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Acho que foi no início dos tempos que a Natureza celebrou um pacto com
os homens de letras: ela os engendraria de quando em vez, desde que
eles narrassem aos outros homens a terra em que haviam sido
engendrados. Mais provável, talvez, que, longe de esperar pela volição
dessa espécie tão inconstante, cada lugar resolvesse dar à luz, uma vez
que fosse, a um ser cuja essência genética estivesse programada para
contar ao mundo como era o lugar em que nasceu. E, desse modo, a
literatura produzida por esses homens não apenas descreveria seu lugar,
mas seria semelhante a ele, teria um ritmo similar, uma expressão
análoga, um estilo idêntico. E, mais que isso, talvez os homens a quem o
fado exigia que cantassem sua terra fossem, eles próprios, parecidos com
a terra que cantavam. Se assim fosse, seria mais fácil compreender por
que a literatura de Machado de Assis era rebuscada e petulante como o
Rio de Janeiro, por que a prosa de Jorge Amado era sensual e debochada
como a Bahia, por que a escrita de Graciliano era seca e dura como o
sertão. E, se cada lugar cria sua literatura, os afluentes, as matas, os
cerrados, as cidades, os povoados, os arraiais e o homem do grande vale
do Rio São Francisco criaram Osório Alves de Castro e sua prosa
barranqueira, entrecortada como o próprio rio, úmida como as terras
ribeirinhas e, por vezes, afásica, pois assim é o homem a quem retrata.
Prosa para isso tinha de sobra o escritor nascido na bucólica Santa Maria
da Vitória, em pleno Além São. Francisco. Porto Calendário, seu primeiro
livro, lhe trouxe o aceite da critica e lhe valeu o Prêmio Jaboti de
Literatura, em 1961. Daí desmembraram-se duas outras obras primas,
Maria Fecha a Porta Prau o Boi Não te Pegar e Baiano Tiête, formando a
trilogia da integração nacional. Apenas isso já lhe valeria um verbete em
negrito.
“No ano que vem, caminho de S.Paulo me tem”, essa era pichação que
manchava os muros de Santa Maria da Vitória, de Correntina, de
Barreiras, cidades do Vale do Rio S.Francisco, e seus autores, jovens que
recém completavam 18 anos, logo estariam margeando o Tiête em busca
da redenção econômica. Osório Alves de Castro cantou o fado desses
jovens e deu vida ao povo ribeirinho, especialmente aquele que não tinha
força ou desejo de deixar seu vale querido. E, apesar disso, as
enciclopédias lhe regalaram o olvido e até seu povo, aquele que habita os
cerrados da Bahia, parece não lhe prestar a devida atenção. Hamlet
estava errado: não há esperança de que a memória de um grande homem
possa sobreviver-lhe sequer por meio ano.
Que homem! Que escritor! Alfaiate, nunca renegou seu oficio, mas se de
dia alinhavava os tecidos na sua Alfaiataria Rex de noite dava forma as
palavras. E que forma! “Antigamente as noticias chegando era como um
tempero insosso ganhava travo e a gente comprazia divera... Hoje? ...
Que Deus tenha pena de nós. Tudo chega de supetão, arrasa e fica nas
angústias como um arco-íris. Sumindo detardinha“.
Osório Alves de Castro, cerzindo palavras na sua alfaiataria, foi ele mesmo
um personagem, tão bravo e insólito quanto Pedro Voluntário-da-Pátria,
que se preocupava com o estio que sempre vem no fim-de-era: “Desde o
Cariri até os cerrados da Bahia, entrando por Minas Gerias, não se vê uma
folha verde”. Tão inaudito quanto Doquinha Peste-Bubônica, que ganhou
o apelido por ter a língua venenosa como a peste, tão triste quanto o
remeiro Salu que a zinga arrebentou os peitos e morreu botando sangue
pela boca, incapaz de vencer a água do Quebra Botão. A zinga era vara
que lutava contra a correnteza que de tão forte tinha a alcunha de Quebra
Botão.
Acho que foi no inicio dos tempos que a Natureza resolveu criar uma
planta capaz de prevenir-se da seca que as vezes assolava as terras do
cerrado e das enchentes que inundavam as plantações carregando as
sementes e o porvir. E assim as flores e folhas dessa planta da família das
sensitivas se fecham imediatamente quando tocadas pelos homens, pelas
águas ou pelos ventos. Engenhosa a Natureza e os homens que lhe deram
por nome Maria Fecha a Porta Prau o Boi Não te Pegar. Mais engenhoso
ainda Osório Alves de Castro que fez da planta título do seu segundo livro,
um livro poesia, cheio de Marias que se fecham quando tocadas. Elegia ao
Velho Chico, o romance corre como o rio, caudaloso e forte: “Veja,
Maria!... É o nosso São Francisco. Vindo de longe, correndo do Sul para o
Norte, é um abraço na imensidão, unindo as terras e as gentes do
Brasil.“ Forma-se, então, o segundo elo da trilogia iniciada com Porto
Calendário e que se encerrará com Bahiano Tietê, romance da
transformação, que mostra a dor, o sofrimento e a adaptação do povo
ribeirinho que agora habita as terras do café. E mais uma vez o Rio São
Francisco sela a integração nacional e faz do homem do cerrado um
Baiano Tiête.
Que seja. Que os obituários não registrem sua morte, que as enciclopédias
queiram negar-lhe existência, que a Internet não tenha sites capazes de
abarcar sua obra. Não importa. A prosa de Osório Alves de Castro é tronco
milenar, é flor do cerrado, é planta que se fecha para quem não sabe tocá-
la, é cedro que faz o oco das canoas, é rio perene, ancho, barrento e
alongado, e sobreviverá navegando na alma de quem ama a literatura e
o Rio São Francisco. É prosa única que “vem do Porto das Calendas onde
tudo-tudo se dará“.