Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
30414
Henri Bergson
Tradução
Philippe Claude Thierry Lacourii; Jade Oliveira Chaiaiii; Sèdjro Crédo Randal e Zittiiv; Manuella
Mucury Teixeirav; Michelly Alves Teixeiravi; Rogério Santos dos Prazeresvii; Alice Ribeiro Braatzviii;
Eliza Maiby Carvalho Augustoix
Revisão Técnica
Débora Moratox
Tradução
iTexto originalmente publicado no Bulletin de la Société Française de Philosophie, pp. 33–57. Sessão de 05 de maio 1901.
iiProfessor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Filosofia pela Universidade de Provence
Aix Marseille I. E-mail: unb@philippelacour.net. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3226-584X.
iiiMestranda no PPGDL/UCDB e graduanda em Filosofia pela UnB. E-mail: jade.joc@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
7615-5610.
ivGraduando em Relações Internacionais pela UnB.E-mail: credozitti@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6508-
5864.
vDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB, com período sanduíche na Université Paris-Diderot (Paris VII
-Sorbonne). Mestra em Filosofia pela UnB e graduada em psicologia pelo Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB. E-mail:
mucuryrev@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0320-2113.
viMestranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB. Graduada (Bacharelado e Licenciatura) em Filosofia pela UnB.
E-mail: michellyteixeira@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0842-8824.
vii Doutorando em Antropologia Social pela UFG. E-mail: pleinementperdu@yahoo.fr. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5513-786X.
viiiGraduada em Direito pela UnB. E-mail: alice.braatz@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5232-8671.
ixLicenciada em Letras-Francês pela UnB. E-mail: elisamaiby@outlook.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7400-2688.
xProfessora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos(UFSCAR). Doutora em Filosofia pela Universi-
dade de São Paulo (USP). E-mail: deboramorato@uol.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9895-6988.
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 457
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
458 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
prime que ela é subordinada à aceita- dizer sobre essa distinção. Pergunto-
ção da segunda, e o da segunda supõe me se cartesianos, ressuscitando hoje,
a primeira admitida. Porém, eis que ainda teriam a mesma ideia de inteligi-
a primeira proposição, ela mesma, co- bilidade. Creio que é muito difícil dizer
meça por um ‘se’: eis aí, sem dúvida, se uma noção, por simples inspeção, é
aquilo com que o Sr. Belot se surpre- ou não é inteligível. A inteligibilidade
ende. Eu me apresso em responder-lhe vem pouco a pouco, pela aplicação que
que eu não teria enunciado a proposi- dela se faz. A inteligibilidade de uma
ção sob essa forma se tivesse pensado ideia só pode ser medida pela riqueza
que todo mundo me concedesse o que do que sugere, pela extensão, pela fe-
ela pede, a saber, que “o paralelismo cundidade e pela certeza de sua apli-
psicofísico não é nem rigoroso, nem cação, pelo número crescente de arti-
completo”. Sustentei eu essa tese; mas, culações que ela nos permite desnudar,
convencido que estou, não tenho direito por assim dizer, no real, enfim, pela sua
a falar como se tivesse convencido os energia interior. A noção de diferen-
outros. Esse ‘se’ era então, no meu pen- cial, após ter sido muito obscura para
samento, um ‘se’ de cortesia para com os primeiros matemáticos que a utili-
meus eventuais contraditores. Pois, se zaram, tornou-se, pelo próprio uso que
fosse para ver nele um ‘se’ de timidez, se faz dela, a noção clara por excelên-
eu o apagaria imediatamente e o subs- cia, a que ilumina todas as matemáti-
tituiria por um ‘já que’. Porque eu não cas. Se os cartesianos (bem mais, aliás,
tenho nem a mais ligeira dúvida sobre que o próprio Descartes) relacionaram
esse aspecto: estou inteiramente con- à extensão tudo o que a natureza nos
vencido de que, entre o fato psicológico oferece de claro e distinto, é porque as
e a atividade cerebral, existe uma certa descobertas dos astrônomos e dos físi-
relação, uma correspondência de um cos dos séculos XVI e XVII, e acima de
certo gênero, como eu o explicarei em tudo as descobertas de Descartes, lhes
breve, mas de jeito nenhum existe pa- haviam revelado o poder explicativo da
ralelismo. ideia de extensão. Seu critério de in-
Chego à segunda observação preli- teligibilidade era muito mais empírico
minar do Sr. Belot: “O problema das do que eles pensavam. Ele correspon-
relações da alma e do corpo já ocu- dia a um aprofundamento completo de
pam o lugar mais importante, disse, na sua própria experiência. Mas a expe-
metafísica cartesiana. Mas enquanto riência para nós é muito mais vasta.
os cartesianos se preocupavam, sobre- Ela se alargou ao ponto que tivemos
tudo, em tornar essas relações inteligí- de renunciar, há quase um século, à
veis, Bergson se coloca unicamente no esperança de uma matemática univer-
terreno dos fatos”. – Haveria muito a sal. Novas ciências se constituíram so-
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 459
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
bre essa própria renúncia, ciências que cuna é afirmada”. Em primeiro lugar,
observam e experimentam sem o pres- gostaria de levantar aqui uma impreci-
suposto de chegar a uma fórmula ma- são de detalhe. É bem verdade que eu
temática. A inteligibilidade se estende procurei a lacuna no lado das faculda-
assim, pouco a pouco a novas noções, des “inferiores”, mas não no lado das
sugeridas, também elas, pela experi- faculdades “inconscientes”. Não que eu
ência. Eu não creio, pois, ser infiel ao negue o inconsciente. Diga-se de pas-
método de Descartes ao pedir que se sagem, a ideia do inconsciente poderia
revise tal ou tal solução cartesiana, no servir de verificação para aquilo que su-
mesmo sentido em que um filósofo car- geri há pouco, a saber, que uma ideia se
tesiano, sem dúvida, solicitaria que se a torna inteligível pela aplicação que se
revisasse, em presença de uma ciência faz dela. Dizia-se frequentemente há
mais flexível, instruída por uma experi- vinte anos (eu tenho na consciência [a
ência mais vasta e disposta a reconhecer lembrança] de tê-lo ensinado por muito
nos fenômenos da natureza uma com- tempo) que um estado psicológico é por
plexidade de organização dificilmente definição um estado consciente, e que a
redutível ao mecanismo matemático. ideia de um estado psicológico incons-
Caso se chame método uma certa ati- ciente é, por consequência, uma ideia
tude do espírito face a seu objeto, uma contraditória. Entretanto, eu acredito
certa adaptação da forma das pesqui- que se tornou muito difícil, para quem
sas a sua matéria, não se permanece acompanhou de perto o progresso da
fiel a um método conservando imuta- psicologia nos últimos anos, não abrir
velmente os procedimentos, quando os um amplo espaço ao inconsciente nas
materiais sobre os quais ele opera mu- explicações psicológicas, e mesmo não
daram radicalmente. Manter-se fiel a reconhecer que a ideia de inconsciente,
um método consiste, ao contrário, em à medida que a manipulamos, tende
remoledar constantemente a forma so- cada vez mais a se tornar uma ideia
bre a matéria, de maneira a conservar clara, nosso espírito se expandindo, se
sempre a mesma precisão de ajuste. forçando, e por fim abraçando esta re-
Mas eu chego à questão de fundo. presentação inicialmente refratária. Os
O Sr. Belot começa por salientar que progressos sutis são alcançados sem dú-
“o antigo espiritualismo, igualmente, vida nas ciências pela verificação cres-
acreditou ser necessário afirmar uma cente de princípios já aceitos: mas como
distância entre o físico e o moral, mas um progresso científico importante, ra-
que ele buscava essa lacuna no lado das dical, poderia ser obtido senão por um
faculdades superiores, ao passo que, no esforço de expansão intelectual, o qual
novo espiritualismo, é no lado das fun- leva à inteligibilidade certos conceitos
ções inferiores e inconscientes que a la- que, até então, beiravam a contradição?
460 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 461
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
priamente dito aparece, nós podemos deira, na minha opinião), mas dela nada
fazer com que vocês vejam algo abso- se tira, não mais que da afirmação con-
lutamente novo, uma certa indetermi- trária, aliás. O sim e o não são estéreis
nação, uma certa contingência, uma ca- na filosofia. O que é interessante, ins-
pacidade de escolha. Mas então vocês trutivo, fecundo, é o ‘em que medida?’.
poderão, se quiserem, reconstituir as Não se ganha nada em constatar que
atividades superiores do espírito com dois conceitos como os de espírito e o de
os estados psicológicos mais elementa- matéria são exteriores um ao outro. Te-
res, sua hipótese será impotente face ao mos a possibilidade, ao contrário, de fa-
espiritualismo, porque ela terá come- zermos descobertas importantes ao nos
çado a abrigar o seu inimigo no próprio colocarmos no ponto em que os dois
lar. Em outras palavras, eu digo que conceitos se tocam, em sua fronteira co-
o espiritualismo tem de se resignar a mum, para estudar a forma e a natureza
descer das alturas onde ele se refugia. do contato. É verdade que a primeira
Enquanto permanecer lá, ele poderá operação sempre seduziu os filósofos,
até estar em possessão da verdade, mas porque se trata de um trabalho dialé-
permanecerá impotente para converter tico que fazemos imediatamente sobre
os outros. Nós queremos substituir ao ideias puras, ao passo que a segunda é
antigo jogo das escolas, onde cada um uma operação penosa que não se pode
desenvolvia até o final uma concepção realizar senão de forma progressiva so-
abstrata para, em seguida, contrapô-la à bre fatos, sobre a experiência – a experi-
concepção contrária, uma filosofia am- ência sendo precisamente o lugar onde
pla, aberta a todos, progressiva, em que os conceitos se tocam ou se interpene-
as opiniões serão elas mesmas postas à tram. É a esse trabalho muito longo e
prova, e se corrigirão entre si no contato muito difícil que eu convidei os filóso-
com uma única e mesma experiência. fos.
Eis por que eu digo que o antigo espi- Eu mesmo me aventurei por aí, na
ritualismo deve ter parecido arbitrário. medida muito limitada em que me sen-
Eu acrescento que ele era necessaria- tia capaz. Inicialmente, considerei as
mente infecundo e que o desdém que manifestações da matéria, não naquilo
se tinha para com ele, e que ainda têm que têm de mais simples, isto é, nos
muitos homens da ciência, vinha sobre- fatos físicos, mas na sua forma mais
tudo daí. Ele era infecundo justamente complexa, no fato fisiológico. E não foi
porque se limitava a considerar os ter- o fato fisiológico em geral que eu re-
mos extremos e a declarar pura e sim- tive, mas o fato cerebral. Nem mesmo o
plesmente que o espírito é irredutível à fato cerebral em geral, mas tal fato bem
matéria. Ora, uma declaração desse gê- determinado e localizado, aquele que
nero pode ser verdadeira (ela é verda- condiciona uma certa função da fala.
462 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
Eu avançava desse modo, de compli- mesmo fato era muito mais indepen-
cação em complicação, até o ponto em dente. A partir daí aparecia, a meu ver,
que a atividade da matéria quase toca a possibilidade de determinar empiri-
a do espírito. Então, de simplificação camente, progressivamente, isso que eu
em simplificação, fiz descer o espírito o chamei “a significação da vida”, ou seja,
mais perto que pude da matéria. Deixei o verdadeiro sentido da distinção entre
de lado as ideias para considerar ape- a alma e o corpo, bem como a razão
nas as imagens; das imagens eu me fi- pela qual se unem em conjunto e co-
xei nas lembranças, das lembranças em laboram. Parecia-me também que, com
geral, nas lembranças de palavras, das isso, nós poderíamos compreender cada
lembranças de palavras, nas lembran- vez melhor o tipo muito específico de
ças realmente especiais que nós con- limitação que a vida traz a nosso pensa-
servamos do som dessas palavras; eu mento. Os filósofos não teriam tomado
estava dessa vez na fronteira, eu quase por conhecimento relativo o que é ape-
tocava o fenômeno cerebral no qual se nas conhecimento diminuído, retraído,
continua a vibração sonora. E, no en- forçado a se exteriorizar em ação antes
tanto, havia uma diferença. Não era de se aprofundar como pensamento? E
mais, é verdade, aquela lacuna abstrata a forma desta limitação sendo cada vez
que se pode afirmar a priori entre dois mais claramente percebida, não encon-
conceitos tais como os de consciência e traríamos, cada vez mais, as direções
movimento: da exclusão recíproca de nas quais devemos nos esforçar para
dois conceitos, eu repito, não se pode transcendê-la?
tirar nada. Era uma relação concreta e Ademais, as obscuridades do dua-
viva. Eu via, no momento preciso em lismo, a dificuldade de estabelecer uma
que o fato da consciência vai se du- distinção tão radical entre a consciên-
plicar em um concomitante cerebral, cia e seu suporte, não seriam uma obs-
porque e como o pensamento precisa curidade e uma dificuldade artificiais,
se desenvolver em movimento no es- decorrentes da limitação que a duali-
paço, tudo o que ele contém de ação dade mesma do corpo e do espírito im-
possível, tudo que ele tem de desempe- põe à nossa inteligência? Assim, limi-
nhável. Eu via também, no fato psi- tando o espiritualismo a este terreno
cológico que se sobrepõe à atividade extremamente estreito, parecia-me que
cerebral, algo de parcialmente livre, se podia aumentar indefinidamente sua
de parcialmente indeterminado, uma fecundidade e sua força, torná-lo ca-
vez que parte desempenhável deste fato paz de se fazer aceitar por aqueles que
está sendo determinada rigorosamente o rejeitam, conduzi-lo a uma teoria do
por suas condições físicas, enquanto o conhecimento pela qual ele dissiparia
lado imagem ou representação desse as obscuridades que encerra, enfim, fa-
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 463
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
zer dele, de todas as doutrinas, a mais tavam lidar com uma geração espontâ-
empírica por seu método e a mais me- nea, germes vivos preexistiam. E sem-
tafísica por seus resultados. pre nós poderemos nos perguntar se,
Contra essa metafísica ou no mínimo em outras condições de experiência, nas
contra esse método, o Sr. Belot er- quais os próprios adversários de Pas-
gue uma série de objeções tiradas em teur não tivessem pensado, não assisti-
primeiro lugar da impossibilidade em ríamos porventura uma gênese espon-
que estaríamos: aquela de estabelecer, tânea da vida. No entanto, eu o repito,
de uma maneira rigorosa, a existên- há consenso em reconhecer que Pasteur
cia de uma distância definitiva entre conferiu à sua tese um grau de probabi-
o fato psicológico e o seu substrato ce- lidade que equivale, prática e cientifica-
rebral. Uma boa parte da argumenta- mente, à certeza. Então, se eu pudesse
ção dele, salvo engano, poderia ser as- chegar, a respeito de todas as questões
sim resumida: “Mesmo que encontrem relativas às relações do físico ao psí-
uma distância, não há provas de que os quico e dos problemas metafísicos em
progressos posteriores da ciência não geral, a uma certeza igual ou mesmo
conseguirão reduzi-la. Vocês não po- simplesmente comparável à certeza da
dem demonstrar a impossibilidade do proposição de Pasteur: “Não há geração
paralelismo”. Não, seguramente eu não espontânea”, essa certeza me bastaria
posso demonstrar a impossibilidade do perfeitamente.
paralelismo. Não há nenhum meio co- Eu temo que seja isto o que nos se-
nhecido nem concebível de provar a para, e que vocês concebam (a despeito
impossibilidade de um fato. Pode-se de vocês mesmos) a metafísica como
provar que é possível, demonstrando uma ciência análoga à matemática, res-
experimentalmente que ele é real; mas trita à simplicidade clara e ao dogma-
não se pode, nem por experiência, nem tismo afiado da matemática. Se a me-
por raciocínio, demonstrá-lo impossí- tafísica for isso, só nos restará esco-
vel. No entanto, há concordância em lher entre concepções definitivamente
reconhecer que certas impossibilidades decretadas, simples, cujo desenvolvi-
de fato foram suficientemente estabe- mento levaremos ao extremo: é uma
lecidas pela ciência. Admite-se, desde ciência feita, ou melhor, é somente um
Pasteur, a impossibilidade da geração jogo definido entre escolas antagonis-
espontânea, pelo menos nas condições tas, que sobem juntas à cena para serem
atuais da vida. Não é a certeza rigo- aplaudidas sucessivamente. Eu vejo, ao
rosa, absoluta, matemática, reconheço. contrário, na metafísica vindoura, uma
Tudo que Pasteur pode fazer foi mos- ciência empírica à sua maneira, pro-
trar a seus contraditores que, em todas gressiva, restrita, como as outras ciên-
as experiências nas quais eles acredi- cias positivas, a oferecer apenas como
464 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 465
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
gem, por sua vez, resta uma margem, é para não romper esse encadeamento
uma margem ainda maior para o pensa- rigoroso de causas e efeitos que eles fa-
mento. Assim, o pensamento é relativa- laram do paralelismo entre o psíquico
mente livre e indeterminado em relação e o físico, como se o corpo e o espírito
à atividade cerebral que o condiciona, dissessem exatamente as mesmas coisas
atividade que apenas expressa as arti- em duas línguas independentes. Mas
culações motoras da ideia, e as articula- teriam eles hoje a mesma ideia da na-
ções podendo ser as mesmas para ideias tureza? Visariam, na ciência, à mesma
absolutamente diferentes. E, contudo, simplicidade? Conceberiam a inteligi-
isso não é a liberdade completa nem a bilidade da mesma maneira? Se perma-
indeterminação absoluta, uma vez que necemos no abstrato, se vemos na meta-
uma ideia qualquer, tomada ao acaso, física um desenvolvimento retilíneo de
não apresentaria as articulações deseja- ideias simples, é sem dúvida em torno
das. Em resumo, nenhum dos conceitos da tese do paralelismo que nos reunire-
simples que a filosofia nos fornece po- mos, porque de imediato expressa, ra-
deria exprimir a relação procurada, mas dicalmente, simplesmente, as exigên-
essa relação parece destacar-se com cla- cias do princípio da causalidade for-
reza suficiente da experiência. mulado, ele mesmo, da maneira mais
Mas você insiste, e diz que essa ex- simples. Mas a realidade é muito mais
periência é incompleta, e questiona se complexa, e a experiência, bem mais
a experiência, na medida em que ela instrutiva.
aprofundaria mais os fatos, não daria É verdade que não pude entrar em
cada vez mais razão à tese do parale- um cérebro, para seguir os traços do
lismo. Que motivo teria você para tal estímulo cerebral, medindo com preci-
suposição? É científico chamar de uma são o desvio que separa esse fenômeno
experiência real, que conhecemos, uma do estado psicológico correspondente.
experiência possível, da qual ainda não Mas do fato de que uma verdade seja
podemos dizer nada? Considere agora de natureza empírica, não se segue que
se a sua fé no paralelismo, sua confi- se possa verificá-la empiricamente de
ante espera de uma demonstração por imediato. Frequentemente é preciso
vir, não seria simplesmente uma sobre- sondá-la, abrir em direção a ela inu-
vivência, em você, de uma crença leib- meráveis caminhos, dos quais nenhum
niziana ou espinosista no mecanismo poderia ser seguido até o final, mas cuja
universal. Os sucessores de Descartes, convergência marca, com uma exatidão
empurrando às extremas consequências suficiente, o ponto de chegada. É as-
as ideias do mestre, acreditaram numa sim que medimos a distância de um
ciência única da natureza, numa grande ponto inacessível, mirando-o, alterna-
matemática capaz de tudo abarcar. E damente, dos pontos onde temos cesso.
466 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 467
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
468 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 469
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
de tudo um órgão de esporte, e, desse ser o objeto próprio da vida), ele toma
ponto de vistao homem poderia ser de- mais consciência de sua natureza pró-
finido como “um animal esportivo”. O pria e, por conseguinte, também de sua
primeiro de todos os esportes é a lin- independência face à matéria. Apego e
guagem, esta função que ocupa um ter- desapego, eis os dois polos entre os quais
ritório tão vasto no cérebro do homem. a moralidade oscila. Você me pergunta
A linguagem foi o instrumento por ex- qual é aquele em que ela deve se fixar?
celência da libertação, apesar do auto- Eu não vejo por que ela se fixaria. Se
matismo que inflige posteriormente ao não se apega à vida, o esforço carece de
pensamento. Mas, de uma maneira ge- intensidade. Se não se desapega, ao me-
ral, a superioridade de nosso cérebro nos levemente e pelo pensamento, falta
reside na potência de libertação que direção ao esforço. É preciso se orien-
nos dá face ao automatismo corporal, tar pelo primeiro ponto para ter a força
ao nos permitir criar sem cessar novos de agir, e pelo segundo para se subtrair
hábitos, que acabarão por absorver e aos preconceitos do momento e saber
sobrepor-se aos outros. Nesse sentido, o que deve fazer. Mas não se deve ir
não se encontra nada no cérebro que completamente nem a uma nem a ou-
corresponda à operação propriamente tra dessas duas extremidades. Volto à
dita do pensamento; e, no entanto, é o ideia que tem sido o leitmotiv de toda
cérebro humano que tornou possível o minha réplica. Não é nem interessante,
pensamento humano. Sem ele, as facul- nem instrutivo, nem conforme à ver-
dades superiores do pensamento não dade opor uns aos outros conceitos,
poderiam se inclinar em direção à ma- sendo que cada um deles se aplica em
téria, sem serem capturadas pelo auto- parte ao real, uma vez que daí cada um
matismo e afogadas no inconsciente. foi necessariamente extraído. Antes, a
O que posso dizer mais? E como, so- filosofia deve dosar a mistura, e, se pos-
bre essa filosofia ainda vaga da vida, sível, criar conceitos superiores, em que
poderia edificar a moral precisa e de- as antigas oposições serão reabsorvidas.
finitiva que vocês parecem me pedir? Trabalhemos, portanto, para nos
Tudo o que posso dizer é que o exer- aproximarmos da experiência o má-
cício normal da atividade humana se ximo que pudermos. Aceitemos a ci-
definirá, mais e mais, pelo aprofunda- ência com a sua complexidade atual,
mento da própria vida. Da minha parte, e recomecemos, tendo essa nova ciên-
eu vejo sempre e em todo lugar uma cia como matéria, um esforço análogo
dupla direção se manifestar no desen- àquele que tentaram os antigos metafí-
volvimento desta atividade. Ao mesmo sicos a partir de uma ciência mais sim-
tempo que o pensamento se insere na ples. É necessário romper com os qua-
vida e se concentra na ação (que parece dros matemáticos, levar em conta as ci-
470 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
Discussão1
Intervenção do Sr. BELOT – Eu não acre- tro recurso ou função além de determi-
dito que seja útil retomar, como me con- nar as diferentes direções que a análise
vidou com cortesia o Sr. Bergson, os pode apreender no relativo. Eu indi-
detalhes de minha argumentação, cujo quei que os absolutos da metafísica são
principal mérito é ter provocado sua apenas termos limites de cada um dos
bela apresentação. Se permanece al- processos que tal análise comporta, e
guma dificuldade, e eu creio que sim, nada mais significam, no fundo, que os
entre aquelas que eu havia assinalado, diversos e muitas vezes inversos méto-
que ele tenha deixado sem resposta, dos que podemos adotar na explicação
elas serão levantadas de maneira mais do real.
útil por algum outro membro da socie- Mas então eu solicito, se se está bem
dade. convencido de que a metafísica tem essa
No entanto, há dois pontos na réplica significação totalmente relativista, que
do Sr. Bergson sobre os quais eu acre- se permaneça no relativo. E o que eu
dito que seja útil chamar-lhe a atenção. acreditei poder precisamente objetar ao
Por várias vezes, o Sr. Bergson pare- Sr. Bergson? É de não ter se mantido aí,
ceu atribuir a mim esse pensamento de é de ter passado ao limite, e ter conside-
que a metafísica, tal como a concebo, rado os termos-limites, como a memória
procederia por oposições bem marca- pura e percepção pura, como realidades
das de sim e não, confrontaria um e o dadas, entre as quais, em seguida, ele
outro dos absolutos postos, e de alguma estabelece antíteses radicais. Peço-lhe
maneira já completamente feitos, do es- perdão, mas parece-me que aqui sou eu
pírito nas coisas. Nenhum pensamento quem o lembro do próprio método que
seria mais contrário ao meu. Como ele, ele de maneira tão fina e excelente defi-
estou muito persuadido, e eu lhe disse, niu.
de que a metafísica se apoia sobretudo É no mesmo espírito que pedirei a
na experiência, e que ela não tem ou- ele que compreenda minhas observa-
1 Texto originalmente publicado no Bulletin de la Société française de philosophie, pp. 59-71, junho 1901.
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 471
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
ções finais sobre o sentido da vida, mi- lelismo manteve-se absolutamente fora
nhas antíteses entre o pensamento e a de questão. Parece-me que a maior
ação. Não esqueço de forma alguma parte de suas indicações tão engenho-
que na realidade tudo está misturado, sas sobre o desapego e sobre o apego se-
que nenhuma exclusão é possível, que riam aceitáveis para a psicologia e para
o sacrifício da vida ao pensamento ou a moral correntes, tanto se admitimos
do pensamento à vida seria um con- o paralelismo quanto se o rejeitamos;
trassenso. Todavia, se podemos distin- mas não nos parece ter sido estabele-
guir várias direções possíveis da ação, cido, como éramos levados a esperar,
e se nos pronunciamos, como ele o de- que eles fossem consequências rigoro-
manda e espera, sobre a “significação samente deduzidas da negação do pa-
da vida”, é preciso chegar a considerar ralelismo. Se assim fosse, toda a última
uma das direções opostas como essen- parte de minhas críticas ficaria verda-
cial, e a outra como uma simples con- deiramente sem resposta.
dição prática da primeira, ou, pelo me-
nos, indicar a qual ponto de vista cada
uma se presta, a qual ponto de vista, Sr. BERGSON – Para mim é impossí-
por exemplo, e para não permanecer vel aceitar a distinção estabelecida pelo
no abstrato, o indivíduo deve trabalhar Sr. Belot entre o “relativo” , que seria
para se isolar e se diferenciar ou, ao dado pela experiência, e esse “absoluto”
contrário, trabalhar para sua integração (então necessariamente problemático)
social, no sentido da assimilação. Em ao qual a metafísica chegaria, ao pas-
todo caso, se falamos da significação sar limite daquilo que a experiência lhe
da vida, é impossível deixar no indis- dá. Na filosofia cujas linhas gerais eu
tinto, ou sequer colocar sobre o mesmo esboçava há pouco, nem a experiência é
plano, como igualmente e indiferente- tão relativa, nem o absoluto é tão pro-
mente válidas, as diferentes interpreta- blemático ou tão transcendente quanto
ções opostas da vida. E é por isso que o consideraram a maioria das metafí-
perguntava ao Sr. Bergson, e pergunto- sicas. Eu não posso pretender retra-
lhe ainda, a esse respeito, o que ele tira çar aqui o desenvolvimento histórico
da negação do paralelismo, e em que tal da metafísica tal como eu a concebo.
negação pode determinar sua opção no Basta-me dizer que a metafísica me pa-
que diz respeito ao sentido da vida. rece, na antiguidade e nos tempos mo-
E isso me leva ao segundo ponto que dernos, em Platão e em Descartes, ter
gostaria de indicar. É que nos tão no- adotado como modelo e também como
táveis apontamentos abertos pelo Sr. suporte a ciência matemática. Algo so-
Bergson ao concluir, e cujo chame me bre o qual ela tinha razão, aliás, tendo
censuro por quebrar um pouco, o para- sido a matemática, até a véspera do sé-
culo XIX, a única ciência solidamente
472 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
constituída. Mas resultava dessa ali- real não é realizado por um manuseio
ança estreita entre a metafísica e a ma- de conceitos já prontos, mas por um es-
temática que as realidades postas pela forço de dilatação intelectual. É esse o
metafísica tinham uma forma rígida, esforço que eu evoco. Quanto ao resul-
incompatível com a fluidez da experi- tado definitivo ao qual ele conduzirá,
ência: daí a ideia da "relatividade" da sou incapaz de prever. Eu me limitei a
experiência, relatividade que não tinha expressar em termos vagos aquilo que
sentido, evidentemente, senão em rela- posso perceber apenas vagamente.
ção a um absoluto que a transcendia.
Eu não digo que não haja um absoluto
transcendente à realidade dada na ex- Intervenção do Sr. HALÉVY – O Sr.
periência vulgar. Mas eu digo que nós Halévy pede para apresentar algumas
podemos e devemos chegar até ele sem observações relativas à noção de tensão,
abalos, sem abandonar o fio da experi- que o Sr. Bergson acaba de introduzir
ência, e ascendendo na direção de re- no debate.
giões da experiência nas quais a intui- Há alguns anos, nós lemos, relemos e
ção demanda cada vez mais esforço. aprendemos um pouco de cor o Ensaio
Enfim, eu repito que nada poderia sobre os dados imediatos da consciência,
tirar, com efeito, de uma “negação do que começava por uma crítica da no-
paralelismo”, mas que meu objetivo foi ção de intensidade psicológica. A noção
determinar positivamente, e não nega- de intensidade, nos era dito, é uma no-
tivamente, a relação entre corpo e es- ção falsa, porque ela compreende em si,
pírito. No trabalho ao qual o Sr. Belot em estado de confusão, as duas noções
gentilmente fez alusão, mostrei como contraditórias de qualidade e de quan-
a mesma lembrança passa por graus tidade. Ora, na conclusão da segunda
crescentes de tensão, até que venha se obra do Sr. Bergson, Matéria e Memó-
inserir no “esquema motor” que o cére- ria, as noções de tensão e de extensão
bro desenha. Podemos, dessa psicofisi- nos são dadas como solução do enigma
ologia, passar a uma moral? Evidente- do universo, precisamente porque elas
mente não. Mas ela nos dá a direção de constituem a síntese das noções de qua-
um certo esforço metafísico a ser feito. lidade pura e de quantidade pura, do
Mostrando-nos o sentido preciso da li- inextenso e do extenso. Eu pergunto se
mitação que a vida traz ao pensamento, as duas teses são conciliáveis, se, con-
ela nos indica, ela nos indicará cada forme aquela que se adote, a filosofia
vez melhor os pontos nos quais deve- do Sr. Bergson não consegue ora acen-
mos concentrar nosso esforço para nos tuar, ora apagar o dualismo dos termos
emanciparmos dessa limitação. Eu o opostos: de uma maneira precisa, eu
disse, e só posso repetir: um progresso pergunto em que sentido as críticas que
valiam contra a noção de intensidade
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 473
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
474 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 475
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
corpo traz à vida do espírito que che- uma ciência, mas várias ciências da na-
garemos a determinar a direção precisa tureza, se há não só um determinismo
do esforço a fazer para nos reapoderar- científico, mas determinismos científi-
mos de nós mesmos. Nesse sentido, a cos variavelmente rigorosos, então será
verdade metafísica é, se quiser, trans- necessário distinguir planos de experiên-
cendente à vida orgânica e imanente à cias diferentes; a experiência não está
vida espiritual. Mas passa-se sem abalo simplesmente à superfície, ela estende-
de qualquer uma dessas duas vidas para se igualmente em profundidade; enfim
a outra. Eu dizia há pouco que preten- pode-se, por transições insensíveis, sem
demos continuar a obra dos cartesianos, abalos bruscos, sem abandonar o ter-
mas tendo em conta o aumento da com- reno dos fatos, ir da necessidade física à
plexidade da ciência atual. Acrescen- liberdade moral. As realidades de or-
tarei agora que este método pretende dem “metafísica”, como a liberdade,
escapar às objeções que Kant formulou não são mais transcendentes ao mundo
contra a metafísica em geral, e que ele dos “fenômenos”. Elas são interiores
tem por principal objeto anular a oposi- à vida “fenomenal”, ainda que limita-
ção, estabelecida por Kant, entre a me- das por ela. Eis a razão por que eu dizia
tafísica e a ciência, levando em conta as que nosso conhecimento é limitado, mas
condições inteiramente novas nas quais não relativo. Relativo, ele sofreria intei-
a ciência trabalha. Se lermos atenta- ramente de impotência metafísica, ele
mente a Crítica da Razão Pura, conclui- nos deixaria fora do âmbito da “coisa
se que Kant fez a crítica, não da razão em si”, ou seja, da realidade. Limitado,
em geral, mas de uma razão moldada ele nos mantém inversamente no real,
aos hábitos e às exigências do mecani- embora nos revele naturalmente só uma
cismo cartesiano ou da física newtoni- parte dele. Somos nós a fazer o esforço
ana. Se há uma ciência una da natu- para completá-lo.
reza (e disso Kant não parece duvidar), O senhor falou dos místicos. Se en-
se todos os fenômenos e todos os ob- tendermos por misticismo (como se faz
jetos são distribuídos sobre um único quase sempre atualmente) uma reação
e idêntico plano, de modo a fornecer contra a ciência positiva, a doutrina que
uma experiência única, contínua, intei- defendo não é, de uma extremidade a
ramente à superfície (e tal é a hipótese outra, senão um protesto contra o mis-
constante na Crítica da Razão Pura), en- ticismo, visto que ela se propõe a res-
tão há apenas uma espécie de causali- tabelecer a ponte (rompida desde Kant)
dade no mundo, toda causalidade feno- entre a metafísica e a ciência. Esse di-
menal implica determinação rigorosa, e vórcio entre a ciência e a metafísica é
é fora da experiência que se deve pro- o grande mal de que sofre nossa filoso-
curar a liberdade. Mas, se há não só fia. Gostamos de dizer que a culpa está
476 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 477
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
478 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 479
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
vão buscar seus argumentos! Parece-me que eu tentei fazer ou pelo menos co-
que, nessas condições, é aos adversários meçar. Peço para que o continuemos.
do paralelismo que incumbe, até nova Mas enquanto não fizermos esse traba-
ordem, o encargo da prova. lho (e só se pode tentá-lo sobre fatos
cada vez mais sutis, de maneira a res-
tringir o problema da relação à limites
Sr. BERGSON – Eu acredito que se cada vez mais estreitos), devemos nos
o Sr. Belot está disposto a fazer o his- ater àquilo que emerge a partir desses
tórico da questão, reconhecerá que a fatos prosaicos aos quais o Sr. Belot atri-
ideia de uma correspondência entre o bui uma preferência, e afirmar, em ter-
moral e o físico remonta, com efeito, mos vagos, que há uma relação, que há
à mais velha antiguidade, mas não à uma correspondência. Isso é o que faz
ideia de um paralelismo. Que haja uma uma ciência prudente. Que se a ciên-
correspondência, quer dizer em suma cia (ou melhor, o cientista) manifesta-
uma relação entre o cérebro e o pensa- se frequentemente como se houvesse
mento, quem contesta isso? Teria eu, no paralelismo, isso ocorre porque é útil
que me concerne, dedicado vários anos proceder às investigações anatômicas e
a questionar os fatos sobre a natureza fisiológicas como se elas devessem for-
dessa relação, se tivesse duvidado por necer o máximo de resultado: ora, é na
um segundo sequer que ela existisse? hipótese do paralelismo que elas da-
Mas uma coisa é acreditar que uma re- riam os resultados mais notáveis. Mas
lação exista, e outra coisa é afirmar que não há mais então, nesta hipótese do
essa relação é a de um paralelismo ri- paralelismo, que um incitamento à pes-
goroso, ou, em outras palavras, que um quisa e uma regra metodológica – regra
intérprete autorizado poderia ler, nos provisória aliás, que os cientistas de-
movimentos moleculares ou outros da verão conservar, enquanto os filósofos
substância cerebral, tudo o que se passa não se deem ao trabalho de determinar
no interior do pensamento. Estou ab- de maneira mais elaborada a relação do
solutamente convencido que nós nunca espírito ao corpo. Pois esta determina-
pensamos sem um certo substrato de ção é do âmbito da filosofia e não da
atividade cerebral; mas estimo que essa ciência. E eu repito, a hipótese do pa-
atividade cerebral pode ser idêntica ralelismo rigoroso, encarada como ex-
para pensamentos completamente di- primindo a realidade, é uma hipótese
ferentes (embora não quaisquer, repito): filosófica, que data do dia em que se
todos esses pensamentos têm algo em acreditou em um mecanismo universal.
comum, um mesmo “esquema motor”. É uma hipótese de origem espinosista e
A relação é então daquelas que não leibniziana.
podem ser determinadas a priori, ela
exige um longo trabalho de pesquisa,
480 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 481
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
seu valor. Certamente, eu mesmo fa- tido, o fato físico é em grande parte
lei, outrora, da mobilidade e da flui- nosso trabalho. Mas à medida que nos
dez dos estados psicológicos profundos, elevamos do inorgânico ao organizado,
da dificuldade que nós sentimos em nos encontramos em presença de fatos
dissociá-los uns dos outros e em fixar mais objetivamente desejados como fa-
com precisão os seus contornos. Mas tos, pela própria natureza. Um ser vivo
preciso lembrar que não é com esses é um círculo mais ou menos fechado,
estados psicológicos profundos que eu e fechado pela natureza. Uma fun-
me ocupo, quando estudo a relação psi- ção fisiológica é um todo relativamente
cofísica? Expliquei há pouco que tinha fechado. O exercício desta função é,
chegado a concentrar todo o esforço da por sua vez, um fato bem determinado
minha pesquisa sobre “a lembrança do apesar de sua complexidade, ou me-
som das palavras” e sobre os fenômenos lhor, por causa dessa mesma comple-
de afasia sensorial. Quem alegará que xidade, em que tanta unidade se revela.
esses fatos sejam fabricados ou modi- E quando chegamos finalmente ao fato
ficados de modo algum pelo psicólogo psicológico elementar que beira o fato
que os estuda? cerebral, é algo determinado, isolado,
Advertem-me que um filósofo con- perfeitamente distinguido na consciên-
testou, durante toda a nossa última cia.
reunião, a existência de fatos objetiva- Enfim, me fazem notar que tinha fa-
mente recortados na natureza em geral. lado de “experiência” e que trago uma
Eu não iria, talvez, tão longe quanto teoria. Toda afirmação geral, tão perto
o Sr. Le Roy nesse sentido. Contudo, que ela esteja de fatos particulares, é
eu estou pronto a lhe conceder que no necessariamente uma teoria. Mas ainda
mundo inorgânico pelo menos, e em aqui há distinções que precisam ser fei-
todo lugar onde o fato parece matemá- tas. As múltiplas e já prontas doutrinas
tico, nossa lei determina o fato, tanto que gostaríamos de fundir em uma fi-
quanto o fato determina nossa lei. Há losofia única e progressiva são doutri-
ação e reação recíprocas da lei sobre o nas que decorrem geralmente de dois
fato e do fato sobre a lei. Os corpos ou três fatos muito grandes para deles
caíam antes de Galileu, e é isso que abstrair de imediato um conceito ge-
deu a Galileu a ideia de buscar a lei ral, que elas tratarão, em seguida, di-
da queda dos corpos. Mas é a lei da aleticamente. Daí conceitos muito rí-
queda dos corpos que permitiu isolar gidos, podendo servir cada um de eti-
definitivamente o fenômeno da queda queta definitiva a uma escola. Nós, ao
dos corpos, e até mesmo, de modo ge- contrário, procuramos conceitos que se
ral, definir o “fato físico” e de erigi-lo modelam e se remodelam permanente-
em entidade independente. Nesse sen- mente sobre os fatos, conceitos tão flui-
482 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570
O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA
dos quanto a própria realidade. Teoria justamente porque ele é muito preciso:
se quiserem: essa teoria será pelo me- ele permite constatar um alinhamento
nos toda saturada de experiência. quase instantâneo.
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484 483
ISSN: 2317-9570
HENRI BERGSON
fatos isolados ou distintos. É até porque truídos por nós, que temos tanta difi-
eles são menos artificiais, menos cons- culdade analisá-los
484 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 457-484
ISSN: 2317-9570