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PARADOXO DO SOCIÓLOGO1

Pierre Bourdieu

A idéia central que eu gostaria de desenvolver hoje, é que a teoria do


conhecimento e a teoria política são inseparáveis: toda teoria política encerra, pelo
menos implicitamente, uma teoria da percepção do muno do social e as teorias da
percepção do mundo social se organizam segundo oposições muito análogas as
encontradas na teoria da percepção do mundo natural. Neste caso, opõe-se
tradicionalmente uma teoria empirista, segundo a qual a percepção toma
emprestado da realidade as suas estruturas, e uma teoria construtivista que diz
que os objetos só são percebidos por um ato de construção. Não é por acaso que
encontramos o mesmo tipo de oposições a respeito de um problema que concerne
à percepção do mundo social, o das classes sociais. Encontramos duas posições
antagônicas que não se exprimem com a mesma simplicidade um pouco brutal
com que vou tratá-las: para uns, as classes sociais existem na realidade e a
ciência não faz mais que registrá-las, constatá-las; para outros, as classes sociais,
as divisões sociais são construções sociais operadas pelos cientistas ou pelos
agentes sociais. Os que querem negar a existência das classes sociais invocam
freqüentemente que elas são o produto de uma construção sociológica. Segundo
eles, só há classes sociais porque existem cientistas para construí-las.
(Eu digo logo em seguida que um dos problemas fundamentais colocados
pela teoria da percepção do mundo social é o problema da relação entre a
consciência cientifica e a consciência comum. O ato de construção é uma obra do
cientista ou do nativo? O nativo tem categorias de percepção? Onde ele as
adquire? Qual é a relação entre as categorias que constrói a ciência e as
categorias que o agente comum coloca em ação em sua prática?)
Volto à minha questão inicial: como o mundo social é percebido e qual é a
teoria do conhecimento que explica o fato de percebermos o mundo como
organizado? A teoria realista dirá que as classes sociais existem na realidade, que
elas são medidas com índices objetivos. A objeção principal à teoria realista reside

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Conferência feita em Arras (Noroit) em outubro de 1977.

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no fato de que, na realidade, nunca há descontinuidade. As rendas se distribuem
de maneira contínua, como a maior parte das propriedades sociais que podem ser
relacionadas aos indivíduos. Ora, a construção científica ou mesmo a percepção
comum vê o descontínuo onde o observador vê o continuo. Por exemplo, é
evidente que, de um ponto de vista estritamente estatístico, é impossível dizer
onde termina o pobre e onde começa o rico. No entanto, a consciência comum
acha que há ricos e pobres. Mesma coisa para os jovens e velhos. Onde termina a
juventude? Onde começa a velhice? Onde termina a cidade? Onde começa o
subúrbio? Qual a diferença entre um grande povoado e uma pequena cidade? Diz-
se: as cidades de mais de 20.000 habitantes são mais favoráveis à esquerda do
que as de menos de 20.000. Por que 20.000? O questionamento do corte é muito
justificável. É uma primeira oposição: as divisões são construídas ou constatadas?
Tendo colocado a primeira oposição em termos da sociologia do
conhecimento (conhecemos o mundo social por construção ou constatação?), eu
gostaria de recolocá-la em termos políticos. (Façamos um parêntese sobre os
conceitos em "ismo": a maior parte dos conceitos, tanto na história da arte, da
literatura ou da filosofia como na teoria política são conceitos históricos que,
inventados para as necessidades de tal ou qual polêmica, ou seja, num contexto
histórico bem preciso, são utilizados fora e além deste contexto e se encontram
assim investidos de um valor trans-histórico. Isto se aplica ao uso, um pouco
selvagem, que vou fazer aqui de toda uma série de conceitos em "ismo"). Volto à
segunda oposição, mais política, a que se pode estabelecer entre um objetivismo
cientista ou teoreticista e um subjetivismo ou um espontaneísmo. Vamos pegar
como exemplo um dos problemas que perseguiu o pensamento social do fim do
século passado e que o pensamento marxista chamava do problema da catástrofe
final. Este problema pode ser formulado mais ou menos nos seguintes termos: a
revolução será o resultado de um desenvolvimento inevitável, inscrito na lógica da
história ou será o resultado de uma ação histórica? Os que pensam que se pode
conhecer as leis imanentes do mundo social e esperar a "catástrofe final" a partir
de sua eficácia, opõem-se àqueles que recusam as leis históricas e afirmam o
primado da praxis, o primado do sujeito, o primado da ação histórica em relação
às leis invariantes da história.
Reduzida assim à sua mais simples expressão, esta oposição entre o
cientismo determinista e o subjetivismo ou o espontaneísmo pode ser vista de uma

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forma claríssima a respeito das classes sociais. Se estou dando o exemplo das
classes sociais, não é por acaso. É ao mesmo tempo algo que os sociólogos
necessitam para pensar a realidade e algo que "existe" na realidade, isto é, existe
ao mesmo tempo na distribuição objetiva de propriedades e na cabeça das
pessoas que fazem parte da realidade social. É o problema mais complicado que
se possa pensar, pois trata-se de pensar aquilo com o que pensamos e que, sem
dúvida é determinado ao menos em parte por aquilo que queremos pensar: estou,
portan'to, correndo o risco, confesso sinceramente, de não conseguir falar sobre
isso da maneira mais correta.
Em política, o problema do conhecimento é colocado sob a forma da
questão das relações entre os partidos e as massas. Muitas das questões que
foram colocadas a este respeito são uma transposição, consciente ou
inconsciente, das questões clássicas da filosofia do conhecimento sobre a relação
entre o sujeito e o objeto. Um sociólogo (Sartori) desenvolve a tese ultra-subjetiva
com muita lógica e rigor: ele se pergunta se o princípio das diferenças observadas
na situação da classe operária na Inglaterra, na França e na Itália reside na
história relativamente autônoma dos partidos, isto é, destes sujeitos coletivos,
capazes de construir a realidade social por suas representações, ou nas
realidades sociais correspondentes. Atualmente, o problema se coloca com uma
acuidade particular. Será que os partidos exprimem as diferenças ou será que eles
as produzem? Segundo a teoria intermediária entre o ultra-subjetivismo e o ultra-
objetivismo que é expressa por Luckács o partido apenas revela a massa a si
mesma, segundo a metáfora da parteira.
Será que estas duas oposições, oposição do ponto de vista da teoria do
conhecimento e oposição do ponto de vista da ação política, não podem ser
superpostas? Se tivéssemos que distribuir numa espécie de espaço teórico os
diferentes pensadores do mundo social de acordo com a posição que eles adotam
sobre estes dois problemas, perceberíamos que as respostas não são
independentes. No terreno da antropologia, onde a questão propriamente política
não se coloca, a principal divisão é a oposição entre o subjetivismo e o
objetivismo. A tradição objetivista concebe o mundo social como um universo de
regularidades objetivas independentes dos agentes e construídas a partir do ponto
de vista do observador imparcial que está fora da ação, que sobrevoa o mundo
observado. O etnólogo é alguém que reconstitui uma espécie de partição não

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escrita, que organiza as ações de agentes que crêem improvisar, cada qual sua
melodia, enquanto na realidade, tanto nas trocas matrimoniais quanto nas trocas
lingüísticas eles agem conforme um sistema de regras transcendentes, etc. Frente
a isso, Sartre toma uma posição explícita em relação a Lévi-Strauss e ao efeito de
reificação que produz o objetivismo em "A Crítica da Razão Dialética". Um
discípulo de Husserl, Schütz, fez uma fenomenologia da experiência comum do
mundo social; tentou descrever como os agentes sociais vivem o mundo social em
estado primitivo e esta tradição se estendeu aos Estado Unidos, com a corrente
chamada "etnometodológica", que é uma espécie de fenomenologia rigorosa da
experiência subjetiva do mundo. É a antítese absoluta da descrição objetivista. No
limite, como sugerem alguns textos de Goffman, o mundo social é o produto das
ações individuais. Longe das pessoas terem condutas respeitosas porque existem
hierarquias, é a infinidade de ações individuais de respeito, de deferência, etc.,
que termina por produzir a hierarquia. Vê-se imediatamente as implicações po-
líticas disso. De um lado, a linguagem das estruturas objetivas de dominação, as
relações de força objetivas; de outro, uma soma de atos infinitesimais de respeito
que produz a objetividade das relações sociais. De um lado, o determinismo, de
outro a liberdade, a espontaneidade, ("Se todo mundo parasse de cumprimentar
os grandes, eles não existiriam mais, etc."). Vê-se bem que é uma questão
importante. Vê-se ao mesmo tempo que é uma questão mais difícil no terreno das
sociedades divididas em classes e da sociologia do que no da etnologia, embora
quase sempre se separe o problema do conhecimento e o problema político.
Na tradição marxista há uma luta permanente entre uma tendência
objetivista que busca as classes na realidade (daí o eterno problema: "Quantas
classes existem?") e uma teoria voluntarista ou espontaneísta que diz que as
classes são uma coisa que se faz. De um lado, fala-se de condição de classe e, do
outro, de consciência de classe. De um lado, fala-se de posição nas relações de
produção. De outro, em "luta de classes", de ação, de mobilização. A visão
objetivista será antes de tudo uma visão do cientista. A visão espontaneísta será
antes de tudo uma visão do militante. Na realidade, acho que a posição que se
adota sobre o problema das classes depende da posição que se ocupa na
estrutura de classes.
Num trabalho que fiz há algum tempo, eu colocava alguns problemas que
quero colocar esta noite. Um instituto de pesquisas havia proposto a uma amostra

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de entrevistados que eles dissessem a respeito de Marchais, Mitterrand, Giscard,
Chirac, Poniatowski, Servan-Schreiber, segundo a regra do "jogo chinês" ("se isso
fosse uma árvore, o que seria?"), se caso eles fossem uma árvore, que tipo de
árvore evocariam: uma bananeira, um choupo, um carvalho, etc.; se fosse um
automóvel, um RolIs, um Porshe ou um "2 CV", etc. Aparentemente, tratava-se de
um jogo social sem conseqüências. No entanto, convidados a relacionar duas
séries de objetos cujos conceitos eles, evidentemente, ignoravam, uma série de
homens políticos de um lado e uma série de objetos do outro, as pessoas
produzem uma série de atribuições coerentes e, para Servan-Schreiber, por
exemplo, o resultado foi: se fosse uma árvore, seria uma palmeira; se fosse uma
mobília, seria Knoll; se fosse um automóvel, seria um Porshe; se fosse um
parente, seria um genro. Encontramos aí a idéia de um "exibicionismo", um
"cheguei" e toda uma verdade constitutiva da nova burguesia da qual Servan-
Schreiber faz parte (e ele efetivamente possui móveis Knoll em Paris). Dito de
outra forma, há uma intuição global da pessoa na medida em que ela é portadora
do “estilo" de toda uma fração de classe.
Não sendo pré-constituídos socialmente, os objetos naturais (árvores, flores,
etc.) são constituídos pela aplicação de esquemas sociais. Mas os chapéus
(chapéu coco, cartola, boné, boina, etc.) ou os jogos (bridge, carteado, etc.) são
objetos já classificados na própria realidade pois pelo fato de colocar uma cartola,
um boné, ou não usar chapéu, etc., as pessoas se classificam e sabem que o
fazem. As classificações que os sociólogos aplicam são, portanto, classificações
de segundo grau. Pode-se dizer que as atribuições que as pessoas fazem são
operadas por um sentido social que é uma quase-sociologia, uma intuição prática
e bem fundada da correspondência entre as posições sociais e os gostos.
Estou começando a responder à questão que coloquei no começo. Será que
a representação do mundo social é o simples registro de divisões que existem na
realidade ou é apenas uma construção operada peIa aplicação de esquemas
classificatórios? Os agentes passam a vida a se classificar pelo simples fato de se
apropriarem de objetos que são também classificados (pelo fato de serem
associados a classes de agentes); e também a classificar os outros que se
classificam ao se apropriarem dos objetos que eles classificam. Portanto, o que se
discute no próprio objeto é a sua classificação. Quase todos os agentes têm na
cabeça o mesmo sistema de classificação. Conseqüentemente, poderíamos dizer

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que existem duas ordens de objetividade: as classes objetivas que posso construir
com base nos salários, diplomas, número de filhos, etc.; e em seguida, as classes
objetivas tais como elas existem na cabeça dos agentes que são submetidos à
classificação científica. Estas classificações são um objeto de lutas entre os
agentes, ou seja, há uma luta de classificações que é uma dimensão da luta de
classes. Numa das Teses sobre Feuerbach, Marx diz mais ou menos que a
infelicidade do materialismo foi ter deixado ao idealismo a idéia de que o objeto é o
produto de nossas construções, de ter identificado o materialismo a uma teoria do
conhecimento como reflexo do mundo, enquanto o conhecimento é uma produção,
um trabalho coletivo, etc. Ora, como falei, esta produção é antagônica. Os siste-
mas de classificação são produtos sociais, e enquanto tais, são lugares de uma
luta permanente. Tudo isto é muito abstrato, mas posso voltar a coisas bem
concretas. Tomemos um exemplo: as convenções coletivas são registros de lutas
sociais entre os patrões, os sindicatos, etc. Lutas a propósito de quê? A propósito
de palavras, classificações, sistemas. A maior parte das palavras de que dispomos
para falar do mundo social oscilam entre o eufemismo e a injúria. Temos "caipira",
"injúria", e "agricultor", eufemismo, e entre os dois, "camponês". Não existe palavra
neutra para falar do mundo social e a mesma palavra não significa a mesma coisa
dependendo da pessoa que a fala. Tomemos a palavra "pequeno-burguês": esta
palavra, que condensa um certo número de propriedades totalmente
características desta categoria tem sido tão empregada como injúria na luta
filosófica e na luta literária − pequeno-burguês, "classe, média", etc. − que, mesmo
sem o querer, funcionará como instrumento, de luta.
Na vida cotidiana, passamos nosso tempo a objetivar os outros. A injúria é
uma objetivação ("Você não passa de um..."); ela reduz o outro a uma de suas
propriedades, de preferência oculta; ela o reduz, como se diz, a sua verdade
objetiva. Alguém diz: "Sou generoso, desinteressado, etc." Nós lhe respondemos:
"Você faz isso para ganhar sua vida", grau zero da redução. (O materialismo tem
uma propensão particular a cair no economicismo que se ajusta à tendência
espontânea da luta cotidiana das classificações, que consiste em reduzir o outro à
sua verdade objetiva. Ora, a redução mais elementar é a redução ao interesse
econômico).
Na prática cotidiana, a luta entre o objetivismo e o subjetivismo é
permanente. Cada um procura impor a representação subjetiva de si mesmo como

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representação objetiva. O dominante é quem possui os meios de impor ao
dominado que o perceba como ele quer ser percebido. Na vida política, cada um é
objetivista contra seus adversários. Além disso, nós sempre somos objetivistas
para os outros.
Há uma cumplicidade entre o cientismo objetivista e uma forma de
terrorismo. A propensão ao objetivismo que é inerente à postura cientista é ligada
a algumas posições no universo social e em particular à posição do pesquisador
que domina o mundo pelo pensamento, que tem a impressão de ter um
pensamento do mundo inteiramente inacessível aos que estão imersos na ação. O
economicismo é a tentação das pessoas que sabem mais economia. Ao contrário,
os que estão mais engajados na ação são levados ao espontaneísmo. A oposição
entre o objetivismo e o subjetivismo está na própria natureza das coisas; é a pró-
pria luta histórica. Marx tem mais chance que Bakhunin de ter a verdade de
Bakhunin, e Bakhunin tem mais chance que Marx de ter a verdade de Marx. Em
todo caso, não se pode ser ao mesmo tempo Marx e Bakhunin. Não se pode estar
em dois lugares do espaço social ao mesmo tempo. O fato de se estar num ponto
do espaço social é acompanhado por prováveis erros: o erro subjetivista, o erro
objetivista. Desde que há um espaço social, há luta, há luta de dominação, há um
pólo dominante, há um pólo dominado, e desde este momento há verdades
antagônicas. O que quer que se faça a esse respeito, a verdade é antagônica. Se
há uma verdade, é que a verdade é um objeto de luta.
Acho que no movimento operário sempre houve uma luta entre uma
tendência centralista, cientista, e uma tendência mais espontaneísta, cada uma
das duas, se apoiando, devido às necessidades das lutas internas do partido, em
oposições reais no interior da própria classe operária: os primeiros, apelando para
os sub-proletários, os "marginais"; os outros, à elite operária. Esta oposição é a
própria história e a pretensão monista que tenta anulá-la é anti-histórica, e por isto,
terrorista.
Não sei se argumentei corretamente. O que disse no final não é uma
profissão de fé. Acho que é uma decorrência da análise.

In: BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero.
p. 68-74.

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