Você está na página 1de 6

SAPIENTIAM AUTEM NON VINCIT MALITIA

HOME
DIÁRIO
CONTEÚDO
BIO
REFERÊNCIAS

Navigation --- Navigation ---

Fato concreto e depuração abstrativa


Apostila do Seminário de Filosofia

Olavo de Carvalho

20 de fevereiro de 2002

Nenhum acontecimento, por mínimo que seja, pode se produzir sem que um número indefinido de acidentes
faça convergir para o preciso momento e o preciso lugar em que ele se manifesta as inumeráveis linhas de
causas e condições que sustentam sua manifestação.

O acontecimento assim considerado denomina-se fato concreto. Concreto vem de cum+crescior, designando
o crescimento concomitante e convergente desses vários fatores causais.

Graças à superposição dos fatores acidentais, todo fato concreto pode ter, para seus atores e espectadores,
uma multiplicidade de sentidos, que se organizam em várias articulações hierárquicas conforme o ponto de
vista, defini do por sua vez por um determinado interesse cognitivo.

Os vários interesses cognitivos, porém, podem ser por sua vez articulados hierarquicamente, segundo
critérios de valor. O que tem valor para o personagem envolvido não é necessariamente o que tem valor para
o cientista, etc. O ponto de vista dá busca do conhecimento verdadeiro e apodíctico é somente um desses
critérios, mas obviamente ele é o único que tem abrangência e fundamento bastante para poder julgar os
outros.

Nenhuma ciência estuda fatos concretos. Toda ciência pressupõe um ponto de vista e um recorte abstrativo
preliminar. O fato concreto só pode ser objeto de narrativa, devendo esta ser completa no que diz respeito
aos detalhes sucessivos e simultâneos, mas plurissensa o bastante para evocar a multiplicidade das causas,
acidentes e pontos de vista, que só um posterior exame abstrativo tratará de isolar e estudar um a um.

Uma das tarefas essenciais da filosofia é preparar o fato concreto para exame científico, discernindo nele os
vários pontos de vista possíveis e julgando-os segundo sua maior ou menor validade em função dos diversos
interesses cognitivos. Sem essa depuração, sugestões mais ou menos implícitas na narrativa se filtrarão
subrepticiamente para dentro enfoque científico adotado, maculando a pureza de linhas do objeto abstrato e
invalidando as conclusões obtidas de seu estudo.

Toda narrativa de fato concreto é “poética”, no sentido de operar nele um primeiro recorte que não é definido
por nenhum interesse cognitivo posterior mas segundo o próprio impacto imediato do acontecimento,
considerado enquanto massa de informações e reações vivenciada como experiência humana real.
Nenhum fato concreto seria estudado se não representasse também um problema, e nenhum problema
chegaria a ser estudado cientificamente se não fosse também, de algum modo, um problema para a existência
humana concreta. A discussão de um problema segundo o interesse cognitivo da existência humana concreta
e imediata dos personagens mais ou menos diretamente envolvidos é discussão retórica, pois nela predomina
o desejo de fazer prevalecer algum ponto de vista definido por interesses individuais das partes em disputa.

Quando algum interesse desse tipo logo prevalece sobre os demais, o fato cessa de ser problema para a
comunidade envolvida, consolidando-se em torno dele uma crença coletiva considerada suficientemente
adequada para o posicionamento prático de todas as pessoas em torno do assunto. As crenças, por sua vez,
são também fatos concretos, podendo por isto mesmo tornar-se problemas, isto é, problemas “de segundo
grau”, já não diretamente comprometidos com a existência concreta, problemas para o filósofo.

Seja em torno das crenças, seja dos fatos mesmos, pode acumular-se uma massa de opiniões ao menos
aparentemente incompatíveis, derivadas do exame do fato desde interesses cognitivos diversos e não
articulados uns com os outros. Quando a acumulação dessa massa atinge o ponto crítico, isto é, quando as
diversas crenças se tornaram fatos e a acumulação desses fatos toma a forma de um conflito geral, a
necessidade de articular racionalmente os diversos pontos de vista (e respectivos interesses cognitivos), para
transcendê-los num ponto de vista abrangente capaz de dar conta de todos e arbitrá-los, este é precisamente o
momento da entrada em cena do filósofo.

O filósofo procede ao exame dialético da massa de opiniões, mas não o faz com propósito puramente
dialético (impugnar racionalmente esta ou aquela opinião), mas com o propósito de fazer dela, meduante
sucessivas depurações dialéticas das crenças envolvidas, um objeto possível de demonstração científica.

Assim, evidentemente, o estudo científico de qualquer fato passa necessariamente pelas etapas dos quatro
discursos de Aristóteles, seja na mente de um só investigador que as percorra todas, seja ao longo de uma
“tradição” de discussões que começa com as narrativas e, mediante sucessivas depurações e estreitamentos
dos pontos de vista considerados, termina em conclusões científicas com pretensões de validade
demonstrativa.

***

A filosofia — unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa — não poderia, portanto,


surgir como ambição e projeto antes da “descoberta do espírito” assinalada por Bruno Snell (dependente por
sua vez da dissolução de um universo mitopoético na proliferação dos discursos retóricos). Esta grande
ascensão a um ponto de vista superior, definido por um interesse cognitivo superior — o interesse do
indivíduo humano considerado enquanto capaz de conhecimento universalmente válido — , foi
evidentemente um “salto civilizacional”, abrindo à humanidade européia novas possibilidades não só de
concepção e cognição, mas de organização social e política fundada no reconhecimento da (potencial)
autonomia cognitiva do indivíduo maduro em face da opinião socialmente vigente.

Muitos sofrimentos e perplexidades registrados na História ocidental desde então derivam de um só


problema: todos os indivíduos humanos são virtualmente capazes de autonomia cognitiva, não sendo
possível determinar de antemão quais realizarão ou não essa possibilidade; de outro lado, é incontestável que
pouquíssimos a realizam (e seu número não parece crescer proporcionalmente, tanto quanto se esperava, com
a expansão do acesso aos meios de ensino). Intermináveis discussões de princípios e conflitos de facto em
torno do “governo dos sábios”, do “governo dos poucos”, do “governo dos muitos” ou do “governo do povo
pelo povo para o povo” derivam dessa contradição originária, aparentemente insolúvel. As castas não são
mais que a distinção de tipos humanos conforme sua participação maior ou menor na realização dessa
possibilidade. A não ser na remotíssima e utópica possibilidade de saber de antemão quais indivíduos se
tornarão sábios (hipótese que nem mesmo o rigidíssimo sistema hindu de legitimação oficial das castas
ousou subscrever integralmente), a distribuição de facto das castas numa dada sociedade pode ser
considerada, sem erro, um dado empírico bruto, que pode ser descrito mas não “explicado” causalmente. Por
isto ela é a base extra-social, ou pré-social, de toda ciência social. Por baixo de qualquer sistema político ou
estrutura social de classes, há sempre um sistema de castas, reconhecido ou não. As várias possibilidades de
articulação entre o sistema de castas existente de facto e o sistema de classes e poderes legitimamente
constituído são a base de toda tipologia das estruturas sociais que se pretenda cientificamente válida, isto é,
fundada em fatores últimos que transcendem a explicação sociológica.
183

Comments
2 comments

2 comentários Classificar por Mais antigos

Adicione um comentário...

Adriano Pires
Pelo que entendi tem haver com hierarquizar.
Curtir · Responder · 45 sem

Fernanda Correa Bahia Castro


Professor, nao consigo achar seus cursos...
Curtir · Responder · 38 sem

Plugin de comentários do Facebook

Em 20 de fevereiro de 2002 / Apostilas

 Previous Post
A transfiguração fenomenológica
Next Post 
A metafísica e os fundamentos da objetualidade

Type here to search

No Facebook
Olavo de Carvalho
13 horas atrás

Estamos no ar!
youtu.be/E4FpdOT6eeE

A arte de Saber, Prever e Poder


youtu.be

Link para inscrever-se no novo curso de Olavo de Carvalho: lp.seminariodefilosofia.org/saber-


comprar/Live sobre as inúmeras previsões políticas acert...

 Video
Veja no Facebook · Compartilhe

Olavo de Carvalho
22 horas atrás

livraria.seminariodefilosofia.org/mapa-do-mundo-pessoal
A editora Auster acaba de publicar o "Mapa do mundo pessoal", do filósofo espanhol Julián Marías,
prefaciado pelo psiquiatra Dr. Italo Marsili.
Disponível na livraria com 40% de desconto.
"Ninguém pode possuir a si mesmo sem a cartografia do mundo pessoal, sem possuir antes uma narrativa
sincera da própria história, sem saber com quem verdadeiramente faz a própria vida, e sem entender a pessoa
como a realidade cuja forma consiste em viver."
 Foto
Veja no Facebook · Compartilhe

Olavo de Carvalho
567,165 likes

Liked Sign Up

Flickr Album
Arquivo anual
2021
2020
2019
2018
2017
2016
2015
2014
2013
2012
2011
2010
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1989
1987

Tags

1998 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 América
Latina Antonio Gramsci Brasil Comunismo democracia Diário do Comércio Diário do Comércio (editorial)
EUA FARC Fidel Castro filosofia Foro de São Paulo Forças Armadas George W. Bush Jornal da Tarde Jornal
do Brasil KGB Lula MST mídia Obama O Globo ONU PT socialismo URSS Zero Hora Época

Veja todos os arquivos por ano

Selecionar o mês
© 2017 Olavo de Carvalho . Direção artística MauroVentura.com | Política de Privacidade | Termos de
Serviço | Entradas (RSS) | Comentários (RSS)
Back to Top

Você também pode gostar