. Tinha repentes
doidos, de boémia; gostava de ter nome de mãos largas, não fazia contas ao que
gastava, ao que recebia. Se fosse uma cortesã, acabava na miséria. E, no entanto,
admirava as que sabiam guardar para a velhice e que iam para as grandes paradas de
luxo como quem vai para um retiro, aparentando o gosto sério e, o que é mais, sendo
sérias, cheias de volúpia transcendente para ouvir e dar conselhos a gente nova.
Acabavam casamenteiras, que é um angelismo proxeneta.
Mas Ema não era capaz dessa perfeição. Aborrecia-se. Tinha a asa dum génio e
o pé dum diabo manco. Aborrecia-se de morte de todos os papéis, todos os estilos,
todos os grandes passos na vida. Tinha-se agravado a sua anorexia, que não era
sexual, mas também dos pensamentos cultos ou infames. E Maria Semblano
aborrecia-a ainda mais porque era a Personagem Ilustre, que faz um nome como
quem faz um cesto para deitar ao Nilo com Moisés lá dentro, um cesto
completamente impermeável e seguro. E os seus gritos de tédio, que encobriam a
humilhação de não merecer um amor louco, assustavam os homens, que sentiam por
Carlos Paiva uma simpatia hipnótica e envergonhada. "Também nós seríamos uns
maridos como tu, mal-amanhados e completamente de rastos" — pensavam. E,
também por isso, vestindo a pele de cordeiro daquele homem respeitador e íntegro,
queriam mal a Ema e inventavam-lhe deboches e crueldades. Porque as amantes são
sempre cruéis para quem não se atreve com nenhuma.
Para as severas proprietárias de Vale Abraão, Ema era a melra, vocábulo que se
estendia a toda a mulher que desvia os homens e os transforma em picado enlatado.
Atribuíam-lhe vícios, desses que nem as páginas de sexo das revistas de família
ousavam nomear. Longe ia o desatar do colete da pequena Bovary, com o silvo do
cordão solto em volta das ancas e que, no seu tempo, pareceu o cúmulo da luxúria.
Agora sabia-se que havia sexo até numa carabina de canos serrados, e as escolares do
décimo ano falavam abertamente do amor sem costuras, que era o uso dos
preservativos.
Traziam-nos no porta-moedas, e os rapazes diziam que era mais fácil
engravidar uma freira do que a namorada. Mas tudo isso não condizia com Ema. Ela
sentava-se à sombra, ouvindo Lumiares tocar muito mal no velho piano desafinado, e
dizia:
— Quem me dera morrer no mês de Nisan, durante a colheita do sândalo.
Isto continha um tédio tão vasto como o Vale da Morte todo inteiro, lá onde ele
está. Lumiares vinha à porta para lhe perguntar se tivera vinho de benefício esse ano.
— Como queres que eu saiba? A colheita do sândalo é o que mais me
aproveita.
Era uma frase literária que ela decorara e que lhe parecia o cúmulo do ridículo:
"Era em Tabriz, no mês de Nisan, depois da colheita do sândalo". Como é que coisas
dessas não faziam rir aos borbotões, como se a gente deitasse sangue pelas goelas?
— Sabes? Um escritor é um tronco, uma árvore serrada.
— Como é?
— Sei lá. Rebola-se nas palavras, esconde o sexo no contínuo rebolar das
palavras. Achas que Maria Semblano é uma escritora? É uma bela forma de fazer
indecências.
A muito custo Ema emergia da sua verdadeira estrutura, que não era moral,
mas simplificada para não dar pistas sobre ela mesma. Era como se, ao traçar a
assinatura, se limitasse a um traço ilegível, para que nada ficasse de revelador. Nunca
se podia saber o que Ema era, porque ela se fechava num facto (os amantes, as
compras, as viagens) fácil de interpretar e que tinha um significado definido pelo
costume; constava do dicionário e dava a sua materialidade preservando a densidade
interior. "Fazer indecências" não era dormir com um homem nem usar de práticas
perversas; qualquer revistinha porno se agitava nessa escrita, reduzindo esses actos a
cópias incapazes de contar os sonhos, ofício que raros conseguem dominar bem. Ema
sabia que consolidar os sonhos, sentir o desejo do ausente, retomar todos os dias a
melancolia do imaginário impossível de materializar, isso era "a indecência". O que
não podia ser escolhido entre toda a sumptuosa carga de matéria que o mundo
oferecia.
Ser indecente era o que ela fazia: fechar-se no Vesúvio e deixar lavrar a ideia
de que se entregava a um amor sujeito a diversos níveis de interpretação. Amor
satânico, como as mães de família gostavam de chamar-lhe; ou amor arrojado, como
as adolescentes admiravam; ou amor libidinoso, como os jovens pensavam que era,
na tentativa de escapar a um destino sem fantasia. Ema tinha por único luxo o próprio
monólogo, derivativo das mulheres para dourar o seu medo.
Na verdade, ela nunca ousara ir muito além daquilo que a sociedade podia
digerir. Nunca fora muito forte para acabar definitivamente com o casamento,
fazendo dele trampolim para outro caso que a libertaria do que lhe faz medo — a
natureza feminina. Enquanto mulher, está condenada à usurpação dum território, dum
pensamento, dum prazer, que não são os dela. Há qualquer coisa de ignominioso, de
indecente, nisto. É criada como mulher, mas a sua consistência corresponde ao
movimento do espírito do homem. Que quer dizer saída da costela de Adão? Que ela
é algo de semi-real, que é nascida dum significado incompleto, como um costado a
que falta uma costela. A sua diferenciação fica imaginária, como "coisas de mulher",
como um organismo que absorve outro e o expulsa por ser estranho; a maternidade
simboliza esse falso portador em ligação com o ausente, o vazio do mundo para onde
tende o desejo.
Quando chegava ao Vesúvio, não era para se reunir com Fernando Osório; mas
para navegar a sós naquele rio escuro, sabendo que o barco podia voltar-se pelo risco
que lhe impunha duma velocidade exagerada para o seu calado. Quando ia pela
toalha de água fora, parava no lugar onde se afogara o procurador da Senhora, e
deitava na água um cálice de vinho. Esperava sempre ver sair da profundidade a
cabeça lívida e sem olhos, para agradecer, abrindo as narinas como um provador
experiente e farejando o sarro do vinho. E, voltando para casa, às vezes surpreendia
na Senhora uma interrogação divertida, como se Ema trouxesse notícias que eram
para ambas um factor de unificação.
O mordomo Caires prevenia-a do mau estado do cais. As tábuas lodosas
tinham apodrecido no último Inverno, a ponto de os cães não quererem pisá-las.
— Eles sabem que não estão seguras. Mas ainda não arranjei ninguém para as
consertar.
Ema passou a conhecer melhor o pontão, a esquivar-se dos seus estalidos, a
saber onde vergavam as madeiras; eram só uns segundos de perigo, depois
encontrava-se, como num ventre macio, dentro do barco, cujas almofadas azuis a
rodeavam. E Ema deixava-se levar no fio da água, vendo a esteira de prata que a
seguia fora do peso dos elementos; como se voasse ao encontro dum sentido que
fosse o sinal da incarnação feminina. As altas falésias, de pedra granítica e tumular,
levantavam-se nas margens. Não se podia chamar margens àquilo. Eram detalhes
dum vulcão; eram, nas pedras, rasgões de garras que ali tivessem escorregado.
Quem? O silêncio impenetrável subia até aos sarçais onde restos de oliveiras, que
não morriam nunca, pareciam ossadas desenterradas.
Caires mandava-a esperar por um dos criados e, como sabia que Ema vinha
gelada, os cabelos colados à cara pelo borrifo de água, mandava também chá quente.
Ela bebia-o, pequena figura na imensa cova do Vesúvio, desenhando-se acima da sua
cabeça as palmeiras dos terraços. E pareciam elevar-lhe a estatura, como os toucados
das bailarinas blue-bell.
A morte de Ritinha, a lavadeira muda, deu-lhe uma súbita reminiscência de
todo o passado. Não só a morte da mãe, no seu esquife forrado de seda branca, ela
com o vestido de casamento tão fresco e passado a ferro como se viesse nesse
instante da modista; não só o rostinho de Ema colado ao ralo do confessionário e,
atrás dela, como as palmeiras do Vesúvio, as flores e o besugo da natureza morta.
Eram também as coisas não-significantes, os chinelos de agasalho debaixo da cama,
esses chinelos que sempre produziam um cerimonial que precedia o Inverno.
Quando as castanhas caíam e os ouriços abriam deixando ver a lustrosa pele,
como a foca no banho, lisa, oleada e brilhante, era tempo de comprar calçado de
interior; quando os ouriços picavam o dedo grande do pé, desprotegido nas sandálias,
lembrava aquele rito dos chinelos de quarto. Marina trazia-os da vila em caixas de
papelão, e tia Augusta provava dois pares: um que lhe apertava o joanete, outro que
lhe estava largo. Mas Ema tinha à escolha uma sinfonia de cores: vermelhos com
pompom, feitos de baeta escocesa, debruados de gorgorão, de pele, de veludo; qual
deles o mais gráfico, como letras maiúsculas, redondas ou bicudas, letras azuis ou
castanhas, traçadas em tinta firme e indelével. Não sabia quais preferir, eram todos
belos e próprios para o passo feltrado, o subir aos cadeirões de palhinha que só
suportam pesos leves, senão começam a esbeiçar-se de riso e a ficar bambos e
esbarrigados. Os de couro seleiro eram os aconselhados por Marina; os de cetim
admirados por Ri tinha, que os roçava na cara como se os namorasse. O Inverno
começava com esse acto preparatório dos chinelos caseiros que Ema nunca esquecera
e que Lumiares achava o cúmulo da punição das donas de casa. Simona não os
usava. Andava descalça ou punha botas para descer ao laranjal e apanhar do chão as
laranjas. As botas de Simona sempre denunciavam um mistério, algo de castrense,
como se ela gostasse da vida de acampamento obediente ou dominante; como se algo
nela significasse um Calígula de pernas peludas, esperando avidamente o aplauso das
legiões. Os Césares gostavam de teatro, como os Braganças da dança. A senhora
recusara a filha a um César e depois a um Bragança porque os vira dançar num baile.
Causou-lhe cólera e espanto aquele prazer que trazia, das brisas profundas do tempo,
um desejo de violência que se mascara em rodopios, langores e curvas, em oscilações
e movimentos pendulares de corpo martirizado. O que ela Ema, a Bovarinha,
descrevia, com as suas partidas e chegadas ao Vesúvio, com a sua ambiguidade, os
seus esconderijos rasteiros e sempre renovados, como os chinelos de Inverno: uma
coisa que a prendia à casa, que era uma parte do seu monólogo com a casa.
A morte de Ritinha não devolveu Ema ao Romesal, que tinha sido vendido,
incluindo-se no negócio uma fímbria de vingança pela venda do oratório. Desde aí, o
mal-estar instalou-se entre Ema e o velho Cardeano, que negara sempre e dizia,
contra ventos e marés, que o oratório era mesmo.
— O mesmo?! O pior da velhice é a queda num poço de impudor. Eu senti isso
quando fui operada.
— Foste operada, quando? A quê? — disse Pedro Lumiares, meio estranhado
porque não recebia nunca bem qualquer insuficiência sobre a vida de Ema. Ela a sua
boneca, que estripava e armava outra vez, sabendo tudo sobre as suas molas e
engonços.
— Fui operada. Há muito tempo. Mas o que eu estava a dizer é que durante
cinco dias perdi a vergonha. Como quem perde o guarda-chuva. Ficava nua, sem
mais emoção do que uma estátua, e o paramédico até quase que pensou que eu estava
a deixar-me violar. Mas era só falta de vitaminas. E agora, quando leio essas coisas
sobre sexo em família e as maneiras de fazer sexo que são menos do que as de como
cozinhar bacalhau, penso se as pessoas não estarão desvitaminadas. Se estão a comer
bem ou não.
— Pode ser que tenhas razão, mas também há uma coisa: a vida de salão não
nos intimida nem nos interessa mais. O acto sintético é o que nos liga aos outros, e a
obscenidade é um acto sintético. Quando o grupo se sente ameaçado, a obscenidade
ganha corpo como uma vingança e um contrato de clemência. O riso é já um prólogo
para a clemência.
— Que clemência? Alguém que eu conheço?
— Exactamente. Alguém assim. Vês como estás a colaborar com a
obscenidade?
— Eu não — disse Ema, rapidamente. — Pertenço à velha raça de Severa
fadista que brinca com as franjas do xaile enquanto canta. E um detalhe muito
importante; o decoro reina, a obscenidade só se sugere.
— O que te perde é saberes raciocionar tão bem. É uma coisa que não resulta,
não modifica nada. Mas cada ideia certa é uma pedra enterrada junto com o poder do
Verbo. Valha-nos isso.
— Meu Deus — disse Ema —, tens os ombros cheios de caspa. Não lavas a
cabeça há quanto tempo?
— É mesmo tua uma pergunta dessas. Gostava de ser mulher para perceber o
que tens na cabeça.
— Caspa não tenho.
— Não. Mas alguma coisa parecida. Serrim.
Lumiares contou a história de sua tia Alberta que, na agonia dum cancro da
mama, mandara chamar a cabeleireira e se entregara aos cuidados da maior minúcia,
que a supliciavam. Um deles foi lavar a cabeça. Ela estava meio morta, um oleado
deixava escorrer a água que ensopava as toalhas. Escolheu ainda a cor da tinta, e só
não quis ver-se ao espelho. A volúpia de suportar as coisas, a volúpia turva e que
entra pelos umbrais da morte, era o que ela devia sentir. Mas só uma mulher chegava
até lá.
— A Bovary era um homem, penso eu — disse Lumiares. — É a mulher a
título de usurpação pelo homem. Ele queria sentir como ela aquele orgulho desumano
que só a passividade acarreta. Digo isto com uma ternura doentia. Não te admires se
me vires lágrimas nos olhos.
Ema riu-se da cara dele, como para o consolar. Não era a primeira vez que
sentia Pedro Lumiares muito próximo, tão próximo que chegava a incomodá-la. Ele
punha-se ao nível da dor com que só a mulher priva profundamente. A dor duma
falta, que não é de sexo nem de bem-estar. "O infinito poço do desejo" — pensou ela,
com acabrunhamento. Carlos não queria admitir que ela sofria, isso punha em causa
a sua fundamental ideia de homem, de que Ema era objecto de prazer e que ele, ou
um outro, combinados ou não, a fariam concentrar-se no prazer.
Para quê reconhecer-lhe uma consciência humana, e aquele doloroso poder de
articular pensamentos? Ele permitia-lhe tudo como prova da sua degradação que a
amarrava ao homem. Permitia-lhe amantes quantos quisesse; linguagem obscena,
vícios de todos os tipos, consumismo no reino de Satã e no reino de Deus — porque
não? Contanto que ela fosse parte do seu autor, que era o homem. Pedro Lumiares, ao
menos, sabia que Ema não queria apoderar-se dum homem, mas do mundo. Como o
diabo sabia que o Cristo tinha no coração essa vontade de poder, sagaz, contornadora
da pessoa e, ao mesmo tempo, sua totalidade. Se estivesse na mão dele contribuir
para a sua perda, ele fazia-o. Como Carlos, cego do amor e, no entanto, capaz de ser
o intermediário da destruição. Onde refugiar-se? Onde ir procurar asilo e segurança?
Como a mulher do Apocalipse, um rio correria no seu encalço para a afogar, e ela não
poderia contar com as asas da águia para voar para longe.
As relações de Carlos com Maria Semblano, se não eram de amantes,
pertenciam ao pequeno risco dos desejos singulares que se materializam pela palavra.
Um hábito de quinze anos, em que os impulsos destruidores do casamento são
compensação de sonhos literários, cuja passividade satisfaz um sem número de
propósitos sádicos, isso era impossível de atalhar. Ema encontrava nas suas fugas
para o Vesúvio uma espécie de história no interiror do texto que era o seu casamento
com Carlos. Eles amavam-se, mas sem que isso fosse suficiente e indispensável;
como acontece com a maior parte dos casais. O sentido indizível das coisas ficava às
portas do amor, que a tentação não ousava acompanhar.
Agora, que nada parecia proibido, que a linguagem ultrapassava a eloquência
para chegar directamente ao facto natural, como se fosse uma maneira de ignorar a
hipocrisia, Ema continuava alienada à sua beleza; e, por isso, o próprio marido
confiava nela. Não era uma mulher de carácter, longe disso. Mas a beleza,
reconhecida publicamente, fazia com que não fosse esposa nem amante. Há anos que
não encontrava Fernando Osório no Vesúvio.
Ele fazia por falhar a sua chegada; ela desaparecia um dia ou dois dias antes de
ele se anunciar. Mas mesmo quando tiveram relações mais íntimas, os beijos eram
ligeiros e como que desvinculados dum efeito erótico. E só com Fortunato ela se
libertou dessa obrigação platónica, conhecendo com ele um misterioso imperativo,
não apenas sexual, mas sobretudo um rancor que encontrava a sua evasão. Era como
se estivesse privada, pela majestosa marca da beleza, dos prazeres que toda a gente
desfruta, mesmo os mais miseráveis seres e os mais abandonados dos favores que a
natureza concede. Foi com uma espécie de ferocidade, às vezes terna e outras vezes
cruel, que Ema se precipitou nos braços de Fortunato. Ele assustou-se e foi refazer-se
num casamento acanhado e pobre, daquela riqueza de sentimentos e emoções que
não estava na sua expectativa nem nas suas ambições. Falava de Ema como de algo
que fora, ao mesmo tempo, um prémio e uma vergonha.
— Ela é doida. Ninguém me diga que não é chanfrada — dizia. Tudo o que
explica a oscilação entre a razão e a demência, por palavras embuçadas e até
amáveis, Fortunato usava para se referir a Ema. Desde "ser aluada", ou "ter um
parafuso a menos" ou "os cinco litros mal aferidos", tudo era a praga que lavrava
entre os pensamentos amorosos dele. Que eram sinceros, pelo menos enquanto se
entregaram ao lúdico precalço dos primeiros encontros. Vigiados pelo Caires, que
sofria como duma devoradora sarna que o enloquecia, ao andar em bicos de pé pela
casa para surpreender os mínimos gestos de Ema e Fortunato, eles sentiam um prazer
redobrado; porque a traição justifica o emprego dos outros como objecto submetido e
usado. O sentimento todo-poderoso de que se amavam, e faziam o que queriam desse
amor, fazia com que gozassem em enveredar pelo lado mau do poder. Ali, era
desesperar Caires, praticando o sadismo como um ofício, oferecendo-lhe todas as
ocasiões de ele se enganar e iludir. Porque o amor a que se entregavam vivia muito
do pleno emprego do outro, o terceiro, a serpente que conhece o sabor do fruto mas
não se serve dele, apenas o nomeia e reserva para ser consumido por outrem.
Ema e Fortunato, no Vesúvio, foram grandes jogadores do amor que gesticula,
cobre a voz dos outros, leva ao extremo e anarquia dos sentimentos e leva às vezes à
morte, por humilhação, o parceiro, em imaginação, dos seus prazeres e da praxe do
poder.
— Sãos uns safados — dizia Caires; e chorava. Tão grande era o seu
sofrimento, que saía fora do decoro matrimonial. A mulher compadecia-se, pregada
ao chão pelo terror daquele ignóbil desconcerto do espírito de Caires. Não se atrevia
a intervir. Já o fizera; mas o resultado foi tão arrasador que pensou deixar a vida
nessa empresa. Nem era a perda da moral, que invadira aos poucos a linguagem e a
vontade de Caires, o que a impressionava. Era a passividade que se ia desenhando, o
encarniçado intuito de se fazer invisível, de desaparecer e não ser notado, embora se
deslocasse pela casa como um fantasma. Esse efeito de zombi é uma defesa contra o
sadismo de grupo e do par que exerce o poder e que constitui uma força feroz. O
zombi, representado como o corpo sem alma, cuja identidade se reduziu ao mínimo,
pretende a libertação julgada impossível como vitória. Gradualmente submete-se,
não ao outro, mas à voragem sexual que o outro lhe impõe. Perde o imaginário do
prazer, e o consentimento é substituído por uma recusa letárgica em que a tentação
esbarra e o sofrimento se transforma em beatitude. O mordomo Caires, tendo
chegado ao cúmulo da humilhação, a sua aceitação como objecto desprezível, mal-
amado, ficou reduzido a uma sombra. Causava espanto, a mulher abandonou-o, sem
mesmo o recriminar. Sabia que falava para um muro fechado à cupidez e à
sensualidade. Caires já não dava significado ao dinheiro, e oscilava entre sonhos de
grandeza e de lírico franciscanismo. E, como se diz que aconteceu com S. Francisco
de Assis, os animais seguiam-no e demonstravam uma espécie de enamoramento.
Ema viu isso e ficou estupefacta.
Viu o entendimento despertar num gato ou numa galinha, o que abatia as
barreiras entre a razão e a irracionalidade. O sexo era, pois, uma reciprocidade de
perspectiva; cada ser reflecte a totalidade do outro, e era dessa maneira que o
mordomo Caires correspondia ao efeito cósmico do amor por Ema.
Mas era amor o que levava Ema ao Vesúvio, afogada no casaco de marmota e
respirando, até o rosto ficar banhado de vapor húmido, contra o abrigo de pêlos cor
de rato? Era sobretudo o impulso para o todo que estava em toda a parte que
constituísse o seu cenário — o Vesúvio com a casa da Senhora e os jardins onde se
perfilavam as palmeiras e sobretudo aquela ressuscitada forma duma unidade de
vida, com o cheiro dos lagares, da grainha moída, do cangaço onde se prendem as
peles das uvas, da aguardente quente pingando nas celhas; e uma unidade de ordens e
serviços, de ritos interrompidos, como o da reza das onze horas da noite, quando o
marido da Senhora levantava a voz para pedir clemência, em nome dele, que era
pessoa grata aos olhos de Deus e que podia garantir o comportamento dos pobres da
região, antigos jornaleiros e mulheres deles, cadelas da vinha que chefiavam o
levantamento do roubo. Isto ocorria à lembrança do marido-procurador e ganhava
corpo, e produzia um mecanismo da vingança, veloz como um dardo, e que ia cravar-
se na oração, desviando-a um pouco do seu objectivo.
Tinha um marido-primo, a que a Senhora chamava o defunto. Outro marido da
sua maturidade, homem rico mas poupado, a que ela chamava o morto; e o último
marido, mais dilecto pela confiança com que lhe entregava os negócios, havendo
sempre entre o casal, não lençóis, mas livros de contas; não um ninho de boas obras
da carne, mas um rugido de papel e um veloz correr da pena das rubricas. A esse, a
Senhora chamava o desaparecido. Não lhe dava um lugar na gaveta do jazigo, mas
um tempo na cripta faraónica donde ele havia de encontrar a saída no raio solar de
Rá, trazendo com ele a pasta com folhas timbradas, e cartas para responder.
O desaparecido fora o mais venerado, mas não o único para sempre. Que a
Senhora era fogosa e mulher-orquestra em coisas do amor e do ganho. Sempre se lhe
conheceram favoritos, a sua audácia era lendária em tudo. Contava-se como
despedira os ladrões de casa, sem susto algum, e eles lhe obedeceram. A linguagem
oral era acompanhada por uma postura em que se encadeavam razões menos poéticas
— razões de alcova, provavelmente.
Ema adivinhava que a Senhora era como um disco que não só transmite sons
ao ouvido do auditor, mas onde reside um encanto no fundo daquele percorrer das
estrias, um encanto que não é musical, mas é feito de sinais desagradáveis. Uma
declaração de poder, como se fosse proferida da varanda à multidão atónita. Os
ladrões retiraram, sem levar nada, cabisbaixos, sem se atrever a pôr os olhos nos
castiçais de cinco lumes e que a Senhora apagou um por um com as pontas dos
dedos, limpando o traço de fuligem contra a palma côncava como uma concha.
— Não tenho linha do destino — disse Ema.
"Isso é megalomania" — teria acrescentado Lumiares, se estivesse ali e a
ouvisse. Mas Ema estava só. Fortunato tinha-se casado e Osório viajava muito (não
tanto como dizia, mas mesmo assim por acessos, entre os quais alguns melómanos, e
ia a Inglaterra ouvir música) e ela sabia que parava em Hong-Kong para saborear o
hotel completamente cabotino onde os pés se enterravam em alcatifas altas como a
relva dum green. As pequenas chinesas de cabaia fendida até à coxa tinham uma
habilidade fantástica para sugerir despesas e contactos. Se fossem mais explícitas
desonravam a família. Osório ficava seduzido, o que é sinal duma castração sempre
em vias de se renovar.
— Hoje estou com veia de mirone. O passado mexe comigo — disse Ema.
A primeira informação do amor foi coada pelo ralo daquele confissionário
meio improvisado da sala de jantar para o oratório. Viu a mãe, amortalhada no
vestido de noiva, pois só há sete anos tinha casado. Morreu em Março, e um nevão
caiu na terra gretada das vinhas.
O azul crepuscular do céu surpreendeu Ema. Era como um aviso lutuoso, de
que a neve ia cair. Abrandou o frio, e Ema foi levada para fora de casa, na alegria da
nevada. As pantufas forradas ficaram vidradas de flocos secos. Ela riu-se, sentindo
nos cabelos as pétalas da neve. Como a mãe, no dia do casamento, em que nevara
também.
— Isto, sim, que é uma festa de noivos!
Conhecia mal Cardeano e, quando ele a carregou nos braços para a não deixar
molhar os pés na calçada, sentiu o cheiro do tabaco e do vinho que ele bebera em
demasia. Corria um regato de águas de sabão, filtrado pelos muros altos da
vizinhança. Nem uma flor, só pedras lisas e a escada para o alpendre da casa apoiado
em três colunas curtas. Ema teve o pressentimento de que não sairia dali viva. A sala
do oratório, na noite fechada, estava deslumbrante de velas que pareciam pipilar
como as aves. Ema escorregou dos braços do marido para o chão, e ficou num
silêncio que Cardeano interpretou como timidez. Era rico, comparado com Ema, filha
de fidalgos que tinham dom sem dim, sempre a braços com uma hipoteca e letras por
pagar. Mas era tão bonita, com o vestido de renda e as faces coradas pelo frio, que ele
a apresentou como uma rainha. Mana Augusta, com a cabeça trémula a dizer que
não, achou-a decotada demais. Não tinha ido ao casamento; cumpria uma promessa
que lhe proibia festas e vestidos de cor.
— Deus a abençoe, menina — disse, distraidamente. Sempre lhe mostrou
respeito; era a esposa do irmão que, se bem que mais novo, ela venerava como o
chefe da casa, sucessor hereditário do velho Cardeano, morto de pedra na bexiga. Os
lenços tabaqueiros dele ainda estavam arrumados ao canto do gavetão, vermelhos e
desbotados.
A Ema pequena não teve tempo de entrar na intimidade da mãe. Ela era
doente, sofria do coração; muito tempo depois de ela morrer, ainda havia remédios
em cápsulas de hóstia no armarinho da sala de banho. Ema pequena encontrava
também peças de enxoval, penteadores, uma camisa com violetas bordadas que se
esfarrapara quando ela lhe tocou.
Mas a recordação foi emuldurada, como um quadro, pelo ralo do
confessionário. A mãe deitada, como um mármore pronto a ser despachado para o
museu, dentro do caixão vermelho. Ema teve a impressão de que o caixão era
escarlate. Ouvia o borbulhar das orações, o tinir do hissope na caldeirinha de prata e
que ritualmente aspergia a morta de água-benta. Ela tinha já o peito ensopado, e Ema
condoeu-se. Essa dor acompanhou-a sempre; aturdiu-a com um sentimento fútil, que
era o de desgarrar das lembranças mais assustadoras da vida.
A segunda informação do amor foi colhida nas termas do Vidago, ao ver os
noivos que se escapavam para o parque. Um delírio sonso, um trémulo
contentamento que era temor de perder o prazer gozado. Via nos olhos dela esse
pudor cansado que se vai transformar em submissa calúnia do amor vivido. Os gestos
perdiam a casta admiração de serem correspondidos; ele abrasava-a de beijos na
sombra cálida do parque; e a noiva, sempre indefesa dos olhares estranhos, sentia a
violação dos gestos na ironia dos hóspedes. "Porque se resigna? Ele não vê que a faz
sofrer?" — pensava Ema. Tinha pena da jovem, tão corrompida naquele desejo
precipitado. Ele chegou a despir-lhe a roupa interior diante dos olhos de Ema, e a
possuí-la em público, cego para quem andava pelo parque. A carne branca, com veias
azuis no macerado das coxas, fez estremecer Ema. "Porque a não poupa?" Achou que
assistia a um suplício, mais do que a uma cena de amor.
Os criados riam-se; as matronas trocavam olhares reprovadores; o chefe de
mesa chegou a dizer alto que os noivos não deviam sair do quarto. "Porque suporta
tudo?" — pensava Ema. Era um enigma para ela o humilhante discurso em que se
perdiam, ele solitário na perseguição do prazer; ela, abandonada, na confiança que
havia de ser um dia veneno das recordações. Embora guardasse o decoro delas e só
libertasse pequenos flocos de frio e nostálgico sentimento. "Como éramos novos" —
diria ela, cruzando as mãos no ventre deformado.
E não reconhecia a noiva das termas, com as pernas abertas e como cruxificada
contra o lenho da alta faia do parque. A segunda informação do amor não a deixou
segura, só rebelde, que é fraqueza indignada.
Como não tinha já mãe, e tia Augusta era uma inútil, foi preciso esclarecer
Ema para o casamento. Era ridícula uma preocupação assim, tanto mais que Marina e
Branca tinham dito o que sabiam. Sem fazer-se rogadas, sem deixar de borrifar a
roupa lavada, instruindo Ema com o melhor da sua experiência, que era
acompanhada duma treva propositada, que serve ao mistério de persuasão. Branca
contava as suas relações com os homens como quem folheia uma lista de
informações. Ema sabia que ela se lembrava do seu último amante, e que ele era
partilhado ali como uma hóstia, corpo e alma devorados e amados. Nos primeiros
tempos do casamento, Ema não podia afastar da beira da cama o belo Nelson; o rosto
dele, nobre e compassivo, dava-lhe protecção nas revelações da carne, que não eram
surpreendentes. Carlos não sabia muito de alegrias. Achava o prazer uma forma de
preencher o tempo quando o trabalho não apertava. O trabalho era o seu pretexto
mais agudo para evitar enfrentar-se com a mulher e algo de assustador que ela
significava: uma espera de mostruosa inquietação e perseverança, como se fosse
rasgar-lhe as entranhas com os dentes brancos. Os dentes de Ema sempre o
assustavam, carnívoros, grandes e caveirais, se quisesse isolá-los do lindo calor do
rosto. Carlos era como a mulher, na função de receber o insulto do sexo; e ela, a
apavorante imposição ao desejo que se furtava a ser mais uma vez acendido. Parecia
que não ia acabar nunca o castigo do sexo; que Ema, ou outra, não ia perdoar-lhe
nunca mais a sujeição, a fome, a repetição nauseabunda do sexo. Toda a memória
desqualifica o amor; a vergonha, o ódio de partilhar esse flagrante desnudar do corpo,
eram obstáculo à liberdade de ambos. Carlos lembrava-se dos bons tempos com a
primeira mulher, aprovada pelas Paivoas, que lhe chamavam "a calçuda". Ela usava
calças grossas de fazenda, como se as herdasse dum tio padre; porque sofria de
reumatismos, de espondilose, e precavia-se do ar e do vento.
Faziam um amor como uma cataplasma, separavam-se logo, ele enroupando-se
entre as pernas com o lençol, ela saindo da cama para verificar se a porta da cozinha
estava fechada e se os gatos estavam fora de casa. Não denunciava jamais o calor do
coito, isso seria uma traição imperdoável. E Carlos apreciava esse respeito de velha,
a exumação do sexo uma vez por semana. "É uma boa senhora, devo-lhe muito" —
dizia, fazendo da gratidão um revulsivo da alma que se ia tornando apática e
analfabeta.
O pequeno Carlos, filho quase tardio, que escapara a ser mongólico, no parecer
do pai que se julgava uma vocação recusada, estava a parecer-se com Ema. Isto
comoveu-a. Como sempre que se achava em risco de descer da sua representação
sempre com qualquer coisa de régio, como se equilibrasse na cabeça uma coroa, ela
tomava um ar agressivo; uma agressividade viril. Amava a criança como se
emendasse um exercício escrito, procurando fazer parecer-se esse amor a um texto
completamente clássico.
Enquanto Ema Bovary deixa perceber o equívoco, porque é um homem
desencorajado da sua virilidade e se refugia no travesti, Ema Paiva era uma mulher-
espectáculo. Quando a mulher se dá em espectáculo, prefere uma retórica viril;
criança crescia, sujeita ao bizarro comportamento da mãe, que lhe dizia: "Tu és um
homem como eu te ensino a ser. Não terás decepções se me imitares". Imitar Ema era
surpreender a sua doutrina de caçador, o porte de arma (assim podemos chamar os
atractivos da moda e um perfume cinegético que vai desde o repentismo da palavra
até à degradação dela), a posição vencedora tão usada pelas vamps do cinema, como
Marlene, a cavalgar a cadeira, como o corpo dum homem. Homem feminino,
oferecendo os joelhos como inspiração à virilidade da mulher. Marlene, vestida para
a noite, com casaca e laço branco; a noite do homem urbano que é uma forma de
vingador da figura doméstica, do professor Unrhat, ocupado com os instrumentos
frustes da ordem escolar e da respeitabilidade.
A noite, também para Ema, tinha os acessórios da virilidade, o sexo não
mutilado, a graça lúdica de tudo o que se não destina ao essencial da sobrevivência.
Ela saía com Pedro Dossém (que já não a acompanhava tanto, desde que a mulher o
ocupava nas suas participações no open ibérico), e tudo se transformava. Os olhos de
Ema brilhavam, ela era agitada por um desejo devastador; e Pedro Dossém tinha
dificuldade em travar o seu génio de destruição, um génio a que o cómico se
misturava como um moderador de cabeceira. Ela sabia fazer rir os homens, e nisso
não era uma Bovary bem copiada. Ema Bovary não tinha qualquer sentido de humor,
e daí a sua impaciência estéril. Mas Ema Paiva começara por dividir o riso em duas
penadas: o guerreiro, e o alimentar. O primeiro pertencia às suas surtidas com Pedro
Dossém, cuja imbecilidade servia de escudo à depravação. Ele amava-a com uma
falta de temperamento em que não se podia deixar de supor uma singularidade
secreta para o amor adolescente e as suas dolorosas consequências. Ema era solidária
com essa penosa fase, nunca mais acabada, do amor da puberdade. Se não o
compreendia, não o fazia sofrer com um riso guerreiro. Era mais o riso alimentar que
às vezes deixava escapar, mas isento de troça; como quando via tia Augusta a passar
com o seu pequeno regador em direcção à varanda-estufa, e ela lhe parecia um
gnomo, pronto a desaparecer e a materializar-se mais além. Esse riso tem um sabor
vitaminai, protege o coração de se tomar a sério, mas não o mumifica, não o
acostuma a descobrir a impureza dos outros. O que é muito puro faz rir; mas com
riso nutritivo, de quem come uma fruta doce e, ao mesmo tempo, se alegra de não a
pagar caro com o arrepio da desilusão. Porque o que faz rir desilude, e nisso intervém
o riso guerreiro, que é uma forma de compensar a decepção.
Pedro Dossém pediu de empréstimo o riso de Ema, como se pede um lenço,
com aquele grau de intimidade pronto sempre a sanar uma situação embaraçosa. Ela
ria-se, mas ficava assente que era porque ele próprio não se levava a sério. A ironia
de Ema era uma cautela proposta à situação criada: a imbecilidade de Pedro Dossém,
cujas molas Ema sabia existirem fora dessa definição, a do riso. Snobs,
homossexuais, homens que viviam secretamente com os seus lacaios e um
regulamento que movia um cosmos ilusório, o do poder, eram os que Ema
frequentava. O próprio Osório a fizera entrar nessa seita extraordinária, que as
famílias tomam por aberrante e da qual participam as pessoas de letras e do teatro.
Fizera isso um pouco para se livrar dela; porque uma mulher como Ema, se não está
ligada a qualquer vertigem sobrenatural e não pratica, pelo menos, a levitação, torna-
se incómoda. Para a ocupar não há como esse meio propenso a admirações súbitas e
traições que devoram a interpretação de cada um, o seu papel de burguês extraviado.
Pedro Dossém foi durante muito tempo o seu reposteiro-mor e depois
desapareceu, solicitado pela golfista-lírica que era a mulher dele e que ele dizia
descender dos Coetman da Bretanha. Reposteiro-mor e pajem de lança eram os
atributos de Pedro Dossém que Ema declarava com o seu riso que rodeava de
desprezo o mundo e o sentimento mais íntimo das pessoas. Era por isto que Carlos
nunca conseguira fazer dela uma cúmplice no casamento. Ema preferia ser falsa
amante a ser esposa. Era mais salutar e mais conforme a evolução do cómico;
enquanto ser a senhora do doutor lhe parecia duma infinita insipidez. Lembrava-se da
primeira vez que saíra sozinha e fora tomar o comboio à Régua, levando até ao cais
Marina como aia que servia a sua mudez e cegueira; porque Ema tinha os olhos
fechados e a língua travada, tudo lhe parecia existir como pretexto da sua
passividade.
— Eu vi — disse Marina, e os olhos azuis cobalto brilharam com o brilho
obtuso que lhe era próprio. — Eu vi embarcar a nora da Condessa, uma tarde como
esta. E lembro-me só da luva enrugada no punho pousada na janela da carruagem. Eu
senti que era capaz de morrer por aquela luva. Até me apeteceu chorar.
Ema pensou que a frágil casca humana estala facilmente com o efeito duma
coisa que triunfa do imaginário, como uma luva que adere à pele; parecendo a pele e
não sendo, como um texto parecendo a vida e não sendo ela.
— Não te esqueças de temperar a carne — disse, a meia-voz. Ficou de pé atrás
da portinhola, a ver a figura de Marina a diminuir e a reduzir-se a um ponto na gare
da estação. A condessa, que era neta da Senhora, casara na região das Landes com
um fidalgo endividado, trazendo com ela a sogra, exemplo acabado de brasão de
armas gotado de sangue azul. As Mellos tinham-lhe a raiva bem parecida que é
tesouro de invejas bem vistas. As Mellos recebiam Ema à merenda e apoiaram o
casamento dela com Carlos Paiva, "Embora ele não tenha a sua linhagem" — diziam,
sedentas de diferenciação. Entre elas e o mundo pairavam timbres com flor-de-lis e
torres e leões de escudo. Eram muito "pafúncias", como lhes chamava o lavrador
Cardeano, mas castelonas de boas contas e interessantes como figuras entre clericais
e hereges. Não perdoavam ao Papa o aggiornamento nem ser da Europa infeliz com
muitas pragas em cima, de judeus pobres. A francesa, sogra velhíssima da condessa,
adivinhara em Ema uma anomalia, uma passada em falso que a fizera transpor duma
só vez duas gerações. Da mãe Ema (destinada a morrer cedo porque esgotara
depressa o sentimento escarnecedor da vida, que nos defende e nos liberta) até ao
lugar que a jovem Ema tentou ocupar, havia um abismo; ou, pelo menos, um espaço
vazio. O adultério era ainda uma forma de se situar no campo positivo que as
mulheres aceitam como uma actividade menos irrisória das suas vidas. Mas com
Ema Paiva isso já não bastava. Subira demasiado na escala das suas imaginações e
era difícil servir na moldura da jovem Ema do Romesal, quando os desejos fictícios
lhe bastavam.
Depois achou-se apoderada pela vontade de amar, quando o baile lhe descobriu
um horizonte deslumbrante; teve a necessidade dum sentimento que era o apelo para
algo de distante e nobre, sendo-lhe indiferente poder obter isso. "Eu queria ser igual a
alguém que eu forçava a amar, desempenhando o papel desse alguém" — disse a
Lumiares que, como outras vezes, sentiu inveja dessa aspiração de mulher, que a
elevava acima da fraca ideia que tinha dela. Nem podia ser doutra maneira. Não há
nada de esplêndido senão na sujeição de alguém, e os jogos do imaginário dependem
dessa infiltração da personalidade acima da criação. Resta a mulher, produzida
depois do homem e portanto singular nos vestígios dessa aparição subalterna.
Apesar do seu desprendimento vadio, Ema estava ligada a Carlos pela
habitualidade do casamento. Quando voltava do Vesúvio, depois de o trair, Ema
sentia ciúmes do marido. A facilidade com ele suportava toda a matéria do adultério,
recusando-se a considerá-lo uma praxe do próprio matrimónio, incomo-dava-a. Não
encontrando Carlos em casa, como se ele fosse a mulher desordenada nos seus
deveres, irritava-se e fazia uma cena violenta. Ultimamente, o casamento estava
fundado nesse discurso secreto das suas relações em que o sexo tomava foros de pura
ficção. Já não dormiam juntos, mas havia neles uma expectativa mais ardente do que
se fossem um casal tradicional.
Sobretudo Ema não falava disso. Sentir-se-ia desonrada se admitisse ter
ciúmes de Carlos. E não eram senão ciúmes, ou uma inveja alucinante por qualquer
privilégio que não queria encarar, como, por exemplo, o apreço que Maria Semblano
tinha por ele. Apreço por aquele homem medíocre, junto do qual ela não conseguia
despertar da sua solidão.
— Não sei o que fazem juntos, mas acho que há qualquer coisa de ridículo nas
alegrias intelectuais — dizia Ema. Ela punha de parte os seus colóquios com
Lumiares, que eram lições enfadonhas e às quais ela não prestava nenhuma atenção.
Não deixava de admirar a orgulhosa resignação do marido, e exasperava-se porque
ele não parecia molestado; nem sequer convencido do que toda a gente sabia, que
Ema o enganava.
Era mais do que meter-se na cama com outro: era fazer do casamento uma
paisagem em que ela se materializava como as ninfas, mas a que não dava outra
significação senão a de paisagem, no sentido mais frio e mais ausente. Ema ficava
desconhecida, revelada como uma película que se mergulha na água, o mistério do
sexo pressionado pela operação fotográfica, mas que fica o que é: uma soma de
funções caricatas, porque todo o movimento é caricato. E, possivelmente, a terra não
se move, por essa razão dizia Pedro Lumiares.
Até à morte havia que constar esse estilo de vida, o conjugal,
insuficientemente elaborado e também sempre adiado para melhor oportunidade de
solução. Carlos não queria descobrir mais nada do que lhe era consentido por uma
realidade convencional; e Ema não se deixaria limitar pelo quase-encontro dos sexos.
Preferiam ambos um imaginário que se pode materializar através duma comédia sem
qualquer intenção de responder aos seus exercícios da verdade emprestada. Era uma
verdade emprestada o que os fazia ficar juntos e amarem-se. Outra coisa seria
insuportável.
Como Nelson disse, quando apareceu no Romesal como comprador, sendo já
um abastado proprietário:
— Não, nunca me separo das mulheres com que me caso; é como deitar à rua
as alegrias da impureza.
CAPÍTULO IX
UM CENTRO DE MESA PARA ROMÃS

O mais provável da história das pessoas é dado pelo que vai anunciando a sua
pobreza essencial. Sem essa pobreza, de causas e efeitos, a vida humana seria muito
mais dolorosa.
Tomemos como exemplo David, o que foi rei aos trinta anos do povo de Israel
e, no cúmulo do seu triunfo, se comportou como um bailarino vulgar, manifestando
pobreza de espírito. Ele conhecia a armadilha do poder, que é fechar o círculo dos
efeitos em volta da informação indizível do homem: se a sua pequenez não fica
incólume e se ele não a preserva da transcendência, acontece que a fragilidade
humana se decompõe e surge a depressão, tão antiga como a vida mental na terra.
Aconteceu com Saul essa plenitude de significação, e ele foi um rei não só escolhido
entre a multidão, por possuir a estatura mais elevada, mas também como aquele que
se devia manter acima dela em todos os sentidos. Não se protegeu com a pobreza de
meios humanos. David teve muitas vezes que dissipar-lhe a tristeza tocando harpa
aos seus pés. Não era a música o que o acalmava, mas a pequenez de David, capaz de
confiar nos prazeres reais deste mundo. A sabedoria, sempre prestes a evaporar-se
porque a sabedoria é uma designação do desejo, só pode manter-se intacta pelo seu
lado inarticulável — a pobreza de espírito. David, ao materializar o imaginário,
sucedendo a Saul, não abandonou o pastor de pés ligeiros capazes de trocar as voltas
aos seus negros desejos.
E nem sempre, como depois se provou. Um dia, Ema teve ocasião de entrar na
casa onde há vinte anos se dera o baile que tanto a impressionara e que mudou o
rumo da sua vida. Pareceu-lhe o salão mais pequeno. As tábuas do soalho rangiam e
os reposteiros tinham manchas amareladas. Via-se a mesa da copa que ela
surpreendera carregada de doçaria e jarras de sumos: a laranja, da pálida espuma; a
groselha, como sangue fraco acabado de correr das veias. Aquilo que tanto a
comovera, no silêncio da tarde azulada pelo nevoeiro, fê-la gelar de receio
extraordinário.
— Se eu soubesse que as coisas eram assim, não tinha rompido com a minha
vida decente.
Lembrou-se das mulheres sentadas contra a parede, segurando as bolsinhas em
cima dos joelhos e olhando o vazio com o seu alvar orgulho que nem de leve a
notava, apesar da beleza magnífica de Ema. Elas não a reconheciam, não lhe davam
sequer o lugar dos criados de libré preta e que ela fazia por não confundir com os
convidados. Apenas não mudara a impressão quase dolorosa do braço de Osório na
sua cinta, quando ela tropeçou no tapete. Fora uma gratidão estranha que traçara no
coração de Ema o arabesco do amor. Procurou com os olhos o tapete em que os pés e
o vestido cor de açafrão se enrolaram, e viu-o, meio dobrado, uma ponta levantada
como para o retirar dos pingos de chuva que as telhas deixavam entrar.
— Os telhados estão uma desgraça. Sabe quanto dinheiro é preciso para
compor estes telhados?
A criada grave, que envelhecera a abrir e fechar as inúmeras janelas da casa,
deitou-lhe a mão porque Ema ia caindo. Havia buracos no chão, aproveitados para
deitar venenos dos ratos. Se parassem de falar, o roer duro das ratazanas ouvia-se
como uma obscenidade. Ema estava ali para avaliar alguns objectos a ser leiloados. A
casa (o escorialesco edifício que tanto impressionara Ema) não se desmanchava, mas,
depois da morte da mãe de Pedro Lumiares, servia de pretexto a uma almoeda. Ema
não viu os candelabros de vermeil com cupidos esculpidos, nem as porcelanas azuis
que tanto a fascinaram na sua fugaz passagem, no baile.
— Quem fica com a casa? — perguntou. Entrevia a luz de uma alcova onde,
na cama alta, decifrou um prazer de corpos, há muito tempo ali enlaçados. O coito
dos ricos, sem a infâmia da dependência, um consumo apenas de parentesco,
descrevia-se nessa rápida composição da cama coberta com uma colcha branca.
— A casa, não sei. É um encargo muito grande. Só os telhados, é uma fortuna
para serem reparados.
A mulher vivia obsecada com a água que tinha que aparar em bacias e potes,
que a acordava de noite com o seu estalido de chicote. Mostrava-se ofendida com a
indiferença dos amos e o seu absentismo, que, segundo ela, estava eivado de
intenções malignas. Sabia que qualquer dia lhe faziam as contas e a punham na rua.
Eram senhores para isso.
— São senhores para isso — disse, num desabafo.
Ema deu-lhe algum dinheiro, que ela fingiu recusar duas vezes, conforme o
protocolo da antiga servidão. Já não usava o avental branco, não usava mesmo
avental nenhum, como prova da sua emancipação; mas havia no olhar da mulher
outra forma de humilhação, que era a profecia de ser uma narradora apanhada na
armadilha da anedota humana. Pedro Lumiares despediu-a efectivamente, não por
economia, mas por pudor. Não quis que ela presenciasse o destino das Jacas, que
foram vendidas para turismo de habitação e se encheram de gente abusadora que
roubava plantas do jardim e levantava os pratos da mesa para verificar a marca.
Nesse Inverno, o estado de Maria Semblano piorou. Ela estava perto dos
setenta anos, o que era para Ema uma fonte de êxtases maliciosos. De tempos a
tempos deixava perceber que não lhe restava senão escrever os seus contos da
Cavèrneira como forma de revolta camuflada.
Não pensava Ema que a morte é a mais devorante das paixões; e que quando
alguém parece impaciente com a sua decadência, está a entrar em profundidade na
identidade da morte. Privando-se dos prazeres da vida não renuncia, mas descobre a
Natureza como resumo do Universo a que se entrega completamente.
Maria Semblano era uma rival a recear muito mais do que quando, mulher
ainda desejável, arrastava uma pequena turba de curiosos, se acontecia embarcar na
estação para o Porto. A sua écharpe sarapintada voava fora da janela como uma
serpente alada que a seguia, lambendo-lhe os cabelos ruivos.
Ema percebia que o marido ficava mudo com as suas pequenas alusões
satânicas; isto irritava-a ainda mais.
"Nunca aprendo" — pensava ela. Pois sabia que o desdém manifestado por
alguém é uma forma de a sobrestimar. Há muito tempo que não via Maria Semblano
e nunca lhe perdoara o papel que tivera no casamento de Lolota. Não que fosse um
casamento falhado, mas porque isso ligara mais Carlos à Caverneira. As mulheres
adúlteras têm um lado de artista do ressentimento. Para chegar a esse imperativo da
liberdade sexual, é preciso percorrer um caminho indispensável em que se acumula o
despeito, a mágoa, da organização familiar.
Com Ema, as coisas "traziam água no bico", desde os tempos mais finos da sua
infância. "Trazer água no bico" era expressão muito usada por tia Augusta e
significava subtileza e uma série de veículos de intencionalidade. Ela vivera numa
casa em que as mulheres predominavam, o que lhe dera uma noção de vertigem
feminina, de falta de compromisso didáctico; porque as jovens que a rodeavam eram
todas entregues a um divertimento especial, o de desesperar dos homens. Sentindo
prazer com o desejo que despertavam, nem por isso tomavam a sério esse contrato do
amor. Para elas, amar e ser amada era sobretudo uma comédia dell’Arte, com o seu
Arlequim e Colombina que, sendo docemente sinistra ao combinar dois homens
opostos ao serviço de uma ilusão, fica fora de cena durante toda a representação a ser
injustamente amada por ambos. De todos os modos, Arlequim e Pierrot encontram-se
na pele de uma mulher e executam variantes graciosas dos seus passos.
Mas ela não está lá. Os próprios artifícios que lhe atribuem, e de que
Polichinelo se apropria, por pura inveja da feminilidade, não são a sua satisfação
maior. Ela pressente que uma misoginia qualquer escolta; que se trata de a marcar, de
a tratar injustamente. Ema tinha a impressão de que o sentimento mais persistente a
seu respeito era o da injustiça. Para chegar a isso, adulavam-na e procuravam deixá-
la desprevenida para, de repente, atacar de maneira mais cruel. A injustiça parecia ser
um objectivo profundo, e a sua essência difícil de descobrir.
Mas enquanto Ema estivera naquele viveiro de mulheres, nada lhe podia
acontecer, nem de bom, nem de mau. A injustiça não tinha perspectiva, as relações
não se degradavam porque o contrato da injustiça não se fazia. A única vez em que se
sentiu aflorada pela injustiça, num colégio de raparigas, foi isso possível porque uma
aparência sensível do masculino se manifestou. A professora de caligrafia, com os
pêlos no queixo e uns olhos que se desviavam das alunas de uma maneira
pecaminosa, acendeu-se em cólera, quase por combustão espontânea, e aplicou-lhe
fortes reguadas nas palmas das mãos.
— Que bem me sabe! — disse ela, como se comesse um doce, um "papo-de-
anjo" ou uma bolacha de hóstia. — Escrever Manuel com um "m" pequeno é um erro
imperdoável.
— Eu não escrevi com um "m" pequeno. Faça favor de reparar.
— Reparar? Que desaforo, minha diabinha! — E deu-lhe mais quatro valentes
reguadas. A injustiça sabia-lhe bem e despertava o seu lado cantante. A voz trinava,
os cabelos do queixo vibravam, um prazer fazia-lhe palpitar as narinas; o que se
passava por baixo daquelas saias devia parecer-se a trovões e raios. A injustiça
produzia deleites gloriosos, e a professora, uma vez experimentando essa poção
gostosa, ia querer mais. Ema voltou para o lugar. As mãos ardiam-lhe como se
estivessem mergulhadas em água quente; parecia-lhe mesmo que tinham inchado
como um gordo sapo fumador. "Ela não fica por aqui, agora que me caçou", pensou
Ema.
Conhecia o prazer da injustiça e como se desenvolvia no corpo das pessoas;
como abria brechas e gretas, e levantava os beiços, e arrepiava a nuca, e dilatava a
vulva que se fazia potente e macha. Só a injustiça conseguia esse efeito. Com Ema
nunca acontecera, mas a primeira vez arrastava outras. Percebia como havia
delinquentes contumazes, sempre a entrar na prisão e a ser julgados; e outra vez
levados ao banco dos réus e esmurrados ou, pelo menos, privados dos sapatos e das
meias. Quando lhos devolviam, eram os dois do pé esquerdo, pura declinação da
injustiça pura. Ema disse, escrevendo ao pai uma carta fina e roçagante como uma
saia de seda:
— Traga-me umas luvas de Inverno, podem ser azuis escuras. Ou então
brancas, com barrinhas.
Cardeano sabia que ela não usava senão luvas de pelica, muito justas, que lhe
desenhassem a mão. Pensou que Ema queria alguma outra coisa, e mandou Marina
averiguar. Ema disse:
— Se não for para casa, fujo daqui e sabe Deus aonde vou parar. Ao muro da
estação, não me importa.
— Mas porquê? — Marina estava estupefacta, e os olhos azuis piscavam de
espanto. Não era muito esperta, e Ema dava-lhe que pensar; no geral era comedida e
não se acreditava a ira que via nela.
— Tu não percebes, Marina, minha tansa. Apanharam-me de ponta e não me
vão largar. Sou como um diospiro bem maduro e rasgam-me até eu suar o doce e o
azedo.
— Quem?
— Nem vale a pena dizer.
— Mas quem? Tenho que contar ao seu pai. Trataram-na mal?
— Não tenho escapatória agora que cheiraram o medo e viram as minhas mãos
a escorrer água. Nós destilamos água quando temos medo.
— Que fez assim de tão mau, menina Ema?
— Nada. Ela pensou que escrevi Manuel com "m" pequeno.
Eram altas gramáticas para Marina, que só se acobardava quando a menina
tinha aqueles lumes do colégio interno, que durou pouco. Ema voltou para casa com
doze anos e o pai destinou-lhe um professor de latim, e a reitora do patronato falava
com ela francês. Leram de parceria o Robinson Crusoé, o que, para programa, era
insólito. Mas Ema não deixou de tomar ensino desse curso, sobretudo das aulas com
o abade, homem sério e que a mandava recolher atrás da porta, quando ela o despedia
reverencialmente.
— Não é bom que nos vejam assim.
Ema não entendia, mas, vendo-se no espelho, rimando os anéis do cabelo com
os olhos profundos, achou que não era bom estar na moldura da porta, que a fazia
retrato dos desejos. Mas ganhou embirração ao abade e às declinações de latim.
Estava, como se dizia, uma senhora, e reinava no meio das criadas como uma infanta
típica. Nem faltavam os bobos à sua volta, o Cândido e o Candidinho, que eram
gente de algo decaída. Faziam recados e, às vezes, iam para Lamego, comer o rancho
do quartel; não porque tivessem fome, mas porque era gosto libidinoso ser pasto das
chalaças dos recrutas.
— Não tens mulher, Candidinho?
— Tem dentes, tem dentes.
Queria dizer que era despesa o casar e não podia sustentar amiga. Cândido era
mais regular no juízo, só calado como um mocho num amieiro. Pequenos ambos, de
boné ou chapéu roto, o povo amava-os com singular afeição, que é a que se dá aos
mal-aviados, de que todos se culpam um pouco. Ema disse:
— E o Candidinho?
— Morreu já há muito tempo. Teve um enterro como só visto.
— Ele?
— Ele mesmo. Vestido como um lorde e passeado numa carreta com franja
dourada. Parecia um santinho, branco como a cal e mimoso. Tão mimoso!
Ema lembrava-se de lhe fazer partidas e de o mandar pelas portas pedir um
litro de paciência.
Ele ia e voltava à noite, porque aproveitava para vadiar e entreter-se nos
lavadouros onde as mulheres falavam de vivos e de mortos. Paciência, não trazia.
Voltava o forro dos bolsos e saíam deles cotão e baraços, chaves velhas.
— Não há paciência. Perguntei e não havia. Nem cara nem barata. Não há.
Tia Augusta abanava a cabeça com reprovação; não gostava do desfrute dos
pobres e apoucados. Mas Candidinho era mais feliz com enganos, do que com
justiça. Bebia o seu púcaro de café e ficava ao sol, alagartado, o feltro preto enterrado
até aos olhos com uma arte clownesca difícil de imitar. Seria tão doido assim ou
percebia que o riso lhe rendia para a malandragem, que era vocação distinta e que ele
prezava como marca de fidalguia? Era irmão de Ritinha, mas ela mais soberba
quanto ao efeito da sua raça, que era gananciosa de trabalho. Trabalhava ferozmente,
como outros fazem guerra e nela abrem trincheiras e praticam escaladas. Ritinha era
um fenómeno de balde e sabão amarelo; que depois acabou, quando os soalhos se
afogaram com alcatifas.
Ema disse:
— Nunca vi ninguém tão esfregadora e caprichada. Deitou-se para trás no
cadeirão, onde o pai morrera e que tinha uma capa de linho remendada, sobre o couro
surrado. Ritinha nunca lhe dera que pensar, nem nada. Mas agora removia os
bloqueios da memória para trazer as almas acima das labaredas, fazendo-as despontar
nuas e inocentes do seu mar de línguas rubras. Pensou que nunca salvamos os outros
das chamas em que ardem e que não parecem sulfurosas mas que o são. Ritinha,
caganita de rato de antiga estirpe, polia na pedra do lavadouro os encardidos sacos da
baga; como se lavasse a bandeira das cinco quinas e ao lábaro cristão restituísse a cor
e a formosura. Assim mesmo. Com igual catadura de condestável, ânimo de porta-
bandeira, sentimento de Magna-Carta. E, no entanto, quem adivinhava essa proeza
linda? Quem beijava os cotos da sua ínfima nobreza e lhe levantava da testa a farripa
aureolada de espuma?
Quem admirava a fidelidade ao segredo da roupa suja, como se fosse
conjurada, maçónica, chama, donzela de Orléans e Fátima? Ela sabia de corrimentos,
laivos de sangue, prenúncios de má castidade, doenças que o ventre exuda, leite de
entranha dolorosa, mensagem de humor castigado, borra de fígado morto e do
coração confiscado ao tempo. A sua nudez não era impedimento de revelações; mas
Ritinha venerava o seu ofício, celebrante que era das vidas que expiram e soluçam.
As mãos vermelhas acariciavam a seda das peças íntimas das mulheres da alta, das
mulheres de comerciantes, surdas à inteireza da posição e que chamavam, entre as
seis e as sete da tarde, os caixeiros bonitos, como o Beto da escada, que tinha olhos
de sheik novo, olhos de ouriço verde quando caía dos castanheiros.
Quando Nelson se apeou do seu Mercedes branco, trazendo na mão um chapéu
de panamá, segurando-o com respeitosa maneira, como um criado, Ema disse para si
que, sem o amor, ele não seria nada. Via-se que, ao aproximar-se da porta da sala, ele
retinha as lágrimas a muito custo. Voltara do Brasil, onde se refugiara durante a
época mais turbulenta da revolução, e em que a sua fábrica de fiação fora ocupada
pelos trabalhadores. A mulher não o acompanhara. Era uma insípida senhora, com ar
de governanta de padre, e que lhe criara os filhos do primeiro casamento com uma
competência profissional; professora primária, nunca abandonara o ideal dessa
cruzada que era, no dizer dela, "abrir as inteligências". Parecia algo como uma
trepanação operada nas cabeças nodosas das crianças de escola. Tudo isto
amachucara Nelson, que era sobretudo o amante latino de Entre-Douro-e-Minho.
Melhor situado não podia estar, com a infância de seminário e a mão coberta de
equimoses feitas por um marido bêbado e abatido pelas sevícias dela, raposa que não
aquecia o leito, sempre em engenhosas artes de se evadir da cova. Não gostava da
casa pobre nem do homem bruto. Alegrava-se com os filhos, estampas de fidalgos
florentinos; o marido dizia que se deitava com eles, o que era forçar direitos de Papas
e de condottieri.
Nelson disse, com voz embargada, que tinha saudades do Romesal. Já
comprara uma propriedade escalavrada e grande como um condado, que não eram
grandes em Portugal. D. Egas punha-se rápido em Lamego, com duas tropadas dos
seus cavalos fulvos, indo do Freixo ou do Marco. Nelson estava tão velho que Ema
se interrogou sobre o efeito da riqueza nas veias, tão encordoadas e azuis apareciam
nas mãos do que ela chamava o belo Brummel. Ele sentou-se na beira da cadeira e
pousou no chão o chapéu.
— Não me conhecia se me visse na rua — disse, com uma polidez triste. Mas
tentava desafiar nela um louvor à antiga beleza, no que não foi bem sucedido. Ema
não estava a pensar em iludi-lo.
— Eu também estou mudada.
Na sala do Romesal zumbiam as moscas, e os estores manchados de caruncho
coavam a luz violenta. Era o Verão, em Agosto. Ouvia-se o fio de água arrulhar como
um pombo, ao cair e abrir--se na escuridão da mina. Ema encontrava-se ali não sabia
que pela última vez. Cardeano morrera e era preciso pôr cobro às despezas que a casa
acarretava. Ele tinha uma amiga que Ema despediu, não sem constrangimento,
porque ela fora, afinal, uma Nightingale pobre, alojada no quarto das castanhas. Deu-
lhe alguns móveis e roupas de cama, o que a encheu de gratidão. Depois disse que
fora roubada e que Cardeano lhe prometera uma vinha e, não se sabe porquê, o banco
de carpinteiro que estava ao abandono debaixo do telheiro, frente à cozinha.
— Para que quer ela o banco de carpinteiro? — disse Ema. Girava pela sala,
parava para folhear as velhas revistas que já estavam lá no tempo em que se usavam
plumas de galo no chapéus. No tempo da mãe, possivelmente. Deu, por u momento,
atenção a Nelson e mandou servir vinho fino.
— Não bebo. — Ele parecia envergonhado a dizer isto, lembrando-se das
tremendas bebedeiras do pai, que entrava em casa como um touro e partia a loiça
toda. Mabília fazia-lhe frente.
Grande e delgada, o lenço atado nos queixos, as mãos compridas e muito
sardentas, ela parecia Ifigénia que escapasse a ser sacrificada e envelhecesse num
anonimato desprezível. — A tua mãe ainda é viva?
Emendou, balbuciando, aquele tu que o remetia ao passado subalterno e que
era sobretudo direito de Cardeano à sua mesnada de trabalhadores da vinha e de
hortelões. Nelson pertencera ao número dos faz-tudo, que se chegam só aos ofícios
limpos e acabam por andar "de costas direitas" a servir moças com quem contratam
amores avulsos e riscos de prenhez. A mãe de Nelson tinha morrido. Ema não se deu
por entendida, porque a morte é uma vocação prioritária e é melhor não intervir
demasiado. Sentiu de súbito a respiração quente do homem no seu ombro e,
maquinalmente, levantou a gola, como se de frio se tratasse. Ele afastou-se
rapidamente; e veio, acima da sua nostálgica referência ao sentimento já perdido,
uma ira vagabunda que Ema conhecia. Os homens sempre a saudavam como com um
grito de guerra, uma vez dissipado o pacto do desejo. A ela agradou-lhe ser
reconhecida como inimiga.
— Não se vá embora. Não voltamos mais a estar aqui, eu e você. —
Subitamente veio-lhe à memória uma frase teatral de dois crucificados,
companheiros de combate: "Lembras-te dos leões de Megara?". Não era próprio
dizê-la, mas ficou satisfeita por lhe ter ocorrido. Nelson curvou-se para lhe agradecer.
Não sabia o quê, mas era sempre elegante agradecer, como um actor, mesmo diante
da plateia vazia. Olhou para Ema e achou-a bela; incomodou-o aquela beleza que
deitava por terra tudo o que fizera e por que lutara: os casamentos com mulheres
bisonhas, as mobílias de quarto herdadas das famílias rurais, pesadonas como elas, de
pernas torcidas e decotes na carne vermelhusca; como se fossem de vinhático.
Porque se empenhara tanto em enriquecer, a ter um Mercedes branco e camisas de
seda? Antes pusesse a arte em amar Ema e arrancá-la ao tempo do Romesal, quando
era possível ainda levá-la nos braços, de noite, como faziam os belos raptores da
Paramount.
Porque não a fechava contra o peito e ficavam calados, ouvindo-se só o
delicado espirrar da água no tanque e o crepitar das folhas ao sol? Não; já não era o
belo rapaz que, pela janela da cozinha, espreitava, como um fauno de tenra idade e
chifres curtos. Era um velho, e humilhava-o o facto de ter um coração ainda cativo de
tanta beleza. Disse algumas palavras ocas, e saiu do Romesal para sempre.
— Pareceu-me mais pequeno — comentou Ema, em casa, ao jantar. Carlos riu-
se, como sempre fazia quando um rival entrava no túmulo, e ele ficava fora a fazer
pequenos bochechos de aguardente. O que Ema achava indecente.
Ritinha disse, com gestos rasgados, que achara Nelson baixinho. Riu-se com o
seu ar triunfal e que anunciava uma sabedoria de alcova, um grande breviário de
paixões e ritos. Ela conhecia os abortos mais precavidos, que deixavam nas mulheres
uma anorexia, um recurso ao imaginário da infância, protegida sob o jugo paterno
cuja moral repousava na importância do dinheiro e do rendimento. A filha rendia
enquanto era engendrada na sensibilidade doméstica, no espírito do casal que,
mesmo sem conjugalidade, representava uma ordem fundamental em que a
sociedade, mesmo com crises, se radica. Mas Ema não pertencera a esse número; era
já um exemplar desembaraçado da austeridade primitiva e que dedicava ao supérfluo
uma parte da fortuna; e que fazia do gosto um património. Ema não fora
propriamente educada; mas a súbita ilustração por intermédio dos grandes parvenus,
como Pedro Lumiares, deixava-lhe uma margem de abuso que se parecia à liberdade.
Lia muito, mas não lhe servia senão para se comparar a esses artistas que produziam
uma obra que tinha influência nos outros, deixando-os a eles próprios impassíveis.
Era isso que ela invejava acima de tudo: o dom da impassibilidade. Imitava-o, o que
lhe dava um encanto de inércia interior, como acontece com as mulheres projectadas
no ambiente à sua volta, sobretudo se esse ambiente é desafogado e até luxuoso. O
nome de "divinas", das vamps dos anos trinta, provinha dessa fragilidade que se
consuma na imitação.
Não seriam nada se não fosse a aprendizagem do gosto e o compromisso com
os arranjos que o revelam. Escolher um vestido, retocar o rosto já por si encantador,
ocupa a essência da mulher e conjuga-se com o puritanismo da grande cortesã que se
deixa reconhecer na cama mas que se isola no universo, porventura um universo
onde o desejo não consta.
Pedro Lumiares, em certas horas crepusculares quando contemplava Ema meio
deitada no sofá, uma perna dobrada e o pé da outra no ar, como um pequeno animal
que saltasse, sentia-se mergulhar no coração de uma vida fugaz mas genuína, em que
os desejos não se conduziam como tal. Não tinham tempo de nascer; a Beleza punha-
os à distância. Por isso, quando Carlos Paiva insinuava que Ema era frígida e até um
tanto andrógina (eram confissões destas, no auge da humilhação, que ele se permitia
ter com Maria Semblano), as pessoas acreditavam. A perfeição de Ema parecia tão
irreal como devia ser, e constatavam, com desprezo mal disfarçado, os esforços dela
para provar a sua feminilidade.
Mas o papel de mulher de casa não era o seu forte, nem ela parecia interessada
em representá-lo. No entanto, em certos momentos, quando Carlos era mais novo e
trazia convidados, Ema preparava uma noite deliciosa, sendo ela o centro da mesa,
com o seu lindo colo em que as pérolas rolavam; e as mãos brincavam com o talher,
parecendo acariciar uma ideia assustadora e, no entanto, carregada de esplêndida
passividade; como a própria faca de vermeil, a faca de manteiga, punhalzinho rombo
com uma doçura na lâmina sem fio. Um centro de mesa para romãs, fruta que não era
sujeita a podridão, que não se corrompia para lá da casca dura, cada vez mais curtida,
dura e bronzeada.
As conversas dos homens eram cultas e sentimentais; Ema aproximava-se da
janela com um copo na mão, segurando o cotovelo com a outra mão livre, como via
fazer às estrelas de cinema, esguias, como lampreias, nos seus vestidos de cetim.
E essa imitação lisonjeava os convivas; não sendo uma traição às suas
expectativas, na verdade pouco inventivas e originais, Ema agradava-lhes.
Todavia, era para a criada, Branca, que os desejos deles se dirigiam. Seguiam-
na com os olhos, apreciavam-lhe o cabelo crespo na nuca, os olhos longos, de um
azul de safira. Entreolhavam-se rapidamente entre eles, tendo a vaga percepção de
que estavam a colaborar numa orgia, trocando sinal de comparência nalgum lugar
propício onde pudessem fornicar com Branca.
Quando saíam, já não se lembravam disso. E recebiam nos ombros os
sobretudos trazidos pela solícita camareira, regateando mentalmente a gorjeta e
dizendo para si que isso não se usava mais. Ela, humildemente, ficava à porta, até
que os via entrar nos carros e, com o cigarro mordido ao canto da boca torcida,
procurar a chave da ignição. Ema disse:
— Não era eu que entrava naquela geladeira.
— Mas tem aquecimento, ou não tem? — Branca recolhia os guardanapos,
calculando quantos tinham ficado intactos e lhe poupavam o trabalho de os lavar.
Estava morta de sono, e ainda tinha forças para se orgulhar dos amos, que recebiam;
um mundo de novas emoções era nela uma alvorada que deixava para saborear no
outro dia.
Agora já não davam jantares. Nem Ema, nem ninguém. Muita gente
abandonara as casas, a vida tornara-se insustentável, a comida e o trabalho doméstico
encareciam muito. Já não havia férias e vindimas e pedantes reuniões nas quintas,
que eram propriedade de multinacionais. Ou, então, gozavam do regime de
fundações culturais, ou simplesmente se integravam no turismo de habitação. Mesmo
o Vesúvio estava em riscos de ir parar a esse tipo de negociações, e o mordomo
Caires propusera fazer dele um complexo de lazeres com pesca desportiva e jogos
náuticos. Não sabia nada dessas empresas, mas tinha algum dinheiro de parte e
atingira as três fases do tédio que é roubar sem perigo, comer sem fome e envelhecer
sem experiência.
À parte o desejo por Ema, que tomara foros de obsessão à medida que já não
lhe parecia uma desgraça, mas uma distracção, o mordomo Caires não tinha coragem
senão para explorar os outros. O duro feitio de chefe de pessoal, que alternava com o
do feitor e o administrador (cujo modelo fora o último marido da Senhora), mudara-
se numa instrumentalização do poder — as suas economias. Ema ficou siderada
quando Caires lhe disse de quanto dispunha. Naturalmente, ele mentiu-lhe.
Impressionar a mulher, e sobretudo uma mulher como Ema, admitia princípios de
conjunto, como o da pirataria. O resto era a diferença entre o flibusteiro e o corsário.
Se ficou surpreendida, isso não durou muito. Ema não era de molde a deixar
que se lhe impusessem pelo dinheiro. Embora não negasse a importância das honras
e a da fortuna, tinha a moderar-lhe o entusiasmo uma raiva em simultâneo com a
leviandade do mal-amado.
O mordomo Caires, meio separado da mulher, que vivia em Carlão com as tias
feiticeiras interpretando os desenhos rupestres da área para benefício das suas artes, o
mordomo Caires, dizia, já não tinha pachorra para a moral cristã nem para nenhuma
outra. Andava pela casa a renovar o isco para os ratos e desenvolvia o seu lado
mesquinho e falacioso. Às vezes telefonava a Ema para lhe dizer que Osório a
esperava; dissimulava a voz atrás de uma baeta, o que encurralava Ema entre não
acreditar e julgar-se vítima dalgum maníaco. Tinha uns repentes de pânico se o ouvia
abrir portas, o que ele fazia com uma cautela que parecia estar a desarmadilhar uma
bomba. Mas era inofensivo e não sabia como acabar aquilo que começara sem aval e
sem lei — a própria vida.
Depois de muito tempo, ainda tinha ciúmes de Fortunato. Mas tratava-o com
esmeradas atenções, como se cuidasse assim comprar-lhe a fidelidade. O mesmo
acontecia com Carlos Paiva. O mordomo Caires tinha-lhe afecto profundo, fiado em
que se uniam assim contra os corrosivos impulsos de Ema e os amantes de que eles
faziam multidão sem ordem de idade e até de sexo.
Porque Carlos tanto se via ameaçado pelo desejo das mulheres como dos
homens; e achava neles instintos de moscas carniceiras, capazes de fazer de Ema
pasto de imundos apetites. Carlos ligava-se ansiosamente a todos, pedindo-lhes
socorro para não serem cúmplices de Ema na traição que ela preparava. Porque, para
ele, Ema não pensava senão em desviar os homens, casados e solteiros, do bom
caminho; e eles eram, em última análise, vítimas da sua sedução, e bons rapazes que
ela ia esquecendo, substituindo-os com um infantil satanismo.
É claro que Ema não correspondia a esse retrato, e as suas aspirações sexuais
eram muito mais modestas. Fartara-se do seu inferno que era ser matéria deliciosa e
privada de alma; e dedicara-se a fazer operações na Bolsa, com algum êxito e
algumas decepções. Ela sabia que nunca conseguiria chegar à felicidade vulgar e que
qualquer outra lhe era interdita porque não tinha suficiente desejo para a obter. Os
seus vícios tinham-se posto de acordo, não para a perder, mas para desacreditar as
virtudes. Era tão rica de improvisos, réplicas, saídas espirituosas e cortantes que, se
tivessem um objectivo destruidor, o mundo ficava à mercê desse pandemónio amoral.
Mas não passava de fogo de artifício, explodindo em luzes sem importância.
O que melhor a definia era uma gelada lógica que negava os fins e os
princípios da raça humana. A tentação esbarrava aí, com algo de cruel, contraído na
prática duma forma de ascese inveterada. A faculdade de sentir estava muito além da
sua vida orgânica. Sentir, como percepção intelectual e não como apetite das coisas.
Dirão os leitores que uma mulher como Ema não existe.Eu direi que sim. A
mulher, aos cinco anos, percebe o que há de exasperante e triste na vida, em todos os
detalhes. E Ema, especialmente avisada ao ver pelo ralo do confessionário a mãe
defunta, foi para sempre, e plenamente, impregnada de uma amargura horrível. Como
alguém que sabia estar cumulada de riquezas e as vê perdidas. Nada mais ama;
deseja apenas, mas é tudo parte da memória e não factor da concupiscência.
Em cima, o oratório, que parecia à criança de seis anos mal cumpridos um um
salão dourado cheio de fadas e amores de asas, como as das aves. Tudo brilhava e
despedia fulgores, o presépio era forrado de brocado e as suas pobres palhas
escondidas. Tudo podia de repente ter vida; o menino mexia-se com doce pestanejar
e as mãozinhas agitavam-se para uma carícia.
Mas, diante dessa cena deslumbradora, abaixo do degrau do oratório, estava o
caixão de Ema, a mãe. Ela vestia a roupa do casamento, e um véu cobria-a até aos
pés. As velas ardiam em volta, e um lenço de cambraia atava-lhe o queixo para que a
boca se não abrisse. Ema olhava pelo ralo do confessionário e não perdia um só
pormenor. O oratório estava fechado e parecia só um móvel que contivesse copos e
garrafas e latas de bolachas já bichadas. Só o caixão, que lhe pareceu vermelho, feito
de laca vermelha, constituía uma afirmação sublime, pela sua forma capaz de sugerir
a ressurreição. A mãe podia erguer-se e olhar para todos com agradável rosto.
Dizendo: "Não vamos brincar mais, são horas de ceia". Estendia ao marido a mão e
ele ajudava-a a sair do esquife. As mulheres, tia Augusta primeiro, apagavam as
velas, apertando nos dedos o morrão. Ema ia colher as lágrimas de cera ainda
líquidas e esperava que arrefecessem para ver as formas que tomavam, lindas formas
crispadas, lindas surpresas.
— Esta menina está fria como água — disse a cozinheira, que se aproximou.
Aqueceu-a com cobertores, levou-a para o lume e deu-lhe sopa bem quente. Tinha os
olhos rasos. — A mãe foi para o céu — disse ela. Ema achou que era impossível. E
que, como isso, tudo era impossível. O amor também.
— Bem, o meu livro está pronto. Chama-se Contos da Caverneira. Que acha?
Carlos não pôde ignorar a servidão que Maria lhe impusera com a riqueza que,
afinal, partilhava escassamente. Mas o fascínio do poder mantinha em reservada
aliança os que se aproximavam por adulação e temor; os sinais imperceptíveis da
cumplicidade estavam em tudo que ela tocava.
A fortuna era uma espécie de magistrado que, sem pretender punir, descobre na
alma dos outros o merecimento da punição. Porque a aturava com fidelidade
inalterável, há tantos anos? É certo que a Revolução dera à moral burguesa, que
Maria perfilhava, uma sacudidela muito forte. Mas seria mesmo uma moral o que
Maria tinha como regra de vida? Ela recusava aos outros o direito de castigar ou de
premiar; assim fizera com o marido, mantendo-o na sua casa de prazeres ao fundo do
jardim e obrigando-o a usar da sua autorização para gozar com as mulheres que,
também ela, lhe escolhia. Não as "do muro da estação", mas moças limpas e, de certo
modo, bem comportadas. "Ajuizadas", porque se entregavam a uma vida que era
muito diferente da vida desregrada. Casavam com pequenos funcionários e só muito
raramente "davam em droga". Maria Semblano orgulhava-se disso. A Revolução
abalara os princípios da culpa e da honra como compromisso social. Os jovens
empresários, não sem a indignação pomposa dos filhos-família, impunham agora
uma atitude mais franca, visando o triunfo a todo o custo. Era uma espécie de
Renascença com a carreira aberta aos Médicis de todos os pontos da terra. A
linguagem fez-se solta e impertinente; não por desprezo para com o tom bem-
educado, mas por um gosto novo de actividade sensual; a boa hipocrisia de
antigamente ficava confusa e não sabia como se manifestar. Em geral, era a
comunicação social quem tomava o partido da moral e dos seus conformismos. Os
escândalos financeiros ganhavam foros de perseguição contra o "olhar de cima" da
nova geração. O mundo mudava. O que Ema não suportava em Carlos Paiva era o
seu romantismo balofo que encobria a saudade do grande século, o século dezanove.
Se pudesse sair à rua de cartola e luvas brancas, ele sentir-se-ia de certa maneira bem
sucedido. Ele queria as mulheres tímidas, contrafeitas nos seus saltos altos, absurdas
na sua beleza exposta. Aplaudia vivamente os concursos das Misses e o imobilismo
que a moda assegura. Ema era-lhe antipática, ainda que a amasse.
Por isso, o casamento estava cheio de pequenas perfídias e má-fé sexual que
minava a consistência das relações. Ema queria ir buscar fora de casa uma forma de
constância que o casamento lhe proibia na sua forma perniciosa de cautério das
paixões.
— Tu queres viver uma paixão grandiosa e ninguém está interessado — disse-
lhe Lumiares, que fazia gala de a lastimar. No seu entender, Ema era uma pessoa
comum em busca de situações incomuns; o que podia produzir uma bela tragédia, se
as tragédias se destacassem das notícias dos jornais entre a informação desportiva e o
dia da Árvore. Uma tragédia, como a que acontecera em Vale Abraão havia vinte
anos, quando Ema fora para lá, não ocupava senão duas colunas, com fotografia, e
depois o espaço de um anúncio para gestor de empresas, e, a seguir, nada.
Ema lembrava-se da matança de uma família inteira, por um dos filhos que se
dizia rapaz sossegado e de bom costumes. Ele pensava casar e já comprara uma cama
e um guarda-loiça, num dos armazéns de mobílias que se abriam à alegria castelã do
emigrante, capaz de uma euforia que se localiza como uma angústia respiratória,
entre o hiato e a boca do estômago. Ema viu-o, uma vez que voltava do dentista e
parou na estrada para cuspir um pouco de sangue. Era um moço sólido, de olhos
amendoados e rosto achinesado. Parecia um basco, de pura linhagem. Ela sorriu,
depois de enxugar a boca com o lenço, um lenço vermelho, dos que se usam para
limpar o excesso de bâton. Nunca mais o viu nem sabia quem ele era. Ficou muito
impressionada quando leu no jornal a história do crime e o reconheceu pela
fotografia.
— Arrepiei-me toda — disse, a Lumiares. Na realidade sentia uma espécie de
orgulho em ter cruzado com o assassino. Ele só poupara uma irmã mais nova; o resto
fora abatido como ovelhas, com uma machada ou uma foice de podar. Toda a gente
se assustou, e não se entregaram a muitos comentários. — Porque fez aquilo, até sei
porquê — disse ela, maquinalmente.
— A vontade de manchar a casa paterna está em nós todos. É um desejo
colossal de carregar com uma culpa que nos rói desde criança. — Pedro Lumiares
estava a levantar o seu passado com uma arte um tanto irónica. Não queria inquietar
Ema. A mulher, como cúmplice de Satanás, assusta-se facilmente. Senão, é ver como
Asmodeu e Lúcifer se comportam, usando de artifícios, normalmente artifícios
sexuais.
— Eu é que sei — disse Ema.
— O quê?
— O aborrecimento. É como se notássemos um defeito; como se fôssemos
uma porcelana com defeito, com um espaço em branco no lugar onde devia estar um
filete contínuo, de ouro. Não podemos ir à mesa do rei. Por pouco, mas não podemos.
— Isso é razão? — Ele calou-se, e disse depois: — Porque não? Ultimamente,
Ema estava a parecer-lhe estranha, e ele não admitia que ela tivesse consciência de
uma moral desprovida de filosofia — a que ele professava.
— Sabes? Começo a pensar que a vida não é um mistério. É um aborrecimento
muito bem conservado, é o que é.
Lumiares sentiu-se perder o posto de marechal que ocupava junto da bela Ema.
Bela? Já não era, ou ele via-a com olhos mais perspicazes. Uma beleza que não se
pode utilizar perde o seu lado favorável. Se pudesse, ele acentuava-lhe as rugas e os
traços mais banais do seu rosto; revelava-lhe melhor o aspecto anti-social.
— Sabes que tens um pescoço magro demais? Não és nenhuma Nefertiti.
Nem Nefertiti era nenhuma Nefertiti. Aquilo era um molde de artista. O que é
acentuado é o supérfluo, a realeza. Não é um retrato, muito longe disso. É um
enigma. Por isso parece tão belo.
Ema estava a ficar inteligente, e isso era uma beleza sobreposta àquela outra
que fazia mergulhar as pessoas no seio da culpa; de facto, anulando o desejo. Mas a
inteligência era ainda mais cruel, porque nem mesmo era objecto de contemplação;
era uma sobrevivência imparcial, e como tal não tem família, nem parceiros, nem
amigos.
Lumiares contava a impressão que lhe fizera a visita às grutas de Altamira. Era
como mergulhar no tempo inalterável em que a imitação reina. A inteligência é a fase
superior da imitação. Que aleijões viviam ali, não podendo acompanhar os homens às
caçadas, submersos numa escuridão que de repente se dissipava com a volta dos
guerreiros ou dos predadores? Acendiam-se grandes fogos, e eles traziam para a
mesa dos banquetes os animais sacrificados, que tinham ainda o movimento da
corrida nas patas delgadas; a inteligência recebia a informação da natureza, e
imitava-a. As paredes eram cobertas de figuras que pareciam vivas. Os homens
tomavam as azagaias para não serem surpreendidos, e espantavam-se porque o
bisonte continuava parado, na sua ruminante imobilidade, e não galopava pela
pradaria fora, ao ser atingido. A inteligência, às vezes alojada em corpos enfermiços,
a quem se lançavam restos que os cães não invejavam, voltava à escuridão da
caverna quando os homens partiam outra vez. No escuro, ela distinguia a forma das
coisas, o vento que faz ondular a erva alta, o perfil dos homens que se levantam e
correm brandindo as armas. A imitação disciplinava o tédio, o artista era tão
consumado como um Miguel Ângelo disforme e, por isso, preciosamente solitário.
Que faltava a Ema para se lhes comparar? O grau suficiente de imitação que
faz da pessoa um artista e não um portador de máscaras. A máscara é a baixa
ambição do imitador. Lumiares surpreendia em Ema aqueles trejeitos que iam ser a
causa das suas rugas; aqueles gestos extravagantes que simulam paixões verdadeiras.
Era um manequim dos seus próprios prazeres; só que ela sabia-se incapaz da
imitação sublime que é amar.
Lumiares dizia que Ema lhe parecia um homem que valesse todas as mulheres.
Isto explicava o seu gosto ambíguo em tê-la como amiga; ela não o obrigava a trair a
realeza viril, o que acontece quando os homens são reduzidos pela reputação da
feminilidade. Não pelas mulheres, mas pela reputação que os homens transmitem
entre eles a tal respeito.
Ema foi levada a um contrato estranho com uma gente que, de repente, se
tornou indispensável para ela. Não se tratava de amizade. As pessoas bizarras
exerciam nela uma atracção especial. Mulheres mantidas, homossexuais, narcisos
vagos que se entregavam à mistificação, entre a indolência e a glória! Ela era
benvinda pela sua beleza, algo de improdutivo, que a beleza descobre e que não
alinha com as responsabilidades fundamentais — a procriação ou o trabalho
integrado numa profissão. Embora Ema tivesse filhos, isso era-lhe descontado como
uma debilidade; e o marido, parte da sua história privada com direito aos erros da
juventude. Se não tivesse nascido de pais tão modestos, tão isolada das encruzilhadas
da aventura que compete a toda a excepção, Ema podia alcançar outra posição,
mesmo que fosse a título de vedeta sem ofício. Como uma Garbo, que não tinha
talento, mas recebera uma inteligência emprestada da qual nunca se separou; o
bastante para fazer a sua lenda, ao imitar o genuíno ou só a parte ligeira do génio que
é o voluntariado para a aristocracia. Garbo dizia: "Já fiz bastantes caretas." Isso
denunciava-a. Porque a imitação não são caretas, mas a afeição ao objecto imitado; o
amor, portanto. Mas ela não sentia amor, era demasiado limitada à sua imagem, e
com ela protegia a insignificância das paixões. E os homossexuais com quem vivia
não censuravam essa frigidez tumular, antes a douravam, como um fruto raro,
nascido entre duas estações, destinado a não ter mercado porque não era um fruto
comestível. Nos quadros de Jerónimo Bosch há essa atmosfera irreal, de uma beleza
feita de colagens e que não imita nada. É uma beleza em ruptura com o mundo,
ninguém dirá que é belo esse ciclo de disparates; mas tem algo de infinitamente
artístico, escarnecedor e ambíguo, como Ema e os seus amigos e a vida que ela podia
ter levado. Mas quê? Em Vale Abraão não havia nada que pudesse elevá-la e escusá-
la do sequestro em que todos andavam; uns com êxito, outros com fracasso, mas
sequestrados numa pequena e facinorosa obra humana, mesmo quando se chamava
obra social.
Maria Semblano, por exemplo: viúva temente a Deus, servia-se desse
parentesco para as suas ousadias literárias, acreditando que eram travessuras leves e
até recomendáveis perante a sociedade nova que estava a crescer como couve galega
num quintal, sem proporção nenhuma, excepto se o gigantismo for tomado como
uma proporção. Maria Semblano era ainda um preconceito tirânico com os seus
Contos da Caverneira, bem escritos, e cujo estilo todos admiravam. Mas admiravam
acima de tudo aquele sabor de despotismo que tão bem fazia ranger as articulações
linfáticas e que as deixava parecidas às articulações de um jogador bem treinado e
capaz de ganhar um campeonato. Tudo se passava na imaginação e ninguém ficava
mais apto, ao ser anestesiado com os Contos da Caverneira. O estilo era o símbolo da
tirania; a qualidade era o seu ferro a ser aplicado na carne fraca.
Ema entrou em deambulação pelos círculos da cultura sem, no entanto, ter que
cumprir um programa. Servia apenas para distrair as melancolias dos artistas pouco
susceptíveis a qualquer distracção. Convidavam-na, porque a bela mediocridade
poupa o coração para coisas mais disformes, como as coisas do génio.
Também entre os artistas Ema não encontrou o acolhimento que esperava. Não
lhe ofereceram paixões, como as que retratavam nas suas obras; também não lhe
reconheceram nenhuma fascinação. Ema continuava a dizer que, se iam a casa dela,
era para namorar-lhe a criada.
— São uns indecentes e deitam-me a cinza no leite-creme — dizia. Encontrava
furos de cigarros nas toalhas de mesa, e até lhe faltaram alguns talheres de prata. —
São selvagens, ou quê?
— Mas, querida Ema, não te exponhas a essas coisas. Deus sabe quanto lhes
custa não serem vadios a tempo inteiro. Deixa-os lá! É muito difícil entrar numa
ordem qualquer, comer a horas e produzir um trabalho chamado digno — falava
Lumiares.
— Bem — dizia ela. — Sou eu que não percebo nada. Mas acho que são uma
data de exploradores. Não sei o que querem de mim, que não sou rica, nem famosa.
— Tu divertes essa gente. — Esteve para dizer "divertes-me a mim", mas
deteve-se a tempo. Uma mulher julga-se sempre excluída dessa área de
entendimento, talvez o único sem hipocrisia. Ninguém ainda se informara sobre o
riso com absoluta competência, mas ele continha um forte ascendente sobre as
paixões. A mulher só era tão constante factor de riso porque isso era equiparado a um
exorcismo e dificultava que a perturbação se produzisse; a perturbação erótica que
chama a ira como sua última aliada. O riso incentiva a praxe das relações, que é, em
geral, abusiva e cruel. Ele foi instaurado como mediador de uma situação funesta,
dado o seu conteúdo miraculoso. O que não comove nem desperta o riso corre o risco
de se tornar agressivo. Ele não é admitido na área sacerdotal ou política senão
quando existe uma combinação de cultura que faz do poder um instrumento e não um
acidente vitorioso. O riso é uma protecção que visa aproveitar a discórdia para
localizar as probabilidades, tanto de acordo como de ajuste de contas. Os homens que
não riem confiam na ruína e dão-lhe nomes irrecusáveis.
Calígula começou por ser uma promessa risonha, e de repente deve ter notado
que o seu lado lúdico ia perdê-lo ou, pelo menos, tirar-lhe o trono. O tirano
manifestou-se quando o imitador se escondeu atrás do palco. Se Calígula se admirava
de amar tanto a mulher dele, era porque ele tinha uma boa influência sobre a sua
inteligência taciturna. Talvez fosse uma dançarina, de alguma trupe de judeus de
Filadélfia, desses a quem o apóstolo dizia que não eram quentes nem frios, e nós
acrescentaremos que eram risonhos.
Quanto a Ema, não era de risos, mas de chufas. Bastava estar um pouco
aquecida pelo vapor do vinho, que o espírito dela acendia-se e provocava um alarido
de troças e confusões.
A escola dela fora a mocidade no Romesal, com muitas criadas e gente de
lavoura, que são espadachins da palavra quando encostam, depois do trabalho. Ema
era do tempo ainda em que os cardenhos das mulheres, junto à porta da cozinha, se
enchiam de femeaço, umas velhas, outras novas, mas todas agudas em tirar partido
do riso. Era isso que as sustentava na pobreza imerecida. Todas tinham sonhado com
patrões rafeiros das paixões, que as recebessem na cama e as tirassem daquela
miséria toucada de resignação falsa. Eram orgulhosas, e o riso alimentava-lhes a
cólera e até a esperança; porque, mesmo à beira da morte, ainda sonhavam com
electro-domésticos e jogos de Totobola. O céu dos jogadores não é o ganho; é o
opulento milagre de ver a Deus num número de sorte. Pois o que é a sorte senão
misericórdia em chuva de oiro, como Zeus destinou à sua panasca Danae?
Ema não era de risos, mas não os repelia nem excomungava. Andava
ultimamente com gente galhofeira, mascarada de tribo desaparecida. Um dia, foi para
Marrocos levando o filho, e Carlos teve um desgosto, à moda metropolitana, dando
satisfações a Maria Semblano das suas avarias familiares. Ainda se lembrava do
tempo austero dos avós Paivas, em que um rapaz da casa engravidava uma solteira, e
os vizinhos foram dar condolências, usando meias palavras e começando por falar do
tempo. Falava-se do tempo durante um bom quarto de hora, e só depois vinha o
assunto em regra e a hóstia santa da conversação para entendidos: o negócio, o
contrato, o pedido de casamento. Ema, em Marrocos, era caso para pêsames. Maria
Semblano levou a peito aquela desfeita cometida contra o seu leitor e nomeou-o seu
testamenteiro. Passou-lhe pela cabeça uma ideia aguçada como um punhal; não o
punhal que lhe servia de abridor de livros e da correspondência, que era rombo e
meio desarticulado do cabo, mas uma fina adaga de aço azulado pronta a rasgar a
garganta de um ladrão pela mão da Morgiana que todos conhecem.
Carlos não ficou nem mais rico nem mais pobre, com a nomeação devida à
patroa; mas esta pensou, entre a cólera que é gerada pelo afecto que se não interroga
para não ter que se negar, que género de marido ele era afinal.
"Ter cornos é como ter sarampo; não acontece duas vezes". Pensou que ele
seria um homem regenerado do casamento, que lhe dera tantas amarguras e que o
tornara paciente com as mulheres. Porque sofrer pelo que se ama torna as pessoas
vulgares e atrofiadas; o orgulho perde-se e a alma também. Ema achava-o cada vez
mais sonso. Ultimamente, ia à missa e ajudava na colecta. Ela voltara do Norte de
África muito perspicaz em delitos sexuais; vestia-se de homem e dera nas vistas pelo
bom parecer e a graça ambígua. Vale Abraão mudara radicalmente. Havia tentativas
para manter as propriedades na mão privada, mas a ruína ameaçava as melhores; e a
pequena lavoura afundava-se com aquela insensata fantasia de se morrer patrão de si
mesmo. Até o grande império da Senhora sofria transformações, e a sociedade
familiar, que ela deixara acautelada de falência e má gestão, abria brechas insanáveis.
O mordomo Caires era um dos candidatos às vinhas que iam sendo vendidas quando
não emparcelavam com o território mais fácil de adaptar aos novos métodos de
cultivo. Era muito ilusório ter lucro da terra, mas havia ainda quem sonhasse esse
prazer de pisar terra própria e colher fruto da árvore. Em Vale Abraão, levantavam-se
os cardenhos que destemperavam a paisagem e lhe davam um aspecto de cenário
improvisado. Casas como as Jacas ficavam ainda assentes no seu chão arroteado,
cercadas por bardos pesarosos, sem viva alma por perto.
A capital recolhia os antigos senhores que apertavam o cinto e usavam uma
casaca com trinta anos nos casamentos das netas. Tinham medo de fazer um fato
novo, que custava tanto como um carro de pequena cilindrada no seu tempo. Não
reconheciam que estavam pobres, mas sim que tudo estava diferente. Despontavam
os empresários agressivos, como pugilistas num ringue de treinos, saltando de um pé
ao outro e ensaiando murros demolidores. Em vez de se chamarem Silva e Ferreira,
podiam usar os nomes de Tigres da concorrência e Leões do mercado.
Para essa gente, que Osório desprezava sem contudo os ignorar, Ema Paiva
não era mais a fantástica imagem de um erotismo quase só temerário e não
consumado. Ela, que constava ter tido intervenção nalguns pré-avisos da revolução e
que passara para o estrangeiro artigos para os jornais na sua bolsa de crocodilo, era
agora um objecto de museu. Preferiam as mulheres contratadas para um fim de
semana, pagas e seleccionadas por computador e que não interferiam nem nos
negócios, nem na família. Ema sentia que o vazio se ampliava à sua volta. O marido
passava a maior parte do tempo na Caverneira, a corrigir os contos de Maria
Semblano e a medir-lhe a tensão. O filho estava alto e desenvolvido; era bonito e
cauteloso com aquela mãe que não sabia como apresentar. Em geral, as outras eram
professoras ou executivas de empresas, médicas em grande número. Vestiam roupas
de tricot e tinham um colar de pérolas com fecho de esmeralda. Mas Ema, sem
reparar, ficara fora de moda com os seus gestos sacudidos e o ar de manequim
antiquado. Fora extraordinária, mas agora parecia dessas bonecas que acabam os seus
dias numa montra de província, os braços seguros com adesivos debaixo do vestido
estranhamente curto e de uma sensualidade caricata. Ema era um caso arrumado.
Carlos percebia, com alguma angústia (porque a velhice vinha a caminho com esses
pensamentos saudosos), que a bela Ema já não o incomodava. Em breve, os homens
não iam mais reparar nela nem desejar-lhe a companhia. Só os seus amigos marginais
lhe dedicavam algo que não era uma fidelidade, mas que se parecia com isso. Como
os desejos não eram motivo de nenhuma rapacidade, Ema não os estorvava e até a
tomavam como cúmplice. Ela sentia-se um pouco degradada da sua natureza de
mulher, mas era melhor do que nada ter amigos desses. Todavia, notava no olhar de
Carlos, às vezes, uma parcela de ironia porque era inútil tomar-se pelo que fora: um
perigo.
Ema não era mais perigosa. Nunca o fora; tinha limitações de toda a ordem,
era tímida, ainda que insolente.
Não perdera nunca o respeito pela castidade, e o oratório do Romesal
comandava até as suas ilusões. Aquela dourada corte de santos e santas, os palmitos,
as flores, as luzes, que recriara no baile, quando entrara pelo braço de Carlos,
procurando não tropeçar no vestido cor-de-açafrão, tudo isso era e fora o seu
doutoramento em artes marciais do amor. Quando estava deprimida e não pintava o
cabelo, quando a cantoria da criada a exasperava e o ruído do aspirador acabava com
o resto das suas forças, voltava o pensamento para o Romesal. Mas não via senão
uma casa insignificante e, nela, um movimento convulso de cadáveres. O pai
Cardeano a dar ordens com voz zangada (nunca falava normalmente, mas com um
tom ameaçador) e a bulha do galinheiro debaixo das janelas, ou o crepitar das
ramadas onde os pardais roçavam as asas em voo disparado. Não valia a pena
entusiasmar-se com o passado; Ele era tão medíocre como o presente. Marina casara
com um homem muito novo que tinha cadastro e que lhe pôs nos braços o filho de
outra mulher. Ela empenhou-se naquele passo miserável como se redimisse uma
culpa com ele.
— Porque és tão tola, Marina? O que te leva a aceitar uma coisa dessas? —
perguntou-lhe Ema. E Marina disse:
— É o meu destino.
Assim diziam as putas. Ema sentiu que as palmas das mãos suavam; era medo
pelo inevitável. Era medo e uma singular sensação de estar só no meio de um
turbilhão de factos que não condiziam uns com os outros e não tinham efeito no
silêncio do cosmos. Então, tudo era inútil: amor, compaixão, civilidade e
cumprimento do bem e do mal. Ema disse:
— O destino, sua burra, é a tabela dos heróis. Bem me parecia a mim que tens
muito de heroína.
Aquilo não soou bem a Marina, para quem heroína era mulher do fado. Como
as pessoas, mais dia menos dia, se desentendem, ela achou que devia achar pretexto
para isso. Nunca mais voltou a Vale Abraão e sentiu-se justificada da sua ingratidão.
Ema sempre a tivera ligada a ela pelo sentimento de partilharem uma história
comum. Deu por finda a história, e o sentimento evaporou-se.

CAPÍTULO X
UM RIO CHAMA OUTRO RIO

Tinha, entretanto, surgido a companheira sentimental. Era o título que se dava


à antiga barregã e à esposa da mão esquerda. Revivalismo do período afonsino, da
era da Reconquista, em que mouros e cristãos combinavam os seus prazeres à
margem dos ritos e das leis.
Não era nova essa ordem que explodia em numerosos ramos e desvios; em que
a repudiada se tornava amiga, e o rancor humanizado se permitia ser uma outra
actividade do desejo. Só que, muito profundamente, habitavam feras desconhecidas,
capazes de fazer valer o sangue e a matéria carnal de que eram feitas.
Ema interrogava-se se de facto Carlos era tão paciente como parecia; se era tão
desinteressante como parecia. E se, quando ia fechar-se no escritório de Maria
Semblano, corrigindo os Contos da Caverneira com os marcadores cor-de-rosa e
verde, ele não estaria a alimentar horríveis pensamentos de vingança e furor. Como
qualquer personagem hamletiana; como um brigão sem armas e um galo sem
esporões.
Então ela surpreendia-se com essa visão rapidíssima do charco em que alma
humana vive, deixando só um braço a descoberto, que o prende ao ramo verde da
ressurreição; que não se dá, ou raramente acontece.
— E se ele for um monstro num covil de esterco? Só que não pode contar com
nada para se declarar e atingir os fins que o saciam?!
Lumiares disse que ela estava enganada; e que, se ajuizava assim de Carlos,
era porque estava, ela própria, comprometida naqueles pensamentos. Mas cada vez
mais Ema temia o marido, embora ele fosse extremamente sensato e propenso a tudo
perdoar. Evitava pôr-se diante do carro quando ele chegava; na luz dos faróis, Ema
destacava-se contra a porta da garagem que, às vezes, vinha abrir. Sentia a ocasião,
acossava a fera que havia nele. Ela afastava-se, quase a correr. "Um dia vai atropelar-
me", pensava. Via-se esmagada no chão de cimento, ouvia quebrar os ossos das
pernas, e, num movimento brusco, encolhia-se contra a parede. Seria ilusão ou, de
facto, ele demorava a travar?
Enganava-se Ema quando percebia que Carlos abria com um ligeiro atraso a
porta do carro, como se estivesse a recompor-se de uma tentação, no escuro, dando
lentamente a volta à chave na ignição?
— Viste demasiados filmes de terror, menina — disse Lumiares. Esses filmes
em que os casais se enrolam em partidas de morte como se dançassem não sei que
borradas freudianas. As pessoas são muito mais toscas e mais incapazes.
Ele levou-a uma noite a uma festa que Ema não imaginava acontecer-lhe; uma
festa kitsch, com gente moldada em volta de um sebo duro e amarelo, que era a alma
passiva dos séculos. Ardia um grande lume numa lareira onde se podia assar uma
vitela, e aquela chama clara subia pela chaminé, explodindo em finos pontos
estrelados; como se a varinha de uma fada a tocasse. As mulheres aqueciam as
nádegas contra a boca do fogão, trocando, entre si, ditos obscenos, de uma alegre
promiscuidade. E tinham a prender-lhe o ventre cintos como faixas, que brilhavam,
fazendo-as parecer Urracas e Tarejas em boas condições de fumeiro com pimenta do
reino a dourar-lhes as carnes. Mas eram todas boas senhoras, prendadas e com arcas
de enxovais.
— Olha bem, Ema, olha! O dinheiro e a fornicação, mais nada. Não saem
disso, e podiam estar num bom quadro flamengo, a beber entre perdigueiros e
aleijões. As coisas mudam muito devagar, se é que mudam. Não julgues que todos
têm uma vespa a zumbir-lhes no coração e a meditar crimes nefandos. Improvisam,
não medem senão o vão das janelas para pendurar umas cortinas. E são boas pessoas.
Carlos é como eles.
— Não — disse Ema, afrontada. — Carlos, não. Ele não usa sapatos de ténis
com o smoking.
— Pior para ele. É preciso uma espécie de sensibilidade para inverter as
modas. O teu marido é um burocrata. Não te vai estrangular com uma meia de nylon,
nem rachar-te a cabeça com um atiçador.
— Eu não disse isso.
— Não disseste, mas desejavas que ele tivesse ideias dessas. As mulheres
querem sempre fazer um bárbaro de um incapaz. Ele é um incapaz, capacita-te disso.
A maior parte das pessoas são como ele. Não queremos acreditar, mas são. Deste
cabo da tua vida, Ema, porque teimaste em ser a esposa viciosa de um homem
razoavelmente digno. Nem ele é digno, nem tu viciosa. As volúpias do desprezo não
as conheces. Se ele deixa morrer um doente, dizes que foi azar e não que foi uma
asneira. Sabes o que tu és, Ema? Uma noviça arrependida do casamento. Não tens
vocação, tens só tiques. Um deles é o de ter amantes.
— Já percebi. Não te mereço como amigo, e como outra coisa muito menos.
— Não te zangues. Eu não quero amantes, como tu não queres. O diabo da
tentação é uma metáfora, vê se aprendes. Sabes o que nós sabemos fazer melhor?
Lixar os outros. É também uma metáfora, mas não tem a ver com a outra.
No meio da festa, tão diferente do baile que assombrara a sua provinciana
dimensão, e em que ela quisera adivinhar dons de amante supremo no seu par, ao
abraçá-la pela cinta, Ema perguntou-se o que estava ali a fazer. Uma mulher, que
usava borzeguins de veludo, como se fosse um pajem florentino, estava a explorar a
cova dos dentes com a língua; e essa operação ocupava-lhe o espírito, a carreira e as
tendências filosóficas.
A província, irremovível, com as suas almas capazes ainda de escalar castelos
ameiados e suportar cercos, comendo ratos e ervas beldroegas, mantinha-se com algo
de cavalheiresco à mistura. Um calor que cheirava a perfumes opiados e a chouriço
assado na brasa exalava-se do que fora povoado com tira-dentes e feiticeiras e era
agora a cidade com supermercado e modelos copiados de Chanel. A cópia invadira
tudo; era o tempo da barateza choruda, da bugiganga, do brandy zurrapal, do Porto
de bar e das aventuras que não se distinguiam de tristes fricções da carne. Não havia
ideias, e um abatimento dos nervos sem memória estava em vez da pessoa com
classe. Falar em génio parecia corromper uma democracia que era o sucedâneo do
grande homem que, em todos nós, se debate entre ser falhado e ser feliz. A
impotência tornava-se numa imaginária suspensão dos sonhos, a que faltava o ranger
de dentes da inveja. Porque não se invejava mais nada; apenas se convidava a
degustar uma serena mediocridade todo aquele que parecia tentado para a tragédia da
criação.
Lumiares assistia a esse rompimento com a passado e o advento das turmas
políticas em que o programa era ignorar a imaginação fazendo recuar as paixões para
o domínio das técnicas. Mas o mistério ainda era a forma inquebrantável de ter
amigos e inimigos, que se confundem sempre face ao infinito a explorar. Lumiares,
que pertencia a Vale Abraão, um lugar onde a alteração da alma humana ainda era
possível, disse:
— Sabes porque somos um país de poetas?
— Sei lá! Perdi uma luva, e atirei a outra fora porque tinha perdido a primeira.
Depois encontrei-te e tive que atirá-la ao lixo, que era o que tinha feito à segunda.
Isto é poesia ou o que é?
— É poesia, porque é um centro de irrealização. É por isso que os portugueses
são poetas. De outra maneira, trabalhavam e eram artistas. Em Vale Abraão somos
mais artistas do que poetas. Lembras-te como era no Romesal?
— Lembro-me. — Ema chegou ao fogo da lareira os pés calçados com botas
que lhe escondiam a perna aleijada. Um fumo leve desprendeu-se do couro molhado.
— O trabalho era duro, nesse tempo. Eu própria trabalhava muito e não achava que
fosse bonito. Tinha as mãos estragadas por mais que me poupasse, e uma sombra
verde no indicador esquerdo que era de cortar o caldo. Bacias de caldo verde como se
fossem cabelos verdes. As mulheres ficavam velhas de tanto lavar e esfregar;
carregavam o tojo das matas e vinham pelos caminhos, como mulas. Depois eram os
filhos, os abortos, os dentes caíam-lhes depressa, as pernas ganhavam varizes. E os
olhos? Os que eram azuis, ficavam esbranquiçados, como os dos cegos. Os que eram
pretos, pareciam sujos de pó. Branca, tu nunca a viste quando era nova; uma
veneziana, dos terraços do Ca D'Oro, uma festa para Doges; e até Dante, se a visse
nos estaleiros, fazia dela uma leoa para combinar com o leopardo de Beatriz. Sabes?
As mulheres eram santas, agora andam por aí à procura do significado de tudo. Como
os homens. Uns bandalhos, uns e outros. Não têm mais estilo nenhum; não estão
acima das coisas.
— Estás a agredir-me?
— Não. Tu és das melhores. Não fazes intriga só para produzir um efeito
lógico de significações. Não dizes mal dos outros, e assim não matas três pessoas ao
mesmo tempo: a ti, a mim, e àquele de quem se diz mal.
— Fui eu que te ensinei tudo isso.
— O gosto é meu; a inspiração é tua, não nego isso. Um dia que as mulheres
percebam que os homens as inspiram mais do que as caracterizam.
— Não és pessoa de intrigas, isso não te faz popular. E, todavia, vives no meio
da intriga. Maria Semblano, as tuas filhas, toda a gente, apertam o cerco à tua volta,
como se fossem os teus piores inimigos. Dizem coisas infamantes a teu respeito.
Porquê?
— Querem ver uma lógica no que faço. Maria Semblano dizia: "Ela vai acabar
no muro da estação". Não era especialmente cruel dizer isto.
Era a maneira de achar lógica no que parece desarticulado e sem significação.
Ninguém suporta a não significação. Toda a catadupa de palavras que se inventam
todos os dias serve para nos aproximar da significação das coisas. A técnica não
substitui o pensamento; o que é, é muitíssimo mais calmante, a técnica traz com ela o
folheto com a significação. A pessoa, não. Eu não. Maria Loreto não se cansa de me
chamar nomes, mas não são insultos, são significados, que lhe escapam, essa é a
verdade.
— Aprendeste a ter senso de humor. Tu não tinhas senso de humor.
— Sempre tive senso de humor, sobretudo a partir do momento em que notei
que as asneiras dos outros não coincidiam com as minhas.
Ela retirou do lume as pernas e pôs-se a descalçar as botas, que tinham
aquecido demasiado. Simona veio servir o chá. Os pés brancos de Ema causaram-lhe
um estranho mal-estar. Era como se visse os pés de uma dançarina chinesa, os pés
flor-de-lótus, sempre ligados para ganharem firmeza e poderem aguentar o bailado
em pontas. Mas quando eram libertados das ligaduras, aparecia algo de repugnante. A
significação era um estratagema quanto à repugnância.
Pedro Lumiares serviu-se de açúcar com uma colher de sopa.
— Não quero fingir que não gosto de coisas doces.
— Eu prefiro as amargas — disse Ema.
— Olha, uma mulherzinha qualquer, de um romance qualquer, disse o mesmo.
Vocês gostam mais do azedo do que do doce.
— Não ligues — disse Simona. — Ele é sempre assim quando não tem que
fazer.
— Mas nenhum homem tem que fazer. Por isso inventam tantas coisas.
Nesse dia não disseram mais nada, e Ema partiu para o Vesúvio, vendo que
Carlos estava retido na Caverneira por Maria Semblano.
O acordo ortográfico desencadeara avarias que ela não sabia resolver, e era o
médico quem se ocupava do polimento da obra de Maria. Mas havia mais do que
isso. A rica senhora propusera-lhe o cargo de revisor permanente proposta
irrecusável, pelo montante da remuneração. Carlos Paiva viu-se aposentado com
honra e proveito e livre da terrível parceria conjugal que o trazia sempre em
sobressalto. Ema era uma praga, como todas as mulheres em quem a inteligência
captura a libido. A senhora Semblano dizia que ele não merecia aquele tratamento de
choque que era o casamento com Ema. Dava-lhe agora, como todas as viúvas, para
falar bem do defunto, e fazia descrições maviosas da sua felicidade e virtudes
matrimoniais.
— Ela é uma tarada — disse Ema, com o desabrimento que se tornara a sua
imitação da sensualidade e que fora usado pelas vedetas da década de trinta. De resto,
havia copiadoras da Mae West nas mulheres gordas que se tinham por sinceras.
— Ela é uma tarada. Não pode ser outra coisa, uma mulher que fez de um
marido vicioso um admirador. Ela facilitou-lhe as amantes como a Pompadour fazia,
com o pretexto de ter corrimento. Mas o que ela era, nós sabemos: alguém que se
tinha por histórica e eterna. Essa era a paixão que escondeu de todos até à morte e
que a punha à distância das outras paixões. Como sei isto? Porque eu sou assim.
Carlos Paiva ouvia estas coisas, entre indignado e poeta do seu estado de
casado. Carlos, poeta? Não. Ele era simplesmente um distraído do bem e do mal. Ele
adaptara-se à sua realidade de pessoa sem outros pensamentos senão os dos outros,
que, de resto, o aborreciam e faziam dormir santamente. A vida, como teoria ou como
espectáculo, era para ele um bom sonífero e nada mais.
— Não sabes o que dizes, e o que te faz mal é estar sempre lançada no jogo da
verdade. Dizes tudo o que te vem à cabeça. As mulheres são doidas. Só há dois
pensamentos que são suficientes para elas: "sou jovem" e o outro "sou velha".
Ema achou que tinha um marido menos banal do que supunha. De resto, o que
é insignificante não é sempre estúpido. Ela fez a mala e foi para o Vesúvio.
Há dois anos que não ia lá, e encontrou a casa fechada e os cães desaparecidos.
Uma buganvília roxa crescia de forma selvagem pelo muro do terraço. Muitas das
folhas das palmeiras tinham secado e ninguém as cortara. Havia um silêncio singular
nas vinhas. Caires, sem o seu paletó branco, usando só a camisola de gola alta, que
na revolução se tornara uma forma de evitar a gravata, objecto de elites, apareceu
desconfiado. Não tinha o ar de a vir receber, mas antes parecia incomodado; o
desprezo lia-se na sua cara redonda e com a palidez macerada dos que servem à luz
das velas e recebem o vapor dos assados.
— Não tenho o quarto pronto — disse. — Quanto tempo pensa ficar?
Noutro tempo ele não se atrevia a interrogá-la. Pegava na mala e ia abrir as
portadas da casa inteira, preparando o chá no bule de barro vidrado. Osório tinha-o
dispensado, e a quinta ia ser vendida. Ema não lhe respondeu e atirou com o velho
casaco de marmota.
— Estas cortinas estão um nojo. — A Senhora, no seu ar de mesária, aprovava,
como sempre que Ema falava. Porque havia um acerto daqueles entre as duas? Talvez
a consciência do mal, como caso natural e frequente e não como anomalia, as unisse
numa espécie de confissão partilhada. O mal era o que não passava ao imaginário;
era o que dispensava qualquer projecto; era o que ocupava a memória como a história
da vida humana. Mesmo quando as coisas puras e fantasiosas de alegria aconteciam,
eram saboreadas como um mal mais precioso, como uma vingança que resultou na
perfeição.
A Senhora sabia que o mal era constante e absorvente; que lhe fizera saltar os
pêlos das sobrancelhas e do queixo; que lhe aguçara as orelhas e marcara as olheiras
como o debrum duma máscara. O mal descosia as costuras da juventude,
desmanchava o corpo com o seu estilete e fazia-o nodoso, adiposo, verde de bílis,
roxo de sangue venoso, coberto de sinais que cresciam, sardas que brotavam na
escorrência da parda melinita.
As verrugas, os cabelos mortos, as unhas duras, os tiques, as névoas, os
descolamentos, as calosidades, tudo o que é um oceano de morte ainda em repouso,
mas que esconde a sua profundeza, a sua totalidade inchada pelo mal. Ema tirou um
a um os anéis e pousou-os na beira do lavatório. Toda ela era um longo pensamento
que renunciava à vida. Se Osório aparecesse à porta do quarto, bonito homem, com o
ar abusivo e fino, como quando a segurara pela cinta, impedindo-a de cair, no baile,
ela não saberia o que lhe dizer. A insinceridade parecia-lhe mais aconselhável,
quando se tratava de conhecer o mal.
Deitou-se na cama, vestida, olhando severamente os pés cruzados um sobre o
outro. "Porquê a nudez há-de ser sensual?" — pensou. A Olímpia de Manet não lhe
parecia sensual, e era isso que indignava: que um motivo habitualmente focado como
efeito da sensualidade fosse afinal tão insípido. Ema sorriu, admirando a sua meia
preta, outro traço que saturava a imaginação e era agora desprovido de significado. O
dedo grande do pé soltara uma malha da meia, e uma escadinha, como a de Romeu,
subia pela perna acima. O mais ligeiro movimento acrescentava mais degraus e ela já
chegara ao joelho.
O mordomo Caires veio perguntar se ela jantava. Eram dez horas da noite e
não se percebia na casa nenhum movimento, como dantes, quando a cozinha ficava
cheia de gente e, nos armazéns, iluminados com luzes mortiças, como as antigas
estações, as cubas, altas como a Torre de Babel, pareciam escorrer sangue pastoso.
Poças de vinho, na terra saibrenta, sugeriam um fantástico desfecho de crime. Ema
sempre estremecia ao ver a tripa do vinho boiar nas balsas. Para fazer arrepiar os
turistas, que nada sabiam do vinho do Porto, contavam-se lendas sobre o seu fabrico.
Dizia-se que a cor e o gosto de sarro, o perfume espesso, eram dados com a
maceração de um cadáver dentro dos lagares. Mas era verdade que se usavam
aromas, como o chá, para tornar o vinho mais quente. A canela era um deles. A
Senhora gostava do vinho com um toque de açúcar mascavado, embora raramente o
provasse. Ema disse:
— A Senhora, que vão fazer com ela?
— Tudo entra em partilhas, os retratos, tudo.
Ema convenceu-se de que a Senhora tinha algo a confiar-lhe e que a olhava
com particular insistência. Reparou que tinha um livro na mão. Nunca tinha reparado
nisso. Era um livro de contas, provavelmente. Estava vestida com um corpete escuro,
com soutaches; e rendas finas saíam-lhe das mangas. Um laço no cabelo fazia-a
parecer mais austera, em vez de a rejuvenescer. Ema pensou, enquanto comia um
pouco de arroz com vitela, que teria gostado de viver no tempo da Senhora ou, pelo
menos, assistido ao seu triunfo de empresária. Mulheres como ela gozavam de
extraordinária liberdade, logo que assegurassem os seus direitos com a sólida
fortuna. A Senhora tivera amantes, comandava o preço dos vinhos e dos vinagres, e
constituía um motivo de orgulho para a região. Contava-se que ela blasfemava como
um homem e que todos respeitavam as suas cóleras. O filho casou-se de surpresa
com uma gorda rapariga, dessas que são infiéis como são capazes de comer pastéis; a
Senhora fez uma coisa inaudita: pagou uma fortuna para tirar as ordens ao padre que
casara o filho. Vingança inútil, porque o filho continuou com o sacramento do
matrimónio às costas, e a mulher teve que ser fechada no Vesúvio para não o enganar
com amigos e inimigos. Na reclusão deixara de ser cabra, não de o merecer. Não
havia um único retrato dessa mulher que se vestia de vermelho e que diziam amar o
clero e a magistratura da província inteira. Ema disse:
— Bem empregada — como se dizia no Romesal, quando se tratava de
aplaudir uma partida. Ema voltou para o quarto e despiu-se completamente, como se
estivesse a cumprir um ritual. Também aquilo não tinha significado. As coisas tinham
chegado a esse ponto: o desejo era uma delinquência ou não era nada.
Mas o que não era, absolutamente, era aquele comprometimento com os
Mistérios de Elêusis de que tanto se falava na Grécia e possivelmente noutros
lugares; e que perdeu toda a razão de ser quando Alcibíades disse que tudo aquilo
não era mais do que fornicação pura e simples. Mas não era. Alcibíades fora rejeitado
por Sócrates, ele, o mais amado e sedutor dos homens. Quando a sedução esbarra
com o sofrimento de a ignorar, então não há mistério e tudo se torna fornicação.
— Porque me chamaram a Bovarinha? — disse Ema; e a camisa de noite
escorregou-lhe até aos joelhos num só salto desde a cabeça. Era das poucas mulheres
que gostavam ainda de camisas de noite. Vira talvez muitos filmes sobre as Cruzadas,
em que as mulheres se vestiam assim, tomando um aspecto perfeitamente ambicioso,
de anjos e aparições no género. — Bovary era uma esposa modelo, só que não teve
quem a apreciasse. Não teve um homem que a namorasse na rua dizendo "ó
simpática!", com um entusiasmo, desses que aquecem as pedras de uma calçada. Já
vi coisas assim e senti uma inveja maior do que a de se comparar a uma vedeta de
rock. Em vez disso, queriam conquistá-la. Conquistar uma mulher — que disparate!
Como se fosse um castelo medieval com ponte levadiça e tudo!
Outra vez sentiu que batiam à porta. Era o mordomo Caires que vinha dar boa
noite. Tinha vestido o casaco branco, que lhe ficava acanhado, e via-se que o tempo
do seu esplendor tinha passado.
— Não quer mais nada? — Ele olhava-a com ar entre cauteloso e atrevido,
entrevendo a pele debaixo da camisa com reflexos esverdeados. Se ela fosse uma
ondina saída do rio para pernoitar naquela cama coberta com o abundante tule de
mosquiteiro, ele não a olharia de outra maneira; com cobiça e melancolia, como se
estivesse resignado à sua irrealidade. O lado irreal de todas as coisas, era o que
produzia o amor e o desejo humano. — Eu queria dizer uma coisa — disse ele, o
mordomo Caires. O mordomo Caires parecia ir escorregar pela parede e desfazer-se
no chão como um sorvete de nata.
O casaco branco ganhava um engelhado pastoso e ele escorria como o relógio
de Dali numa paisagem. — Não sei.
— Como começar? — Ema riu-se, mas sem insolência, como fazem as
mulheres muito favorecidas por homens excelentes e bem nascidos. O mordomo
Caires era a sua boa acção, praticada para com a mediocridade. Sentou-se na cama e
cobriu-se com o édredon de flores. O que ouviu deixou-a extasiada. Aquele
homenzinho gordo e ladrão, que ela sempre conhecera a surripiar-lhe dinheiro e até
óculos de sol, estava a propor-lhe um concubinato inconcebível. Porque estava rico,
porque se reformara da servidão como uma rameira se reforma da cama. Ouvia bem?
Ema balançou os pés fora do édredon com ramos de hidranjas, e perguntou-lhe se ele
tinha pensado bem. "A Bovary era o que se chama uma sonsa", disse Ema, para si.
Estava muito longe do mordomo Caires e do seu pedido de casamento à moda de
Ermezinde. "Casar em Ermezinde", em tempos, queria dizer mancebia e mais nada.
Ela já não sentia a humilhação de o ter por pregoeiro do seu destino; como se Ema
chegasse a um beco escuro e de uma porta se estendesse a gordurosa mão de Caires,
entre o convite e a espera. Pensou que ele sabia em detalhe a sua vida, cada vez mais
impraticável. Se voltasse para trás era o atroz aborrecimento da casa onde não havia
criação e doce esperança. Só o marido que, de repente, tomava um recorte
misterioso, como o honesto lago da peça, movido por sentimentos servis nos quais
ardim paixões reduzidas à escravidão sem título, do que não ousa abertamente, do
que rumina e envenena o ar com a sua ruminação. Achou que até podia admirar
Carlos, se fosse assim. Mas ele nunca ia revelar-se. Há muito que não dormia com
ela, mas enchia-a de galanteios breves, como se a saudade o atormentasse; como de
quisesse, como última homenagem do corpo, deixá-la disponível para os outros
homens, porventura preferidos. Ele ficava ao lado dela na cama, deliberadamente
eunuco desse amor profundo que não queria confessar.
Como uma criança que recolhe as fezes para não consumar a dádiva, para
gozar a sua teimosa força de amor que se controla e nunca há-de parecer outra coisa
senão tirania absoluta. A castidade era opressão maior, era horrível tirania que nem
sequer joga com as promessas. "A Bovary — pensava Ema — podia ter sido mulher
de um marido assim". Podia ser deixada em liberdade como uma forma de
padecimento ajuizado. Era evidente que Carlos temia perdê-la. E que faz ura homem
que muito teme? Finge-se disposto a perder tudo e atinge até essa raia do tormento,
parodiando a certeza dessa perda. Ele sabia que ia desarticular os mecanismos da
paixão e que Ema ficava sempre muito aquém do prazer, porque se sentia Condenada
a ele, ao prazer; tendo atrás dela a persuasão às suas fugas e um dilúvio de
argumentos que não eram sequer proferidos mas que a punham em contacto com a
liberdade de escolha. "Vá, faz de marafona, entrega-te, muda de amantes, salta de um
para o outro, arranja recordações de todos eles a ponto de as confundir e de as
anular." A primeira noite em Vale Abraão não era senão um vago aceno, a camisa cor-
de-rosa com rendas claras ficava no espaço vencido da memória. Porque muitas
outras noites, frequentadas por homens mais sedutores, sucederam depois. Ema já
não tinha acesso ao significado de todas elas, a prostituição não era senão essa
identidade que se restringe a um nome, não tem carácter feito de isolados tempos,
não tem paisagem e tempo próprio.
Por detrás dela a figura de Carlos, impassível, segura na sua imobilidade, na
sua obtusa força tão semelhante à fraqueza. Onde estava o juramento do altar? Onde
estava o laço do casamento? Toda aquela gente que tinha sido testemunha, que podia,
por sua vez, assegurar as palavras proferidas, repetidas por ambos, essa gente tinha
desaparecido. Não vinha em auxílio, tinha negócios a concluir; tinha viagens a fazer
e outros actos a que assistir.
Onde está, morte, o teu poder? Onde estão, núpcias, as tuas vontades? Ema não
tinha saída, Carlos estava lá a assistir, a forçar a disponibilidade dela. Era como se já
conduzisse Caires na sua direcção e lhe dissesse:
"Aceita-o. Que mal te pode suceder? Até é simpático e sofre por amor de ti.
Não és assim tão importante para o recusares. Ele ama-te, coitado. Trouxe-me a casa
uma coxa de veado e pareceu-me bom homem. Onde está o enxovalho? Não dês
importância a ti mesma, não te valorizes tanto".
Ema acordou dessa cogitação e viu o mordomo Caires encostado à cama;
através do tule do mosquiteiro ele estava assustador.
— Saia — disse Ema. O terror dava-lhe forças maiores do que as da cólera.
Não queria entrar em detalhes. Estava irritada e queria gozar a sua boa indignação.
— Saia do quarto.
Mas, quando ele saiu, sentiu-se culpada de uma agressão que ele talvez não
merecesse. Era um equívoco; a vida andava sustentada por equívocos e corria assim
da melhor das maneiras. Se tudo fosse mais conforme à realidade, ao que se passava
no coração humano, seria completamente insuportável. Ema diria: "Estou muito
longe de o tomar a sério, velho ratão. Não volte a aparecer-me com esse casaco de
botões enfurrejados. Mande-me o almoço por alguém que eu não conheça. Será uma
surpresa agradável, não tenho dúvida." Mas para quê? As palavras escondiam o
essencial que era ter prazer e segurança. Lembrou-se outra vez de Carlos e sentiu frio
na espinha. Ele estava a contribuir para um fim terrível dela. Não era coisa que ele
entendesse, mas estava implacavelmente a arruiná-la.
Era uma folha à mercê da profunda tempestade cujos horizontes nem sequer
podia descobrir. O amor de Carlos, impotente, mesclado de invejas e de desfrute
ambíguo, apanhava-a nas suas redes. Era uma Bovary, não porque tentava libertar-se
do constrangimento do matrimónio, mas porque tinha que romper com a desilusão,
imposta por Carlos mais conscientemente do que se podia julgar. A desilusão era uma
forma de miserabilismo a que ele a condenava. Como se não lhe desse dinheiro para
as compras. A maneira como ele lhe perguntava todas as manhãs: "Precisas de
dinheiro?" era já um programa de opressão, era uma declaração de guerra. Não
estava a exagerar? Para isso era preciso ter génio, e ela não tinha.
Antes de adormecer, Ema teve uma ideia que o sono lhe trouxe, como num
último vislumbre da vida: "Ninguém me liga, não vale a pena fingir outra coisa." E
depois disse: "Quem sou eu?", com voz amordaçada e vaga.
Na verdade, na verdade vos digo. Era assim que começava o santo discurso do
Messias. Mas porque reforçava aquele "na verdade"? Para isolar o homem da sua
distracção que lhe era fundamental e a melhor das precauções. A distracção era um
círculo quase impenetrável; não era possível entrar lá, nem com arte, nem com o
engano, nem até com a morte. Ema pensou, logo no momento de acordar, que
ninguém ia importar-se se ela morresse. Carlos talvez ficasse mais desprevenido,
como quem perde uma quantia e não sabe como refazer essa perda senão pedindo
emprestado. O seu empréstimo era Maria Semblano, e Carlos já consertara as avarias
sofridas no lar com Ema. Ele nunca fora feliz no casamento, com o segundo, sendo
que o matrimónio com a azeda proprietária, que as. irmãs, as Paivoas, quase lhe
impuseram, não fora de todo desacertado.! À parte ela ter os pés frios e o vigiar com
ciúmes sem justificação, era uma boa mulher e amava-o. Carlos lembrava-se
raramente dela. Mas mandava-lhe à campa, todos os anos, um ramo de crisântemos
de novelo e duas velas.
Quanto a Ema, gradualmente foi remediando as agressões conjugais, metendo-
se na concha da sua decepção. Não conseguira fazer-se respeitar por ela, dera-lhe
provas de uma insignificância a que ele se agarrava como se, com isso, pusesse à
distância uma infelicidade maior. Ema introduzira na sua vida um requinte a que ele
não estava habituado e do qual tentara ficar orgulhoso. Ela servia-lhe pratos
gratinados e aperitivos, que o punham um pouco acanhado.
— A minha mulher é uma boa dona de casa — dizia, como se a desculpasse, e
não como se lhe gabasse um talento. Os vizinhos de Vale Abraão sorriam
polidamente; deixavam no prato as trufas, julgando tratar-se de azeitonas pretas.
Eles conheciam os suculentos guizados de vaca, as saladas de tomate e cebola,
o peru recheado de batatas, acepipe mais troiano do que romano, decerto, e que com
o pudim de nozes fazia a glória das cozinheiras de bodas e baptizados. Mas Ema,
com os seus vestidos decotados em barco, com as molheiras de bearnês e os
chocolates mentados que oferecia com o café, ia contra os usos de Vale Abraão.
Achavam-na extravagante, o que estava perto de a acharem mal comportada.
— É uma melra — dizia a funcionária dos correios, Dagoberta, e que tinha
dois bichinhos de pêlo a algodoar-se com o uso, pendurados pelo peito abaixo. As
tias sonolentas, a quem a família ia estreitar a mão com uma ternura de herdeiros,
olhavam-na de canto, com uma frieza de magarefe. Ema era a estranha e, além do
mais, bonita, o que não a recomendava nada.
Aqueles primeiros tempos em Vale Abraão, a festa deliciosa do amor que é
sobretudo um torneio cortês, em que a obediência e a promessa se dão as mãos,
estavam tão longe que não era possível recordá-los. Ema, sem o saber, culpava
Carlos de a ter progressivamente apagado da vida dele, embora agora houvesse entre
eles um acordo mais forte, feito de deliberações práticas e de razões tidas por
saudáveis, como fazer fortuna e combinar tácticas de relações frutuosas. Era sempre
Ema quem tinha as ideias para lucrar alguma coisa. Embora fizesse dívidas, sabia
quais as que podia protelar e as que tinha que saldar. Se lhe batessem à porta com
uma conta, e Nete lha trazia (Nete era a criada Ana, que se chamou Anete por pura
ociosidade, mãe dos pobres), com um sorriso sonso e metediço, Ema devolvia-a com
um gesto de mofa.
— Quinhentos escudos? Antes de mil não é uma conta. É uma esmola.
Em tempos ouvira que a Senhora procedia assim. Mas a Senhora tinha no
Banco de Inglaterra uma reserva de ouro capaz de equilibrar um orçamento de
Estado. A Senhora era rica; Ema só lhe copiava a vaidade histórica, não as suas
libras.
A Senhora mudara-se um dia de um hotel, porque o pessoal era sisudo. "Não
são sérios" — dizia, frequentemente.
Como se dissesse: "Não são felizes, são travessos". Lumiares também tocava
esse ponto quando, perante os queixumes de Ema, que queria ser feliz e não
encontrava ocasião de o ser, ele dizia: "Para ser feliz, é preciso já o ser". De facto,
que encontrava Ema na cama senão o seu próprio prazer? E, à mesa, senão o seu
apetite? E, ao ar livre, senão o gosto do sol e da chuva? Mas não. Ema lamentava-se
porque o marido lhe comunicava a sua insignificância; porque ele não era o seu
guarda-chuva, o seu chapéu de sol, o seu paladar e o carácter subjectivo da sua
felicidade.
— É um mono. Usa meias de lã por cima de peúgas de algodão. Não gosta de
música, não conhece uma ária sequer de qualquer ópera. Nem o Fígaro cá, Fígaro lá,
que é tão fácil de decorar.
Se Lumiares lhe ensinava que Catarina, a Grande, não suportava a música nem
sabia solfejar e a achava uma perda de tempo, Ema ficava indecisa quanto à realidade
dos seus tormentos. Talvez não existissem, e então tudo era mais difícil ainda. A
maior parte das suas dores eram imaginárias. Não passava de uma mulher vaidosa e
destrambelhada, como as Paivoas sempre disseram.
— Uma destrambelhada, com mais mimo do que um porco na engorda —
diziam. Viviam na capital há muito tempo, mas não se urbanizavam senão no que se
refere a conhecer a rede dos transportes e os serviços. Falavam com intimidade das
famílias que tinham sido eméritas. Não falavam, tagarelavam, que é o toque do
cidadão das cortes. Mas não se ausentavam totalmente da sua região demarcada,
onde os grandes padrões de pedra asseguravam o trajecto do vinho pombalino, e que
se encontravam ainda nas esquinas dos caminhos, rugosos de muitos Invernos. As
Paivoas pertenciam à margem esquerda do Douro, tinham-se casado nos altos de
Barro, lugares onde o frio deixava um corte de gelo algodoado de névoa nas mãos
dos podadores. Elas falavam ainda, como princesas exiladas, das salas com brasume
de vides e do chá, à ceia, em que se comiam cavacas de Resende, manjar de velhas
conselheiras de frades.
As Paivoas, as quatro, entre viúvas e divorciadas, mantinham a memória da
província esgotando as palavras de homenagem, esquecendo a rudeza que o
imaginário converte em glória. Lolota e Luisona repetiam as histórias concentradas
em eixos favoráveis e que elas não tinham conhecido nem de perto nem de longe. Era
como uma tatuagem que lhes dava cunho de uma íntima realidade, capaz de influir
na praxe das relações.
Ema pouco aproveitava desse passado cuja singularidade não a atingia, porque
ela queria começar pelo universal. Como quando da janela do Romesal ela via a
grande fachada das Jacas, e ela se transformava, mercê da franqueza de Ema, numa
imagem do seu próprio espírito, pronto a entrar de súbito no círculo de uma elite.
Teve mais tarde a decepção de ver essa mesma casa em ruínas, os vidros partidos
pelas pedradas das crianças, os vetustos plátanos da alameda da entrada como que a
ser extraídos do solo; como dentes velhos nos seus alvéolos. Ela interrogou-se
tristemente; quando era nova, tudo lhe parecia obra do seu orgulho. O amor também.
Sentia-se perder ao lado de Carlos, o orgulho ia-se esgotando como um vinho
espesso num copo onde só restasse uma gota seca e concentrada; soltava-se com um
riscar da unha e parecia pó.
Ela fugira dessa vida monótona e repetida, porque era humilhante reduzir-se à
vaidade privada daquele marido pacato e sem ambições, àquele trem de vida simples
em cumplicidade com a velhice. Ela queria elevar-se às abstracções das decisões
novas do amor, cuja parte mais relevante era platónica. Queria lançar-se nas maiores
proezas do orgulho, que eram as proezas superiores da humanidade. A moral de cura
da aldeia tornava-a rancorosa e perversa. Ema terminava estas reflexões com uma
reprovação cada vez mais desesperada: porque não abandonara a casa
definitivamente, a casa que lhe parecera tão prometedora?
Porque lhe parecia imitar aquela que na mocidade lhe dera uma inquietação
fundamental e a impedira de ficar na defensiva? Mas tudo estava varrido e gasto. Os
impulsos de simpatia não tinham bastado para conservar e fazer durar as coisas e as
obras. O orgulho podia tê-la levado longe, mas ela não lhe obedecera cegamente. O
resultado era a sua situação falsa, o desejo sem a arrancada do orgulho resumia-se a
um contrato do corpo que os prazeres depressa inibem. A maior das inibições é a do
prazer consumado sem a reflexão do orgulho. Ema disse:
— Faltou-me a ciência da articulação. Não estudei bem o esqueleto humano
nem como se mexe um braço e se vira a cabeça. Não é um hábito, é uma combinação
perfeita entre a causa e o efeito. A relação entre todas as coisas, nunca vi como
funcionava.
Era verdade. O orgulho inflamara os mais pequenos gestos; mas porque não
conhecia o motivo fundamental dessa agitação, sofria de tudo o que a podia
prejudicar. O orgulho não bastava. Era preciso uma vontade de conhecimento, uma
intenção sonhadora. Talvez que a insuficiência de meios tornasse impossível
compreender os mistérios da sua alma. Tudo era ainda muito rudimentar, o amor
igualmente, como forma de conhecimento desses mistérios. Atingindo-se o resultado
como procriação, tentando o prazer como discurso das generalidades, ficava um
desespero que nada podia remediar senão, às vezes, a frequentação do vício ou das
coisas impróprias. Elas davam-lhe algum descanso, no sentido em que adornavam a
superficialidade. Ema tivera deliciosos desejos de amor casto, satisfeitos, em parte,
pelo casamento e a maternidade. Depois o ar carregara-se doutros desejos mais
sombrios, a que ela resistira pela extravagância, as modas, e os amigos tíbios,
verdadeiros derivativos das paixões profundas.
Fernando Osório fora um amante fútil que ela usara como o golpe de rins do
mergulhador que muito tempo percorre os abismos em busca de uma riqueza
afundada; e que, de repente, compreende que está em vias de afogar-se, que os
pulmões vão explodir se não puder voltar à superfície.
Osório era a superfície do amor, como Carlos fora a sua limitação. Não queria
desprender-se de nenhum deles, entrevia nisso um perigo. Fortunato dera-lhe
momentos extraordinários em que percebera que viver não obedece a um modelo do
sentimento e da paixão. Ema ficara, por algum tempo, fascinada por ela própria. Mas
logo esquecera a confissão que estivera prestes a obter de si mesma. "Não, o orgulho
pede-me que recue" — pensou. E voltou ao Vesúvio, onde o orgulho se combinava
com o seu moralismo de ocasião, a infidelidade fazendo parte desse moralismo.
O Vesúvio transmitia-lhe uma lisa imagem de si própria: a mulher adúltera. Ela
sabia que isso a tranquilizava, que podia contar com a facção compreensiva e a
facção acusatória. E que não ia mover-se na escuridão, naquele impraticável
comércio com o seu mistério.
Um dia, em que pisou descuidadamente na varanda, em Vale Abraão, sentiu
um ranger de tábuas sinistro. O chão estava podre e a balaustrada de madeira
desconjuntava-se. Preveniu Carlos Paiva, que se fez de novas.
— Ah sim? Não sabia.
Ema ficou com a impressão de que o marido gozara com o susto dela, e
chamou-lhe intimamente cobarde. Era pouca coisa, mas bastou para que um novo elo
se rompesse. Carlos mandou, tempo depois, reparar a varanda, mas Ema não voltou a
pôr lá os pés. Não porque temesse cair, mas porque uma dor obscura a impedia de
repetir o que fora a causa desse susto.
— Talvez — disse ela a Pedro Lumiares — que, se eu voltasse a ter aquela
sensação de agressão física, como se Carlos Paiva me apunhalasse pelas costas, me
habituasse. Eu pensava que ele nunca me mentia, mas uma vez surpreendi-o numa
pequena mentira e aquilo fez-me sofrer de uma maneira que hoje me parece ridícula.
— Es espantosa. Devias fazer versos. Isso não fazia de ti poeta, irias era uma
maneira de combater a insignificância.
— A minha insignificância?
— De quem há-de ser?
— Aí é que te enganas. Pertenço à classe média, mas não ao meio termo.
Detesto os fins medianos.
Ela já não estava tão segura como dantes de que Lumiares, e até mesmo Pedro
Dossém, não estavam entendidos para a prejudicar. Debaixo de uma capa de
transigência e amor, que não era lascivo, mas plástico, havia talvez o desejo de a
banir. O protesto que ela trazia sempre com ela havia de sobreviver-lhe. Porque
queriam impedir isso?
Agora estava no Vesúvio, onde tudo sofria uma transformação insidiosa. Não
era a passagem do tempo, mas a sua silenciação. Os espelhos reflectiam-lhe ainda o
rosto de uma beleza total, mas a contradição do seu ser executava um trabalho
interior que a arruinava e a punha à mercê do primeiro passo em falso. As suas
ilusões escorriam-lhe pela cara como se fosse um pranto que não se pudesse ver.
Fernando Osório não voltava mais, nem Ema queria que ele voltasse. Não
queria ir esperá-lo ao pequeno cais da estação, para lhe deitar os braços ao pescoço
num gesto narcísico, de se achar amada e poder provar isso aos olhos dos jornaleiros
e até do encarregado do armazém, homem cínico e triste que ela desafiava com esse
transporte de desejo. Agora tudo se confinava a uma passividade orgulhosa, a um
orgulho que a empurrava para o fracasso total, ela sabia isso.
O mordomo Caires não deixava de a espiar, mas também estava interessado em
defender a retirada e preparar as coisas à sua maneira. Pilhava o mais que podia, mas
deixava intacta a casa-museu, chegou a passar-lhe pela ideia levar um retrato da
Senhora, dos menos conhecidos, arrumados numa gaveta, e em que ela parecia pouco
imponente ainda, talvez do tempo do primeiro marido, ou do segundo, quando ela
usava ainda avental de saragoça, para se chegar aos potes de ferro onde cozia o arroz
com feijão. O mordomo Caires desistiu dessa atitude poética. Ia sentir a falta do
Vesúvio e dos seus cadeirões de veludo de Génova; era como se deixasse um palco
onde fizesse uma peça não do seu agrado mas que convencia a multidão do seu
papel.
Não voltou a falar a Ema das suas pretensões, mas achava que ela fazia mal em
não pensar nisso. Ele estava rico e podia oferecer-lhe o que ela gostava: férias em
lugares caros, como Benidorm, que o maravilhara quando lá fora com a mulher, um
Verão. Disse, a Ema, enquanto ela comia um ovo quente, batendo na casca com a
colher do café, como se esperasse ouvir resposta lá de dentro:
— Conhece Benidorm, madame?
— Não. É um jogo de cartas? — Ema ria-se dele, ou talvez não tivesse
reparado no que ele dizia. O mordomo Caires ficou ofendido; mas não deixou de a
servir esplendidamente e fez o sorvete de limão, que ela preferia, com maior
empenho ainda. Era um bom mordomo, e Satanás não podia nada contra isso.
Depois de jantar, como era ainda de dia, Ema desceu ao cais de embarque,
disposta a dar uma volta na lancha. O Verão ainda não chegara; o jardim da estação
estava florido de rosas vermelhas. Ela sentiu um prazer estranho em notar a beleza
das rosas, estagnada ao fundo das terras secas e vindimais. Os cachos negros, ainda
sem toda a maturação, apareciam entre a folhagem ruiva. Ema apertou com força o
lenço na cabeça. Era um gesto que não se usava mais e que ela gostava de frisar,
como corredora das estradas e bom volante que era. Um dos cães lobeiros, que os
comboios iam regularmente trucidando, veio farejar-lhe as botas altas, de cano liso e
engraxado de fresco. O mordomo Caires era impecável tratador de calçado e, logo
pela manhã, Ema tinha à porta do quarto as botas com a forma dentro. Apalpou o
bolso do casaco, que era uma peliça forrada de carneiro da Mongólia, e sentiu uma
folha de papel. Às vezes guardava assim as contas que não tencionava pagar. Via-se
mal, mas, mantendo perto dos olhos o papel, percebeu que era uma carta de Luisona;
decerto pedia-lhe dinheiro, estava continuamente falida e queria deixar o marido para
aceitar um lugar de recepcionista num hotel de luxo.
A linda Luisona, de olhos azuis e pernas de ave corredora, entrara
definitivamente para o que Pedro Dossém chamava "toirismo", rindo-se com o seu
riso alvar e pouco contagiante. Assim desaparecia outra das suas ilusões: a de ter as
filhas casadas com gestores de craveira internacional. Ao saltar para a embarcação,
sentiu, debaixo dos pés, o ruído aziago das pranchas podres. Estavam a ceder e
ameaçavam abrir sob o peso de alguém. Como Ema era leve, elas apenas gemeram e
pareceram resistir. Mas, subitamente, esboroaram-se como cogumelos negros, dos
que crescem nas árvores e anunciam a sua morte. Ema não teve tempo de agarrar a
beira do barco, o lodo fez-lhe fugir das mãos o casco, que ficou a balançar
suavemente, sem ruído. Ela afundou-se rapidamente, arrastada pelo peso das botas
que se tinham enchido de água. Por um último traço de orgulho, não se debateu nem
chamou por socorro. O cão, que a seguira até meio da prancha de embarque, voltou
para trás e não soltou um único ladrido. Farejava o comboio da tarde que vinha pela
margem do rio abaixo, com o rolo de fumo a envolvê-lo, como um grande véu
esfarrapado.
Só três dias depois Ema apareceu, os cabelos meio arrancados pelo barbeio das
pedras. A cara tinha golpes, mas não perdera a bela aparência sideral. O mordomo
Caires estava tão apoquentado que se enganou a redigir os telegramas, chamava-se a
si próprio desgraçado e mordia os punhos com uma força grotesca. Carlos Paiva
partiu para o Vesúvio como estava, com um fato de Verão e calçado de lona azul.
Mas, antes de sair, falsificou dois cheques no nome de Ema para levantar os
depósitos dela à ordem, o que conseguiu ainda antes de o banco fechar.
— São despesas com que não contávamos — disse, com sangue frio.
Telefonou a Maria Semblano: "Ela teve um acidente". Como não acrescentou mais
nada, Maria Loreto percebeu que Ema morrera. Sentiu-se lograda, parecia-lhe que
flutuava e que o chão lhe fugia debaixo dos pés. Era uma espécie de triunfo e mágoa
que se resolvia no temor de dar a conhecer a morte de Ema. Receava que, de algum
modo, lhe atribuíssem culpas daquilo tudo.
Por ser rica e sempre ter dominado a sua paróquia à sua maneira. "Ela fez o
que quis e o que lhe lembrou. Não somos da mesma raça" — pensou. A criada de
dentro encontrou-a a escrever, calma, sem vestígios de perturbação. Levantava às
vezes os olhos do papel, e via pela janela as casas da Caverneira que se
multiplicavam a ponto de formarem uma pequena cidadela. Era a casa dos guardas,
de onde saíam seis cães, de roldão, prontos a carregar sobre os intrusos; embora o
parque fosse franqueado a visitantes, eles não se arriscavam de boa mente,
precavidos contra os cães, de raça miúda e batalhadora. Maria ouvia-os ladrar com
regougos ferozes.
— Quem chegou? — disse. Teve um pressentimento e levantou-se toda pálida.
Carlos entrou na sala. Estava cadavérico. Maria Loreto ficou de pé, dizendo
polidamente para ele se sentar. A criada chegou-lhe uma cadeira e ficou a arrumar
pequenos objectos, curiosa e um pouco enervada. Falava-se muito na entrada de
Carlos na Caverneira; ele dormia às vezes na ala dos hóspedes, o mais moderno da
casa inteira, com aquecimento central e banhos verdadeiramente luxuosos. À medida
que envelhecia, Maria Semblano apreciava os banhos e as roupas interiores.
— Estou desfeito. Não consigo dormir, nem pensar.
— Ela mandou sair a criada. Sabia dar uma ordem; não era autoritária, Carlos
admirava-lhe a segurança, a leveza fria e modesta quase com que mandava. "Meu
Deus, não me vou meter noutra" — pensou. Estava esgotado, não controlava as
ideias, que eram meio loucas, desarticuladas. Maria Semblano tirou-lhe ela própria a
gabardine de lã, gabardine de empresário, antiquada e que o marido dela não usara
nunca porque, dizia, fazia velho um rapaz de vinte anos.
— Não sei se foi desastre, se foi outra coisa. Com ela não se podia prever
nada.
— Não pense nisso agora. As suas filhas já chegaram?
— Vieram com as minhas irmãs. — Escondeu a cara nas mãos e disse, com
voz que se percebia mal: — Não sei se a devo levar para o Romesal.
Maria teve um ciúme desordenado, como só as mulheres sabem, atingidas na
sua integridade de fazedoras de paixões, mais do que suas intérpretes. Ema devia ser
esquecida rapidamente, ela se encarregaria de a pôr bem fundo na cova. No Romesal
ou em qualquer sítio. Percebeu que Carlos não queria sepultar Ema junto da primrira
mulher.
— No Romesal, está bem. É justo que fique ao pé dos pais.
Ele caiu num grande abatimento; lembrou-se com desprendimento de
momentos adoráveis, como quando viu Ema em Lamego, a lamber as pontas dos
dedos finos, fingindo que era uma rapariga mal-educada, só para lhe dar uma ideia
errada a seu respeito; e ver depois que era inútil, e que o amor vencia as más
impressões. O molho das enguias escorria-lhe no queixo e ela deixava-o pingar no
prato, rindo-se, por dentro, da aflição de Carlos, que não sabia se devia estender-lhe
um guardanapo. Essa mágoa, entre protectora e acanhada, fora o que primeiro a
fizera simpatizar com ele. Pressentiu o homem bom e algo caduco que havia nele, e
alegrava-se de o ter à sua mercê; alegrava-se com um sentimento de colegial, entre
tímida e sabedora, porque o mundo se revelava nessa primeira tentação de que ele era
um pretexto. E, depois, quando Carlos voltou e lhe disse que vivia em Vale Abraão, o
coração dela bateu, como se o amasse. Ema via do Romesal o grande fresco do Vale,
onde se destacava a casa da Caverneira, no seu traço veneziano, e muito perto o
edifício das Jacas pintado de um branco gélido, com o reboco solto; e, mais perto da
linha de água, ficava a massa ocre dos armazéns e o rubro penacho de ameixoeiras de
jardim. Era um mundo que a chamava e desde a infância a enchia de desejos, como
os de uma bailarina que não pisou o palco e ainda espera a sua noite de estreia. Vale
Abraão era a sua meta, o lado do espelho em que a realidade se desarticula para
deixar só a candura das novas esperanças: o amor, a vocação dos espaços que não
foram ainda criados, a liberdade em que a paixão renuncia ao que é humano.
Assim foi como Carlos obteve a sua mão: como um mensageiro e não como
um verdadeiro esposo. Ele agarrou-se ao rebordo da mesa coberta com os papéis de
Maria. Era tarde para atingir o fundo dos pensamentos que ele afastara sempre com
medo de eles o separarem de Ema. Mas quis acreditar que ela não estava morta e que
ia telefonar-lhe para lhe dizer que ia chegar tarde e que lhe guardassem um caldo
quente. Gostava de bebidas muito quentes, como todas as mulheres do Romesal, que
bebiam o chá e a sopa a ferver. Carlos sorriu e, para encobrir o sorriso, foi à janela e
levantou o pesado caixilho de guilhotina, deixando entrar o ar do Verão já a quebrar
os ventos da Primavera que limpara os cachos cobertos de penugem. Estava a tentar
esconder o rosto e nele uma desesperação que era um contrato com a fatalidade.
Maria percebeu que ele a deixava, que não precisava mais dela para aperfeiçoar as
suas tácticas de ciúme e de humilhação. Já não tinha mais a quem ofender a recusar.
Foi por isso que, dois anos depois, o encontraram morto num dos bancos do
parque da Caverneira. Fumava cachimbo, como medida higiénica, porque lhe diziam
que o cachimbo era menos nocivo à saúde; tinha o tabaco ainda nos dedos, uma
pitada de tabaco que lhe caíra no colete, e a cabeça inclinada como se estivesse para
abaixar-se e recolher a caixa que caíra para o chão. Era tão evidente a sua
preocupação, que a primeira coisa que fez o jardineiro foi apanhar a caixa como se
obedecesse a um ordem.
— Era um homem tão medíocre, que até depois de morto as coisas secundárias
lhe eram indispensáveis — disse Pedro Lumiares. Estava para vender as Jacas; a
ruína, que o espreitara sempre, mostrava a cara descoberta. Simona tratava de salvar
o que podia e não se lhe ouvia nenhuma reprovação. O vulto silencioso andava pela
casa, e os cães seguiam-na como sombras, como se levassem com eles um propósito
de descobrir uma pista. Vale Abraão estava em completa decadência, e já ninguém
vivia nas casas que iam recebendo os golpes dos Invernos e deixando ver os seus
tabiques como esqueletos revelados por radiografias.
Maria Semblano publicou outro livro. A sua tenacidade literária era
surpreendente. "Nada disto é importante" — disse ela. "Mas ninguém imita melhor
do que eu uma bela vida". Ema já não era deste mundo, senão fazia questão em
chamar-lhe uma desalmada. E, o que é mais: um advogado para vencidos, culpados,
injustos e tristes. Esforçava-se por mantê-los vivos e ilesos, mesmo à custa de teorias
desesperadamente falsas. Ema diria que isso não era para ela e que estava muito bem
como estava — no fundo do Vesúvio.

FIM

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