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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i1.

30414

O Paralelismo Psicofísico e a Metafísica Positivai

Henri Bergson

Tradução
Philippe Claude Thierry Lacourii; Jade Oliveira Chaiaiii; Sèdjro Crédo Randal e Zittiiv; Manuella
Mucury Teixeirav; Michelly Alves Teixeiravi; Rogério Santos dos Prazeresvii; Alice Ribeiro Braatzviii;
Eliza Maiby Carvalho Augustoix

Revisão Técnica
Débora Moratox

Tradução

O Sr. Bergson chamou a atenção da So- com uma aproximação crescente, os


ciedade de Filosofia a respeito dos se- pontos precisos em que começa e
guintes pontos: termina o paralelismo; 5

1. Se o paralelismo psicofísico não é 2. Se essa pesquisa empírica é possí-


nem rigoroso nem completo, se a vel, ela medirá de maneira cada vez
todo pensamento determinado não melhor a diferença entre o pensa-
corresponde um estado cerebral ab- mento e as condições físicas em que
solutamente determinado, caberá esse pensamento se exerce. Em ou-
à experiência a tarefa de fixar, tros termos, ela nos informará cada

iTexto originalmente publicado no Bulletin de la Société Française de Philosophie, pp. 33–57. Sessão de 05 de maio 1901.
iiProfessor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Filosofia pela Universidade de Provence
Aix Marseille I. E-mail: unb@philippelacour.net. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3226-584X.
iiiMestranda no PPGDL/UCDB e graduanda em Filosofia pela UnB. E-mail: jade.joc@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
7615-5610.
ivGraduando em Relações Internacionais pela UnB.E-mail: credozitti@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6508-
5864.
vDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB, com período sanduíche na Université Paris-Diderot (Paris VII
-Sorbonne). Mestra em Filosofia pela UnB e graduada em psicologia pelo Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB. E-mail:
mucuryrev@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0320-2113.
viMestranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB. Graduada (Bacharelado e Licenciatura) em Filosofia pela UnB.
E-mail: michellyteixeira@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0842-8824.
vii Doutorando em Antropologia Social pela UFG. E-mail: pleinementperdu@yahoo.fr. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5513-786X.
viiiGraduada em Direito pela UnB. E-mail: alice.braatz@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5232-8671.
ixLicenciada em Letras-Francês pela UnB. E-mail: elisamaiby@outlook.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7400-2688.
xProfessora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos(UFSCAR). Doutora em Filosofia pela Universi-
dade de São Paulo (USP). E-mail: deboramorato@uol.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9895-6988.

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vez melhor a respeito da relação do por quais necessidades nosso pen-


homem, ser pensante, com o ho- samento é limitado, nos guiaria no
mem, ser vivente, e, assim, sobre esforço muito particular que deve-
aquilo que poderíamos chamar de mos realizar para superar essa limi-
significado da vida; tação.

3. Se essa significação da vida pode SR. BERGSON – Eu começo agrade-


ser determinada empiricamente de cendo ao meu colega e amigo Sr. Be-
uma maneira cada vez mais exata lot, pela interessantíssima crítica que
e completa, uma metafísica posi- ele apresentou às minhas teses. Ele me
tiva, ou seja, incontestada e suscetí- havia enviado um breve esboço, um es-
vel de um progresso retilíneo e in- quema das objeções que se propôs a me
definido, é possível. Com efeito, fazer. Essas objeções pareciam dizer
não há filósofo, por mais desconfi- respeito mais ao método geral que eu
ado que seja em relação às pesqui- proponho do que às aplicações particu-
sas propriamente metafísicas, isto lares que eu tentei fazer, ou aos resulta-
é, transcendentes à vida, que con- dos aos quais ele me conduziu. Eu teria
teste à nossa inteligência a facul- preferido que a discussão se mantivesse
dade de se exercer legítima e util- nesse terreno. Eu creio na grande eficá-
mente sobre a vida mesma. Se é cia do método; eu não gostaria que ele
por meio de uma construção, sem- fosse julgado pelos resultados incom-
pre frágil de um jeito ou outro, que pletos e imperfeitos que um investiga-
nos elevamos ao pensamento em si, dor isolado dele soube tirar. Todavia,
à matéria em si, à relação e, sobre- visto que agora o Sr. Belot parece pre-
tudo, à diferença desses termos en- servar o método solidário à aplicação,
tre si, ao contrário, são ou podem eu vou examinar sucessivamente as di-
transformar-se em fatos apresentá- versas objeções que ele levanta contra
veis à observação. Uma metafísica um e outra – pelo menos todas aquelas
que começasse a se moldar a par- que eu pude notar de passagem. E eu
tir do contorno desses fatos, ofe- rogarei a meu amigável questionador
receria efetivamente, portanto, as que retome a palavra caso eu omita al-
características de uma ciência in- gum ponto importante.
contestável. Ela seria suscetível de O Sr. Belot se surpreende primeira-
um progresso indefinido, porque a mente com a forma “hipotética” sob a
determinação cada vez mais pre- qual eu redigi as minhas conclusões.
cisa da relação entre a consciência e “Trazemos menos uma tese, diz ele, que
as suas condições materiais, ao nos uma hipótese”. É bem verdade que as
mostrar com exatidão progressiva minhas três proposições começam cada
em que pontos, em quais direções, uma por um ‘se’. O ‘se’ da última ex-

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prime que ela é subordinada à aceita- dizer sobre essa distinção. Pergunto-
ção da segunda, e o da segunda supõe me se cartesianos, ressuscitando hoje,
a primeira admitida. Porém, eis que ainda teriam a mesma ideia de inteligi-
a primeira proposição, ela mesma, co- bilidade. Creio que é muito difícil dizer
meça por um ‘se’: eis aí, sem dúvida, se uma noção, por simples inspeção, é
aquilo com que o Sr. Belot se surpre- ou não é inteligível. A inteligibilidade
ende. Eu me apresso em responder-lhe vem pouco a pouco, pela aplicação que
que eu não teria enunciado a proposi- dela se faz. A inteligibilidade de uma
ção sob essa forma se tivesse pensado ideia só pode ser medida pela riqueza
que todo mundo me concedesse o que do que sugere, pela extensão, pela fe-
ela pede, a saber, que “o paralelismo cundidade e pela certeza de sua apli-
psicofísico não é nem rigoroso, nem cação, pelo número crescente de arti-
completo”. Sustentei eu essa tese; mas, culações que ela nos permite desnudar,
convencido que estou, não tenho direito por assim dizer, no real, enfim, pela sua
a falar como se tivesse convencido os energia interior. A noção de diferen-
outros. Esse ‘se’ era então, no meu pen- cial, após ter sido muito obscura para
samento, um ‘se’ de cortesia para com os primeiros matemáticos que a utili-
meus eventuais contraditores. Pois, se zaram, tornou-se, pelo próprio uso que
fosse para ver nele um ‘se’ de timidez, se faz dela, a noção clara por excelên-
eu o apagaria imediatamente e o subs- cia, a que ilumina todas as matemáti-
tituiria por um ‘já que’. Porque eu não cas. Se os cartesianos (bem mais, aliás,
tenho nem a mais ligeira dúvida sobre que o próprio Descartes) relacionaram
esse aspecto: estou inteiramente con- à extensão tudo o que a natureza nos
vencido de que, entre o fato psicológico oferece de claro e distinto, é porque as
e a atividade cerebral, existe uma certa descobertas dos astrônomos e dos físi-
relação, uma correspondência de um cos dos séculos XVI e XVII, e acima de
certo gênero, como eu o explicarei em tudo as descobertas de Descartes, lhes
breve, mas de jeito nenhum existe pa- haviam revelado o poder explicativo da
ralelismo. ideia de extensão. Seu critério de in-
Chego à segunda observação preli- teligibilidade era muito mais empírico
minar do Sr. Belot: “O problema das do que eles pensavam. Ele correspon-
relações da alma e do corpo já ocu- dia a um aprofundamento completo de
pam o lugar mais importante, disse, na sua própria experiência. Mas a expe-
metafísica cartesiana. Mas enquanto riência para nós é muito mais vasta.
os cartesianos se preocupavam, sobre- Ela se alargou ao ponto que tivemos
tudo, em tornar essas relações inteligí- de renunciar, há quase um século, à
veis, Bergson se coloca unicamente no esperança de uma matemática univer-
terreno dos fatos”. – Haveria muito a sal. Novas ciências se constituíram so-

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bre essa própria renúncia, ciências que cuna é afirmada”. Em primeiro lugar,
observam e experimentam sem o pres- gostaria de levantar aqui uma impreci-
suposto de chegar a uma fórmula ma- são de detalhe. É bem verdade que eu
temática. A inteligibilidade se estende procurei a lacuna no lado das faculda-
assim, pouco a pouco a novas noções, des “inferiores”, mas não no lado das
sugeridas, também elas, pela experi- faculdades “inconscientes”. Não que eu
ência. Eu não creio, pois, ser infiel ao negue o inconsciente. Diga-se de pas-
método de Descartes ao pedir que se sagem, a ideia do inconsciente poderia
revise tal ou tal solução cartesiana, no servir de verificação para aquilo que su-
mesmo sentido em que um filósofo car- geri há pouco, a saber, que uma ideia se
tesiano, sem dúvida, solicitaria que se a torna inteligível pela aplicação que se
revisasse, em presença de uma ciência faz dela. Dizia-se frequentemente há
mais flexível, instruída por uma experi- vinte anos (eu tenho na consciência [a
ência mais vasta e disposta a reconhecer lembrança] de tê-lo ensinado por muito
nos fenômenos da natureza uma com- tempo) que um estado psicológico é por
plexidade de organização dificilmente definição um estado consciente, e que a
redutível ao mecanismo matemático. ideia de um estado psicológico incons-
Caso se chame método uma certa ati- ciente é, por consequência, uma ideia
tude do espírito face a seu objeto, uma contraditória. Entretanto, eu acredito
certa adaptação da forma das pesqui- que se tornou muito difícil, para quem
sas a sua matéria, não se permanece acompanhou de perto o progresso da
fiel a um método conservando imuta- psicologia nos últimos anos, não abrir
velmente os procedimentos, quando os um amplo espaço ao inconsciente nas
materiais sobre os quais ele opera mu- explicações psicológicas, e mesmo não
daram radicalmente. Manter-se fiel a reconhecer que a ideia de inconsciente,
um método consiste, ao contrário, em à medida que a manipulamos, tende
remoledar constantemente a forma so- cada vez mais a se tornar uma ideia
bre a matéria, de maneira a conservar clara, nosso espírito se expandindo, se
sempre a mesma precisão de ajuste. forçando, e por fim abraçando esta re-
Mas eu chego à questão de fundo. presentação inicialmente refratária. Os
O Sr. Belot começa por salientar que progressos sutis são alcançados sem dú-
“o antigo espiritualismo, igualmente, vida nas ciências pela verificação cres-
acreditou ser necessário afirmar uma cente de princípios já aceitos: mas como
distância entre o físico e o moral, mas um progresso científico importante, ra-
que ele buscava essa lacuna no lado das dical, poderia ser obtido senão por um
faculdades superiores, ao passo que, no esforço de expansão intelectual, o qual
novo espiritualismo, é no lado das fun- leva à inteligibilidade certos conceitos
ções inferiores e inconscientes que a la- que, até então, beiravam a contradição?

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Contudo, eu repito, o inconsciente não ciência, e a consciência neste grau de


toma parte na presente discussão, pois simplicidade e estabilidade em que ela
não é sobre os fatos psicológicos incons- participa da inércia da matéria, tería-
cientes que eu pretendo mensurar a se- mos facilmente êxito, sem esforço, fazê-
paração entre o físico e o moral. los coincidir: então, compondo entre
Sobre fatos psicológicos inferiores, si esses estados psicológicos elementa-
sim. E este é, de fato, como diz muito res, chegaríamos, de síntese em síntese,
bem o Sr. Belot, um dos traços carac- a reconstituir as manifestações mais
terísticos desse espiritualismo que ele elevadas da atividade psicológica. Há
chama novo. um certo monismo, parente próximo
Que as faculdades superiores do es- do materialismo, que o espiritualismo
pírito, entendimento, razão, imagina- dualista jamais conseguiu refutar, jus-
ção criadora, sejam as faculdades pró- tamente porque o espiritualismo se li-
prias e essenciais do homem, eu sou o mitava a opor um ao outro esses dois
primeiro a reconhecer. O antigo espi- termos extremos, pensamento e mo-
ritualismo tinha de fato razão em pro- vimento. O dualismo considerava as
curar nelas as características mentais extremidades do intervalo, o monismo
do humano. Mas quando, ao comba- mantinha no meio: situados em terre-
ter seus adversários materialistas ou ao nos diferentes, como essas duas dou-
trabalhar para determinar a relação da trinas poderiam vir a se encontrar e se
alma com o corpo, ele se refugiava nas medir uma com a outra? Pareceu-me
faculdades superiores como em uma que havia um meio, e um apenas, de
fortaleza, ele cometia, a meu ver, um reduzir o monismo: era buscá-lo em
duplo erro. Ele parecia arbitrário, e ele seu próprio terreno. Isto é, em lugar
era infecundo. de considerar os estados psicológicos
Ele parecia arbitrário. Com efeito, mais elevados, tomar ao contrário o es-
seus adversários poderiam sempre tado psicológico mais rudimentar. Isto
objetar-lhe que a distância constatada é, mostrar, entre este estado e as condi-
por ele entre o psíquico e o físico de- ções físicas sobre as quais ele se apoia,
corria simplesmente de ele considerar uma distinção de fato, uma distância
a matéria nas suas formas mais rudi- observável. Pensem o que quiserem so-
mentares, e o espírito nos seus esta- bre a matéria “em si” e o espírito “em
dos mais avançados, que não havia pro- si”, atribuam inclusive à matéria, para
blema em falar da irredutibilidade do favorecer sua concepção monística do
pensamento ao movimento, mas que universo, uma consciência vaga, uma
caso se tomasse a matéria nesse grau essência análoga à do espírito, não é
de complexidade e de mobilidade em menos verdadeiro que, no momento em
que ela imita certos aspectos da cons- que o fato de consciência preciso e pro-

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priamente dito aparece, nós podemos deira, na minha opinião), mas dela nada
fazer com que vocês vejam algo abso- se tira, não mais que da afirmação con-
lutamente novo, uma certa indetermi- trária, aliás. O sim e o não são estéreis
nação, uma certa contingência, uma ca- na filosofia. O que é interessante, ins-
pacidade de escolha. Mas então vocês trutivo, fecundo, é o ‘em que medida?’.
poderão, se quiserem, reconstituir as Não se ganha nada em constatar que
atividades superiores do espírito com dois conceitos como os de espírito e o de
os estados psicológicos mais elementa- matéria são exteriores um ao outro. Te-
res, sua hipótese será impotente face ao mos a possibilidade, ao contrário, de fa-
espiritualismo, porque ela terá come- zermos descobertas importantes ao nos
çado a abrigar o seu inimigo no próprio colocarmos no ponto em que os dois
lar. Em outras palavras, eu digo que conceitos se tocam, em sua fronteira co-
o espiritualismo tem de se resignar a mum, para estudar a forma e a natureza
descer das alturas onde ele se refugia. do contato. É verdade que a primeira
Enquanto permanecer lá, ele poderá operação sempre seduziu os filósofos,
até estar em possessão da verdade, mas porque se trata de um trabalho dialé-
permanecerá impotente para converter tico que fazemos imediatamente sobre
os outros. Nós queremos substituir ao ideias puras, ao passo que a segunda é
antigo jogo das escolas, onde cada um uma operação penosa que não se pode
desenvolvia até o final uma concepção realizar senão de forma progressiva so-
abstrata para, em seguida, contrapô-la à bre fatos, sobre a experiência – a experi-
concepção contrária, uma filosofia am- ência sendo precisamente o lugar onde
pla, aberta a todos, progressiva, em que os conceitos se tocam ou se interpene-
as opiniões serão elas mesmas postas à tram. É a esse trabalho muito longo e
prova, e se corrigirão entre si no contato muito difícil que eu convidei os filóso-
com uma única e mesma experiência. fos.
Eis por que eu digo que o antigo espi- Eu mesmo me aventurei por aí, na
ritualismo deve ter parecido arbitrário. medida muito limitada em que me sen-
Eu acrescento que ele era necessaria- tia capaz. Inicialmente, considerei as
mente infecundo e que o desdém que manifestações da matéria, não naquilo
se tinha para com ele, e que ainda têm que têm de mais simples, isto é, nos
muitos homens da ciência, vinha sobre- fatos físicos, mas na sua forma mais
tudo daí. Ele era infecundo justamente complexa, no fato fisiológico. E não foi
porque se limitava a considerar os ter- o fato fisiológico em geral que eu re-
mos extremos e a declarar pura e sim- tive, mas o fato cerebral. Nem mesmo o
plesmente que o espírito é irredutível à fato cerebral em geral, mas tal fato bem
matéria. Ora, uma declaração desse gê- determinado e localizado, aquele que
nero pode ser verdadeira (ela é verda- condiciona uma certa função da fala.

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Eu avançava desse modo, de compli- mesmo fato era muito mais indepen-
cação em complicação, até o ponto em dente. A partir daí aparecia, a meu ver,
que a atividade da matéria quase toca a possibilidade de determinar empiri-
a do espírito. Então, de simplificação camente, progressivamente, isso que eu
em simplificação, fiz descer o espírito o chamei “a significação da vida”, ou seja,
mais perto que pude da matéria. Deixei o verdadeiro sentido da distinção entre
de lado as ideias para considerar ape- a alma e o corpo, bem como a razão
nas as imagens; das imagens eu me fi- pela qual se unem em conjunto e co-
xei nas lembranças, das lembranças em laboram. Parecia-me também que, com
geral, nas lembranças de palavras, das isso, nós poderíamos compreender cada
lembranças de palavras, nas lembran- vez melhor o tipo muito específico de
ças realmente especiais que nós con- limitação que a vida traz a nosso pensa-
servamos do som dessas palavras; eu mento. Os filósofos não teriam tomado
estava dessa vez na fronteira, eu quase por conhecimento relativo o que é ape-
tocava o fenômeno cerebral no qual se nas conhecimento diminuído, retraído,
continua a vibração sonora. E, no en- forçado a se exteriorizar em ação antes
tanto, havia uma diferença. Não era de se aprofundar como pensamento? E
mais, é verdade, aquela lacuna abstrata a forma desta limitação sendo cada vez
que se pode afirmar a priori entre dois mais claramente percebida, não encon-
conceitos tais como os de consciência e traríamos, cada vez mais, as direções
movimento: da exclusão recíproca de nas quais devemos nos esforçar para
dois conceitos, eu repito, não se pode transcendê-la?
tirar nada. Era uma relação concreta e Ademais, as obscuridades do dua-
viva. Eu via, no momento preciso em lismo, a dificuldade de estabelecer uma
que o fato da consciência vai se du- distinção tão radical entre a consciên-
plicar em um concomitante cerebral, cia e seu suporte, não seriam uma obs-
porque e como o pensamento precisa curidade e uma dificuldade artificiais,
se desenvolver em movimento no es- decorrentes da limitação que a duali-
paço, tudo o que ele contém de ação dade mesma do corpo e do espírito im-
possível, tudo que ele tem de desempe- põe à nossa inteligência? Assim, limi-
nhável. Eu via também, no fato psi- tando o espiritualismo a este terreno
cológico que se sobrepõe à atividade extremamente estreito, parecia-me que
cerebral, algo de parcialmente livre, se podia aumentar indefinidamente sua
de parcialmente indeterminado, uma fecundidade e sua força, torná-lo ca-
vez que parte desempenhável deste fato paz de se fazer aceitar por aqueles que
está sendo determinada rigorosamente o rejeitam, conduzi-lo a uma teoria do
por suas condições físicas, enquanto o conhecimento pela qual ele dissiparia
lado imagem ou representação desse as obscuridades que encerra, enfim, fa-

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zer dele, de todas as doutrinas, a mais tavam lidar com uma geração espontâ-
empírica por seu método e a mais me- nea, germes vivos preexistiam. E sem-
tafísica por seus resultados. pre nós poderemos nos perguntar se,
Contra essa metafísica ou no mínimo em outras condições de experiência, nas
contra esse método, o Sr. Belot er- quais os próprios adversários de Pas-
gue uma série de objeções tiradas em teur não tivessem pensado, não assisti-
primeiro lugar da impossibilidade em ríamos porventura uma gênese espon-
que estaríamos: aquela de estabelecer, tânea da vida. No entanto, eu o repito,
de uma maneira rigorosa, a existên- há consenso em reconhecer que Pasteur
cia de uma distância definitiva entre conferiu à sua tese um grau de probabi-
o fato psicológico e o seu substrato ce- lidade que equivale, prática e cientifica-
rebral. Uma boa parte da argumenta- mente, à certeza. Então, se eu pudesse
ção dele, salvo engano, poderia ser as- chegar, a respeito de todas as questões
sim resumida: “Mesmo que encontrem relativas às relações do físico ao psí-
uma distância, não há provas de que os quico e dos problemas metafísicos em
progressos posteriores da ciência não geral, a uma certeza igual ou mesmo
conseguirão reduzi-la. Vocês não po- simplesmente comparável à certeza da
dem demonstrar a impossibilidade do proposição de Pasteur: “Não há geração
paralelismo”. Não, seguramente eu não espontânea”, essa certeza me bastaria
posso demonstrar a impossibilidade do perfeitamente.
paralelismo. Não há nenhum meio co- Eu temo que seja isto o que nos se-
nhecido nem concebível de provar a para, e que vocês concebam (a despeito
impossibilidade de um fato. Pode-se de vocês mesmos) a metafísica como
provar que é possível, demonstrando uma ciência análoga à matemática, res-
experimentalmente que ele é real; mas trita à simplicidade clara e ao dogma-
não se pode, nem por experiência, nem tismo afiado da matemática. Se a me-
por raciocínio, demonstrá-lo impossí- tafísica for isso, só nos restará esco-
vel. No entanto, há concordância em lher entre concepções definitivamente
reconhecer que certas impossibilidades decretadas, simples, cujo desenvolvi-
de fato foram suficientemente estabe- mento levaremos ao extremo: é uma
lecidas pela ciência. Admite-se, desde ciência feita, ou melhor, é somente um
Pasteur, a impossibilidade da geração jogo definido entre escolas antagonis-
espontânea, pelo menos nas condições tas, que sobem juntas à cena para serem
atuais da vida. Não é a certeza rigo- aplaudidas sucessivamente. Eu vejo, ao
rosa, absoluta, matemática, reconheço. contrário, na metafísica vindoura, uma
Tudo que Pasteur pode fazer foi mos- ciência empírica à sua maneira, pro-
trar a seus contraditores que, em todas gressiva, restrita, como as outras ciên-
as experiências nas quais eles acredi- cias positivas, a oferecer apenas como

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provisoriamente definitivos os últimos completa de um em relação ao outro,


resultados a que ela tenha sido condu- nem a produção de um pelo outro, nem
zida por um estudo atento do real. Foi a simples concomitância, nem o para-
em resultados desse tipo que eu me de- lelismo rigoroso, nem, eu repito, quais-
tive. Eu tinha me proposto – há cerca de quer das relações que podem ser obti-
uns doze anos – o seguinte problema: das a priori pela manipulação de con-
“O que é que a fisiologia e a patologia ceitos abstratos ou pela composição de-
atuais ensinariam sobre a antiga ques- les. É uma certa relação sui generis, que
tão da ligação do físico e do moral a um eu formularia (aliás, de forma muito in-
espírito sem preconceito, decidido a es- completa) da seguinte maneira: Dado
quecer todas as especulações às quais um estado psicológico, a parte praticá-
poderia ligar-se a respeito disso, deci- vel deste estado, aquela que se tradu-
dido também a negligenciar, nas afir- ziria em uma atitude do corpo ou em
mações dos cientistas, tudo que não seja ações do corpo, é representada no cére-
a constatação pura e simples dos fatos?” bro: o resto é independente e não tem
E pus-me a estudar tal problema. E per- equivalente cerebral. De maneira que
cebi rapidamente que a questão não se- a um mesmo estado cerebral dado po-
ria suscetível de solução provisória, e dem corresponder efetivamente estados
mesmo de formulação precisa, se não a psicológicos diferentes, mas não esta-
restringíssemos ao problema da memó- dos quaisquer. São estados psicológi-
ria. Na própria memória, eu fui levado cos que têm todos em comum o mesmo
a talhar uma circunscrição que foi ne- “esquema motor”. Uma mesma mol-
cessário estreitar cada vez mais. Após dura poderia emoldurar muitos qua-
ter me fixado na memória das palavras, dros, mas não todas os quadros. Seja
eu vi que o problema assim formulado um pensamento elevado, abstrato, fi-
era ainda muito amplo e que é a memó- losófico. Nós não o concebemos sem
ria do som das palavras que colocaria aí juntar uma representação imagética
a questão em sua forma mais precisa que nós dispomos abaixo dele. Nós não
e mais interessante. A literatura sobre nos representamos essa imagem, por
afasia é enorme. Levei cinco anos para sua vez, sem a sustentar com um de-
esgotá-la. E cheguei a esta conclusão senho que resume suas linhas gerais.
de que deve haver entre o fato psico- Nós não imaginamos esse próprio dese-
lógico e o seu substrato cerebral uma nho, sem imaginar e, por isso mesmo,
relação que não corresponde a nenhum esboçar certos movimentos que o re-
dos conceitos já prontos que a filosofia produziriam. É esse esboço, e tão so-
coloca a nosso serviço. Ela não é nem a mente esse esboço, que é representado
determinação absoluta de um desses es- cerebralmente. Dado o esquema, existe
tados por outro, nem a indeterminação margem para a imagem. Dada a ima-

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gem, por sua vez, resta uma margem, é para não romper esse encadeamento
uma margem ainda maior para o pensa- rigoroso de causas e efeitos que eles fa-
mento. Assim, o pensamento é relativa- laram do paralelismo entre o psíquico
mente livre e indeterminado em relação e o físico, como se o corpo e o espírito
à atividade cerebral que o condiciona, dissessem exatamente as mesmas coisas
atividade que apenas expressa as arti- em duas línguas independentes. Mas
culações motoras da ideia, e as articula- teriam eles hoje a mesma ideia da na-
ções podendo ser as mesmas para ideias tureza? Visariam, na ciência, à mesma
absolutamente diferentes. E, contudo, simplicidade? Conceberiam a inteligi-
isso não é a liberdade completa nem a bilidade da mesma maneira? Se perma-
indeterminação absoluta, uma vez que necemos no abstrato, se vemos na meta-
uma ideia qualquer, tomada ao acaso, física um desenvolvimento retilíneo de
não apresentaria as articulações deseja- ideias simples, é sem dúvida em torno
das. Em resumo, nenhum dos conceitos da tese do paralelismo que nos reunire-
simples que a filosofia nos fornece po- mos, porque de imediato expressa, ra-
deria exprimir a relação procurada, mas dicalmente, simplesmente, as exigên-
essa relação parece destacar-se com cla- cias do princípio da causalidade for-
reza suficiente da experiência. mulado, ele mesmo, da maneira mais
Mas você insiste, e diz que essa ex- simples. Mas a realidade é muito mais
periência é incompleta, e questiona se complexa, e a experiência, bem mais
a experiência, na medida em que ela instrutiva.
aprofundaria mais os fatos, não daria É verdade que não pude entrar em
cada vez mais razão à tese do parale- um cérebro, para seguir os traços do
lismo. Que motivo teria você para tal estímulo cerebral, medindo com preci-
suposição? É científico chamar de uma são o desvio que separa esse fenômeno
experiência real, que conhecemos, uma do estado psicológico correspondente.
experiência possível, da qual ainda não Mas do fato de que uma verdade seja
podemos dizer nada? Considere agora de natureza empírica, não se segue que
se a sua fé no paralelismo, sua confi- se possa verificá-la empiricamente de
ante espera de uma demonstração por imediato. Frequentemente é preciso
vir, não seria simplesmente uma sobre- sondá-la, abrir em direção a ela inu-
vivência, em você, de uma crença leib- meráveis caminhos, dos quais nenhum
niziana ou espinosista no mecanismo poderia ser seguido até o final, mas cuja
universal. Os sucessores de Descartes, convergência marca, com uma exatidão
empurrando às extremas consequências suficiente, o ponto de chegada. É as-
as ideias do mestre, acreditaram numa sim que medimos a distância de um
ciência única da natureza, numa grande ponto inacessível, mirando-o, alterna-
matemática capaz de tudo abarcar. E damente, dos pontos onde temos cesso.

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O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA

Existem certezas científicas que só se questão se colocava para mim de forma


obtêm por acumulações de probabili- completamente diferente. Tratava-se de
dades. Existem linhas de fatos das quais determinar a significação exata dos fatos
nenhuma bastaria por si mesma para de localização onde ela é certa. Con-
determinar uma verdade, mas que con- siderados à parte, esses fatos não com-
seguem determiná-la na sua interseção. portam nenhuma interpretação precisa
É através de adições de probabilidades, no estado atual da ciência – e até tal-
é pela interseção de “linhas de fatos” vez jamais comportem uma interpre-
que eu procedi, no livro ao qual o Sr. tação completa. Mas me pareceu que
Belot teve gentileza de aludir. Eu te- combinando esses fatos com um nú-
ria preferido não falar sobre esse traba- mero considerável de outros fatos to-
lho hoje. Porém, eu devo tecer algumas mados da psicologia normal ou patoló-
considerações, já que o Sr. Belot colocou gica, era possível dar ao problema uma
a questão nesse terreno. solução aproximada, uma solução sus-
Os capítulos II e III de Matéria e Me- cetível de aproximação crescente, en-
mória são dedicados, de fato, à deter- fim, uma solução científica. Por linhas
minação da relação que liga o estado convergentes de fatos, pelos fatos de re-
psicológico a seu concomitante cere- conhecimento normal, pelos fatos de re-
bral. Mas não se deve crer que tenha me conhecimento patológico, pela cegueira
apegado a demonstrar essa tese com- psíquica em particular, por fim e so-
pletamente negativa de “que não há bretudo, pelas manifestações diversas
paralelismo” entre eles, nem que te- da afasia sensorial, fui encaminhado à
nha fundado minha demonstração no conclusão de que o cérebro armazena os
estudo das substituições em particular, “esquemas motores” das imagens e das
ou no das localizações em geral. Não ideias, que ele desenha a todo momento
haveria grande coisa a tirar de uma tese suas articulações motoras, que condi-
puramente negativa. Por outro lado, ciona por conseguinte o pensamento
a questão das substituições é tão obs- em certa medida e de certa maneira. É
cura, e os fatos observados servem tão dessa forma que os deslocamentos dos
bem a todas as interpretações, que jul- diversos atores, em todos os momentos
guei necessário deixar as substituições de uma cena, são indicados no livreto
inteiramente de lado: não pronunciei do diretor. Mas esses deslocamentos
a palavra nem falei da coisa. E enfim, representam apenas uma escassa por-
no tocante à localização cerebral, em ção da peça, e determinam apenas uma
nenhum instante pensei em colocá-la pequenina parte da representação dos
em dúvida, posto que não a conside- atores. E se o cérebro mantém com o
rei, ao contrário, senão onde é provada pensamento uma relação desse tipo, re-
rigorosamente, nas funções da fala. A sulta daí que não pode haver parale-

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HENRI BERGSON

lismo ou equivalência entre a atividade ples (ainda mais um conceito negativo


cerebral e o pensamento. como o de não-paralelismo), para em
Não é, portanto, sobre considerações seguida submetê-lo a um trabalho dia-
negativas que eu baseio a negação do lético. Esse método exige, ao contrário,
paralelismo. De uma ausência de fa- um contato ininterrupto com a reali-
tos ou de provas em favor do parale- dade. Ele consiste em seguir o real em
lismo, não poderíamos, com efeito, ex- todas as suas sinuosidades. Ele exige
trair nada. Eu não digo que na ausência que as nossas faculdades de observação
de fatos e provas nós teríamos o direito se agucem ao ponto de, às vezes, supe-
de afirmar, como parece fazer o Sr. Be- rarem a si mesmas (como, por exem-
lot, que as provas e os fatos virão à me- plo, para chegar a apreender, no limiar
dida que a ciência se enriquecerá: te- do inconsciente, essa “percepção pura”
mos que reconhecer este direito apenas e essa “lembrança pura”, as quais es-
na condição de estar imbuído, como são tão longe de ser, como acredita o Sr.
muitos filósofos, da ideia leibiniziana Belot, meras construções do espírito).
ou espinosista do mecanismo universal. Ele é feito de correções, retoques, com-
Mas nós teríamos ao menos o direito de plicações graduais. Ele aspira a fazer
nos reservarmos e de esperar. Ademais, da metafísica uma ciência tão certa,
uma tese puramente negativa é uma tão universalmente reconhecida quanto
tese da qual a filosofia não extrai ne- as outras. Ele deve chegar a estreitar
nhuma vantagem. Eu tentei ao contrá- com tanta proximidade a inserção do
rio formular uma tese positiva, susce- pensamento na vida, que a significação
tível de melhoramento e de verificação da vida aparecerá clara e indiscutivel-
progressivos. E, aliás, acrescento que se mente a todas as inteligências.
alguns cientistas adotam sem discussão Pedem que eu diga, desde já, qual é
a hipótese do paralelismo, não é porque essa significação da vida. Desejariam
ela seja mais científica, é porque ela é uma fórmula. Surpreendem-se por não
a mais simples, e que os filósofos deste estarem diante de uma tese. Mas como
século não se deram ao trabalho de pro- eu formularia já agora uma conclusão
curar uma outra. definitiva, se o método que proponho
É justamente porque a nossa tese é exige que se vá progressivamente às
positiva, suscetível de verificação e de ideias pelo longo e árduo caminho dos
melhoramento progressivos, que ela fatos? Vocês sempre querem que pro-
não tem nenhum vínculo com o que o cedamos como matemáticos, através do
Sr. Belot chama de “passagem ao limite” desenvolvimento a priori de uma con-
de certas doutrinas metafísicas. O mé- cepção simples. Tudo o que posso fazer
todo que proponho não consiste em é resumir para vocês, em poucas pa-
extrair da realidade um conceito sim- lavras, as conclusões provisórias a que

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O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA

minhas pesquisas me conduziram. Elas e graças a um esforço que não poderia


são demasiado vagas para vocês apren- durar muito tempo, sobre essa própria
derem algo deveras novo. E, desvincu- mobilidade. Mas o pensamento é apri-
ladas das razões e dos fatos aos quais sionado. O turbilhão sobre o qual ele
aderem, elas não terão a força para se apoiou o captura e o arrasta. Ele se
atrair aqueles que compreenderiam a torna prisioneiro dos mecanismos que
vida de outra maneira. montou. O automatismo o toma, e, por
Direi a vocês, portanto, que não um inevitável esquecimento do objetivo
posso visualizar a evolução geral e que ele havia fixado, a vida, que deve-
o progresso da vida no conjunto do ria ser apenas um meio com vistas a
mundo organizado, a coordenação e a um fim superior, se consome inteira-
subordinação das funções vitais umas mente num esforço para conservar a si
às outras em um mesmo ser vivo, as mesma. Do mais humilde dos seres or-
relações que a psicologia e a fisiologia ganizados até os vertebrados superiores
combinadas parecem ter de estabelecer que vêm imediatamente antes do ho-
entre a atividade cerebral e o pensa- mem, assistimos a uma tentativa sem-
mento no homem, sem chegar a essa pre impedida e sempre retomada com
conclusão de que a vida é um imenso uma arte cada vez mais sábia. O ho-
esforço tentado pelo pensamento para mem triunfou – dificilmente aliás, e de
obter da matéria algo que esta mesma maneira tão incompleta, que só precisa
matéria não queria lhe dar. A matéria é de um momento de descontração ou de
inerte, ela é a sede da necessidade, ela desatenção para que o automatismo o
procede mecanicamente. Parece que o retome. Ele triunfou, entretanto, gra-
pensamento busca aproveitar-se dessa ças a esse maravilhoso instrumento que
aptidão mecânica da matéria, utilizá- é o cérebro humano. A superioridade
la para ações, converter assim em mo- desse instrumento me parece consistir
vimentos contingentes no espaço e em inteiramente na capacidade, por assim
eventos imprevisíveis no tempo tudo dizer indefinida, que lhe é concedida,
o que ele porta em si de energia cria- de estabelecer mecanismos que bloque-
dora – pelo menos tudo o que essa ener- arão outros mecanismos. Ele compõe,
gia tem de desempenhável e de exteri- não de uma vez por todas, mas conti-
orizável. Sábia e laboriosamente, ele nuamente, hábitos motores cujo exercí-
acumula complicação sobre complica- cio ele delega em seguida aos centros
ção para produzir liberdade a partir da inferiores. A faculdade possuída pelo
necessidade, para compor para si uma animal de adquirir hábitos motores é li-
matéria tão sutil e tão móvel que a li- mitada. Mas o cérebro do homem lhe
berdade consiga se manter em equilí- confere o poder de aprender um nú-
brio, por um verdadeiro paradoxo físico mero indefinido de “esportes”. É antes

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de tudo um órgão de esporte, e, desse ser o objeto próprio da vida), ele toma
ponto de vistao homem poderia ser de- mais consciência de sua natureza pró-
finido como “um animal esportivo”. O pria e, por conseguinte, também de sua
primeiro de todos os esportes é a lin- independência face à matéria. Apego e
guagem, esta função que ocupa um ter- desapego, eis os dois polos entre os quais
ritório tão vasto no cérebro do homem. a moralidade oscila. Você me pergunta
A linguagem foi o instrumento por ex- qual é aquele em que ela deve se fixar?
celência da libertação, apesar do auto- Eu não vejo por que ela se fixaria. Se
matismo que inflige posteriormente ao não se apega à vida, o esforço carece de
pensamento. Mas, de uma maneira ge- intensidade. Se não se desapega, ao me-
ral, a superioridade de nosso cérebro nos levemente e pelo pensamento, falta
reside na potência de libertação que direção ao esforço. É preciso se orien-
nos dá face ao automatismo corporal, tar pelo primeiro ponto para ter a força
ao nos permitir criar sem cessar novos de agir, e pelo segundo para se subtrair
hábitos, que acabarão por absorver e aos preconceitos do momento e saber
sobrepor-se aos outros. Nesse sentido, o que deve fazer. Mas não se deve ir
não se encontra nada no cérebro que completamente nem a uma nem a ou-
corresponda à operação propriamente tra dessas duas extremidades. Volto à
dita do pensamento; e, no entanto, é o ideia que tem sido o leitmotiv de toda
cérebro humano que tornou possível o minha réplica. Não é nem interessante,
pensamento humano. Sem ele, as facul- nem instrutivo, nem conforme à ver-
dades superiores do pensamento não dade opor uns aos outros conceitos,
poderiam se inclinar em direção à ma- sendo que cada um deles se aplica em
téria, sem serem capturadas pelo auto- parte ao real, uma vez que daí cada um
matismo e afogadas no inconsciente. foi necessariamente extraído. Antes, a
O que posso dizer mais? E como, so- filosofia deve dosar a mistura, e, se pos-
bre essa filosofia ainda vaga da vida, sível, criar conceitos superiores, em que
poderia edificar a moral precisa e de- as antigas oposições serão reabsorvidas.
finitiva que vocês parecem me pedir? Trabalhemos, portanto, para nos
Tudo o que posso dizer é que o exer- aproximarmos da experiência o má-
cício normal da atividade humana se ximo que pudermos. Aceitemos a ci-
definirá, mais e mais, pelo aprofunda- ência com a sua complexidade atual,
mento da própria vida. Da minha parte, e recomecemos, tendo essa nova ciên-
eu vejo sempre e em todo lugar uma cia como matéria, um esforço análogo
dupla direção se manifestar no desen- àquele que tentaram os antigos metafí-
volvimento desta atividade. Ao mesmo sicos a partir de uma ciência mais sim-
tempo que o pensamento se insere na ples. É necessário romper com os qua-
vida e se concentra na ação (que parece dros matemáticos, levar em conta as ci-

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O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA

ências biológicas, psicológicas, socioló- progressivo, organizado, de todos os fi-


gicas, e sobre esta ampla base edificar lósofos associados pelo mesmo respeito
uma metafísica capaz de se erguer cada à experiência.
vez mais por meio do esforço contínuo,

Discussão1

Intervenção do Sr. BELOT – Eu não acre- tro recurso ou função além de determi-
dito que seja útil retomar, como me con- nar as diferentes direções que a análise
vidou com cortesia o Sr. Bergson, os pode apreender no relativo. Eu indi-
detalhes de minha argumentação, cujo quei que os absolutos da metafísica são
principal mérito é ter provocado sua apenas termos limites de cada um dos
bela apresentação. Se permanece al- processos que tal análise comporta, e
guma dificuldade, e eu creio que sim, nada mais significam, no fundo, que os
entre aquelas que eu havia assinalado, diversos e muitas vezes inversos méto-
que ele tenha deixado sem resposta, dos que podemos adotar na explicação
elas serão levantadas de maneira mais do real.
útil por algum outro membro da socie- Mas então eu solicito, se se está bem
dade. convencido de que a metafísica tem essa
No entanto, há dois pontos na réplica significação totalmente relativista, que
do Sr. Bergson sobre os quais eu acre- se permaneça no relativo. E o que eu
dito que seja útil chamar-lhe a atenção. acreditei poder precisamente objetar ao
Por várias vezes, o Sr. Bergson pare- Sr. Bergson? É de não ter se mantido aí,
ceu atribuir a mim esse pensamento de é de ter passado ao limite, e ter conside-
que a metafísica, tal como a concebo, rado os termos-limites, como a memória
procederia por oposições bem marca- pura e percepção pura, como realidades
das de sim e não, confrontaria um e o dadas, entre as quais, em seguida, ele
outro dos absolutos postos, e de alguma estabelece antíteses radicais. Peço-lhe
maneira já completamente feitos, do es- perdão, mas parece-me que aqui sou eu
pírito nas coisas. Nenhum pensamento quem o lembro do próprio método que
seria mais contrário ao meu. Como ele, ele de maneira tão fina e excelente defi-
estou muito persuadido, e eu lhe disse, niu.
de que a metafísica se apoia sobretudo É no mesmo espírito que pedirei a
na experiência, e que ela não tem ou- ele que compreenda minhas observa-

1 Texto originalmente publicado no Bulletin de la Société française de philosophie, pp. 59-71, junho 1901.

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ções finais sobre o sentido da vida, mi- lelismo manteve-se absolutamente fora
nhas antíteses entre o pensamento e a de questão. Parece-me que a maior
ação. Não esqueço de forma alguma parte de suas indicações tão engenho-
que na realidade tudo está misturado, sas sobre o desapego e sobre o apego se-
que nenhuma exclusão é possível, que riam aceitáveis para a psicologia e para
o sacrifício da vida ao pensamento ou a moral correntes, tanto se admitimos
do pensamento à vida seria um con- o paralelismo quanto se o rejeitamos;
trassenso. Todavia, se podemos distin- mas não nos parece ter sido estabele-
guir várias direções possíveis da ação, cido, como éramos levados a esperar,
e se nos pronunciamos, como ele o de- que eles fossem consequências rigoro-
manda e espera, sobre a “significação samente deduzidas da negação do pa-
da vida”, é preciso chegar a considerar ralelismo. Se assim fosse, toda a última
uma das direções opostas como essen- parte de minhas críticas ficaria verda-
cial, e a outra como uma simples con- deiramente sem resposta.
dição prática da primeira, ou, pelo me-
nos, indicar a qual ponto de vista cada
uma se presta, a qual ponto de vista, Sr. BERGSON – Para mim é impossí-
por exemplo, e para não permanecer vel aceitar a distinção estabelecida pelo
no abstrato, o indivíduo deve trabalhar Sr. Belot entre o “relativo” , que seria
para se isolar e se diferenciar ou, ao dado pela experiência, e esse “absoluto”
contrário, trabalhar para sua integração (então necessariamente problemático)
social, no sentido da assimilação. Em ao qual a metafísica chegaria, ao pas-
todo caso, se falamos da significação sar limite daquilo que a experiência lhe
da vida, é impossível deixar no indis- dá. Na filosofia cujas linhas gerais eu
tinto, ou sequer colocar sobre o mesmo esboçava há pouco, nem a experiência é
plano, como igualmente e indiferente- tão relativa, nem o absoluto é tão pro-
mente válidas, as diferentes interpreta- blemático ou tão transcendente quanto
ções opostas da vida. E é por isso que o consideraram a maioria das metafí-
perguntava ao Sr. Bergson, e pergunto- sicas. Eu não posso pretender retra-
lhe ainda, a esse respeito, o que ele tira çar aqui o desenvolvimento histórico
da negação do paralelismo, e em que tal da metafísica tal como eu a concebo.
negação pode determinar sua opção no Basta-me dizer que a metafísica me pa-
que diz respeito ao sentido da vida. rece, na antiguidade e nos tempos mo-
E isso me leva ao segundo ponto que dernos, em Platão e em Descartes, ter
gostaria de indicar. É que nos tão no- adotado como modelo e também como
táveis apontamentos abertos pelo Sr. suporte a ciência matemática. Algo so-
Bergson ao concluir, e cujo chame me bre o qual ela tinha razão, aliás, tendo
censuro por quebrar um pouco, o para- sido a matemática, até a véspera do sé-
culo XIX, a única ciência solidamente

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constituída. Mas resultava dessa ali- real não é realizado por um manuseio
ança estreita entre a metafísica e a ma- de conceitos já prontos, mas por um es-
temática que as realidades postas pela forço de dilatação intelectual. É esse o
metafísica tinham uma forma rígida, esforço que eu evoco. Quanto ao resul-
incompatível com a fluidez da experi- tado definitivo ao qual ele conduzirá,
ência: daí a ideia da "relatividade" da sou incapaz de prever. Eu me limitei a
experiência, relatividade que não tinha expressar em termos vagos aquilo que
sentido, evidentemente, senão em rela- posso perceber apenas vagamente.
ção a um absoluto que a transcendia.
Eu não digo que não haja um absoluto
transcendente à realidade dada na ex- Intervenção do Sr. HALÉVY – O Sr.
periência vulgar. Mas eu digo que nós Halévy pede para apresentar algumas
podemos e devemos chegar até ele sem observações relativas à noção de tensão,
abalos, sem abandonar o fio da experi- que o Sr. Bergson acaba de introduzir
ência, e ascendendo na direção de re- no debate.
giões da experiência nas quais a intui- Há alguns anos, nós lemos, relemos e
ção demanda cada vez mais esforço. aprendemos um pouco de cor o Ensaio
Enfim, eu repito que nada poderia sobre os dados imediatos da consciência,
tirar, com efeito, de uma “negação do que começava por uma crítica da no-
paralelismo”, mas que meu objetivo foi ção de intensidade psicológica. A noção
determinar positivamente, e não nega- de intensidade, nos era dito, é uma no-
tivamente, a relação entre corpo e es- ção falsa, porque ela compreende em si,
pírito. No trabalho ao qual o Sr. Belot em estado de confusão, as duas noções
gentilmente fez alusão, mostrei como contraditórias de qualidade e de quan-
a mesma lembrança passa por graus tidade. Ora, na conclusão da segunda
crescentes de tensão, até que venha se obra do Sr. Bergson, Matéria e Memó-
inserir no “esquema motor” que o cére- ria, as noções de tensão e de extensão
bro desenha. Podemos, dessa psicofisi- nos são dadas como solução do enigma
ologia, passar a uma moral? Evidente- do universo, precisamente porque elas
mente não. Mas ela nos dá a direção de constituem a síntese das noções de qua-
um certo esforço metafísico a ser feito. lidade pura e de quantidade pura, do
Mostrando-nos o sentido preciso da li- inextenso e do extenso. Eu pergunto se
mitação que a vida traz ao pensamento, as duas teses são conciliáveis, se, con-
ela nos indica, ela nos indicará cada forme aquela que se adote, a filosofia
vez melhor os pontos nos quais deve- do Sr. Bergson não consegue ora acen-
mos concentrar nosso esforço para nos tuar, ora apagar o dualismo dos termos
emanciparmos dessa limitação. Eu o opostos: de uma maneira precisa, eu
disse, e só posso repetir: um progresso pergunto em que sentido as críticas que
valiam contra a noção de intensidade

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não valem contra as noções de tensão e respeito da segunda espécie de intensi-


de extensão. dade, o Sr. Bergson teve que usar uma
linguagem quantitativa: ele falou em
Sr. BERGSON – No Ensaio sobre os da- graus de multiplicidade. A primeira di-
dos imediatos da consciência, eu critiquei ficuldade não subsiste?
a noção de intensidade na psicologia,
não como sendo falsa, mas como de- Sr. BERGSON – Nós não podemos
mandando ser interpretada. Ninguém nos expressar senão por palavras, e
pode negar que um estado psicológico aquelas que a linguagem coloca à nossa
tenha uma intensidade. A questão é disposição sugerirão sempre uma ima-
simplesmente de saber se tal intensi- gem demasiadamente geométrica. Eu
dade é uma grandeza. Eu tentei estabe- tive que falar de “graus de tensão”, mas
lecer que a palavra “intensidade” pos- eu não penso que sejam graus mensu-
sui dois sentidos bem diferentes, con- ráveis, nem, de forma mais geral, gran-
forme se a aplique a fatos psicológicos dezas. Digamos, se quiserem, nuances
simples ou a estados complexos. A in- sucessivas, uma riqueza variável de co-
tensidade de um estado simples é uma loração.
certa qualidade ou nuance desse estado,
que nos adverte, por uma associação de O Sr. Halévy reconhece a pertinência
ideias e graças a nossa experiência ad- dessas observações. Mas então, entre a
quirida, da grandeza aproximativa da matéria e o espírito, é preciso dizer que
causa exterior da qual ele emana. Mas há uma gradação insensível. Ora, o Sr.
a intensidade de um estado complexo é Bergson, em Matéria e Memória, insiste
algo bastante diferente. É a multiplici- constantemente nesse ponto, que entre
dade sentida dos elementos que entram a matéria e o espírito há uma diferença
na composição desse estado, ou, mais de natureza, não de grau. Isso se con-
ainda, a multiplicidade dos elemen- cebia desde quando o Ensaio sobre os
tos nos quais poderíamos decompô-lo. dados imediatos da consciência estabele-
Para dizer a verdade, essa multiplici- cia, entre o qualitativo e o quantitativo,
dade não existe no estado de consciên- um dualismo radical. Mas, das obser-
cia ele mesmo, senão em potência: é vações finais apresentadas em Matéria
nossa reflexão que conseguirá realizá- e Memória sobre os conceitos de tensão
la analisando-o e dissociando-o. Ora, é e de extensão, não se poderia concluir
este segundo sentido da palavra que re- naturalmente que a matéria pura e o
tenho quando atribuo graus de tensão à espírito puro não são realidades irredu-
consciência. tíveis, atuando uma sobre a outra, mas
abstrações do pensamento, limites lógi-
O Sr. Halévy salienta que, mesmo a cos?

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O PARALELISMO PSICOFÍSICO E A METAFÍSICA POSITIVA

com efeito se livrar das limitações que


Sr. BERGSON – Eu não creio que se- o exercício da vida usual traz ao pensa-
jam simples limites lógicos, pois tentei mento; e é algo de análogo à via purga-
estabelecer que nós experimentamos di- tiva dos místicos. Mas a essa primeira
retamente um e o outro. Entretanto, é fase sucede-se uma segunda; após a via
bem verdade (e a experiência mostra- purgativa há a via iluminativa; o método
nos a todo momento) que esses dois ter- do qual nos fala o Sr. Bergson não seria
mos não são tão radicalmente diferen- mais que uma preparação. Se compre-
tes que uma união não se possa produ- endermos a palavra vida na acepção de
zir entre eles. Se o espírito consegue se vida espiritual profunda, o pensamento
inserir na matéria, é justamente porque pode e deve ser vivido; viver o pensa-
ele é capaz de se aproximar dela pelas mento consiste procurar, por entre to-
sucessivas degradações, e de nela se in- das as ideias que formamos, quais se-
sinuar imitando-a. riam aquelas que poderíamos praticar
completamente e nas quais poderíamos
acreditar, sem restrição de momentos
Intervenção do Sr. LE ROY – O Sr. nem de circunstâncias.
Bergson acabou já respondendo àquilo
que queria lhe perguntar. Portanto,
deter-me-ei apenas em um ponto, so- Sr. BERGSON – Eu deveria, de fato,
bre o qual não formularei objeção, ter definido mais claramente o sentido
mas demandarei somente uma pala- no qual eu emprego a palavra “vida”
vra de explicação. O Sr. Bergson fa- em toda esta discussão. Trata-se aqui
lou da “significação da vida”; ele fa- da vida fisiológica. Eu expliquei há
lou das pesquisas propriamente meta- pouco como o pensamento se exteri-
físicas como pesquisas “transcendentes oriza através dela em ação; eu disse
à vida”; há pouco dizia que não tinha também como, dessa maneira, o pensa-
que buscar qual dos dois termos, vida e mento limita-se, ele mesmo, a ponto de
pensamento, deveria ser subordinado cair a maior parte do tempo no incons-
ao outro. Pois bem, é compreender ciente. Esta vida é, portanto, apenas
bem o pensamento do Sr. Bergson en- a limitação de uma vida mais ampla e
tender por vida a vida comum, a vida mais elevada, que é a vida do próprio
prática, a vida corporal? Se sim, resta- pensamento. O método que proponho
ria ainda a examinar a vida interna, a para a metafísica e para a teoria do co-
vida espiritual. A metafísica não seria nhecimento se funda inteiramente so-
independente da vida, transcendente à bre esta constatação de uma limitação
vida, uma vez que se poderia defini- da vida espiritual pela vida orgânica.
la uma vivificação do saber. Em uma É estudando empiricamente o gênero
primeira fase da metafísica, procura-se particular da limitação que a vida do

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corpo traz à vida do espírito que che- uma ciência, mas várias ciências da na-
garemos a determinar a direção precisa tureza, se há não só um determinismo
do esforço a fazer para nos reapoderar- científico, mas determinismos científi-
mos de nós mesmos. Nesse sentido, a cos variavelmente rigorosos, então será
verdade metafísica é, se quiser, trans- necessário distinguir planos de experiên-
cendente à vida orgânica e imanente à cias diferentes; a experiência não está
vida espiritual. Mas passa-se sem abalo simplesmente à superfície, ela estende-
de qualquer uma dessas duas vidas para se igualmente em profundidade; enfim
a outra. Eu dizia há pouco que preten- pode-se, por transições insensíveis, sem
demos continuar a obra dos cartesianos, abalos bruscos, sem abandonar o ter-
mas tendo em conta o aumento da com- reno dos fatos, ir da necessidade física à
plexidade da ciência atual. Acrescen- liberdade moral. As realidades de or-
tarei agora que este método pretende dem “metafísica”, como a liberdade,
escapar às objeções que Kant formulou não são mais transcendentes ao mundo
contra a metafísica em geral, e que ele dos “fenômenos”. Elas são interiores
tem por principal objeto anular a oposi- à vida “fenomenal”, ainda que limita-
ção, estabelecida por Kant, entre a me- das por ela. Eis a razão por que eu dizia
tafísica e a ciência, levando em conta as que nosso conhecimento é limitado, mas
condições inteiramente novas nas quais não relativo. Relativo, ele sofreria intei-
a ciência trabalha. Se lermos atenta- ramente de impotência metafísica, ele
mente a Crítica da Razão Pura, conclui- nos deixaria fora do âmbito da “coisa
se que Kant fez a crítica, não da razão em si”, ou seja, da realidade. Limitado,
em geral, mas de uma razão moldada ele nos mantém inversamente no real,
aos hábitos e às exigências do mecani- embora nos revele naturalmente só uma
cismo cartesiano ou da física newtoni- parte dele. Somos nós a fazer o esforço
ana. Se há uma ciência una da natu- para completá-lo.
reza (e disso Kant não parece duvidar), O senhor falou dos místicos. Se en-
se todos os fenômenos e todos os ob- tendermos por misticismo (como se faz
jetos são distribuídos sobre um único quase sempre atualmente) uma reação
e idêntico plano, de modo a fornecer contra a ciência positiva, a doutrina que
uma experiência única, contínua, intei- defendo não é, de uma extremidade a
ramente à superfície (e tal é a hipótese outra, senão um protesto contra o mis-
constante na Crítica da Razão Pura), en- ticismo, visto que ela se propõe a res-
tão há apenas uma espécie de causali- tabelecer a ponte (rompida desde Kant)
dade no mundo, toda causalidade feno- entre a metafísica e a ciência. Esse di-
menal implica determinação rigorosa, e vórcio entre a ciência e a metafísica é
é fora da experiência que se deve pro- o grande mal de que sofre nossa filoso-
curar a liberdade. Mas, se há não só fia. Gostamos de dizer que a culpa está

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do lado dos cientistas. Perguntemo-nos em fórmulas. O risco do automatismo


se não teríamos, também nós, uma par- nos cerca. Isto é verdadeiro para a vida
cela de culpa. Perguntemo-nos se nossa intelectual, como para a vida física e a
metafísica não seria inconciliável com vida moral.
a ciência, simplesmente porque ela está
atrasada em relação à ciência, por ser a Sr. LE ROY – Então o pensamento se
metafísica de uma ciência rígida, cujos confunde com a atividade total do espí-
quadros são completamente matemáti- rito.
cos, enfim da ciência que floresceu de
Descartes a Kant, enquanto a ciência
Sr. BERGSON – Você tem razão, e
do século XIX pareceu aspirar a uma
a palavra intelectualismo poderia real-
forma muito mais flexível, e nem sem-
mente ser enganosa. Digamos, se você
pre tomar a matemática como modelo.
quiser, que há duas espécies de intelec-
Agora, entende-se por misticismo um
tualismo, o verdadeiro intelectualismo,
certo chamado à vida interna e pro-
aquele que vive suas ideias, e um falso
funda, então toda a filosofia é mística.
intelectualismo, aquele que imobiliza
as ideias móveis em conceitos solidi-
Sr. LE ROY – Eu estou absolutamente ficados para manuseá-las como fichas.
de acordo com você sobre o sentido da Dentre esses dois intelectualismos, o se-
palavra misticismo, bem como sobre o gundo sempre foi inimigo do primeiro,
sentido da palavra vida. Você diz que como a letra é inimiga do espírito.
toda filosofia é mística. De direito, sem
dúvida; mas de fato, não; e a toda fi- Intervenção do Sr. WEBER – Eu que-
losofia que põe o primado da vida in- ria pedir que nós definíssemos o para-
terior, opõe-se uma outra. Eu retomo lelismo psicofísico: suponho uma série
a questão aqui: o pensamento oposto de estados de consciência A, A’, A”, etc.,
à vida prática e comum não é algo pu- e os estados cerebrais ou os estados do
ramente intelectual. Quando se subor- corpo que lhes correspondem inteira-
dina o pensamento intelectual ao pen- mente: B, B’, B”, etc.; duas questões
samento vivido, é aí que eu emprego o surgem: 1ª se os estados A, A’, A”, etc.,
termo de misticismo. diferem uns dos outros, haverá parale-
lismo, se os estados B, B’, B”, diferem
Sr. BERGSON – É ainda intelectua- igualmente; 2ª, quando um dos estados
lismo, na minha opinião. Mas você tem A’, por exemplo, tende a A”, haverá pa-
sim razão em distinguir entre o pen- ralelismo, se o estado B’ tende a B”. A
samento retirado de fontes profundas negação do paralelismo é uma resposta
e o pensamento espalhado na super- negativa a essas duas perguntas?
fície, completamente pronto a se fixar

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Sr. BERGSON – Às duas. A hipótese Sr. BERGSON – Se nós tomarmos


do paralelismo não é uma hipótese ci- um estado cerebral dado, eu acredito
entífica, mas metafísica, que remonta a que diversos estados psicológicos po-
Leibniz e a Espinosa. O senso comum dem ser enxertados sobre ele.
acredita em uma correspondência, ou
seja, em uma relação entre o cérebro e Sr. WEBER – Não poderíamos ainda
o pensamento, mas não em um parale- objetar a imperfeição de nossos meios
lismo rigoroso. Nesse sentido, é mais de controle físico? Nós determinamos
aos partidários desse paralelismo que os estados psíquicos pela nossa consci-
incumbiria o ônus probatório. ência, mas o estado físico não contém
ele um infinito inexaurível que o estado
Sr. WEBER – Eu me pergunto se psíquico não contém?
a maioria dos espíritos científicos não
têm essa ideia do paralelismo. Sr. BERGSON – Eu volto ainda a esta
ideia de que a tese do paralelismo é uma
Sr. BERGSON – Para mim, é simples- pura hipótese metafísica, à qual incum-
mente a tradução, na linguagem pró- biria em estrita justiça o ônus proba-
pria a uma ciência particular, a fisiolo- tório, e que será refutada ipso facto, ao
gia, desse mecanismo universal no qual menos provisoriamente, se demonstrar-
acreditaram os continuadores de Des- mos que todos os fatos conhecidos su-
cartes. gerem uma outra.

Sr. WEBER – Nesse caso eu colocaria Intervenção do Sr. BELOT – Eu posso


a discussão no termo: estado cerebral contrapor aqui, ao Sr. Bergson em favor
determinado. Isso quer dizer sui gene- do paralelismo, a mesma argumentação
ris? da qual ele se serviu. Ele nos mostrou
muito justamente que, em todas as ci-
Sr. BERGSON – Perfeitamente. Você ências não matemáticas, era difícil de
poderia acrescentar: dado. se obter uma certeza absoluta, mas que
a ciência se contentava muito bem com
Sr. WEBER – Nós poderíamos definir uma probabilidade crescente, com um
o paralelismo dizendo que a todo pen- método de aproximação. Eu concordo
samento novo corresponde um estado com ele de muito bom grado.
do corpo novo, definição que não im- Mas em seguida eu responderei tam-
plicaria a repetição possível do mesmo bém por minha vez, que não deverá
estado do corpo nem a do mesmo pen- censurar a tese do paralelismo pela im-
samento. possibilidade na qual ela se encontra
de se justificar no pequeno detalhe dos

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fenômenos. Ela terá o direito de co- dentes; vemos as excitações ou depres-


meçar considerando as coisas em geral, sões cerebrais corresponderem a exci-
e de levar progressivamente suas infe- tações e depressões psíquicas. Não é
rências até a hipótese de uma corres- claro que, ao fim dessas experiências
pondência perfeita do físico e do mo- vulgares constantemente confirmadas
ral, se, em todo lugar que suas investi- pelas observações mais precisas da psi-
gações conseguiram alcançar, a corres- cologia, a hipótese do paralelismo se
pondência apareceu como o fato proe- imporá não como uma visão a priori de
minente, e a discordância como a ex- um espírito de sistema qualquer, mas
ceção cada vez mais reduzida. Ora, como a inferência de longe mais natural
isto é o que parece precisamente ter e mais adequada a coordenar os fatos?
acontecido. As ideias filosóficas nunca O paralelismo continua sendo uma hi-
aparecem ex abrupto, nunca são forja- pótese, admito de bom grado, mas é de
das a partir do zero. O que se chama longe, no estado atual de nossos conhe-
“preconceito espinosista” não é uma in- cimentos, e isto não apenas para puros
venção artificial e uma criação ex nihilo metafísicos, mas aos olhos de vários fi-
da reflexão filosófica. É o resultado na- siologistas e psicólogos, a hipótese mais
tural e a forma precisa de uma ideia conforme ao conjunto dos fatos, a mais
extremamente antiga e nascida, por as- inteligível de acordo com o conjunto
sim dizer, espontaneamente da consi- de nossa experiência, a mais econômica
deração das aparências mais corriquei- e a mais aproximada. O que mais se
ras. Quase desde a origem da reflexão e pode pedir, até mesmo em nome do
mesmo no senso comum, os fatos mais método de aproximação que nós nos
familiares impuseram a convicção de defendemos? Poucas hipóteses na ci-
que o pensamento tinha sempre um ência podem invocar a seu favor um
substrato corporal, como impunham a conjunto mais imponente de “linhas de
convicção inversa de que a uma vida fatos convergentes”, de linhas mais con-
orgânica havia uma consciência corres- vergentes de fatos proeminentes, e dos
pondente. Esta ideia sumária se especí- quais alguns são tão familiares e, se me
fica também e à medida que o conheci- permitem esta expressão, tão enormes,
mento do cérebro, como órgão da vida que é talvez a razão de serem negligen-
consciente, se desenvolve. Nós vemos, ciados numa discussão científica. É, ao
através da série animal, os desenvol- contrário, no pequeno detalhe dos fenô-
vimentos do cérebro corresponderem menos mais sutis, os mais difíceis de
grosso modo ao desenvolvimento das se observar e interpretar, que essa hi-
funções mentais; vemos as alterações pótese se torna difícil de estabelecer.
cerebrais mais marcadas serem acom- Ora, é precisamente neste ponto, e tal-
panhadas de problemas psíquicos evi- vez nele somente, que seus adversários

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vão buscar seus argumentos! Parece-me que eu tentei fazer ou pelo menos co-
que, nessas condições, é aos adversários meçar. Peço para que o continuemos.
do paralelismo que incumbe, até nova Mas enquanto não fizermos esse traba-
ordem, o encargo da prova. lho (e só se pode tentá-lo sobre fatos
cada vez mais sutis, de maneira a res-
tringir o problema da relação à limites
Sr. BERGSON – Eu acredito que se cada vez mais estreitos), devemos nos
o Sr. Belot está disposto a fazer o his- ater àquilo que emerge a partir desses
tórico da questão, reconhecerá que a fatos prosaicos aos quais o Sr. Belot atri-
ideia de uma correspondência entre o bui uma preferência, e afirmar, em ter-
moral e o físico remonta, com efeito, mos vagos, que há uma relação, que há
à mais velha antiguidade, mas não à uma correspondência. Isso é o que faz
ideia de um paralelismo. Que haja uma uma ciência prudente. Que se a ciên-
correspondência, quer dizer em suma cia (ou melhor, o cientista) manifesta-
uma relação entre o cérebro e o pensa- se frequentemente como se houvesse
mento, quem contesta isso? Teria eu, no paralelismo, isso ocorre porque é útil
que me concerne, dedicado vários anos proceder às investigações anatômicas e
a questionar os fatos sobre a natureza fisiológicas como se elas devessem for-
dessa relação, se tivesse duvidado por necer o máximo de resultado: ora, é na
um segundo sequer que ela existisse? hipótese do paralelismo que elas da-
Mas uma coisa é acreditar que uma re- riam os resultados mais notáveis. Mas
lação exista, e outra coisa é afirmar que não há mais então, nesta hipótese do
essa relação é a de um paralelismo ri- paralelismo, que um incitamento à pes-
goroso, ou, em outras palavras, que um quisa e uma regra metodológica – regra
intérprete autorizado poderia ler, nos provisória aliás, que os cientistas de-
movimentos moleculares ou outros da verão conservar, enquanto os filósofos
substância cerebral, tudo o que se passa não se deem ao trabalho de determinar
no interior do pensamento. Estou ab- de maneira mais elaborada a relação do
solutamente convencido que nós nunca espírito ao corpo. Pois esta determina-
pensamos sem um certo substrato de ção é do âmbito da filosofia e não da
atividade cerebral; mas estimo que essa ciência. E eu repito, a hipótese do pa-
atividade cerebral pode ser idêntica ralelismo rigoroso, encarada como ex-
para pensamentos completamente di- primindo a realidade, é uma hipótese
ferentes (embora não quaisquer, repito): filosófica, que data do dia em que se
todos esses pensamentos têm algo em acreditou em um mecanismo universal.
comum, um mesmo “esquema motor”. É uma hipótese de origem espinosista e
A relação é então daquelas que não leibniziana.
podem ser determinadas a priori, ela
exige um longo trabalho de pesquisa,

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Intervenção do Sr. COUTURAT – Sr. ele quer. Aliás, os fatos psicológicos


Couturat se declara ao mesmo tempo não são fatos científicos, uma vez que
decepcionado e tranquilizado pelas ex- fora de quem os experimenta, eles não
plicações do Sr. Bergson. podem ser constatados e controlados
Ele pensava, de início, que se tratava por ninguém; só podemos constatar os
de uma experiência ou de uma série fatos fisiológicos, concluídos quais se
de experiências que iriam resolver uma concluem os fatos psicológicos, por in-
questão metafísica; e isso o lembrara de ferências mais ou menos legítimas, que
uma certa escola “espiritualista” que se sempre comportam uma parte de teo-
orgulha, ela também, de fundar uma ria e de interpretação. No que diz res-
metafísica positiva na experimentação peito ao paralelismo psicofísico, creio,
(mesas giratórias, fotografias de espec- como o Sr. Bergson, que é uma tese me-
tros, etc.). Ele reconhece que não é nada tafísica; e que a experiência não pode
disso. Não é um método experimental, nem verificá-la ou nem negá-la; mas se
um “manual de instruções”, o que o Sr. diga exatamente o mesmo da tese da
Bergson propõe, é simplesmente uma não-paralelismo. Isso não contradiz de
interpretação de um conjunto de fatos, maneira alguma o que o Sr. Belot disse
em uma palavra, uma teoria. Mas por acerca das evidências empíricas do pa-
que ele faz questão de atribuir a esta te- ralelismo; porque o paralelismo apenas
oria uma natureza científica? Será que se torna uma tese metafísica ao gene-
ele esqueceu que um de seus discípulos, ralizar, ao elevar ao absoluto, os rela-
na última reunião da sociedade, recu- tos aproximadamente encontrados na
sava qualquer valor objetivo às teorias experiência ordinária. Em suma, a me-
científicas, e mesmo às leis e fatos ci- tafísica do Sr. Bergson, como todas as
entíficos? Mas se eu acredito que essa outras, é uma interpretação dos fatos
tese é falsa no que diz respeito aos fatos da experiência; mas ela não pode pre-
físicos, a considero, ao contrário, como tender mais que uma outra a um caráter
verdadeira no que diz respeito aos fa- científico e positivo; e eu não vejo o que
tos psicológicos. É na psicologia que ela ganharia com isso.
podemos dizer que a observação produz
os fatos: não basta querer constatar um
fato psicológico, somente pensar nele, Sr. BERGSON – Eu estou, de início,
para constatá-lo efetivamente? Como um pouco surpreso de ouvir dizer que
observado pelo Sr. Belot, um mágico não há fatos psicológicos dados e que o
do estilo, que se destaca em expressar psicólogo forja os fatos que ele estuda.
o inexprimível, pode nos sugerir es- É ir muito depressa na tarefa, e conde-
tados desconhecidos da consciência, e nar sumariamente uma ciência sobre a
nos fazer literalmente ver tudo o que qual se trabalha desde somente alguns
anos, e que prova tão brilhantemente

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seu valor. Certamente, eu mesmo fa- tido, o fato físico é em grande parte
lei, outrora, da mobilidade e da flui- nosso trabalho. Mas à medida que nos
dez dos estados psicológicos profundos, elevamos do inorgânico ao organizado,
da dificuldade que nós sentimos em nos encontramos em presença de fatos
dissociá-los uns dos outros e em fixar mais objetivamente desejados como fa-
com precisão os seus contornos. Mas tos, pela própria natureza. Um ser vivo
preciso lembrar que não é com esses é um círculo mais ou menos fechado,
estados psicológicos profundos que eu e fechado pela natureza. Uma fun-
me ocupo, quando estudo a relação psi- ção fisiológica é um todo relativamente
cofísica? Expliquei há pouco que tinha fechado. O exercício desta função é,
chegado a concentrar todo o esforço da por sua vez, um fato bem determinado
minha pesquisa sobre “a lembrança do apesar de sua complexidade, ou me-
som das palavras” e sobre os fenômenos lhor, por causa dessa mesma comple-
de afasia sensorial. Quem alegará que xidade, em que tanta unidade se revela.
esses fatos sejam fabricados ou modi- E quando chegamos finalmente ao fato
ficados de modo algum pelo psicólogo psicológico elementar que beira o fato
que os estuda? cerebral, é algo determinado, isolado,
Advertem-me que um filósofo con- perfeitamente distinguido na consciên-
testou, durante toda a nossa última cia.
reunião, a existência de fatos objetiva- Enfim, me fazem notar que tinha fa-
mente recortados na natureza em geral. lado de “experiência” e que trago uma
Eu não iria, talvez, tão longe quanto teoria. Toda afirmação geral, tão perto
o Sr. Le Roy nesse sentido. Contudo, que ela esteja de fatos particulares, é
eu estou pronto a lhe conceder que no necessariamente uma teoria. Mas ainda
mundo inorgânico pelo menos, e em aqui há distinções que precisam ser fei-
todo lugar onde o fato parece matemá- tas. As múltiplas e já prontas doutrinas
tico, nossa lei determina o fato, tanto que gostaríamos de fundir em uma fi-
quanto o fato determina nossa lei. Há losofia única e progressiva são doutri-
ação e reação recíprocas da lei sobre o nas que decorrem geralmente de dois
fato e do fato sobre a lei. Os corpos ou três fatos muito grandes para deles
caíam antes de Galileu, e é isso que abstrair de imediato um conceito ge-
deu a Galileu a ideia de buscar a lei ral, que elas tratarão, em seguida, di-
da queda dos corpos. Mas é a lei da aleticamente. Daí conceitos muito rí-
queda dos corpos que permitiu isolar gidos, podendo servir cada um de eti-
definitivamente o fenômeno da queda queta definitiva a uma escola. Nós, ao
dos corpos, e até mesmo, de modo ge- contrário, procuramos conceitos que se
ral, definir o “fato físico” e de erigi-lo modelam e se remodelam permanente-
em entidade independente. Nesse sen- mente sobre os fatos, conceitos tão flui-

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dos quanto a própria realidade. Teoria justamente porque ele é muito preciso:
se quiserem: essa teoria será pelo me- ele permite constatar um alinhamento
nos toda saturada de experiência. quase instantâneo.

Sr. COUTURAT – Surpreende-me Sr. BERGSON – Interessante para


que o Sr. Bergson considere um fato fi- o astrônomo. É o astrônomo que co-
siológico como melhor delimitado que lhe essa posição do astro sobre a conti-
um fato físico: o que é melhor definido nuidade da curva que ele descreve. Ao
que um eclipse, e, pelo contrário, de passo que a circulação do sangue é algo
mais complexo e confuso que um fato mais objetivamente independente.
fisiológico que implica frequentemente
o organismo todo? Sr. COUTURAT – Os fatos fisiológi-
cos não são mais objetivos que os fatos
Sr. BERGSON – Não é a simplicidade físicos, e se é o cientista que os produz,
de um fato que lhe garante a individu- será preciso dizer que até o século XVII
alidade real. Esta simplicidade pode, o sangue de nossos ancestrais não cir-
pelo contrário, ser sinal – em inúmeros culou.
casos ao menos – que o fato foi recor-
tado ou construído artificialmente por Sr. BERGSON – Eu simplesmente
nós. Enquanto uma complexidade in- disse que a circulação é cortada em si
definida como a do fato fisiológico, se no todo da natureza; o eclipse, não.
todos os elementos são manifestamente
coordenados uns aos outros, revela uma Sr. COUTURAT – Se os fatos são frag-
unidade objetiva e possui uma indivi- mentados em proporção ao interesse
dualidade real. No que diz respeito ao prático que eles nos oferecem, como
seu eclipse, é um fato, mas artificial em se explica que um fato fisiológico tão
parte: pois, em si mesma, essa posi- “interessante” quanto a circulação não
ção especial da terra e da lua em rela- tenha sido conhecido desde a antigui-
ção ao sol não é mais interessante que dade? Esta é uma prova objetiva e his-
qualquer outra posição. E, na verdade, tórica de que os fatos fisiológicos são
o que, nesse caso, teria antes uma re- realmente menos simples e menos deli-
alidade objetiva, é a continuidade do mitados que os fatos físicos e astronô-
curso da terra e da lua sobre as suas ór- micos.
bitas.
Sr. BERGSON – Eles são menos sim-
Sr. COUTURAT – Um eclipse, ou me- ples, é claro; eles podem ser mais difí-
lhor ainda, a passagem de Vênus pelo ceis de estudar; mas isso não os impede
Sol é um fato interessante e instrutivo, de existir mais objetivamente enquanto

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fatos isolados ou distintos. É até porque truídos por nós, que temos tanta difi-
eles são menos artificiais, menos cons- culdade analisá-los

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