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Para Matilde,

quase baiana.
Este guia das ruas e dos mistérios de Salvador da Bahia é dedicado a José de Salvador da Bahia
é dedicado a José de Barros Martins que me levou a escrevê-lo, a Sérgio Milliet, Dante Budoni,
Fernando de Barros e a Moacir Guimarães, sertanejo que, quando está na capital, é o dono absoluto da
cidade, seu verdadeiro e indiscutível dono, seu anfitrião também.
"— Você já foi à Bahia, nega "

“— Não!"

"— Então vá..."

Dorival Caymmi
NOTA À 12ª EDIÇÃO

Escrito em fins de 1944 e publicado nos começos de 1945, este "guia das ruas e dos mistérios da cidade do Salvador"
foi atualizado quando de sua oitava edição, em 1960. Volta a ser revisto em 1966 para a décima segunda tiragem.

Conservou-se no entanto sem maiores alterações toda a parte de interpretação da cidade e de seu povo, pois não
mudou a Bahia no fundamental, em sua beleza antiga e em seus problemas. Não quis também o autor retirar do texto as
referências a segunda guerra mundial, época em que o livro foi concebido e escrito. Não só porque seria necessário
reescrevê-lo por completo, como para que permanecesse em suas páginas esse sabor de documento de uma época: uma
cidade brasileira durante a guerra contra o nazi-fascismo.

Salvador, julho de 1966.

J. A.
CONVITE

E quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua trepidante da cidade mais agitada, não tenhas, moça, um
minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa quotidiana. Teus olhos se encharcarão de
pitoresco, mas se entristecerão também ante a miséria que sobra nestas ruas coloniais onde começam a subir, magros e
feios, os arranha-céus modernos.

Ouves? É o chamado insistente dos atabaques na noite misteriosa. Se vieres eles tocarão mais alto ainda, no poderoso
toque do “chamado do santo”, e os deuses negros chegarão das florestas d’África para dançar em tua honra. Com seus
vestidos mais belos, bailando os mais doidos bailados. E as yawôs cantarão em nagô os cânticos de saudação.

Os saveiros abrirão as velas e rumarão para o mar largo de tempestades. Do forte velho virá música antiga, valsa
esquecida que só o ex-soldado recorda. Os ventos de Iemanjá serão apenas uma doce brisa na noite estrelada. O rio
Paraguaçu murmurará teu nome e os sinos das igrejas de repente tocarão Ave-Maria apesar de que o crepúsculo já passou
com sua desesperada tristeza.

Na Feira de Água dos Meninos, nos pobres pratos de flandres o sarapatel te espera, escuro e gostoso. Os potes e as
moringas de barro que comprarás, as redes para a sest a, os inhames e aipins, as frutas coloridas. Se vieres, a feira terá
outra animação, beberemos cachaça com ervas aromáticas.

Os sobradões te esperam. Os azulejos chegam de Portugal e desbotam hoje ainda mais belos. Lá dentro a miséria
murmura pelas escadas onde os ratos correm, pelos quartos imundos. As pedras com que os escravos calçaram as ruas,
quando o sol as ilumina ao meio-dia, têm laivos de sangue. Sangue escravo que correu sobre e las pedras nos dias de
ontem. Nos casarões moravam os senhores de engenho. Agora são os cortiços mais abjetos do mundo.

Verás as igrejas, grávidas de ouro. Dizem que são trezentas e sessenta e cinco. Talvez não sejam tantas, mas que
importa? Onde estará mesmo a verdade quando ela se refere à cidade da Bahia? Nunca se sabe bem o que é verdade e o
que é mentira nesta cidade. No seu mistério lírico e na sua trágica pobreza, a verdade e a lenda se confundem. Se subires o
Tabuão de mulheres que já perderam a última parcela de sensibilidade, nos quinto-andares de prédios aleijados, nunca
saberás ao certo se é uma rua maravilhosa de pitoresco, com suas janelas coloniais e suas portas centenárias, ou se é
apenas um hospital enorme, sem médicos, sem enfermeiras, sem remédios. Ah! moça, esta cidade da Bahia é múltipla e
desigual. Sua beleza eterna, sólida como em nenhuma outra cidade brasileira, nascendo do passado, rebentando em
pitoresco no cais, nas macumbas, nas feiras, nos becos e nas ladeiras, sua beleza tão poderosa que se vê, se apalpa e se
cheira, sua beleza de mulher sensual, esconde um mundo de miséria e de dor. Moça, eu te mostrarei o pitoresco mas te
mostrarei também a dor.

Vem e serei teu cicerone. Juntos comeremos no Mercado sobre o mar o vatapá apimentado e a doce cocada de
rapadura. Serei teu cicerone . Mas não te levarei, apenas, aos bairros ricos, de casas modernas e confortáveis, a Barra,
Graça, Vitória e Nazaré, Iremos nos piores bondes do mundo para a Estrada da Liberdade, onde descobrirás a miséria
oriental se repetindo naqueles do Japão e da China, te levarei aos cortiços infames.

Esse é bem um estranho guia, moça. Com ele não verás apenas a casca amarela e linda da laranja. Verás igualmente
os gomos podres que repugnam ao paladar. Porque assim é a Bahia, mistura de beleza e sofrimento, de fartura e fome, de
risos álacres e de lágrimas doloridas.

Quando a viola gemer nas mãos do seresteiro, nascido na Bahia e cheio da sua poesia, não reflitas sequer. Moça a
Bahia te espera e eu serei teu guia pelas suas ruas e pelos seus mistérios. Teus olhos se encherão de pitoresco, teus
ouvidos ouvirão histórias que só os baianos sabem contar, teus pés pisarão sobre os mármores das igrejas, tuas mãos
tocarão o ouro de São Francisco, teu coração pulsará mais rápido ao bater dos atabaques. Mas, moça, estremeceras
também muitas vezes e teu coração se apertará de angústia ante a procissão fúnebre dos tuberculosos na cidade de melhor
clima e de maior percentagem de tísicos do Brasil. A beleza habita nesta cidade misteriosa, moça, mas ela tem uma
companheira inseparável que é a fome.

Se és apenas uma turista ávida de novas paisagens, de novidades para virilizar um coração gasto de emoções,
viajante de pobre aventura rica, então não queiras esse guia. Mas se queres ver tudo, na ânsia de aprender e melhorar, se
queres realmente conhecer a Bahia, então, vem comigo e te mostrarei as ruas e os mistérios da cidade do Salvador, e
sairás daqui certa de que este mundo está errado e que é preciso refazê-lo para melhor. Porque não é justo que tanta
miséria caiba em tanta beleza. Um dia voltarás, talvez, e então teremos reformado o mundo e só a alegria, e a saúde e a
fartura caberão na beleza imortal da Bahia.

Se amas a humanidade e desejas ver a Bahia com olhos de amor e compreensão, então serei teu guia . Riremos juntos e
juntos nos revoltaremos. Qualquer catálogo oficial, ou de simples cavação, te dirá quanto custou o Elevador Lacerda, a
idade exata da Catedral, o número certo dos milagres do Senhor do Bonfim. Mas eu te direi muito mais. Junto com o
pitoresco e a poesia te direi da dor e da miséria.

Vem, a Bahia te espera. É uma festa e é também um funeral. O seresteiro canta seu chamado. Vou mandar que batam
os atabaques e os saveiros partam em sua busca no mar. Serão a doce brisa e os ventos e as palmas dos coqueiros que te
saudarão das praias.

Vem, a Bahia te espera.


ATMOSFERA DA CIDADE

Em certo comício, realizado quando da invasão da Abissínia pelas forças fascistas de Mussolini, um orador, solene na
sua roupa preta e no seu português castiço, afirmou que os baianos, como latinos dos melhores e mais puros, estavam ligados à
Roma Imperial que o Duce queria reviver à custa dos negros abexins. Foi aí que subiu à tribuna um majestoso mulato e
declarou que os baianos como descendentes dos africanos, mestiços dos melhores, estavam ligados sentimentalmente à sorte
da Etiópia.

Assim é a Bahia. Se disserdes que esta é a cidade de Castro Alves estareis dizendo apenas meia verdade. Se disserdes
que esta é a cidade de Rui Barbosa estareis também dizendo apenas meia verdade. Entre o espírito libertário e o espírito
liberal vive a Bahia. Nunca fascista, se bem por vezes reacionária, saudosista, enamorada de fórmulas passadas. Mas por
outro lado, revolucionária, afirmativa, progressista e até violenta. Essas duas figuras do seu passado e tudo que a
representaram dominam a mentalidade da Bahia: o poeta libertário Castro Alves e o tribuno liberal Rui Barbosa. De Rui toma
a Bahia certo amor ao castiço, ao verbo eloquente, mesmo a retórica, à frase sonora, ao liberalismo político. De Castro Alves
recebe a vocação do futuro, o desejo de liberdade, a capacidade de romper com o passado, de marchar para a frente, flama
revolucionária. Gilberto Freyre já notou que o espírito de moleque rompe sempre, na Bahia, o excesso conservador que tenta
impor-se. O conservador e o revolucionário coexistem no espírito da cidade, chocam-se, fundem-se por vezes, são quase
palpáveis no seu contraste. Vereis aqui as diferenças mais absurdas em todas as coisas. Encontrareis uma arte essencialmente
política, desde os tempos longínquos de Gregório de Matos até os dias de hoje, uma arte a serviço do povo, ligada ao
quotidiano, ao local, ao imediato, visando o futuro, mas encontrareis também, com certa notoriedade estadual ou municipal, os
mais carunchentos gramáticos, os estilistas mais torcidos, mais quinhentistamente ilegíveis de todo o país.

A Bahia orgulha-se do gramático Carneiro Ribeiro, discutindo com Rui Barbosa, seus pronomes tão bem colocados como
não o faria o melhor professor de Coimbra, e orgulha-se de um educador como Anísio Teixeira, que revolucionou a pedagogia
brasileira. Assim é a Bahia no choque permanente das duas faces, dos seus dois pensamentos. Sempre política. Não será
política por acaso a literatura conservadora de Pedro Calmon, tão política quanto os ensaios de Hermes Lima ou de Edison
Carneiro? A política é a vocação do baiano.

No equilíbrio resultante por vezes do choque desses espíritos díspares que povoam a cidade surge um João Mangabeira,
como perfeito exemplo. O baiano com todas as suas virtudes de inteligência e com todas as características do seu
temperamento. Cultuando o passado e sonhando o futuro. O baiano que faz da amabilidade uma verdadeira arte, que é arguto
até não mais poder, que é cordial e compreensivo, descansado e confiante. Que desmorona com uma piada agressiva todo um
edifício de retórica. Escondendo sob o fraque solene um coração jovem. Gostando de rir, de conversar, de contar casos.

Eis uma cidade onde se conversa muito. Onde o tempo ainda não adquiriu a velocidade alucinante das cidades do Sul.
Ninguém sabe conversar como o baiano. Uma prosa calma, de frases redondas, de longas pausas esclarecedoras, de gestos
comedidos e precisos, de sorrisos mansos e de gargalhadas largas. Quando um desses baianos gordos e mestiços, um pouco
solene e um pouco moleque, a face jovial, começa a conversar, se fechardes os olhos e fizerdes um pequeno esforço de
imaginação podereis distinguir perfeitamente o seu remoto ascendente português e seu remoto ascendente negro, recém-
chegado um da pátria colonizadora, recém-chegado outro das florestas da África. De quem é esta gargalhada clara e solta se
não do negro? De quem é esta solene consideração para com o doutor, que é salafrário personagem da história que ele conta,
se não do português imigrante, rude admirador dos mais sábios? Essa mulataria baiana, essa mestiçagem onde o sangue negro
entrou com uma boa parte, não produziu o clássico mulato espevitado, pernóstico, egoísta, adulador e violento com os
inferiores. Sempre que penso no mulato baiano vejo um homem gordo. Gordo não apenas fisicamente. Como caráter também:
bom, amável, glutão, sensual, agudo de inteligência, bem-falante mas de fala mansa, sabendo tratar tão bem os inferiores
quanto os superiores, ou melhor ainda. Comendo comida gordurosa, cheia de azeite, mas apimentada também. Assim é o
homem da cidade da Bahia, um pouco derramado e um pouco distraído. Um pouco poeta, poder-se-ia dizer, mas também
astutamente político, o mais hábil político do Brasil. Não foi por acaso que a Bahia que fez do jovem e agressivo tenente
Juraci Magalhaes um finíssimo político, lembrando aqueles de antigamente, que transformou o magro oficial de 30 num homem
gordo que se apoderou das melhores virtudes políticas baianas? Alguém me disse certa vez, analisando o caráter baiano, que
Juraci Magalhães aqui chegara quase direitista e daqui saiu democrata progressista, cheio de compreensão humana. Assim é a
Bahia. Este é o seu clima, ligado ao passado, fitando o futuro. Nenhuma outra cidade do Brasil se mantém nesse equilíbrio
espiritual que exige dos homens uma constante vigilância para não cair num conservadorismo reacionário ou num anarquismo
inconstrutivo. Ao lado da vetusta Catedral está a Faculdade de Medicina, onde os estudantes abrem cadáveres para buscar a
explicação da vida. Já há algum tempo que as macumbas deixaram de ser apenas uma constante religiosa dos negros querendo
conservar alguma coisa da sua cultura própria. São hoje também tema e material de estudos de jovens sábios que conservam
viva a memória do grande Nina Rodrigues.

Pode-se falar numa escola intelectual baiana, com características próprias que a diferenciam do Rio, de São Paulo, do
Recife ou de Porto Alegre. Se bem o intelectual de qualquer dessas cidades tenha alguma coisa de baiano, sempre. O gosto
quase sensual das palavras e do debate de ideias, a liberalidade da discussão, certa cordialidade democrática, o amor à
liberdade, eis algumas das marcas intelectuais do baiano. É claro que alguns ficam apenas na recordação saudosista do
passado, presos ao lado conservador do espirito da cidade. Na sua maioria, porém, eles formam uma escola de arte política
que é tradição da inteligência baiana e é também a realidade intelectual de sua arte. João Mangabeira, Hermes Lima, Luiz
Viana Filho, Anísio Teixeira, Sosígenes Costa, Dias da Costa, Jacinta Passos, Édison Carneiro, James Amado, Adonias Filho,
Jorge Medauar, Alves Ribeiro, Nestor Duarte, Rui Santos, Camilo de Jesus Lima, Herberto Sales, Wilson Lins, Godofredo
Filho, Clarival Prado Valadares, Afrânio Coutinho, Eduardo Portella, Eugenio Gomes, Aloysio de Carvalho Filho, Clóvis
Amorim, Vivaldo Costa Lima, Ariovaldo Matos, Vasconcelos Maia, Luiz Henrique, Glauder Rocha, Pinto de Aguiar, Paulo
Gil, Carvalho Filho, Florisvaldo Matos, Jair Gramacho, José Pedreira, são nomes que provam que a tradição mais poderosa
da inteligência baiana perdura viva. A esses nomes podem-se ligar vários outros, de intelectuais nascidos em diversos
Estados mas que vieram a realizar-se completamente sob a imediata influência do clima da Bahia. Não é a obra de Artur
Ramos, por exemplo, caracteristicamente baiana? Ou a do contista Herman Lima, e, a partir de certo momento, a do poeta e
publicista Odorico Tavares? Não são hoje baianos os poetas Wilson Rocha e Carlos Eduardo?

Sendo a cidade negra por excelência do Brasil, com uma grande população de cor, é aquela onde menos existe, em nosso
país, o preconceito racial. O que não quer dizer que ele seja inteiramente inexistente. A mistura de sangue é muito grande e em
sã consciência pouca gente poderá negar o avô negro mais ou menos remoto. A influência do negro sente-se em toda a parte.
Não apenas no aspecto físico da cidade mas na sua vida. A superstição alastrada confundindo-se muitas vezes com a religião.
Cidade religiosa, sem dúvida. Porém onde se encontrarão na religiosidade do baiano os limites entre religião e superstição?
Estão as duas quase sempre confundidas e quase sempre predominando a última. Os ritos religiosos adquirem aqui estranhas
modalidades, os cultos católicos aformoseiam-se logo com uma aura fetichista. Há qualquer coisa de pagão na religião dos
baianos, qualquer coisa que raia pelo sensual e que faz com que as múltiplas igrejas não sejam senão uma continuação,
estilizada e civilizada, das macumbas misteriosas. Ao lado desse religiosismo supersticioso encontramos um anticlericalismo
militante no povo em geral. Poucas pessoas menos populares na Bahia que o atual Arcebispo. Não existem, como em muitas
cidades, padres de larga popularidade. Ao contrário, muitas das festas religiosas e populares (a do Senhor do Bonfim por
exemplo) encontram feroz oposição por parte do clero que vive em constante luta com o povo. Nesse particular a Bahia
recorda a Vascônia, na Espanha, com seu povo religioso e anticlerical. Ou os mexicanos que, nas revoluções de Zapata e
Pancho Vila, fuzilavam os padres aos gritos de "Viva Nossa Senhora de Guadalupe". Fenómeno idêntico se passa na Bahia
onde junto ao povo negro a autoridade do padre é nenhuma se comparada à dos pais e mães-de-santo, enquanto que as classes
ricas, como em toda a parte, utilizam politicamente o padre sem lhe ter o menor respeito.

Um povo bom, amigo de cores berrantes, ruidoso e ao mesmo tempo com certa timidez, de admiração fácil, acolhedor e
democrata. Sob um céu de admirável limpidez, na fímbria do mar ou pela montanha onde corre sempre uma cariciosa aragem,
vive o povo mais doce do Brasil. Na cidade do Salvador da Bahia.
ESCORRE O MISTÉRIO SOBRE A CIDADE COMO
UM ÓLEO

Escorre o mistério sobre a cidade como um óleo. Pegajoso, todos o sentem. De onde ele vem? Ninguém o pode localizar
perfeitamente. Virá do baticum dos candomblés nas noites de macumba? Dos feitiços pelas ruas nas manhãs de leiteiros e
padeiros? Das velas dos saveiros no cais do Mercado? Dos “Capitães da Areia”, aventureiros de onze anos de idade? Das
inúmeras igrejas antigas? Dos azulejos, dos sobradões, dos negros risonhos, da gente pobre vestida, de cores variadas? De
onde vem esse mistério que cerca e sombreia a cidade da Bahia?

"Roma negra", já disseram dela. "Mãe das cidades do Brasil", portuguesa e africana, cheia de histórias, lendária,
maternal e valorosa. Nela se objetiva, como na lenda de Iemanjá, a deusa negra dos mares, o complexo de Édipo. Os baianos
a amam como mãe e amante, numa ternura entre filial e sensual. Aqui estão as grandes igrejas católicas, as basílicas, e aqui
estão os grandes macumbas, o coração da seita fetichista dos negros brasileiros. Se o Arcebispo é o Primaz do Brasil, o pai
Martiniano do Bonfim era uma espécie de Papa das seitas negras em todo o país. Os pais-de-santo e as mães-de-santo da
Bahia vão bater candomblés no Recife, no Rio, em Porto Alegre. E seguem como bispos em viagem pastoral. De tudo isso
escorre um mistério denso sobre a cidade que toca o coração de cada um.

Não há cidade como essa por mais que a procureis nos caminhos do mundo. Nenhuma com as suas histórias, com o seu
lirismo, seu pitoresco, sua funda poesia. No meio da espantosa miséria das classes pobres, mesmo aí nasce a flor da poesia
porque a resistência do povo é além de toda a imaginação. Dele, desse povo baiano, vem o lírico mistério da cidade, mistério
que completa sua beleza.

A cidade da Bahia se divide em duas: a cidade baixa e a alta. Entre o mar e o morro, a cidade-baixa é do grande
comércio. As casas exportadoras, os representantes de firmas de outros Estados e do estrangeiro, os bancos, as sociedades
anônimas, a Associação Comercial, o Instituto do Cacau. Antigamente, quando o mar não se quebrava no cais, quando vinha
até os fundos do Café Pirangi, esta parte da cidade era tipicamente ·portuguesa, com seus casarões, seus azulejos, suas
escadas incomodas, um cheiro a mercadorias importadas característico de armazéns e mercearias. Ainda é essa a sua feição
mais marcante. As ruas mais próximas ao morro e as ladeiras que partem em busca da cidade alta, igrejas como a da
Conceição da Praia que veio pronta de Portugal para ser armada aqui, tudo isso recorda as cidades portuguesas. Mas na parte
conquistada ao mar, onde foi antes o areal do cais, as construções modernas já não lembram a colonização lusa. Prédios como
o do Instituto do Cacau, as construções mais recentes naquela parte da cidade-baixa, a primeira a ser vista pelo turista,
modificaram um pouco a impressão inicial que se tinha da cidade. É bem verdade que logo se encontra o viajante ante o
edifício da Alfândega, tipicamente português, construído durante o reinado de D. João VI.

Na estreita faixa de terra entre o mar e a montanha, umas poucas ruas paralelas e alguns becos que as cortam, ladeiras que
sobem o morro, a cidade-baixa trabalha sob a proteção de um monumento ao Visconde de Cairu que se levanta em frente à
Associação Comercial, outra típica construção colonial. Nas suas proximidades fica a Mesa de Rendas Estadual. Esses dois
edifícios e mais o da Alfândega são pesados casarões antigos, de largas paredes e grossas portas. Já aqui estamos num mundo
português adoçado pelo negro.

Várias ladeiras ligam a cidade-baixa à alta. A mais importante delas é a Ladeira da Montanha, aberta no morro em cuja
encosta rasgam-se buracos acimentados onde ferreiros trabalham e nos quais, por mais incrível que pareça, já residiram
famílias. Casas, cujas fachadas simples dão para as ladeiras, descem o morro numa sucessão de andares para baixo, arranha-
céus ao vice-versa. Ficam trepadas no morro como se fossem largas e estranhas escadas. Seu colorido rosa ou azul brilha
entre o verde da montanha.

Para além da cidade baixa no contorno da baía, fica a península de Itapagipe, bairro de pequena burguesia pobre e de
proletariado, separado do resto da cidade por uma longa rua que parte da Associação Comercial e vai até a Calçada, de
construções num único lado, pois do outro está o mar. É nesta rua que acontece a Feira da Água dos Meninos e se ergue a Base
Baker da Marinha norte-americana.

A cidade-alta, excetuando as ruas centrais de comércio, é residencial, desdobrando-se em bairros no caminho do mar,
distanciando-se dele pelo interior.

A noite o silêncio povoa a cidade baixa. Ela dorme pelo cais, pelas casas comerciais fechadas, pelos bancos sem
movimento, nos casarões e nos saveiros de velas arriadas. A cidade-alta movimenta-se para os cinemas, para as festas, para
as visitas. Os elevadores e planos inclinados a estas horas quase não têm freguesia.

As duas cidades se completam, no entanto, e seria difícil explicar de qual das duas provém o mistério que envolve a
Bahia. Porque o sentireis tanto na cidade-baixa como na alta, pela manhã ou pela noite, no silêncio do cais ou nos ruídos da
gente da Baixa dos Sapateiros. Não tenteis nunca explicar o mistério dessa cidade. É segredo que ninguém sabe, chega talvez
do seu passado na sombra do forte velho sobre o mar, chega talvez do seu povo misturado e alegre, talvez do mar onde reina
Iansã, talvez da montanha coberta de verde e salpicada de casas. É certo que o sentireis. Ele rola sobre a Bahia, é como um
óleo que vos envolverá desde o primeiro momento. Quando na noite solitária da cidade-baixa o ruído do baticum longínquo de
um candomblé coincidir com o encontro de um casal de mulatos que se dirige ao amor no cais, então compreendereis que esta
é uma cidade diferente, que nela existe algo que alvoroça o vosso coração. É uma cidade negra direi. Mas é também uma
cidade portuguesa. Não a tenteis explicar. Basta que a ameis como ela o merece. Com um amor que não tente esconder suas
chagas tão à vista. Que não tente negar a existência dos bandos de Capitães da Areia, roubando e assaltando porque têm fome.
A Bahia não precisa de vossa benevolência. Precisa, sim, de vossa compreensão e do apoio para que amanhã seu mistério não
se suje de miséria, para que sua beleza não esteja manchada de fome.

Não tenteis explicá-la. Pois seu mistério é como um óleo que escorre do céu e do mar e vos envolve todo, corpo, alma e
coração.
NOME DA CIDADE

Os filósofos e historiadores perdem tempo discutindo se esta cidade se chama cidade do Salvador ou cidade de São
Salvador. Cidade do Salvador da Bahia, dizem alguns. A verdade é que ninguém está ligando a mais mínima aos filólogos. Os
nomes das cidades não resultam da discussão acalorada dos graves senhores acadêmicos. Podem eles perder o tempo que
quiserem, podem encher colunas de jornais da terra com alarmantes artigos, escrever grossos volumes que ninguém lê, xingar
e esbravejar, o povo continua chamando sua cidade pelo doce nome de Bahia. Esta é a cidade da Bahia. Assim a trata o povo
de suas ruas desde a sua fundação a 1° de Novembro de 1549.

Pode ser que o colonizador devoto desejasse colocar a esta cidade sob o patrocínio de Jesus e assim a batizasse como a
sua cidade. Mas somos um povo misturado, com sangue índio e muito sangue negro, e o nosso primitivismo ama os nomes
pagãos tirados da natureza em torno. Bahia. Em frente à cidade está a baía enorme, belíssima, rodeando a ilha de Itaparica,
recebendo as águas do rio Paraguaçu. Nela nadou Moema em busca de seu amor até morrer. Bahia de Todos os Santos. O
católico lusitano batizou a baía em redor. O índio e o negro crismaram a cidade que ali nasceu: Bahia tão-somente. Não
adiantou o desejo de D. João III, Rei de Portugal, que, mesmo antes de fundar a cidade, deu-lhe o nome de Salvador. Não
adiantou a pertinácia de Tome de Sousa conservando-lhe esse nome quando todos a chamavam Bahia. Esse povo misturado é,
por vezes, cabeçudo. Permaneceu Bahia.

De nada adianta a grave discussão dos senhores acadêmicos. Ela se processa sob a mais absoluta indiferença popular. O
povo não deseja saber se a cidade se chama Salvador ou São Salvador, se quem tem razão é o rato de biblioteca que não
enxerga a vida há um quarto de século e ainda intitula amante de concubina ou se é o charlatão de pouco saber que apenas
deseja bancar importância e exibir conhecimentos que não possui. Para o povo é a cidade da Bahia.
NOME DE RUAS

Esses nomes como poemas das ruas da Bahia! Os senhores acadêmicos, historiadores de meia-pataca, filósofos que
pensam estar em Lisboa e se fizeram cães de guarda da língua lusitana, não se contentam com o desejo de impor um nome à
cidade da Bahia. Desejam também que o povo aprenda os novos nomes das artérias citadinas. Arrancaram os nomes antigos
de um sabor e de um pitoresco deliciosos, e puseram nomes desconhecidos de gente que pouco ou nada fez de valioso neste
mundo. Não há meio do povo decorar esses nomes, de substituir os antigos que recordam realidades históricas e não apenas
vultos medíocres.

Há uma rua que se chama dos Quinze Mistérios... Quanta coisa a imaginar à base desse nome que logo evoca amores
românticos, mistérios maçônicos, conspirações, raptos de donzelas, fugas de negros! Que quinze mistérios seriam esses além
dos do rosário? Ah! podiam ser todos os mistérios do mundo que todos os mistérios cabem em qualquer rua da Bahia.

No Largo dos Aflitos, para o qual conflui também a Rua dos Aflitos, há um ponto que domina o mar e de onde se
descortina parte da cidade. Chama-se Mirante dos Aflitos. Eis que os homens cheios de aflição, aqueles de coração pesado de
tristeza, vinham até o alto do morro e daqui olham o vasto mar que é um convite à aventura, a montanha bravia, os telhados da
cidade. E sua aflição diminui, e a tristeza não mais habita aqueles corações. Mirante dos Aflitos, título para livro de poemas,
tão poderosamente dramático!

Como chamar de outra maneira a Ladeira do Pelourinho onde se elevava o pelourinho nos tempos passados? Ali sofriam
os negros como sofrem hoje os pobres que habitam os casarões. No Largo estavam os instrumentos de tortura. Deram o nome
de José de Alencar à Ladeira do Pelourinho. Quem sabe disso? Talvez nem mesmo os prefeitos da cidade o saibam. O
glorioso romancista merecia bem uma rua. Mas outra qualquer onde seu nome se fixasse. Aqui ele jamais será lembrado
porque a sombra do pelourinho ainda se estende sobre os homens que descem a Ladeira ou que sobem as escadas apodrecidas
dos sobradões como túmulos.

Portas do Carmo, Guindaste dos Padres... Gosto particularmente de Beco do Calafate. Nomes sobre os quais se pode
imaginar. Como não imaginar uma história dramática com muito sangue e punhais erguidos, com diálogos ao jeito de Perez
Escrich, ao pronunciar o nome da Rua do Cabeça? Vejo esta cabeça solta, decepada, o sangue ainda rolando. Seria a cabeça
de um negro escravo, morto para exemplo pelo senhor sem dó nem piedade? Seria a cabeça de um nobre, cortada à noite na
vingança de um ultraje? Ah! quanta coisa não pode ser, quanta história não pode encerrar esta Rua do Cabeça, da cabeça sem
corpo, solta, sozinha, sem nenhuma explicação!

Escreverei dez nomes e cada qual é mais sugestivo e mais saboroso: Rua da Agonia, Ladeira da Água Brusca, Rua do
Chega Negro, Rua da Forca, Travessa da Legalidade, Jogo do Lourenço, Largo das Sete Portas, Travessa do Bângala, Rua dos
Marchantes, Rua Bugari...

Existe a Avenida dos Amores e a das Sete Facadas. O Beco do Sossego e a Rua Mata Maroto. A Baixa da Égua e a Fonte
dos Frades. O Bom Gosto do Canela e a Rua da Água do Gasto. A Rua Alegria do Paraíso e a Travessa de Chico Diabo.
Quem foi Chico Diabo? Foi o da Guerra do Paraguai ou foi outro qualquer? Ah! eu não o sei, mas deve ter sido personagem
importante, figura de proa por aqueles lados já que seu nome persiste até hoje na memória do povo. A Ladeira dos Galés e a
Avenida das Gardênias. O Alto do Gato e a Rua do Gasômetro. A Rua das Mercês e a Quinta das Beatas. A Avenida Crista de
Ouro e a Ladeira do Tabuão. A Lapinha e a Rua Areia da Cruz do Cosme. A Rua Boca da Mata e a Rua Cabuçu. Existe o Cais
do Ouro e o Porto da Lenha. A Cidade de Palha e a Rua da Quebrança.

Bolívar é o nome de uma rua. Mas não ficou só em Bolívar e puseram um sobrenome ao herói americano. Virou Bolívar
das Flores e assim permanece até hoje. A Travessa Zumbi dos Palmares honra o grande negro libertador. E a Rua do Bom
Marché? A Estrada da Liberdade é o nome de um bairro operário. A Estrada da Liberdade... Sobre a fome e a pobreza, sobre
a miséria nos casebres, a liberdade aponta o futuro. Nome bem posto.
São muitas as ruas, são muitos os nomes assim tão saborosos. Os prefeitos vêm e mudam as placas a conselho dos graves
senhores acadêmicos. Ninguém liga. Os nomes antigos continuam, contam coisas da cidade, fazem parte não apenas da sua
história como também da sua beleza.
NO LARGO DA SÉ EXISTIA UMA IGREJA...

A Rua da Misericórdia desemboca no Largo da Sé. No outro extremo do Largo começa o Terreiro de Jesus, com suas
igrejas e com a Faculdade de Medicina (no mesmo lugar onde ficava o Colégio dos Jesuítas nos tempos coloniais). No Largo
da Sé misturam-se sobrados antigos com edifícios novos. Lá se encontram o prédio da Circular, o Cinema Excelsior e o
Palácio Episcopal. Nesse palácio residia antigamente o Arcebispo. Isso tudo do lado esquerdo de quem vem da Rua da
Misericórdia. O palácio do Arcebispado tem certo interesse arquitetônico. Em algum tempo foi pintado cor de barro, hoje de
branco, e é um modesto palácio. Há muitos anos que sua fachada está em constantes reformas. Quase nunca deixam de elevar-
se em sua frente os andaimes onde trabalham operários, O Cinema, onde funcionam também os estúdios de uma estação de
rádio, pertence aos padres que, segundo se afirma, são igualmente acionistas da rádio. Antes da reforma atual esta Rádio
Excelsior era um primor de quinta-colunismo. Como os seus proprietários anteriores. Dizem, e talvez seja verdade, que um
célebre Frei Hidelbrando, nazista de quatro costados, ainda possui ações e influência na rádio. De qualquer maneira hoje ela
já não transmite os boletins da Transocean. O prédio da Circular é sólido como a própria empresa de que é sede: "Companhia
Linha Circular de Carris da Bahia". Companhia americana que suga avaramente os centavos do ovo pobre e os cruzeiros dos
afortunados: luz, telefone, elevadores, planos inclinados, bondes. Se mais coisas houvesse mais dinheiro a circular sugaria. A
companhia é naturalmente odiada pelo povo que vê nela um símbolo palpável do imperialismo. O ódio tem as suas razões: a
iluminação é má, o serviço de telefones é péssimo e os bondes são um insulto à população. Aproveitável só mesmo o
Elevador Lacerda, 80 segundos, se tanto, de condução por um cruzeiro. O prédio da Circular possui, nos fundos, uma pequena
área que dá para a montanha de onde se tem magnífica vista do porto e do mar. Pessoas que se dirigem ou que vêm do Plano
Inclinado Gonçalves param nesta área para olhar, com carinho, o mar da Bahia onde se misturam as velas dos saveiros e os
cascos dos grandes cargueiros.

Do lado direito do Largo existem alguns sobrados antigos. Duas livrarias, a Sousa e a Progresso, casas de penhores,
relojoarias, alfaiatarias, farmácias e o que resta do antigo Bar Bahia no qual se reuniam, há uns quinze anos passados, os
jovens que, ao lado de Pinheiro Viegas, formavam um dos grupos da literatura moderna: Alves Ribeiro, Dias da Costa, Clóvis
Amorim, Edison Carneiro, João Cordeiro e outros. Era certo encontrá-los à tarde no Bar Bahia, em torno a um inocente café
pequeno, discutindo as ideias mais novas que surgiam na Europa e em São Paulo. João Cordeiro morreu depois de ter escrito
o romance da vida pequeno-burguesa da cidade do Salvador, e antes de ter escrito os grandes livros que poderia escrever.
Dias da Costa e Edison Carneiro foram embora para o Rio de Janeiro, contista e ensaísta de nome. Clóvis Amorim realizou
um romance sob o título de "O Alambique", e como a vida copia a arte — montou um alambique de verdade perto de Feira de
Sant’Ana e os leitores do seu primeiro romance, publicado em 1934, ainda esperam o segundo. Nas ruas da cidade só ficou
Alves Ribeiro, fiel aos amigos distantes, com o mesmo jeito esquivo de tabaréu e a mesma poderosa inteligência.

Antigamente aqui era a Igreja da Sé. Enorme, de pedras colossais, negra, pesada, talvez até feia. Sem dúvida era o
monumento histórico mais importante da cidade. Uma ruazinha dividia, partindo da igreja, o atual Largo. Era na esquina desta
rua que ficava, nos tempos gloriosos da literatura boêmia, o Bar Bahia, hoje apenas uma sala nos fundos de um armazém,
fielmente frequentado ainda por Manuel Lima, irmão de Hermes. Ao lado da igreja havia uma espécie de parque que servia
para tudo. Para encontros entre casais suspeitos, para bolinagens escandalosas, para descanso dos mendigos após um dia
trabalhoso, ponto estratégico também onde rameiras baratas convidavam marinheiros para o amor, para teatros pobres de
variedades, para quermesses, festas diversas. Por vezes armavam um ringue no centro do parque para lutas de boxe, onde
brilhava Euclides, o Psicólogo, campeão baiano de todos os pesos. Existiam no parque uns mictórios e seu lamentável odor
dominava quase inteiramente o Largo.

A Igreja da Sé era um dos orgulhos da cidade. Talvez o maior. Um historiador acadêmico disse, certa vez, que naquele
templo até o bolor era histórico. Frase pernóstica porém verdadeira. De quando em vez rolava uma pedra enorme sobre um
dos bondes que faziam a curva ao lado da igreja e algumas pessoas morriam ou iam para a Assistência. Era o que a Circular
queria. A Circular desejava derrubar a Igreja da Sé. Ali, onde se erguia a sede da Companhia, não era possível existir a igreja
tão baiana. A Circular, apoiada em políticos poderosos, oferecia dinheiro ao Arcebispo pelo velho templo. O Arcebispo, um
ancião sem ambições, ouvia as propostas gordas mas ouvia igualmente a grita do povo que gostava da Sé, se orgulhava da
igreja bolorenta de história. Afinal por que a Circular não fazia seus bondes trafegar pela Rua do Liceu, como o faria depois
durante muito tempo?

Na Igreja da Sé falara o Padre Antônio Vieira. Essa Igreja da Sé era velha, velha de não se saber a idade, bom assunto
para discussão entre historiadores encarquilhados, os altares ricos, recordando fatos heróicos da gente baiana. Dos púlpitos
dessa igreja o Padre Antônio Vieira pronunciara com sua voz de fogo os sermões mais célebres da sua carreira... Dali
imprecara a Deus, jesuíta que a Inquisição olhava com maus olhos, quando os holandeses conquistavam vitórias sobre vitórias
no Nordeste e pensavam em acrescentar as terras da Bahia à colônia batava de Pernambuco. Ali, naquela igreja negra, se dera
o estalo na cabeça do menino tapado que virou o padre mais inteligente do seu tempo. Quem não conhece essa história?
Vieira, segundo narram, era burrinho de fazer medo. Menino lusitano bem “atrasado”, incapaz de aprender com decência a
carta do ABC, a vergonha do colégio que os padres jesuítas mantinham em Salvador. Um dia na Igreja da Sé, deu-se o
milagre. No altar da Virgem o menino rezava. Andava melancólico com sua burrice. Rogou à Virgem que lhe desse um pouco
mais de luz ao cérebro. E, de repente aconteceu. Um estalo na cabeça do menino Antônio e eis que ele vira padre
inteligentíssimo. Começou logo a fazer sermões que ainda hoje são lidos e muito citados nas discussões entre filólogos. Dizem
que é ele o autor de um livro célebre e delicioso: "A Arte de Furtar". Quem quiser acreditar na história do estalo que acredite,
quem não quiser não acredite. Mas, como se vê, já naqueles longínquos tempos a feitiçaria andava a solta nas ruas da cidade.

Depois do estalo e do seminário, Vieira começou a fazer sermões. Esse padre ambicioso e político soube se levantar não
só pelo seu rei e pelos domínios portugueses. Levantou-se também pelo povo, mais de uma vez. Sua voz se ergueu pelos
índios e pelos negros, cuja sorte miserável quase nunca comovia os outros jesuítas, sócios e pontas-de-lança dos
colonizadores lusos. A voz de Vieira era dessas que se fazem ouvir, poderosa e plena de beleza. A Igreja da Sé estava cheia
de ecos da voz do Padre Vieira e o povo baiano gostava da sua igreja. Era o monumento maior da cidade. Este povo religioso
(mais supersticioso que religioso) e anticlerical tinha orgulho daquela igreja onde um padre, que vivia brigando com os outros
padres, dissera discursos monumentais. Ainda hoje o povo baiano gosta de um bom discurso.

Mas a Circular queria derrubar a Sé. Do parque do lado evolava-se um cheiro terrível de urina. Euclides, o Psicólogo,
abatia, com sua esquerda violenta, rivais vindos de longe, no ringue improvisado. Bailarinas e cantoras apareciam de quando
em quando — horrorosas. As pernas nuas de fora, a voz fanhosa, fracassadas de todos os teatros de verdade. Contam que, nas
noites de teatro de variedades no parque, janelas laterais do Arcebispado abriam frestas pelas quais espiavam os olhos ávidos
dos seminaristas de passagem. E uma luz de cobiça iluminava então o velho parque malcheiroso. Lá embaixo era o mar imerso
na noite.

E o vulto negro da Sé, as pedras caindo, matando gente, a História cheia de bolor, ninguém mandando conservar a Igreja
sobre todas preciosa. Dinheiro era para a Igreja de São Francisco com sua ourama e seus padres alemães que depois se
revelariam a flor da quinta-coluna em terras da Bahia. No abandono mais completo, cresciam entre as gretas das paredes de
pedra, na Igreja da Sé, gravetos, ervas e o musgo verde. As pedras mal seguras pelo musgo ameaçavam rolar sobre os bondes
e, por vezes, rolavam mesmo. A Circular abria o berreiro, matéria paga nos jornais, os políticos trabalhando, que a gorjeta era
grande, o velho Arcebispo olhava de seu palácio pobre a igreja de Vieira e deixava gritar. Os literatos sem que fazer saíam
em defesa da Sé. Era uma defesa saudosista e quase inócua. Nenhum deles, poetas de longas melenas e ameaçadores sonetos
nunca propôs uma obra séria capaz de conservar a igreja cujas pedras matavam gente. Ainda assim o povo aplaudia os
literatos. Os jornais se enchiam de versos. Hermes Fontes escreveu um poema achando que a Sé não devia ser derrubada.
Houve até duelos metrificados entre literatos de notoriedade estadual. A Circular gastava dinheiro, dinheiro do mesmo povo
que queria conservar seu monumento histórico. Cresciam arbustos pelas paredes, no parque ao lado as prostitutas passeavam,
descansavam mendigos.

Um dia o velho Arcebispo morreu e veio um novo. Escrevia versos parnasianos, entrou em luta com as confrarias
religiosas, esbofeteou uma freira nos Perdões, tentou acabar a festa do Nosso Senhor do Bonfim. Trazia a virtude afivelada ao
rosto como uma máscara de ferro. Para um povo religioso (leia-se supersticioso) e anticlerical, deram um Arcebispo
irreligioso e clerical. Um Arcebispo inimigo das festas populares e amigo dos frades de São Francisco. Um Arcebispo que
logo achou o Palácio Episcopal, baixo e pintado cor de barro, moradia indigna de Sua Reverendíssima e de seus versos
parnasianos.

E a Circular ganhou a questão. Não adiantou a grita do povo, as toneladas de versos que os poetas rastaqueras
escreveram entupindo os mesmos jornais que recebiam matéria paga da companhia americana. Os ecos da voz de Vieira
ficaram soltos no Largo, se perderam no céu azul. As pedras negras ninguém sabe para onde foram, o altar do estalo está
guardado. Falam que muitos e muitos documentos históricos serviram para que sacristães analfabetos e efeminados
acendessem os seus fogões. O povo da Bahia perdeu seu monumento, a ruazinha atrás da igreja veio abaixo e os bondes da
Circular ficaram com todo o Largo. Puseram uns bancos de mármore, plantaram uns fícus. Onde era o parque construíram certa
monstruosidade arquitetônica que chamam de Belvedere. Tudo que se salva é a vista sobre a montanha e o mar.

Havia antes uma sólida beleza, negra e pesada, que era necessário conservar, que pertencia ao povo todo, era um bem da
cidade. Agora tudo ficou pequenino apesar do alargamento surgido da derrubada da igreja e da rua. Ficou tudo de um mau
gosto irritante. O Arcebispo foi morar no Campo Grande, em palácio novo. Dizem as más línguas que dado pela Circular. É o
povo baiano usando a língua do Padre Vieira, o que escreveu "A Arte de Furtar". Houve compensações monetárias para o
Arcebispo. Luz de graça para o Seminário ou coisa parecida. O povo perdeu seu monumento histórico e não ganhou nada.
Tampouco os seminaristas que vinham espiar com olhos cúpidos, pelas gretas das janelas, as bailarinas péssimas porém ainda
assim excitantes nas noites de teatro pobre no parque malcheiroso.

Dizer que o povo não ganhou nada é exagero. Anos depois, em 1944, no lugar onde ficava o altar-mor da Igreja da Sé
ergueram o busto de Dom Fernandes Sardinha, o primeiro Bispo do Brasil, que naufragou na viagem e foi comido sem tempêro
pelos índios caetés, ascendentes do romancista Graciliano Ramos. O Bispo Sardinha nada tem que ver com a Sé nem com a
Bahia, mas lá está ele, de mitra na cabeça, sobre um pedestal. Em vez da igreja histórica, cheia das sonoridades oratórias de
Vieira, um bispo alimentar. Mania de contrariar o povo que é religioso (melhor: supersticioso) mas não gosta de bispos,
atualmente nem como alimento.

Um baiano, certo dia de comício no Largo, no intervalo dos oradores antifascistas, resumiu toda essa história numa clara
explicação:

— Mas, se é claro como água... A Circular tinha medo de outro milagre como o do estalo. Essas coisas por vezes se
repetem... Tinha medo que um dia o Padre Vieira aparecesse, de repente, e começasse de novo aquele sermão contra os
holandeses. Mas trocando holandeses por Linha Circular. Vocês compreendem, ia ser o diabo... Imaginem vocês o Padre
Vieira abrindo a boca de ouro e berrando... Vieira, hein! imaginem vocês... Um dia surgia no púlpito da Sé, reunia o povo,
sapecava um sermão contra a Circular... Imaginem, com esses bondes como estão e com a ameaça de aumento...

E começou, como bom baiano, a imaginar acontecimentos graves e deliciosos. Então alguém perguntou:

— E o busto do Bispo? Por quê?

— Ora, o Bispo Sardinha é o patrono da Circular. O mais remoto símbolo nacional do imperialismo... Que vinha ele fazer
aqui senão auxiliar a conquista da terra dos índios pelos portugueses? Que era ele senão um agente do imperialismo lusitano?
Vieira é um perigo pra Circular. O Bispo não, é um patrono. Os da Circular prestam-lhe uma homenagem contra os índios
patriotas que realizaram com ele uma experiência culinária. Como vêem, é tudo muito lógico...

Consta que o Arcebispo escreveu um soneto parnasiano sobre a derrubada da Sé. Os diretores da Circular, ao que conste,
não escreveram soneto algum...
BAIXA DOS SAPATEIROS

O nome verdadeiro desta rua é José Joaquim Seabra, em honra do político baiano que foi governador do Estado, senador,
deputado, ministro, governo e oposição, tribuno, professor e jornalista. As placas nas esquinas assim o dizem. E não há como
negar a indiscutível popularidade de Seabra em sua terra natal. O seu enterro, em 1942, foi uma apoteose democrática. Seabra
morreu quando o Brasil acabara de entrar na guerra e suas últimas palavras foram de repulsa ao fascismo e de confiança na
democracia. Milhares de pessoas acompanharam o corpo do ex-governador até o Campo-Santo. A multidão saudava alguém
que, com todos os seus erros políticos, representara no país um pensamento democrático e que soubera, no momento da guerra,
colocar-se acima de todas as divergências partidárias para pensar exclusivamente na pátria.

O velho Seabra era uma figura amada pelo povo e sua memória é sagrada para os baianos. Pois bem: ainda assim não há
quem se refira à Rua José Joaquim Seabra. É a Baixa dos Sapateiros, a Baixinha como o povo a trata com familiaridade. Rua
comprida, se desenvolvendo numa curva, vai da Barro-quinha, nas vizinhanças do Largo do Teatro, até a Ladeira Ramos de
Queiroz. Eternamente cheia de gente que salta dos bondes ou que os espera, de povo que sobe pelo Tabuão, no velho elevador
ou a pé, de pessoas que descem as inúmeras ladeiras que ali desembocam. A Baixinha é uma espécie de intermediário entre a
cidade-baixa e a cidade-alta. As ladeiras dão para ela, vindas do Terreiro ou de Nazaré do Barbalho ou da Rua Quinze
Mistérios, subindo também da cidade-baixa. Alguém já disse que a Baixa dos Sapateiros era como a pequena-burguesia que
fica entre o proletariado e a grande burguesia. Assim a Baixinha em relação à montanha e o mar. É a rua de comércio
pequeno-burguês. É verdade que já os operários se misturaram um pouco à gente que faz suas compras na rua do dr. Seabra.
Mas é que o empobrecimento constante da pequena-burguesia começa a tornar difícil uma perfeita diferenciação entre os
pequenos funcionários públicos, os empregadinhos no comércio, os donos de vendolas e os operários de fábricas ou os
artesãos. Não que os operários enriqueçam. São os pequeno-burgueses que empobrecem ainda mais.

Na Rua Chile, estendendo-se para São Pedro, ficam o comércio grã-fino, as grandes casas de modas, luxuosas e caras. O
povo não compra ali. "Não pode pagar o luxo", explica a dona-de-casa que toma o bonde para a Baixa dos Sapateiros. Há uma
sensível diferença de preço. Tudo um pouco mais barato e também muita coisa de condição inferior. Lojas e lojas, grande
percentagem de árabes, casas de fazendas, sapatarias, bazares onde tudo se mistura, cinemas populares, algumas pastelarias e
padarias. De quando em vez casas de moradia. E a multidão. A rua vive cheia, constantemente cheia. Por ali passam todos os
bondes da chamada linha de baixo: Lapinha, Santo Antônio, Barbalho, Estrada da Liberdade, Calçada, vários outros.
Bagageiros que não trafegam na Rua Chile. Ali fica também o Corpo de Bombeiros, pintado de vermelho, num pequeno largo
no sopé da Ladeira da Praça.

As frentes das lojas exibem uma variedade incrível de produtos. Fachadas de cores berrantes, vitrinas de pouco gosto,
liquidações, queimas, preços de ocasião. Gordas senhoras árabes surgem por trás dos balcões servindo a freguesia. Nas
confeitarias são espanhóis, galegos imigrantes que aqui se fizeram técnicos no comércio de padarias e bares. A colônia é
grande e, dizem, forneceu muito dinheiro para Franco durante a guerra espanhola. Mas existem também sinceros republicanos
que esperam ver a Espanha livre do carrasco fascista.

As casas são baixas, em geral de dois andares, um ou outro casarão, algumas casas térreas. Os arranha-céus ainda não
começaram a se levantar na Baixa dos Sapateiros. Nos passeios, as “baianas” com seus tabuleiros de cocada e frutas.

Escorregadias ladeiras partem da Baixa dos Sapateiros. Ela é um dos centros mais importantes da cidade. Nela a pequena
burguesia se abastece, se veste e se calça. Nos seus cinemas se diverte assistindo às reprises dos filmes. Ali existiu um
cinema célebre: o "Olímpia", hoje desaparecido. Dava sessões intermináveis com 30 e 50 partes de filmes. Foi substituído
pelo "Popular" que faz concorrência ao "Pax", cinema enorme. Lá está também o "Jandaia", que nasceu grã-fino mas logo
compreendeu que, ficando na Baixa dos Sapateiros, jamais poderia ser cinema de primeira linha. Quando se inaugurou era
cinema de estréias, de lançamentos, tinha orgulho dos seus aparelhos de som. Hoje repete os filmes dados antes nos cinemas lá
de cima. A Baixa dos Sapateiros não nasceu para granfa. É a rua pequeno-burguesa por excelência e talvez a mais baiana das
nossas ruas, não tanto pela arquitetura que aqui nada apresenta de notável, mas pela população que por ela transita.
Encontrareis ali o empregado do comércio que volta de oito longas horas de balcão. Encontrareis o magno funcionário
público que ganha oitocentos mil-réis por mês após muitos anos de serviço. Encontrareis o poeta subliteratíssimo que acabou
de proclamar um soneto para um conhecido enquanto esperam o bonde. É uma humanidade carregada de embrulhos, pão para o
café, charutos baratos, acotovelando-se no ponto do bonde. Gente que não subiu o Elevador Lacerda nem o Plano Inclinado
para economizar um tostão, pois a passagem no Elevador do Tabuão é mais barata. Vão para os bairros pequeno-burgueses
mais típicos da cidade: Lapinha, Santo Antônio, Barbalho, Brotas, bairros operários também: Estrada da Liberdade, Calçada.

Uma gente cansada, de poucos sonhos, de poucas leituras. "A Tarde" embaixo do braço, em casa esperam o pijama e o
chinelo. Artéria por onde circula, onde compra e onde se diverte a pequena burguesia tão pobre da Bahia.
BARRA E BAIRROS GRÃ-FINOS

Os bairros de moradias mais elegantes, os mais caros, aqueles onde vive a grande-burguesia e parte da média, ficam na
cidade alta, para além do Campo Grande. Os grã-finos há muito que abandonaram os sobrados da Avenida Sete, no trecho
compreendido entre São Pedro e o Palácio da Aclamação. Antigamente era chique morar ali, hoje os casarões têm os seus
andares térreos invadidos pelo comércio e nos andares superiores formigam hóspedes de pensões mais ou menos habitáveis.
Já não é com orgulho que os elegantes dizem residir na Avenida Sete, no Rosário ou nas Mercês, nomes que sugeriam antes
grã-finismo ou dinheiro. Hoje as famílias pequeno-burguesas, moças funcionárias, rapazes estudantes, apertam-se nos quartos
de pensão nesses trechos da Avenida, pois casa está muito difícil, os aluguéis elevados. Os granfas foram para adiante do
Campo Grande. A Vitória — o Corredor e a Ladeira — Graça, Barra, certos trechos de Barra-Avenida, Avenida Oceânica,
eis onde estão os homens de dinheiro. O mar da Bahia é sua paisagem. O verão ali é delicioso

A Vitória é uma larga rua que parte do Campo Grande. De sobrados antigos, residências amplas e confortáveis. Ouvireis
ali nomes que soam como títulos nobiliárquicos da monarquia. Hoje, a Universidade da Bahia ocupou vários desses palácios.
O Corredor da Vitória, apesar dos novos-ricos, é uma rua imperial, onde muita gente continua na saudade dos tempos de D.
Pedro II e dos escravos, das aias negras para catar cafuné e para levar cocorotes. De quando em vez de um desses sobradões
sai uma senhora engomada que parece surgir do passado, de há cinquenta anos e que olha para o comum dos mortais como
para seres de casta inferior. De certa senhora da Vitória, vestida como se fosse para um baile na Corte, ouvi um dia a
surpreendente afirmação de que "todas as desgraças do Brasil decorriam da Princesa Isabel". Ante a minha estranheza a
senhora com sete sobrenomes so-noros teve a bondade de explicar-me:

— Não foi ela quem libertou os negros?

E dissertou, com real e sentida mágoa, sobre o asco que lhe causara a necessidade, nascida da guerra, de ter que realizar
uma incômoda viagem de bonde ao lado de um negro que — imagine! exclamava ela — usava um anel de doutor.

Assim é a Vitória, na sua parte entre o Campo Grande e a Ladeira, o Corredor da Vitória. É o supra-sumo do grã-finismo,
daquele que vem da monarquia, que teve título, avós adulterinas que esquentaram leitos reais, escândalos e escravos. Apesar
dos casamentos rendosos com os novos-ricos, com as filhas de banqueiros ou de simples latifundiários ignorantes, nem por
isso a gente nobre da Vitória deixa de desprezar, no fundo, os habitantes da Ladeira, da Barra, da Graça, dos bangalôs da
Avenida Oceânica. Adula-os também que os tempos estão bicudos e muitos desses rapazinhos nobres, que nasceram para
condes e viscondes, barões e camareiros, contentam-se com modestos lugares públicos e vão cavando noivas ricas que
desejem acrescentar ao nome camponês a sonoridade pátrio-novista de um sobrenome carregado de passado. Um fim de gente,
se acabando em melancólica saudade. Muitos deles simpatizaram, aderiram, ajudaram o integralismo onde viam a
possibilidade de restauração de um Brasil imperial e escra-vocrata. Hoje esperam em Franco e no príncipe D. Pedro de
Orleans e Bragança, se bem não descartem ainda totalmente das suas cogitações restauradoras a Plínio Salgado e seu car-
naval com tômbolas e camisas.

Estes sobrados enormes da Vitória parecem feitos propositadamente para a moradia dessas tristes recordações. Pois são
imensos, cheios de quartos, salas, peças as mais diversas relembrando os tempos em que os escravos enchiam as sobras da
casa, depois da cozinha. São moradias dessa época, para famílias grandes, parentela em visita, gente chegada dos engenhos de
Santo Amaro, dos latifúndios no sertão. Árvores copadas crescem em alguns desses jardins. Cobrem com sua sombra o fim de
uma gente que não encontra mais seu lugar neste mundo.

Depois vem a Ladeira da Vitória. Do outro lado fica a Graça, grã-fina também. É verdade que não é tão nobre. Ali estão
os advogados de boa clientela, os médicos de grande clínica, gente de dinheiro. Na Ladeira da Vitória, em meio à qual ficam
uma igreja e uma chácara dos jesuítas, são ho-mens do comércio, fortunas mais recentes, que se espalham também pela Barra.

Eis o bairro da grande burguesia, seu bairro por exce-lência: a Barra. São casas novas em sua maioria, algumas bem
agradáveis. Ali estão as praias para o banho de mar, a viração da tarde, os clubes mais elegantes, o Yacht, o Baiano de Tenis,
a Associação Atlética.

É a mentalidade do dinheiro. Os homens da Associação Comercial, os banqueiros, os "calças-brancas", os industriais.


Algumas pensões, caríssimas, para aqueles que desejam passar o verão nas praias.

Existem na Barra dois recantos admiráveis. Um é o Forte de Santo Antônio no porto do mesmo nome. É um forte velho,
abandonado, o primeiro que se levantou na Bahia. Data de 1536. Um pequeno porto com uma feira aos sábados e nas manhãs
de domingo, os saveiros repousando, tudo isto ao lado da minúscula praia concorridíssima onde os corpos das grã-finas se
exibem aos olhos espantados e cobiçosos dos mestres de saveiro. Uma vela azul corta o mar verde, esplên-dido! Os grandes
navios passam ao longe, vê-se a fumaça que eles lançam. Baianas vendem doces. O forte é belo, entrando pelo mar, sentinela
da barra nos tempos antigos.

Mais adiante está o farol, ante a praia maravilhosa. Há uma pequena elevação e sobre ela, numa ponta que fende o mar,
levanta-se o farol majestoso, um forte antigo também trazido para a missão de paz de ensinar o caminho da barra aos
transatlânticos e aos cargueiros. As grandes pedras na praia onde as ondas furiosas se rebentam, o vento sempre forte do mar,
a perspectiva da Avenida Oceânica, fazem deste ponto talvez o mais belo de se ver da Bahia. Tem alguma coisa de selvagem,
de inconquistado, de poderoso que o mau gosto dos granfas ainda não conseguiu liquidar. Apesar da tristeza arquitetônica de
certas casas pseudomodernas, apesar do abandono do terreno em torno ao Farol que poderia ser trans-formado em magnífico
parque infantil, ainda assim vale a pena vir até o Farol da Barra, passando pelo porto de Santo Antônio, e demorar os olhos
nessa beleza em torno, o grande mar sem limites de cais, a praia alva, o forte antigo, o céu azul da Bahia. E o vento zunindo,
rebelde sobre a terra nas tardes de encanto.

Um arranha-céu levanta-se ante o farol e não há dúvida que não estragou a paisagem, deu-lhe mesmo contraste que a
tornou ainda mais saborosa. Mas onde estão os bares que deviam existir aqui para servir aos ricos que habitam o bairro, aos
pobres que o visitam nas tardes calorosas dos domingos de verão, aos turistas sequiosos? No "Conquistador", mistura de
armazém e restaurante, poderá o turista comer uma magní-fica galinha assada. Assim o fazem os namorados que fogem da
cidade para os recantos das pedras na praia da Barra, francamente iluminados à noite. Ali e por detrás do farol, o amor se
processa, sob a cumplicidade das sombras e dos guardas-civis cheios de mansa filosofia.

Da Barra se estende a Avenida Oceânica no caminho do Rio Vermelho. Talvez aí estejam as mais vistosas residências
particulares da cidade. Num pequeno morro, ao fim da Ave-nida, encontra-se um largo com um monumento a Cristo, feito
construir por um devoto. Sobre um pedestal de pedra, Jesus aponta para o mar. E encobre amores suspeitos nas noites de farra.
Um católico me explicou que não se trata de desres-peito nenhum já que este monumento foi custeado por um protestante, não
sendo assim santificado. Não importa pois que beijos pouco castos sejam trocados em seu pedestal... Dali tem-se uma vista
admirável do mar e da cidade, morros e montes de verdura.

Um resto da população rica vive em certos trechos da Barra-Avenida, limitando com miseráveis choupanas de operários.
Ali a riqueza e a miséria se encontram fronteiriças. O pintor paulista Manuel Martins, ao ver esse contraste na Barra-Avenida,
disse não saber de nenhuma cidade onde fosse tão chocante e brutal a diferença entre a riqueza e a pobreza. Esse contraste não
está apenas na Barra-Avenida. Está em todas as partes da cidade da Bahia.

Nos últimos anos, com a abertura de novas vias de acesso durante o governo Otavio Mangabeira, surgiram dois bairros
sobre o mar, onde os modernos arquitetos baianos construí-ram casas de grande beleza. São os bairros do Ipirariga e do
Jardim Brasil. Ao lado das residências da gente de diretores e artistas. No Ipiranga habita o poeta Odorico Tavares, em sua
bela casa iluminada pelos velhos santos de uma coleção esplendida e pelos quadros de Portinari, Pancetti, Di Cavalcanti, e
muitos outros pintores. Também a casa de Mirabeau Sampaio é por ali perto, e a coleção de santos do escultor nada fica a
dever à do poeta. Em Brotas, mora numa bela casa, o cidadão baiano Caribé, nascido em Buenos Aires, o noivo de Iemanjá. É
o pintor baiano por excelência mas sua casa guarda a lembrança de suas muitas viagens e das excursões pelo interior
nordestino, com Mário Cravo, nas cerâmicas populares e nos santos. Outro pintor importante, Jenner Augusto, vindo de
Sergipe, habita próximo a Mário Cravo. Ambos no Rio Vermelho. Aliás para o turista ir à casa de Mário não precisa de
endereço. Basta dizer ao chofer: "Casa de Mário Cravo." Não há chofer que não saiba onde fica a residência do famoso
escultor e quase pai-de-santo.

Também o lado da cidade que dá sobre a baía, nas ladeiras por detrás do Largo dos Aflitos, na Ladeira da Pre-guiça, por
exemplo, anda novamente valorizado. As grandes casas antigas, abandonadas pelos seus proprietários, estão sendo compradas
e restauradas. Duas delas, sobretudo, são verdadeiras belezas: a de Augusto Viana Filho e a do pintor Carlos Bastos, uma casa
azul, parecendo ter saído de um quadro desse admirável enamorado da cidade.
BAIRROS DA PEQUENA BURGUESIA

A pequena burguesia tem em Nazaré o seu melhor bairro. Mesmo alguns grã-finos residem ali. Exceções, porém. O bairro
è tipicamente pequeno-burguês. Seus limites são, por um lado, a Faculdade de Direito, e, por outro, o Jardim de Nazaré onde
ficam a Maternidade, o Hospital da Cruz Vermelha e o Posto de Saúde do Pronto Socorro.

Umas quantas ruas que vêm dar na Baixa dos Sapateiros concorrem para formar o bairro. Algumas casas boas, outras
mais pobres. No Campo da Pólvora, mais ou menos a meia altura do bairro, fica o Fórum Rui Barbosa, Palácio da Justiça,
quase monumental e de jurídico mau gosto. Nazaré coloca-se sobre todos os demais bairros da pequena burguesia como o
mais cotado, não por ser melhor moradia mas porque ainda não se vê aqui a mistura que já se enxerga em outros bairros onde
artesãos e mesmo operários são vizinhos do pequeno-burguês. É que a pequena burguesia empobrece cada vez mais e já não
pode conservar exclusivamente para si bairros inteiros. Tangida da Barra, da Vitória, da Graça, a pequena burguesia mais
pretensiosa não deseja ir para Brotas ou para a Lapinha. Os que podem ficam em Nazaré.

Já o Tororó, quase um afluente de Nazaré, é muito mais pobre. Em qualquer outra parte as casas modestíssimas do
Tororó, de onde se avista o dique maravilhoso, seriam más para qualquer classe. Aqui são habitadas por pequenos
funcionários públicos, cabeleireiros, empregados no comércio, fuzileiros navais.

Brotas tem construções novas e é um dos raros pontos da cidade onde ainda é possível encontrar uma casa para alugar.
Mas quem pode residir tão longe do centro, apesar do agradável da moradia ali onde ainda há um resto de roça, quase
desaparecendo? No Barbalho, em Santo Antônio, na Lapinha, onde entraram os Exércitos Libertadores vindos pela Estrada de
Labatut, na Soledade, residem os pequenos-burgueses.

As casas apertadas, de parede-meia, são incomodas em geral. Alguém já explicou que o nortista demora tão pouco em
casa, saindo obrigatoriamente à noite para os cafés e os bate-papos, porque as casas não convidam a ficar. Ficam as esposas
que não têm outro jeito, a mulher ainda vive sob um regime absolutamente feudal na Bahia, principalmente a pequeno-
burguesa. Mas os maridos, mal terminado o jantar, partem para a rua. A sala de visita com os móveis mais caros só se abre
nos dias de festa, aniversários e batizados, ou quando de visitas cerimoniosas. Restam os quartos e a sala de jantar. Os móveis
são tão incómodos quanto estas casas sem varanda, escuras, pouco arejadas.

Uma parte da pequena burguesia reside também na península de Itapagipe, onde no Mont'Serrat a moradia é muito
agradável. Em Boma e na Penha uma população proletária confunde-se com os pequenos-burgueses mais pobres. Itapagipe
cada vez mais se converte num bairro proletário. Ali as casas ainda são mais pobres e mais desconfortáveis. A Igreja de
Nosso Senhor do Bonfim domina a península, situada no alto da colina do Bonfim, enquanto o forte de Mont'Serrat e a igreja
ao seu lado são o que de mais interessante há para o turista. Existe uma casa construída em 1619. A igreja é das mais
encantadoras da cidade e uma fila de palmeiras plantadas num largo empresta-lhe ainda maior graça e pitoresco. O Forte de
Mont'Serrat com sua ponte levadiça, foi construído em 1586 quando era governador Teles de Meneses.
BAIRROS PROLETÁRIOS

Áspera e longa, difícil caminho de sacrifícios, assim é a estrada da liberdade. Não há bem maior no mundo, direito mais
duramente conquistado, amor que exija maior constância do que a liberdade. Vão ficando os lutadores caídos na batalha, mas
a liberdade é bandeira que não se abandona, novas mãos a levantam para a caminhada. Hoje no mundo, a vanguarda dos povos
livres, o proletário, levanta bem alto a bandeira da liberdade.

Estrada da Liberdade chama-se o mais populoso bairro proletário da cidade da Bahia. A população pobre desta cidade
estende-se por todo o seu perímetro. Está em bairros distantes como a Cidade de Palha, São Caetano, Itapagipe, Plataforma,
Estrada da Liberdade. Mas está igualmente no centro da cidade, de mistura com a gente abastada, no Pelourinho, no Tabuão,
nas tristes ladeiras que sobem da cidade-baixa, nos quartos apertados dos casarões, vizinhos das residências grã-finas na
Barra-Avenida.

Se quereis uma qualidade destes bairros, destes casarões infames, destas moradias desgraçadas, eu vos direi apenas:
resistência. Resistência à fome e à enfermidade, ao trabalho mal remunerado, às mortes dos filhos, ao hospital, à desgraça da
vida. Resistência. A resistência do povo é além de todos os limites. Apesar de tudo ele sobrevive. E dá aos seus bairros
imundos esses nomes de esperança que são como a bandeira que ele levanta em suas mãos magras, mas ainda assim
poderosas: Estrada da Liberdade!

Há qualquer coisa de oriental na miséria das classes pobres da Bahia. Qualquer coisa que recorda Changai, os
camponeses da China, os manchus sob a opressão do militarismo nazista japonês, dos Etas do Japão, raça marginal. A fome é
a única perspectiva imediata. Nos espaços reduzidos o amontoamento de criaturas humanas com um ar de doença. Não é
possível sequer dramatizar ante o espetáculo destes bairros. As palavras é que parecem incapazes, fracas e pobres para dizer
de tal horror. Os casebres sórdidos, sem nenhum pitoresco, apenas sórdidos. Já vistes os enterros de “anjos”? Das crianças
mortas? Não tiveram leite nem médico, não pesam nos caixões que outras crianças conduzem. O magro acompanhamento de
crianças, por vezes nenhum acompanha-mento. Por vezes nem mesmo o caixão. Apenas o pai apressado, sem tempo sequer
para a dor e para a saudade, levando sob o braço uma caixa de papelão. Pensais num par de sapatos, numas camisas, talvez, é
apenas o cadáver de uma criança sendo levado para o cemitério. Em mil crianças nascidas na cidade da Bahia, 385,38
morrem antes de completar um ano. A estatística é do Boletim Bioestatístico do Departamento de Saúde da Bahia, número 2
do ano VII, mês de fevereiro de 1944. Nessa cidade o coeficiente de mortandade é de é de 31,71 por mil habitantes. O
coeficiente normal é 12 por mil. O que mata tanto assim? A fome. Os enterros de criança são o espetáculo mais comum desses
bairros e dos subúrbios de Leste. Não tiveram leite, não tiveram médicos, os seios lassos da mãe proletária são eles também
mal alimentados.

Estrada da Liberdade estendida sobre a miséria oriental dos bairros trágicos. Deram-lhe estes nomes que recordam
tragédias do outro lado da terra: Japão, Manchúria, Changai. Parece que alguém quis ligar num sentido de universalidade a
miséria destes bairros baianos aos povos mais terrivelmente desgraçados do Oriente. Falta a índia com suas massas
camponesas. Mas não estará ela presente por acaso nestes sertanejos que descem tangidos pela seca e vêm conhecer uma nova
miséria sob a luz dos postes elétricos na Estrada da Liberdade?

Nos rostos impaludados dos homens, na trágica face das crianças, na macilenta tristeza das mulheres, sob a realidade da
fome, podeis enxergar a resistência. Apesar de tudo eles subsistem. Porque não é fácil liquidar o povo.

Possui a cidade da Bahia um clima admirável. Está magnificamente situada sobre a montanha, produz de um tudo o Estado
de que ela é capital, e no entanto as cifras das estatísticas sobre tuberculose são francamente alarmantes. O Dr. César Araújo,
especialista em moléstias das vias respiratórias, de renome nacional, ex-diretor de Saúde Pública, presidente da Legião dos
Médicos para a Vitória, diretor do Hospital Santa Teresinha (para tuberculosos), em 1954, em entrevista a um diário baiano
disse:

"— ... percebe-se que Salvador coloca-se entre as capitais de maior mortalidade por tuberculose."
Mas vale a pena ouvir um pouco mais a voz autorizada do especialista, porque ante esta realidade fala mais alto o técnico
que as palavras do escritor. Diz César Araújo:

"A tuberculose continua sendo ‘a nossa maior doença’. Perduram altas as cifras de mortalidade e de morbidade, ou seja, dos que morrem e dos que adoecem de
tuberculose."

Na Capital, por exemplo, 1.442 óbitos, em 1938; 1.389, em 1939; 1.395, em 1940; 1.529, em 1941; 1.515, em 1942; 1.389, em 1943 (até novembro). Para uma
população calculada, atualmente, em 285.933 habitantes isso dá, positivamente, coeficientes de mortalidade excessivamente fortes, de supermortalidade. Por conseguinte,
morre, na capital, um tuberculoso de 6 em 6 horas. No que se refere aos grupos etários assim se distribui a mortalidade, consoante os dados da inspetoria de Bioestatística
(dados globais do quinquênio 1938-1942): de 0 a 1 ano, 130 casos (44,17 — coeficiente por 100.000 habitantes); do 1 ano, 154 (52,33); de 2 a 4 anos, 222 (75,43); de 5 a 9,
143 (48,59); de 10 a 19 anos, 679 (230,71); de 20 a 29 anos, 2.166 (735,96); de 30 a 39 anos, 1.588 (539,57); de 40 a 49 anos, 1.052 (357,45); de 50 a 59 anos, 592
(201,15); de 60 e mais anos, 409 (38,97); e idade ignorada, 135 (45,87).

De onde se infere que o maior número de óbitos ocorre entre 20 e 29 anos e, depois, entre 30 e 39 anos, justamente na época de maior produtividade do homem.
Que desfalque isso representa para o patrimônio humano do Estado! Também, as cifras, na infância, devem ser bem maiores do que aquelas aí representadas. Na espécie,
as estatísticas de mortalidade não traduzem, sempre, os fatos em toda a sua impressionante extensão, porque sempre árduo, na circunstância, o problema diagnóstico,
outras etiquetas, tantas vezes escondendo o mal na variedade de seus disfarces: bronquites, gastroenterites, meningites, etc.”

E continua:

“— Quanto à morbidade, vem sendo colhidos dados interessantes, através de abreugrafia, ou seja, do exame sistemático de certos grupos sociais pela fotografia da
radioscopia. Cerca de 60.000 exames já foram feitos em empregados de gêneros alimentícios, domésticos, candidatos ao funcionalismo, professores, operários diversos,
etc. A incidência de tuberculose ativa tem sido alta em vários grupos. Aqui estão, por exemplo, alguns dados de 1942: Domésticos, 1.890 inspecionados, 101 suspeitos, 98
doentes; empregados em estabelecimentos de gêneros alimentícios, 3.859 examinados, 357 suspeitos, 243 doentes; professores, 838 examinados, 103 suspeitos, 78 doentes,
etc.

Em 1941, foram, domésticos, 5.510 examinados, 321 suspeitos, 198 doentes; empregados em estabelecimentos de gêneros alimentícios, 4.495 examinados, 476
suspeitos, 336 doentes; professores, 836 examinados, 142 doentes, etc. São cifras dignas de reparo, desde quando resultam de inspeções de saúde em pessoas que se
achavam em plena atividade, pensando-se sãs.

No ano de 1943, os dispensários de tuberculose atenderam, pela primeira vez, 4.662 pessoas, das quais 883 tiveram exames positivos, foram feitas 9.629 consultas
para medicação; 3.340 pesquisas de bacilo de Koch, 2.068 reações tuberculínicas, 15.947 exames radiológicos, 3.644 reinsuflações de pneumotórax, examinados 944
comunicantes, 8.087 passaram pelo serviço de cadastro torácico (abreugrafia), 299 apresentando aspectos radiológicos suspeitos, 82 tendo feito exame de escarro, sendo
26 positivos. Dos doentes diagnosticados com tuberculose, em 1943, nos dispensários da capital, 46,9 foram de “serviços domésticos”, 1,8% empregados em
estabelecimentos de gêneros alimentícios, 4,4% funcionários públicos, 4,4% escolares, 2,9% militares, 1,2% de marítimos, 9,3% de comerciários, 18,4% de artífices, 5,2%
de operários; 2,7% sem profissão. Desses, 0,1% até 12 anos; 23,5% entre 11 e 20 anos; 4,4% entre 21 e 30 anos; 19,5% entre 41 e 50, e 4,4% nos de mais de 50 anos.
Quanto à cor, brancos, 27,7%; pardos, 41,9%; pretos, 31,7%. Sendo o coeficiente, por sexo, o seguinte: feminino, 50,5%; masculino, 49,4%.

Imaginai estes bairros operários que os turistas, encantados com a surpreendente e misteriosa beleza da Bahia, quase
nunca visitam, órfãos de médicos, de higiene, de qualquer sombra do mínimo conforto. Imaginai as cifras de tuberculose ali
escondidas. São homens e mulheres que só procuram médicos, quando já se tomaram habituais os escarros de sangue. Antes há
a longa procissão pelos candomblés que sobram, pelas mezinhas dos curandeiros, pelas sessões espíritas. Apenas 300 leitos
para tuberculosos existem nesta cidade. Podeis, ante as cifras que lestes, calcular os que seriam necessários. E as causas? O
clima é admirável, é inimigo natural da moléstia. As causas? A fome.

O impaludismo campeia nos subúrbios. É dono destes terrenos onde habitam os pobres. Também ele mata fartamente, e
com força, sem piedade.

Nas mas desses bairros, encontrareis pelas manhãs os feitiços, “despachos” contra inimigos. Pelas noites gemem violões
porque o povo resiste, batem candomblés nas festas que se prolongam pela madrugada porque o povo resiste, saem homens
para o trabalho e não são vencidos porque o povo resiste.

É a Cidade de Palha, é a Estrada da Liberdade, é Changai, a Manchúria, o Japão, os çasarões do Pelourinho e do Tabuão,
Plataforma e Itapagipe. Estrada da Liberdade, caminho longo e difícil. Mas nada é impossível ao homem quando ele não é
sozinho, quando junto aos demais homens ele é o povo.

Se tiverdes coragem para ver a miséria, podereis ir a estes bairros. Será instrutiva viagem. Assistireis com certeza pelo
menos a três ou quatro enterros de crianças que morrem antes mesmo de perceber o que era a vida. De longe os que sobraram
vos olharão com justa desconfiança. São os “Capitães da Areia”, as crianças abandonadas, ratos agressivos do esgoto da
cidade rica. Vereis passar os pais que levam os pequenos caixões de defuntos. Não têm tempo para a dor nem para a saudade.
Vereis as mães, macilentas, figuras de tragédia esculpidas em fome.
AS “INVASÕES”

Cresceram, a partir do fim da guerra, os bairros operários e populares. Como cresceu a cidade rica, para os lados do mar
largo e livre. Novas ruas foram abertas, colinas rasgadas pelas máquinas, asfalto e especulação imobiliária: apareceram os
bairros do morro do Ipiranga, o Jardim Brasil, novas ruas, casas modernas, algumas de real bom gosto. Para os pobres não
foram abertas novas ruas, nem foi gasto asfalto, colinas não foram rasgadas. Nem houve especulação imobiliária: houve
barulho, houve cadeia, houve tiro, gente presa e muita luta. Assim nasceram os novos bairros operários. Em terras devolutas
cujos proprietários só se recordaram que as possuíam quando nelas começaram a se elevar as improvisadas habitações. Ou
entrando pelo mar tranquilo do golfo, palafitas sobre o mangue. Das “invasões” nasceram os novos bairros operários e
populares.

A primeira grande invasão de terrenos para a construção de casas começou nos meses iniciais de 1946. Um italiano de
nome Pelozzi possuía uns terrenos no Corta-Braço e não dava a mais mínima importância: não estavam plantados, nem neles
havia construções. Os pobres vieram, não tinham onde morar, ali construíram suas casas, do dia para a noite, usando os mais
estranhos materiais, da terra à madeira das caixas de querosene, da lataria ao papelão grosso. Gritou o italiano Pelozzi, “aqui-
del-rei”, estão tomando minhas terras, minha sagrada propriedade.

Veio a polícia a chamado do italiano, derrubou as casas. Houve lutas, correrias, tiros, prisões, gente espancada.
Derrubadas as moradias pobres, o italiano sentiu-se outra vez contente: lá estava seu imenso terreno, inútil mas seu. Dias
depois novas casas eram levantadas, agora em número muito maior, gente pobre é obstinada e renitente. Novamente polícia,
pancada, prisão, novas destruições de casas. Já agora, escritores, jornalistas, advogados, políticos envolviam-se no caso. A
briga generalizava-se, os jornais falavam. Construíram-se casas, derrubavam-se casas. Foi assim que Otávio Mangabeira,
eleito governador em 1947, encontrou o problema. Ainda registraram-se choques entre policiais e “invasores”. Mas Otávio
Mangabeira não amava a violência, soube governar a Bahia com “grande delicadeza”, como lhe disse um operário, e
desapropriou os terrenos. A “invasão” transformou-se no bairro do Corta-Braço.

Sobre essas lutas, um jovem escritor baiano, Ariovaldo Matos, no tempo jornalista e militante político, escreveu um
romance que vale a pena ler: Corta-Braço.

Outra grande invasão foi a do Caminho da Areia. Começou numa faixa de terra próxima ao bairro Palmeira e logo
estendeu-se. Era o mangue, terra e água misturadas, mais água do que terra. Os “invasores” entulharam o mangue, ergueram
suas casas. Os terrenos, de propriedade de Oscar Palmeira, estavam hipotecados ao Banco Mercantil Sergipense que foi ao
judiciário para expulsar os homens pobres que haviam transformado o mangue em terra habitável. Mas o Governo Mangabeira
desapropriou os terrenos, em 1949, e as construções ali edificadas terminaram formando os bairros “Rui Barbosa” e
“Coreia”, homenagem ao jurista baiano e ao povo coreano.

No porto dos Mastros, em Itapagipe, em palafitas sobre o mangue, entrando pelo mar, surgiram os “Alagados”. Um
enorme bairro, qualquer coisa de oriental na paisagem baiana.
RUA CHILE

A Rua Chile é pequena. Vai da Praça Municipal ao Largo do Teatro, enladeirada. No entanto é o coração da cidade, nela
se exibe toda a gente. Como a Rua do Ouvidor, no Rio, ou a Rua da Praia, em Porto Alegre, ou a Rua Direita, em São Paulo.
Em todas as cidades há uma rua assim. A da Bahia não é pior nem melhor que as das outras capitais. São ruas do footing, da
conversa, de negócios também, de namoros, de brilho, de exibição. Ali se estabelece o comércio mais elegante. As grandes
casas de fazendas, sapatos, roupas de homem e mulher. Ali estão os ricos sem que fazer, os desocupados, os literatos, os
aventureiros, os turistas, gente que sobe e desce a rua, ali as mulheres mostram seus novos vestidos, exibem as bolsas caras,
esperam o bonde após o passeio diário. Há quem não possa deixar de ir à Rua Chile todos os dias. Há mesmo quem viva em
função da hora ou da hora e meia em que passeia pela rua atravancada.

Pelas cinco horas da tarde a rua está repleta. Comerciantes, advogados, médicos, políticos, funcionários, que saem dos
escritórios, que sobem da cidade-baixa, que fecham os Consultórios, vêm esperar o bonde que os levará para o jantar. Mas
demoram-se um pouco nos grupos em conversas, em busca de novidades, de boatos políticos, de notícias da guerra,
comentários sobre as mulheres formosas, olhares lânguidos, um pouco de vida alheia para completar. Igual que em todas as
cidades, apenas o baiano é mais tranquilo, mais descansado, não há pressa, tudo marcha a seu tempo. Grupos ruidosos de
estudantes, grupos solenes das classes conservadoras, na Rua Chile se encontra toda a gente importante da cidade. As
mulheres mais belas e os homens mais considerados. Igual que em toda a parte.

Lojas, livrarias, casas de modas, restaurantes, bares, hotéis. Nos andares superiores dos prédios ficam consultórios,
escritórios de advocacia, dentistas, rendez-vous elegantes também.

Quereis encontrar alguém na Bahia e não possuis o seu endereço? Ide então à Rua Chile às cinco horas da tarde e com
certeza encontrareis a pessoa que procurais.
LADEIRA DO TABUÃO

A Ladeira do Tabuão para aqueles que a sobem desde a cidade-baixa, economizando o tostão do elevador, se divide em
duas etapas. A primeira vem até o alto do elevador, em meio à ladeira. A segunda parte dali (ou de um pouco antes, onde a
ladeira faz um cotovelo) e vem até o sopé da Ladeira do Pelourinho. A Ladeira do Tabuão, durante as horas do dia, joga gente
na Baixa dos Sapateiros e dela recebe gente em busca da cidade-baixa.

São casas altas, cinco e seis andares, sobradões antigos, de fachadas desbotadas, algumas delas quase desmoronando.
Escadas escuras de onde chega um bafio de bolor, de coisas velhas e sujas, de urina, de falta de limpeza. Em meio a um
formigueiro de gente que sobe e desce, vive um comércio pobre que não cabe nas ruas mais importantes, artesãos, remendões
de sapato, santeiros que fabricam indiferentemente imagens Católicas, Nossa Senhora e Jesus Cristo e ídolos negros, Iansã e
Ogun, reformadores de chapéus. Os andares superiores abrigam uma variada população de pequenos empregados no
comércio, operários, marítimos, pobres de todas as espécies, as prostitutas mais acabadas também. Mulheres de rosto
marcado pela sífilis, parecem velhas de cem anos, que esgotaram o tempo de vida e perderam a presença humana. Visão
trágica para o viandante descuidado numa noite qualquer. Naqueles quintos-andares infernais parece viver uma raça de
mulheres que ninguém imaginaria existir. Tão doentes, tão desgraçadas, tão espantosas.

Durante o dia a vida regurgita, pobre mas ardente, nesta Ladeira suja e velha. Durante a noite parece um hospital de
alucinação, os ratos atravessam livremente de um lado para outro. Assim é a Ladeira do Tabuão.
LADEIRA DO PELOURINHO

Num desses prédios altíssimos, onde viveram nos tempos passados os senhores ricos, os donos de escravos, Os
proprietários de engenhos e de fazendas, localizei a ação de um dos meus primeiros romances: Suor. Eu mesmo morei, aqui na
minha adolescência, neste casarão que é o maior da rua e em algum tempo foi orgulho de um latifundiário qualquer. Depois um
árabe sabido o transformou num cortiço. São cento e muitos quartos e neles habitam seiscentas pessoas infelizes. Um pouco
mais abaixo, no largo, ficava o pelourinho onde eram castigados os negros. As grandes pedras que calçam a ladeira devem
guardar terríveis segredos, doloridos ais saídos de peitos escravos supliciados. Das janelas dos casarões enormes as
sinhazinhas bonitas assistiam, com certa emoção não despida de prazer, de aguda sensação, às torturas dos negros.

Nas Portas do Carmo estão os árabes. Lojas de fazendas, a língua arrevessada. No Maciel estão as prostitutas. Velhas e
meninas, parecendo todas da mesma desgraçada idade, a idade da doença, do hospital. Mas no Pelourinho mora gente de toda
espécie e de todas as raças. É impossível calcular o inúmero incrível de pessoas que cada um destes abjetos cortiços aloja
nos quartos subdivididos, nas salas transformadas em moradias de duas e três famílias.

As escadas, na escuridão de corredores tétricos, sobem em degraus carcomidos. Ali dominam os ratos, senhores
indiscutidos dos prédios. A higiene é uma palavra desconhecida. Cada um desses casarões deixa uma espantosa renda aos
seus avaros proprietários. Uma gente esfomeada e doente sobe as escadas diariamente. Vem dos trabalhos mais diversos, vão
em busca de um descanso nos quartos malcheirosos. Sabe-se a vida de todos os vizinhos pois é inteiramente impossível
alguém conseguir um pouco de solidão, de isolamento num destes sobrados. Através das frestas dos tabiques que separam os
quartos podem-se ver os casais que amam, a prostituta cansada que muda a roupa, o negro que ronca, a jovem que se lava.
Uma única latrina em cada andar serve a oitenta ou cem pessoas, homens e mulheres, e, como não houve ainda caso de uma
descarga que funcionasse, o odor insuportável domina os prédios. Insuportável? Não há outro jeito senão suportá-lo e com ele
se acostumar já que é característico de todos esses míseros cortiços com a fachada de velhos palácios.

Mendigos pelas portas à noite. Baianas que vendem mingau. Pelas escadas namorados que bolinam ante os olhares
cínicos dos vizinhos. Quem vai-se importar? Aqui é o fim do mundo. Em pleno centro da cidade, em pleno coração da Bahia.
A sujeira é completa. Nesses quartos subdivididos cozinha-se, trabalha-se, ama-se. Ouve-se o pedalar das máquinas de
costura que pés pobres empurram para ganhar a vida noite e dia. Ouve-se a tosse aflita dos tuberculosos, boa proporção dos
habitantes. Quem pode pagar médico?

Antigamente aqui moravam nobres. Esses sobradões, as frentes de azulejo hoje substituído pela tinta azul ou roxa,
hospedavam as famílias finas. Em frente era o pelourinho. Os negros escravos vinham ser exemplados, das sacadas as
sinhazinhas assistiam risonhas ao espetáculo. O sangue corria das costas do negro sobre as pedras, os ais enchiam os céus.
Esses sobradões do Pelourinho estão cheios desses gritos lancinantes, essa ladeira está cheia de dor, de um sofrimento que se
prolonga até hoje nos modernos escravos dos cortiços.

Em cada sobrado uma multidão. Subalimentada, doente, penetrando pelo vão escuro da porta pesada para a escada onde
correm os ratos. Para as moradias mais infames do mundo.

Assim é a Ladeira do Pelourinho.


MADRUGADA NA PRAÇA CASTRO ALVES

Esse é um pobre restaurante, elegido dos choferes e dos boêmios. Onde estão os poetas da Bahia que não vêm comer as
comidas de todo o sabor no pobre restaurante da madrugada? Que não vêm cantar a beleza da sua cidade? Onde estão, Antônio
Nobre, os pintores da Bahia que não vem pintar? Por que se trancam eles na Igreja de São Francisco admirando o ouro velho?
Aqui é o restaurante de Maria José, nem sala existe, é a liberdade da praça. Da Praça Castro Alves que um dia se chamou de
Largo do Teatro em honra ao Teatro São João que aqui se erguia.

Apenas um tabuleiro de vatapá e caruru, de frigideira e xinxim; de efó e moqueca, as latas de querosene cheias de
mingaus e mungunzá. Na liberdade da Praça com os choferes, os boêmios, os condutores de bondes. Ao fundo a estátua de
Castro Alves. Em torno do poeta os choferes discutem a guerra:...

— Quero ver Hitler é fuzilado...

— E o tal Franco da Espanha balançando numa corda...

O poeta está de braço estendido, solta a cabeleira, lá embaixo é o mar onde dormem os saveiros.

— Os russos avançaram?

Maria José é gorda e risonha. Mulata clara de olhos dengosos. Estende um banco para seu amigo escritor que ela chama
de compadre:

— Como vai, compadre? Que vai querer?

Chegam na madrugada estudantes e jornalistas. Giovini Guimarães é o preferido de Maria José porque é médico. Alguém
reclama laranjas. O chofer abre a boca e pede as noticias trazidas pelos telegramas de última hora. O restaurante ao ar livre
dá esse direito aos seus frequentadores: podem tomar conhecimento destas noticias antes dos leitores dos matutinos pois aqui
jornalistas vem comer misturados com o povo, sob a lua cheia no céu da Bahia.

— Já libertaram Varsóvia?

Inglês quer saber, seu risonho rosto de negro, suas brincadeiras quase infantis, sua gíria alegre. Maria José suspende o
serviço um momento:

— Fascista só sabe correr...

O boêmio, abraçado à mulher de muito rouge, faz o elogio da aviação aliada:

— Cadê os urubus de Goering?

A discussão de guerra se estende a todos os presentes. Surgem estrategistas geniais. Está bonito o vatapá. O médico
amigo afirma que essa comida é inofensiva. Esclarece:

— Essa comida não faz mal a ninguém... — o que sem dúvida é verdade.

Maria José enche novos pratos. Lá está, ante o mar, a estátua de Castro Alves. A mulher ri, sob o rouge, das piadas de
boêmio. Passam marinheiros americanos, outros tabuleiros de baianas servem a variada freguesia na praça pela madrugada,
Maria José vende uma sensacional moqueca de peixe.

Não sei de nada mais alegre e fraternal que o restaurante de Maria José que não é sequer restaurante, que é apenas um
tabuleiro e duas latas de querosene cheias de mingau e mungunzá. Ali comem pela madrugada os boêmios e os choferes,
jornalistas e trabalhadores, gráficos e desempregados. A comida é barata. Mais gostosa não acredito que exista.

Maria José é gorda e ri das contas atrapalhadas. De quando em quando diz ao médico, seu preferido:

— Hoje não lhe custa nada, doutor...

O chofer tem ciúmes, mas são zelos passageiros porque bem sabe que dele é o coração da baiana. Mundo livre, são e
alegre, belo dessa pureza do povo, poderoso também dessa força de vida popular.

Um instinto que vence a ignorância em que são obrigados a viver leva-os a esse interesse por tudo que se refira à guerra.
São de um antifascismo radical. Um dia alguém (talvez fosse o médico) disse a Maria José:

— Nunca mais virias tu, Maria José, com teu tabuleiro florido de comidas afro-baianas, vender gostosuras na noite lírica.

E sentando o chofer ao seu lado completou:

— Nem tu, chofer, poderias rir teu riso largo e franco, dizer tuas palavras em gíria, galantear Maria José. Jamais, se o
fascismo vencesse.

Maria José respondeu apenas:

— Já sabia. Quer fazer da gente escravo.

Inglês, o chofer, fez um gesto com a mão sobre a garganta:

— A gente ensina eles...

Ali está a estátua de Castro Alves. Seria arrancada e esta praça degradada se o fascismo vencesse a guerra. Correntes nos
teus pés, mulata cozinheira. Correntes nos teus pés, chofer negro. Correntes nas minhas mãos que escrevem, em todas as mãos
livres do mundo. Jamais, boêmio, seria livre a tua vida louca. Até a ti o fascismo atingiria. Jamais conversaríamos no
restaurante da madrugada. Hoje aqui estamos todos, próximos à estátua do poeta da liberdade. Amanhã penderiam das forcas
integralistas muitos dentre nós, naquele muro sobre o mar estariam os cadáveres dos fuzilados. A estátua do poeta seria
derrubada e sua memória execrada pelos donos do poder.

Mas ela lá está na noite baiana. Castro Alves cobre com sua augusta e libertária sombra a madrugada da praça de homens
livres. Naquele canto era o teatro onde ele dizia os versos de fogo queimando a face dos escravocratas. O chofer quer lutar, já
muitos fregueses do restaurante de Maria José foram convocados e vestem farda.

Vai longe a madrugada. O restaurante está cheio e qualquer um de nós, o boêmio ou o chofer, o médico ou o estivador, o
escritor ou o estudante, ajuda Maria José a servir os pratos de comida.

Lá atrás a estátua de Castro Alves.


CAIS

As velas dos saveiros cortam a baía de Todos os Santos, vêm do Mar Grande, de Maragogipe, de Cachoeira e São Félix.
No cais Cairu, em frente ao Mercado eles descansam. Ali arriam as velas, ficam balançando tranquilamente sobre as águas.
Mas encontrareis os saveiros ainda em Água dos Meninos, em Mont’Serrat, no Porto da Lenha, em Santo Antônio da Barra e
no Rio Vermelho. O seu cais, porém, é este do Mercado, com sua rampa escorregadia, seu cheiro de mar e de peixe, seu
colorido de frutas tropicais.

Ali pertinho está o cais da Companhia de Navegação Baiana, de onde largam os pequenos navios para o Recôncavo e
para a Ilha de Itaparica. Os que vão levar os passageiros para a Estrada de Ferro de Nazaré, cujos trilhos partem do porto de
São Roque, os que fazem a carreira de Cachoeira e os de Santo Amaro. Vale bem a pena ao turista sair, num sábado, num
desses pequenos navios, suportar a travessia da barra, e depois entrar pelo rio Paraguaçu adentro, em cinco horas de viagem a
mais agradável, para visitar os tesouros de Cachoeira, a cidade histórica da Independência, com suas casas coloniais de tetos
pintados, suas igrejas magníficas, sua velha prefeitura. Para visitar São Félix e Muritiba com suas fábricas de charuto e o seu
cheiro doce de fumo que domina o ar e chega a entontecer o viajante. Dali, nos vagarosos trens da Central da Bahia, seguirá o
turista para Conceição da Feira e São Gonçalo. Passará o domingo visitando estas cidades e amanhecerá em Feira de
Sant’Ana na segunda-feira, pronto para admirar a grande feira de gado, para passear extasiado em frente ao mercado, em meio
à multidão que chega do sertão para vender ali tudo o que o Nordeste possui, desde o delicioso requeijão às alpargatas, desde
as cestas até os gatos do mato e as raposas. Um automóvel o levará depois à cidade de Santo Amaro, aristocrática nos
sobradões e na lembrança do esplendor do açúcar. Ali podereis andar em bonde puxado a burro e nele tereis que ir para o
porto distante onde outro navio da Baiana vos trará de volta ao pequeno cais da Companhia.

O cais dos grandes navios estende-se adiante em dez armazéns das docas. Hoje, em sua frente, está a Base Baker. Antes
era a areia onde os malandros, os Capitães da Areia, os boêmios, conversavam pela tarde calorenta e jogavam ronda. Aqui é
cultuada a memória de João de Adão, grevista célebre que era um líder dos doqueiros. Seu nome ainda é como uma bandeira.

Mas o cais continua através da curva da baía, não termina com os armazéns das docas, ainda é cais em Água dos Meninos
e ainda encontrareis saveiros afoitos em Mont’Serrat.

Dois quebra-mares, como dois longos braços, impedem que seja bravia a maré por onde penetram os navios. O forte de
São Marcelo, ao fundo, compõe a paisagem tão bela e contra seus largos muros cai a sombra das velas dos barcos que voltam
das pescarias. No fim da tarde, quando morre o sol, o mar deste cais se enche de saveiros que regressam ao seu porto. Ah! é
de incomparável beleza a visão deste cais pela tarde, o mar prenhe de velas desatadas, o forte velho brilhando aos últimos
raios do sol, os mestres de saveiros na rampa do mercado.

Também é formosa a madrugada quando partem as velas, saveiros e canoas, batelões e barcaças, rumo ao oceano que
ruge adiante do quebra-mar. Os negros fortes andam pela frente dos armazéns e trazem estranhas tatuagens sobre o peito e as
costas. Marinheiros sem cor e sem idade sentam-se na tarde desfeita em beleza e parecem de mármore ou de bronze contra o
sol que ilumina o mar.

Os navios dormem no cais. Agora são pintados de uma cor indefinida para escapar aos submarinos nazistas. Mas as velas
dos saveiros continuam brancas e azuis, vermelhas também sobre o verde mar baiano. A presença de Iemanjá, a deusa dos
mares e dos marítimos, se projeta sobre o cais da Bahia. E também a lembrança do grevista João de Adão, morto pelos
inimigos da liberdade e da felicidade do homem. Sua memória vive no cais, entre os marinheiros e os estivadores, nas docas e
nos armazéns, nos saveiros sobre o mar.
SUBÚRBIOS

Numa curva em torno ao mar ficam os subúrbios da cidade da Bahia, servidos pelos trens da Viação Férrea Federal Leste
Brasileira. O primeiro é Lobato, onde se elevam ainda torres de petróleo e onde um pequeno monumento marca o lugar onde
foi descoberto o ouro negro baiano, e o último é Paripe, com poucas casas. Estes subúrbios eram antigamente fazendas que
foram transformando-se aos poucos em localidades de veraneio e que perdem cada vez mais este caráter para adquirirem o de
bairros de moradia pobre. Depois de Lobato vem Plataforma com sua grande fábrica de tecidos e grande população operária.
Plataforma está ligada a Itapagipe (fica defronte à península) pelas canoas que vão e vêm numa travessia que num dia de sol é
delicioso passeio. Vizinhos dos operários da fábrica de tecidos e da estrada de ferro, residem em Plataforma pescadores que
estendem ao lado das suas casas, em frente ao mar, as redes enormes e negras dando à localidade um novo colorido que rompe
a dramática tristeza que parte da fábrica de envelhecidas operárias subalimentadas. Quem passa no trem na hora da saída dos
operários vê o triste quadro de uma população magra e amarela do impaludismo endêmico ali que se dirige morro acima para
as casas sem conforto. Só mesmo a visão das redes secando ao sol pode romper com o peso que fica sobre cada coração ao
ver a fábrica como um cemitério.

Depois é Itacaranha com seu ar moribundo. Casas em ruínas, uma povoação que não vai para diante. Escada, com duas ou
três boas casas, é pequenina e silenciosa. Já Praia Grande, residência de pequenos burgueses durante o ano e local de
veraneio de "gente boa” nos meses de verão, tem um ar aristocrático. Mantém certa atitude de desprezo para com Peri-Peri
com sua população misturada de pequenos burgueses e operários da estrada. Em Praia Grande há certa vida social, festas, uma
animação de moças elegantes, rapazes esportivos, a praia cheia de corpos nus. Botes a motor e a vela cortam o mar.

Peri-Peri é a capital do subúrbio. Os enormes tamarin- deiros sombreiam a rua da frente. Algumas boas casas
residenciais, como também em Praia Grande. No mais casas para operários. Houve um tempo em que as casas ali eram
baratas, quase sempre fechadas no inverno, abrindo-se no verão para os que fugiam do calor da cidade. Hoje, com a crise de
moradia, é tão difícil conseguir uma casa em Peri- Peri quanto no centro da capital. Os que vêm veranear ficam para o ano
todo apesar do medo do impaludismo que ainda é um fantasma debruçado sobre todo o subúrbio da Leste. Dois ou três
candomblés, uma pequena igreja católica, um cinema que funciona dois dias na semana, a praia, as árvores na rua.

Depois vem Coutos, poucas casas e uma usina. E, por fim, Paripe que é mais uma fazenda que mesmo uma povoação.
Dali, de automóvel, pode-se ir a São Tomé de Paripe, velha povoação de magnífica praia, e a Aratu onde está o petróleo e
onde funciona a base aérea dos norte-americanos num dos lugares mais lindos do mundo.
PRAIAS

A cidade da Bahia é rica de belas praias e uma delas pelo menos possui hoje renome nacional através das canções que
sobre sua majestosa beleza compôs Dorival Caymmi, cantor das graças da Bahia, a praia de Itapoã.

Afastada da cidade, adiante de Amaralina e Pituba, vai-se a Itapoã de automóvel. Por ali passa uma das estradas de
rodagem que conduzem ao aeroporto 2 de Julho. A praia é a mais bela que a cidade possui, fora da barra, o seu farol
iluminando o caminho dos navios. Beleza selvagem, ainda não maculada com as casas tão sem gosto com que os ricos
estragam as paisagens mais formosas. Apenas cabanas de pescadores e coqueiros que o vento balança contornam a praia de
Itapoã, onde se elevam rochedos e onde se gasta ao tempo o casco de um navio naufragado. Aos domingos, no verão, grupos
saem da cidade para passar o dia em Itapoã. É um aos passeios mais agradáveis da Bahia.

A praia de Pituba, entre Itapoã e Amaralina, ligada por uma linha de ônibus ao ponto final do ramal de bondes de
Amaralina, rivaliza em beleza com a de Itapoã. Muito mais próximas, as construções de veraneio são muitas. Algumas casas
boas, entre as quais a do escritor Antônio Osmar Gomes, que ali passa o verão entre seus livros e o bravio vento que vem do
mar.

Ligada ao centro pela linha de bondes de mais longo percurso da cidade, a praia de Amaralina, realmente magnífica, é
muito procurada pelos banhistas. Um bar, no ponto final dos bondes, vende coco mole e água mineral. Pela noite os casais de
namorados vêm amar diante do oceano que se ilumina com a luz amarela da lua, amável cúmplice de beijos apaixonados.
Quando aperta o calor do verão, o povo da Bahia corre para a Barra e para Amaralina. Casas para veraneio, muitas delas
construções de madeira, estendem-se ao longo da linha de bonde a partir do Rio Vermelho.

Entre Pituba e Itapoã, no ciclo das praias além de Amaralina, ficam as praias de Piatan e Boca do Rio e o “Jardim de
Alah”, assim chamado por ser o preferido pelos casais que vêm fazer o amor na areia, ante o mar, onde se chega de automóvel
pela estrada do Ipitanga.

As duas praias da Barra, a do farol e a do Porto de Santo Antônio, talvez sejam as mais concorridas da cidade, devido à
facilidade de transporte. Ao demais os clubes que ali têm sua sede facilitam aos sócios mudança de roupa e banho de água
doce. A praia do farol é extraordinariamente bela, a do porto é uma pequena praia ao pé do forte. No entanto, não se sabe
mesmo por que, é mais frequentada. Fica literalmente entupida de banhistas.

Mais adiante, entre a Barra e Amaralina, está a praia do Rio Vermelho, servida pelos bondes de Amaralina e Rio
Vermelho, também muito frequentada, onde se realizam célebres banhos a fantasia.

Do outro lado da cidade estão as praias suburbanas: a de Itacaranha, a de Escada, a de Praia Grande, a de Peri-Peri, a de
Paripe. Servidas pelos trens da Leste Brasileira. Mais adiante está São Tomé de Paripe, com suas construções antigas,
maravilhoso lugar de veraneio. Uma linha de ônibus (atualmente sem funcionar devido à dificuldade de gasolina) liga São
Tomé de Paripe, ponto terminal da linha suburbana da Leste.

Em Itapagipe estão as praias de Mont’Serrat e do Pôrto de Tanheiros. Servidas pelos bondes da cidade-baixa.

Outras praias da cidade: Ondina, Boa Viagem, Unhão, Jaqueira.

Na época do verão muita gente sai da capital para a Ilha de Itaparica ou para outras ilhas na Baia de Todos os Santos. Em
Itaparica além da praia que serve à pequena cidade, existe a do Mar Grande, belíssima. Itaparica está ligada à capital por um
pequeno navio que faz uma viagem diária. Mar Grande é servido por uma lancha a gasolina.

Próxima à praia de Itapoã fica a Lagoa do Abaeté, de formosura única, sua água negra e sua areia branca.
LAVAGEM DA IGREJA DO BONFIM

Na manhã da terceira quinta-feira de janeiro todo o povo da Bahia se encaminha para a colina do Bonfim, onde está a
Igreja do santo mais popular da cidade, santo que —no dizer de um padre amigo — está por cima de todas as divergências
religiosas e políticas. Eis uma verdade: Senhor do Bonfim não é exclusivo de nenhuma religião. Sua festa, que dura oito dias
(sendo que os três últimos parecem um carnaval) tem muito de fetichista e Édison Carneiro a considera mesmo a “maior festa
fetichista do Brasil”. Para os negros o Senhor do Bonfim é Oxolufã, ou seja Oxalá-velho, Oxalá na sua maior dignidade. Para
os céticos ele é um símbolo do pitoresco e da poesia solta nas ruas da Bahia. Mas nestes últimos anos, Senhor do Bonfim,
devoção maior do povo baiano, tem sido antes de tudo símbolo das tradições que o povo brasileiro deseja conservar, livres
da escravidão do fascismo, livres numa pátria independente. Senhor do Bonfim, nestes anos, tem sido um santo de guerra. Nos
anos anteriores, as festas do Bonfim, as novenas, a tradicional lavagem do adro e da igreja, eram apenas festas populares, de
estranha beleza e de funda poesia, onde se podia medir o sincretismo religioso afro-brasileiro. Nos últimos anos, (porém,
houve algo mais, alguma coisa em meio à multidão que se dirige para a colina na manhã de quinta-feira, a terceira de janeiro,
dia da lavagem da igreja. Aos cânticos religiosos, alguns deles em língua nagô, aos sambas alegres, aos vivas ao santo,
misturam-se os vivas às Nações Unidas e aos líderes democráticos. As inúmeras promessas de todos os anos foram
substituídas por uma única e grande promessa: a de que, vencedores os Exércitos da liberdade, uma imensa vela, a vela da
Vitória, que foi levada aos ombros das baianas, será acesa aos pés do Senhor do Bonfim. O povo sagrou o santo da colina
como o “Padroeiro das Nações Unidas”.

A Igreja do Bonfim, onde vão todos os turistas sem exceção, tem uma sala cheia de promessas. Há muitos anos que este
santo faz milagres espantosos. Salva náufragos, cura leprosos, tísicos e loucos, fecha ferida de bala e afasta no último instante
lâminas de punhal assassino. Retratos às dezenas, pernas, mãos, braços e cabeças de cera, lembranças de acontecimentos
terríveis, enchem essa sala enlouquecedora que é o mais estranho museu que se possa imaginar. Oferendas ricas e oferendas
pobres, grandes milagres e pequenos milagres. Senhor do Bonfim é um recordista de milagres, ele quem faz chover e quem
contém as enchentes dos rios, quem protege as plantações e quem evita as epidemias. Nota-se que não é um santo muito
popular entre o clero, já que o Arcebispado faz tudo que é possível para evitar os festejos com que o povo celebra a festa do
Bonfim. Talvez porque seja ele tão do povo e democrático, tão sem preconceitos religiosos, virando deus negro nas seitas
africanas, virando general soviético nos gritos da multidão dentro da igreja quando seu nome era misturado e confundido com
o de Timoschenko, nos anos de guerra.

As festas duram oito dias, mas seu maior momento é sem dúvida a quinta-feira da lavagem. Apesar do sábado e do
domingo com seus ranchos na colina, mistura de festa de reisado e de carnaval, apesar da segunda-feira da Ribeira com suas
comidas, suas festinhas familiares, sua cachaça farta e fácil. Ainda assim o maior espetáculo é a lavagem da igreja com a
procissão que a precede.

A procissão da lavagem, espetáculo para um quadro de Cícero Dias ou uma aquarela de Luís Soares, sai da Igreja da
Conceição da Praia. A multidão se aglomera em frente ao Elevador Lacerda e ao Mercado Modelo. Quem nunca viu esta
procissão da lavagem do Bonfim não sabe os segredos da beleza nem os segredos da poesia. Talvez por um milagre a mais do
Senhor do Bonfim, talvez porque não seja mesmo hábito chover no verão baiano, a verdade é que a manhã desta quinta-feira é
sempre esplêndida de luz. No cais próximo os pequenos e líricos saveiros bordejam os grandes navios de guerra que
conduzem os soldados aliados para as campanhas da Europa. Há um ar de festa nas ruas comerciais e o rosto dos homens se
abre em sorrisos. Sim, porque quem nunca a viu, jamais poderá imaginar a surpreendente beleza desta procissão. Primeiro
direi que há uma harmoniosa confusão de músicas e cânticos, onde cantos religiosos em estropiado latim se misturam aos
cânticos negros das macumbas. Mas, ah! existem também devotos que vivem na boêmia e não sabem nem os cânticos ilustres
da igreja nem as canções em honra de Oxulofã. Ainda assim são devotos do Senhor do Bonfim e desejam cantar para o Santo,
música em sua homenagem. E cantam então sambas e marchas, gemem as violas, as cuícas, os cavaquinhos. Mas é tudo em
louvor do santo e nesta quinta-feira o pecado não existe nas ruas da cidade da Bahia. O demônio há muito que está em meio
aos exércitos nazistas. Esta afirmação foi feita por um negro capoerista, profundo entendedor destes mistérios e trouxe a todos
os presentes uma agradável convicção. Mesmo porque a baiana que leva um pequeno pacote cheio de água é um convite ao
pecado com seus olhos de dengue e sua boca de beijos. Não há o pecado neste dia felizmente!

Na frente de tudo e de todos vem a vela da Vitória, ao ombro das baianas mais lindas. Vela colossal, com as cores da
bandeira brasileira, com um grande V de flores, que o povo depositou nos pés do santo, rogando pela vitória dos exércitos
aliados. Um dia ela será acesa e iluminará a Igreja do Bonfim. No dia da Vitória. (Este capítulo foi escrito em 1944, durante a
guerra).

Atrás as “filhas-de-santo” de diversos candomblés, com suas saias engomadas de muita roda, suas anáguas e seus
turbantes, e tudo cheio de flores, e sobre as cabeças, num equilíbrio quase milagroso, os cântaros, as bilhas, os potes e os
moringues. Filhas-de-Santo de todos os candomblés da cidade, da Gomeia, do Bate Folha, do Engenho Velho, do Cantois.
Vestidas de todas as cores levam para o santo as coisas mais puras do mundo: a água e as flores, a alegria também. Vêm logo
depois da vela da Vitória, e o seu canto, onde ressoam atabaques e agogôs, lembra os cantos de guerra dos caçadores negros
dos desertos da África. Em fila carregando galhos sagrados de pitangueiras, seguem-se os baleiros, os vendedores de
queimados, doces e chocolates na cidade da Bahia. Conduzem ramos de folhas, formam com as baianas a guarda de honra da
vela da Vitória.

E vêm os aguadeiros, em jumentos e carroças. Dizer jumentos e carroças é dar uma triste e falsa idéia do que é este
espetáculo. Os jumentos desaparecem sob papel de seda recortado, coisa tão lírica nunca se viu!, as carroças desaparecem
sob as flores, tão variadas e tão numerosas. Não eram carroças, eram carros florais de primavera, não eram jumentos, eram
animais simbólicos e lendários. Nunca se reuniu no mundo tanto colorido, tanta graça e tanta alegria. Todas as cores nos
vestidos das baianas, nos papéis pintados, nos desenhos dos tabuleiros, nas flores sobre as bilhas, os moringues, os potes. Ah!
a sedução destas bilhas, destes potes, destes moringues... As frutas da Bahia, mangas, laranjas, sapotis, abacaxis, esplêndidas,
saltam dos tabuleiros, são para o santo. Porque Senhor do Bonfim, como os orixás negros, recebe presentes de frutas nos ritos
africanos.

Eis um povo livre fazendo sua festa alegre! A massa popular, muita gente de pés descalços pagando promessas,
serpenteia pelas ruas comerciais da cidade-baixa, em direção à colina do Bonfim.

Se tiverdes sorte ou conhecidos podeis talvez conseguir lugar num dos caminhões que acompanham a procissão. Distante
fica esta colina do Bonfim para onde ides com a multidão lavar a igreja. Se o vosso fervor religioso não é tão grande quanto a
caminhada, então só mesmo um caminhão, dos vários que acompanham a procissão, vos poderá salvar. O aperto é grande e
sereis obrigatoriamente bolina pois não há outro jeito. E sem dúvida cantareis como fazem os demais passageiros do
caminhão, pouco ligando à falta de espaço. Cantam músicas de Dorival Caymmi que falam no mar da Bahia e em Iemanjá. Só
existem dois instrumentos: uma gaita que ninguém ouve e um berimbau de capoeira que nunca serviu para acompanhar samba.
Mas que importa? O principal é cantar enquanto uma velha murmura orações numa promessa estranha. Parece o delírio, mas é
apenas a festa da lavagem do Bonfim, a procissão em busca da colina. Perdereis a voz tentando acompanhar a cadência do
berimbau mas saireis do caminhão amarrotado e satisfeito, cheio dessa pura alegria do povo. Estareis no alto da colina pronto
para a lavagem da igreja.

Uma portaria do Arcebispo proíbe indefectivelmente a lavagem do interior da Igreja. É sempre uma portaria zangada, sem
poesia, sem pitoresco, rígida e sem graça. Ninguém liga. Certa baiana, de admiráveis dentes brancos no rosto negro, disse que
o Senhor do Bonfim não aprova as tais portarias proibitivas. E a igreja é lavada toda, desde o altar-mor até as escadarias
exteriores. A portaria que se dane, amém!

Antes, porém, falemos do largo no alto da colina. As barracas, de bandeirolas multicores de papel, se enfeitam ademais
com as cores do vatapá amarelo de ouro, do caruru esverdeado, do efó negro, do acarajé, do abará. As baianas servem a
comida nos pratos de flandres e barro, os tabuleiros de mangas e umbus, de abacaxis, de laranjas e os refrescos de frutas, uma
fartura de comida, a mais gostosa do mundo, uma fartura de cores. O largo cheio de barracas, mais atrás os divertimentos
ingênuos: o circo de cavalinhos, a roda-gigante.

Mas a praça se esvazia quando a charanga inicia um fox, anunciando que vai começar a lavagem da igreja. As autoridades
ficam ao lado do altar. Um padre estrangeiro e antipático pede respeito, a verdade é que o povo está perfeitamente respeitoso.
Só que o padre amargado não sabe distinguir desrespeito de alegria. As filhas-de-santo chegam para perto do altar. A
multidão enche a igreja onde as vassouras se elevam e onde as bilhas e os potes são lindos sobre os turbantes das negras e
mulatas. Essa Baiana tão branca nasceu na Espanha e veste as roupas populares da Bahia, fugiu talvez de um poema de Garcia
Lorca. De todas as partes chegam bilhas de água enfeitadas com papel de seda, cobertas de flores. Junto ao altar se acumulam
os tabuleiros de frutas trazidas para Senhor do Bonfim. A água é derramada na igreja e as baianas começam a lavar o mármore
sagrado.

Começam também os vivas que enchem a igreja, vivas aos santos e vivas aos líderes aliados. Que ninguém se escandalize
de ouvir um viva ao Marechal Vorochiloff em meio ao adro. Senhor do Bonfim está acima das divergências políticas e
religiosas. É um santo democrático.

Os torsos das baianas movem-se ritmicamente no trabalho de lavar a Igreja. Parece um bailado e logo os cânticos negros
se elevam. É uma imensa macumba, festa fetichista na igreja católica!

Lá fora as barracas têm nomes como versos. A multidão vem comer as comidas gostosas. Dentro da igreja as bilhas, os
potes e os moringues derramam a água pura das fontes em honra do santo popular. Assim é a lavagem da Igreja do Bonfim na
quinta-feira. Mas a festa dura uma semana inteira e só termina na Ribeira, na noite de segunda, numa festa de Largo em
dezenas de festas familiares. É como um carnaval mas parece também um reisado. Talvez porque fique antes do carnaval e
depois das festas de Reis.
FESTA DE IEMANJÁ

O coro das vozes femininas cantando uma canção, alcança o bonde ainda em meio às chácaras e às roças que marginam o
caminho para o distante bairro do Rio Vermelho. Fevereiro é o mês da festa de Iemanjá, deusa dos mares dos negros baianos,
é também o mês das festas de Oxalá, o maior dos santos do rito fetichista afro-brasileiro. O baticum misterioso dos atabaques
enche as noites profundas da Bahia. Nos bondes noturnos as filhas-de-santo passam com suas roupas rituais para os
candomblés que se sucedem nesse mês de fevereiro. Podereis ouvir, de súbito, no silêncio da noite alta, o baticum monótono
da música negra que apertará vosso coração e vos dará uma justa medida do mistério lírico que envolve a cidade. De onde ele
vem? Parece chegar do fundo da terra, de sob as árvores, de qualquer recanto misterioso e distante. Mas vos acompanhará
durante a viagem de bonde, ora próximo, ora distante, um som na noite como um lamento. São os pobres, os mais pobres de
todos, que reverenciam seus deuses e suplicam favores.

Porém neste dia de festa de Iemanjá, as "filhas-de-santo” não esperam a noite para vestirem seus vestidos mais ricos de
"baiana”, para usarem seus colares de todas as cores, de búzios da África e de contas de Itapoã, para cobrirem as cabeças
com os turbantes brancos, vermelhos e azuis, para prenderem as reboleantes cadeiras nos torsos sobre as saias rodadas.

Já pela manhã elas enchem o pequeno porto do Rio Vermelho, à espera da hora em que os saveiros partirão levando o
presente de Iemanjá, numa procissão marítima que é autêntica festa das flores de verão. O presente será depositado em meio
às águas do mar da Bahia onde vive Iemanjá, a dona dos mares, das tempestades e dos ventos. Senhora da vida de todos os
marítimos. Se Iemanjá aceitar a oferta dos seus filhos marinheiros é que este ano será bom para as pescarias, será bonançoso o
mar e os ventos ajudarão aos saveiros. Mas, ah! se ela o recusar, então é porque as tempestades se soltarão, os ventos
romperão as velas dos barcos, o mar será inimigo dos homens e os cadáveres dos afogados boiarão em busca da terra de
Aiocá. Porque Iemanjá é caprichosa e nem sempre a bondade enche seu inconstante coração. Seus verdes cabelos cobrem o
mar no porto do Rio Vermelho. As filhas-de-santo rezam na sua língua nagô tão misturada já.

No bonde superlotado onde se desenvolvem idílios entre soldados de polícia e mulatas graciosas e risonhas, ecoam as
canções cantadas no largo do Rio Vermelho. E aos poucos vão dominando os passageiros até que uma gorda mulata que se
reclina no ombro do cabo de polícia abre a boca e com doce voz cariciosa, inicia o canto no próprio bonde. É impossível
continuardes fora da festa. Mesmo antes de chegardes ao largo do Rio Vermelho já estareis cantando em honra de Iemanjá,
senhora do cais da Bahia.

As vozes repetem em coro:

“Iemanjá, oh! Iá...”

Qualquer dos pescadores, qualquer dos mestres de saveiro poderá vos ensinar os cinco nomes de Iemanjá. Cinco nomes
distintos, cada qual mais formoso. É Iemanjá, dona do mar da Bahia, do destino dos navios e das canoas, é Iemanjá nas
macumbas e nos candomblés, mas, na intimidade dos canoeiros, da gente do cais do Mercado, dos mestres de saveiro, ela é
dona Janaína. Nome bonito, gostoso de dizer, gostoso de ouvir. É como o nome de uma namorada. Janaína, bem romântica de
flor sob a orelha, os olhos fundos e dengosos. Nome cheio de murmúrios de água, dona Janaína, desejada de todos os
marítimos. Porém, para os negros mais escuros, aqueles que conservam mais puras as tradições religiosas, ela é Inaê, voz
nagô que lembra os tempos perdidos no passado da escravidão, dos navios negreiros, dos negros lutando para conservar seitas
e seus ritos, dos negros batendo candomblés em macumbas subterrâneas, cavada embaixo da terra, a entrada por um tronco de
árvore. Inaê, espôsa e mãe, desejada e impossível na renovação do complexo de Édipo numa lenda dos negros do cais da
Bahia. Para os homens do mar ela se chama também de Princesa de Aiocá, daquelas terras misteriosas da felicidade e da
liberdade, imagem das terras natais da África, saudade dos dias livres na floresta, Aiocá, terra inalcançável e feliz, sinônimo
de todos os desejos de justiça social dos negros baianos. Quando morre um marítimo valente, desses que não temem as
tempestades e arrostam os ventos na boca da barra, ele vai com Iemanjá numa viagem de núpcias até às terras encantadas de
Aiocá. Seu corpo nunca aparece, ele está com a mãe-d'água, recebeu seu presente de amor. Nestas noites a lua cheia ilumina o
mar da Bahia e no rastro do luar pode-se seguir a esteira de água por onde, em companhia do afogado, passou Iemanjá no
rumo das terras de Aiocá.

Chamam-na também de Maria, no sincretismo com a religião católica. Desejo de lhe dar um nome branco que seja doce, e
cheio de amor.

Iemanjá tem cinco nomes e muitos títulos. É rainha e princesa do mar, é a mãe-d’água, é Nosso Senhor dos Navegantes e é
Nossa Senhora da Boa Viagem. Tem cinco nomes e por todos eles atende aos seus filhos bem-amados, os marítimos dos
grandes navios, os mestres dos pequenos saveiros, os canoeiros que renovam diariamente a aventura da travessia da Barra em
busca dos portos do rio Paraguaçu. Sua festa no Rio Vermelho, no mês de fevereiro, não é a única que lhe dedicam os homens
do cais da Bahia. Ela é festejada também na Cameleira, na ilha de Itaparica, na Ribeira o em Plataforma. Porque ela possui
diversas moradas no mar que banha a cidade. Vive em sua pedra no Dique, vive na Ribeira, mora no Rio Vermelho. É
múltipla como os seus nomes. É a lenda mais bela dos negros da Bahia.

Sua festa no Rio Vermelho é feita com flores e canções, com embarcações e mar. Vem gente de toda parte e todos trazem
presentes para a deusa das águas: pentes para pentear os seus cabelos, perfumes para perfumá-los, brincos para suas orelhas,
anéis para seus dedos, sabonetes para seus banhos. Houve um tempo terrível de tempestade quando lhe sacrificaram um cavalo
e dizem que também uma donzela. Para aplacar a fúria de Iemanjá que virava saveiros e naufragava navios. Isso faz muito
tempo e hoje apenas as flores, os pentes, os brincos, os sabonetes e os anéis são ofertados à mãe-d’água. E cartas, ah! centenas
de cartas pedindo coisas, suplicando favores, que regressem amantes fugitivos, que perdurem amores frágeis, que seja salva a
vida do marido que é marítimo. Centenas de cartas em envelopes brancos, azuis e côr-de-rosa ficarão neste dia boiando no
mar, endereçadas a Iemanjá, escritas na língua simples do povo, tão poéticas algumas, tão sofridas outras...

No largo ao Rio Vermelho os casais de namorados passeiam. Os soldados de polícia dominam as mulatas mais lindas.
Essas mulatas da Bahia mereciam um livro que as classificasse, que as separasse em grupos pelas sutis diferenças da cor, do
andar, do cabelo, do sorriso, do negacear do corpo. Diversas que são umas das outras, chamá-las, assim, em bloco, de mulatas
apenas, é fazer injustiça aos seus inumeráveis encantos. Há as pequenas e saltitantes e há as enormes, brilhantes, cor de cobre,
parecendo um peixe de alto mar recém-saído das águas. Há as risonhas de dentes abertos em gargalhadas, e existem as
melancólicas, magras e elegantes, de andar macio e tímido. Tais variedades de mulatas se desenvolvem nesta cidade da Bahia
que um livro se faz necessário para classificá-las e enumerar seus encantos.

As “baianas”, carregadas de colares, balangandãs nas orelhas e nos pulsos, figas africanas no peito, as anáguas
maravilhosas, os seios saltando das combinações, estão ante os tabuleiros, vendem as comidas, as frutas e os doces, elementos
indispensáveis nas festas populares da Bahia. O acarajé, o abará, o acaçá, o vistoso vatapá, o caruru tão popular, a delícia do
efó. E os umbus e as mangas, as pinhas e os abacaxis, a cocada, o mungunzá de corte, o mingau de tapioca ou puba...

Numa casinhola sobre a rocha que penetra no mar está, aguardando que chegue a hora ritual, sob a vigilância constante e
infatigável das filhas-de-santo, o presente de Iemanjá. A multidão enche o largo, gente pobre e gente rica, devotos e curiosos.
Grupos de músicos, com atabaques, agogôs e chocalhos, reúnem gente nos batuques profundos e monótonos mas de uma
poderosa monotonia que a todos domina, que traz para o largo do Rio Vermelho um clima de mistério que todos sentem
pesando sobre o coração.

As “baianas” trazem ramalhetes de flores, predominam as cores azul e branca que são as cores de Iemanjá. Levam pentes
e sabonetes, vidros de perfume barato, sandálias para os pés de água de Inaê. Todos levam os seus presentes pois Iemanjá é
quem manda nas águas e na vida dos pescadores e vale a pena comprar sua boa vontade. Assim a pesca será frutuosa todo o
ano e o vento se transformará em brisa suave no mar dos saveiros.

Depois do meio-dia, o presente, cesto magnífico, dá a volta ao Largo. A igrejinha conserva-se fechada, o padre é contra a
festa de Iemanjá. Os que carregam o presente param em frente à Igreja e as orações católicas misturam-se às canções nagôs.
Dirigem-se depois para a pequena praia. Os saveiros inúmeros se balançam sobre as ondas, as jangadas e as canoas levantam
suas velas. A multidão canta e os batuques se fazem ainda mais ruidosos. O mistério perdura no ar.

O presente, levado pelas filhas-de-santo, foi posto num saveiro. Foguetes espoucam no céu. Na praia marítimos e
“baianas” correm com braçadas de flores e as atiram sobre o saveiro que conduz o presente. Em seguida aquele pedaço de
mar ficou cheio de flores e os saveiros partiram. Na frente o que conduz o presente. As velas curvadas pelo vento, a carreira
emocionante sobre o mar. E o presente, e os mil presentes pequenos e individuais, foram um e outros depositados no mar da
Bahia, mar de Iemanjá. As canções encheram o Largo e se espalharam sobre o mar:

“Iemanjá, oh! Iá...”


No saveiro que leva o presente levantou-se o pai-de-santo, alçou o cesto e o depositou sobre as ondas. O cesto de flores
demorou um pouco sobre as águas, mas logo Iemanjá o recolheu para o fundo do oceano. Ah! se ela não o recolhesse,
rejeitando-o, então o ano seria terrível para os marítimos...

Mas ela aceitava os presentes dos seus filhos e atenderia aos seus pedidos. As canções sobre o mar falam das graças de
Iemanjá e dos seus cinco nomes. Acontece esta festa no largo do Rio Vermelho, no mês de fevereiro, na cidade da Bahia, de
Todos os Santos e de todos os mistérios!
MÊS DE JUNHO

O São João é para nós, baianos, o que é o Natal para os povos europeus. Porém junho não é apenas o mês de São João. É
também o de Santo Antônio, patrono das moças casadoiras, e o de São Pedro, padroeiro das viúvas (“viúva é o sexo mais
perigoso que existe”) explicou-me certa vez um negro.

Junho é o mês do milho. É ele que domina todas estas comemorações de santos padroeiros. De mistura com as fogueiras e
os balões, o milho está presente durante todo o mês. O milho e a laranja, as célebres laranjas da Bahia, sumarentas, os
enormes umbigos. Quanto maior o umbigo e mais fina a casca, melhor a laranja, diz o povo. Milho das canjicas, dos
mungunzás, dos manuês, dos caçás, milho assado nas fogueiras, pipocas, milho cozido com café. Pamonhas e bolos. Doces
envolvidos na palha crespa do milho, Junho é o seu mês, o tempo em que melhor se come na cidade (excetuando a Semana
Santa, é claro). A finíssima canjica, a deliciosa pamonha, os manuês saborosíssimos. E o licor de jenipapo para acompanhar.

Em junho o céu da Bahia tem milhares de estrelas novas. São os balões que, apesar das renovadas proibições, surgem
sobre os telhados e tomam o rumo do mar. Os Capitães da Areia abandonam qualquer outra das suas múltiplas ocupações para
catar os balões perdidos que se apagaram no céu e descem sem rumo sobre as casas. É uma caça alegre e cheia de peripécias.
Roncam os rojões de foguetes, a meninada ensurdece os ouvidos alheios com bombas, traques e buscapés. As fogueiras se
levantam ante as casas mais devotas. Desaparecem quase completamente do centro da cidade. Mas, ah! se a vossa residência
for um subúrbio como o de Peri-Peri e não acenderdes a vossa fogueira na noite de São João sereis evidentemente olhado de
maneira suspeita pelos habitantes do lugar, pelos vossos vizinhos operários da Estrada de Ferro ou pelos pequenos burgueses
que a crise de moradia atirou para os subúrbios. Elevam-se as fogueiras sob as árvores, a terra parece envolta numa estranha
luz vermelha, cheia de sugestões e mistérios.

Em centenas e centenas de casas rezam-se as trezenas de Santo Antônio, do dia primeiro ao dia treze. Um altar
improvisado na sala de visitas, duas velas aos pés do santo, a mulher que puxa a ladainha. Moças pobres vestidas
modestamente, rapazes esperando. Trocam olhares durante a reza. Mas os músicos amigos da casa já se encontram por ali
perto esperando que a devoção termine. Depois da reza aparecem o violão e o cavaquinho, a flauta e a harmônica, e ante o
mesmo altar os pares dançam, os namorados riem. Cálices de licor de jenipapo são servidos.

Junho é o mês das festas íntimas, muitas festas, que se sucedem no correr das ruas, quase que em todas as casas, nos
bairros pobres. É o mês mais alegre da cidade.

No dia treze é a festa de Santo Antônio. As rezas são mais longas, a sala mais enfeitada (quase sempre bandeirolas de
papel), o baile também dura a noite toda. Corre o jenipapo, come-se a canjica, soltam-se os primeiros fogos.

Depois vêm as novenas de São João e logo a véspera que é o dia da grande festa. Nas fogueiras inúmeras assam- se
pedaços de cana, batata, milhos. Os namorados saltam sobre as brasas.

— Vamos ser compadres...

Apertam-se as mãos ternamente, os olhos se encontram. A meninada queima os dedos, os fogos rasgam a noite diversos e
surpreendentes. Moças colocam bacias d’agua para à meia-noite nelas espiarem o rosto do futuro noivo. Jogos de prendas,
adivinhações, pequenos bailes familiares, muita comida de milho, muito doce, muita laranja, muito licor de jenipapo.

As festas de junho são para velhos, adultos e crianças. Comidas, danças e fogos, devoção e alegria, superstição e poesia.

São Pedro é o santo das viúvas. São elas que fazem rezar suas novenas, são elas que comemoram o dia 29. É a despedida
de junho. A canjica, os manuês, os foguetes e a alegria irão ainda até o Dois de Julho, data da independência da Bahia.

O milho domina todas as festas, seu gosto domina o mês de junho, as espigas amontoadas nas cozinhas à antiga, de
grandes fogões de barro. Junho é o mês baiano por excelência. Em mil festas pequenas, em centenas de fogueiras, em milhares
de balões, se desdobra a cidade que neste mês parece ambiente para contos de fada, para histórias infantis, para cantigas
ingênuas. Como as que são cantadas pelas novenas e trezenas e também nos bailes improvisados diariamente. Tem gente que
dança do dia primeiro ao último dia do mês.

E sobre tudo e sobre todos, sobre os balões, as fogueiras, a canjica, sobre as novenas, as trezenas, os festejos, sobre o
licor de jenipapo e os jogos de prenda, sobre as rezas ingênuas e os noivos entrevistos na água parada das bacias, sobre os
santos de junho, rola a colheita do milho que cresce nos campos próximos. Junho é o mês do milho.
OUTRAS FESTAS POPULARES

Não muitas as festas populares da Bahia, festas religiosas, católicas, negras ou misturadas, festas de rua e festas
patrióticas, material para um vasto livro. Todas elas cheias de pitoresco, iluminadas com a presença alegre das “baianas” com
seus trajes típicos, dos capoeiristas dos pais-de-santo, das multas dengosas, desse povo de tanto colorido de tão resistente
alegria que supera a miséria em que vive. Povo forte que a fome não consegue abater. Uma simples relação das festas
populares mais importantes do ano bastará para dar uma ideia do seu número e de sua variedade.

FESTA DE BOM JESUS DOS NAVEGANTES

Esta é também uma das festas de Iemanjá, deusa negra que no sincretismo religioso afro-baiano, é entre outros santos,
Bom Jesus dos Navegantes. No entanto nela dominam os ritos católicos. Realiza-se a Primeiro de Janeiro. Na véspera, 31 de
dezembro, a imagem de Bom Jesus dos Navegantes é trazida da Igreja da Boa Viagem, em Itapagipe, por mar, com grande e
belo acompanhamento de saveiros, barcaças, canoas e até pequenos navios da Companhia Baiana, para o cais Cairu, em frente
ao Mercado. É levada para a Igreja da Conceição da Praia onde passa a noite. No dia seguinte volta para a Boa Viagem,
novamente por mar, numa das procissões marítimas mais formosas que se possa imaginar. Nos saveiros vai grande
acompanhamento de mulheres vestidas de branco, levando na cabeça um chapéu de palha. À frente segue a imagem e as
mulheres dos marítimos vestem, em honra do santo, seus vestidos brancos e cobrem as cabeças com os rústicos chapéus de
palha alegrados com uma fita qualquer, azul ou amarela, cor-de-rosa ou vermelha. Por vezes uma flor, o talo atravessando a
palha.

O REISADO

No dia 5 de janeiro, dia dos Reis Magos, há como em todo o Nordeste, bumbas-meu-boi, ternos de pastorinhas e
reisados. Na Lapinha desfilam os ternos e nessas noites barracas são armadas no Largo. Alguns desses ternos têm muitos anos
de existência. Não apresentam características que os diferenciem dos demais de outros pontos do Nordeste. Ainda assim essa
é uma das festas do Largo mais populares da cidade de um dos orgulhos do bairro da Lapinha. Os ternos mais célebres são: o
“Sol do Oriente”, o “Bonina” o “Leão de Ouro”, o “Estrêla d’AIva”, o “Arigofe”, o “Filho do Arigofe”, e o “Bacurau”.
Alguns destes já não saem pois esta festa está, como em geral todas as festas populares, em decadência.

FESTA NO BONFIM

Em data móvel, no mês de janeiro, temos a semana do Bonfim. Já se disse destas festas que são o espetáculo fetichista
mais completo do Brasil. Além da lavagem da igreja, na quinta-feira, das novenas todas as noites, o sábado e o domingo são
dias de grande festa de Largo no alto da colina do Bonfim. Na segunda-feira seguinte a festa é na Ribeira, à tarde e à noite. Há
uma feira, muitas festas dançantes em casas particulares e a multidão nas ruas. Na terça-feira os choferes realizam, também na
Ribeira, a festa de São Cristóvão que, de certa maneira, liga-se ainda aos festejos do Bonfim.
FESTA DA SENHORA SANTANA

A festa da Senhora Sant’Ana do Rio Vermelho realiza-se no primeiro domingo depois da festa de Iemanjá que é a dois de
fevereiro. Inicia-se com um banho a fantasia pela manha, na praia. À tarde surgem os bandos carnavalescos pelas ruas dos
bairros e à noite há uma batalha de confetes e além de danças em casas particulares. É já uma festa ligada ao ciclo do
carnaval, a primeira delas talvez.

Certa vez Mirandão resolveu penetrar numa dancinha particular e difícil no dia da Senhora Sant’Ana. Era a casa de um
velho e ranzinza morador do bairro, homem de humor difícil e filhas casadoiras que conservava a devoção do baile naquele
dia mas com gente conhecida e escolhida. Mirandão não fora convidado, e puxava da cabeça para descobrir um meio de
entrar. Todos os truques habituais eram inúteis ante a vigilância do velho que colocara um forte porteiro encarregado de
barrar os penetras. Mirandão estava com um amigo e não tardou em ter uma ideia salvadora. Nesta época andava pela Bahia,
numa tournée de sucesso, um musico extravagante que tocava um instrumento inédito: um serrote que mais parecia piano ou
violino de tão harmonioso. Mirandão não teve dúvidas. Comunicou o plano ao amigo, arranjaram um serrote qualquer,
absolutamente normal e tão pouco melodioso quanto enferrujado. Enrolaram-no num papel e enfrentaram o porteiro feroz.

Mirandão desejou falar diretamente com o dono da casa. Quando o velho ranzinza soube que era o afamado músico do
serrote e seu empresário, abriu as portas e saiu espalhando a novidade. Mirandão e o amigo comeram, bebêram, dançaram
enquanto eram cercados pela expectativa geral de todos os presentes ansiosos por ouvirem o célebre músico e seu Serrote
mágico. Afinal chegou a hora trágica. Segundo Mirandão as janelas eram altíssimas e foi mesmo por elas que eles tiveram que
fugir. A festa da Senhora Sant’Ana transformou-se então numa perseguição aos dois penetras, perseguição na qual tomaram
parte inúmeras pessoas. O serrote atrapalhava muito a fuga, batia nas pernas de Mirandão e os seus sons eram, segundo ele
afirma, absolutamente desafinados.

ALELUIA

Além da clássica queima de Judas (nos anos de guerra transformada em queima de Hitler e Plínio Salgado), há uma
espécie de subcarnaval, com serpentinas, corsos e confetes, (intitulado Micareme ou Micareta. Com tendências a desaparecer.

FESTA DO ESPIRITO SANTO

No domingo de Pentecostes. É a festa do Divino quando, uma criança ricamente vestida, representando o Imperador, sai à
frente da Irmandade do Espírito Santo. A criança conduz a bandeira do Espírito Santo e é seguida pelo clero e segundo era
hábito, pelo próprio Arcebispo. Chegando à Casa de Detenção, no Largo de Santo Antônio, o Imperador atravessa entre alas
formadas pelos irmãos do Divino e penetra no pátio onde estão os presidiários. Ali toca com a bandeira na cabeça de três
presidiários que são postos em liberdade. Distribui também uma moeda a cada preso.

DOIS DE JULHO

“Foi um Dois de Julho”, se diz na Bahia quando se faz referência a uma coisa notável ou grande ou barulhenta ou
grandiosa. As festas do Dois de Julho têm um caráter cívico e patriótico que não lhes tolda a graça popular. Comemora-se a
data da entrada triunfante dos exércitos libertadores na capital em 1823.

Da Lapinha parte o préstito conduzindo as carretas com o Caboclo e a Cabocla, puxados pelo povo. Bandos
representando os batalhões patrióticos que lutaram pela independência acompanham o préstito. Toda a gente veste roupa
branca neste dia e usa braçadeiras verde-amarelas. Nas lapelas e nos obrigatórios chapéus de palha quebrados de lado usam-
se folhas de um cróton também verde-amarelas.

O préstito faz o percurso histórico do Exército Libertador: Lapinha, Soledade, São José, Perdões, Rua 15 Mistérios,
Conceição do Boqueirão, Cruz do Pascoal, Rua do Carmo, Pelourinho, Portas do Carmo, Terreiro, chegando por fim ao Largo
da Sé onde o Caboclo e a Cabocla demoram numa barraca onde o povo os admira. Cosme de Faria faz um discurso.

À tarde o cortejo ruma para o Campo Grande, onde no monumento ao Caboclo há uma cerimônia cívica. É um dia alegre,
muito baiano na sua jovialidade e no seu culto à liberdade. Há um verso muito repetido sobre o Dois de Julho que diz que o
sol de Dois de Julho brilha mais que o de primeiro. A verdade, porém, é que quase sempre chove.

SÃO COSME E SÃO DAMIÃO

O mês de setembro é de São Cosme e São Damião, santos católicos mas também importantes deuses negros, Dois-Dois no
chamar das mães-de-santo. Santos populares entre toda a gente baiana, no mês de setembro em todos os recantos da cidade
encontram-se velhos, moços e crianças conduzindo quadros que representam Cosme e Damião ou imagens pequenas,
angariando dinheiro para missas que devem ser celebradas em honra dos dois “primos". Os festejos são muitos.

Dizem os negros que São Cosme e São Damião são amigos de boa comida baiana e neste mês de setembro cozinham-se
em honra deles todas as comidas de azeite-de-dendê, especialmente o efó, o vatapá e o caruru. A grande festa, quando batem
todos os candomblés da cidade, e a 27 de setembro.

FESTA DE SANTA BARBARA

A festa de Santa Bárbara, Iansã dos negros, é realizada no Mercado da Baixa dos Sapateiros. Muita cachaça, um grande
torneio de capoeiras. Inicia-se com uma missa em honra da santa, voltando depois todos os assistentes e mais os que aderem
para o Mercado em ruidosa procissão. Em meio à célebre imundície desse Mercado da Baixinha, onde se venera uma imagem
de Santa Bárbara, repicam os violões e batem os pandeiros. O Mercado se transforma num único samba, onde dançam todos,
os que ali têm barraca, os convidados, os penetras, as baianas. A comida é farta e a cachaça mais farta ainda. Para esta festa
são escolhidos padrinhos entre a gente importante da cidade. A festa realiza-se a 4 de dezembro.

FESTA DA CONCEIÇÃO DA PRAIA

A data é 8 de dezembro mas, em verdade, ela dura toda n semana, precedida de novenas. Em frente ao Mercado do Cais
Cairu armam-se as barracas clássicas. Na bela igreja rezam as velhas beatas. No Largo em frente a multidão se diverte. Esta
festa é a preferida dos capoeristas que fazem aqui as suas melhores demonstrações. Ali se misturam marítimos e gente do
Mercado Modelo, povo vindo de longe e populares curiosos. Os grandes capoeristas exercitam-se na vista da multidão,
acompanhados pelo berimbau e pelo chocalho. É uma das festas populares mais interessantes da cidade.
MACUMBA

Tomemos o automóvel e vamos buscar Alice, mãe-peque- na da Gomeia. Outros candomblés podem ser mais puros no seu
rito, o do Engenho Velho possivelmente o será. Assim era também o grande templo da mãe-de-santo Aninha, uma das mais
formosas, nobres e dignas mulheres que conheci. Seu enterro teve um acompanhamento de milhares de pessoas. Porém
nenhuma macumba tão espetacular como esta da roça da Gomeia, do rito Angola, por vezes “candomblé de caboclo” quando
das festas de Pedra-Preta, um dos patronos da casa. Nos ritos negros os santos da casa são Oxóssi e Iansã. O pai-de-santo
Joãozinho da Gomeia ou da Pedra-Preta é um maravilhoso bailarino, digno de palcos de grandes teatros. Esse caminho de São
Caetano que leva à estrada difícil da Gomeia é percorrido por quanto artista, quanto escritor e quanto sábio passa por essa
cidade. Sou ogã deste candomblé e esse talvez seja o único título que carrego comigo. Quase ogã é também o professor Roger
Bastide, da Faculdade de Filosofia de São Paulo, que assistiu na Gomeia à iniciação das “yawôs”, quando elas se fizeram
filhas-de-santo. Para ele e para mim abriram uma exceção que jamais agradeceremos suficientemente: foi-nos permitido ver as
futuras filhas-de-santo na pequena casa onde faziam o noviciado. Ali aprendem os cantos e as danças, a língua nagô que é a
ritual dos candomblés, ali, de cabeça rapada, Ouvem as preleções do pai-de-santo sobre as obrigações das "yawôs”, longe do
contato masculino, numa abstinência sexual absoluta, que dura em média seis meses. Naquelas casas cosem as ricas roupas de
“baiana”, as vestimentas dos santos, sacrificam aos seus deuses os animais sagrados: o carneiro e o galo, o bode também.

No quilômetro 3 da estrada de rodagem o automóvel muda de direção e parece que deseja rebentar-se sobre as pequenas
casas em frente. Desce uma rampa quase vertical e toma a estrada da Gomeia onde os pés dos negros, milhares de pés, se
afundam diariamente em busca do seu templo. Pelo caminho encontrareis dois ou três candomblés que São Caetano é zona
deles. Mas a roça da Gomeia é mais longe por isso que é maior, mais célebre, mais importante.

Um cruzeiro assinala a entrada do candomblé. É uma roça enorme, com uma série de pequenas construções. Duas são
maiores: a casa do pai-de-santo e o terreiro onde se realiza a macumba. Joãozinho da Gomeia, com um rosário de contas de
côco sobre o camisu nos receberá quase em frente à casa de Exu que está próxima à entrada do candomblé. Deixemos saltar a
gorda Alice, muito risonha, muito querida e respeitada neste terreiro. Joãozinho da Gomeia é um mulato moço de olhos
langues, corpo flexível de bailarino, agilíssimo. Sua voz é mansa. Foi filho-de-santo de Jubiabá, o grande pai já falecido.
Jubiabá o iniciou nos mistérios da macumba e o entregou ao caboclo Pedra-Preta cuja casa está quase em frente à de Exu. A
festa de Pedra-Preta é no Dois de Julho quando o candomblé todo se enfeita, quando vêm visitas de muito longe, outros pais-
de-santo também que dançam no terreiro de Joãozinho. Nesse dia corre franca a “jurema”, bebida forte feita com a casca da
jurema fermentada em álcool, que pareceu deliciosa ao pintor Manuel Martins e absolutamente terrível ao cinematografista
Rui Santos. Questão de gosto. O caso é que sereis obrigada a bebê-la se não quiserdes fazer uma desfeita aos presentes.
Talvez vos agrade mais o inofensivo “aluá” feito com gengibre ou com a casca do abacaxi, um refresco delicioso. Mas eu vos
aconselho a não recusardes a jurema pois Pedra-Preta é um caboclo juremeiro e se não beberdes com ele não contareis com
sua proteção nos vossos amores.

A casa de Exu é pequena e terrível. É um quadrado de paredes grossas. Joãozinho abrirá a porta a nosso pedido com a
grande chave dos outros templos. Lá dentro, sobre um pequeno pedestal está o deus inimigo dos homens, o diabo negro, o
temido Exu. Um galo espantado anda por dentro da casa do santo.

— Vai ser sacrificado, Joãozinho?

— É um trabalho que me encomendaram... Um despacho...

O sangue do galo correrá sobre Exu, a imagem já não se percebe bem sob a crosta sangrenta que a cobre. Sangue e azeite-
de-dendê derramados sobre Exu nos despachos que iniciam todas as macumbas para que Exu parta para longe, não venha
perturbar a boa marcha da festa. Sangue derramado também dos animais sacrificados nos “festejos” pagos generosamente
pelos ricos. Não vos admireis. Aquele automóvel grã-fino, de noventa contos, que vedes ao lado da casa de Joãozinho, trouxe
a grã-fina alarmada com os amores adulterinos do esposo e que veio pedir ao pai-de-santo uma reza forte que afaste a mulher
fatal. Aquela outra deseja um feitiço que prenda à sua beleza que já fenece o jovem amante enfastiado. Não penseis que o
poder dos pais-de-santo se estenda somente sobre os negros pobres, sobre os mulatos desta cidade. Brancos ricos, grã-finos
da Barra e da Graça, gente da Vitória e da Avenida Oceânica, palmilham os caminhos da Gomeia, e os caminhos também
difíceis dos outros candomblés, em busca de feitiços, rezas e remédios, em busca de consolo e esperança.

A casa do caboclo Pedra-Preta não é uma casa. É uma árvore, uma gameleira sagrada, cercada com uma cerca de bambus,
enfeitada de fitas, um altar de floresta. No Dois de Julho, dia da festa do caboclo, dia maior da Gomeia, dúzias de galos,
vários carneiros e bodes são ali sacrificados, ao pé da árvore, enquanto as filhas-de-santo rezam as orações rituais. O pai-de-
santo e a mãe-pequena, encobertos dos demais por uma colcha lindíssima nos seus bordados e nas suas rendas, já em transe,
bebem do sangue dos animais sacrificados. Já não são eles, Joãozinho e Alice, é o caboclo Pedra-Preta e outro santo qualquer
que se alimentam com o sangue quente dos galos e carneiros.

As outras casas se levantam em torno à casa maior do pai-de-santo. A casa de Iansã, a de Oxóssi que é São Jorge, meu
santo. Longe, porém, nos fins da roça, está a árvore Sagrada junto à qual são colocados os despojos das filhas-de-santo que
morreram. Ali habitam elas, as finadas, não há árvore mais sagrada no candomblé. Não há também festa mais bela e mais
dramática que a dedicada a elas, às falecidas “yawôs” da macumba. Dizem que elas, nestas noites, vêm, almas ainda ligadas
ao seu terreiro, dançar em meio aos vivos, cantar seus cantos preferidos, honrar seus deuses. O candomblé neste dia é batido
em frente a esta árvore sagrada, uma jaqueira enorme que não dá jacas. Aliás, segundo Joãozinho, nenhuma das árvores desta
roça dá frutos. Nenhuma criação tampouco pode ser feita ali. Esta não é uma roça, é um templo religioso.

Na casa do pai-de-santo está a “camarinha” onde as yawôs mudam a roupa quando os santos descem sobre os seus
“cavalos”. Ali estão guardados os vestidos mais belos que podeis imaginar. O vestido vermelho, espantoso, de palha, com sua
máscara também de palha, que é a roupa de Omolu, a deusa da bexiga, a "mãezinha aos pobres”. Ali estão as roupas azuis e
brancas de Iansã, a espada de Oxóssi, os instrumentos de Xangô e de Ogun. Ali estão as roupas alvas, tão belas! de Oxalá, o
maior dos santos.

E noutro quarto, trancado a chave, cujo batente de porta deveis beijar estendido no chão, antes de olhardes para dentro, se
encontram os fetiches dos santos. Sobre grandes toalhas rendadas, em meio a flores e fitas, vereis a pedra verde de Iemanjá, a
deusa das águas. No chão tapetado de folhas, os pratos de comida oferecidos aos santos: o acarajé e o abará, o acaçá e o
xinxim de galinha. É a comida dos deuses feita com came dos animais sacrificados.

Nos fundos da casa, enfeitado de bandeirolas de papel, está o terreiro. Numa extremidade levanta-se o altar, onde os
deuses negros e os santos católicos se misturam. Ao seu lado ruge a orquestra “monótona e estridente” como aquela de que nos
fala Castro Alves no “Navio Negreiro”. Atabaque, agogô, cabaça e chocalho, eis os instrumentos. Os atabaques são de três
tamanhos. Essa música é monótona mas nenhuma outra tão poderosa. Vós a sentireis no estômago e no coração. Abalará os
vossos nervos todos e sereis sacudidos por uma invencível vontade de bailar de sair pelo terreiro como uma yawô ou um ogã,
bailando em honra dos deuses das florestas da África que os negros trouxeram para o Brasil.

Nos dias de grande festa toda uma multidão variada de negros, mulatos, caboclos, gente de pé descalço e gente bem
vestida, se desloca da cidade para a roça da Gomeia. Pelo crepúsculo, após o despacho de Exu e dos sacrifícios, o candomblé
começa. A orquestra inicia suas músicas. Existem mestres de toque de atabaque, como existem mestres de berimbau para a
dança e luta da capoeira. São negros jovens e fortes, que desde crianças se habituaram a ouvir esses cantos, a aprender esses
ritmos das macumbas. A música parte do candomblé sobre a cidade e muito longe a ouvireis, misteriosa e profunda, apertando
vosso coração descuidado dentro do mistério negro da cidade da Bahia.

A princípio a dança é simplesmente ritual, quase bem comportada. Ainda não desceram os deuses, ainda não cavalgaram
seus “cavalos” que são os yawôs e ogãs. Por vezes eles tardam e então os atabaques, os agogôs e as cabaças tocam o "toque
do santo”, o terrível chamado que é a música mais poderosa entre quantas esta orquestra executa. E então descem os santos.
Vem Xangô e vem Oxóssi, vem Iansã cavalgando Joãozinho da Gomeia, vem Oxalá todo-poderoso.

As filhas-de-santo caídas em transe são levadas para a camarinha onde sua roupa “baiana” é trocada pelos vestidos do
santo. Quando voltam trazem os instrumentos de cada deus. Vêm em fila, estranha fila de negras e negros em transe, os olhos
parados, o corpo tremente, o andar incerto. A assistência bate palmas, joga confetes, grita a saudação nagô: ôkê. Sobem os
foguetes para o céu e os deuses iniciam suas danças em meio ao povo negro. A orquestra ganha nova força, as canções nagôs
são cantadas por todos e agora a dança já não é bem comportada, é a mais maravilhosa das danças, são bailados africanos,
homenagem dos negros aos seus deuses.

Na sala de jantar a comida do santo vos é oferecida, Acompanhada de aluá. No terreiro é a dança. Nada além da dança,
da música e do canto. Desapareceu tudo mais. Os deuses e os homens dançam em perfeita e completa intimidade. Isso
acontece no candomblé da Gomeia, em noites de macumba que duram dias e dias, e também em cerca de seiscentos outros
candomblés da cidade negra da Bahia.
OS TERREIROS DE SANTO

Em 1944, com o auxílio de amigos, entendidos e autoridades, organizei uma relação de 117 candomblés, naquele então
funcionando na cidade do Salvador. Era, na época, talvez a mais completa que já se levantara mas, sem dúvida, longe estava
de expressar o número exato dos terreiros de santos, dos templos negros existentes na cidade. Os negros baianos e seus
descendentes, nós todos com a graça de Deus! guardaram, numa luta dura e difícil, a fidelidade a seus deuses africanos. Era
uma forma, e das mais positivas, de resistir à escravatura, de manter os elementos de sua cultura. Trouxeram, assim, através o
tempo até os dias de hoje, os bens da dança e do canto, os rituais formosos, o mistério e a poesia. Neste ano de 1960, ao
atualizar este livro, uma nova pesquisa, com idêntico auxílio de amigos e entendidos, deu-me como resultado uma relação de
611 terreiros de santos, de variadas nações, existentes em Salvador. 611 conhecidos e registrados nas repartições
competentes. Quantos outros existirão? E, se a esses da capital, somarmos os candomblés do Reconcavo, ultrapassaremos
facilmente o milheiro de templos negros em funcionamento.

É claro que os deuses vindos da África para o Brasil, aqui se misturam e como que se abrasileiraram. Misturaram-se com
os santos católicos, era assim que os negros escondiam seus deuses e os conservavam, saudando Oxalá em Senhor do Bonfim,
Oxóssi em São Jorge, Iemanjá em Nossa Senhora dos Navegantes. Mas, no fundo, Oxalá era mesmo o maior dos santos,
Oxóssi o deus da floresta, e Iemanjá a dona do mar. Esse sincretismo religioso acentuou-se com o passar dos tempos, quando
os ritos das diversas nações começaram a misturar-se e a eles juntaram-se elementos colhidos entre os índios. Qual o futuro
das religiões negras? Falar de seu desaparecimento à proporção que o progresso e a cultura aumentam, parece-me apenas
pretensiosa afirmação de dogmáticos sem maior base de realidade. Nesses trinta e cinco anos de contato com as seitas afro-
brasileiras, só as tenho visto crescer, estender-se sobre massas cada vez mais amplas. A minha pergunta não se refere a isso.
Refere-se ao problema mesmo do sincretismo: manter-se-ão as casas “puras”, os candomblés que ainda hoje buscam
conservar e preservar os ritos africanos originais, onde a língua religiosa oficial é o iurubá (como o latim é a língua oficial do
catolicismo) ou o futuro é dos candomblés de caboclo, nos quais ritos gêge-nagôs, congo ou angola misturam-se com o
improvisado ritual dos caboclos? Não sei, não pretendo responder à interrogação. Isso é tarefa dos estudiosos e eles estão
voltados para o problema. Talvez um dia o meu amigo Vivaldo Costa Lima possa dizer-nos algo definitivo sobre a questão.
Aqui não desejo nada além de prestar algumas informações sobre os terreiros de santo de Salvador.

Já sabemos que a estatística oficial de 1956 consignou a existência de mais de 600 candomblés na cidade. Com o auxílio
de Vivaldo Costa Lima, cheguei a 611. Essas casas de santos estão divididas em quatro grupos principais, no que se refere à
suas “nações":

a) os candomblés gêge-nagô, compreendendo os candomblés de origem kêtu, gêge e ijexá;

b) os candomblés congo;

c) os candomblés angola;

d) os candomblés de caboclo.

Os candomblés do grupo gêge-nagô, que já são, em realidade, resultado de um sincretismo entre seitas de nações
africanas, são os mais puros — e entre eles encontram-se alguns cuja pureza de ritual é realmente notável — e os mais
poderosos e respeitados. Trata-se do grupo mais importante. Creio que numericamente o grupo dos candomblés de caboclo
será o maior. Longe, porém, está de ter a força e de manter o respeito dos candomblés gêge-nagô. Os pais-de-santo ou mães-
de-santo mais prestigiadas são aqueles ou aquelas capazes de “mudar de nação” em meio a uma festa e tirar cantiga em nagô.
As “roças” desse primeiro grupo são as maiores, as que, por assim dizer, comandam o misterioso complexo das religiões
negras não só na Bahia mas em todo o Brasil.

As principais casas desse grupo, em Salvador, são:


1 - A Sociedade São Jorge do Engenho Velho (Axé Iá Nassô) situada na Avenida Vasco da Gama. Trata-se do mais
antigo candomblé de Salvador, há quem lhe atribua mais de 300 anos de existência, vindo mesmo dos princípios da
escravidão, tendo sido, em certo tempo, escondido embaixo da terra, num terreiro subterrâneo pelo qual se entrava por um
buraco numa árvore. Verdade ou lenda? Não sei, a história é bela, fico com ela sem querer aprofundar sua origem. Isso é
trabalho para pesquisador, ou prefiro mesmo acreditar que assim foi. A mãe-de-santo chama-se Oké e substituiu a veneranda
tia Massi, falecida aos 103 anos de idade. Seu nome completo era Maximiana Maria da Conceição, filha de Oxaguian (uma
das formas de Oxalá) e com 100 anos feitos, ela ainda dançava no terreiro em honra de seu santo, nos dias de grande festa. O
terreiro do Engenho Velho é de Oxóssi, o padroeiro da casa, São Jorge no sincretismo com o catolicismo (no Rio, São Jorge é
Ogun). Dessa grande casa matriz, onde os ritos conservaram-se puros e onde essa pureza foi uma constante, nasceram duas
outras grandes casas de santo, que formam com ela o trio mais poderoso e importante dos candomblés baianos: o Axé do Opô
Afonjá (minha casa que vos convido a visitar) e o Axé Iamassê, o candomblé do Gantois.

2 - Centro Cruz Santa do Axé do Opô Afonjá, na Estrada de São Gonçalo do Retiro, hoje talvez o mais famoso e
importante terreiro de santo da Bahia. Não sei se há sectarismo em minha afirmação pois, nessa casa de Xangô, sou obá
confirmado, lá tenho minha cadeira ao lado da mãe-de-santo e por vezes sou seu porta-voz. O que sei com certeza e o afirmo
sem medo de errar é encontrar-se à frente do Opô Afonjá a maior figura das religiões negras da Bahia: a mãe-de-santo
Senhora, extraordinária personalidade, feita de inteligência e bondade, de alegre ternura humana, dona daquele saber que só a
vida popular pode dar. Filha de santo da finada mãe Aninha, seu nome civil é Maria Bibiana do Espírito Santo e é filha de
Oxun. O terreiro é de Xangô Afonjá. No candomblé de Senhora a pureza de rito é impressionante. Ela a conserva, lutando
contra toda e qualquer tentativa de degradação. Creio que nenhum outro pai ou mãe-de-santo sabe tanto dos segredos e
mistérios das seitas negras quanto esta admirável figura que tem algo de rainha em seu porte.

Como no Engenho Velho, além do grande terreiro onde é batida a macumba, na roça de São Gonçalo, elevam-se várias
casas de santo, além de múltiplas árvores sagradas. Além da casa de Xangô, senhor do terreiro, estão as casas de Oxun,
Oxalá, Oxóssi (recentemente reconstruída por Caribé, o pintor, e por mim, pois somos os dois filhos de Oxóssi) Ogun, e
outras. Uma curiosidade no Axé do Opô Afonjá: ali cultua-se lá, que é a Iemanjá da nação Grunci (ou Galinha) nação da
família da antiga e famosa mãe-de-santo Aninha, falecida em 1938. Iá tem parte na roça de São Gonçalo e sua casa (a cuja
inauguração assisti, juntamente com Edison Carneiro, em 1936) cerca uma nascente de água que é Iá.

Ao terreiro de Senhora estão hoje ligados, como antes sucedera no tempo de Aninha com Artur Ramos e Edison Carneiro,
vários escritores e artistas: Caribé, Mario Cravo, Vivaldo Costa Lima, Vasconcelos Maia, Antonio Olinto, Zora Seljan, o
pintor Rubem Valentim, o jurista pernambucano Rui da Costa Antunes, Moisés Alves. Senhora, a mãe-de-santo, não cerra seu
mistério aos estudiosos, desde que veja neles seriedade e amizade. Um alto posto na casa é ocupado por um irmão de Vivaldo
Costa Lima, de nome Sinval, industrial e pessoa excelente.

3 -Sociedade São Jorge do Cantois (Axé Iamassê) no Alto do Gantois 33, na Federação (fim de linha). Essa é a terceira
das grandes casas gêge-nagô da Bahia, nascida ela também, como o terreiro de São Gonçalo, do Engenho Velho. No alto de
sua hierarquia religiosa está Menininha, a mãe-de-santo, filha de Oxun, cujo nome completo é Maria Escolastica Conceição
Nazaré, gorda e sorridente. Trata-se de um terreiro de Xangô que tem, no entanto, como padroeiro a Oxóssi. Terreiros dos
mais importantes, ali existem feitos de Euá, santa difícil que em raros terreiros desce.

4 - Outro belo e puro terreiro gêge-nagô de Salvador é a, Sociedade São Jerônimo Ilê Morôialaje (Ala-ketu) na Rua Luiz
Anselmo, 65, no Matatu de Brotas. Mãe-de-santo: Olga Francisca Regis, figura esplendida, de grande dignidade e doçura,
filha de Iansan. A festa de sua santa, nos meados deste ano de 1960, assistida por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir foi
um espetáculo magnífico. O padroeiro do terreiro é Oxóssi, mas a casa é de Oxumarê, o arco-íris.

Outras casas gêge-nagôs importantes:

Casa de Oxumarê, na Avenida Vasco da Gama, 343. Mãe-de-santo Simpliciana de Ogun. Casa fundada pelo famoso pai-
de-santo Antoninho de Oxumarê, sucedido por Cotinha de Euá, falecida há uns dez anos;

Candomblé de Ilê Ogunjá (do falecido e respeitável pai- pe-santo Procopio Xavier de Souza, grande figura das seitas
negras, desaparecido em 1958) sob a direção de Sinhá Honoria, filha de Oxóssi, tendo como mãe-pequena (Ossi-Dagã) Iatu de
Omolu;

Sociedade Beneficente São Lázaro, na rua Cosme de Faria (fim de linha) no Gunocô, no local onde existia um velho
terreiro de negros africanos. Mãe-de-santo: Cecilia Moreira de Brito, conhecida como Cecilia de Omolu. Essa Cecilia tinha
antes uma “sessão de olhar” muito frequentada em São Lourenço, na Liberdade. Abandonou o espiritismo pelo candomblé,
tendo feito santo com a falecida e famosa mãe-de-santo Oxalafalaquê;

Vila Flaviana, na rua Apolinario Santana, 134, no Engenho Velho da Federação, da falecida mãe-de-santo Flaviana Maria
da Conceição Bianchi. Mãe-de-santo atual: Maria Eugenia Boa Morte (Maria de Oxum). Casa séria, não faz, no entanto, festas
públicas, só obrigações privadas. Patrono do terreiro: Xangô.

Casa de Zézé de Iansã, no Alto do Nordeste de Amara- lina.

Outra casa de santo que vale a pena registrar é a da falecida Emiliana do Bogun, única casa de gegê pura exis- tente
atualmente em Salvador, sem mistura de ketu. Outras casas gêge existem no Recôncavo, sobretudo em Cachoeira e Muritiba.

O único terreiro puro da nação de ijexá é a casa do babalorixá Eduardo Antonio Mangabeira, Eduardo Ijexá. Fica no
Jardim Madalena, no fim da linha de Brotas, onde se realiza uma festa anual, sempre nos começos de outubro para Logum Edé
(santo ijexá que é metade Oxóssi, metade Oxum).

Os candomblés do grupo congo, têm seu templo principal na Casa do finado Bernardino do Bate Folha, no Beiru,
atualmente sob a direção da Bandanguiame. Uma filha de santo de Bernardino, Marieta de Tempo (Tempo é um santo da nação
congo) possui uma casa muito bem organizada na Fazenda Grande do Retiro. A festa mais importante é a 7 de Setembro. O
terreiro de Marieta está sob o patrocínio de Tempo. Existem cerca de 100 terreiros da nação congo.

O mais importante terreiro da nação angola, em Salvador, é o de Ciríaco, na Vila Amélia; é um terreiro de Obalualê.
Outras casas angola existem, inclusive de filha-de-santo de Ciríaco, como, por exemplo, a de Joana de Xangô.

Muitos são os candomblés de caboclo, ricos de improvisação, abrasileiramento completo dos ritos vindos da África.
Entre os mais importantes estão: a Aldeia de Zumino-Rean-zarro Gangajti, do pai-de-santo Neive Branco, cujo nome civil é
Manuel Rodrigues Soares Filho. Bate também como terreiro de Angola. Neive Branco iniciou-se como filho-de-santo na
nação angola, com o muito conhecido pai-de-santo de angola Julio Branco, hoje falecido. Posteriormente Neive Branco fez
santo do lado de ketu, filho de Oxum, com o babalorixá José do Vapor (em Cachoeira). Finalmente recebeu o caboclo Neive
Branco que o acompanha, segundo ele, desde os tempos de sua iniciação nos ritos angola. Trata-se de um caso aos mais
típicos de sincretismo de nações e de coexistência religiosa e cultural.

Outro importante candomblé de caboclo — já foi importantíssimo — é o da Gomeia, sob a égide do caboclo Pedra-Preta,
tendo como pai-de-santo Joãozinho da Gomeia, excelente dançarino. Hoje Joãozinho vive mais no Rio do que na Bahia e sua
roça não mantem o mesmo prestigio de antigamente.

No Rio Vermelho de Baixo, na Ladeira da Vila América, fica o candomblé de caboclo de Camilo José Machado, casa
séria.

Outras casas de caboclo dignas de serem visitadas: Terreiro de Manuel Rufino do Sacramento, Rufino de Oxum, em
Beiru. Manuel Rufino é filho-de-santo do falecido Mas- sanganga do Beiru que foi um famoso feiticeiro da nação angoa. Essa
é outra casa típica do grande sincretismo: angola, ketu, caboclo. Terreiro de Ogun Rei de Guiné, do pai-de-santo Waldemar
Gomes, Waldemar de Oxum, filho-de-santo de Rufino. O terreiro fica no Engenho Velho da Federação. Waldemar recebe um
caboclo que dá consultas no centro da cidade (Rua Franco Velaco, 21). Terreiro que mistura também ketu, angola e caboclo.

Os candomblés de caboclo são dezenas e dezenas. A maioria das casas pequenas congo e angola batem para caboclo. Ao
mesmo tempo, as grandes procuram aproximar-se da nação ketu e sincretizar-se com ela. Candomblé de caboclo puro não
existe. Está sempre misturado com uma nação africana, sobretudo angola. Daí, por vezes, serem os candomblés de caboclo
denominados como candomblés angola.

Os candomblés mais fechados e inacessíveis são aqueles dedicados ao culto dos Eguns, ou seja, são os candomblés da
nação ketu, dedicados ao culto dos mortos. Os Eguns, em realidade, formam uma sociedade secreta ainda hoje existente na
África, nos países de cultura iurubana. Descendentes dessas nações, vindos para o Brasil, fixaram-se na Ilha de Itaparica, na
Bahia de Todos os Santos, onde existe um terreiro de Eguns. Em dezembro de 1959, morreu, aos 156 anos de idade, o velho
pai-de-santo do terreiro, Eduardo de Paulo, o Alagbá da casa. Foi sucedido por seu filho Antonio Daniel de Paulo, de mais de
setenta anos de idade.

Para completar, alguns dados sobre a hierarquia religiosa e civil nos candomblés. Hierarquia religiosa: a) Mãe ou pai-
de-santo (Iarolixá ou Babalorixá); b) mãe-pequena (Iakekeré) que substitui a mãe ou o pai-de-santo, podendo dirigir certas
cerimônias; c) as “dagãs”, que são duas: a ossi dagã e a otum dagã; d) as oiês (filhas-de-santo com certas responsabilidades
no terreiro, como, por exemplo, a Amorô que dança o padê de Exu nas casas da nação ketu, ou a Iatebexê, que tira as
cantigas); e) as ebomnis (em gêge diz-se vodunci) que são as filhas-de-santo que já fizeram obrigações de sete, quatorze ou
vinte e um anos; f) as iaôs, as filhas-de-santo com menos de 7 anos de feitas.

Em todo candomblé existe também uma outra hierarquia religiosa que corresponde à linha de Ifá ou seja à parte mágica
dos candomblés (que se refere à adivinhação do futuro e aos trabalhos para fazer bem ou mal, o chamado feitiço). É a seguinte
a hierarquia na linha de Ifá: a) Babalaô (o pai do segredo). Hoje só existem dois verdadeiros babalaôs na Bahia. Os últimos
grandes babalaôs foram Martiniano do Bonfim, a quem muito conheci e estimei, e Bemzinho Sawzer. Os babalaôs usam o
Opelê Ifá (corrente com 16 sementes) para fazer o jogo de adivinhação, b) Oluô (um grau antes dos babalaôs. Os oluôs jogam
com búzios (cauris) o jôgo do Dilogum — abreviatura da palavra africana iorabáu-reredilogum, que quer dizer adivinhar).

Hierarquia civil: o Axé do Opô Afonjá é o único, em Salvador, a conservar a dignidade dos O bás, existente nos
candomblés de Xangô na África. Os obás são os ministros de Xangô, participam da administração do terreiro, ao lado da mãe-
de-santo. São 12 e se dividem em obás da direita (otun obá), com direito a voz e a voto (executivos) e os obás da esquerda
(ossi obá), sem direito a voto (conselheiros). Meu título, se quereis saber, é Otun Obá Arolu. Após os obás, vêm, no Opô
Afonjá, os ogãns, dignidade que existe em todos os candomblés. Os ogãns são os sócios da sociedade civil com obrigações
religiosas. Alguns têm um grau mais elevado na hierarquia, são encarregados disso e daquilo. Por exemplo: o Pegigan,
encarregado da matança de animais; o Ogan-Alabê, encarregado dos atabaques.

Na opinião de alguns estudiosos do assunto, entre os quais o meu amigo Vivaldo da Costa Lima, após ter havido um
abastardamento (será a palavra justa? Não será melhor dizer: abrasileiramento?) das primitivas seitas africanas, misturando-
se com ritos indígenas e com o baixo espiritismo, existe hoje, em compensação, um fenômeno inverso: a busca pelos
candomblés de caboclo, angola, congo, de uma aproximação com os candomblés gêge-nagôs, sobretudo com os Icetu, em
busca de maior pureza e seriedade.
LETRAS & ARTES

Em teu passeio pela cidade, moça, não te esqueças de entrar nas livrarias e pedir os livros dos bons autores baianos. Só
lendo esses volumes de poemas, esses romances, essas coletâneas de contos, esses ensaios e estudos poderás compreender o
povo baiano e os problemas do Estado da Bahia. Infelizmente ainda é pequeno o número de livrarias, ridículo para uma
cidade com a tradição de cultura de Salvador e seu atual movimento literário, artístico e universitário. Entre as mais
importantes estão: a Civilização, na Ajuda, onde encontrarás o bom sorriso amigo de Demeval, proprietário e apaixonado
pelos livros; a Progresso, no Largo da Sé, onde Armando Souza, velho livreiro, te acolherá com aquela requintada gentileza
baiana; a Padre Vieira, a Univer- sidade; a Americana, a Pindorama, a Morelise, a Santa Cruz. Na cidade baixa, a Catilina
orgulha-se de ser a mais velha livraria do Brasil: em suas vitrinas exibem-se preciosas primeiras edições de obras de Rui
Barbosa.

Por onde preferes começar? Pela poesia, pela ficção, pelo ensaio? Comecemos pelos álbuns sobre a cidade, realizados
pelos mestres do desenho e da gravura: Caribé, Carlos Bastos, Emanuel Araújo, três álbuns magníficos em magníficas edições
da Cultrix. De Caribé encontrarás ainda, em edição Martins, as “Sete Portas da Bahia”, livro de delicioso texto e com mais de
300 fabulosos desenhos do mais baiano de todos os baianos, filho de Oxóssi e obá de Xangô, esse extraordinário Caribé. Dele
é também a “Coleção Recôncavo”, dez pequenos volumes de desenhos, com texto de poetas e ensaístas baianos. Talvez ainda
obtenhas um exemplar pois a edição está esgotada, como te informará Armando Souza, da Progresso.

Sim, porque a Progresso é também editora e editora importante. No panorama cultural da Bahia a existência dessa editora
é um fato a considerar. Relevante tem sido seu trabalho no desenvolvimento cultural e suas edições levam a cultura da Bahia a
todo o Brasil. Obra de Pinto de Aguiar, escritor e homem público da melhor qualidade, e do referido Armando. Existe outra
editora (oficial); dela falaremos mais adiante.

Queres agora ler os poetas, os livros que refletem a beleza da cidade e do povo? Grande é a tradição poética da Bahia,
terra de Castro Alves, de Gregorio de Matos, de Junqueira Freire, de Pinheiro Viegas, de Pethion de Vilar, de Francisco
Mangabeira, de Artur de Sales.

Encontrarás nas livrarias a “Obra Poética” de nosso grande poeta contemporâneo, Sosigenes Costa, homem do sul do
Estado, de Belmonte, e de Ilhéus, a mais alta voz de nossa lírica moderna e uma das mais altas do Brasil. Durante anos e anos
recusou-se ele a reunir em livros seus muitos poemas espalhados em revistas e jornais. Finalmente seus amigos conseguiram
convencê-lo e a Editora Leitura publicou, em 1959, o primeiro volume de sua “Obra Poética”, logo consagrado com dois
importantes prêmios literários (o “Paula Brito”, do Governo do Estado da Guanabara, e o “Jabuti”, da Câmara Brasileira do
Livro) e por toda a crítica.

Talvez tenhas a sorte — sorte das mulheres belas — de encontrar um raríssimo exemplar das edições limitadas a 15 e 20
exemplares, de um dos livros de Godofredo Filho, outro mestre da poesia (na obra e na vida) moderna da Bahia e do Brasil.
Sua “Balada de Ouro Preto” ou a “Balada da Dor de Corno”, por exemplo. Talvez o gravador Calazans Neto, que ilustrou e
editou um de seus livros, obtenha para ti um exemplar. Até quando, Godô, esconderás avaramente do grande público tua
magnífica poesia?

Numa edição Progresso, encontrarás, reunida num grande e belo volume, sob o título de “Face Oculta”, a obra, antes
dispersa em vários livros, de Carvalho Filho. Com Sosigenes e Godofredo, forma Carvalho Filho a grande trindade da
moderna poesia baiana. Sua obra é a de um poeta de méritos inegáveis e de grande consciência de seu artesanato.

Dos mais novos, desejo destacar um livro de estréia: “Sonetos de Edênia e de Bixâncio”, de Jair Gramacho, um jovem
grande poeta. Queres um exemplo de sua poesia? Lê então este soneto sobre a cidade do Salvador.
“E quem chega por água, nunca espera

Que tal cidade exista no escarpado,

Toda pendente para um mesmo lado

Como a buscar das ondas a quimera.

Saltando, logo esquece-se como era

Na visão brusca do primeiro olhado;

Se pode ver agora que um telhado

A um outro se sucede, e não tapera.

Surpresa é, todavia,, nestas bandas

Tal beleza contida que não grega,

Mesmo que avisem livros comumente!...

Mira no mar, saudosa, das varandas

Enamorada, e, afirma quem navega,

Assentada nos morros do Oriente!”

Estou falando de baianos aqui nascidos, eis porque deixo de cantar merecidas loas à poesia de Odorico Tavares que,
antes e mesmo depois de incorporar-se à vida deste Estado, ligou definitivamente seu nome à grande poesia pernambucana,
aquela de Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Ascenço Ferreira, Carlos Pena Filho, Mauro Mota. Deixo de falar também nos
amazonenses Wilson Rocha e Carlos Eduardo, aqui radicados e hoje tão baianos.

Baianos, porém, são Jacinta Passos, Alves Ribeiro, Jorge Medauar, Eurico Alves, Helio Simões, Leopoldo Braga,
Elpidio Bastos, Abel Pereira, Muniz Bandeira, Clovis Amorim, Lafayette Spinola, Braulio de Abreu, Santos Moraes, Teimo
Padilha, Florivaldo Matos, Paulo Gil, muitos outros cujos nomes injustamente devo estar esquecendo nesta citação feita de
memória.

Os romancistas? Esta terra possui igualmente uma poderosa tradição de romance. Basta citar os nomes de Xavier
Marques e de Afranio Peixoto. Dos modernos eu te recomendo como essenciais para uma compreensão do povo baiano, de
sua vida, seus costumes, seus problemas, os seguintes: Ruy Santos, homem do São Francisco e professor da Faculdade de
Medicina, com dois livros admiráveis: "Agua Barrenta”, sobre seu rio, e “Teixeira Moleque”, sobre sua profissão de médico,
história, de um clinico do interior. Ambos em edições José Olympio. Adonias Filho, escritor da primeira linha, cujo novo
romance, “Corpo Vivo”, deve estar nas livrarias no momento em que este livro estiver circulando. Mas, se por acaso ainda
não apareceu, deves ler “Memórias de Lázaro” e “Os Servos da Morte”, seus romances anteriores, agora reeditados pela
Civilização Brasileira. Trata-se de um romancista do sul do Estado, da sofrida região do cacau. E já que falamos no sul do
Estado, tens o romance de James Amado, “Chamado do Mar” (edição Martins), cujo elogio não posso fazer devido a
parentesco com o autor. Do mesmo romancista está saindo novo livro, “Levante do Posto”. Outro romance do sul da Bahia:
“Porto da Esperança”, de Emo Duarte. Saindo do cacau para o garimpo, não deves deixar de ler “Cascalho”, de Herberto
Sales, livro consagrado pela crítica e pelo público. E seu novo romance, “Além dos Marimbus” (ambos em edição O
Cruzeiro), história forte e densa dos madeireiros. Ligado ao sertão mas sobretudo a ideias e teses, Nestor Duarte (“Gado
Humano” e “Tempos Temerários”, edições José Olympio), o mais inteligente dos baianos, é sempre de agradável leitura e,
também, perturbadora. Um romance da cidade, das lutas do povo pobre de Salvador: “Corta-Braço”, de Ariovaldo Matos,
ficcionista de grande talento que se realizou inteiramente no conto. Ainda sobre garimpos, um quase-baiano, o cearense
Hemnan Lima, escritor admirável que aqui estudou e viveu, escreveu parte de sua obra de ficção. Dificilmente encontrarás
ainda algum exemplar de “O Alambique”, romance da cana-de-açúcar e dos alambiques de cachaça, publicado pela José
Olympio em 1934, revelando uma grande vocação. Maior a preguiça ainda, Amorim não voltou ao romance, infelizmente.
Outro que não voltou ao romance mas este porque a morte o roubou do meio de seus amigos, foi João Cordeiro, cujo único
romance, “Corja”, está a exigir uma reedição. Andou igualmente pelos caminhos do romance Altamirando Requião, antigo
jornalista. Romancista baiano, autor de livro de sucesso, tendo obtido o Prêmio de Romance do Instituto Nacional do Livro em
1960, Santos Moraes trata, no entanto, de assunto carioca em seus generosos “Menino João” e “Filhos do Asfalto”. Poeta já
antes citado, é ele igualmente teatrólogo e contista.

Recentemente, o ensaísta Wilson Lins retomou ao romance (pois com um romance estreara muito jovem, merecendo
louvores de Tristão de Atayde) e publicou três volumes de um ciclo sobre o rio São Francisco: “Os cabras do coronel”, “O
reduto” e “Remanso da Valentia”, com amplo sucesso de crítica e público.

Mestres do conto são, nesta terra, Dias da Costa, de quem não encontrarás mais “Canção do Beco”, livro esgotado há
muitos anos, mas de quem Demeval te venderá “Mirante dos Aflitos”, contos da vida urbana, em belíssima edição da Difusão
Européia do Livro, na Coleção Novela Brasileira, com ilustrações de Glauco Rodrigues; Vasconcelos Maia, de quem
tampouco encontrarás os excelentes “Contos da Bahia”, volume a reclamar reedição, mas de quem Armando Souza te
entregará “O Cavalo e a Rosa”, em edição Progresso. De Vasconcelos Maia, a editora O Cruzeiro vem de publicar “O Leque
de Oxum”, reunindo uma novela com temática de candomblé e alguns contos. Jorge Medauar é outro jovem mestre do conto.
Poeta consagrado, realizou-se inteiramente no conto. Homem da zona do cacau, Água Preta é seu cenário e dá título a seu
primeiro volume de histórias. “A Procissão e os Porcos” obteve o Prêmio Anacleto Alves, fundado por Moysés Alves, flor da
civilização baiana, para comemorar o cinquentenário da cidade de Itabuna. Um outro volume de contos de Medauar, “O
Incêndio”, está aparecendo nas livrarias em edição Francisco Alves. Helio Polvora, autor de “Os Galos da Aurora”, é de
Itabuna. Contista de grande força poética. D. Martins de Oliveira, com seus livros de contos sobre a região do São Francisco,
é outro nome importante. “Caboclo d’Água”, “No País das Carnaúbas” são volumes a ler por todos aqueles que desejem
conhecer a paisagem física e humana do grande rio. Ariovaldo Matos, de cujo romance já te falei, é o contista de grande
qualidade de “A Dura Lei dos Homens” e “Os Sinos da Infância” (edições da Livraria São José), ambos muito bem recebidos
pela crítica. Luís Henrique, historiador e cronista, é autor de um pequeno e belo livro de contos, “A Noite do Homem”, e vem
de concluir um volume com duas novelas ("O Senhor Capitão”) de melhor qualidade. Outros contistas Importantes: José
Pedreira, dono de aguda sensibilidade, figura humana excelente; David Sales, Sonia Coutinho, João Ubaldo, Noelio Spínola,
que estrearam juntos em “Reunião”; Zadala Maron de Ilhéus; A. Mendes Neto, com dois bons volumes de contos; Deoscoredes
M. dos Santos, com seus curiosos livros; Nelson Gallo. Quase baiano é Nelson Araújo, nascido em Sergipe, autor de “Um
acidente na estrada”.

Cronistas mais importantes: Luís Henrique (“Moça Sozinha na Sala”, volume premiado pela Academia Brasileira e
“Menino Caçando Passarinho”), Giovanni Guimarães, Raimundo Reis, Matilde Matos, Carlos Coqueijo Costa, Silvio
Lamenha.

Walfrido Moraes situa-se na primeira fila dos ensaístas baianos, ao lado dos mestres Luiz Viana Filho, Pedro Calmon,
Edison Carneiro. A obra de historiador de Pedro Calmon dispensa qualquer elogio ou apresentação. Todo o Brasil a conhece
e admira. Pode-se dizer o mesmo dos livros de Luiz Viana Filho, de suas admiráveis biografias, sobretudo de seu Ruy
Barbosa e de seu Rio Branco, exte último livro verdadeira obra-prima. Édison Carneiro é um dos nossos folcloristas mais
eminentes. Seus livros sobre os problemas de etnografia religiosa são hoje clássicos: “Religiões Negras”, “Negros Batus”,
“Candomblés da Bahia”. Também seus volumes sobre a República de Palmares e sobre Castro Alves. Mestre do folclore é
igualmente Renato Almeida. Mestre dos mestres foi, no entanto, o nosso grande João Mangabeira, cujo Ruy Barbosa é obra
definitiva. Wilson Lins tem um livro, “O Médio São Francisco”, que é o mais importante estudo sobre aquela região.

Outros ensaístas importantes? Pinto de Aguiar, sobre quem já te falei, Aloysio de Carvalho Filho, Wanderley Pinho;
Affonso Ruy; Eugênio Gomes, escritor dos mais completos do Brasil, grande conhecedor da literatura inglesa, com estudos
magistrais sobre Machado de Assis e Castro Alves; o crítico e historiador de literatura Afranio Coutinho, cuja obra de
renovação de nossa crítica literária é fundamental; o crítico Eduardo Portela, de quem já se disse ser o Alceu Amoroso Lima
da nova geração, talvez a maior vocação de crítico surgida nos últimos anos, no Brasil; Pericles Madureira de Pinho, com seu
livro tão bem feito, “Assim São os Baianos”. Ainda outros? Hidelgardes Viana, folclorista, Waldeloir Rego, Vivaldo Costa
Lima que está preparando uma obra extremamente original sobre os problemas das religiões negras, Milton Santos, com seus
estudos de geografia, Aliomar Baleeiro, Eduardo Tourinho, e muitos mais.

E no teatro? Edmundo Muniz, cujas peças estão reunidas num volume pela Livraria São José, o já citado Santos Moraes,
Paulo Gil, jovem que é uma das minhas maiores certezas de grande realização literária, e Ruy Santos, o romancista, autor da
peça “Sertão Maluco”.

Muitos nomes mais poderia eu alinhar nos diversos gêneros e temo estar fazendo injustiças, pecando por omissão. Mas já
é tempo de visitares os artistas plásticos.

De ir à casa de Mario Cravo, admirar o trabalho de nosso grande escultor, o maior que o Brasil já produziu. De visitar
Caribé, olhar seus desenhos, a notável série sobre santos e ritual de candomblé. De bater palmas na porta de Mirabeau
Sampaio, escultor premiado e criatura humana sem igual. De esquecer que Jenner Augusto é sergipano e comprar um quadro
seu. De demorar-se em casa de Genaro, figura de toda simpatia e grande artista, criador da arte da tapeçaria baiana. De
considerar a obra de Presciliano Silva, velho mestre que sabe compreender os jovens artistas, como os admiráveis gravadores
Calazans Netto e José Maria, o jovem pintor De Santis, o escultor Agnaldo, de tanta força e tão popular. E os artistas
primitivos: Willy, João Alves, Rafael.

Em meio a artistas e escritores ainda desejo destacar três nomes: Clarival Prado, Valadares, poeta concreto, contista,
crítico de arte, uma das grandes forças intelectuais da cidade e do Estado, homem de grande seriedade e merecedor do maior
respeito. Walter da Silveira, com seus estudos sobre cinema, possivelmente o homem que mais entende do assunto no Brasil.
E Glauber Rocha, jovem cineasta, autor de argumentos, diretor de filmes, sensibilidade e talento, desejo de acertar e realizar.
A UNIVERSIDADE

A Universidade da Bahia, sua fundação, representou uma verdadeira revolução na vida cultural da cidade e do Estado.
Mudou por completo a fisionomia cultural da Bahia, hoje existem um ímpeto criador e uma constante atividade no setor da
cultura. Criaram-se museus, institutos, teatros, multiplicam-se as exposições, fala-se numa Bienal Nacional a ser realizada no
Museu de Arte Moderna, funciona uma editora, a Progresso, enfim, transformou-se a Bahia num dos mais importantes centros
culturais do país, retomando-se uma tradição e dando-se assim a cidade do Salvador um novo conteúdo.

Falando-se da Universidade da Bahia e de seu papel na Renovação cultural, seria a maior das injustiças não destacar o
relevante papel desempenhado nesse renascimento pelo Reitor Edgard Santos. Personalidade invulgar, homem apaixonado
pela cultura, o Reitor da Universidade da Bahia bem merece o título de Magnífico. Pode-se discordar dele muitas vezes,
pode-se mesmo criticá-lo nesse ou naquele detalhe, se assim o desejarmos. Mas negar sua obra, negar a paixão com que ele se
dedicou à Universidade e o grande trabalho que realizou em favor da cultura na Bahia, isso seria a maior das injustiças. No
futuro se dirá quão importante foi sua contribuição, justiça inteira lhe será feita.

A Universidade da Bahia conta com as seguintes faculdades, cursos, centros e institutos:

1 - Faculdade de Medicina. Fundada em 1808, a primeira do Brasil. Chamou-se primeiro Escola de Cirurgia, depois
Colégio Médico-Cirúrgico, em 1822 passou a ter o nome de Faculdade de Medicina. A ela estão ligados o Hospital das
Clínicas, o Hospital da Clínica Tisiológica e a Maternidade Climério de Oliveira. A Faculdade de Medicina fica no Terreiro
de Jesus, no antigo local do Colégio dos Jesuítas.

2 - Faculdade de Direito. Fundada em 1891. Funciona na Praça Teixeira de Freitas. Alguns do s seus professores são
nomes nacionais, figuras de primeira ordem: Aloysio de Carvalho Filho, Luiz Viana Filho, Nestor Duarte, Aliomar Baleeiro,
Orlando Gomes.

3 - Escola de Belas-Artes. Fundada em 1877. Cursos de Pintura, Escultura e Gravura. Funciona na Rua 28 de setembro.

4 - Faculdade de Arquitetura. Recentemente desligada da Escola de Belas-Artes, após vigorosa campanha dos estudantes.

5 - Escola Politécnica. Fundada em 1897. Cursos de engenheiros civis, industriais, químicos, eletricistas e engenheiros de
petróleo. Funcionava antigamente na Avenida Sete, em velho prédio, vem de mudar-se para novo e magnífico edifício, na Rua
Aristides Novis, obra de Edgard Santos.

6 - Faculdade de Ciências Econômicas. Fundada em 1905, como Escola Comercial da Bahia. Cursos de Ciências
Contábeis e Atuárias. Funciona na Praça da Piedade.

7 - Faculdade de Filosofia. Fundada em 1941, funciona na Avenida Joana Angélica. Mantém cursos de Filosofia,
Matemática, Física, Química, História Natural, Geografia, História, Ciências Sociais, Letras Neolatinas, Letras Anglo-
Germânicas, Letras Clássicas e Pedagogia.

8 - Faculdade de Farmácia. Fundada em 1822, ligada à Faculdade de Medicina, adquiriu autonomia em 1949. Funciona na
Avenida Araújo Pinho, 58.

9 - Faculdade de Odontologia. Criado o curso de Odontologia em 1879, na Faculdade de Medicina, tornou-se Faculdade
autônoma em 1949. Funciona no Centro Universitário, em prédio novo.

10 - Escola de Biblioteconomia. Fundada em 1942. Funciona no prédio da Faculdade de Ciências Econômicas.

11 - Escola de Enfermagem. Fundada em 1946. Funciona em edifício próprio, no Centro Universitário.


12 - Escola de Geologia. Funciona na Rua Araújo Pinho, 13.

13 - Cursos de Petróleo. Dois cursos, um de Geologia de Petróleo, outro de Perfuração e Produção de Petróleo são
mantidos pela Universidade em convênio com a Petrobrás. Funcionam na Escola de Geologia.

14 - Escola de Nutricionistas. Fundada em 1956. Funciona no Hospital das Clínicas.

15 - Escola de Teatro. Incorporada à Universidade em 1958. Possui um pequeno teatro e tem realizado um excedente
trabalho cultural. Seu atual diretor é o conhecido homem de teatro Martim Gonçalves.

16 - Escola de Dança. Fundada em 1956. Forma bailarinas, professores e coreógrafos.

17 - Seminários Livres de Música — Funcionam como [escolas livres junto à Universidade, mantendo os cursos de
Instrumental, canto, teoria e regência. Mantém igualmente Uma Orquestra Sinfônica de 52 figuras, um Coral para Oratórios, um
Madrigal com 30 vozes, um Quinteto de sopros, etc.

18 - Escola de Administração. Funcionando provisoria- mente à Rua Marechal Floriano, 7.

19 - Museu de Arte Sacra. Uma das grandes realizações da Universidade. Visita obrigatória para o turista. Instalado no
histórico e magnífico edifício do antigo Convento de Santa Tereza. Só o edifício do Museu vale a visita, sem falar no interior
da Igreja e nas coleções apresentadas.

20 - Instituto de Economia e Finanças da Bahia. Fundado em 1935. Funciona no prédio da Faculdade de Ciências
Econômicas.

21 - Instituto de orientação vocacional. Fundado em 1958 com o fim de orientar os jovens na escolha de sua profissão.

22 - Laboratório de Fonética. Fundado em 1956. Vem realizando obra utilíssima, sob a direção do prof. Rossi. Funciona
na Faculdade de Filosofia.

23 - Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais. Dedica-se à formação de geógrafos profissionais.

24 - Instituto de Estudos Portugueses. Funciona no prédio da Faculdade de Filosofia.

25 - Instituto de Estudos Norte-Americanos. Visa a divulgação da cultura norte-americana.

26 - Instituto de Estudos Franco-Brasileiros. Funciona na Casa de França, no Centro Universitário.

27 - Instituto de Cultura Hispânica. Fundado em 1956, visa o estudo da língua e da literatura espanholas. Funciona na
Escola de Enfermagem.

28 - Centro de Estudos Afro-Orientais. Importante realização da Universidade, promove cursos, publicações, exposições,
concertos.

Funcionam atualmente cursos da língua iurubá, de russo, de hebreu, chinês e árabe. Sob a direção do professor Agostinho
da Silva, conta também com a dedicação de Vivaldo Costa Lima, no momento realizando, sob os auspícios do Centro, um
importante trabalho de pesquisa sobre as religiões negras.

Possui ainda a Universidade, o Hospital das Clínicas e a Maternidade Climério de Oliveira.

Possui a cidade do Salvador dois Museus realmente magníficos. A simples visita a um deles já explicaria uma vinda à
Bahia: o Museu de Arte Sacra e o Museu de Arte Popular.

O Museu de Arte Sacra, colocado sob a direção de dom Clemente Nigra, figura esplêndida de humanista, é uma das
maiores realizações (talvez a maior) do inesquecível Reitor Edgard Santos quando à frente da Universidade da Bahia. Situado
no quadro admirável da Igreja e do convento de Santa Tereza, suas coleções são soberbas. Não há como descrevê-lo; faz-se
necessário visitá-lo e demoradamente.

O Museu de Arte Popular é parte da Fundação do Museu de Arte Moderna e, sob a direção do escultor Mario Cravo,
ocupa um dos mais belos conjuntos arquitetônicos da Bahia, o Solar do Unhão (restaurado pela arquiteta Lina Bardi, ex-
diretora do Museu). Mario Cravo vem se empenhando numa tarefa exemplar para fazer do Museu uma unidade viva e criadora
onde os artesões mantenham e continuem as grandes tradições baianas do trabalho na madeira, na prata, no ferro, no barro, no
cobre.

Deve-se visitar ainda o Museu do Estado (sobre o qual se dá notícia mais detalhada um pouco adiante); o Museu Nina
Rodrigues, na Faculdade de Medicina, de etnografia; o Museu do Instituto Feminino, sob a direção da senhora Henriqueta
Catarino. Além de algumas coleções particulares: a de Odorico Tavares (pintura moderna e santos barrocos); a de Mirabeau
Sampaio (santos baianos); a de Orlando Castro Lima (santos de marfim); as de Clemente Mariano e José Catarino (prataria) e
a da viúva Carlos Costa Pinto (prataria e mobiliário).
IGREJAS, CAPELAS, CONVENTOS E TEMPLOS DE
DIVERSAS SEITAS

A Bahia orgulha-se das suas igrejas católicas, suntuosas, monumentos arquitetônicos realmente admiráveis, algumas muito
belas, outras muito ricas, várias marcadas por especial devoção popular. Diz a lenda que a cidade do Salvador conta com 365
igrejas, uma para cada dia do ano. Dizem os amigos dos números exatos que entre igrejas e capelas elas somam 76. Pouco
importa. Talvez os que falem em 365 computem igrejas já desaparecidas mas que ainda vivem na memória do povo como a da
Sé ou a antiga igreja da Ajuda, a mais velha da cidade, demolida pela Companhia Circular como o foi também a Sé.
Construíram outra, em estilo romaico bizantino e nela guardaram o púlpito de onde Vieira falava. Mas o povo gostava era da
primeira, da igreja antiga da Ajuda que lhe falava dos tempos iniciais do Brasil. Agora a primazia de velhice é disputada por
duas igrejas: a capela da Graça e a matriz da Vitória, que vivem em renhida competição de datas. A matriz da Vitória, situada
ao fim do Corredor da Vitória, foi fundada em 1531, tendo sido reformada por duas vezes em 1666 e em 1809. Dizem que aí
casaram-se as filhas de Caramuru. A capela da Graça, onde afirmam estar sepultado o governador Tomé de Sousa, é de 1525,
fundada, ao que também afirmam, por uma filha de Caramuru, na antiga Vila Velha. Algumas pinturas muito Interessantes de
autores desconhecidos. Uma delas representa Catarina Álvares, filha de Caramuru, em êxtase ante a Virgem. A capela da
Graça foi reedificada em 1770, perdendo então suas mais interessantes características.

A mais célebre igreja da Bahia, de fama mundial, de retratos publicados em toda a parte, obrigação de visita para todo e
qualquer turista, vaidade da cidade religiosa, embasbacamento para os olhos com sua ourama pelas paredes, colunas, teto e
altares, é a Igreja de São Francisco, pertencente ao convento dos Franciscanos. Esses frades que, além da igreja, possuem um
magnífico convento com um claustro maravilhoso, eram, quando começaram a vir para o Brasil, de nacionalidade espanhola.
Depois fizeram uma absoluta maioria alemã e nos dias de hoje à celebridade arquitetônica da igreja e do convento juntou-se a
triste celebridade da ação quinta-colunista dos referidos religiosos que, no dizer do povo, conspiravam na igreja e no
convento contra a segurança do Brasil, chefiados por um de nome Hidelbrando. Alguns desses frades foram processados, mas
o processo era quase uma pilhéria de tão mal dirigido e uma absolvição os deixou em liberdade. Mas não parou a murmuração
popular que garante pela existência de estações clandestinas de rádio no interior do convento, o que parece muito provável. A
verdade é que os frades são nazistas e o tal frei Hidelbrando mantém uma enorme catequese fascista entre os operários. Sua
ação nesse sentido é a mais nefasta possível.

A Igreja de São Francisco está no Terreiro de Jesus, ao fundo da Praça. Em estilo barroco espanhol, sua construção foi
iniciada em 1587, ficando concluída em 1596. Inicialmente constava de pequena casa conventual e igreja. Demolidas, foram
reconstruídas com a riqueza atual, em 1686. A inauguração foi em 1713.

Preciosos azulejos portugueses do século dezessete sobram nesta Igreja de São Francisco. Como sobra o ouro bordando
todo o templo num excesso de luxo que bem pouco tem a ver com os hábitos de humildade do cristianismo! Admiráveis
trabalhos de escultores em jacarandá. A Igreja de São Francisco é realmente uma das visões mais admiráveis que possui o
Brasil. Sua fama é justa e não há como não abrir a boca em “ohs!” de admiração ante a beleza desta igreja em cujo interior
uma luz de ouro existe permanentemente lutando contra a triste luz das velas.

Um pequeno imbecil, troncho, de olhos esgazeados e voz pastosa, palavras cortadas, vende folhetos religiosos aos
visitantes. Parece fugido de um romance antigo, novo Quasimodo, aleijado, deformado, de cor amarelecida, olhando com
avidez os níqueis que lhe ofertastes. Dentro da maravilha da igreja ele é ainda mais absurdo e mais impressionante.

Ao lado da Igreja de São Francisco levanta-se a fachada magnífica da Igreja da Ordem Terceira. Esta fachada que é a
mais bela de todas das igrejas da Bahia esteve durante muitos anos coberta com uma camada de cal, e ninguém sabia da
existência de tal preciosidade. Um eletricista que fora ali realizar alguns trabalhos foi quem revelou, casualmente, o segredo
que a cal encobria. O eletricista estava bêbedo e começou a dar marteladas sobre a parede descobrindo então a verdadeira
fachada da igreja. Em estilo plateresco a Igreja da Ordem Terceira foi fundada em 1701. No claustro, azulejos antigos
representam cenas urbanas de Portugal. Telas de Capinam e armários de jacarandá trabalhados a marfim e cobre completam a
riqueza artística desta igreja. Existe também um painel de Velasco, acabado por Teófilo de Jesus.

Ainda no Terreiro de Jesus está a Catedral da Bahia. Antigamente elevava-se ali a capela dos jesuítas, admirável em seu
estilo barroco. Atualmente a fachada da catedral é um estilo romano renascentista, sendo a parte nova em estilo grego. O
antigo colégio dos jesuítas foi fundado por Manuel da Nóbrega. Data de 1558. Há na catedral um museu ainda em organização,
no qual estão algumas das preciosidades da Sé. Defronte ao altar-mor fica o túmulo de Mem de Sá, terceiro governador-geral
e num dos corredores está a cela de Vieira. No Museu vê-se a imagem de prata da Virgem ante a qual o garoto português
sentiu o “estalo” que o tornou genial. No altar-mor existe um histórico quadro onde aparecem manchas de sangue atribuídas a
Inácio de Azevedo, um dos 40 jesuítas que naufragaram na Bahia e são conhecidos pelos “40 mártires”. Dizem que Inácio de
Azevedo foi encontrado morto na praia segurando na mão aquele quadro a óleo que fora presente da rainha da Áustria.
Azulejos, altares de prata, tetos pintados, subterrâneos cheios de lenda. Eis a catedral da Bahia, basílica do Salvador.

A popular igreja do Bonfim, na qual se realiza um espetáculo fetichista imponente no mês de janeiro, fica na península de
Itapagipe sobre uma linda colina. Sua constru- ção foi iniciada em 1756. Em 1923 foi elevada a basílica. A imagem do Senhor
do Bonfim, tão venerada pelo povo, foi trazida de Portugal e é semelhante a uma que se encontra em Setúbal. No teto da
igreja, pinturas de Velasco. Na sacristia quadros de Teófilo de Jesus. Mas o interesse principal dessa igreja, de cujo púlpito
um padre de nome Noé Gualberto costuma rosnar violentos sermões falangistas, antidemocráticos, jurando por Franco e
xingando Roosevelt, sua melhor curiosidade turística, é o museu dos milagres, espantosa sala onde estão reunidos milhares de
objetos presenteados ao santo em pagamento de promessas realizadas. Vereis ali pernas modeladas em cera, abertas em
feridas, cabeças monstruosas, fotografias impressionantes, trabalhos dos mais curiosos de escultura popular, dedicatórias
incríveis e sabereis de histórias as mais dramáticas. Este museu das promessas ou dos milagres, atestado do esforço que
Senhor do Bonfim vem despendendo em muitos anos, é destas coisas que jamais olvidareis. Toda a terrível história da miséria
humana, do sofrimento, de crimes e maldades, de estranho misticismo, ali se encontra pendurada do teto, pelas paredes,
enchendo armários. Nem com um dia inteiro podereis ter uma visão completa deste museu único, tão doloroso e tão brutal.

A Igreja da Conceição da Praia, dedicada ao culto da Virgem, fica em frente ao Mercado, defronte ao mar. Foi fundada
em 1550 e era então uma pequena capela. Reconstruída depois em estilo barroco português, toda em mármore vindo de
Portugal, os blocos já em ordem, numerados, sendo necessário apenas colocar. Teto pintado pelo português José Joaquim da
Rocha, mestre de Velasco e de Teófilo de Jesus, fundador também da Escola de Pintura da Bahia. As grades da cancela de
comunhão são em bronze dourado tendo custado naquela época a considerável soma de cinco contos de réis. Uma escadaria
deveria ir até o mar mas jamais foi concluída, nem ela nem o zimbório da igreja, porque o arquiteto morreu antes de terminar
sua obra. Esta igreja é depois da do Bonfim a mais ligada ao povo, às suas festas, muito próxima também do sincretismo
religioso baiano. Não é apenas um templo católico.

A Igreja de Santa Luzia, à avenida Jequitibá, antiga Pilar, foi fundada em 1714. Estilo barroco português. Ao lado um
cemitério antigo com suas catacumbas laterais e com belas colunas brancas que lhe dão um certo ar pagão de coisa grega.

No Largo da Piedade ficam a igreja e o convento que deram o nome ao Largo. A nave é dividida em 3 partes, numa
imitação da Igreja de São Pedro, em Roma. Foi fundada em 1679 e reformada em 1809. Possui hoje decorações de Presciliano
Silva. Pertence ao convento dos capuchinhos, convento pobre que já teve, ao que dizem, de vender algumas preciosidades da
igreja para se sustentar. No entanto na Igreja da Piedade reza-se uma das missas mais grã-finas da Bahia, às onze horas dos
domingos.

Em estilo ogival ergue-se à Avenida Angélica, ao lado da Faculdade de Filosofia, a Igreja do Coração de Jesus. Em
estilo ogival são também a capela da Providência no antigo beco dos Nagôs (Rua do Godinho) e a Igreja das Mercês, ligada
ao convento do mesmo nome, de ordem das ursulinas, fundada em 1731, onde funciona um colégio de grã-finas.

A linda capela de Mont’Serrat, na península de Itapagipe, data do século 17. Situada ante o mar, possui uma célebre
imagem de Nossa Senhora e uma pintura de costumes brasileiros da época.

A Igreja de São Bento no alto da ladeira do mesmo nome, pertence ao convento de frades beneditinos chegados ao Brasil
em 1565. Em 1581 era fundado o convento, elevado a abadia em 1584. O holandês Helmut invadiu a abadia em 1624. Os
holandeses ficaram bestificados ante as preciosidades da igreja, o que não impediu que levassem quanto ouro e prata lhes foi
possível, usando os chapéus como medidas. Posteriormente a Igreja de São Bento foi remodelada, restando apenas da antiga a
fachada principal. O altar-mor foi também substituído por um de mármore de Carrara.

A Igreja da Soledade, na Rua Augusto Guimarães, antiga Ladeira da Soledade, pertence ao convento do mesmo nome, das
ursulinas. O convento foi fundado em 1739. Quando os exércitos libertadores da Independência entraram triunfantes na cidade
as freiras da Soledade fizeram uma coroa de louros que colocaram na bandeira vitoriosa. Essas freiras parece que gostam das
revoluções já que em 30, quando da vitória tenentista, repetiram o gesto.

A Igreja do Carmo, ligada ao convento das carmelitas, foi fundada em 1585. Fica na Rua do Carmo. Neste convento foi
assinada a rendição dos holandeses. A igreja possui a sacristia considerada a mais rica do Brasil. Uma imagem de Nossa
Senhora de autoria de Chagas, “o Cabra”, um dos mais antigos escultores do Brasil. E uma tela que dizem ter sido pintada por
Eusébio de Matos, irmão de Gregório. Altar, d e prata, assim como o sacrário. Ali se encontra também a cadeira onde se
jogavam as nádegas gordas de D. João VI para assistir aos ofícios religiosos. Dentro da igreja, na Capela de Nossa Senhora
da Piedade, estão enterrados o poeta Junqueira Freire e o Conde de Bagnuoli, herói da expulsão dos holandeses.

Na Igreja de Santo Antônio, no largo do mesmo nome, este conde enterrado no Carmo opôs feroz resistência aos
holandeses.

Outras igrejas e capelas católicas: Igreja de Nossa Senhora da Vitória, na Praça Rodrigues Lima; Igreja da Senhora
Sant’Ana, à Praça de Sant’Ana; Igreja de São Pedro, à Praça Treze de Maio, igreja de casamentos e missas grã-finas; Igreja
do Santíssimo Sacramento, Rua Ribeiro dos Santos; Igreja de Nossa Senhora de Brotas, à Avenida D. João VI; Igreja de
Nossa Senhora da Penha, à Avenida Beira- Mar; Igreja dos Mares, à Praça Padre Natividade; Igreja de Nossa Senhora de
Nazaré, à Praça Conselheiro Almeida Couto; Igreja de Sant’Ana, na Praça Marechal Aguiar; Igreja Coração de Maria, à Rua
Democratas; Igreja Nossa Senhora da Conceição do Boqueirão, à Rua Custódio Melo; Igreja da Lapinha, Praça da Lapinha;
Igreja da Misericórdia, na Rua Misericórdia; Igreja Nossa Senhora da Saúde, à Praça Severino Vieira; Igreja Nossa Senhora
do Rosário, à Avenida 7; Igreja do Pelourinho, à Praça José de Alencar, a igreja mais ligada aos negros baianos; Igreja de
Nossa Senhora do Rosário, na Rua Lélis Piedade, em Itapagipe; Igreja Nossa Senhora dos Quinze Mistérios, na Rua dos
Quinze Mistérios; Igreja da Santíssima Trindade na Avenida Frederico Pontes; Igreja Santo Antônio da Barra, na Praça Santo
Antônio da Barra; Igreja Santo Antônio da Mouraria, à Rua Monsenhor Teodolino; Igreja de São Domingos, no Terreiro de
Jesus; Igreja de São Francisco de Paula, à Rua São Francisco de Paula; Igreja de São Joaquim, na Avenida Frederico Pontes;
Igreja de São José do Corpo Santo, à Rua Lopes Cardoso; Igreja São Pedro dos Clérigos, no Terreiro de Jesus; Igreja de Santa
Teresa, na Rua do Sodré; Igreja do Senhor Bom Jesus dos Navegantes, à Praça Montezuma; Igreja Senhor dos Aflitos, no
Largo dos Aflitos; Capela Abrigo do Povo, à Rua Lima e Silva; Asilo da Ordem Terceira, à Rua Dr. Seabra; do Asilo de
Mendicidade, à Avenida Luís Tarquínio; do Asilo dos Expostos, à Avenida Joana Angélica; do Asilo Conde Pereira Marinho,
à Avenida Leovigildo Filgueiras; do Cabula, à Praça Manuel Francisco; do Campo Santo na Praça do Campo Santo; do
Colégio Antônio Vieira, à Avenida Leovigildo Filgueiras; do Colégio da Providência, à Rua Góis Calmon; do Colégio Nossa
Senhora Auxiliadora, à Avenida Joana Angélica; do Colégio Nossa Senhora da Vitória, à Avenida Araújo Pinho; do Colégio
do Salete, à Rua Aureliano Leal; do Colégio Salesiano, à Rua Conselheiro Almeida Couto; do Colégio Santíssimo
Sacramento, à Avenida Leovigildo Filgueiras; do Convento da Lapa, à Avenida Joana Angélica; do educandário dos Perdões,
à Rua Monsenhor Tapirangax (este educandário já não funciona. Resta apenas a capela. Foi aí que o Arcebispo esbofeteou
uma freira num escândalo público); do Hospital Português, à Avenida Princesa Isabel; do Hospital Santa Isabel, à Praça
Almeida Couto; das Angústias, à Rua Aristides Milton; da Palma, à Praça Ana Neiy; do Orfanato Coração de Jesus, na
Avenida Joana Angélica; da Quinta dos Lázaros, à Rua do mesmo nome; de Santa Clara do Desterro, à Rua Santa Clara; de
São José, à Rua Militão Lisboa; de São Lázaro, à Rua São Lázaro; de São Miguel, à Rua Frei Vicente; de São Judas Tadeu, no
Chame-Chame.

TEMPLOS PROTESTANTES

Os principais templos protestantes funcionam nos seguintes endereços:

Avenida Fernandes da Cunha, 29;

Avenida Leovigildo Filgueiras;

Avenida Tiradentes;

Rua Carlos Gomes, 17;


Praça Raimundo Freixeiras;

Rua dr. Seabra, 105;

Rua José Visco, 83;

Rua Nilo Peçanha, 40;

Rua Rocha Galvão, 17;

Rua Saldanha Marinho.

SINAGOGA

Não existe uma sinagoga propriamente dita na Bahia. Os judeus fazem suas orações e praticam seus ritos na sede da
Sociedade Israelita, Rua Santa Clara do Desterro.

CENTROS ESPÍRITAS

São os seguintes os principais centros espíritas da cidade (é claro que existem centenas de outros, de todos os tipos).

“União Espírita da Bahia”, ao Terreiro de Jesus, 10, ao lado da casa onde dizem haver nascido Gregório de Matos;

“Amor e Humildade”, à Rua Lopes Trovão, 6;

“Cenáculo Espírita”, à Rua Ribeiro dos Santos, 15;

“Confraternização Espírita Baiana”, à Rua 3 de Maio, 20;

“Deus, Amor e Caridade”, à Roça de Lobo, 30;

“Estrela de Jacó II”, à Rua Álvares de Azevedo, 14;

“Filhos de Maria”, à Rua dr. Seabra, 421;

“Instituto Kardecista”, à Rua João de Deus, 6.


CAPOEIRAS E CAPOERISTAS

MESTRE Vicente Pastinha tem mais de setenta anos. É um mulato pequeno, de assombrosa agilidade, de resistência
incomum. Quando ele começa a "brincar" a impressão dos assistentes é que aquele pobre velho, de carapinha branca, cairá em
dois minutos, derrubado pelo jovem adversário ou bem pela falta de fôlego. Mas, ah! ledo e cego engano! nada disso se passa.
Os adversários sucedem-se, um jovem, outro jovem, mais outro jovem, discípulos ou colegas de Pastinha, e ele os vence a
todos e jamais se cansa, jamais perde o fôlego, nem mesmo quando dança o "samba de Angola".

A Escola de Capoeira de Angola, do Mestre Pastinha, fica na ladeira do Pelourinho, no Largo mesmo, num primeiro
andar. Às quintas e domingos “brinca-se" na Escola. Nas quintas, em geral, a brincadeira é mais fraca, são os alunos mais
novos que se exibem. No domingo vêm os capoeristas conhecidos e a festa começa pela tarde. Quem for à Bahia não deve
perder o extraordinário espetáculo que é Mestre Pastinha no meio de seu salão jogando a capoeira, ao som do berimbau. E
quando ele não está lutando, não vai descansar. Toma de um berimbau, puxa as cantigas. Para mim, Pastinha é uma das grandes
figuras da vida popular da Bahia. É indispensável conhecê-lo, conversar com ele, ouvi-lo contar suas histórias, mas,
sobretudo, vê-lo na "brincadeira", atingindo adversários vigorosos e jovens, derrotando-os um a um.

Outra escola de capoeira que fica na Ladeira do Pelourinho, e igualmente famosa, é a de Mestre Bimba, só que aqui trata-
se não mais da capoeira de Angola e, sim, da capoeira regional. Disso falaremos mais adiante.

Antes devemos falar da escola de Waldemar, na Estrada da Liberdade, onde, além do mestre que dá nome à escola,
encontra-se Trairá, um caboclo seco e de pouco falar, feito de músculos, grande mestre de capoeira. Vê-lo brincar é um
verdadeiro prazer estético. Parece um bailarino e só mesmo Pastinha pode competir com ele na beleza de movimentos, na
agilidade, na rapidez dos golpes. Quando Trairá não se encontra na Escola de Waldemar, está, ali por perto, na Escola de Sete
Molas, também na Liberdade. Nessas Escolas pode o visitante adquirir belos berimbaus, ajudando assim o desenvolvimento
de nossa luta nacional.

Há alguns anos os arraiais da capoeira, na Bahia, foram palco de uma grande e apaixonante discussão. Acontece que
Mestre Bimba foi ao Rio de Janeiro mostrar aos cariocas da Lapa como é que se joga capoeira. E lá aprendeu golpes de
catch-as-catch-can, de jiu-jitsu, de box. Misturou tudo isso à capoeira de Angola, aquela que nasceu de uma dança dos
negros, e voltou a sua cidade falando numa nova capoeira, a "capoeira regional". Dez capoeiristas dos mais cotados me
afirmaram, num amplo e democrático debate que travamos sobre a nova escola de Mestre Bimba, que a "regional" não merece
confiança e é uma deturpação da velha capoeira "angola", a única verdadeira. Um deles me afirmou mesmo que não teme
absolutamente um encontro com Mestre Bimba, apesar de sua fama. Não foi outra a opinião de Edmundo Joaquim, conhecido
por Bugalho, mestre de berimbau nas orquestras de capoeira, nome respeitado em se tratando de coisas relacionadas com a
"brincadeira". O mesmo disseram José Domingos e Rafael que mantêm na roça de Juliana uma escola de capoeira, das mais
afamadas da cidade. Concorrente da que se encontra sob a competente direção de Vicente Pastinha, de quem todos afirmam ser
o melhor e o mais perfeito lutador de capoeira angola da Bahia.

Em algum tempo a capoeira foi uma dança. Virou luta depois, mas as suas demonstrações são acompanhadas por uma
orquestra especial composta de berimbau, ganzá, agogò e pandeiro. É necessário não confundir o berimbau de capoeira com
um outro instrumento do mesmo nome, instrumento de sopro. O berimbau de capoeira é um grande arco, instrumento usado
exclusivamente para acompanhar a luta nacional por excelência. Alguns capoeiristas, hoje falecidos, deixaram fama imortal
como o mestre de saveiro Samuel Querido de Deus, cujo nome todos recordam.

Talvez seja a Bahia onde melhor se pratique hoje a capoeira em todo o Brasil. O Congresso Afro-Brasileiro de 1937,
reunido na cidade de Salvador, cuidou muito de que não morresse por falta de estímulo a luta dos negros e aos mulatos, a luta
da agilidade, onde pouco vale a força bruta, a luta que veio de uma dança e ainda conserva o seu ritmo. Grandes nomes
brilham ainda hoje ante a admiração do povo pobre que vai vê-lo nas suas demonstrações nas feiras, nas grandes festas
populares, especialmente na Conceição da Praia em dezembro e nas festas de ano-novo na Boa Viagem. Já falei de Trair a, de
Waldemar, de Mestre Bimba, de Vicente Pastínha, de Rafael e de José Domingos. Mas não falei ainda de Vítor Agaú, de
Maré, de Geraldo Chapeleiro, de Daniel, de Onça Preta, de Piloto, de Ricardo de Olampo, de Juvenal, de Celestino Alemão,
de Canjiquinha. Esses são os maiores capoeristas da Bahia atual. É possível que eu esqueça algum que eles são muitos,
modestos na sua glória restrita aos conhecedores da "arte". Mas, ah! que nunca vos aconteça uma briga com um desses
capoeristas, porque, por mais fortes que sejais, eu não apostarei em vós tão certo estou que um minuto depois estareis estirado
no chão à disposição da navalha brilhante...

Podeis porém fazer camaradagem com qualquer deles e assistir a uma demonstração. Esses capoeiristas são uma gente
boa, mulatos e negros de fácil amizade. Ouvireis então a orquestra dos berimbaus e os versos puxados pelos capoeiristas e
pelos mestres em torno:

"Negra, o que vende aí

Vendo arroz de camarão,

Sinhá mandou vender

na cova de Salomão".

E o estribilho clássico:

"Camaradinho, eh!

Camaradinho,

Camarada..."

E a luta começa. Vão lutando e cantando. É como um desafio. Cada capoeirista tem seus versos próprios além daqueles
que já perderam os direitos autorais e são propriedade de todos. Alguns com forte acento negro:

"Volta do mundo, eh!

Volta do mundo, ah!

Aiúna é mandingueira

Quando está no bebedor...

"Ela é muito sagonha

Capoeira pegou ela e

matou...”

Alguns outros, lembrando os tempos da escravidão, definem o senhor branco, cheios de uma filosofia realista:

"No tempo que eu tinha dinheiro

Comia na mesa com ioiô...

Deitava na cama com iaiá...


Depois que dinheiro acabou

Mulher que chega pra lá, camarada!

Camaradinho, eh!

Camarada!"

Ou aquele verso que diz: "Quando eu tinha meu dinheiro ioiô me chamava de parente." Ai, camaradinho, eh!

Assim cantam nas rodas de capoeira os lutadores da Bahia. Podeis vê-los nas festas populares lutando graciosamente
para divertir o povo, mostrando suas habilidades, cantando seus cantos, a orquestra tocando. É a mais bela luta do mundo e
feliz de vós se um dia puderdes ver o Mestre Trairá e Pastinha num desafio de capoeira. As vozes cantando fraternalmente:

"Camaradinho, eh!

Camaradinho,

Camarada..."
CAPITÃES DA AREIA

Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rápido, a gíria de malandro, os rostos chapados de fome, vos pedirão
esmola. Praticam também pequenos furtos. Há quase oito anos escrevi um romance sobre eles, os “Capitães da Areia”. Os que
conheci naquela época são hoje homens feitos, malandros do cais, com cachaça e violão, operários de fábrica, ladrões
fichados na polícia, mas os “Capitães da Areia” continuam a existir, enchendo as ruas, dormindo ao léu. Não são um bando
surgido ao acaso, coisa passageira na vida da cidade. É um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate sobre as
classes pobres. Aumenta diariamente o número de crianças abandonadas. Os jornais noticiam constantes malfeitos desses
meninos que têm como único corretivo as surras na polícia, os maus tratos sucessivos. Parecem pequenos ratos agressivos,
sem medo de coisa alguma, de choro fácil e falso, de inteligência ativíssima, soltos de língua, conhecendo todas as misérias
do mundo numa época em que as crianças ricas ainda criam cachos e pensam que os filhos vêm de Paris no bico de uma
cegonha. Triste espetáculo das ruas da Bahia, os “Capitães da Areia”. Nada existe que eu ame com tão profundo amor quanto
estes pequenos vagabundos, ladrões de onze anos, assaltantes infantis, que os pais tiveram de abandonar por não ter como
alimentá-los. Vivem pelo areal do cais, por sob as pontes, nas portas dos casarões, pedem esmolas, fazem recados, agora
conduzem americanos ao mangue. São vítimas, um problema que a caridade dos bons de coração não resolve. Que adiantam os
orfanatos para quinze ou vinte? Que adiantam as colônias agrícolas para meia dúzia? Os “Capitães da Areia” continuam a
existir. Crescem e vão embora mas já muitos outros tomaram os lugares vagos. Só matando a fome dos pais pode-se arrancar à
sua desgraçada vida essas crianças sem infância, sem brinquedos, sem carinhos maternais, sem escola, sem lar e sem comida.
Os “Capitães da Areia”, esfomeados e intrépidos!
O MAJOR

O major Cosme de Faria, recordista de requerimentos de habeas-corpus, rábula com vários lustros de trabalho no fórum,
orador popular, jornalista com banca em todas as redações, boêmio também, ex-deputado estadual, seabrista de quatro
costados, líder da Liga Baiana Contra o Analfabetismo, não é apenas uma individualidade marcante, um nome querido pelos
pobres, um tipo curioso. Ele é muito mais que isso: é uma instituição. É um pouco difícil compreender a Bahia sem o major.
Quando ele morrer, após a apoteose popular que será seu enterro, então vamos de verdade sentir falta dele, da sua figura
única, das suas campanhas, dos seus discursos, das suas "Linhas Ligeiras" dos seus pedidos para protegidos. Abre-se um
jornal pela manhã e lê-se invariavelmente na coluna dedicada aos tribunais:

"O major Cosme de Faria requereu habeas-corpus para Fulano de Tal, preso sem processo etc., e tal..."

Ou então:

"O Major Cosme de Faria requereu livramento condicional para o presidiário Fulano de Tal etc..."

Esse homem magro, de eterno colarinho duro e roupa escura, a barba por fazer branqueando o queixo, um hálito misturado
de fumo de charuto e cerveja, grandes abraços, palavras roucas e sempre em tom oratório, que vos ofertará uma carta do ABC
e vos levará algum dinheiro para uma escola ou para presidiários, que vos dará os seus últimos dez mil-réis se lhe pedirdes
cinco, é o último de certa raça de homens que já não podem existir no nosso tempo. Sobrou de outra época e não parece
preocupado com isso, toca a frente, entregue aos seus inúmeros afazeres, à sua estafante advocacia que não lhe rende dinheiro
algum ou que mal lhe rende para viver, pois seus clientes são exatamente os que não podem pagar advogado. Tira gente da
cadeia, leva presentes para os presos, sustenta, funda, ajuda escolas primárias, imprime cartas de ABC, cuida dos loucos,
escreve nos jornais diariamente pedindo auxílio para as campanhas sociais e de caridade. E encontra ainda tempo para beber
umas cervejas no "Bar Bahia" em companhia de amigos, conversando com o poeta Áureo Contreiras que usa indefectivelmente
uma flor vermelha na lapela e que é o mais modesto dos poetas e o mais ativo dos jornalistas.

Nos comícios, a voz de Cosme de Faria se eleva e muitas palavras se perdem na sua voz rouca, cheia pelos tropos
retóricos. Mas a multidão aplaude porque este major é estimado. Certa vez lhe perguntei de onde vinha o título. Ele não sabia
direito, era uma confusão. Mas podeis perguntar a qualquer baiano pelo major e ele vos indicará onde encontrá-lo. Não há
ninguém mais popular na cidade.

Se quiserdes segui-lo no seu dia afanoso vereis estranhas coisas. Um homem mal vestido se aproximará dele numa
esquina qualquer e lhe pedirá dez mil-réis. O major não leva no bolso magro senão uns níqueis parcos. Mas isso não é
problema. Cosme examina as proximidades. O homem mal vestido, que ele jamais enxergou em toda a sua vida, precisa de dez
mil-réis, O importante é lhe dar o dinheiro. E Cosme dirige-se ao primeiro conhecido endinheirado que passa. Toma-lhe dez
mil-réis que vão para o homem mal vestido. Depois assistireis às defesas de réus sem patrono. Nas épocas de júri, Cosme
absolve indivíduos que ele nunca viu, que não lhe pagarão um centavo, mas cujas esposas ou mães recorreram a ele. E requer
habeas-corpus, vários por dia. Dá a impressão de que um dia sem requerimento de habeas-corpus é um dia perdido para
Cosme de Faria. A cerveja não conserva nesse dia para ele o gosto amigo. Vai à Secretaria de Segurança soltar gente que foi
presa por malandragem, por mal-entendidos, ladrões de galinhas, bicheiros, prostitutas. Seu escritório de advocacia, uma
pequena porta na oficina de um remendão de sapatos, é, sem dúvida, o mais movimentado do Brasil. Ali, ele redige com sua
letra grossa, desigual e difícil, as razões dos seus clientes gratuitos. Ali atende a inumerável multidão diária.

À noite estará nos jornais. Quantas vezes não o vi debruçado sobre a carteira de Curvelo, carteira que era a perfeita
representação do caos, no antigo "O Imperial", escrevendo de pé, em prosa ou em verso pois seus pequenos artigos,
invariavelmente assinados, costumam começar em prosa e terminar em verso. Não há matéria mais sagrada para os linotipistas
e para os paginadores. Pode deixar de sair o telegrama mais sensacional, o tópico mais esclarecedor, o artigo de fundo, porém
a matéria do major lá está na página.

Vai às outras redações, suas campanhas são muitas e exigem apelos seguidos. Vale a pena ler algumas amostras da
literatura do major Cosme de Faria. Suas "Linhas Ligeiras" são diariamente publicadas e têm muitos leitores já que inúmeros
óbolos chegam para as instituições hospitalares, escolares e de caridade, para os loucos, por seu intermédio. Eis um dos seus
artigos, tomados ao acaso no jornal do dia:

"LINHAS LIGEIRAS"

O dr. Antônio Nero Barbosa, a quem infelizmente não tive ainda a honra de conhecer pessoalmente, foi nomeado prefeito de Mundo Novo.

Disseram-me, ontem, que s. s. é um digno e diante disto eu lhe peço, desde já, que desenvolva, ali, nas terras cujos destinos vai dirigir, A CAMPANHA
DO A. B. C, fundando pequenas e modestas escolas primárias, para a petizada pobre, a principiar pela sede da comuna e a terminar no último dos seus
arraiais.

Procure, também, dotar o município de um Patronato para os menores desvalidos e um Abrigo para a velhice desamparada.

Trabalhe, não perca tempo, porque este vale ouro e aquele produz a prosperidade.

"O amor engrandece o coração" e a luz eleva, delicadamente, o espírito.

Aguardo, assim, que s. s. responda-me alguma coisa sem delongas a respeito destes pálidos e desalinhados períodos.

Cosme de Faria

Na véspera ele publicara o seguinte:

"LINHAS LIGEIRAS"

O dr. Manuel Artur Vilaboim, ilustrado Secretário de Saúde Pública d este grande Estado, prestará um grande beneficio à educação das crianças da
Bahia, mandando comprar duas mil Bandeiras do Brasil, tipo médio, para serem distribuídas, gratuitamente, pelas escolas primarias, públicas e particulares de
todo o nosso querido território, onde, infelizmente, em dezenas de localidades o Auri-Verde Pend ão ainda é desconhecido, conforme, por diversas vezes, tenho
dito.

Faço, pois, neste sentido, um sincero e forte apelo aos sentimentos cívicos de s. exa. e espero que desta feita o meu justíssimo reclamo seja, sem
delongas, atendido.

“Uma casa de ensino sem o Pavilhão da Pátria equivale a um bosque sem os passarinhos”.

Que tristeza!

"Serenata que recorda

Antiga felicidade;

Não vive longe, quem vive

No perfume da saudade.”

COSM E FARIA

Por vezes é à poesia que ele recorre. Sua musa é condo- reira e patriótica. Nas grandes datas nacionais ele sai a clamar,
em versos, contra o analfabetismo que o major jurou exterminar em terras da Bahia. Será sem dúvida quixotesco, sem sentido
prático, fora da realidade um pouco. Nem assim falta-lhe beleza ao gesto, nem assim diminui a gratuidade da sua campanha, a
benemerência da sua intenção. Lança-se contra o analfabetismo, David ante Golias, sem se preocupar contra o impossível que
será ele sozinho, com seus apelos, suas “Linhas Ligeiras”, seus versos, seus discursos, alfabetizar a Bahia e o Brasil. É claro
que o major não vai buscar as raízes dos acontecimentos. Quer podar a árvore e se atira à tarefa gigantesca. Distribuindo
cartas do ABC que manda imprimir aos milhares, conseguindo escolas, roupas para escolas pobres, centenas de lápis e
canetas. E publicando seus poemas condoreiros. Lede:

ABAIXO O ANALFABETISMO

Pelas glórias da Bahia,

E do Brasil, em Geral,

Decrete-se o extermínio

Da ignorância fatal!

O torpe Analfabetismo

Tombe às plantas do Civismo

Liquide-se aos pés do Povo...

Senhores, vamos à luta,

Para que a Pátria impoluta,

Desfrute um sorriso novo!

Sigamos por toda a parte,

Brandamente, já se vê,

Mandando os cegos do espirito

Fitarem o sol do A. B. C.!

Façamos desta jornada

Uma esplêndida alvorada,

Uma alvorada feliz...

A fim de que a nossa gente

Seja mais eficiente

E maior nosso Pais!

Escolas e mais escolas

Procuremos instalar

Quando bate a “hora H”

Todos devem despertar!...

“Oh! Bendito o que semeia


Livros, livros a mão-cheia

E manda o Povo pensar...

O livro caindo n’alma

É germe que faz a palma,

É chuva que faz o mar!”

Os que vegetam nas trevas

Precisam delas sair,

P’ra os labores do Progresso!

P’ra as conquistas do Porvir!

Amigos da Liberdade,

Pela vossa piedade

Humanitária e sem par,

Amparai estes pequenos,

Para que saibam, ao menos,

Ler, escrever e contar!...

Eia, pois, batalhadores,

Que desejais batalhar!

Cada qual tome o seu posto,

Clarins bradai: — “Avançar”

Bandeira da grande — Ideia

Formai a linda — Epopéia

Das áureas aspirações!

Guerrilheiros a — Vitória!

Galgai as portas da — História,

Dando Luz às multidões!!!

As escolas, os presidiários, os loucos, os presos sem advogados, eis suas preocupações máximas. Visita a Penitenciária e
a Detenção, está no “Forum” requerendo, no júri defendendo. Lestes a sua literatura, sua prosa e seu verso. Pena que não o
possais ouvir num discurso, num júri ou num comício, seu altíssimo colarinho duro, a invariável gravata negra, a roupa escura,
o gesto largo, a voz tremendo. É um espetáculo inesquecível.

Pobre, mãos por onde passam contos e contos de réis, sua dificuldade é conseguir que os bares recebam dinheiro seu em
pagamento. Quando se levanta da mesa onde bebeu sua cerveja gelada, o garção já tem ordens de não receber. Mas o major
faz questão de pagar e trava-se a luta. Podeis assistir a estes acontecimentos qualquer tarde, por volta do crepúsculo, em
qualquer bar da cidade. O major com a nota estendida na mão, o dono do bar recusando. O que não podereis imaginar é o
número de favores que o proprietário já deve ao major...

Seu nome não é apenas respeitado. Mais que isso, querem-no bem. Sua figura quase grotesca, o passo arrastado, a voz
pegajosa, as mãos sujas de sarro, o chapéu de palhinha, o invariável charuto, o colarinho espantoso, ele atravessa a rua
recebendo mais cumprimentos que político no poder, que milionário dono de banco. Porque o povo estima esse major que
nunca pertenceu a nenhuma milícia armada mas que, como um Quixote das ruas, se lança nos jus, nos tribunais, na polícia, nas
prisões, nas escolas, nos jornais, pedindo pelos pobres, sem se preocupar consigo mesmo, indiferente ao dinheiro e às honras,
às posições e aos cargos.

Certa vez ele me disse, numa confidência:

— Já defendi dezoito mil novecentas e trinta e duas pessoas... Nunca acusei nenhuma...
PERSONAGENS

1 – O POETA

Em frente ao Mercado Modelo fica o cais dos saveiros.

De velas arriadas, os saveiros descarregam frutas e verduras, peixes e mariscos. O Mercado Modelo é uma festa de cores
e de pitoresco. Para trás fica o Elevador Lacerda que liga a cidade-baixa à cidade-alta, mas a verdade é que o Mercado
Modelo é o começo de um mundo à parte; o mundo do cais, dos marinheiros, dos pescadores, dos vendedores de frutas e de
animais, macacos e raposas, tatus e coelhos, pássaros de variada espécie. É o mundo das baianas com seus manuês e seus
beijus, seus torsos de seda e seus panos da costa. Poucas vezes se pode sentir aquele ar de rainha de que falam os cronistas
sociais como ao lado dessas baianas, negras velhas e solenes, de rosto afável e alegre, graves e suaves ao mesmo tempo.
Nesse mundo e que se movimenta o poeta Cuíca de Santo Amaro.

Cuíca de Santo Amaro ainda é bastante moço. Um crítico literário qualquer chamá-lo-ia de “jovem poeta”. Mas
dificilmente algum crítico literário importante tratará da personalidade de Cuíca, tampouco da sua poesia. Coisa, aliás, que
não afetaria a vaidade do poeta. Cuíca não liga o mais mínimo à crítica literária. Seus leitores estão todos no mundo do
Mercado Modelo (e suas misteriosas ramificações pelos candomblés, feiras-livres e armazéns das docas). Seus críticos mais
severos são alguns lusitanos, donos de armazéns que fazem restrições ao “português”, nem sempre correto, de Cuíca de Santo
Amaro. Criticam mas lêem porque até os portugueses e os espanhóis já perderam muito da pureza linguística em contato com o
mundo mesclado do Mercado Modelo.

Cuíca de Santo Amaro é uma organização: escreve seus versos, manda imprimi-los, desenha ele mesmo os cartazes de
propaganda que conduz sobre os ombros, vende folhetos com os poemas e canta os melhores versos para atrair a freguesia.
Qualquer das suas produções, famosas no mundo do Mercado Modelo, custa o parco preço de 40 centavos como ele mesmo
avisa, no fim de um dos seus poemas desta sua última fase antinazista:
“Baiano e Brasileiro

Também eu sou de coração.

O leitor agora escute

A minha terminação:

Empreste-me por obséquio

Quatro níqueis de tostão...”

Note-se a sua delicadeza: não exige o dinheiro, pede emprestado...

Cuíca de Santo Amaro é autor, editor, chefe de publi- cidade e livreiro ambulante. Um poeta que se basta e que tem um
grande público. Não fica ele nos quinhentos exemplares a que montam as maiores edições dos nossos grandes poetas
modernos. Se fizerdes um inquérito no mundo do Mercado Modelo (e adjacências) sobre poetas e poesia o único nome que
ouvireis será o de Cuíca de Santo Amaro. Jamais outro qualquer, talvez muito mais ilustre, será pronunciado. Amado pelos
seus leitores, Cuíca de Santo Amaro é no mundo do Mercado Modelo uma personalidade importante. Ele elevou perante a
população desse mundo trabalhador e pobre o conceito em que eram tidos os poetas. Foi ele, e mais ninguém, quem fez da
poesia uma profissão digna, libertando-a, na fimbria do mar da Bahia, daquele conceito antigo que igualava o poeta ao
vagabundo. Poesia queria dizer vagabundagem, ameaça de facada. Porque os poetas boêmios, falsos poetas e falsos boêmios,
frequentavam também o mundo do Mercado Modelo nos dias do ontem e deviam parati em todas as barracas. Cuíca do Santo
Amaro, sem cabeleira e comprando a dinheiro, repôs o poeta no seu devido lugar. E, escrevendo seus versos sobre
acontecimentos de todos os dias, dignificou a poesia. Perdoai mas foi assim mesmo.

Homem célebre na rampa do cais dos saveiros, a verdade é que Cuíca de Santo Amaro exerce importante função social.

Cuíca de Santo Amaro é pela utilidade da poesia. Eis um tema brabo: poesia e utilidade. Jogando assim numa roda pouco
ocupada, na porta de uma livraria, é capaz de fazer com que o grupo de ardorosos beletristas caia em transe que nem yawô em
macumba quando desce o santo. Dava para uma discussão infernal, com citações em francês, com desmaios dos poetinhas
mais delicados, com tentativas de agressões por parte dos mais dispostos, com denúncias à polícia vomitadas pelo sr. Maria
Carpeaux em qualquer rodapé dominical... Cuíca de Santo Amaro, que nunca pensou sequer em discutir o problema e que nem
sabe se o problema existe, é inteiramente pela utilidade da poesia. Nunca se perdeu ele em decadentes ritmos nem tampouco
na busca afanosa da poesia pura... Nada disso. Cuíca de Santo Amaro exerce uma importantíssima função social.

Se o livro e o jornal não são muito lidos no mundo do Mercado Modelo a culpa não é do povo dali. O livro é caro e
geralmente em linguagem difícil. O jornal é mais barato mas, ainda assim, só uns poucos podem gastar todos os dias cinco
cruzeiros para ler os telegramas que já ouviram no alto-falante da praça. Demais a população do Mercado Modelo e
adjacências não se interessa pela maioria dos assuntos tratados no jornal. Interessam os crimes, os cangaceiros, as aventuras
dos Capitães da Areia, o preço alto da vida. A guerra também.

Sobre esses fatos que interessam o Mercado Modelo — o último crime sensacional, o encarecimento da carne-seca e da
farinha, o cômico incidente na porta de um bar entre dois bêbedos, a última façanha dos cangaceiros, a luta contra o nazi-
fascismo — compõe Cuíca os seus versos e é por intermédio deles que o mundo do Mercado Modelo toma conhecimento do
que vai pelo universo e pelo resto da cidade do Salvador. É Cuíca quem ilustra os donos de vendolas e barracas, os mestres
de saveiros, os canoeiros, os vendedores de laranja e abacaxi, as baianas dos tabuleiros, sobre os acontecimentos que abalam
a vida dos homens fora dos limites (extensos) do Mercado Modelo. Antes demorava-se apenas nos temas quotidianos da vida
da cidade: assassinatos e roubos, vida cara, raptos românticos e tempestades que naufragaram saveiros. Seus folhetos, lidos
em grupo, eram jornal e livro, informação e cultura, comentário social e econômico, ironia e crítica, poesia e panfleto. Assim
é Cuíca de Santo Amaro, poeta do mundo do Mercado Modelo, no cais da Bahia.

Mas hoje a guerra interessa ao Mercado. Não há ali quem não seja patriota e antifascista. Neste mundo pobre o
integralismo não medrou jamais. Desde que a guerra começou, o Mercado Modelo deu de comprar jornais. Mas os jornais não
bastam e é por isso que o mundo, o que está fora dos extensos limites do Mercado, compra os livros dos repórteres e dos
políticos, dos romancistas e dos economistas. O Mercado Modelo não pode, suas finanças são parcas. Então Cuíca de Santo
Amaro abandona, ante o tema mais importante da guerra, seus assuntos anteriores. E sua poesia atualmente fala de Roosevelt,
de Stalin, de Churchill, desmascara o fascismo e a quinta-coluna. Sua atual fase é marcada por um forte sentimento antifascista
e ninguém, no seu caso, pode falar em adesão de última hora. A poesia de Cuíca de Santo Amaro sempre teve um caráter
social e ele sempre foi antifascista.

Escreve desafios, ABCs, histórias nos ritmos populares da redondilha (nem sempre bem metrificados) e seus poemas são
logo cantados pelos cegos violeiros e andam, já anônimos, pelos caminhos do sertão nordestino.

Explora na sua poesia antifascista a veia humorística e ri dos que vestiram a camisa-verde, ri da aversão de Hitler às
mulheres, ri do teatro barato de Mussolini. Um dos seus folhetos narra como Plínio Salgado enganou muita gente com a
demagogia integralista. E conta o fim do fracassado quinta-coluna, numa viagem para a Europa. O navio naufraga e um grande
cação surge na frente de Plínio. O “chefe” nacional logicamente se acovarda:

“O navio foi a -pique

Quando surgiu o cação.

Plínio quando reparou

que o cação era russo

disse quase chorando

em um enorme soluço:

— Eu não sou Mussolini,


Não me coma, por favor!"

E suplica:
“Disse à fera, com meiguice:

— Olhe que eu sou reservista,

eu quero ser patriota

não ser mais integralista”.

E termina pedindo:
“Pediu ele suplicante

amarelo pra chuchu:

— Rompa minha camisa verde

que ficou no meu baú...”

Outra história narra o casamento de Hitler com a filha de Satanás, no inferno. Hiroíto e Mussolini são os padrinhos. Na
hora H, quando a noiva apaixonada esperava que o noivo se explicasse, Hitler declara sua falência:
“Eu andava me enganando.

Sonhava todo o dia

que estava lhe amando.

Mas agora eu reconheço

que sou puro Ferdinando...”

Eis que, noutro folheto, Satanás resolve ir buscar Adolf Hitler para que, no inferno, o chefe nazi pague seus crimes. E
Adolt tenta negociar:
“Eu não posso ir agora...

Primeiro vá Mussolini...

Ele não faz muita falta

Porque é burro demais”.

Mas quando Satanás recusa qualquer adiamento, Hitler recomenda como bom delator:
“Mande um telegrama

ligeiro pra o fascismo

Avisando que quando for


Levar o integralismo...”

O mundo do Mercado Modelo se delicia com os folhetos de Cuíca de Santo Amaro. Ali, próximo ao Elevador Lacerda,
vós o encontrareis, ao poeta. Seu chapéu de coco, envelhecido de muitos invernos chuvosos, os cartazes cobrindo as costas e
o peito, o rosto alegre, cantando seus versos para os que passam. Por vezes os Capitães da Areia se reúnem em torno dele
para ouvi-lo. E soltam suas gargalhadas livres, aplaudindo os trechos mais cômicos ou mais heróicos. Vêm negras e negros,
mulatos das docas e portugueses do mercado, vendedores de peixe e camponeses do Recôncavo, e levam os folhetos mal
impressos onde os versos antifascistas de Cuíca de Santo Amaro dizem da guerra e dos homens que lutam pela liberdade
contra o terror.

Quando passardes, turista acostumado aos grandes e difíceis poetas de outros mundos, talvez Cuíca vos ofereça, por
quatrocentos réis, um dos seus poemas. Não penseis que ele seja apenas um tipo de rua, figura popular e risível. É bem mais
que isso. É a voz do povo trabalhador do Mercado que, não encontrando ressonância nos poetas modernos, e tendo sede de
poesia, cria seu bardo pobre e semi-analfabeto. Os poetas estão nos bares inventando sonetos de rimas milionárias ou
quebrando a cabeça em ritmos novos para poemas exotéricos. Só Cuíca de Santo Amaro canta para o povo pobre. Quando
passardes por ele talvez a sua figura e a sua voz arranquem um sorriso dos vossos lábios civilizados. Mas, que importa? O
povo em torno não sorri do seu poeta. Ri e sofre com ele, combate e tem esperança!

2 - O CAPOEIRISTA

Já começam os fios de cabelo branco na carapinha de Samuel Querido de Deus. Sua cor é indefinida. Mulato, com
certeza. Mas mulato claro ou mulato escuro, bronzeado pelo sangue indígena ou com traços de italiano no rosto anguloso?
Quem sabe? Os ventos do mar nas pescarias deram ao rosto do Querido de Deus essa cor que não é igual a nenhuma cor
conhecida, nova para todos os pintores. Ele parte com seu barco para os mares do sul do Estado onde é farto de peixe.
Quantos anos terá? É impossível saber nesse cais da Bahia, pois de há muitos anos que o saveiro de Samuel atravessa o
quebra-mar para voltar, dias depois, com peixe para a banca do Mercado Modelo. Mas os velhos canoeiros poderão informar
que mais de sessenta invernos já se passaram desde que Samuel nasceu. Pois sua cabeça já não tem fios brancos na carapinha
que parece eternamente molhada de água do mar?

Mais de sessenta anos. Com certeza. Porém, ainda assim, não há melhor jogador de capoeira, pelas festas de Nossa
Senhora da Conceição da Praia, na primeira semana de dezembro, que o Querido de Deus. Que venha Juvenal, jovem de vinte
anos, que venha o mais célebre de todos, o mais ousado, o mais ágil, o mais técnico, que venha qualquer um, e Samuel, o
Querido de Deus, mostra que ainda é o rei da capoeira da Bahia de Todos os Santos. Os demais são seus discípulos e ainda
olham espantados quando ele se atira no rabo-de-arraia porque elegância assim nunca se viu... E já sua carapinha tem cabelos
brancos...

Existem muitas histórias a respeito de Samuel Querido de Deus. Muitas histórias que são contadas no Mercado e no cais.
Americanos do norte já vieram para vê-lo lutar. É pagaram muito caro por uma exibição ao velho lutador.

Certa vez seu amigo escritor foi procurá-lo. Dois cine- matografistas queriam filmar uma luta de capoeira. Samuel
chegara da pescaria, dez dias no mar e trazia ainda nos olhos um resto de azul e no rosto um resto de vento sul. Prontificou-se.
Fomos em busca de Juvenal. E, com as máquinas de som e de filmagem, dirigimo-nos todos para a Feira de Água dos
Meninos. A luta começou e foi soberba. Os cinematografistas rodavam suas máquinas. Quando tudo terminou, Juvenal
estendido na areia, Samuel sorrindo, o mais velho dos operadores perguntou quanto era. Samuel disse uma soma absurda na
sua língua atrapalhada. Fora quanto os americanos haviam pago para vê-lo lutar. O escritor explicou então que aqueles eram
cinematografistas brasileiros, gente pobre. Samuel Querido de Deus abriu os dentes num sorriso compreensivo. Disse que não
era nada e convidou todo mundo para comer sarapatel no botequim em frente.

Podeis vê-lo de quando em quando no cais. De volta de uma pescaria com seu saveiro. Mas com certeza o vereis na festa
da Conceição da Feira derrotando os capoeristas, pois ele é o maior de todos. Seu nome é Samuel Querido. (Esse perfil do Querido
de Deus foi escrito em 1944, quando ele ainda vivia).
3 - HISTÓRIA DE MIRANDÃO

Não vos custará caro. A não ser que o jogo vos seja agradável porque então Mirandão dividirá os lucros e não
participará do prejuízo. Mas, fora disso, poderá ser apenas uma ceia gostosa, com cerveja, precedida de uma cachaça forte,
num restaurante qualquer, sórdido e de admirável cozinha, nas ruas de mulheres perdidas. Ele não vos contará apenas uma
história. Serão muitas e cada qual mais emocionante. Nunca, jamais ninguém narrou tão bem. E notai que ele é modesto pois
quase sempre sai perdendo nessas histórias espantosas. É uma espécie de Quixote amoral. Quixote da boêmia em decadência.
Contra ele dizem muita coisa. Porém ele não se preocupa com ó que dizem.

— Sou um amante medíocre... — informa, e é o começo de uma história de amores contrariados com uma senhora casada
que por ele se apaixonou. Mirandão anteviu todo um futuro grandioso. Dinheiro a rodó, já que o marido era rico, boas roupas,
bons charutos, fichas para o jogo, bons sapatos, perfumes, além do resto. Fez projetos e nesse dia comprou um queijo para
levar para casa onde os filhos o esperavam, pois é excelente pai de família. Já que perspectivas tão risonhas se abriam em sua
frente poderia gastar num queijo, por conta. A provável amante marcara um encontro para o outro dia.

— Sou um amante medíocre... — informa e detalha seu fracasso.

Pode ser que tudo seja mentira. Para que discutir, no entanto, se os detalhes são tão bem escolhidos, se a história é tão
perfeita, se Mirandão paga tão admiravelmente a ceia que lhe estais oferecendo numa imunda baiúca na qual se cozinha o
melhor vatapá da Bahia?

Sua profissão é, há dez anos, a de estudante de agronomia. Está no segundo ano e de seis em seis meses ele coleta
dinheiro entre os amigos e admiradores para ir ao interior (onde fica a Faculdade de Agronomia) realizar provas parciais.
Não vai, adia os exames para o ano próximo. Mas os que contribuíram já sabiam que ele não iria. Mirandão precisa manter
sua profissão. Se ele deixasse de ser estudante perderia parte da sua imensa dignidade. Podereis encontrá-lo todas as tardes
em frente ao Palace-Hotel, irrepreensível em sua roupa bem passada, o colarinho duro, a gravata borboleta, o rosto largo
sorrindo através dos dentes pequenos e podres. À noite estará em qualquer parte onde haja jogo e possibilidade de ceia. Tem
um faro para descobrir quem vai cear que é digno de melhor estudo por parte dos cientistas. Ides pela rua, ainda não
decidistes se chegou a hora de cear, e Mirandão se aproxima, balançando a grande cabeça sorridente. Seu olho se abre
simpático e inicia a conversa. Ele sabe onde se pode nesta noite comer um efó maravilhoso. Podeis ir, sem susto.

Todos o conhecem e geralmente o estimam. Sua voz é ligeiramente oratória e ele ama certos termos difíceis que mistura à
gíria malandra em que é mestre. Parece um deputado e o seria com certeza se ainda houvesse eleições e fosse dado direito de
voto aos malandros, aos jogadores, aos boêmios, às prostitutas.

É impossível contar uma das suas histórias com o mesmo sabor com que ele narra, o garfo suspenso, a voz pausada e
solene, um gesto preciso, por vezes apenas o silêncio e o olhar que tudo explica. Mas, tão-somente para melhor defini-lo, vos
contarei um caso que ele narrou numa ceia memorável onde cerca de oito pratos caracteristicamente baianos foram vencidos
por quatro jornalistas e o estudante da agronomia, Mirandão:

— Estávamos numa festa no Rio Vermelho. Festa de Largo, com quermesse e moças passeando em torno ao jardim. Eu
estava com Mário, Mário Gonçalves, um que bebe muito, pode perguntar a ele se não foi verdade. Chegaram mais duas
pessoas, dois senhores que conhecíamos pouco. Um era comerciante e o outro eu só sabia que remava para o Itapagipe. Pensei
que Mário os conhecesse melhor, só depois vi que não. Estávamos todos conversando e bebendo uma cachaça com ervas que
igual não se faz mais, quando atravessou o Largo certa moça, vestida de vermelho. Ia de braço com um rapaz que era um
cavalo de forte. Mário, que já não se aguentava de bêbedo, comentou apontando a moça de vermelho:

— Aquela não é mais moça... Só não sei qual o rendez-vous que ela frequenta...

Olhei a moça e logo reconheci. Informei:

— Rua São Miguel, 16. Castelo de Mãezinha...

Então o moço que remava para o Itapagipe perguntou:


— Qual?

— Aquela de vermelho — indicou Mário que quase caiu quando estendeu o braço. Estava bêbedo demais.

— Aquela? — surpreendeu-se o remador.

— Aquela mesma... — disse eu. — Vinte mil-réis e não vale...

— Aquela de vermelho? — o casal passava exatamente em nossa frente.

— Aquela, sim — gritamos eu e Mário.

Então o moço que remava para o Itapagipe chamou o casal. Vieram. Quando chegaram junto. da gente, o que remava
disse, como quem apresenta:

— Essa é minha irmã e esse é o noivo dela.

E perguntou a Mário:

— O que foi que você disse que ela fazia?

Mário, mais bêbedo que uma égua, respondeu:

— Frequenta rendez-vous...

E voltou-se para mim:

— Não é, Mirandão?·

— Rua São Miguel, número 16. Castelo de Mãezinha...

Mirandão suspende a narração, olha tristemente como a perguntar o que podia ele fazer senão apoiar o amigo. E conclui:

— Perdi três dentes com o soco. Mas Mário teve que ir para a Assistência.

Assim são as suas histórias. Com vários palavrões e inúmeros gestos. A ceia ficará barata. Nunca mais o esquecereis.
TRÊS MULHERES

MOEMA

Caramuru atirou. Naquele tempo ele se chamava Diogo Alvares Correia. Os companheiros de naufrágio haviam sido
almoçados pelos Tupinambás, guerreiros que moravam na cidade da Bahia que ainda não tinha esse nome porque tampouco
existia. O pássaro caiu ferido com o tiro e os índios desistiram de comer Diogo Alvares Correia com o seu instrumento de
morte que vomitava fogo. Em compensação deram-lhe o nome de Caramuru e a filha de Itaparica, o chefe dos Tupinambás, em
casamento. Moça bonita, de nome Paraguaçu, que por amor ao esposo aderiu ao catolicismo e foi batizada como Catarina.

Moema era mais bonita, mais ardente, menos nobre no entanto. Desejou ela também o amor do português recém-chegado.
Deu-lhe seu coração e, se bem as histórias silenciem o fato, todos nós desconfiamos que, no fundo, houve alguma coisa entre
eles. É muito possível que o lusitano colonizador, de natural polígamo, tenha constituído duas famílias índias, uma sob a
bênção da Santa Madre Igreja, outra apenas com os laços do amor.

Um dia Diogo Alvares Correia embarcou com sua senhora de volta à Europa. A abandonada Moema espiou a partida do
navio. Seus olhos langues estavam cheios de lágrimas, seu coração dorido cheio de amor pelo ingrato que a deixava. Quando a
caravela, aproveitando o vento, rumou para o mar, ela se atirou n’água e nadou. Gritava o nome de Caramuru, queria, na sua
apaixonada loucura, alcançar o barco que partia. Nadava, nadava, nadava, os peixes em torno de si, as águas se abrindo para
ela passar, gritava pelo amado, queria tê-lo junto ao seu corpo. Moema nadava. O navio desapareceu. Moema continuou
nadando e o amor povoou para sempre a Bahia de Todos os Santos.

MARIA QUITÉRIA

O Príncipe D. Pedro, no caminho de São Paulo, deu o grito da Independência. Depois foi dormir com a Marquesa de
Santos. Os baianos então expulsaram os portugueses que ainda desejavam conservar a colônia. As tropas de Madeira foram
batidas no Recôncavo, em Pirajá, em Itaparica. Um avô de Castro Alves, major das forças da Independência, comandava um
batalhão. Foi o batalhão mais valente de toda a campanha. Puseram-lhe o nome de "Batalhão dos Periquitos" por causa da
farda. Os "Periquitos" ficaram célebres tais foram as suas façanhas na guerra da libertação. Entraram triunfantes na Bahia pelo
caminho da Lapinha. Depois mataram num motim o general que queria afastar o major Silva Castro para outro comando.

Certa moça baiana, de nome Maria Quitéria, de família pobre, não quis assistir de braços cruzados à libertação da sua
pátria. Vestiu uma roupa de soldado, apresentou-se ao avô de Castro Alves, mostrou que sabia atirar e fez toda a campanha.
Foi um soldado disciplinado, corajoso, capaz, consciente. Honrou o batalhão dos "Periquitos" e sua tradição é orgulho da
mulher baiana.

No entanto a fama ficou para Joana Angélica, uma freira que defendeu a porta do seu convento. Não a moveu o
patriotismo nem o entusiasmo pela sua fé, o que é elogiável. Mas a heroína da Independência é a outra, a mulher que rompeu
com os preconceitos terríveis da época, alistou-se como soldado, tomou do fuzil, matou inimigos, lutou de armas na mão,
Maria Quitéria é o caso mais escandaloso de sabotagem na História do Brasil.

JÚLIA FEITAL
Ah! era inconstante o coração de Júlia Feital. Moça bonita, nos princípios de 1800, namorava do balcão da sua casa.
Estudantes, alferes, nobres, literatos. A todos Júlia Feital namorava. Um professor, doido de amor, ficou seu noivo. Júlia
Feital não nascera para noiva nem para esposa. Nascera para amante, para beijos furtados, para encontros clandestinos. O
professor era ciumento e ela namoradeira. Um dia um estudante, no outro um oficial, no sábado um poeta. Ria como uma
doida, o professor emagrecia de ciúmes.

No silêncio do seu quarto o professor fundiu uma bala de ouro. Foi ver Júlia Feital. Sua noiva sorria na janela, na rua
passeavam o nobre, o literato, o alferes e o estudante. Um padre jovem também. O professor ergueu a arma, a bala de ouro
alojou-se no inconstante coração de Júlia Feital.
NOTAS A MARGEM

AS ARREPENDIDAS E A FRASE

O Convento da Lapa fica nas proximidades do Colégio da Bahia (ex-Ginásio da Bahia), na Avenida Joana Angélica, onde
reside também o tribuno Edgard Mata, líder popular de extensa influência. O Convento é de “Arrependidas”. Isso pretende
significar que residem nesse casarão de péssimas condições sanitárias e nele morrem indefectivelmente de tuberculose,
aquelas graciosas mulheres que, após uma vida de agradável loucura, resolveram penitenciar-se. Em verdade raras vezes isso
acontece. Quase sempre as desgraçadas que ali se estiolam são vítimas do feudalismo familiar ainda generalizado na pequena
burguesia baiana, especialmente no interior. Moças que “se perderam” e cujos pais de honra em punho as trancafiaram no
tenebroso convento da Lapa, a coberto de todos os olhares masculinos.

A visão deste convento igual a uma penitenciária é uma das impressões mais cruéis que nos deixa a cidade da Bahia. Seus
altos muros negros, suas janelas de tal maneira gradeadas que é impossível ver através delas qualquer nesga do céu azul,
qualquer trecho de rua por menor que seja, qualquer movimento por mais mínimo, qualquer parcela de vida, o silêncio
dramático que vem do seu interior e que aperta o coração dos que passam. Ali pobres moças sofrem a tirania dos
preconceitos, fenecem à luz sombria das velas e das macerações, Certa, vez, desesperada, uma jovem jogou-se do alto de uma
janela. Pronunciou um nome qualquer — bem amado nome masculino — e atirou-se.

Mas ninguém sabe esta história. A história que todos sabem, ligada a este convento, é outra. Na porta que dá para a
avenida, sóror Joana Angélica, no ano de 1823, tombou sob as armas portuguesas. Os soldados da Corte quiseram entrar no
convento para tomar posição de batalha mas a freira postou-se na porta e disse a frase célebre:

— Só passando sobre meu cadáver...

Os portugueses passaram e uma placa lembra o lugar onde caiu a religiosa que defendia o trágico mistério sexual que
esses frios muros encerram.

OUTRAS FREIRAS

Dizem que nos muros do Convento do Desterro podem-se ainda ver as marcas dos lugares onde as freiras depen- duravam
nos tempos passados as escadas de corda pelas quais subiam os amantes nas noites mornas da Bahia. Ah! esse convento bem
ao contrário do da Lapa, relembra coisas alegres: literatura, trocadilhos, epigramas, poemas e amores. Convento de fidalgas,
da ordem das Irmãs Franciscanas do Sagrado Coração de Jesus, fundado em 1655, as abadessas faziam política e literatura.
Moças ricas que se haviam apaixonado por mulatos brasileiros eram levadas ao Convento de Santa Clara do Desterro onde as
freiras procuravam lhes provar praticamente as vantagens físicas dos fidalgos lusitanos sobre a mestiçagem nacional. As
escadas de corda, os jantares com bons vinhos e canções picantes, meias cor de carne para as pernas perfeitas destas freiras
do amor. Eleição de abadessa no convento do Desterro era que nem hoje eleição para a Academia Brasileira de Letras, com
fuxicos, calúnias, anedotas, epigramas, curvatura de espinha. Reuniam-se nos salões do Convento, para festas que os cronistas
afirmam terem sido orgias monumentais, o que de mais elegante viciado possuía a cidade. Ali esteve em novembro de 1717 o
francês Mr. de la Barbinais le Gentil que saiu bastante escandalizado. No seu lindo barroco português, o Convento do
Desterro recorda uma comunidade alegre, literária, festeira, devassa e sensual, que mereceu reprimendas terríveis e figurou
nas cartas de Vilhena. As freiras amavam representar peças profanas no improvisado teatro do convento. E as celas se
enchiam de amor nas noites baianas.
Tudo isso passou. Foi antigamente. Agora só resta o muro, o “muro das freiras”, onde caíam as cordas para os visitantes
noturnos que o povo apelidara de “fraderescos”. Poderemos, oh! turistas!, organizar um coro em frente a este convento do
Desterro, após admirar-lhe a arquitetura barroca, e cantar melancolicamente:

— Ai! que pena...

CONVERSA NO BONDE

Na "cozinha” do bonde superlotado iam, juntamente com mais quinze pessoas, dois mulatos. Um gordo e forte, risonho,
exibindo com orgulho a farda de cabo da Polícia Militar. O outro magricela, à paisana, assoviando por entre os dentes podres.
O bonde vinha da Calçada e rangia nos trilhos. Quando passou em frente à feira de Água dos Meninos o mulato gordo disse,
exibindo seus conhecimentos e sua farda brilhante:

— Vão acabar a feira...

— Acabar a feira? — espantou-se o outro.

— Sim. Aqui vai ser a Base Naval dos Ingleses... — o mulato gordo falou para o bonde e todo o bonde se voltou para
espiar.

Logo chegou o veículo à Base Baker, dos americanos.

— Aqui é a Base dos Americanos... — explicava o cabo ao companheiro e aos passageiros cansados de saber mas ainda
assim interessados. — Vão ficar perto à dos ingleses e à dos americanos...

Foi então que um negro enorme, do outro lado do bonde, equilibrado no estribo a contra-mão, declarou para
conhecimento de todos.

— Eu só quero saber onde vai ser a base dos russos que é para me alistar de sargento...

CARTÃO DE VISITA

Jesus Cristo

ou

Dom Manuel Bahia

é Imperador do Mundo

CIDADE DO SALVADOR BAHIA — BRASIL

OUTRO CARTÃO DE VISITA

O poeta Argileu Silva é um simpático bardo estadual, conferencista celebrado no interior, com muitos livros publicados.
Bacharel em ciências e letras e bacharel em ciências jurídicas e sociais contam dele que usa um cartão de visitas onde se pode
ler:
ARGILEU SILVA

BACHARÉIS

AVENIDAS...

Cerca dos bairros ricos, nos fundos das moradias elegantes, existem por numerosos e míseros casebres, arrumados como
senzalas antigas, onde vive uma população proletária na maior imundície. Esses casebres são boa fonte de renda para os
proprietários e estes dão-lhe o pomposo nome de “Avenidas...”

O nome de uma é Avenida Diná. Ali moram nos espantosos casebres cerca de oitenta pessoas. Parece que setenta e três,
exatamente. Em toda a “Avenida”, para estas dezenas de habitantes existem apenas três latrinas. Se é que se pode chamar
aquilo de latrinas...

Outra dessas avenidas traz o nome glorioso de Osório. Quarenta pessoas ali habitam. Uma única latrina serve a toda essa
gente...

PAIS E OS FILHOS

A Sociedade de Bela-Artes da Bahia foi fundada pelos pais de Castro Alves e de Rui Barbosa, em 1856. Os dois filhos
fundariam, anos depois, a primeira Sociedade Abolicionista do Recife, primeira também do Brasil para dar fuga aos negros
escravos. Da arte pela arte à arte política...

TEMPLOS RELIGIOSOS

Não são apenas as igrejas católicas que se podem orgulhar dos muitos anos que tomam ilustres suas torres e seus adros na
cidade da Bahia. O candomblé do Engenho Velho tem cerca de 300 anos de existência, vem dos tempos da escravidão. Já foi
subterrâneo para escapar à perseguição dos senhores de escravos e dos padres. A entrada era pelo oco de uma árvore.

O candomblé de Ciríaco, na estrada do Rio Vermelho, tem 122 anos de existência.

DUAS CASAS

Duas das mais belas casas coloniais da Bahia têm nomes dados pelo povo. A “Casa dos Sete Candinheiros”, na Rua da
Assembleia, com seus azulejos portugueses admiráveis. E a “Casa das Sete Mortes” no Largo do Paço, onde as maravilhas
arquitetônicas coloniais, os pátios e quartos subterrâneos, as fontes interiores de azulejos, os salões e os quartos, misturam-se
com a lenda. Aqui um escravo, revoltando-se contra as barbaridades do senhor, matou o patrão num crime célebre.

SOCIEDADE BENEFICENTE
Na Ladeira do Gravatá, numa casa colonial, funciona uma sociedade beneficente de negros, sob a presidência do chofer
Bispo dos Santos. Tem o delicioso nome de “Paraíso de Ébano”.

PARA EXEMPLO

Na esquina da Rua Caio Moura, antiga Rua dos Carvões, com o beco do Padre Bento, hoje José Bahia, podem-se ver
ainda duas pedras das quais pendem pequenas argolas às quais eram amarrados os negros escravos depois de surrados em
consequência de ordens do senhor. Ali ficavam expostos ao “escárnio público”, para exemplo. As argolas ainda lá estão,
estreitas argolas de ferro, de cor estranha, à qual não deve faltar o sangue dos negros escravos.

INFORMAÇÕES SÔLTAS

CORREIOS E TELÉGRAFOS:

Agência central na cidade-baixa, na Praça da Inglaterra, num moderno edifício. Agências mais importantes: Rua Chile,
Calçada, Avenida Sete de Setembro.

ALBERGUE NOTURNO:

Na Rua Alfredo Brito. É mantido pelo Centro Kardecista. Possui aproximadamente cem leitos. Imundície absoluta.
Existia um outro na Preguiça, ao preço de 20 centavos o leito (sic). Uma corda ligava as camas (...) umas às outras e era
desamarrada pela manha derrubando os dorminhocos.

FARÓIS:

Os dois mais importantes são os da Barra e de Itapoã.

CORPO DE BOMBEIROS:

Na Rua dr. Seabra (Baixa dos Sapateiros), no sopé da Ladeira da Praça. Com uma sucursal na Calçada.

INSTITUTO NINA RODRIGUES:

Na Rua Alfredo Brito, antiga Portas do Carmo, possuindo geladeiras para doze cadáveres.
MUSEU NINA RODRIGUES:

Especializado em assuntos de religião fetichista. Sob a direção do Prof. Estácio de Lima. No Instituto Nina Rodrigues, na
Faculdade de Medicina.

OUTRAS REPARTIÇÕES CULTURAIS:

Arquivo Público, Pinacoteca, Instituto Histórico, Biblioteca Pública.

PARQUES:

Dois de Julho, antigo Campo Grande, Passeio Público, nos fundos do Palácio da Aclamação com vista sobre o mar, Praça
D. Pedro II e Praça Conselheiro Almeida Couto.

MONUMENTOS, ESTÁTUAS, HERMAS E PANTEÃO:

Monumentos em honra à batalha de Riachuelo, na Praça Riachuelo. Data de 1874. Monumento ao Dois de Julho no Campo
Grande. Data de 1895. Monumento ao Conde Pereira Marinho na Praça Conselheiro Almeida Couto. Data de 1893.
Monumento ao Barão do Rio Branco, na praça do mesmo nome, antiga São Pedro. Data de 1919. Monumento a Cristo, na
Avenida Oceânica. Data de 1920. Monumento ao poeta Castro Alves na Praça Castro Alves, antigo Largo do Teatro. Data de
1923. Monumento ao Conde dos Arcos, na praça do mesmo' nome. Data de 1932. Monumento ao Visconde de Cairu, na praça
do mesmo nome, em frente à Associação Comercial. Data de 1934. Monumento a D. Pedro II, na praça do mesmo nome. Data
de 1937. Estátua o dr. Paterson, na praça do mesmo nome. Data de 1886. Estátua de Rodrigues Lima, na praça do mesmo
nome. Data de 1911. Estátua da Liberdade, na praça do mesmo nome. Data de 1920. Estátua de Luís Tarq uínio (industrial
baiano), na avenida do mesmo nome. Estátua do Salvador, na ; Praça Senhor do Bonfim. Estátua de Pedro Alvares Cabral, na
Praça da Inglaterra. Herma do general Pedro Labatut, na Praça da Lapinha. Data de 1923. Herma do Conselheiro Almeida
Couto, na praça do mesmo nome. Data de 1923. Herma do Barão de Macaúbas, na Avenida Joana Angélica. Data de 1924.
Herma do professor Carneiro Ribeiro, na praça do mesmo nome. Herma de Virgílio na Praça Carneiro Ribeiro. Herma de
Júlio David, na rua do mesmo nome. Panteão em honra ao general Labatut, em Pirajá. Data de 1919.

SANTA CASA DE MISERICÓRDIA

A sede da Santa Casa de Misericórdia encontra-se instalada numa das mais belas construções da Bahia. Possui um pátio
interno com magníficas arcadas. Uma escadaria trabalhada em mármore colorido de pequenos pedaços embutidos. Arcadas de
mármore policrômico. No pátio encon- tra-se uma imagem em cuja base existe uma fonte. Ainda podem-se ver aí os cortes
feitos na pedra pelas cordas com que os escravos puxavam água. Desta fonte parte um subterrâneo. Nos pátios desta casa
funcionava um mercado de escravos dos mais importantes da cidade. Na fachada do prédio, na Rua da Misericórdia, vê-se um
nicho com uma imagem.
MUSEU DO ESTADO

O Museu do Estado instalado na residência do Governador Góis Calmon, Francisco Marques de Góis Calmon, está
situado na Avenida Joana Angélica, 198 (Bairro de Nazaré), muito próximo do centro da cidade, local dos mais populosos
com a característica de abrigar grande densidade de população escolar e universitária, Nas imediações do Museu estão os
Ginásios da Bahia, Severino Vieira, N. Sª Auxiliadora, Colégio dos Salesianos, Faculdade de Filosofia da Universidade da
Bahia, Faculdade Católica de Filosofia e Engenharia Eletro-Mecânica. Casa de Educação e Cultura presta à juventude dá
cidade a sua participação na vida educativa, facilitando em horários próprios a visitação das coleções.

O Museu do Estado está constituído de valioso acervo composto das diversas coleções de Imaginária, Mobiliário;
Prataria e Ourivesaria, Cerâmica, Numismática, armaria, etno- grafia e uma grande pinacoteca.

Destacam-se dentre as coleções as numerosas peças de cerâmica da Companhia das índias e a coleção de mobiliário que
possui belíssimos exemplares dos séculos XVII, XVIII e XIX.

A Pinacoteca, formada em grande parte da antiga Galeria Abbott, coleção do Conselheiro Jonathas Abbott, formada no
século XIX, possui telas originais de muitos pintores baianos no século passado, como Theofilo de Jesus, Franco Velasco,
Lopes Rodrigues e outros bem como muitos exemplares das escolas italianas dos séculos XVII e XVIII.

O Museu do Estado está aberto à visitação do público diariamente em dois turnos, das 9 às 12 horas e de 14 às 18 horas,
fechado apenas aos domingos pela manhã. Na sua direção encontra-se o poeta e crítico de arte Carlos Eduardo,

LICEU DE ARTE E OFÍCIOS

Em 1872, de passagem na Bahia, o Imperador lembrou a necessidade da fundação de uma organização de artesãos.
Nasceu assim o Liceu de Artes e Ofícios que funciona numa antiga casa nobre na Rua Guedes de Brito. No hall de entrada
pode-se ver ainda a "cadeirinha” na qual o nobre passeava na cidade. Penduram-na no teto para admiração dos que passam.
Do hall parte larga e bela escadaria. Ao lado da casa, semi-oculta por uma porta, encontra-se uma cruz ante a qual paravam,
antigamente, todas as procissões que por aqui passavam.

CENTRO OPERÁRIO DA BAHIA

O Centro Operário fica na Rua Gregório de Matos. O edifício é dos mais interessantes. Possui no interior colunas
salomônicas.

TERCEIRO CARTÃO DE VISITAS

O “bicheiro” aproximou-se da mesa e distribuiu cartões de visita:

FREDERICO DOS SANTOS

(Maroto)
CORRETOR ZOOLÓGICO

Rua do Pavão, dezena 63

Fone (invertido) — 7205

DUAS NOTÍCIAS DA COLÔNIA

Um ex-soldado, irmão de José da Silva Barros, escrevia um diário onde anotava os acontecimentos importantes da cidade
e de sua vida particular. O diário abrange de 1809 a 1828. Uma notícia de 1810:

“Em 5 de outubro, o Comerciante Friandes professou no Convento do Desterro duas filhas q. ahi tinhão entrado, fazendo, uma pomposa função no dito
Convento, com assistência do Exmo. Sr. Conde dos Arcos, e a Senra. Condessa do Conde da Ponta, e mais pessoas nobres, e povo, com um grande aparato nunca
visto, havendo à noite fogo, e uma grande iluminação, entrando também na mesma ocasião uma Sobrinha do dito, houve grande jantar e á tarde um copo de agoa,
além de um Palanque que tinha para mais de tresentas pessoas, cujo Palanque forrado por fora de damasco, e por dentro de murim, e uma mui rica armação da
Igreja, enfim coisa mais rica e estupenda.”

Uma notícia de 1816:

“Em 24 de agosto pregou-se na praça o Pastoral contra os Negros, vindo do Rio de Janeiro pr. ordem regia pa. q*. todo negro cativo q*. fosse encontrado de
noite depois das 9 horas, ir apanhar cento e cincoenta açoutes na grade da Cadeia, igualme. pa. elles não andarem em ranxos pelas ruas com a pena de todos os q*.
assim fossem encontrados apanharem os ditos açoutes de cento e cincoenta; trasidas todas novidades pelo Senr. Felisberto, Inspetor do Rio de Janeiro; e o Major do
Primeiro Regimento. Antonio José Soares, entregue de todas as rondas da Cidade pa. dar conta de todas estas execuções feitas o q*, elle executou a risca.”

RECEITA DE FEITIÇO

Se o vosso amante, ó jovem triste, fugiu nos braços de outra, se ainda o amais e desejais tê-lo de volta e ver humilhada a
vossa rival, então colocai num lugar, por onde ela com certeza passe, o seguinte “despacho” absolutamente infalível no dizer
de pais-de-santo amigos, indiscutidas autoridades em matéria de feitiço:
“Farofa amarela (farinha e azeite-de-dendê) à qual se mistura um objeto de uso pessoal da zinha, de preferência uma calcinha, cabelos do sovaco da dita cuja,
quatro vinténs, devendo ser um deles furado no centro, penas de um galo preto sacrificado a Exu (o sacrifício deve ser, se possível, realizado num candomblé por um
pai ou mãe-de-santo, o sangue do galo derramado sobre o fetiche de Exu), tudo isso embrulhado em papel de jornal, amarrado com cordão e posto entre duas velas
acesas no lugar onde a condenada tenha de passar.”

O mais certo é que a vossa rival morra de alguma doença ruim. Não há caso desse despacho ter falhado.

A INTÉRPRETE

Pela manhãzinha a casa pobre de Donaninha de Bom Jesus parece consultório médico ou escritório de advogado de
grande clientela. Vêm as vizinhas sem exceção, gente das ruas próximas, mas existe também quem tome o bonde
exclusivamente para contar seu sonho da noite anterior a Donaninha de Bom Jesus que não cobra nada pela consulta.
Donaninha é uma intérprete de sonhos e ninguém como ela, que jamais leu Freud, para descobrir no emaranhado do vosso
sonho o “bicho” do dia no qual joga toda a freguesia. Inclusive Donaninha de Bom Jesus. A velha chega e narra:

— Sonhei que tava no mato e veio uma cobra grossa em cima de mim. Eu não podia correr e a cobra foi chegando. Mas
quando tava perto eu vi que era uma cobra mansa que até sorria de tão boazinha...

Donaninha de Bom Jesus pensa um minuto:

— Cobra mansa? Ora, que bobagem. Cobra mansa, minha filha, só pode ser mesmo elefante...

— Elefante?

— Taí, se é... Cobra mansa é tromba de elefante. Hoje vai dar elefante...

Todo mundo joga no elefante.

HOSPITAIS

Possui a Bahia os seguintes insuficientes hospitais:

“Hospital Santa Isabel, com 450 leitos; Hospital São Jorge, com 10 leitos; Hospital Sanatório Santa Teresinha (para
tuberculosos), com 300 leitos; Hospital Getúlio Vargas, com 85 leitos; Hospital Sagrada Família, com 43 leitos; Hospital
Couto Maia, com 122 leitos; Hospital Juliano Moreira, com 700 leitos; Hospital da Cruz Vermelha Brasileira, com 77 leitos;
Hospital para crianças Alfredo Magalhães, com 50 leitos; Hospital Português, com 150 leitos; Hospital Militar da 6ª Região,
com 88 leitos; Hospital da Força Policial, com 83 leitos; Sanatório Espanhol, com 72 leitos; Sanatório Bahia, com 30 leitos;
Hospital-Ambulatório Santa Luzia, com 25 leitos; Leprosário Rodrigo de Meneses, com 90 leitos; Maternidade Climério de
Oliveira, com 105 leitos”. E só.

Existe uma deusa das águas, de nome lá, a mais antiga das deusas negras dos mares, cujo culto foi trazido para a Bahia
pelos negros “galinhas”, raça já desaparecida. Segundo informam, apenas num candomblé, no mundo inteiro, no candomblé da
finada Aninha, era mantido o culto desta deusa.

Certa vez Aninha me levou à casa de Iá, no seu candomblé. Era uma cabana alva, de uma só peça dividida ao meio por
um muro onde se abria uma porta. Uma cortina branca fechava a porta aos olhares indiscretos. Uma lamparina iluminava a
primeira sala. Para além da cortina que fazia de porta estava Iá, a deusa, seu fetiche. Aninha levantou a cortina, um negro
iluminou da primeira sala o interior da segunda, de moradia da deusa dos negros “galinhas”. Entramos. Uma fonte coberta com
outra magnífica toalha rendada. Aninha levantou a toalha e eu pude ver a deusa que era uma fonte brotando do chão, de água
puríssima. Era Iá, uma nascente de água!

MEDICINA

O rapaz que escrevia foi ver o médico para um tratamento contra sífilis. Após os devidos exames constataram três cruzes.
O médico baianíssimo antes de iniciar o tratamento disse ao cliente:

— Você tem certeza que vale a pena? Quem sabe se sua inteligência não provém exclusivamente da sífilis?

E, ante o espanto do cliente, contou:

— Vivia no Largo dos Aflitos, antes que este Largo se chamasse Praça Padre Aspilcueta — por falar nisso, você sabe
quem foi o padre Aspilcueta? Nem eu tampouco... — vivia ali, como eu ia dizendo, um homem que era exemplo de bondade.
Coração tão bom nunca se viu. Imagine que não podia ver enterro. Era passar caixão de defunto pela rua e o nosso homem caía
no choro. “Coitadinho!”, dizia comovido. Tomava o chapéu e, com ele na mão acompanhava o enterro, tão triste que parecia
parente do morto. Até lhe davam os pêsames pensando que ele fosse o viúvo ou o filho inconsolável. Não podia ver também
cachorro leprento pela rua que não trouxesse para casa. Dava esmola a quanto pobre passava. Um dia resolveu fazer um
tratamento contra sífilis. Começou. Menino, aquela bondade toda, que já era célebre nos Aflitos, desapareceu inteirinha. Hoje,
curado, o homem é ver um cachorro leprento e tome pontapé. Passa um enterro e ele nem liga. Só faz dizer da sua janela: “Que
se dane... Ficou tão ruim que ninguém acredita...

E fitando o cliente:

— Você acha mesmo que vale a pena?

CAPOEIRA E MEDICINA

Um médico jovem resolveu aprender capoeira. Começou a estudar com um dos “bambas” da luta de Angola. No terceiro
treino o médico ficou com uma dilatação na aorta.

CEMITÉRIOS

O cemitério do “Campo Santo” é o mais importante da cidade. Há também o das “Quintas”, cemitério da gente pobre. Os
ingleses possuem um cemitério seu na Ladeira da Barra.

CLUBES DE FUTEBOL E REGATAS

Disputam o campeonato de futebol profissional na cidade os seguintes clubes: Ipiranga, apelidado “O Popular”, Guarani,
Bahia, Vitória, Botafogo, Galícia, este último da colônia espanhola, o Fluminense, de Terra de Sant'Ana. O S. C. Bahia, foi
campeão do Brasil em 1959.

Concorrem às regatas (esporte bastante popular na cidade) o Itapagipe, o São Salvador, o Vitória e o Santa Cruz.

TRÊS VENDEDORAS “ BAIANAS”

Damásia da Conceição vende pipocas, frutas e acarajés em seu tabuleiro, vestida com suas roupas de “baiana”, há quase
40 anos e sempre no mesmo lugar: na porta da Escola de Belas-Artes. Damásia mora ali pertinho, no Beco do Mamão.

Outra negra que vende cocada-puxa há mais de vinte anos é Maria da Anunciação com freguesia certa numa das esquinas
do Terreiro. Outra é Quitéria Brito, há já um bom quarto de século com seu tabuleiro dé doces baianos na Baixa dos
Sapateiros.

SUBTERRÂNEOS
Vários subterrâneos existem na cidade, partindo em geral de igrejas e conventos, e em torno deles a imaginação popular
teceu uma série de lendas. Dizem de uns que são esconderijos de tesouros de padres, principalmente dos jesuítas. De um
subterrâneo existente em Itapoã narra a lenda que servia de esconderijo para um negociante de escravos que continuou com
seu comércio infame mesmo após a proibição. Ali ele escondia a “mercadoria” recém-chegada da África. Falam de
subterrâneos feitos para servirem a revoltas e falam também e insistentemente daqueles que comunicavam conventos de frades
com conventos de freiras...

Alguns dos subterrâneos mais importantes são os que partem da Catedral, o do convento de Santa Teresa, um na Rua do
Fogo, um na Rua Carlos Gomes, no quintal da antiga Casa de Orações dos padres jesuítas. Existem também na Fonte Nova, no
Colégio de São Joaquim, no Tabuão, na Ladeira do Inferno, na Roça do Godinho, no Castelo do Diabo e na fortaleza de Santo
Antônio. Em torno deles trabalha a imaginação popular.

No subterrâneo do Tabuão dizem ter-se escondido certa vez o tribuno republicano Silva Jardim perseguido pelos esbirros
da monarquia.

NOTICIA DE IMPRENSA

“A Máscara”, revista mensal de Salvador, publicou em seu número de outubro de 1944, sob o título de “Um poeta
esquecido”, a seguinte notícia:

“Nesta velha Tomé de Sousa, quem não conhece o poeta e repentista Álvaro Martins, em todas as camadas sociais? Tipo
legítimo do vate antigo, cabeleira luzidia à Castro Alves, cuja conformação da cabeça se assemelha à desse imortal cantor dos
escravos, o Álvaro Martins já teve, nesta capital e no recôncavo, a sua fase, o seu apogeu.

Era de vê-lo, nas festas cívicas, nas praças públicas, cabeleira ao vento, a recitar versos de seu fecundo estro ou a dizer
belíssimos discursos, que eram sempre aplaudidos, com verdadeiro entusiasmo, pela multidão. Modesto, de uma popularidade
surpreendente, o Álvaro Martins goza também de larga estima na repartição onde empregou toda sua mocidade e velhice.

No tempo dos seus triunfos literários, obteve duas glórias segundo expressão sua: tuna o ser abraçado pelo conselheiro
Rui Barbosa, quando da sua excursão política pelo Norte; e a outra o de ser osculado na fronte pelo célebre aviador lusitano
Sacadura Cabral, ao terminar uma formosa poesia sua, exaltando o ousado feito dos ases do país amigo, quando das festas do
centenário.

Conhece e fala três línguas, não é formado; mas tem pronunciada cultura e largo descortínio em todos os campos aa
atividade intelecto-administrativa.

Sem sorte, porém, como acontece em geral com os literatos, sempre marcou passo na burocracia, onde siste- maticamente
não se dá valor a quem o tem.

Álvaro Martins possui incontáveis produções literárias, na maioria sonetos da escola condoreira. Jamais se lhe ofereceu
oportunidade de publicar um livro, sequer; tendo, no entanto, bagagem suficiente para vários livros.

Álvaro Martins, porém, com essas preclaras credenciais, vive esquecido.

Em homenagem ao seu valor literário, a “A Máscara”, com prazer, lembra à Bahia ilustre e artística o grande poeta
repentista.

São do Álvaro Martins estas sentimentais estrofes:


Saudade!... Lágrima triste

De Mãe ajoelhada
Na sepultura onde existe

Pálida sombra e mais nada.

Irmã de um bem que reparte...

A Dor que nos mortifica,

Triste exilio de quem parte —

Desolação de quem fica!...


REVOLUÇÕES

Inquieta cidade revolucionária! Aqui os poetas trouxeram sempre palavras de combate e de revolta nos seus versos desde
Gregório de Matos a Castro Alves, de Junqueira Freire a Jacinta Passos. Os tribunos pregaram as largas ideias, daqui saiu Rui
Barbosa. Vive nas docas a memória do grevista João de Adão.

Era ainda o governo Duarte da Costa, segundo governador -geral, e já índios reduzidos à condição de escravos pelos
portugueses recém-chegados, sublevam-se. A vida nas imediações da jovem cidade tomou-se impossível. O filho do
governador, Álvaro da Costa, conduzindo tropas bem armadas venceu um combate em Pirajá; os índios fugiram para as bandas
do Rio Vermelho. Ali continuaram a lutar até o combate decisivo de Itapoã quando os silvícolas foram obrigados à rendição.
Ao filho do governador foram dadas as terras dos índios revoltosos, além das honras que a Corte lhe conferiu. As índias
ficaram para os soldados portugueses bem armados.

Depois os negros vindos da África substituíram os índios na escravidão. Existem ainda alguns cretinos tão salafrários que
dizem que a abolição se deve à bondade da casa reinante do Brasil, ao suposto bom coração de Dom Pedro II e da Princesa
Isabel, sua filha. Isso é desconhecer não apenas as condições econômicas do Brasil de então, como esconder, criminosamente,
a longa batalha que os negros lutaram pela sua libertação. Foram muitos os levantes de negros em todo o Brasil. Nas senzalas
brasileiras não lhes corria vida tão doce como nos querem fazer crer certos historiadores interessados em apresentarem os
senhores de escravos como santos de auréola à vista. E os negros se bateram muitas pela sua libertação. Como esquecer a
epopéia imortal de Palmares?

Sucederam-se na Bahia os levantes de negros. As crônicas da época estão cheias de notícias iguais a esta, de um cronista
pouco ilustrado, sobre levantes iguais ou maiores: “Em 4 de janeiro de 1809, em uma quarta feira, levantarão- se os Negros
Africanos nesta cidade, de q*. se teve notícia no dia de quinta feira pelos grandes estragos q*. eles iam fazendo pelos
caminhos da Boiada, queimando casas quantas encontravão nos mesmos caminhos, sendo o número dos ditos. Negros pa. mais
de tresentos, segundo listas das faltas q*. derão o Senres. dos ditos Negros, e logo no dia mediato vierão presos 30 além dos
feridos pela grande resistência q*. fiserão, e da mesma forma nos mais dias sendo muitos presos; e também fiserão o mesmo
levante em Nasareth das Farinhas, donde também muitas mortes caso extraordinário, q*. logo o Senr. Conde, Governador
desta cidade deo ordem q*. matassem a todos quantos se não quizessem entregar — Conde da Ponte —, sendo castigados os q.
não eram cabeças, a correr pelas ruas tanto fêmeas como machos, no serviço do desentulho da praça da quitanda de S. Bento
donde depois foi a casa da opera”.

Ainda não havia transcorrido um ano e já os negros se levantavam outra vez, em fevereiro de 1810. 150 açoites levou
cada um dos que se levantaram, excetuando os cabeças cujo triste fim podeis imaginar.

Em 1826 um grande levante de negros abalou novamente a Bahia. Durou vários dias de encarniçada luta entre os negros e
a tropa e só quando foi preso o chefe dos revoltosos, a quem haviam dado o título de Rei dos Negros, é que voltou a cidade à
calma habitual. O chefe negro só foi feito prisioneiro quando já não podia lutar, todo crivado de balas. Esse levante foi a 25
de agosto de 1826 e já em 17 de dezembro do mesmo novamente os negros tomaram das armas roubadas aos senhores. Em 11
de março de 1828, novo levante. E assim, heroicamente, tenazmente, lutavam os negros pela sua liberdade.

Em 1832 houve a grande revolta dos negros malês. Negros com um nível de cultura em muitos pontos superior ao dos
senhores de escravos, maometanos, ligados à mãe-pátria, os malês eram uma força e em 1832 levantaram-se contra sua
desgraçada condição de escravos. Chefiava a revolta o alufá Licutã e mais de mil e quinhentos negros puseram-se às suas
ordens. A luta foi das mais sangrentas e a revolta dos escravos malês terminou afogada em sangue. Os senhores de escravos
vingaram-se de maneira violenta, castigando barbaramente os negros revoltosos.

De toda essa agitação nasceu a “Sabinada” que pedia a “República da Bahia”. Sob a chefia do dr. Sabino Alvares da
Rocha Vieira, a grande revolta baiana foi precedida, em 1798, por um levante de mulatos que desejavam a “República
Bahiense”. Quatro desses conspiradores morreram na forca, na Praça da Piedade. Os demais foram deportados para Angola.
O que é marcante na Sabinada é o seu caráter acentua- damente democrático e popular. O movimento revolucionário
baiano teve o apoio das massas pobres e foi combatido pelos latifundiários, pela aristocracia do açúcar, pois trazia esta
revolução o germe de novas ideias sociais. Foi talvez o movimento revolucionário de tendências mais populares de quantos se
processaram no Brasil de então. Lutaram bravamente os revolucionários mas foram finalmente vencidos.

Na Bahia foi arcabuzado o Padre Roma. O herói da Revolução Pernambucana fugiu para a Bahia e seu sangue ilustre
correu no Campo da Pólvora. Também ele, o padre rebelde, o bravo revolucionário, está ligado à Bahia.

E na Bahia deram-se as batalhas da Independência. Quando Pedro I declarou o Brasil desligado de Portugal foi em terras
baianas, na capital e no recôncavo, que se ganhou a Independência. Correu sangue do povo baiano para que a liberdade fosse
uma realidade no Brasil. Um ano depois da proclamação da Independência estavam os baianos expulsando os últimos
soldados portugueses que ainda tentavam manter sob o jugo de Portugal o país do Brasil. Em 2 de julho de 1823 as tropas
libertadoras entraram triunfantes na cidade da Bahia.
AS LUZES DE MATARIPE

Na noite da Bahia, de inumeráveis estrelas sobre o mar, uma luz nova, além da lua sobre os saveiros e o forte velho, fulge
na distância, rasgando a escuridão. É um clarão de fogo subindo pelo céu, vermelho, lá no fundo do golfo, às margens do rio
Paraguaçu,

Ah! para que pudesse essa luz brilhar na noite da Bahia, muito foi necessário fazer, muito teve o povo de lutar, através os
anos, por vezes duramente, enfrentando a reação brutal, a cadeia, as pelejas de rua contra a polícia, sobretudo nos tempos do
Estado Novo. Aquele clarão iluminando a noite vem das refinarias de Mataripe, é o petróleo da Bahia, riqueza do povo
brasileiro.

Muitos homens foram parar no xadrez, e entre eles o escritor Monteiro Lobato, porque ousaram afirmar a existência do
petróleo no Brasil. Os americanos da Standard Oil diziam que o petróleo não existia em nossa terra e toda a polícia da
ditadura mobilizava-se para garantir a “verdade” ianque dos trustes. Mais poderosa, porém, que o dinheiro para comprar
consciências e homens do governo, que a perseguição, as prisões e os processos, foi a luta do povo.

Vencida a primeira batalha, iniciou-se a segunda. Já não negavam as companhias imperialistas a existência do petróleo.
Ao contrário: agora eram as primeiras a afirmar ser nosso país rico como poucos em ouro negro. Apenas queriam para si a
exploração dos poços, queriam roubar-nos nossa riqueza.

O povo lançou-se outra vez às ruas, na campanha do “O petróleo é nosso”. Novas batalhas, novas lutas, novas prisões,
processos, perseguições. E, finalmente, nova vitória do povo com a aprovação da lei do monopólio estatal do petróleo e a
criação da Petrobrás. Este clarão de fogo na noite da Bahia vem de Mataripe, das instalações da Petrobrás, do petróleo
baiano. A nova estrela a iluminar as trevas foi ali colocada pelas mãos do povo.

Aos visitantes da cidade é indispensável um passeio a Mataripe. A Petrobrás possui, na cidade, excelente serviço de
relações públicas e providencia, com presteza e boa vontade, a visita daqueles que desejam ver a realidade do futuro do
Brasil.
FEIRAS-LIVRES

A feira de Água dos Meninos é uma festa noturna e semanal. Realiza-se no sábado à noite e na manhã do domingo." Os
saveiros vindos das pequenas cidades do Recôncavo descansam no porto em frente à feira, onde barracas se levantam para a
venda de todos os produtos baianos.

Tem quem só vá à feira passear. Negros, mulatas, marítimos, gente grã-fina que vem comprar, acotovelam-se ante as
barracas que vendem a melhor comida baiana em pratos de flandres. Num canto alinham-se as panelas de barro, os moringues,
os potes, as esculturas populares (burrinhos, imagens de São Cosme e São Damião, brinquedos para meninos), as jarras, todos
os trabalhos que os camponeses fabricam com o barro da terra dadivosa do Recôncavo. Sapatos vindos de Feira de Sant’Ana,
alpercatas, chinelos, sapatões vermelhos que os negros adoram.

É uma festa. Os coloridos vestidos das ‘‘baianas”, os tabuleiros de frutas, doces e acarajés, os montes de abacaxis e
melancias maduras, as gargalhadas do povo negro, as piadas trocadas entre marítimos e mulatas, o sarapatel fervendo nas
panelas, os cegos cantores que pedem esmola, as barracas de bugigangas que atraem os capoeiras e cozinheiras, as barracas
que vendem material para os ritos das macumbas, pedras e ervas, búzios e fetiches, os montes de frutas.

Próximo à feira de Água dos Meninos existia até há bem pouco tempo outra feira famosa. Era a feira do 7, em frente ao
Sétimo Armazém das Docas, onde é hoje a Base Baker dos americanos. Célebre pelos barulhos, desordens colossais. Era a
predileta dos Capitães da Areia. Os meninos sem lar dominavam a feira do Sete, praticando ali todas as estrepolias
imagináveis.

Extinta também, ou pelo menos em absoluta decadência, está a feira das Sete Portas no largo do mesmo nome. Em seu
lugar ergueu-se um mercado. A feira das Sete Portas celebrizou-se pelas comidas que eram ali vendidas e como ponto de
reunião dos capoeristas que não deixavam a feira terminar sem mostrar suas habilidades no “rabo-de-arraia”.

A feira do Porto da Lenha, em Itapagipe, realiza-se à noite. Também ali saveiros e canoas descarregam produtos vindos
de cidades próximas. Também ela tem um ar de festa, se bem não se possa comparar à de Água dos Meninos.

Outras feiras dignas de menção são a do Curtume, no Largo da Conceição, em frente à Penitenciária. A do Porto de Santo
Antônio, na Barra. A do Cabeça, no Largo Dois de Julho, onde assassinaram Horácio de Matos, afamado caudilho sertanejo,
político nas Lavras onde dominava cidades inteiras, feito patente do Exército nos tempos da Coluna Prestes quando se uniu a
diversos outros políticos do interior para a perseguição aos revolucionários sendo, como os demais, várias vezes derrotado.
A do forte de São Pedro defronte ao forte, atualmente muito concorrida devido ao seu comércio de peixes. A do Largo do
Tanque e de Plataforma.
FONTES

Várias fontes restam ainda pela cidade, sobradas dos tempos antigos, algumas em ruínas, outras servindo todavia ao povo
a água pura e límpida.

No farol da Barra está a Fonte de Iemanjá ou a Fonte da Mãe-d’Água. Fica em meio às pedras da praia, quase dentro da
água e quase em ruínas. No entanto ainda vem gente, de pote à cabeça, buscar água ali, naquela guarida de pedra onde dizem
que também habita Inaê nos dias que se cansa do mar.

A fonte da Cruz do Pascoal, em Santo Antônio, data dos tempos coloniais e ergue-se em azulejos azuis, magníficos. No
alto a imagem de Nossa Senhora do Pilar iluminada por uma lamparina de azeite.

Muitas das fontes da Bahia são verdadeiras obras de farte e uma visita às mais belas deve fazer parte de qualquer
programa turístico. Vale a pena visitar pelo menos as se guintes: a do Queimado, na Baixa da Soledade; a do Gravatá, no
Gravatá; a de Gabriel, no Largo 2 de Julho; a de São Pedro, no forte do mesmo nome; a das Pedras, na Ladeira da Fonte das
Pedras; a das Pedreiras, na Jaqueira; a do Tabuão, escavada no morro, no antigo Caminho Novo; e a de Santo Antônio, no
Largo de Santo Antônio.
MERCADOS

O Mercado Modelo é um mundo. Em frente ao cais de saveiros, o cais Cairu, um casarão sem gosto e enorme. Por detrás
fica o Elevador Lacerda. Na rampa do cais as frutas baianas são vendidas, enchendo o chão, em cestos que chegaram nos
saveiros. Na praça Cairu descansam carrega- dores e marítimos. Os carregadores trazem cestos na mão, prontos para
atenderem a qualquer chamado das senhoras elefantes que vêm buscar no Mercado Modelo a carne-de-sol, o peixe, as
galinhas, as frutas.

Todo um lado do Mercado é dedicado ao peixe. Mariscos de variadas qualidades, camarões e lagostas, arraias e polvos,
cação e garoupa. Do outro lado a carne-seca e de sol, a carula de fumeiro, os miúdos de porco, todos os ingredientes
necessários a uma verdadeira feijoada baiana. Tem tudo que um Mercado costuma ter. Mas tem muito mais também. Onde, se
não no Mercado Modelo, podereis comprar as figas que vos livrarão de todo mal, as bonecas baianas que é recordação
indispensável de passagem ou de uma estada na cidade, os fetiches para os candomblés, as ervas necessárias para os feitiços
fortes, as redes magníficas, as cestas trançadas, os panos de costa, os búzios para as roupas de Santo?

Se procurardes bem encontrareis igualmente o vendedor de maconha que se esconde da polícia. Ali podereis conhecer o
Cuíca de Santo Amaro, o poeta, e aos seus versos mais populares. Encontrareis pai-de-santo em busca de galos para sacrificar
aos deuses ou de pedras rituais. Encontrareis mestres capoeiristas de quando em vez exercitando-se. Dois restaurantes servem
boa comida baiana, além da que é vendida em pratos de flandres pelas donas dos tabuleiros, onde o amarelo vatapá contrasta
com o negro efó. Ali sabereis das festas populares, dos candomblés que baterão nesta noite, das viagens aos saveiros, ali
encontrareis as mais belas negras vendedoras da Bahia com seus turbantes e suas anáguas ao lado dos fogareiros para frigir os
acarajés.

O Mercado Modelo é um mundo. Sua população não se confunde com nenhuma outra, seus interesses são próprios, e aqui
árabes, portugueses, espanhóis, italianos que ali negociam são dominados inteiramente pelas crenças dos negros, sua religião,
suas histórias e lendas, suas lutas e suas festas. Aqui São Jorge se chama Oxóssi e Senhor do Bonfim é apenas Oxolufã.

Já o Mercado de Santa Bárbara, na baixa dos Sapateiros, tem mais imundície que mistério. Sob a proteção de Iansã,
celebra festivamente o dia da sua santa em comemorações que abalam toda a rua e as proximidades até o Pelourinho. E um
mercado sujíssimo, servindo uma zona imensa da cidade.

O Mercado do Ouro é de atacadistas e fica na Praça do Comércio, em frente à Base Baker. É um grande mercado de
farinha de mandioca e de açúcar.

Na Água dos Meninos, em frente à feira, fica o Mercado Popular. E no Largo das Sete Portas, um mercado substitui hoje a
antiga e popular feira. Para ele mudaram-se as barracas de Mariquinhas e Vavá, admiráveis preparadoras das comidas
baianas com ampla e fiel freguesia entre os boêmios e os malandros.
MEIOS DE CONDUÇÃO

Em 1930 o povo tocou fogo em cerca de 60 bondes da Companhia Linha Circular de Carris da Bahia. Grande era a raiva
do povo contra a companhia imperialista que cobrava caro e servia mal. Resultado: a Circular acionou o governo, ganhou a
questão, recebeu o dinheiro e não colocou novos bondes. Assim durante bastante tempo a cidade do Salvador foi uma das mais
mal servidas de transportes urbanos de todo o Brasil. Hoje, a Circular já não possui o truste dos transportes, como
antigamente. Já não circulam bondes na cidade.

Atualmente o serviço de transportes urbanos está com a CMTC. A cidade baixa já é servida por ônibus elétricos,
confortáveis e rápidos. Tanto na cidade alta, como na baixa, quase todo o transporte urbano é feito através de ônibus e
lotações, que na Bahia são chamados de “marinetis”. Tam- bém os automóveis, nas horas de maior aperto de trânsito,
transformam-se em lotações, levando cinco passageiros. Várias praças de taxis nos principais pontos servem a cidade.

A ligação entre a cidade alta e a baixa é efetuada através do Elevador Lacerda, o Plano Inclinado Gonçalves (o “Xariô”,
como é mais conhecido), o Plano Inclinado do Pilar e o Elevador do Tabuão.
ESTAÇÕES E AEROPORTOS

ESTAÇÕES

Apenas uma estação de estrada de ferro: a da Calçada.

Chegam e partem os trens da Leste Brasileira. Chegam de Sergipe, são habituais os atrasos e os passageiros já não se
aborrecem. Propriá, cidade sergipana na margem do São Francisco (muito próxima ao local onde foi assassinado Lampião), é
o ponto terminal da linha Bahia-Sergipe. Outra linha vara o sertão em busca da cidade de Juazeiro, no médio São Francisco,
típica cidade sertaneja, de onde parte a navegação fluvial para Pirapora e Barreiras. Um ramal desta linha se dirige para
Jacobina.

Da Calçada saem também os trens suburbanos, além das composições para Alagoinhas e Santo Amaro. A estação fica na
cidade baixa, a meio caminho para Itapagipe, e diante dela passam obrigatoriamente todos os bondes que servem as diversas
linhas desta parte da cidade. Uma linha de ônibus dirige-se da Calçada para São Caetano, passando os veículos nas
proximidades do candomblé da Gomeia. Uma linha de bondes liga a cidade-alta à estação da Calçada.

A estrada de ferro de Nazaré, que alcança Jequié, no alto sertão, não traz os seus trilhos até a capital. Os passageiros
desembarcam em São Roque onde um pequeno navio da Companhia Baiana os conduz para a cidade, numa viagem de três
horas.

AEROPORTOS

O movimentadíssimo aeroporto de 2 de Julho fica a 40 minutos de automóvel do centro da Cidade. Uma estrada bem
asfaltada serve aos viajantes que descem e sobem dos aviões. Quase todo o tráfego aéreo é hoje feito através desse aeroporto
onde existe também uma base da FAB.

Um outro aeroporto, na Ribeira, servido por ônibus, é destinado aos hidraviões. Hoje seu movimento é muito pequeno,
quase nenhum, pois é diminuto o tráfego de hidros.
JORNAIS

Possui a cidade do Salvador quatro jornais diários. Dois matutinos e dois vespertinos. Ainda há poucos anos, existia na
imprensa baiana uma curiosa contradição: os vespertinos eram jornais mais pesados que os matutinos, eram mais graves, mais
solenes. Os matutinos apareciam mais leves, mais sensacionalistas, mais vibrantes. Hoje a situação mudou. Dois dos jornais
mais tradicionais da cidade desapareceram. Um deles era o velho “Diário da Bahia”, no passado folha de grande prestígio,
órgão de Rui Barbosa e de Muniz Sodré, a sustentar campanhas liberais, em longos artigos de fundo. Nesse jornal andei
trabalhando por volta de 1927, ainda ginasiano, com menos de quinze anos de idade. Recordo a figura de Muniz Sodré, então
seu diretor. Foi para comigo, menino metido a repórter, de uma bondade inesquecível. Trabalhei também em outro jornal de
grande tradição, hoje desaparecido: “O Imparcial”. Nele o panfletário Pinheiro Viegas publicou seus últimos artigos que,
pelos idos de 1927 e 1928, nós, jovens literatos nos bares da cidade, liamos deliciados. Quando na direção de Wilson Lins
(era então o jornal propriedade do Coronel Franklin), ali trabalhei, no tempo da guerra. Nessa época “O Imparcial” era o
órgão antifascista por excelência da cidade, vivo e movimentado, apenas pessimamente impresso (era uma velha máquina,
depois, creio, substituída). Contou “O Imparcial”, durante certo tempo, com a colaboração de Henrique Cancio e nele manteve
o atual diretor de TV, Demerval Costa Lima, uma seção intitulada “A Cidade”, que ainda hoje é recordada.

Os dois matutinos em circulação são o “Diário de Notícias” e o “Jornal da Bahia”. O primeiro pertence à cadeia dos
“Diários Associados” e é dirigido por Odorico Tavares, poeta pernambucano que se to rnou um baiano dos mais autênticos.
Odorico mantém uma coluna diária no jornal, ótima. O suplemento literário dos domingos é muito bem feito. O “Diário de
Notícias” foi fundado em 1875. Durante muitos anos foi vespertino. Durante certa fase, sob a direção do professor
Altamirando Requião, notabilizou-se pelo anticlericalismo. Era enorme, talvez o jornal de maior tamanho do Brasil. Como
matutino e órgão associado ficou menor e sofreu profunda transformação jornalística. Redação à Rua Carlos Gomes, numa das
casas mais bonitas da cidade.

O “Jornal da Bahia” foi fundado em 1958 por um grupo de jovens jornalistas, tendo a sua frente João da Costa Falcão, um
dos baianos mais empreendedores da atualidade. Seu lançamento representou uma renovação da imprensa baiana. Bom
serviço estrangeiro, com noticiário da cidade, colaboração da Bahia e do Rio. Crônicas de Vasconcelos Maia e Luiz
Henrique. Na chefia da redação, João Batista de Lima e Silva, experiente de muitos anos de jornal. Redação na Rua Virgilio
Damasio, 6.

Os dois vespertinos são “A Tarde” e o “Estado da Bahia”. “A Tarde” é o diário mais lido da Bahia. É um jornal
“provinciano”, no bom sentido da palavra. Um jornal feito em função da vida da cidade. Daí, sua influência, que se estende até
Sergipe, onde é mais lido do que os próprios diários locais. Jornal conservador, inimigo das manchetes berrantes, com boa
impressão. Fundado por Simões Filho, encontra-se hoje sob a direção de Jorge Calmon. Nela Giovani Guimarães assina com
suas iniciais uma seção muito lida e, cada dois dias, Wilson Lins, sob o pseudônimo de Rubião Braz, publica uma crônica
quase sempre mordaz e satírica, sempre muito boa. Redação na Praça Castro Alves.

“O Estado da Bahia” pertence também à cadeia dos “Diários Associados” e é dirigido também por Odorico Tavares. Seu
primeiro diretor foi Aliomar Baleeiro. Jornal vivo e ágil, como deve ser um vespertino.
HOTÉIS, RESTAURANTES, CABARÊS, CINEMAS,
RÁDIOS, TV, TEATROS

HOTÉIS

Salvador ainda é uma cidade pobre de hotéis para o movimento turístico que já existe. Pequeno é o número dos hotéis de
primeira, e ainda maior é a falta de hotéis de segunda tão necessários e úteis. Em geral, saindo-se dos três ou quatro de
categoria, o resto é uma tristeza.

Anotemos, entre os melhores: o Hotel da Bahia, construído no governo Otávio Mangabeira (projeto do arquiteto Bina
Foniat), uma das boas obras que a cidade ficou devendo ao baiano ilustre. Pena o que aconteceu durante a construção:
projetado para doze andares, não foi a construção além do oitavo, pensaram que com oito bastava e sobrava. Trata-se de um
dos mais belos hotéis do Brasil e um dos mais agradáveis. Fica no Campo Grande.

O Hotel Plaza, na Avenida Sete, também projetado por Bina Foniat (o que garante sua qualidade arquitetônica) é
considerado o de melhor serviço e o mais luxuoso da cidade. Bom restaurante.

Na Barra, o Grande Hotel da Barra, com ar refrigerado nos quartos e a vantagem da praia próxima. Muito bem situado.

Além desses três, pode-se acrescentar, entre os bons hotéis, o Xangô, na praia da Pituba, e o Themis, no centro da cidade,
ambos pequenos porém simpáticos.

Depois, temos os hotéis de segunda, dos quais os menos maus parecem ser o Palace, na rua Chile, e o Paraiso, este último
com uma bela vista sobre o mar. O mais, valha-nos Deus!

RESTAURANTE DE MARIA DE SÃO PEDRO

Se o turista deseja comer bem na Bahia deve tomar-se freguês do restaurante de Maria de São Pedro. Ali come-se
realmente a boa e verdadeira comida baiana, bem temperada e apimentada. A moqueca de siris moles é deliciosa, a moqueca
de peixe, um poema, sem falar na frigideira de camarão que apaixonava Cicero Dias.

A entrada do restaurante de Maria de São Pedro fica no lado do Mercado, que dá para a rampa do cais dos saveiros e a
porta serve ao mesmo tempo a uma barbearia, a uma banca de jogo do bicho e ao restaurante “Estrela-do-Mar”. Pode assim o
turista aproveitar para fazer a barba (se tem coragem), jogar no bicho (se tem um bom palpite) e almoçar (se quiser comer
bem). É aconselhável, porém, ir cedo. De onze e meia a meio-dia e meio já que o restaurante é afreguesado e rapidamente
desaparecem os melhores pratos. Maria de São Pedro, enquanto viva, e suas filhas e sucessoras agora, jamais quiseram
transformar a “Estrela-do-Mar” num restaurante turístico. Cozinham para sua fiel freguesia de muitos anos: doqueiros,
pequenos empregados no comércio, gente dos saveiros, comerciantes do Mercado. E escritores e gente de fora que ouviu falar
na qualidade dos quitutes de Maria.

Creio estarmos Odorico Tavares, Wilson Lins e eu na base da fama que o “Estr ela-do-Mar” adquiriu por todo o país,
tomando famoso o nome de Maria de São Pedro. Fomos, penso eu, dos primeiros a frequentar o restaurante e a celebrar-lhe a
comida. Maria era uma criatura excelente, boa amiga, e sua morte em 1958 foi sentida por toda a cidade. Suas filhas
continuam a grande tradição deixada por Maria. Realmente ali come-se bem a melhor comida do mundo que é a baiana. Antes
de subir ao restaurante, vale a pena tomar uma “lambreta” (cachaça e ostras) no mercado.

OUTROS RESTAURANTES

Onde ainda pode-se comer bem? O Restaurante na Ondina tem melhor vista que boa comida. Não que seja má mas
poderia ser mais autêntica. No Chez Buillon, na Ladeira da Barra, a cozinha internacional, sobretudo a francesa, é razoável.
No Conquistador, na Barra, come-se um frango, especialidade da casa, da melhor qualidade. Na Lagoa do Abaeté come-se
bem, no único restaurante ali existente. No Jangadeiro, a lagosta é muito boa. Fica na Pituba. Duas churrascarias, ambas na
Barra: a Guanabara e a Gaúcha. Outros restaurantes, todos no centro da cidade: Nicolini, Cacique, Grapiúna. Na cidade baixa,
no Palácio do Chopp há um mal-assado com molho de ferrugem, que recomendo sem susto.

CABARÉS E BOITES

É pequena a vida noturna da cidade. Depois dos cinemas, vê-se pouca gente nas ruas. Apenas mulheres da vida e alguns
boêmios rodam pela Rua Chile e adjacências, após as onze horas da noite.

Ao lado do Cinema Guarani, na Praça Castro Alves, funciona o Tabaris, velho cabaré, com mulheres ainda mais velhas. É
um cabaré no velho estilo, com “atrações” e dança.

Umas quantas boites surgiram nos últimos anos. A mais célebre é o Anjo Azul, no Cabeça, numa velha casa, onde Carlos
Bastos pintou belos painéis. Foi fundada por um grupo de artistas e ainda hoje conserva certa fama vinda dos seus bons
tempos. Outras boites: Cloc, na Gamboa de Cima, com maravilhosa vista sobre o mar; XK Bar, na Vitória, Apache e Carijó,
na Rua do Paraíso, Marajó, na Rua Rui Barbosa.

Fora disso, uns cabarés tristes em ruas por detrás do Largo da Sé, e os “castelos” (pensões de mulheres) na Ladeira da
Montanha.

A GAFIEIRA DO BARÃO

Vale a pena visitar, na Rua Barão do Desterro, a Gafieira do Barão, num primeiro andar, onde dançam domésticas e
trabalhadores, às quintas, sábados e domingos. Ali encontram-se alguns passistas que dançam admiravelmente.

CINEMAS

Os cinemas existentes não estão, em geral, à altura da cidade. Os mais importantes são o Guarani, velho cine-teatro, na
Praça Castro Alves, o Gloria, na entrada da Rua Rui Barbosa, pequeno e quente, o Liceu, na Rua do Liceu, o Excélsior, no
Largo da Sé. Pertence aos padres que ainda possuem o Pax, o Popular e o Santo Antônio, cinemas de segunda linha. Os
demais, todos de segunda linha são: o Jandaia, o Aliança, o Liberdade, o Itapagipe, o Bonfim, os dois últimos na península de
Itapagipe, o Capri, no Largo Dois de Julho, o Tupi, na Baixa dos Sapateiros, o São Jorge, na Liberdade, o Cine Art, na Ajuda,
o Amparo, em Brotas, o São Caetano, em São Caetano, o Roma, no Largo de Roma, o Brasil, na Liberdade, o Rio Vermelho
no Rio Vermelho, e o Oceânia, na Barra.
RADIOS E TV

Três são as estações de rádio. A Rádio Sociedade que faz parte dos Associados, a Rádio Excélsior e a Rádio Cultura.
Neste ano de 1960, foi inaugurada a estação de televisão, TV Itapoã, também da cadeia dos Associados. Em sua direção está o
escritor Odorico Tavares.

TEATROS

No Campo Grande eleva-se hoje o monumental e belo Teatro Castro Alves, projeto do arquiteto Bina Foniat, construído
durante o governo Antonio Balbino. Às vésperas de sua inauguração, foi devorado por um incêndio, provocando enorme
comoção na cidade. Foi reconstruído e em breve acolherá peças, autores e público.

Além dele só existem a sala da Escola de Teatro, onde Martim Gonçalves tem feito levar boas peças, e, para os
espetáculos musicados uma pequena sala no Edifício Oceânia, na Barra.

E já que existem tão poucos teatros sobre os quais falar, falemos de um que existiu e era uma glória da cidade. Chamava-
se Teatro São João, ficava na Praça Castro Alves, e nele ressoou muitas vezes a voz altíssima do poeta clamando pelos negros
e pela liberdade. Uma parte da vida de Castro Alves encontra-se ligada a esse teatro desaparecido. Ali ele assistiu, menino
ainda, ao gesto de seu tio, o alferes João José, rasgando a punhal o pano de boca do palco que era uma alegoria aos feitos
portugueses, julgada pelo alferes insultante ao povo brasileiro. Ali o poeta declamou alguns dos seus maiores poemas. Aí
falou também para a multidão o tribuno Rui Barbosa, com seu verbo de fogo. Era um teatro ilustre, palco não apenas de peças,
comédias, dramas e tragédias, mas também de História, da verdadeira História do Brasil.

Além do São João, existiu um velho barracão intitulado Teatro Politeama, onde demoravam companhias de revistas. Mas
também o Politeama foi levado pelo fogo.
RECEITAS DE ALGUMAS COMIDAS AFRO-
BAIANAS

Quem tem razão é Dorival Caymmi, o cantor das graças da Bahia, o músico dos pescadores, dos negros, do povo pobre:
"Todo mundo gosta de acarajé,

mas o trabalho que dá

pra fazer é que é...”

Todo mundo gosta de abará, diz a canção do poeta baiano, mas ninguém quer saber o trabalho que dá... Realmente é
trabalhosa e difícil esta cozinha afro-baiana que marca tão agudamente a nação da Bahia. Temos uma cozinha nossa chegada
da África com os negros, misturada aqui pelos portugueses. Comidas com sonoros nomes africanos e um sabor peculiar de
azeite-de-dendê e pimenta. Eis aí, mais o leite-de-coco, os três elementos que dão personalidade própria à nossa cozinha.
Esse azeite amarelo de coco-de-dendê, essencial para grande parte dos pratos baianos, a pimenta-mala- gueta ou de cheiro que
se mistura à totalidade das receitas |e é servida em molho separado porque existem os baianos que gostam de muita pimenta na
comida e aqueles que só sabem comer com muita pimenta e mais alguma, o leite-de-coco para as moquecas, para o cuscuz,
requintando o sabor da comida baiana.

Outros ingredientes podem ser substituídos. O caruru devia ser feito com as folhas do caruru. Hoje o melhor caruru é feito
com quiabos. Mas, como substituir o azeite-de-dendê?

Transcreverei algumas receitas recolhidas de negras cozinheiras e mães-de-santo. Mas confesso humildemente que não
creio na sua eficácia para nenhuma dona de casa. O difícil não está no que se deve misturar para conseguir o prato saboroso.
Mas, sim, na própria mistura, em conseguir alguém apoderar-se dessa ciência que cada vez está mais circunscrita a um restrito
número de negros e mulatos e de donas de casa. Mesmo na Bahia, nos dias de hoje, não é em toda parte que se pode comer um
efó realmente gostoso, um xinxim de galinha com todas as regras da arte. Mesmo entre as baianas vendedoras de doces em
tabuleiros nas ruas já não é geral a boa cocada ou o manuê perfeito. Nas casas de família dia a dia vão rareando os pratos
baianos característicos, não porque a memória das receitas se tenha perdido mas porque já não existem em grande número
aquelas cozinheiras capazes de interpretar fielmente o espírito destas receitas.

O vatapá, por exemplo. É a mais popular das comidas baianas, a mais universalmente célebre, se bem não seja a mais
saborosa. Hoje, para se comer um bom vatapá na Bahia é preciso escolher. Ai daquele que pretender conhecer o precioso
sabor deste prato num restaurante da Rua Chile ou num dos seus hotéis... Mas no Mercado ainda encontrareis um vatapá à
altura das tradições baianas. Em meio ao grã-finismo ridículo, preocupado com a imitação malfeita da cozinha francesa,
perde-se o sabor admirável dos pratos baianos. Felizes daqueles que conseguem ainda uma cozinheira capaz de reproduzir
para alegria da boca e futuras lamentações do estômago e outros órgãos, definitivamente liquidados por esta comida quente e
gordurosa, uma cozinheira como a minha amiga Maria José que vende comida baiana pela madrugada no Largo do Teatro a
boêmios e choferes, prostitutas e gente que volta do trabalho.

VATAPÁ

Toma-se da flor-de-arroz e tempera-se com coentro, castanha de caju, gengibre, sal, cebola, amendoim, pimenta, hortelã-e
salsa. Tudo isso foi cuidadosamente ralado antes. Numa panela de barro cozinha-se o peixe, de preferência garoupa seca,
sendo mais ou menos essencial a cabeça do peixe para se conseguir um perfeito vatapá. Rala-se o camarão, especialmente as
cabeças, para juntar ao tempero da flor-de-arroz. Pode-se ralar o camarão juntamente com os demais temperos, sendo aliás
esta a maneira mais popular entre as cozinheiras baianas. Põe-se este tempero a cozinhar com o peixe e junta-se azeite-de-
dendê e leite-de-coco, deixando-se ferver. Retira-se do fogo ao ponto de angu. Descobrir este ponto, eis a dificuldade. E
importante que o vatapá não fique nem muito mole nem muito duro. Sutilezas que só certas cozinheiras percebem. No momento
de servir cobre-se com azeite-de-dendê quente. Deve ser servido na própria panela de barro em que foi cozinhado. Come-se
com pirão de arroz ou com acaçá.

ACAÇA

O acaçá é acompanhamento indispensável do vatapá. Sem ele o mais admirado prato baiano perde cinquenta por cento do
seu sabor. Toma-se do milho pilado (milho sem casca) e põe-se em água fria até que inche. Rala-se então, Tempera-se com
sal e leva-se ao fogo para cozinhar em água até ao misterioso ponto. Serve-se enrolado com bolinhos em folha verde de
banana. O acaçá bem feito fica quase transparente como uma geléia.

Além de acompanhamento do vatapá e de outras comidas baianas, o acaçá é servido também como refresco. Mistura-se
então leite ou água e açúcar até conseguir um refresco grosso, que de preferência deve-se servir gelado. Existe também o
acaçá de leite.

XINXIM DE GALINHA

Segundo os entendidos a galinha deve ser preta, se bem isso não nos pareça essencial. O essencial é que se cozinhe a
galinha em pouca água, com sal, camarões secos descascados e ralados, salsa, cebola e pimenta. Junta-se então azeite- de-
dendê e vai-se colocando água enquanto a galinha está cozinhando. Quando cozido juntam-se duas xícaras de azeite- de-dendê.
Refoga-se e serve-se.

SARAPATEL

Essa é a mais feia das comidas baianas e também das mais saborosas. Aferventam-se as tripas e os miúdos do porco
misturados e cortados em pedacinhos. Tempero: salsa, sal, louro, coentro, pimenta, cebola, alho, pimenta-do-reino, pimenta-
cominho, cravo moído. Tudo isso ralado. Temperados os miúdos deixa-se no molho até tomar gosto. Leva-se ao fogo para
cozinhar colocando aos poucos pequenas porções de água na panela. Aferventa-se o sangue do porco, esfarelando-o depois
dentro da panela. O sarapatel deve ser cozinhado de véspera.

FRIGIDEIRA DE CAMARÕES

Os camarões, de preferência secos, são temperados com coentro, sal, cebola, ralando-se tudo junto. Vão ao fogo numa
frigideira com azeite-doce. Depois de ligeiramente cozidos são cobertos com ovos batidos, levando-se então ao fogo para
tostar.

Devem ser servidos na própria frigideira. Enfeita-se antes de levar ao forno com rodelas de cebola. Comida com farinha,
acompanhada de cerveja bem gelada é a mais admirável das comidas.
MOQUECA DE PEIXE

O peixe, de preferência seco, fica durante uma hora num tempero de coentro, cebola, pimenta, hortelã, salsa, tomates, sal.
Vai ao fogo em pouca água e quando está quase cozido junta-se o azeite-de-dendê. Deve ser servido em travessa de barro.
Acompanha farofa amarela (de azeite-de-dendê).

ACARAJÉ

O feijão-fradinho fica de molho até inchar. Depois é descascado cuidadosamente e ralado numa pedra de ralar. Ralado no
metal estraga-se definitivamente. Tempero: sal, cebola, camarões secos descascados e moídos. A massa, após ser batida, é
frita numa frigideira ao azeite-de-dendê. O sabor do acarajé é dado em grande parte pelo molho quase sólido feito com
pimenta, camarão ralado, cebola e azeite-de-dendê, molho que é colocado dentro do acarajé no momento de ser servido. As
baianas que vendem comidas nas ruas só fritam a pasta do acarajé na hora de servir. Quente é muito mais saboroso que frio.
Só serve muito apimentado.

ABARÁ

A massa do abará é a mesma que a do acarajé, juntando-se-lhe pimenta, azeite-de-dendê e camarão ralado. Muita
pimenta, pouco azeite-de-dendê. Enrolam-se pequenas quantidades em folhas de bananeira e leva-se ao fogo em banho-maria.

CARURU

Quiabo (o caruru também pode ser feito com a folha do caruru) cortado em pequenas rodelas, da qual se retira toda e
qualquer baba. Tempero de camarões secos descascados e moídos, cebola, coentro, pimenta, salsa e sal. Cabeça de garoupa
ou de outro peixe seco. É cozido em pouca água e o azeite-de-dendê é juntado pouco antes de ser retirado do fogo. Serve-se
acompanhado pelo abará.

ABERÉM

O milho pilado é colado de molho. Aferventa-se num pouco de água e rala-se na pedra de ralar. Fazem-se bolinhos que
são embrulhados em folha seca de bananeira levando-se então ao fogo em banho-maria.

ARROZ DE AUSSA

O arroz branco é cozido de tal maneira que fique ligado, exclusivamente temperado com sal. Frita-se um pedaço de
carne-seca gorda, escaldada, picada em pedacinhos e temperada com cebola. A gordura do charque serve para temperar o
arroz no momento de servir. Coloca-se, para servir, o charque sobre o arroz.
Come-se acompanhado com banana-prata bem madura.

MUNGUNZÁ

O mungunzá, também conhecido como chá-de-burro, e no Sul como canjica, é feito com milho-branco ou vermelho. Põe-
se o milho de molho na véspera. Junta-se leite-de-coco ralo ao milho quando este já está algum tempo cozinhando.

Também o resto dos temperos: cravo, canela, sal, açúcar e manteiga. Depois de mais algum tempo de fogo junta-se leite-
de-coco grosso e deixa-se demorar ainda mais um pouco cozinhando. Serve-se antes de esfriar completamente, em copos ou
em tigelas.

Para fazer o mungunzá-de-corte o processo é o mesmo, juntando-se flor-de-arroz e deixando cozinhar até que a massa
fique ligada. Serve-se frio, em talhadas. Esse mungunzá deve ser menos adocicado que o outro. Ótimo para acompanhar o café
com leite.

EFÓ

O efó, no dizer de muita gente, a mais gostosa das comidas baianas, é feito com folha língua-de-vaca ou com a folha de
taioba. Escaldam-se as folhas e depois são passadas na máquina e postas para cozinhar em água. Quando já leva algum tempo
cozinhando junta-se o tempero: leite-de-coco, camarão pisado, azeite-de-dendê, amendoim, castanha-de-caju, gengibre,
cebola, alho, sal, coentro. Cozinha-se até dar o ponto. Serve-se em travessa de barro. Acompanha acaçá ou pirão de arroz.

COCADA BRANCA

Descasca-se e rala-se o coco enquanto se põe o açúcar a cozinhar com água. Quando o açúcar dá o ponto junta-se o coco
ralado e o leite-de-coco.

COCADA PUXA

Não é necessário descascar o coco. Junta-se ao leite e ao coco ralado um pouco de farinha de mandioca para ligar.
Deixa-se o açúcar queimar no fogo para dar a cor.

ALUÁ

A bebida clássica dos candomblés é muito fácil de ser feita. Descascam-se uns quantos abacaxis, coloca-se esta casca
dentro d’água, tapa-se o vasilhame e deixa-se em infusão durante alguns dias. Depois de coar junta-se o açúcar.
CANTO DE AMOR A BAHIA

“Se gostas do teu marido,

na minha frente não passes...”

canta o marinheiro no cais, próximo ao mercado, em cuja calçada, como lâminas de aço, brilham os peixes ao sol. Ah! se
amas a tua cidade, se tua cidade é Rio, Paris, São Paulo ou Leningrado, Veneza de canais ou Praga de velhas torres, Pequim
ou Viena, não deves passar por essa cidade da Bahia, porque um novo amor encherá teu coração. Esplêndida cidade, noiva do
mar, senhora do mistério e da beleza. Nesse mar habita Iemanjá, a dos cinco nomes, e o misterioso chamado dos atabaques
ressoa na noite dos casarões sob a lua, das igrejas de ouro, das ladeiras grávidas de passado. O mistério e a beleza da cidade
te envolverão, darás teu coração para jamais; jamais poderás esquecer a Bahia, o óleo de sua beleza denso te banhou, sua
mágica realidade te perturbou para sempre.

No alto da montanha, na Praça Castro Alves, o poeta no monumento estende a mão libertária e aponta o mar embaixo, de
um traiçoeiro azul subitamente verde, onde as velas dos saveiros se abrem ao vento numa aventura renovada cada manhã.
Plantado em meio às águas, o negro forte antigo dorme um sono centenário; há muito que ele se incorporou à paisagem, é
paisagem ele mesmo e não praça de guerra. Todas as ladeiras descem para o mar de manhã cedo, mas à noite todas elas se
dirigem aos candomblés, atendendo ao insistente bater dos atabaques, aos cantos nagôs saudando os santos. Mas a manha é a
hora do mar no pequeno cais do Mercado iluminado de mangas, abacaxis, abios, cajás, cajaranas, cajus, verdes melancias e as
estréias de sangue das pitangas; no cais sem cais da Feira de Água dos Meninos, onde os saveiros depositam bilhas, moringas,
pratos desenhados e cavalgadas de barro, bois mansos e cavalos azuis, tudo construído pelas mãos ingênuas e sábias de
anônimos artesãos; na Praia de Itapoã de onde partem as jangadas, de Caymmi, com Pedro, Ferreira e Bento para enfrentar "lá
fora os pés-de-vento”. A manhã é a hora do mar quando os búzios dos saveiros despertam Janaína cansada da noite na
macumba, nas danças rituais. E ela sai de sua morada no Dique e se espalha sobre o mar, dona das águas.

É uma beleza antiga, sólida e envolvente a dessa cidade. Não nasceu de repente, foi construída lentamente e está
amassada no sangue dos escravos. No Largo do Pelourinho eles eram castigados, e das janelas dos sobradões imensos as
frágeis iaiás espiavam os corpos nus cortados à chibata. Almas penadas habitam os casarões, e ficam vagando pelas escadas
sujas e pelos compridos corredores os ais de dor dos negros injustiçados. Libertam-se pela noite de mistérios e sobem pelas
ladeiras clamando vingança. É uma beleza que escorre como óleo do casario e das pedras negras de certas ruas, dos nomes
como poemas: Rua dos Quinze Mistérios, Ladeira do Tabuão, Rua do Cabeça, Largo das Sete Portas. Mirante dos Aflitos, que
escorre das igrejas dos santos negros, esculpidos em madeira e ferro, Xangô, Oxóssi, Ogun, Exu amedrontador, a suave Iansã
e o tétrico Omulu, que comanda a varíola. Dessa arte anônima dos santeiros negros, nasceu a moderna escultura baiana, Mário
Cravo, Agnaldo, Mirabeau. Em meio à promiscuidade da mais completa pobreza, num velho casarão, surge, inesperada, a
incomensurável riqueza de antigos azulejos, os poucos que ainda não foram levados pelos ricos de outras terras. Como uma
figura antiga, a baiana de perfeito colo desabrochado das rendas, sentada em frente ao tabuleiro de acarajé e abará, de
moqueca de aratu, de cocada e beijus. Ela é como rainha da cidade, essa pobre negra que ganha duramente a vida. De
majestosa beleza, de fala mansa e coração de bondade, riso aberto e claro, suas mãos criam cada dia a arte do vatapá e do
caruru, do efó e do xinxim de galinha. O bordado dos papéis que cobrem os tabuleiros recorda o papel cortado da Polônia ou
da China na pureza do desenho.

O homem é imaginoso e cordial nessa terra de pimenta e brisa do mar, de mariscos e água de coco. Ele sabe as palavras
sonoras e por vezes difíceis, sua fala é larga, sua voz cantante. Terra do sangue misturado, mestiça com todos os coloridos do
moreno, todas as nuanças entre o branco e o negro. Negras como rainhas de tribos desaparecidas, mulatas de cintura de vespa
e onduloso andar, brancas desfalecendo ao falar, nasceram todas de Moema, a que de amor morreu no mar quando a cidade
apenas começara. Os pintores vêm de longe para descobri-las, e as paisagens, as casas e ruas que o homem construiu, vem o
pintor Pancetti para a praia, a jangada e o mar; o alemão Hansen, para o Bar São Miguel, de tímidas rameiras inocentes; o
uruguaio Vilaré para os arredores do Mercado; e Caribé para a cidade toda, para nunca mais sair. Viraram baianos todos eles,
e para todo o sempre. E por mais longe que estejam, levam consigo o mistério e a beleza da Bahia.

Nem tudo é poesia apenas, e o drama explode nas ruas em enxames de crianças famintas, na multiplicação dos mendigos,
na fome em terra tão rica. Nem tudo ó grande tampouco, e certos homens, aventureiros vindos de todas as partes, tentam
reduzir essa beleza negra e pesada, densa como óleo e profunda de mistério, às proporções turísticas, e tudo fica pequeno e
triste quando tocado por tais mãos. Existe uma persistente e criminosa tentativa de reduzir a beleza da Bahia, sua dramática
beleza centenária à medida limitada da curiosidade turística, e maus poetas, vindos de fora, a cantaram sem a entender, e
cineastas a fotografaram sem a sentir, e milionários e grã-finos a compraram sem a conhecer, e a todos ela resistiu e persiste
para todos capazes de compreendê-la e amá-la. Persiste na sua grandeza, no seu mar e nas suas ruas, na renovação diária de
sua beleza e do seu mistério.

À noite o mistério aumenta. Ao bonde lento chega o eco da · orquestra de atabaques, agogôs, chocalhos, cabaças,
chamando os filhos e filhas-de-santo para a festa da macumba. No céu de estréias a lua amarela se derrama sobre o mar e os
santos descem nos terreiros, vindos das florestas da África. Os homens vão pedir saúde, dinheiro, longa vida e sobretudo
amor, fidelidade de inconstantes corações. O sangue dos galos e dos bodes se derrama sobre Exu, para que ele não venha
perturbar a festa dos homens. Nos cantos das ruas, feitiços são colocados, afastemos nossos passos desses perigos. Na noite
do mar sobe a canção do marinheiro:

“Se gostas do teu marido

porque vens na minha

frente tuas ancas rebolar... ?”

Junto aos tabuleiros das baianas se acomodam os fregueses mais habituais, há mingau de puba, de milho, tapioca,
sarapatel, bolo de aipim, o que há de mais gostoso para comer. Dorme a Cidade Baixa, menos o cais; movimenta-se a Cidade
Alta e a música domina os homens, é o ritmo negro dos batuques, ele vem de recantos perdidos e atravessa as ruas e avenidas,
acompanha os bondes, os ônibus, os automóveis, bate no sangue de cada habitante. À noite o mistério aumenta e a beleza da
Bahia se cobre de luar.

Essa é a minha cidade e em todas as muitas cidades que andei, eu a revi num detalhe de beleza. Nenhuma assim, tão densa
e oleosa. Nenhuma assim, para viver. Nela quero morrer, quando chegar o dia. Para sentir a brisa que vem do mar, ouvir à
noite os atabaques e as canções dos marinheiros. A Cidade da Bahia, plantada sobre a montanha, penetrada de mar.
ADEUS, MOÇA

Adeus, moça! Viste a Bahia, ouviste sua voz, sentiste seu cheiro. Os que vieram, contigo andaram pelas ruas da
cidade, visitaram as igrejas, encheram os olhos com o ouro de São Francisco e com a pobreza do povo. Vais partir, moça,
ides partir, companheiros da moça. Nós todos vos levaremos as despedidas da Bahia, viajantes, nós todos te iremos
despedir, moça! Virão os pais-de-santo, os ogãs e as yawôs, os capoeiristas e os mestres de berimbau, os Capitães da
Areia atrevidos e intrépidos, os moradores da Estrada da Liberdade e da Cidade de Palha, os homens dos cortiços do
Pelourinho. Os saveiros sairão pelo mar a fora, as velas soltas ao vento. Do forte velho se elevará a voz do soldado
aposentado cantando uma valsa antiga. As filhas-de-santo bailarão e cantarão em nagô. O malandro do cais, o poeta do
Mercado, o canoeiro de Água dos Meninos formarão um trio, e, em tua honra, em honra dos teus companheiros cantarão
uma canção de Caymmi.

Vais deixar a minha cidade. Não te quis mostrar apenas a sua beleza, o seu mistério, seu pitoresco e sua poesia. Abri
todas as suas portas para os teus olhos, ó moça, para os vossos olhos, ó viajantes. Sua beleza e sua pobreza. Mas aqui ficamos
nós, o povo da Bahia, resistente e bom. Um dia a miséria não mais manchará tanta beleza, tanta poesia, o grande mistério da
Bahia. Quando voltares, moça, um dia, no futuro. Nós, o povo da Bahia, estamos plantados sobre um grande passado mas
fitamos o futuro e para ele marchamos. Para o futuro sobem as ladeiras da cidade da Bahia.

Peri-Peri, setembro de 1944.


ESTE LIVRO FOI COMPOSTO

E IMPRESSO NAS OFICINAS DE

ARTES GRÁFICAS BISORDI S. A.,

NA RUA DO HIPÓDROMO, 63/69,

SÃO PAULO,

PARA A

LIVRARIA MARTINS EDITORA S. A.,

em 1966.

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