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Maio de 68 aconteceu e não terminou.

O tempo da revolução

Em “Mai 68 n’a pas eu lieu” Deleuze e Guatarri afirmam que em fenômenos


históricos como a Revolução Francesa, a Revolução de 1917 ou a Comuna de Paris há
sempre uma parte de acontecimento irredutível aos determinismos causais. “O
acontecimento é ele mesmo uma ruptura ou um desligamento com relação às
causalidades: é uma bifurcação, um desvio com relação às leis, um estado instável que
abre um novo campo de possíveis.” 1
Maio de 68 é um fenômeno distinto de outras revoluções, ele é todo
acontecimento, não possui uma parte de acontecimento, mas é acontecimento puro. Ele
se coloca como reivindicando aquilo que apenas um acontecimento é capaz de produzir:
renovar a ordem do possível. Um acontecimento puro é « livre de toda causalidade
normal ou normativa » 2. Ou seja, um acontecimento impõe uma nova normatividade,
um novo engendramento de relações no interior do tempo e da vida social. Ele é capaz
de re-ordenar o espaço e o tempo e neste sentido é capaz de produzir novas formas de
vida. O acontecimento é um tipo de experiência que altera a estética transcendental,
porque altera o lugar do vivido, alterando assim a maneira de ser da experiência.
Houve em maio de 68, muita euforia e alguns excessos, mas:
“O que conta, é que foi um fenômeno de visão, como se uma sociedade visse, de
repente, o que ela continha de intolerável e entrevisse assim a possibilidade de outra
coisa. É um fenômeno coletivo sob a forma: “Do possível, senão eu sufoco”. O possível
não pré-existia, ele é criado pelo acontecimento. É uma questão de vida. O
acontecimento cria uma nova existência, ele produz uma nova subjetividade (novas
relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho...)” 3

1
“L’événement lui-même est en rupture ou en décrochage avec les causalités : c’est une bifurcation, une
déviation par rapport aux lois, un état instable qui ouvre un nouveau champ de possibles.” Deleuze. Deux
régimes de fous. Paris : Les éditions de minuit, p. 215.
2
Ibid.
3
“Ce qui compte, c’est que ce fut un phénomène de voyance, comme si une société voyait tout d’un coup
ce qu’elle contenait d’intolérable et voyait aussi la possibilité d’autre chose. C’est un phénomène collectif
sous la forme : “Du possible, sinon j’étouffe…” Le possible ne préexiste pas, il est crée par l’événement.
C’est une question de vie. L’événement crée une nouvelle existence, il produit une nouvelle subjectivité
(nouveau rapports avec le corps, le temps, la sexualité, le milieu, la culture, le travail…) ”Ibid., p. 215-
216.
O que maio de 68 colocou no horizonte político e filosófico do nosso tempo foi
uma maneira radicalmente diferente de se conceber uma revolução, de se conceber a
crítica e a contestação no interior de vida social. Maio de 68 demonstra que
transformações sociais tocam nossas formas de vida em suas múltiplas esferas, e para
que isso seja possível cabe à filosofia pensar o solo ontológico que funda tal
transformação do vivido.
Para Deleuze, ainda em “maio de 68 não aconteceu”. Quando uma mutação
social aparece não basta que tiremos as consequências e efeitos seguindo uma linha de
causalidade econômica e política, é preciso que estas possibilidades se tornem concretas
a partir de agenciamentos capazes de transformar o possível em novas formas de vida,
ou seja, é preciso que a sociedade demonstre que ela deseja esta mudança.
O poder na França alimentou a ideia de que a contestação se calaria. E de fato,
maio de 68 se calou e de forma catastrófica. Maio de 68 não foi consequência de uma
crise ou uma reação a uma crise, mas na verdade, a crise atual da França, dos anos de
1980, no caso, período em que este texto foi escrito, seria para Deleuze e Guatarri a
consequência da incapacidade da sociedade francesa em assimilar maio de 68. A
sociedade não foi capaz de propor nada, e desta maneira tudo o que era novo foi
marginalizado ou caricaturado. “A cada momento o possível foi enclausurado.” 4
Se um acontecimento rompe com a causalidade, e, portanto, não pode ser
medido a partir de suas causas, efeitos e consequências, como é possível que Deleuze e
Guatarri afirmem que maio de 68 não aconteceu?
Para responder estas perguntas devemos, num primeiro momento, compreender
o que significa pensar que um acontecimento rompe com a causalidade normal e
normativa. Só assim poderemos compreender porque um acontecimento renova a ordem
do possível no interior da vida social ou porque maio de 68 não aconteceu, e, por esta
razão, continua sendo um acontecimento extremamente relevante até os dias atuais.
Comecemos nos perguntando, como se estrutura o pensamento causal?
Segundo o princípio de razão suficiente nenhum fato ou enunciado pode ser real
e existir sem uma razão suficiente para que seja assim e não de outra maneira mesmo
que muitas vezes não sejamos capazes de determinar estas razões.
A pergunta “porque alguma coisa ou algo existe”, tem, em Leibniz, como
resposta o princípio de razão suficiente que gera uma série infinita de causas. Para

4
“Chaque fois le possible a été refermé.”Ibid., p. 216.
Bergson, a pergunta leibniziana, é um falso problema criado pelas ilusões da
inteligência.
“Pouco importa a natureza do que é: digamos que seja matéria, ou espírito, ou um ou
outro, ou que matéria e espírito não são suficientes e manifestam uma Causa
transcendente: de qualquer maneira, quando consideramos existências, e causas, e as
causas das causas, somos tragados por uma corrida infinita.” 5
Se um acontecimento rompe com o pensamento causal, como Deleuze e Guatarri
afirmam,ele rompe, portanto, com uma ideia de razão baseada no princípio de razão
suficiente, rompe com a ideia de que um fato, um acontecimento, deva ter um
fundamento ou causa que lhe é exterior.
Se um acontecimento só pode ser determinado ou produzido pelo que escapa ao
pensamento causal, isto significa que o real, e mesmo verdades de fato, podem ser
produzidas, sem causa ou razão, por simples obra da contingência. Pois, a contingência
seria o elemento que é responsável por um fato ou acontecimento, mas que escapa à
razão, que não pode ter uma causa determinada. A contingência é justamente a força
que desencadeia um acontecimento rompendo com o princípio de razão suficiente,
rompendo com toda a normatividade causal, rompendo com a ordem e a necessidade
histórica.
Agora podemos examinar melhor a afirmação deleuziana, segundo a qual, um
acontecimento produz uma alteração na ordem do possível, instaurando novas
possibilidades. Cabe agora responder à pergunta: Como se produz uma alteração na
ordem do possível? Como e a partir do que se criam novas possibilidades?
Para Bergson, uma das principais ilusões da inteligência, responsáveis pelas
perguntas filosóficas, pelas questões metafísicas, é a crença de que há menos na ideia do
vazio do que na ideia do pleno, menos no conceito de ordem do que no conceito de
desordem. Há também a ideia de que o possível é menos que o real, e que por esta razão
a possibilidade precede a existência. Elas podem ser pensadas e representadas
antecipadamente; elas podem ser pensadas antes de se realizarem. 6O problema desta
concepção do possível é a ilusão de que conhecendo as causas de um acontecimento é

5
« Peu importe la nature de ce qui est: dites que c’est matière, ou esprit, ou l’un ou l’autre, ou que matière
et esprit ne se suffisent pas et manifestent une Cause transcendante : de toute manière, quand on a
considéré des existences, et des causes, et des causes de ces causes, on se sent entraîné dans une course à
l’infini. ». Bergson. Le possible et le réel. Paris : PUF, 2011, p. 8.
6
Ibid., p. 11.
possível prever fatos e eventos, é possível determinar a natureza do futuro a partir das
possibilidades que lhe antecedem.
No plano social esta concepção do possível funciona como uma crítica ao
marxismo. A noção de acontecimento formulada por Badiou teria como objetivo criticar
uma noção de História, na qual a mudança ou ação transformadora se origina a partir de
um estado da totalidade da vida social. Badiou insiste que o acontecimento é um ponto
no interior de uma situação. Além disso, podemos acrescentar que a noção de possível
como posterior ao real impede diagnósticos no interior dos quais seria possível
determinar as condições de possibilidade de uma revolução. Em suma, este conceito de
acontecimento funciona como crítica ao caráter, muitas vezes, teológico, da História no
interior do marxismo.
Examinando o conceito deleuziano de virtual poderemos compreender como se
dá um acontecimento puro, este que como maio de 68 é capaz de renovar a ordem do
possível.
Para Deleuze, comentando Bergson:
“O virtual se distingue do possível ao menos segundo dois pontos de vista. Por
um lado, de fato, o possível é o contrário do real; mas, o que é muito diferente, o virtual
se opõe ao atual. Nós devemos levar a sério esta terminologia: o possível não tem
realidade (mesmo que ele possa ter uma atualidade); por outro lado o virtual não é o
atual, mas possui uma realidade.” 7
Alain Baidou critica o conceito deleuziano de virtual alegando que “Á medida
em que Deleuze tenta arrancá-lo [o virtual] da irrealidade, da indeterminação, da
inobjetividade, é o atual, ou o ente, que se irrealiza, se indetermina, e finalmente se
inobjetiva, pois se desdobra fantasticamente”8.
Na verdade a operação em questão na distinção entre atual e virtual torna
concreto e real o possível que antes existia apenas fantasticamente. Pois o possível só
pode existir a partir de um acontecimento, a partir de uma atualização do virtual, ele é
criado, portanto, a posteriori, não antecede o real, mas adquire realidade a partir do
momento em que o real é alterado. Desta maneira, não é a realidade que se inobjetiva
ou irrealiza, mas o virtual que adquire concretude. Ou seja, o possível deixa de ser uma

7
“C’est que le “virtuel” se distingue du “possible”, au moins de deux points de vue. D’un certain point de
vue, en effet, le possible est le contraire du réel il s’oppose au réel ; mais, ce qui est tout différent, le
virtuel s’oppose à l’actuel. Nous devons prendre au sérieux cette terminologie : le possible n’a pas de
réalité (bien qu’il puisse avoir une actualité) ; inversement le virtuel n’est pas actuel, mais possède en tant
que tel une réalité. »Ibid., p. 99.
8
BADIOU, Deleuze, p. 68
fantasia ou ilusão do pensamento para se tornar concreto, resultado de um
acontecimento, resultado de uma alteração do real. Ele é, portanto, concretamente
produzido pelo real. Neste sentido, Deleuze expande o campo das possibilidades do real
ao transformar o possível numa realidade, ao conferir realidade ao campo do virtual.
O virtual cumpre com a função de “renovar a ordem do possível”, ou seja,
introduzir diferença, diferenciação e criação no interior do real. É analisando o
movimento que Bergson é capaz de descrever este processo de “criação contínua da
imprevisível novidade” que Deleuze posteriormente nomeará como a diferença.
Analisando o movimento Bergson se depara com um misto:
“Por um lado, o espaço é percorrido por um móvel, que forma uma
multiplicidade numérica indefinidamente divisível, cujas partes, reais ou possíveis, são
atuais e diferem somente em grau; por outro lado, o movimento puro, que é alteração,
multiplicidade virtual qualitativa, como a corrida de Aquiles que se divide em passos,
mas que muda de natureza a cada vez que ela se divide.” 9
A multiplicidade numérica descreve a reta pitagórica composta de números
fixos, ou seja, onde não há alteração espacial, um mundo onde o tempo é uma sucessão
de instantes. Um mundo finito onde nada se cria. A crítica de Zenão a este modelo é que
nele o movimento não é possível. O paradoxo de Zenão demonstra que o movimento é
constituído de deslocamento espaço-temporal. Por esta razão ele torna possível uma
alteração de natureza qualitativa e não apenas quantitativa. Num tempo uno, contínuo
não há limitação espacial, mas mudança qualitativa. Podemos dizer que esta distinção é
o que marca, o espaço estriado e o espaço liso.

Porque Bergson escolheu como ponto de partida o movimento?


Porque o movimento é um deslocamento espaço-temporal, ele se dá a partir do
agenciamento do espaço e do tempo. Neste sentido, ele ocorre no interior e a partir das
determinações que desde a estética transcendental constituem as condições de
possibilidade de determinação de toda e qualquer experiência, do vivido.

9
« D’une part l’espace parcouru par le mobile, qui forme une multiplicité numérique indéfiniment
divisible, dont toutes les parties, réelles ou possibles, sont actuelles et ne diffèrent qu’un degré ; d’autre
part le mouvement pur, qui est altération, multiplicité virtuelle qualitative, telle la course d’Achille qui se
divise en pas, mais qui change de nature chaque fois qu’elle se divise. » Deleuze. Le bergsonisme. Paris :
PUF, 1956, p. 4.
Por isto, este exemplo talvez seja um excelente modelo para pensarmos o que é
da ordem da revolução, o que é da ordem de um acontecimento: a corrida de Aquiles e
da tartaruga.
O que o movimento de Aquiles em direção à tartaruga quando dividido nos
mostra é uma alteração qualitativa no seu modo de engendramento. A divisão do
movimento desencadeia a alteração dos pontos de referência. Na medida em que os
pontos de referência mudam, a natureza do movimento também muda. No entanto, esta
mudança não é quantitativa, mas qualitativa, porque a alteração dos pontos de referência
indica uma mudança no tempo e no espaço, e uma mudança espaço-temporal é também
uma mudança qualitativa, ou seja, com o passar do tempo a maneira através da qual as
coisas mudam, muda. O que muda não são apenas os pontos de referência, os pontos no
espaço, mas a maneira de mudar. Eis o que um acontecimento provoca e instaura. Uma
maneira distinta de compreender o engendramento do tempo e do espaço e tudo o que
dele decorre, uma maneira distinta de compreender o que é a mudança. Assim, a
Comuna de Paris não é apenas uma repetição histórica que procura realizar uma
revolução que junho de 48 não foi capaz de realizar. Ela é também uma revolta que
responde as alterações e mudanças sociais que ocorreram entre 48 e 1870.
Por isso podemos dizer que a história só se realiza quando se repete, na medida
em que um acontecimento busca atualizar e realizar um acontecimento anterior (ou seja,
quando Aquiles tenta alcançar a tartaruga, a tartaruga já se deslocou). Assim, a repetição
do acontecimento instaura e provoca um deslocamento dos pontos de referência que
fazem eclodir uma nova realidade. A repetição permite que o que ainda não podia ser
enunciado, uma situação que até então não teve lugar para aparecer, apareça, se
concretize.
Deste modo, a repetição histórica é sempre o lócus de uma diferença, o momento
em que o novo surge. Irremediavelmente o acontecimento instaura novas demandas,
demandas que até então não poderiam sequer ser formuladas, pois a tentativa de realizar
um acontecimento anterior no tempo nos coloca diante da verdadeira natureza de uma
situação atual.
O acontecimento expõe e torna visível a distância temporal e qualitativa entre
dois acontecimentos que precisam se repetir para se diferenciar. Assim,“1870” e “1848”
aparecem como distantes no tempo, diferentes. Só “1870” é capaz de nos colocar diante
do que ocorreu em “1848”, porque o acontecimento presente altera o passado, inscreve
possíveis no passado. Um acontecimento faz História, porque não é uma simples
alteração do presente, mas é também uma alteração do passado.

Deleuze critica a ideia de repetição de Marx afirmando que ela seria infundada.
Porque o que permite que Marx afirme que quando a História se repete, ela se repete
como farsa, é a ideia de que a repetição é repetição do mesmo. Napoleão III é uma farsa
porque é um fantoche, a burguesia já havia consolidado seu poder, ele não fará História
como Napoleão I. Napoleão III é uma farsa porque não realiza nada novo. Para Deleuze
quando a História se repete, quando há um acontecimento, há criação e transformação.
O que se repete só pode ser o novo, a diferença. A repetição que tem fundamento, base
ontológica é aquela que se baseia no eterno retorno da diferença.
É neste sentido que a revolução é para Deleuze o objeto transcendental da
faculdade de sociabilidade: « C’est en ce sens que la révolution est la puissance sociale
de la différence, le paradoxe d’une société, la colère propre de l’Idée sociale ».10
Ela quebra com a imagem do pensamento, com o que define a sociabilidade para
o senso-comum, com a ordem e os mecanismos de funcionamento em vigor no interior
da vida social. Neste sentido, ela é a origem de toda criação ou renovação da vida
social. Isso significa que não faz sentido falarmos em necessidade histórica, mas sim em
repetição. Repetição que instaura o novo ao tentar atualizar um desejo passado, mas que
como a diferença não cessa de se repetir, assim um acontecimento só poderá pertencer
ao passado a partir do momento em que a história se repete. Porque esta repetição
instaura o novo e transforma o passado. O que faz a História não é a necessidade, mas a
contingência.
Porque a contingência não apenas desloca os pontos de referência do tempo ao
introduzir novos elementos, novos possíveis no interior da vida social ao atualizar uma
virtualidade, como a contingência determina o modo de ser do tempo, como repetição. É
a contingência que atua na passagem do virtual ao atual, que engendra a repetição e a
move de maneira contingente garantindo que a potência do virtual se transforme em
diferença. É contingente o que é e, no entanto, carrega em si a potência de ser outro, de
fazer diferença.
Ou seja, não apenas um acontecimento não cessa de existir, porque ele é a
própria potência ou forma da contingência, como ele se transforma e muda sua forma ao

1010
Deleuze. Différence et répétition. Paris : Puf, 1968, p. 269.
longo do processo histórico. Um acontecimento não transforma apenas o real, mas
transforma a maneira através da qual a realidade muda. Assim, como a contingência
instaurou o novo, ela criará novas maneiras de ser no tempo, cuja única ordem e razão
repousa na contingência que as engendrou...

Conclusão

Maio de 68 continua a colocar demandas que ao não serem atendidas provocam


crises sociais. Trata-se de uma revolução que é virtual, real, mas que não se atualizou,
que não foi incorporada pela vida social, que insiste em não desejar a mudança. Eis a
razão de crises que a França vive até hoje, das revoltas de 2005 nas periferias, as
manifestações contra o casamento homossexual, sem falar na islamofobia, na xenofobia,
no anti-semitismo crescente, etc.
O que maio de 68 e o pensamento de Deleuze e Guatarri demonstram é que a
natureza dos acontecimentos se transformou. Maio de 68 também mudou a maneira
através da qual acontecimentos políticos pretendem renovar a ordem do possível. Houve
uma transformação radical na ordem das demandas, na natureza da reivindicação. Não
se trata mais de questionar a economia, de lutar contra a pobreza ou a exploração no
trabalho. Maio de 68 mudou a maneira de criticar o Capital porque o Capital se mostrou
mais flexível do que nunca. A partir deste momento, a crítica se estende para as
múltiplas instituições ditas “democráticas”. Maio de 68 é o primeiro acontecimento
político em que sobe à cena a micro-política! O que vemos é uma demanda por
renovação em nossos modos de vida, uma demanda por novos modos de subjetivação,
novas relações com o corpo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho, o direito...
Questões que serão as grandes questões de Mille Plateaux.
Maio de 68 rompe com uma ordem causal porque estende o campo do possível,
assim como transforma nossa concepção do que é política, transforma a dicotomia
marxista entre super-estrutura e infra-estrutura. Da mesma maneira que o capital se
volatiliza suas formas de coerção e normatização, se expandem, se diversificam e se
distinguem de acordo com os setores diversos da vida social. Como se cada domínio
tivesse uma ordem e uma lógica próprios. De repente, na História, a política deixa de ser
um problema econômico ou que diz respeito às formas de governo para designar a
multiplicidade dos modos de normatização da vida social, do público ao privado, do
macro ao micro.
Esta transformação da definição, espaço e lugar da política é acompanhada de
uma renovação filosófica.
Se um acontecimento, no interior do real, é o que faz com que algo de novo
surja, um acontecimento realiza uma operação que toca diretamente o pensamento
filosófico. A importância política do projeto filosófico deleuziano está justamente em
constituir uma ontologia renovada capaz de liberar e expandir o campo do possível.
Assim Deleuze afirmará que “a ontologia é o lance de dados”11. Um acontecimento é e
se desenvolve de maneira contingente multiplicando o real, transformando-o numa
virtualidade onde novos possíveis não cessam de fazer diferença. Atribuir dignidade
ontológica unívoca ao que é da ordem do virtual, do que ainda não se atualizou e, no
entanto é real, é uma maneira de infinitizar o campo do possível e, neste sentido, o
projeto filosófico deleuziano realiza aquilo que Maio de 68 buscava expandir o campo
do possível.

11
Deleuze, Différence et répétition, p. 257.

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