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Copyright (O by Mauricio Lissovsky, 2014

Direitos desta edição reservados à


MAUAD Editora Ltda. SUMÁRIO
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Lapa — Rio de Janeiro — RJ — CEP: 20241-110


Apresentação
Tel.: (21) 3479.7422 — Fax: (21) 3479.7400
www.mauad.com.br Parte I - Walter Benjamin e a fotografia 11

1. História, fotografia e adivinhação 13

2. A condição poética dos acontecimentos 33

Projeto Gráfico: O fotografia como reserva de porvir 45


Nucleo de Arte/Mauad Editora
Parte II - Fotografia e política no Brasil

4. Três fotogramas alemães dos anos 1930 57


Revisão:

Leticia Castello Branco Braun 5. Um fotógrafo exilado no Rio de Janeiro 73

6. Onde Vargas não figura, prefigura 95

7. Vigilantes e vigiados na fotografia da polícia política 111

Cir-BrasiL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Parte II - O futuro da fotografia 131


SiNDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
“Bo que fazem as fotografias quando não estamos
L754p
olhando para elas? 133
Lissovsky, Mauricio, 1958-
Pausas do destino : teoria, arte e história da fotografia / 9. A paisagem e a proveniência dos lugares 151
Mauricio Lissovsky. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Mauad, 2014.

216p.;14x21cm. 10. O elo perdido da fotografia 171


Inclui bibliografia e índice (TN, E
+11) Conclusão: os fotógrafos do futuro 187
ISBN 978.85.7478.569-1
1. Fotografia - História. 2. Fotógrafos. |. Título. Bibliografia 199
13-06995 CDD: 770
CDU: 77 Índice Onomástico 209
Pausas DO DESTINO

3. A fotografia como reserva de porvir

“ A experiência moderna do tempo, tal como veio a consolidar-se nas


últimas décadas do século XIX, parece abrigar um curioso paradoxo. Ela
testemunha, por um lado, a acéleração crescente no passar do tempo com
o encurtamento das distâncias (meios de transportes, tecnologias de comu-
nicação) e a industrialização dos processos produtivos (utilização intensiva
de energia, linhas de montagem). O ícone supremo desse tempo acelerado
é o instante: o instante absolutamente instantâneo, herdado de Descartes
e Newton, e cuja existência como entidade lógica assegura a precisão das
medições cronométricas da ciência e da técnica: instante fiador de toda
sincronicidade. É contra essa avassaladora instantaneidade que se insurge
o filósofo Henri Bergson, postulando uma metafísica baseada na duração,
contrafação espiritual, em forma de fluxo, de um tempo de relojoeiro feito
de instantes equivalentes e homogêneos. A temporalidade instantânea teria
encontrado sua realização suprema, para Bergson, no cinema — na “ilusão
cinematográfica” —, cujo mecanismo deixava escapar o verdadeiro sentido
da mudança — que é tempo, duração —, oferecendo em troca a reconstituição
artificial do movimento das coisas a partir de imagens fixas produzidas em
“instantes quaisquer”: instantes mecanicamente indiferentes, a 18 quadros
por segundo.' O instante assumiu, na filosofia de Bergson, o papel de su-
premo vilão do pensamento, uma vez que impedia o espírito de entrar em
contato com a verdadeira duração.

Por outro lado, além de sua aceleração rumo ao instantâneo, o presente


moderno teria sido igualmente percebido como possuidor de certa incli-
nação para o futuro; inclinação que se devia supor sempre que agentes
públicos ou privados dedicavam-se, por exemplo, às suas atividades de

1 Cf. Bergson, 1979, p. 238-48.

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À FOTOGRAFIA COMO RESERVA DE PORVIR
Pausas DO DESTINO

“planejamento”. Para Stephen Kem, a “Era Moderna afastou-se de uma


atualidade. A homogeneidade dos instantes acomodou-os, tornando-os fi-
aderência teimosa à tradição e “descobriu” o futuro como fonte de valores e
nalmente isotópicos e, de certo modo, verdadeiramente indistintos. Não
guia para a ação”.? Essa inclinação era reforçada pela rápida expansão dos
admira que tal experiência tenha contribuído para dar feição aos atestados
conhecimentos a respeito do porvir (astronomia gravitacional, meteorolo-
Nº de óbito da “História” e “das utopias”, só para mencionarmos os falecimen-
gia, técnicas diagnósticas na medicina). Uma inflexão decisiva acontecia tos mais célebres.
no âmbito da ciência, pois esta, pela primeira vez, começava a antecipar-se
à técnica na descoberta de novas entidades e fenômenos (caso de elementos Agora que a batalha pela heterogeneidade dos instantes parece irreme-
químicos na tabela periódica que ainda não haviam sido encontrados na diavelmente perdida em praticamente todos os quadrantes, os esforços de
Walter Benjamin para disputar o instante à modernidade, resgatá-lo das
natureza e a existência das ondas de rádio, por exemplo). O surgimento da
garras do tempo crônico, tornam-se especialmente relevantes para nós. O
ficção científica, como gênero literário popular, demonstra quão difundida
tornara-se essa sensação. instantâneo, em Benjamin, assume a forma do “tempo do agora”, que funda
a descontinuidade na História, e torna-se a condição da imagem dialética
Conciliar ambas as percepções acerca do presente (sua pontualidade e na qual o historiador reúne, como num cristal infinitamente facetado, todo
sua inclinação para o futuro) foi um dos maiores desafios metafísicos do o passado e todo o futuro.
século XIX. A mais célebre das respostas, formulada ainda no início do
Pelo menos desde 1927, e certamente a partir de 1930, Benjamin encon-
século, foi a dialética hegeliana, a positivação do negativo, a existência
tra na fotografia o modelo teórico ou, de modo mais preciso, a experiência
em germe do não existente. Era com base nela que Marx criticava a crença
fenomênica que serve de fundamento à sua teoria do acontecimento históri-
no “progresso”, de políticos e pensadores de fins do século XIX, para os
co. É na sua relação com a fotografia que o pensamento de Benjamin cons-
quais a inclinação do presente ao futuro parecia ser mero efeito da própria
trói sua diferença teórica com relação a Bergson — para quem a fotografia
aceleração temporal. Quase um século depois, as relações entre memória
não passava de movimento congelado em pose — e a Proust — para quem
e percepção, em Bergson, e entre retenção e expectativa, em Husserl, não
ela era o derradeiro túmulo da memória, mais insípida que um reles nome
deixam de ser outras formas de equacionar esse mesmo problema, agora
próprio. Tal escolha, a escolha da Fotografia, tem implicações teóricas e
não mais no plano da História, mas no da experiência subjetiva.
metodológicas profundas para o ofício do historiador, como descrevemos
Quando os diagnósticos da pós-modernidade assinalam no contempo- nos capítulos precedentes. Mas aquilo que possibilita à fotografia cumprir
râneo a perda do futuro, fruto de sua brutal precipitação sobre o presente na esse papel permanece obscuro, mesmo em Benjamin. Apenas conhecemos
forma do risco, por exemplo (pedagogos e médicos indicam comportamen- seu conselho ao historiador-fotógrafo que procure “o lugar imperceptível
tos de risco, investidores ranqueiam o risco-país, ninguém mais adoece, em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos,
apenas desenvolve um aspecto de suas propensões genéticas), nãodeixam e com tanta eloquência que podemos descobri-lo olhando para trás”.*
de estar, de certo modo, resolvendo esse paradoxo e simultaneamente o
Eis a pergunta que proponho: quando e de que modo a fotografia tornou-
pacificando.* Em uma cultura já inteiramente dominada por dispositivos
-se um dispositivo em que o futuro pudesse vir a se aninhar? A resposta,
tecnológicos instantâneos que sustentam uma complexa rede de simulta-
creio, está no surgimento da fotografia moderna, algo que a geração de Ben-
neidades globais, presente e futuro pretendem convergir para uma mesma
jamin testemunhou, mas que Proust não conheceu e cuja diferença Bergson
não chegou a perceber. Pois é exatamente aqui, no coração instantâneo da

2 Kern, 1983, p. 94. Alude-se aqui a A descoberta do futuro, conferência de H. G.


Wells, publicada na revista Nature em 1902.
3 Cf. Vaz, 1997, p. 99-115. 4 Benjamin, 1985c, p. 94.

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À FOTOGRAFIA COMO RESERVA DE PORVIR Pausas DO DESTINO

técnica moderna, aqui onde ela parece ter alcançado sua máxima aceleração, Assumamos provisoriamente a prerrogativa do olho. Para tanto, basta
que a fotografia vai se inventar como um dispositivo de retardamento, vai se imaginar que o diafragma da máquina fotográfica ainda não se abriu, que
inventar como “máquina de esperar”. Como toda máquina, a fotografia mo- o dedo ainda não acionou o obturador, que o filme ainda não foi impres-
derna está engajada num processo específico de transformação (de distância sionado. Temos apenas o espaço que se descortina à frente do diafragma, a
no espaço em distância no tempo, para ser exato) e na produção de uma en- extensão material do mundo, a matéria. O espaço, no entanto, aparece pola-
tidade nova (o instantâneo fotográfico) a partir da matéria bruta da duração. rizado pelo ponto para onde convergem os raios luminosos, o centro óptico
da lente. Essa polarização opera nele uma mudança qualitativa. Organiza-o
As condições técnicas da emergência da fotografia moderna já existem
como distância. É disso que nos fala Jean-Marie Schaeffer: “[...] antes de
desde o último quartel do século XIX, isto é, desde quando o tempo de uma
ser eventualmente uma questão de espelho, a imagem fotográfica é sempre
exposição fotográfica — o tempo da pose — tornou-se uma duração inapre-
ensível para os sentidos humanos. Mas é somente a partir das décadas de uma questão de distância”. Porém, uma vez que o obturador tenha sido
acionado, o que se acrescenta ao dispositivo é outra distância: “a imagem
1920 e 1930, quando uma nova geração de fotógrafos viu o instantâneo
fotográfica dá lugar ao distanciamento no tempo: mostra o tempo como
como naturalmente intrínseco ao seu meio, que o ato fotográfico transfor-
passado”.” Para a maioria dos críticos realistas da Fotografia (como André
mou-se em um modo peculiar de instalação no ambiente técnico. Daí em
Bazin, Roland Barthes e Jean-Marie Schaeffer), o procedimento básico da
diante, a espera, mais que a interrupção, tornou-se o cinzel dos fotógrafos
modernos; e, desde então, a fotografia experimentou-se como uma cunha
máquina fotográfica é converter uma distância no espaço — o enquadra-
mento — em uma distância no tempo — o agora-passado. O resultado da
forçando a dilatação do presente instantâneo.
operação dessa máquina é o “isto foi”, que assinala para Barthes o sentido
Mas se a fotografia é isso em que a fotografia moderna se tornou, então subjacente a toda fotografia.
é preciso dizer o que ela era antes. Eis o que ela ecra antes: um ponto de
Mas o “agora-passado”, o “isto foi”, só pode ser apreendido na saída
vista. Isso não nos deve surpreender, pois o ponto de vista é para o espaço
essa distância irredutível e singular que uma imagem fotográfica parece en- da máquina, descolado do ato fotográfico. Ele não se inscreve, como dis-
tância, no próprio registro, mas apenas fora dele, em relação a ele: na nossa
quadrar. Na tradição pictórica fundada pela codificação perspectiva renas-
relação com ele. Por essa via, jamais lograremos descobrir de que modo o
centista, espaço e tempo reúnem-se em uma só pontualidade. A fotografia
futuro pode “aninhar-se” na imagem fotográfica. Toda a dimensão tempo-
parece, para muitos, a última herdeira dessa tradição. O privilégio do olho
na representação fotográfica tem sido a pedra de toque de quase toda a crí- ral que ela envolve volta-se para o passado. E se o tempo pode, de algum
modo, habitar a imagem, ele só o fará na forma do borrão, da mancha.”
tica da fotografia de inspiração nominalista, para a qual ela representaria,
confrontada com a pintura, o banimento definitivo do gesto. Para Arlindo É preciso aqui que nos remontemos ao ato fotográfico de forma deci-
Machado, por exemplo, a fotografia encobre as eventuais marcas de sua siva, que o experimentemos de dentro. Não é difícil perceber que outra
gênese, pois “[...] em toda a pintura, mesmo a mais ilusionista, há sempre coisa acontece ali além do registro instantâneo de um olhar. Algo além da
uma dimensão que poderíamos chamar genética, que corresponde à dança conversão instantânea de distância espacial em distância temporal e que
da mão do artista sobre a tela”. Tais marcas não existiriam na fotografia: não se resume ao eixo olho-coisa. Algo que tem lugar em outra parte, entre
“sua imagem já surge asséptica e homogênea, sem marcas da enunciação
na base fotoquímica”.”
8 Schaeffer, 1996, p. 17.
7 Ibidem, p. 60.
8 Cf. Barthes, 2000.
* Machado, 1984, p. 155. º Schaeffer, 1996, p. 186.

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À FOTOGRAFIA COMO RESERVA DE PORVIR
Pausas DO DESTINO

olho e dedo, talvez. Algo que é mais hesitação que lampejo, e que produz, nos deve satisfazer. Pois há um trabalho aqui, um trabalho da memória, um
no coração do dispositivo instantâneo, em sua própria origem, um interva- trabalho da duração (e não um trabalho do olho ou do dedo). O objetivo
lo, uma dobra. E, por mais breve que seja, uma defasagem. Quando esse deste trabalho é fazer refluir o tempo para fora da imagem instantânea, pois
intervalo não existe, ensina Bergson, aí sim estamos em um presente que é somente ali, na espera, que o tempo pode vir a refugiar-se enquanto se es-
se figura pontual, instantâneo, o circuito mais curto da atividade humana, vai da imagem. O que o instantâneo moderno nos apresenta não é o instante
a simples reação motora.!º A esse intervalo o filósofo teve a ousadia de qualquer arrancado do movimento geral das coisas no mundo. É o traço
chamar memória. deixado pelo ir-se do tempo que o trabalho da espera realiza. Se pode haver
História, estilos, ou mesmo autorias na fotografia moderna, correspondem,
O vínculo aqui proposto entre o dispositivo fotográfico e o pensamento
no meu entender, ao durar diferenciado da espera dos fotógrafos, aos seus
de Bergson não é absolutamente estranho ao filósofo. Em Matéria e memó-
modos particulares de favorecer o devir dos instantes.
ria, numa das poucas analogias técnicas a que recorre Bergson para ilustrar
o funcionamento da memória, é à máquina fotográfica que se refere: O funcionamento do dispositivo fotográfico — essa máquina de expectar
instantes — acontece nesse intervalo e estabelece aí uma zona de indeter-
Temos consciência de um ato sui generis pelo qual deixamos o pre- minação. Nas palavras de Bergson, eis o que se passa: “Passo em revista
sente para nos recolocar primeiramente no passado em geral, depois minhas diversas afecções: parece-me que cada uma delas contém, à sua
numa certa região do passado: trabalho de tentativa, semelhante à bus- maneira, um convite a agir, ao mesmo tempo com autorização de esperar
ca do foco em uma máquina fotográfica. Mas nossa lembrança perma-
ou mesmo nada a fazer.”!? Na sua indeterminação, enquanto ali persiste, a
nece ainda em estado virtual; dispomo-nos simplesmente a recebê-
expectação torna-se “espera pura”, que Deleuze descreveu como “desdo-
-la, adotando a atitude apropriada. Pouco a pouco aparece, como uma
bramento em dois fluxos simultâneos, um que representa o que se espera, e
nebulosa que se condensasse; de virtual ela passa a atual; e à medida
que tarda por essência, sempre atrasado e sempre reposto” — o instante, — e
que seus contornos se desenham e sua superfície se colore, ela tende
“o outro que representa algo de que se espera, o único a poder precipitar a
a imitar a percepção."
vinda do esperado” — a duração, a mudança.!!
Na perspectiva que assumo, essa passagem não é uma analogia, mas Pode-se esperar por um instante do mesmo modo que esperamos por
uma indicação razoavelmente precisa do ato fotográfico. Comentando o um ônibus, ou pela nossa vez na fila do caixa? Não creio. Para distinguir
pensamento de Bergson, Eduardo Cadava já o assinalava: “Que a foto- melhor esse tipo peculiar de espera, que é trabalho da duração sobre si
grafia exista mesmo antes do trabalho de qualquer câmara significa que mesma, que é modulação do instante que virá, prefiro usar o nome de ex-
percepção e memória começam com a fotografia. De fato, para Bergson, pectação. Quando a expectação do instante suga afinal o tempo da imagem,
não existe processo psíquico que não tenha sua origem na fotografia.”!2 o que resta na fotografia é um traço desse ausentar-se. Isso que ela nos
A memória em Bergson é a duração, em seu sentido mais amplo. É nesse apresenta, então, não é apenas mais um ponto de vista, simples apreensão
intervalo, na duração, que o fotógrafo está mergulhado. Como descrever o simultânea de uma porção do espaço, mas a dimensão pontual do tem-
que aí se passa? A resposta já nos ocorre imediatamente. No intervalo entre po transformada em imagem, à qual, de modo mais preciso, poderíamos
o olho e o dedo, o fotógrafo espera. Mas a facilidade dessa resposta não chamar aspecto. O ponto de vista é para o espaço o que o aspecto é para o

10 Cf. Bergson, 1990.


4 Ibidem, p. 110. 13 Bergson, 1990, p. 9.
12 Cadava, 1992, p. 90. 14 Apud Pelbart, 1998, p. 22.

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Pausas DO DESTINO
À FOTOGRAFIA COMO RESERVA DE PORVIR

tempo. Assim como aquele que enquadra encontra um ponto de vista e não “inconscientemente”.!é Acredito que o campo em que tal jogo travou-se
outro, aquele que espera favorece um aspecto em detrimento de outro. No foi esse intervalo que a Fotografia procurou expandir, infinitamente, no
movimento que leva da expectação ao aspecto, já o percebemos, é que a estreito limite do dispositivo técnico instantâneo. O mesmo intervalo em
fotografia inclina-se para o futuro. que, para Bergson, cria-se a “variabilidade das sociedades humanas”, em
que cada uma delas se faz “aberta”, uma “sociedade de criadores”.””
O intervalo que a expectação estabelece no ato fotográfico não é ape-
nas a produção de uma decalagem entre percepção e ação (entre olho O que se constitui aí, nesse intervalo, não é o tipo de liberdade capaz
e dedo); é também a cunha de uma demora fincada no coração instan- de fundar uma utopia, mas aquela em que certa ética pode ser sustentada.
tâneo do presente. Heidegger dizia que “com demasiada facilidade nos Uma ética do devir do instante. De sua singularidade em oposição a sua
tranquilizamos, concebendo o demorar como puro e simples e guiados indiferença; de seu valor em oposição a sua equivalência.
pela representação costumeira do tempo, como um lapso de tempo de Antes do advento do instantâneo, durante a longa exposição que toma-
um agora para o agora seguinte”. O demorar deveria ser entendido como va conta da pose fotográfica, modelo e fotógrafo eram prisioneiros de uma
“aproximar-se pelo durar, o permanecer e o permanecer durando”.!º No espera cujo fim estava previamente determinado — o tempo necessário de
demorar da espera, colocamo-nos na vizinhança disso que se retrai, de exposição. O instantâneo tornou a espera indeterminada, entrega subjetiva
modo que isso que nos resta não seja mais o movimento, mas o tempo. A a um tempo do outro, à eventualidade de um ajuste, virtualmente intermi-
espera não é um artesanato, uma doação de forma. É o estabelecimento de nável, seja daquele que posa, daquele que clica ou de ambos. Uma espera
uma tensão, de uma polarização, que favorece uma “tomada de forma”, indeterminada e ao mesmo tempo finalista, teleológica, redentora. Num de
que só é possível porque se espera. seus manuscritos, Benjamin anotou:

É na indeterminação da espera que a fotografia resiste e produz um su-


Mais do que passar o tempo, deve-se convidá-lo. Passar o tempo (ma-
jeito. E é na sua abertura para o futuro que a fotografia ainda pensa. Inútil tar o tempo, expeli-lo): o jogador. O tempo se esvai por todos os po-
buscar um pensamento fotográfico na imagem feita “nostálgica”,> «é “polissê- ros. — Armazenar o tempo como uma bateria armazena energia: o flá-
mica”, “casual”. Só há pensamento na expectação, no devir do aspecto, na neur. Finalmente, o terceiro tipo: aquele que espera. Ele toma o tempo
iminência do choque. É no vestígio da expectativa configuradora da ima- e o restitui numa forma alterada — aquela da expectativa.!
gem que podemos reencontrar aquilo em que se funda seu sentido, aquilo
por meio do qual ela comunica. Nunca depois, nunca depois clique, nunca Aquele que espera, convida o tempo e o acolhe em si. Mas, desde o
depois que a foto já adquiriu um “assunto”. momento em que espera, ex-pecta. E o tempo que então restitui não mais
Vilém Flisser sugeriu, em 1980, uma estranha tarefa para a “Filosofia passa, não mais flui. Reflui em direção ao presente, pois nesse mesmo
da Fotografia”: “apontar o caminho da liberdade”. A máquina fotográfi- movimento — movimento de expectação do instante —, o ausentar-se do
ca representava para ele o protótipo de todos os dispositivos quânticos, tempo tem curso. Em um texto de juventude, Benjamin definiu o tempo
a ponta de lança do “totalitarismo dos aparelhos em miniatura”. O úni- histórico como “infinito em todas as direções e incompleto em todos os
co exercício de liberdade possível, na cena moderna, era aprender a “jo- momentos”.!º Isso não faz do tempo uma “forma pura”, um fluir homo-
gar contra o aparelho”, uma prática a que os fotógrafos já se dedicavam

16 Flússer, 1985, p. 82-4.


17 Cf. Deleuze, 1991b, p. 111.
18 Benjamin, 1999, p. 107.
15 Heidegger, 1979, p. 263. 19 Idem, 2004.

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À FOTOGRAFIA COMO RESERVA DE PORVIR

gêneo que o acontecimento vem preencher, mas algo a ser redimido por
ele — a interrupção messiânica da sucessão temporal. Eis toda a diferença
entre a “demora” de Heidegger e a “espera” de Benjamin. Para Heidegger,
a demora é o lugar em que um sujeito “autêntico” se constitui no aqui e
agora para onde confluem o passado e o futuro. A “espera”, por sua vez, Parte II
é também o lugar em que se pode resguardar, no presente adensado pela
expectativa, certa imunidade do futuro. Na “demora”, o que se reserva é a
presença-a-si do sujeito. Já a “espera” é uma reserva de porvir no interior
de um tempo que insiste em se fazer passar homogêneo — o tempo dos
instantes quaisquer, dos instantes equivalentes. No refluir do tempo em di- Fotografia e política no Brasil
reção ao presente, na iminência do instante singular, restitui-se ao tempo
sua potência de interrupção. Isso que cabe à espera, numa ética do instante,
é resguardar o futuro e, no interior deste, a temporalidade adventícia do
acontecimento e da diferença.

54
Pausas DO DESTINO

8. O que fazem as fotografias quando não


estamos olhando para elas?

Se o tempo histórico é “infinito em todas as direções e incompleto em


todos os momentos”, como escreveu Benjamin,! os arquivos são o lugar
por excelência dessa incompletude. Argumentei uma vez que eles deveriam
ser pensados a partir de cinco dimensões.? As quatro primeiras estão rela-
cionadas à sua história e dinâmica institucional: a dimensão conservacio-
nal protege os documentos da ação entrópica do tempo que a tudo arruína;
a republicana resguarda o patrimônio público da apropriação privada e
cumpre a missão de tornar público o que é de interesse público; na car-
torial, exercita-se a produção do verdadeiro e da prova, e na devocional,
os acontecimentos pretéritos são poupados do esquecimento e apropriados
pelos distintos modos de cultuar o passado.
A essas quatro dimensões agreguei uma quinta, que chamei poética.
Esta última não decorre diretamente dos documentos arquivados, mas, pa-
radoxalmente, das lacunas entre eles. Ela se constitui a partir dos vazios e
dos esquecimentos, do caráter irremediavelmente fragmentário dos arqui-
vos. À história que essa dimensão nos abre não nos remete a um passado já
realizado e completo, repleto de fatos consumados, mas evoca a memória
de um pretérito inconcluso e ainda por se realizar. Enquanto os documen-
tos históricos nos oferecem a ilusão do “passado perfeito”, as lacunas nos
arquivos convidam a conjugar a História no “futuro do pretérito”. Esses
vazios não falam do que foi, balbuciam o que poderia ter sido. Na mesma
medida em que toda ação humana recorre à experiência pregressa e ante-
cipa o futuro, todo arquivo guarda, na própria trama de seus documentos,

! Benjamin, 2004, p. 25.


2 Lissovsky, 2004, p. 47-63.

133
O QUE FAZEM AS FOTOGRAFIAS QUANDO NÃO ESTAMOS OLHANDO PARA ELAS?
Pausas DO DESTINO

e em cada um deles individualmente, os traços do que foi e do que seria. passagem através das barreiras da barbárie do princípio do século XX para
Apenas porque há um futuro oculto no passado, todo arquivo está sempre acolher estes sorrisos serenos?”* E conclui que essa imagem é um “triunfo
vivo. E todo documento de arquivo, na oportunidade de sua redenção po- microcósmico”,? um desses momentos em que, nos termos do antropólogo
ética, cintila. Johannes Fabian, a “fortaleza temporal do Ocidente” é “repentinamente in-
Em artigo hoje antológico, a curadora norte-americana Lucy Lippard vadida pelo Tempo de seu Outro”.!º
descreve seu encontro com a fotografia de uma família de índios stoney, Os sorrisos da família Beaver nos invadem não apenas porque provêm
tirada por Mary Schãffer em 1906.º Ela se surpreende com a “potencial do passado, mas porque se dirigem ao nosso próprio futuro como pretérito.
intimidade” e a “nítida atualidade que oferece essa imagem em compara- Lúcy Lippard, ao relatar sua experiência nesse artigo em forma de diário,
ção com o ostensivo distanciamento antropológico na maioria das foto- intui essa complicação temporal e, como Giorgio Agamben, dá-se conta de
grafias da época”. que na revelação do rosto oculta-se o mistério do Comum:
A súbita atualidade das fotografias de arquivo é o seu rosto, cujas feições
[...] em obras como esta, em que algumas barreiras caíram ou são
resultam de uma intrincada trama temporal, visível apenas na descontinui-
invisíveis, temos a ilusão de ver com nossos próprios olhos, de um
dade do estrato da qual provém. O “agora” dessa imagem da família Beaver
modo como nunca veríamos por nós mesmos, em que consiste a co-
confronta-se com os conhecimentos que Lippard detém sobre a fotografia et- municação.!!
nográfica, que ela, com razão, julga ter sido uma “ferramenta para explorar e
desarmar, para documentar a desaparição das nações indígenas, mantê-las em E as sensações que evoca são quase uma paráfrase da descrição que faz
seu lugar no passado e convertê-las em objeto de estudo e contemplação”. Walter Benjamin daquilo que denominou aura: “Posso sentir a terra e a erva
No entanto, a autora descreve seu encontro com essa imagem como um du- morna e úmida sob as pessoas aqui sentadas, em um verão índio. Depois que o
plo do próprio ato fotográfico que lhe deu origem: “A distância cultural entre desastre os havia golpeado, mas antes que houvessem perdido quase tudo.”!?
a fotógrafa e os fotografados, entre branca e índios, suprimiu-se, de algum
Uma história poética, como história do futuro, é feita de encontros
modo, momentaneamente, e a tal ponto que a ponte se estende através do
como esse. Os pesquisadores em geral, e os historiadores em particular,
tempo até mim, até nós, quase um século mais tarde.”* O turista que hoje vi-
acreditam que as descobertas resultam de sua argúcia. E deixam escapar
sita uma reserva stoney ofende-se quando os índios usam sandálias de borra-
que é pot meio do futuro guardado nos documentos que os vestígios do
cha em suas danças cerimoniais ou incluem refrigerantes entre as oferendas.
passado visam o presente e nos dizem alguma coisa. É graças às suas la-
Tal indignação decorre, segundo Lippard, do anacronismo que destrói a dis-
cunas que os arquivos ainda nos olham. Todo “achado” historiográfico é
tância “entre Eles e Nós, a ilusão de que vivem tempos distintos de nós”.”
um olhar correspondido que atravessa as eras, o reencontro de um porvir
Mas a experiência do encontro com a fotografia da família Beaver também
que o passado sonhara — e que somente o nosso próprio sonho de futuro
está marcada pelo anacronismo. A pesquisadora se pergunta: “Como se abriu
permite vislumbrar.

3 Os stoney são conhecidos em sua própria língua como Nakoda. Vivem, em sua
maioria, no Canadá e pertencem à grande nação dos índios Sioux. Seu apelido pro- 8 Ibidem, p. 248.
vém do modo como utilizavam pedras aquecidas para cozinhar. º Ibidem, p. 250.
4 Lippard, 2002, p. 247. 10 Apud Lippard, 2002, p. 248. Sobre isso, ver: Fabian, 1983.
S Ibidem, p. 251. it Lippard, 2002, p. 261 (grifado no original). Sobre as relações entre o rosto e o
8 Ibidem, p. 250. comum, ver: Agamben, 2000, p. 90-9.
7 Ibidem, p. 255. 12 Lippard, 2002, p. 261.

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O QUE FAZEM AS FOTOGRAFIAS QUANDO NÃO ESTAMOS OLHANDO PARA ELAS?
Pausas DO DESTINO

A manifestação mais evidente de que o futuro é alma dos arquivos é que


les, da ilha de Java, e o outro, da província de Aceh, no noroeste da ilha de
os documentos estão sempre “rearranjando-se”, independentemente do tra- Sumatra; as mulheres, por sua vez, representariam uma habitante de Nias,
balho dos arquivistas e de seu esforço para consolidá-los nos modos úteis pequena ilha a oeste de Sumatra, e outra, a etnia malaio-polinésia Dajak,
da recuperação de informações (organização, catalogação, indexação, etc.).
que vive na região ocidental da parte indonésia da ilha de Bornéu, conhe-
Os arquivos, de fato, são como os brinquedos que uma criança tem em seu
cida por Kalimantan, perto da fronteira com a Malásia. Além da legenda
quarto, sobre as prateleiras ou dentro do armário. Durante a noite — e disso que indica sua origem étnica, as cartas não trazem qualquer informação
dão testemunho os sonhos, as lendas natalinas e muitas histórias infantis —
adicional sobre quando tais fotografias foram tiradas ou quais seriam os
eles se animam, cultivam desavenças e afinidades, emergem subitamente e nemes dos retratados.
desaparecem sem deixar vestígio.
De onde vieram essas imagens, já que nenhuma delas foi produzida
Um dos mais intrigantes arquivos de imagens do século XX, o Atlas especialmente para o baralho? Sua verdadeira proveniência foi desvendada
Menemosyne, de Aby Warburg, foi a tentativa, jamais concluída, de confe- há pouco mais de dez anos: haviam sido compiladas de diferentes arquivos
rir uma representação topológica à vida oculta que anima as imagens por dos serviços coloniais.!! O suposto nativo javanês era, na verdade, o chefe
meio de um método que chamou “iconologia do intervalo”. Um procedi- de uma aldeia localizada em outra ilha, chamada Madura — hoje famosa
mento de recorte e montagem com vistas a produzir uma História da arte por suas “poções do amor” —, tendo sido fotografado em 1924, em compa-
sem texto capaz de “ativar as propriedades dinâmicas” das imagens que nhia de outros dois funcionários, por seu superior hierárquico na adminis-
permaneceriam “latentes quando observadas individualmente”. tração colonial. Já o homem dito como típico de Aceh era um fazendeiro
Os casos que relato a seguir são exemplos das tramas em que se envol- de origem não informada que, em 1937, veio até a sede da administração
vem as fotografias quando não estamos olhando para elas, tramas que só o provavelmente para negociar seus impostos. As imagens femininas seriam
futuro nelas aninhado pode explicar. No final deste breve percurso, preten- ainda mais antigas. A nativa de Nias era, na realidade, a mulher de um
do sugerir uma espécie de “rosa dos ventos”, um sistema de orientação que empresário local — um retrato social, em que ela aparece sentada diante
possa nos ajudar na cartografia onírica dos arquivos fotográficos. de sua casa, em 1915. A única fotografia originalmente etnográfica era a
mulher atribuída à etnia Dajak, registrada por um antropólogo em 1919.
Porém, não era Dajak, como o baralho afirmava, mas Kenja, outro grupo da
Amsterdã, Holanda
mesma ilha que, convém lembrar, é a terceira maior do mundo. No decorrer
Em fins de 1941, o Instituto Colonial holandês, em Amsterdã, editou da transformação que levou essas imagens de arquivo a se tornar cartas de
um baralho de cartas com imagens relativas à Indonésia. Destinado particu- baralho, as fotografias sofreram cortes para enfatizar os traços fisionômi-
larmente às crianças holandesas, é como um pequeno mundo em miniatura, cos dos retratados e isolá-los do contexto. Foram assim destituídos de sua
repartido em doze grupos de quatro cartas com ilustrações fotográficas de identidade e tornaram-se efígies representativas de tipos étnicos aos quais,
aves, animais selvagens, meios de transporte, flores, embarcações, mora- na realidade, não correspondiam.
dias, instrumentos musicais etc. Um desses grupos apresenta fotografias
dos tipos étnicos característicos dos nativos do arquipélago, representados
por dois homens e duas mulheres. Os homens seriam provenientes, um de-
!4 Legêne, 2004. A autora atribui a compilação das imagens do baralho a Gerard
Tichelman, funcionário da administração colonial das Índias Ocidentais e que a partir
de 1938 trabalha no Departamento de Educação do Instituto Colonial. As fotografias
originais utilizadas para a confecção do baralho foram doadas ao Museu Colonial, em
3 Michaud, 2007, p. 253. Haarlem, em 1948.

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O QUE FAZEM AS FOTOGRAFIAS QUANDO NÃO ESTAMOS OLHANDO PARA ELAS?
Pausas DO DESTINO

Como isso aconteceu? Que sonhos latentes habitavam essas imagens? Desde a segunda metade do século XIX, na Austrália, a crença de que
Ora, ao longo dos anos 1930, os colonizadores holandeses começaram a os aborígenes estavam com suas culturas fortemente ameaçadas e corriam
temer que o processo de modernização da colônia acabasse por levar a In- risco de extinção ganhou força entre naturalistas, artistas e antropólogos.
donésia à independência. O medo de perder o arquipélago aguçava-se dian- Considerados espécimes raros, precariamente preservados no “museu
te dos sinais de que uma nova guerra europeia avizinhava-se — vindo, de vivo” de suas “tribos”, passaram a ser fotografados intensamente. Quando
fato, a eclodir em setembro de 1939. O encapsulamento defensivo dessas os indivíduos não podiam ser captados em seu hábitat, eram conduzidos a
imagens que marca a confecção do baralho pode ser desdobrado em dois estúdios onde o ambiente natural era “artisticamente” recriado com o auxí-
movimentos. O primeiro transforma pessoas que expressam a complexa di- lio de fundos pintados e objetos de cena.
nâmica colonial — com seus funcionários atarefados, pequenos fazendeiros
Nas últimas duas décadas, porém, os arquivos etnográficos e históricos
endividados, empresários e respectivas esposas, nativos objetivados pelo
australianos começaram a ser frequentados por um tipo novo de pesquisa-
olhar científico europeu —, em tipos étnicos idealizados. Isto é, as fotogra-
dor: estudantes e antropólogos, eles próprios aborígenes ou remanescentes
fias deixam de ser imagens “sociais” e tornam-se representações “natu-
de um longo processo de deslocamentos e adoções forçadas.!º E o que eles
rais”. Mas o processo de rearranjo e hibridação das imagens não se encerra
começaram a ver nessas imagens não é mais a história da etnografia a servi-
com a naturalização. A vida da colônia, agora circunscrita a um jogo de
ço do colonialismo, ou os vestígios materiais de práticas culturais desapa-
cartas, tem sua dinâmica histórica interrompida, uma vez que recomeça
recidas, mas pessoas reais, seus próprios antepassados, seus avós e bisavós.
sempre do zero toda vez que as lâminas do baralho são distribuídas en-
tre os jogadores. Imaginemos as famílias holandesas sentadas em torno da Centenas de imagens de aborígenes, dispersas pelos arquivos australia-
mesa. Quando o pequeno monte de cartas é retirado de sua caixa, o sonho nos, estão sendo reproduzidas, reagrupadas em coleções familiares e colo-
do domínio colonial materializa-se. Os jogadores não apenas se recordam cadas em porta-retratos. Enquanto na Indonésia holandesa dos anos 1930 os
que têm uma colônia, mas podem experimentá-la, por inteiro, eternamente retratados perderam sua identidade pessoal para se tornarem volkstiepen, na
disponível em suas mãos. Austrália dos anos 1990 o nativo pitoresco está ganhando nome e sobreno-
me. Ao contrário do que usualmente fazem os historiadores, que tomam os
registros familiares e os transformam em testemunhos de uma época, esses
Queensland, Austrália
documentos “históricos” estão sendo transladados para álbuns fotográficos
e coleções comunitárias, integrando-se ao imaginário privado de famílias
Enquanto as fotografias dos arquivos da administração holandesa per-
cujos antepassados nunca haviam sido donos das próprias imagens.”
mitiram, no início da década de 1940, a criação de uma Indonésia cuja
condição colonial prolongava-se indefinidamente, transformando registros
sociais em tipos étnicos, os arquivos australianos fazem hoje o movimento
inverso: documentos etnográficos estão sendo apropriados e ressignifica- 16 Alguns depoimentos relatando essas experiências foram incluídos em Pinney e
dos como retratos familiares. Peterson, 2003.
* Joe-Ann Drissens, por exemplo, jovem aborígene que com duas semanas de idade
foi adotada por uma família australiano-holandesa branca, tornou-se funcionária da
Seção de Fotografia da Biblioteca Estadual de Queensland. Lá descobriu, entre outros
parentes, uma fotografia de seu bisavô, tirada cerca sessenta anos antes, na década
15 Quando o baralho foi lançado, a Holanda já havia sido invadida pelos alemães. de 1930. Desde fins da década de 1990, iniciativas ditas de “repatriação cultural” têm
Os japoneses, por sua vez, assumiram o controle da Indonésia em 1942. Surpreen- incluído a “devolução” de artefatos a organizações comunitárias aborígenes. O Museu
dentemente, o baralho ainda teria duas edições posteriores - em 1947 e 1949 - em Berndt, da Universidade da Austrália Ocidental (UWA), criou em 1997 um projeto
meio à guerra pela independência do arquipélago que se seguiu à rendição japonesa. nesse sentido com o sugestivo nome de “Bringing the Photographs Home”. O projeto

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O QUE FAZEM AS FOTOGRAFIAS QUANDO NÃO ESTAMOS OLHANDO PARA ELAS?
Pausas DO DESTINO

No processo de transformação dessas imagens em retratos familiares, Ilha de Mombaça, Quênia


esmaecem-se os atributos que caracterizavam as fotografias como registros
etnográficos e como testemunhos de uma concepção eurocêntrica da alte- Quem visita cidades como Mombaça, no Quênia, vê, no entorno de uma
ridade étnica. Michael Aird, curador de fotografia aborígene do Museu de estação de barcas, assim como em Lagos, na Nigéria, Accra, em Gana, e
Queensland, comenta que, apesar da frequência com que os nativos eram A ' outras cidades da África Ocidental, uma prática fotográfica hoje pratica-
representados como “selvagens, mendigos, ou como os últimos de uma ã
»”É) mente extinta nas sociedades ocidentais da América e da Europa: o uso de
raça em extinção”, esses estereótipos eram ignorados por seus descenden- fundos pintados. Tal como nas fotografias pitorescas dos aborígenes aus-
tes, que sentiam-se “felizes por serem capazes de ver fotografias de pessoas tralianos do início do século XX, as pessoas são retratadas diante de telas
que fizeram parte de sua história familiar”. constituídas por paisagens pintadas ou fotografias.

Eu observei como uma mulher viu fotografias tiradas de sua avó na Muitos autores têm assinalado que, ao contrário da tradição oci-
década de 1890, posando, com os seios nus, em um estúdio fotográfi- dental moderna, em países africanos, bem como na Índia, a fotografia
co. Esta imagem contrastava com a lembrança que essa mulher tinha importa mais como justaposição de superfícies do que como represen-
de sua avó, sempre completamente vestida. Ela, no entanto, não pa- tação da profundidade. Christopher Pinney, por exemplo, retomando as
receu aborrecer-se [com isso] e ficou simplesmente grata por ver uma reflexões de Olu Oguibe, enxerga na sobrevivência de uma técnica que
imagem dela tirada há tanto tempo atrás.! poderia ser considerada arcaica o desejo de transformar essas imagens
em narrativas, em cenários para “historias” imaginadas. As “tradições
No transcurso de um século, as fotografias científicas ou pitorescas dos fotográficas locais” estariam “deformando criativamente as espacializa-
exóticos nativos da Austrália desenvolveram parentescos e afinidades. O ções geométricas coloniais”.!º
arquivo histórico-etnográfico continha um sonho de álbum de família ador-
Antes dele, Arjun Appadurai já havia sustentado que os fundos pin-
mecido em seu ventre. Um sonho que propiciou esse curioso mecanismo
tados das fotografias indianas “resistiam, subvertiam ou parodiavam as
compensatório por meio do qual filhos “roubados” são restituídos aos pais
reivindicações documentais da fotografia”.?º Porém, há algo aqui além
na forma de retratos de seus avós — a subtração dos descendentes compen-
de uma contrafação dos dispositivos coloniais. Se Olu Oguibe tem razão
sada pela imagem dos antepassados.
em afirmar que na fotografia vernacular africana a imagem que está em
questão “não é a figura diante da lente, mas aquela que emerge depois
do momento fotográfico”,?! então em cada imagem por fazer inscreve-

1º Pinney, 2003, p. 202. Essa afirmação está longe de ser uma frase de efeito. Na
“repatria” reproduções de seu acervo fotográfico, em resposta ao famoso relatório Índia colonial, os britânicos fundaram escolas de arte para treinar artistas locais no
“Bringing them Home” acerca da institucionalização, remoção e adoção forçada de uso das técnicas perspectivas com objetivo de tornar mais “artísticas” ou, antes,
milhares de crianças aborígenes com vistas a acelerar o aculturamento e assimilação transformar em arte as representações religiosas tradicionais dos deuses do panteão
dessas populações. Nesse relatório sugere-se que, entre 1910 e 1970, uma pro- hindu. Sobre isso, ver: Pinney, 2004.
porção que pode variar de 1/10 a 1/3 das crianças aborígenes foram separadas de 20º Appadurai, 1997.
suas famílias. Em algumas regiões, como a mencionada Queensland,100% das famí- 21 Apud Pinney, 2003, p. 219. Em Gana, por exemplo, nas primeiras décadas do
lias aborígenes tiverem uma ou mais de suas crianças abduzidas pelas autoridades século XX, a técnica do retoque fazia não apenas desaparecer rugas, como na Euro-
australianas. A íntegra desse relatório está disponível em http://www.hreoc.gov.au/ pa e na América, mas desenhava pequenos enchimentos de gordura no pescoço do
social justice/bth report/index.html. fotografado, tornando-o mais “formoso” graças a esses índices de prosperidade. Cf.
18 Aird, 20083, p. 25. Wendl, 1998, p. 108.

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O QUE FAZEM AS FOTOGRAFIAS QUANDO NÃO ESTAMOS OLHANDO PARA ELAS?
Pausas DO DESTINO

-se não apenas o seu presente, mas também o seu porvir. E em cada dos Alpes Suíços.?* Porém, esses locais determinados parecem ser ainda
imagem anteriormente feita — pois a “resistência” à profundidade não se demasiado restritivos para tais corpos magicamente transformados em
esgota nos cenários do estúdio, mas frequentemente inclui montagens superfícies móveis. De modo recorrente, a partir dos anos 1970, os fun-
e duplas exposições — estão presentes os elementos que permitem suas dos apresentam transatlânticos e aeroportos com aviões decolando. Todo
futuras combinações e justaposições. Sobretudo, na mesma medida em um “arquivo” de cartões-postais e imagens publicitárias é reciclado e jus-
que os fundos fotográficos são “alegorias de riqueza, status, romance, taposto ao corpo do cliente, que passa, por meio da imagem, “a participar
respeitabilidade, modernidade”,? o corpo do retratado, convertido em de um mundo do qual está de fato excluído”.
superfície por intermédio da fotografia, adquire propriedades icônicas e
* Superpostos às imagens desses não lugares — os aeroportos —, os
torna-se “completamente mutável e móvel, capaz de situar-se em qual-
clientes podem compartilhar da velocidade e da mobilidade da vida mo-
quer tempo ou espaço”.? Em uma fotografia tirada em um estúdio em
derna, transpondo fronteiras: tornam-se “cosmopolitas”, pessoas que,
Nagda, uma pequena cidade da Índia entre Delhi e Bombaim, o jovem
como alguns poucos neste mundo globalizado, podem estar — e de fato
Guman Singh pode ser visto sobre uma motocicleta, contra o fundo
estão — onde querem e quando querem.?% Nesse sentido, os “fundos
pintado de uma grande metrópole repleta de arranha-céus. No entanto,
pós-coloniais”, como propõe Appadurai, devem ser pensados como
apesar de tratar-se de uma pose estática, a parte inferior da tela, que

Sape
“experimentos com a modernidade”.” O fotógrafo ganense contempo-
corresponde ao primeiro plano do fundo, apresenta-se ligeiramente bor-
râneo Philip Kuame Apagaya — retratista popular cujas obras já foram
rada, sugerindo um flagrante de motociclista tomado em velocidade.
expostas em vários países —, por exemplo, tornou-se famoso como exi-
Por intermédio da reprodução pictórica de um efeito caracteristicamen-
mio pintor de cenários fotográficos que incluem, além de aeroportos e
te fotográfico, o modelo não apenas toma posse do objeto de seu desejo
aviões, interiores de casas de classe média repletos de móveis e ele-
como adquire a mobilidade que lhe corresponde.
Nas fotografias dos profissionais estabelecidos, desde o início dos
anos 1990, nas cercanias da Likoni Ferry, na ilha de Mombaça — muitas 24 Sobre esse assunto, ver: Behrend, 2003. Em Gana, as cenas, dominantemente
vezes em estúdios abertos ou semiabertos, sucessores dos tradicionais pintadas, costumam representar Paris, Moscou e Dusseldorf.
“lambe-lambes” — a capacidade telecinética da fotografia é ainda mais 25 Ibidem, p. 222. O uso de fundos pintados na fotografia africana, que começou a
difundir-se na primeira metade do século XX e pode ter tido sua origem na Nigéria,
surpreendente. Ao contrário das barcas que transportam seus passageiros encontrou em Gana sua expressão mais vigorosa. Para alguns autores, essa prática
ao continente africano, os fundos sugerem viagens a locais muito mais teria contribuído decisivamente para a “unidade iconográfica” da fotografia na África
distantes: a cidades europeias, como Londres e Paris, e norte-americanas, Ocidental e, posteriormente, para o que se convencionou chamar de “africanização”
da fotografia. Cf. Wendl, 1998, p. 108. No Quênia, os primeiros fotógrafos profissio-
como Nova York, ou a paisagens estrangeiras, como os picos nevados
nais estabelecidos como retratistas, ainda no século XIX, eram de origem indiana.
Nos anos 1940, foram responsáveis pela disseminação de uma das formas de retrato
mais populares na Índia, a “film-style-photo”, que imita o glamour das fotos das es-
trelas de cinema de Hollywood e Bombaim. Lá, a dita “africanização”, isto é, o aban-
dono dos fundos neutros característicos do retrato vitoriano em favor de fundos com
22 Appadurai, 1997. temas africanos, remonta aos anos 1960, particularmente nos estúdios que atendiam
23 Pinney, 2003, p. 211. No mesmo sentido, o recurso à dupla exposição que mul- a uma clientela de extração mais popular. Cf. Behrend, 1998, p. 157-160.
tiplica a presença do personagem na foto, em Gana e no Quênia, não deve ser 26 Cf. Behrend, 2003, p. 227. O aproveitamento de imagens publicitárias na compo-
interpretado à luz do “culto dos gêmeos” como na Nigéria, segundo Tobias Wendl, sição dos fundos não está isenta de curiosos paradoxos. O autor chama atenção para
mas como “metaimagens” que expressam a própria “reprodutibilidade técnica trans- um set comemorativo da chegada do novo milênio em que o modelo é fotografado
formada em imagem” (Wendl, 1998, p. 114). Sobre o culto dos gêmeos e sua repre- tendo ao fundo uma reprodução do Titanic, navegando a todo vapor rumo à catástrofe.
sentação na fotografia nigeriana, ver: Sprague, 20083. 27 Appadurai, 1997.

142 143
dae eso
O QUE FAZEM AS FOTOGRAFIAS QUANDO NÃO ESTAMOS OLHANDO PARA ELAS? Pausas DO DESTINO

ese
trodomésticos, expressando assim, em cores vivas e inventivo uso da alma para tornar o modelo um seu igual. Como assinala Eduardo Cadava,

pisos
perspectiva, os sonhos de consumo de sua clientela.” “existindo apenas para entrar na fotografia, eles [os acessórios] só podem
ser o que são quando um si é sacrificado à sua imagem, quando um si entra
Em um contexto de crescente restrição à imigração dos habitantes da
na fotografia e não apenas se torna um deles, mas também os habilita a
“periferia” do mundo, transformar-se em superfície imagética pode não ser
se tornar, como ele, mais do que uma coisa”. Nas imagens de Apagaya,
apenas da ordem de uma resistência ao perspectivismo colonial. Os retratos
porém, não são os fundos e adereços que, no afã de serem fotografados,
de Mombaça são os passaportes das jornadas imaginárias que prenunciam
“desejam o sacrifício de um ser vivo”.*! Estamos diante do jogo, do ludus,
os documentos imprescindíveis da nova cidadania midiática.
que, como diz Agamben, “faz desaparecer o mito e conserva o rito”. Os
Mas no estúdio de Apagaya, como no de outros fotógrafos africanos, retratados encarnam personagens e simulam uma vida cotidiana plena de
ainda outra operação está em curso. Impossível não nos remetermos à ex- conforto e tecnologia — um patrão dá ordens a sua secretária em um escri-
periência de Walter Benjamin, levado pela mãe para ser fotografado em um tório moderno; um casal jovem faz piquenique no jardim de sua mansão; a
estúdio de Berlim. A criança sentia-se “desorientada” quando exigiam dela dona de casa abre a geladeira repleta de comida e bebida; etc. No lugar do
“semelhança” a si mesma, tal como ocorria no fotógrafo: sacrifício, sobrevém a profanação, devolvendo ao uso comum dos “huma-
Para onde quer que olhasse, via-me cercado por pantalhas, almofadas nos” o que a esfera inacessível do consumo insiste em separar.
pedestais, que cobiçavam a minha imagem como as sombras do Hades
cobiçavam o sangue do animal sacrificado. Por fim, sacrificavam-me Vertente do Himalaia, Índia
a um prospecto dos Alpes, toscamente pintado, e minha mão direita,
que deveria erguer um chapeuzinho de camurça, depositava sua som- A reflexão de Appadurai sobre os fundos cenográficos dos estúdios suge-
bra sobre as nuvens e.as geleiras do fundo. [...] Estou, porém, desfigu- re que eles são “lugares de incerteza epistemológica sobre o que exatamente
rado pela semelhança com tudo que está a minha volta.” a fotografia pretende representar”. Em Mombaça, no Quênia, suas proprie-
dades icônicas permitem que os vazios do “arquivo” fotográfico contenham
Benjamin vê a cena do retrato burguês como um lugar de sacrifício de si todas as viagens possíveis, cuja potência cada novo retrato atualiza. Já no
no altar das mercadorias, à mercê de acessórios de estúdio que cobiçam sua Tibete, ou antes, entre os tibetanos no exílio, a indicialidade da imagem foto-
gráfica provê de localização uma existência desterritorializada.
Desde a sua invenção — e por mais de cem anos — as fotografias foram
28 Os cenários que representam interiores de casas são conhecidos em Gana como
tabu no Tibete. Só era possível reter e exibir reproduções pintadas de lamas
room dividers e tornaram-se o fundo preferido dos clientes naquele país nos últimos
anos. Nelson Ankruma Event, fotógrafo ganense que também trabalha com esse e monges depois de sua morte.'* Somente a partir da década de 1930, as
novo estilo de fundo, conta que certa vez uma de suas clientes mostrou o retrato fotografias dos líderes religiosos começaram a entrar nos lares dos tibeta-
recém-tirado ao marido e este, desconfiado, achou que a foto havia sido feita na
nos e povoar suas paredes. Faziam-no segundo um arranjo muito curioso: o
sala de um suposto amante da esposa. O marido teve de ser levado ao estúdio do
fotógrafo para que o mal-entendido, gerado pelo extremo realismo da pintura, se
desfizesse. Cf.: Wendl, 1998, p. 116. A expressão divider remete provavelmente às
divisórias de pano que repartem um cômodo em dois nas situações em que não há
espaço suficiente para erguer paredes ou quando o quarto serve a múltiplos usos. O, 30 Cadava, 1992, p. 109.
simbolismo dessa designação acentua-se se levamos em conta que o suporte da ima- 31 Tbidem, p. 110.
gem estampada deixa assim de ser o “fundo” de uma cena e torna-se a “divisória” 32 Agamben, 2007, p. 67.
entre dois mundos (ou a passagem de um a outro). 33 Appadurai, 1997.
2º Benjamin, 1987a, p. 99. 34 Sobre a atitude dos tibetanos em relação à fotografia, ver: Harris, 2004.

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Pausas DO DESTINO
O QUE FAZEM AS FOTOGRAFIAS QUANDO NÃO ESTAMOS OLHANDO PARA ELAS?

agora do “retorno dos tibetanos à sua terra natal.”*” Em contrapartida, para


tamanho do retrato correspondia à importância do monge — e quanto mais
os tibetanos no exílio, a fotografia tornou-se um território em que podiam
alto fosse pendurado, maior respeito demonstrava-se por ele.”
habitar seu país imaginado (o Tibete livre), e que, graças a ela, seria con-
Essas fotos-ícone não eram apenas representações visuais dos líde- fortavelmente transportado a qualquer lugar, além de atestar que, depois de
res mas, segundo um modo peculiar de indicialidade, eram consideradas
mortos, seu direito de retorno seria restaurado.
portadoras de fragmentos de sua reencarnação. Tal como os corpos dos
Clare Harris chama a atenção para uma fotografia em que podemos ver,
seres vivos que são meros “receptáculos temporários” de um contínuo flu-
coabitando a mesma imagem, o Dalai Lama vivo, fotografado recentemen-
xo espiritual, a substância das imagens atestava, em si mesma, o ciclo de
reencarnações e a presença atual do Buda. Nesse sentido, ao contrário da te na Índia; o Pachen Lama, já falecido, fotografado muitas décadas antes,
percepção dominante no Ocidente, as fotografias eram antes certificação
no Tibete; e a reprodução fotográfica de um antigo pergaminho pintado
de uma presença que referência a uma ausência. Em virtude disso, eram com a imagem de Buda. Que lugar é esse que permite dispor, em uma mes-
tratadas como “corpos”, podendo “nascer, adoecer e morrer”. Durante sua ma superfície, elementos tão distantes no tempo e no espaço? Que outra

vida, em ocasiões especiais, uma fotografia seria vestida com “roupas” fi- imagem, senão uma fotografia cuja atualidade pouco significa diante da sua
nas e limpas, mas no caso de exibir sinais de enfermidade, “era afastada das
potência de reencarnação? Uma vez que os corpos desses mestres podem
outras para que sua doença não as contaminasse”.* perecer, a imagem fotográfica fornece a evidência de que seus espíritos são
capazes de se reencontrar em um lugar que não existe — e que subsiste ape-
Com o exílio, após a invasão chinesa, uma transformação curiosa acon-
nas como imagem: “uma nação budista tibetana livre e independente”.**
teceu. Provavelmente em virtude de sua fácil portabilidade, as fotografias
Se, por um lado, a fotografia contribuiu para o surgimento de uma versão
se multiplicaram e os monges começaram a ser fotografados diante de fun-
política da crença na transmigração das “almas”, é graças a seus poderes de
dos fotográficos — não de aeroportos, claro, mas de paisagens de um Tibete
reencarnação, sugere a autora, que os “corpos tibetanos podem reconectar-
onde nunca puseram os pés. Desse modo, conforme o mesmo princípio que
-se à aura do Tibete”.
leva a substância da imagem a ser portadora dos atributos espirituais do re-
tratado, o próprio Tibete passava a participar, por intermédio da fotografia,
do ciclo de reencarnações. Confinada, no entanto, aos dioramas, fundos As valências fotográficas
de estúdio e arquivos de imagens para sobreposição, a paisagem tibeta-
As fotografias provavelmente pertencem àquela categoria de coisas
na encontra-se também ela no exílio. Sua próxima encarnação dependeria
que Giorgio Agamben chama de significantes instáveis — entre os quais
se incluem os fantasmas e os brinquedos: representações do histórico
em estado puro, que transformam uns significados em outros, tomam de
um campo e colocam em outro.“ Nesse sentido, não surpreende que,
35 Durante a Revolução cultural, os ocupantes chineses do Tibete obrigaram as fa- na época de sua invenção, vários jornalistas que reportaram ao público
mílias a incluir o retrato de Mao Tse Tung, assim como de outros líderes e generais
os processos de Fox-Talbot e Daguerre tenham se referido a eles como
chineses, entre essas imagens. Como era demasiado arriscado colocá-los muito abai-
xo dos monges, eram pendurados em lugares específicos da casa, em paredes para
as quais os moradores voltavam os pés enquanto dormiam, em sinal de desrespeito.
36 Harris, 2004, p. 137-139. Em cerimônias fúnebres recentes, fotografias têm sido
queimadas junto com os corpos dos retratados, misturando suas cinzas às do fale- 37 Ibidem, p. 143.
cido. O procedimento comprovaria, conforme a autora, que as fotografias possuem 38 Tbidem, p. 145.
partículas das pessoas que retratam e que devem, igualmente, ser postas novamente 3º Ibidem, p. 146.
em circulação após a sua morte (p. 140). 40 Cf. Agamben, 20074d, p. 73-96.

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Pausas DO DESTINO
O QUE FAZEM AS FOTOGRAFIAS QUANDO NÃO ESTAMOS OLHANDO PARA ELAS?

necromancia, um modo de comunicação com os mortos.!! Da “incer-


de objeto, ao serem transformadas em jogo de cartas, a diferença diacrônica
teza epistemológica” das fotografias, assinalada por Appadurai, ou da da qual são portadoras desaparece, e as imagens passam a habitar um lu-
sua instabilidade como significante, decorrem o poderíamos chamar de gar eterno e imutável (absolutamente sincrônico). A diacronia, desprovida

essere
“valências” fotográficas, no sentido que esse termo assume na química agora de historicidade, refugia-se em um jogo que, a cada rodada, produz
clássica: os valores das afinidades entre as substâncias que determinam um vencedor e um perdedor. Já por sua valência de fantasma, ao serem
suas possibilidades combinatórias. transferidas do museu etnográfico — onde, na condição de objetos originais,
são preservadas de toda e qualquer ameaça de degradação — para o álbum
de família, a descontinuidade radical que separa o mundo que é daquele

BETO
que foi, que toda gaveta de arquivo encerra, dilui-se na continuidade das
gerações que se sucedem. E analogamente, claro: por sua valência icônica,
fotografias são capazes transformar traços particulares em representações
ancron | qratório genéricas, como no baralho holandês; e por sua valência indicial, fazer o
caminho inverso nos retratos dos aborígenes. Assim como, por sua valência
ÍconE INDIGE de objeto, autorizam a convivência de todas as eras em uma só imagem do
ciclo de reencarnações; enquanto por sua valência de fantasma, incorporam
memório | qsacrong à memória dos quenianos viagens nunca realizadas.
Cada uma das quatro histórias que relatamos nessa viagem nos confron-
ta com o futuro que habita as lacunas dos arquivos — sua dimensão poética
FANTASMA e onírica, que as fotografias, mais do que quaisquer outros documentos, são
capazes de evocar. Incertas e instáveis, eis o que as fotografias fazem quan-
As fotografias são incertas porque, de modo indecidível, são ícones do não estamos olhando para elas, quando a nossa vigilância epistemoló-
e índices. Em virtude de sua valência icônica, são capazes de converter gica cochila. Umas sonham recriar um império colonial em um baralho de
pessoas em imagens que podem atravessar fronteiras e paredes, e assim cartas; outras, uma nação independente com cartões postais do Himalaia.
fazer-se presentes em lugares onde seus corpos jamais seriam permitidos Umas nos convidam habitar o mundo sem fronteiras da publicidade das
(e tal como sucede nas fotografias de Apagaya, “profanar” ludicamente os linhas aéreas; outras, a participar de uma reunião familiar na companhia de
mais sagrados objetos do desejo consumista). Já em função de sua valência velhos registros etnográficos.
indicial, podem conferir à imagem — como nos caso das paisagens tibetanas Em cada um desses sonhos, ouvimos, bem próximo a nós, o eco distan-
— os atributos materiais de reencarnação presentes nos corpos vivos. te do que poderia ter sido.
As fotografias são instáveis porque, de modo indecidível, são objetos
que tomamos agora em nossas mãos e cuja presença nos é absolutamente
sincrônica. E, no entanto, carregam consigo os traços fantasmáticos da mais
irremediável diacronia, daquilo que foi e nunca mais será. Por sua valência

“4 Cf. Bachten, 2004, p. 318.

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Pausas DO DESTINO

11. Conclusão: os fotógrafos do futuro

Um dos mais famosos vaticínios sobre o “futuro” da fotografia foi feito


por Lazlo Moholy-Magy, nos tempos heroicos do modernismo: “o anal-
fabeto do futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe
fotografar”.
Era uma premonição do lugar que a imagem técnica iria ocupar em
nossa civilização. Mas era também uma frase de efeito para justificar seu
projeto de tornar o ensino de Fotografia requisito básico na formação de ar-
tistas gráficos, designers e arquitetos. Era assim na Bauhaus, cujo currículo
havia ajudado a conceber.

Poucos anos depois, Walter Benjamin fará uma revisão radical desse
enunciado, perguntando-se: “Mas um fotógrafo que não sabe ler suas pró-
prias imagens não é pior que um analfabeto?”!

O termo que desaparece de uma sentença a outra é exatamente “o futu-


ro”. De Moholy-Nagy a Benjamin, o “futuro” deixa de ser o tempo vindou-
ro em que viveria o analfabeto e torna-se o próprio objeto da leitura. Trata-
-se agora do fotógrafo que não sabe ler o futuro em suas próprias imagens;
o futuro que ali se infiltrava, escreveu o filósofo, em “minutos únicos” que
só reconhecemos agora, olhando para trás.”
A temporalidade em que vive quem é capaz de ler os indícios do futuro
ocultos nas imagens é como aquela em que estão mergulhados os adivi-

1 Benjamin, 1985c, p. 107.


2 Ibidem, p. 94.

187
ConcLusÃo
Pausas DO DESTINO

nhos. Não se trata aqui do tempo das cartomantes e astrólogos vulgares, mais” e “não espero mais”. Só há fotógrafos nesse intervalo indeter-
que sondam, movidos apenas pela curiosidade, o que ainda está por vir. minado que ocorre entre o olho e o dedo. Um intervalo que o filósofo
Trata-se antes de um tempo premonitório que está sempre ao nosso lado. Henri Bergson chamava duração (ou memória), em que toda fotografia
Que nos é sempre contemporâneo. É sempre na forma de uma interrupção encontra sua origem e em que a subjetivação dos fotógrafos tem seu
que somos tomados pela experiência desse tempo, como uma carga explo- lugar. Tudo que o fotógrafo deixa de si, na imagem que acaba de reali-
siva nas entrelinhas de nossas vidas. zar, são os traços de sua espera, os vestígios de sua expectativa. Só há
Vejamos um exemplo prosaico. Há esse objeto que perdemos (um cha- instantâneo fotográfico porque tempo e movimento foram dali extraídos
veiro, um bilhete), mas cuja imagem nos vem junto com a convicção de polo fotógrafo (“enquanto ele espera”).
que na última vez o que o notamos, tivemos a certeza de que ia perder-se. Máquinas fotográficas são como aspiradores de movimentos, sugadores
Sim, faz dias que ele zombava de nós, tinha um “halo”, uma “tristeza em de tempo. A duração dos fotógrafos suga tempo e movimento do mundo, e
torno dele, que o traía”.? Não é como uma fotografia que ele ressurge essa duração, como diz Bergson, deixa nas coisas as marcas de seus dentes, os
agora, na minha lembrança? Agora, quando é tarde demais, a despeito de indícios de sua expectativa. Porque os fotógrafos esperam, as fotografias são
todas as nossas premonições? Interrupções como essas, ensina Benjamin, orientadas para o futuro. É por via da expectativa que o futuro nelas se infiltra.
são como “pausas silenciosas do destino, que só tardiamente percebemos Procurar pelo futuro nas fotografias é procurar pelos vestígios da espera.
que continham o germe de uma vida inteiramente diversa daquela que nos
Kracauer definiu a espera, a espera que lhe interessava, como um
foi concedida”.* Previsões que se voltam para o futuro do pretérito.
“estar-aberto hesitante”, e que nascia de um “sentido alerta” ao “seu
De cada fotografia emana a radiação ultravioleta que glosa o texto de próprio tempo”.é
nossas vidas. Em cada uma delas inscreve-se o nosso destino. E o nosso
Os fotógrafos modernos são os companheiros de espera que Kracauer
destino não é o que nos tórnamos ou o que deixamos de ser. Nosso destino
procurava entre os intelectuais de sua época. São fotoexpectantes.
é “aprender a ler”.º
Os fotógrafos-leitores que Benjamin conclamava são profetas das en-
III
trelinhas. São fotografólogos.
Habituamos-nos a olhar para as fotografias como portadoras pontuais
II de um passado já ido. “Isto foi”, na sintética, e por isso mesmo genial,
formulação de Roland Barthes.” A tradição documental moderna, por
Desde quando o instantâneo confundiu-se com a própria natureza da sua vez, consagrou a legendagem-padrão: um local e uma data. Mas, nas
Fotografia, a partir de meados dos anos 1920, as câmeras fotográficas últimas décadas, estamos vendo nascer uma nova fenomenologia da Fo-
tornaram-se mais claramente o que sempre foram. Não apenas “relógios tografia. Uma fenomenologia que não é apenas a da “imagem feita”, mas
de ver”, como as definiu Roland Barthes, mas “máquinas de esperar”. outra que busca incorporar tanto as dimensões “fazer fotográfico” (que se
Máquinas para hesitar entre “é agora” ou “não é agora”, entre “espero orienta para o futuro), como a do objeto que lhe serve de suporte (a sua
presença, aqui presente).

3 Benjamin, 1987c, p. 64.


4 Idem, 19870, p. 212. $ Kracauer, O ornamento da massa, 2009, p. 149-160.
S Cadava, 2007. 7 Barthes, 2000.

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ConcLusÃo Pausas DO DESTINO

O novo tempo das fotografias é multidimensional, anacrônico, policrô- mas e dos brinquedos, História em estado puro.” São a própria operação
nico.* Uma mistura inextricável de tempos: histórica em ato, mesmerizada pela atualidade do que foi. As fotografias
- na sua indicialidade, nas sombras de todo o existente no mundo que
atravessam os tempos como os fantasmas atravessam paredes, ambos con-
denados a fazer a incessante mediação entre o que foi, o que é e o que será.
ela acolhe, a fotografia foi;
- na sua iconicidade, ela remete a um inumerável repertório de ima- Fotografia é História. Ou, como ousou dizer, Eduardo Cadava de modo
gens e a forças de figuração e configuração, que, por meio da memória ainda mais radical, não há História que não seja História da fotografia.!º
do fotógrafo e dos espectadores, vêm impregnar a imagem — nisso Toda fotografia um dia irá nos assombrar. Todo fotógrafo é um caça-
tudo que Warburg, o mais importante historiador da arte no início do -fantasmas.
século XX, chamou “sobrevivências”, a fotografia fora.
- na sua pragmática, na dimensão de seu ato, nos vestígios da espera,
V
a fotografia seria, e ainda poderia ter sido;
- mas no momento de sua recepção, quando ela se apresenta diante de Walter Benjamin observou, em 1931, que as fotografias eram capazes
mim: no álbum, na tela, no porta-retratos, nas paredes do Museu, sua de “aninhar” o futuro em “minutos únicos”.!! Dessa metáfora, verdadei-
presença ainda é. ramente perturbadora, decorre que o futuro habita as imagens do passado
como um “ovo” em seu ninho. Está encoberto por uma casca e seu conte-
Toda fotografia que vejo agora emergiu desse torvelinho de tempos.
údo só pode ser adivinhado (por fotógrafos e historiadores, entre outros
Toda fotografia é condensação de múltiplas temporalidades e sobrevivente
os sucessores dos adivinhos). Porém, enquanto isso não acontece, o futu-
de um naufrágio. Como toda sobrevivente, cada fotografia guarda em si a
ro está sendo chocado. Está lá, adormecido, à espera do momento de seu
difícil pergunta sobre o propósito de sua sobrevida, a pergunta sobre o que
despertar, quando a casca se rompe e ele é finalmente reconhecido. Esse
nela, a despeito de tudo o que passou, ainda será. momento é sempre um agora. O agora de uma reciprocidade entre passado
Fotografias são sobreviventes. Fotógrafos são fotonáufragos em missão e futuro que não tem data marcada para acontecer. O agora de uma corres-
de resgate. pondência, o agora de um reconhecimento.
É desde um agora-futuro que a fotografia que contém nossa imagem
IV do passado está à espera. Desde esse agora ela nos visa, nos encara. Con-
denada ao limbo de uma visibilidade incompleta, aguarda pelo gesto de
Porque as fotografias são essa condensação de tempos, nunca estão in- reconhecimento quando será então redimida. Mas toda fotografia insiste,
teiramente no passado ou no presente. São seres que habitam o limiar entre confia, pois tão seguro como estaremos todos mortos um dia, nada está
passado e presente, entre vivo e morto, exatamente como os fantasmas. perdido para a História. Tudo que foi dito, feito e sonhado tem um encontro
E são, como os fantasmas, seres instáveis, simultaneamente sincrônicos e marcado conosco. A tradição ocidental chamou a data desse encontro de
diacrônicos. Estão aqui e agora, conosco, e no mesmo momento, nos for- Dia do Juízo Universal. As fotografias em todo o seu conjunto, e cada uma
necem o testemunho da nossa irremediável diferença em relação ao que foi.
São, como disse uma vez o filósofo italiano Giorgio Agamben dos fantas-

º Agamben, 2007a, p. 73-96.


10 Cadava, 1992.
8 Didi-Huberman, 2008, p. 31-97. 1! Benjamin, 1985c.

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ConcLusÃo
Pausas DO DESTINO

delas individualmente, mostram a face das pessoas e a das coisas, tal como mesmo essas metáforas orgânicas do imediato tornaram-se caducas. Nossa
serão vistas no mais comum — mas igualmente único — dos dias.!? Um dia cultura já está inteiramente dominada por dispositivos tecnológicos instan-
que, finalmente, é o mesmo para todos, e em que todos têm a sua vez. tâneos que sustentam uma complexa rede de simultaneidades globais. Só
Toda fotografia é uma versão microscópica do Juízo Final. Todo his- agora, nos estertores do mundo moderno, podemos compreender qual pode
toriador é um monge redentorista. Todo fotógrafo é o anjo do apocalipse. ter sido o papel da fotografia em uma existência que se tornava cada vez
mais instantânea: preservar a possibilidade do futuro como diferença pela
qual vale à pena esperar.
VI
* Por isso, creio, Vilém Fliisser sugeriu que a tarefa de uma “filosofia da
O que se chama dispositivo fotográfico — a câmera, o fotógrafo, a deci- fotografia” era “apontar o caminho da liberdade”. A máquina fotográfica
são de fotografar — funciona na tensão entre urgência e permanência. Essas representava para ele o protótipo de todos os dispositivos quânticos, a pon-
são as duas faces de uma cunha afiada que, nos termos propostos por El ta de lança do “totalitarismo dos aparelhos em miniatura”. O único exerci-
Lissitzsky para o artista moderno, o fotógrafo procura cravar mais fundo cio de liberdade possível, na cena moderna, era aprender a “jogar contra o
no coração do agora. Ali, entre o olho e o dedo, o tempo é tudo que nos aparelho”, uma prática a que os fotógrafos, segundo ele, já se dedicavam
resta. Um tempo suspenso do tempo. Um tempo de duração indeterminada, “inconscientemente”.!* Acredito que o campo em que tal jogo travou-se
porém determinado a acabar. Tempo do anúncio do que já chegou. Tempo foi esse intervalo que a fotografia procurou expandir, infinitamente, no es-
da prefiguração do que virá e de recapitulação do que já houve. Tempo que treito limite do dispositivo técnico instantâneo.
transcorre entre o escorrer de chronos e o advento de kairós, a oportunida- O que se constitui aí, nesse intervalo, é o tipo de liberdade necessária à
de. A cunha fincada pelo fotógrafo no escorrer do tempo faz dois mundos sustentação de uma ética. Foi o filósofo da técnica Gilbert Simondon quem
que nunca se encontram (este mundo e o mundo por vir) coincidirem pelo melhor definiu o sentido dessa ética: não haveria ilhas no mundo, não há
breve intervalo que a sua espera sustenta. Enquanto as forças da urgência uma interioridade independente de exterioridade, nenhum instante é autos-
e da permanência sustentam seu paradoxo, o passado reencontra sua atua- suficiente, pois “cada gesto tem um sentido de informação e é simbólico
lidade perdida. E o presente, o sonho de sua completude." Dessa grande com relação à vida inteira e ao conjunto das vidas”.! Nessa ética para
catástrofe cósmica, uma fotografia é tudo que nos resta.
vidas que se tornavam cada vez mais instantâneas, a espera do fotógrafo era
Todo ato fotográfico dura o tempo que nos resta. Toda fotografia é a esse esforço para reabrir, no seio do agora, suas múltiplas possibilidades
última, principalmente a próxima. de sentido, suas virtualidades adormecidas. Na iminência do corte que nos
legará, no final, apenas uma imagem e um assunto; nesse intervalo, adensa-
do pela expectativa, por mais breve que seja, resguarda-se certa imunidade
VII
do futuro. Cria-se ali uma reserva de futuro — no mesmo sentido em que se
O apogeu da fotografia coincidiu com a brutal aceleração temporal que diz de uma reserva indígena ou uma reserva florestal. Uma reserva onde o
marcou a Era Moderna, na qual mais e mais ações cotidianas passaram tempo reencontra sua potência de interrupção.!é
a resolver-se num piscar de olhos, ou em um estalar de dedos. Hoje, até

44 Flússer, 1985, p. 82-4.


i2 Agamben, 2007, p. 27-30. !S Simondon, 1989, p. 245.
13 Idem, 2006, p. 78-79. 16 Lissovsky, 2008, p. 197-213.

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ConcLusÃo Pausas DO DESTINO

Todo fotógrafo é o guarda florestal de uma reserva de futuro, onde uma ter compreendido todas as implicações do darwinismo —, “uma galinha é
população de instantes, em vias de extinção, preserva sua capacidade de apenas o modo pelo qual um ovo produz outro ovo.” Assim, também, ago-
irromper em nossas vidas como Acontecimento e Diferença. ra mais do que nunca, fotógrafos são um modo pelo qual uma fotografia
produz outra fotografia.
VIII Do mesmo modo como o desenvolvimento dos microscópios abriu nos-
sos olhos para toda uma vida minúscula que habitava a superfície árida das
Uma história que se ocupa das imagens é sobretudo uma história do coisas do mundo, assim também as novas tecnologias digitais tornaram
futuro, uma história poética. Os arquivos de imagens são como os brinque-
possível observar, em bases cotidianas, o que antes era o lento e obscuro
dos que uma criança tem em seu quarto, sobre as prateleiras ou dentro do
trabalho do sonho que constituía a vida íntima das imagens. Aquilo que
armário, que ganham vida durante a noite. disse Benjamin uma vez do “inconsciente ótico” — que a fotografia tornava
A história das imagens é a história da sua vida onírica. Toda fotografia grandes e “formuláveis” nossos “sonhos diurnos”” — agora convém ao
é o despertar em que as luzes do dia se misturam com fiapos de sonhos que écrain luminoso, que se tornou o meio de cultura ideal para que colônias de
nos escorrem por entre os dedos. fotobactérias realizem as suas mais prodigiosas infecções.
O fotógrafo contemporâneo é cada vez menos um “caçador de ima-
IX gens”. Ou é um surfista que tenta, quase sempre em vão, manter-se acima
da linha d'água em meio a um tsunami de fotos feitas. Ou é um esgrimista,
A tecnologia e os meios digitais permitiram uma expansão exponencial como o poeta Baudelaire descreveu a si mesmo (em O Sol, poema 87 de
dos recursos de manipulação, processamento e distribuição de imagens. As Flores do Mal):
Elevaram ao infinito as possibilidades de apropriação, hibridação e trans-
formação das fotografias produzidas hoje e, junto com elas, de todas aque- Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros
las produzidas outrora. Somos tomados pela estranha vertigem de que tudo Persianas acobertam beijos sorrateiros,
que uma vez se fotografou está agora a nossa disposição. Essa montanha de Quando o impiedoso sol arroja seus punhais
imagens que se acumula infinitamente sob os nossos pés, e que não para de Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,
crescer, nos interroga, desde o mais fundo dos estratos sedimentados pela
Exercerei a sós a minha estranha esgrima,
tradição, até a poeira imperceptível dos milhões de fotografias que estão
Buscando em cada canto os acasos da rima,
sendo realizadas por aparelhos celulares neste exato momento. Os recur-
sos tecnológicos colocaram ao alcance de qualquer criança e da intuição Tropeçando em palavras como nas calçadas,
do artista mais ingênuo a possibilidade de liberar sonhos que as imagens Topando imagens desde há muito já sonhadas.'º
mantinham adormecidos em seu ventre numa velocidade e numa escala
jamais vistas. O fotógrafo-poeta-esgrimista busca esquivar-se do ataque de imagens
que tentam fazer dele mero veículo de sua reprodução. É dos retalhos, dos
Essa montanha de imagens que se eleva até encobrir o horizonte está
fragmentos de si e do mundo que resultam deste duelo, que sonhos há mui-
em permanente movimento. Em toda parte, artistas e pesquisadores já se
deram conta de que as imagens estão vivas. De fato, dão-se conta de que
sempre estiveram vivas, a ponto de podermos dizer delas o que Samuel
17 Benjamin, 1985c.
Butler disse a respeito dos ovos, em 1878: “Uma galinha — conclui ele, após 18 Baudelaire, 1995, p. 170.

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ConcLusÃo Pausas DO DESTINO

to esquecidos podem retornar à luz, redimidos de uma condenação às tre- do ou do gesto do fotógrafo, mas igualmente da vontade de sobrevivência
vas que parecia durar uma eternidade. Assim, Baudelaire poderia dizer dos das imagens. Toda fotografia é um cristal das tensões que a constituem.
fotógrafos-esgrimistas contemporâneos que, assim como o sol: Do ponto de vista do historiador visual, e do decifrador de imagens em
que todo fotógrafo contemporâneo se tornou, fazer a arqueologia de uma
Quando às cidades ele vai, tal como um poeta,
fotografia é sempre defrontar-se com os vestígios das forças do mundo, do
Eis que redime até a coisa mais abjeta, gesto e do imaginário que a configuraram, é dar-se conta da cooperação e
E adentra como rei, sem bulha ou serviçais, do conflito entre elas.
Quer os palácios, quer os tristes hospitais." * Na fotográfica clássica, o predomínio foi do mundo e do ponto de vis-
ta; a Fotografia moderna deu vez ao gesto e ao tempo; agora, o fotógrafo
Todo fotógrafo é personagem de uma conhecida saga futurista, esgri-
contemporâneo vê-se face a face com o imaginário. As imagens digitais
mindo seu sabre de luz diante de um adversário muito maior, mais podero-
tornam-se mais e mais diáfanas e voláteis a cada momento, e encontram
so e bem mais velho que ele. Observar a cena fotográfica contemporânea é
na reprodutibilidade infinita de que dispõem a ilusão de sua perpetuação, a
admirar os despojos dessa luta.
crença em uma vitória possível sobre o desaparecimento. É por que visam
sua sobrevivência, visam reforçar sua reprodutibilidade, que as imagens
X atuais aspiram ao clichê.
Na experiência moderna, o fotógrafo já foi essa resistência, essa de-
Todas as imagens vão desaparecer um dia. Mesmo as radiotransmitidas
mora que se interpunha entre o olho e o dedo, que investia na potência da
para bem longe, para os confins do Universo, hão de sucumbir no fundo
espera como lugar de retardamento do devir instantâneo do tempo. A espe-
insondável de algum buraco negro. Mas a crise que abalou a Fotografia
ra era esse campo de forças da figuração onde se gestava a diferença entre
moderna não foi a consciência de seu fatal desaparecimento. Não foi a
instantes que teimavam em passar cada vez mais homogêneos, esse campo
crise motivada pelo que o futuro lhe reservara, mas a crise do próprio futu-
de jogo em que a criação fotográfica exercitava sua liberdade. Ali, no lugar
ro como reserva de novidade. Para muitos autores, em particular a crítica
dessa espera, na resistência dessa demora, o fotógrafo polarizava as forças
norte-americana dos anos 1990, a Fotografia moderna foi obrigada a come-
de sua individuação, pois também tem sua origem na espera, efeito subjeti-
ter suicídio para que a imagem fotográfica fosse finalmente aceita nos mais
vo colateral do intervalo em que suas imagens se produzem.
valorizados recônditos da arte.
Os fotógrafos contemporâneos têm outros desafios pela frente. O re-
Para além dessas mudanças que poderíamos chamar de “institucionais”,
tardamento que se impõe não é mais o do devir dos instantes, mas o da re-
porém, temos nitidamente a impressão de que a experiência e a cultura
produção instantânea dos clichês. Uma reprodução do qual eles são, como
fotográfica “consumaram-se”. Isto é, que os marcos culturais, políticos e
Fliisser havia previsto, antes o instrumento que o fim. Os antigos já o sa-
midiáticos no interior dos quais a Fotografia construiu sua identidade estão
biam: imagem é o que sucede a tudo o que morre. As imagens atuais, no
em vias de rápido esgotamento. No entanto, quanto mais difusa e vaga pa-
entanto, estão tomadas por um delírio de onipotência, uma fantasia que en-
rece ser a presença da Fotografia hoje, mais visíveis se tornam as forças a
controu na replicação infinita a justificativa autorreferente de sua existên-
constituíram em sua história. Forças que não são apenas oriundas do mun-
cia. As imagens-clichês querem “passar”, querem nos fazer crer que agora,
mais do que nunca, a reprodução é parte indissociável da sua natureza. Mas
não se deixem enganar: elas ainda precisam de nós para ganhar impulso.
19 Ibidem. Alimentam-se como vampiras do nosso élan vital, sem o qual submergi-

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ConcLusão
Pausas DO DESTINO

riam no tsunami do imaginário. Devidamente sugados por suas fotografias,


fotógrafos exangues tendem a tornar-se, eles próprios, imagens: espectros
digitais de si mesmos.
Bibliografia
Como restringir o impulso das imagens? Como produzir o atrito que
perturba seu deslizamento? Como impor ao clichê a demora que revela a
fragilidade da sua construção, ou evidencia as forças poderosas que agiram
A CONTRADITA: polícia política e comunismo no Brasil: 1945-1964: entrevis-
na sua composição? O fotógrafo clássico imaginava-se um cristal translú-
tas com Cecil Borer, Hércules Corrêa dos Reis, José de Moraes e Nilson Venân-
cido e viveu às turras com a questão indecidível da objetividade de suas
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clichês em sua marcha vitoriosa rumo aos confins do universo. - Infancy and History. Londres: Verso, 2007a.
. In the Playland. In: AGAMBEN, Giorgio. Infancy and History. Londres:
A fotografia atual aspira tornar o fotógrafo um seu igual, um ser tão di-
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gital quanto ela. O fotógrafo contemporâneo, o fotógrafo do futuro, é aque-
le que aprendeu a dispor barricadas de opacidade no percurso das imagens.
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É este que procura, de inúmeras e variadas maneiras, inscrever no corpo
p. 90-9.
diáfano da nova imagem as dores da própria virtualização. — . Nudez. Lisboa: Relógio D'Água, 2010.
— O autor como gesto. In: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo:
Esse fotógrafo somos todos nós, sempre que nos surpreendemos e hesi-
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tamos diante do devir-imiagem que nos atinge.
— O que é um dispositivo? Outra Travessia, n. 5, Florianópolis, Universi-
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