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A prosa barranqueira de Osório Alves de Castro

Acho que foi no início dos tempos que a Natureza celebrou um pacto com
os homens de letras: ela os engendraria de quando em vez, desde que
eles narrassem aos outros homens a terra em que haviam sido
engendrados. Mais provável, talvez, que, longe de esperar pela volição
dessa espécie tão inconstante, cada lugar resolvesse dar à luz, uma vez
que fosse, a um ser cuja essência genética estivesse programada para
contar ao mundo como era o lugar em que nasceu. E, desse modo, a
literatura produzida por esses homens não apenas descreveria seu lugar,
mas seria semelhante a ele, teria um ritmo similar, uma expressão
análoga, um estilo idêntico. E, mais que isso, talvez os homens a quem o
fado exigia que cantassem sua terra fossem, eles próprios, parecidos com
a terra que cantavam. Se assim fosse, seria mais fácil compreender por
que a literatura de Machado de Assis era rebuscada e petulante como o
Rio de Janeiro, por que a prosa de Jorge Amado era sensual e debochada
como a Bahia, por que a escrita de Graciliano era seca e dura como o
sertão. E, se cada lugar cria sua literatura, os afluentes, as matas, os
cerrados, as cidades, os povoados, os arraiais e o homem do grande vale
do Rio São Francisco criaram Osório Alves de Castro e sua prosa
barranqueira, entrecortada como o próprio rio, úmida como as terras
ribeirinhas e, por vezes, afásica, pois assim é o homem a quem retrata.

Extasiado com a prosa do inaudito escritor nascido na margem esquerda


do Rio Corrente, fui em busca de sua história nas enciclopédias desta e de
outras terras. Qual não foi meu espanto: não havia verbete autônomo,
nem verbete indicativo, nem parágrafo dos verbetes indicados, nem uma
linha sequer; sequer uma linha. Abespinhado, deixei o peso das
enciclopédias, vaticinando açodadamente sua incapacidade de registrar a
aldeia global e, pressagiando sua obsolescência, conectei-me a Internet,
a enciclopédia do século XXI, onde nada esta ausente, ainda que a
presença, não raro, venha recheada de incorreções. E, pasmem os
leitores, nenhuma biografia, nenhum estudo acadêmico, nenhuma tese,
nada assomou a pantalha eletrônica a não ser três ou quatro menções
vinculadas a outros temas. E, no entanto, Osório Alves de Castro deveria
estar em todas as enciclopédias, em todos os sites de literatura,
ombreando-se a Guimarães Rosa na galeria dos grandes escritores
brasileiros. Assim o desejaria o próprio Rosa.

Prosa para isso tinha de sobra o escritor nascido na bucólica Santa Maria
da Vitória, em pleno Além São. Francisco. Porto Calendário, seu primeiro
livro, lhe trouxe o aceite da critica e lhe valeu o Prêmio Jaboti de
Literatura, em 1961. Daí desmembraram-se duas outras obras primas,
Maria Fecha a Porta Prau o Boi Não te Pegar e Baiano Tiête, formando a
trilogia da integração nacional. Apenas isso já lhe valeria um verbete em
negrito.
“No ano que vem, caminho de S.Paulo me tem”, essa era pichação que
manchava os muros de Santa Maria da Vitória, de Correntina, de
Barreiras, cidades do Vale do Rio S.Francisco, e seus autores, jovens que
recém completavam 18 anos, logo estariam margeando o Tiête em busca
da redenção econômica. Osório Alves de Castro cantou o fado desses
jovens e deu vida ao povo ribeirinho, especialmente aquele que não tinha
força ou desejo de deixar seu vale querido. E, apesar disso, as
enciclopédias lhe regalaram o olvido e até seu povo, aquele que habita os
cerrados da Bahia, parece não lhe prestar a devida atenção. Hamlet
estava errado: não há esperança de que a memória de um grande homem
possa sobreviver-lhe sequer por meio ano.

Vivo estivesse, Osório Alves de Castro tripudiaria de minhas


preocupações, afinal, não estava ele redimido pelas palavras de
Guimarães Rosa: “Oh, o homem do São Francisco! Pudesse, eu ia lá, em
Marília, conversar com ele, três noites e três dias, seguidos, sem pausa
nem pio, sem fio nem pavio. Foi para mim uma rajada, um desembesto,
um desadoro, um desabalo. Não tenho palavras. Foi um filme doido, vero,
cinerama, passando diante de mim, de minha velhice-infância”. Não
estava ele redimido pelas teses e estudos que, quando em vez, os jovens
das universidades brasileiras entabulavam sobre sua obra. E, além disso,
de que valem as enciclopédias frente a arte que teima em brotar das
entranhas do homem.

E que homem! Que escritor! Não exprobre, condestável leitor, as


exclamações que aí estão apenas para corroborar o espanto que assomou
a pena de Rosa quando ele leu a carta, “a espantosa, a estouradora carta,
mensagem dos cem mil cavalheiros“: a carta de Osório Alves de Castro,
publicada na Revista Diálogo em 1957. Não, não era uma carta, era já um
romance, condensado em poucas páginas, mas caudaloso, cheio de
corredeiras e quedas d’águas. As águas do Velho Chico molhavam aquelas
páginas, o homem do vale navegava naquelas palavras, os coronéis e os
atravessadores, exploradores do ribeirinho, mergulhavam naqueles
parágrafos barrentos, tudo já estava ali e iria desaguar no mar de Porto
Calendário.

Que homem! Que escritor! Alfaiate, nunca renegou seu oficio, mas se de
dia alinhavava os tecidos na sua Alfaiataria Rex de noite dava forma as
palavras. E que forma! “Antigamente as noticias chegando era como um
tempero insosso ganhava travo e a gente comprazia divera... Hoje? ...
Que Deus tenha pena de nós. Tudo chega de supetão, arrasa e fica nas
angústias como um arco-íris. Sumindo detardinha“.

Que homem! Ele próprio um personagem. De inicio, clarinetista na


Orquestra Filarmônica Seis de Outubro, depois construtor de cenários e
encenador de peças até que, de repente, viu-se comerciante
transportando sal, rapadura e cachaça nas barcaças do São.Francisco. Em
1923, pensou enganar os muros da sua cidade, e foi para o Rio de Janeiro.
Lá estudou latim, literatura e política e foi iniciado nas artes da alfaiataria.
Mas não se foge do fadário impresso nos muros da inevitabilidade e lá se
foi nosso homem morar em S.Paulo, em Marília, onde logo haveria um
ponto de encontro para os intelectuais e para os amantes da literatura: a
alfaiataria Rex, onde o militante comunista fazia do Capital o remo que o
levaria ao porto do socialismo. A ditadura, tão pródiga em espancar os
remeiros do futuro, o prenderia antes mesmo de saber-se ditadura, mas
das grades ele podia ver a aurora cor de barro, barro que dava cor ao São
Francisco...

Osório Alves de Castro, cerzindo palavras na sua alfaiataria, foi ele mesmo
um personagem, tão bravo e insólito quanto Pedro Voluntário-da-Pátria,
que se preocupava com o estio que sempre vem no fim-de-era: “Desde o
Cariri até os cerrados da Bahia, entrando por Minas Gerias, não se vê uma
folha verde”. Tão inaudito quanto Doquinha Peste-Bubônica, que ganhou
o apelido por ter a língua venenosa como a peste, tão triste quanto o
remeiro Salu que a zinga arrebentou os peitos e morreu botando sangue
pela boca, incapaz de vencer a água do Quebra Botão. A zinga era vara
que lutava contra a correnteza que de tão forte tinha a alcunha de Quebra
Botão.

Porto Calendário é rio caudaloso formado de afluentes personagens e nem


Macondo os teria gerado com tanta originalidade. Que dizer de Sussu
Flores, Shahriar do cerrado, que mandava matar os amantes após dormir
com eles, com o consentimento complacente do marido, Coronel Chico
Fulô. Ou de Jove de Correntina com seus óculos comprados na Bahia que
o fazia ver todas as mulheres nuas, em pelo, e que um dia os escangalhou
nos olhos, ao mirar a própria mãe na procissão do Senhor Morto.

A pena do alfaiate era mais destra que a tesoura e a natureza e o tempo


se faziam personagens. O Tamarindeiro, que servia de elo entre os que
povoam as páginas de Porto Calendário, é tão protagonista quanto o
tempo, retratado no Século que assustava os viventes das cidades à beira
do Rio. “Um tal século, que vem trazendo na mão esquerda a espada de
Moreira César e na direita um punhado de sementes encharcadas de
sangue”.

Que escritor! Que romance! Porto Calendário, o romance da saga são-


franciscana, é uma barcaça que reúne os remeiros, os pescadores, as
prostitutas, as cassandras, os coronéis e todo o povo do Vale e os faz
navegar no rio da literatura, ao sabor de ondas dialetais, das correntezas
de palavras, dos desvios arcaicos, tudo isso tendo ao fundo a marca
dӇgua do Rio S,.Francisco.

Acho que foi no inicio dos tempos que a Natureza resolveu criar uma
planta capaz de prevenir-se da seca que as vezes assolava as terras do
cerrado e das enchentes que inundavam as plantações carregando as
sementes e o porvir. E assim as flores e folhas dessa planta da família das
sensitivas se fecham imediatamente quando tocadas pelos homens, pelas
águas ou pelos ventos. Engenhosa a Natureza e os homens que lhe deram
por nome Maria Fecha a Porta Prau o Boi Não te Pegar. Mais engenhoso
ainda Osório Alves de Castro que fez da planta título do seu segundo livro,
um livro poesia, cheio de Marias que se fecham quando tocadas. Elegia ao
Velho Chico, o romance corre como o rio, caudaloso e forte: “Veja,
Maria!... É o nosso São Francisco. Vindo de longe, correndo do Sul para o
Norte, é um abraço na imensidão, unindo as terras e as gentes do
Brasil.“ Forma-se, então, o segundo elo da trilogia iniciada com Porto
Calendário e que se encerrará com Bahiano Tietê, romance da
transformação, que mostra a dor, o sofrimento e a adaptação do povo
ribeirinho que agora habita as terras do café. E mais uma vez o Rio São
Francisco sela a integração nacional e faz do homem do cerrado um
Baiano Tiête.

Osório Alves de Castro morreu em 1978 antes de ver BaianoTietê no prelo.


O livro, que só foi publicado em 1990 pela Empresa Gráfica da Bahia, traz
um prólogo de Jehová de Carvalho que, indignado, brada contra o
mutismo que tomou conta da imprensa nacional quando da morte do
escritor: nem um obituário, uma resenha sequer, sequer uma
retrospectiva sobre a obra do autor que encantou Guimarães Rosa. Jehová
fulminava, como uma cassandra que pressagiava o esquecimento de si
mesmo: “Osório Alves de Castro tinha um defeito grave: era escritor
baiano e pobre”.

Que seja. Que os obituários não registrem sua morte, que as enciclopédias
queiram negar-lhe existência, que a Internet não tenha sites capazes de
abarcar sua obra. Não importa. A prosa de Osório Alves de Castro é tronco
milenar, é flor do cerrado, é planta que se fecha para quem não sabe tocá-
la, é cedro que faz o oco das canoas, é rio perene, ancho, barrento e
alongado, e sobreviverá navegando na alma de quem ama a literatura e
o Rio São Francisco. É prosa única que “vem do Porto das Calendas onde
tudo-tudo se dará“.

Por Armando Avena é escritor, jornalista e economista. Membro da Academia de


Letras da Bahia.

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