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David M. Eberhard
2013
Preâmbulo
O enfraquecimento e desaparecimento de centenas de línguas minoritárias no mundo todo tem sido reconhecido
como um assunto de urgência mundial por linguistas e antropólogos durante as últimas duas décadas. Um dos alertas
iniciais, e com certeza o mais citado, foi dado pelo linguista Michael Krauss (1992)1, que nos acordou para a realidade
do processo de extinção que muitas línguas de hoje estão vivendo, e da grande possibilidade da perda iminente de
uma porcentagem assustadora (90%) das línguas do planeta.2 Felizmente, a perda em massa tem sido menos acelerada
do que prevista originalmente por Krauss. Mesmo assim, hoje sabemos que 37% das línguas do mundo estão em
processo de perda, e uma parte significativa dessa perda está acontecendo aqui no nosso Brasil (Simons e Lewis, 2011;
Lewis et al, 2013).3
O linguista da UNB Aryon Rodrigues (2002) afirma que a perda linguística chegou a ser um fenômeno global.
Há 15 anos, a Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura alertou às nações que o conhecimento cultural do mundo
está diminuindo. A variedade de conhecimento. Com a globalização, está se intensificando o processo de eliminar as minorias de uma maneira
ou de outra. E isso leva embora as línguas e o conhecimento que é transmitido através delas. E isso é um fenômeno global.
Por um lado, trata-se de um processo natural, pois todas as línguas do mundo estão sempre em processo de mudança,
e o abandono de línguas minoritárias em favor de línguas majoritárias tem acontecido desde o tempo quando as
primeiras sociedades humanas começaram a falar e entrar em contato umas com as outras. Essa mudança é provocada
por diversos fatores, como guerra, morte, economia, ou simplesmente por pequenas decisões culturais que, ao longo
prazo, se transformam em grandes passos linguísticos. Mas, por outro lado, estamos pela primeira vez na história
entendendo melhor as ramificações comunitárias (as perdas sociais e as perdas de identidade) implícitas nessas
mudanças linguísticas, perdas que poderiam ser evitadas se decisões específicas forem tomadas antecipadamente pelas
comunidades em questão.4
Queremos através desta comunicar a preocupação dos linguistas e ONGs que trabalham dentro das comunidades
indígenas brasileiras e encaram essa perda linguística bem de perto. Além de mostrar a nossa preocupação, queremos
também 1) desenhar em forma geral a realidade das línguas indígenas brasilerias de hoje – descrevendo graficamente o
estado e a vitalidade das línguas dentro do território nacional, 2) dar uma justificativa para o governo se preocupar
com a defesa das línguas em perigo, e 3) oferecer algumas opções (vindo dos avanços na sociolinguística recente) que
possam nos ajudar traçar um caminho mais apropriado e saudável para um Brasil linguísticamente diversificado e ao
mesmo tempo sustentável.
1 Krauss não foi o primeiro a se preocupar com línguas em perigo. Thaïs Cristófaro Silva (2002, p. 58) cita o interesse
neste tema por linguistas do passado, nos trabalhos do Vendryes (1934), Swadesh (1948), Terracini (1951) e Cotenau (1957).
2 A previsão de Krauss, feita em 1992, era de 50% das línguas do mundo passando para extinção, e até 90% chegando a
um estado de perigo no próximo século (Krauss, 1992).
3 Hoje sabemos que a velocidade da perda linguística é variada de acordo com as áreas geográficas do mundo, com
algumas áreas sofrendo pouca perda (Africa), e outras (Austrália, América do Sul, e América do Norte) com a porcentagem de
línguas ameaçadas mais alta, atingindo um índice de até 87% (Simons e Lewis, 2011). Essas tendências geográficas podem ser
relacionadas às variações na história do colonialismo em cada região do mundo. São histórias diferentes, diferenças que implicam
variações do tempo, do grau de contato, e da convivência entre os colonizadores e os povos originários, diferenças com
consequências que mudaram o futuro e a trajetória das línguas minoritárias no mundo todo (Mufwene, 2002).
4 Uma decisão comunitária de não abandonar a sua língua e de optar para uma realidade multilingue, convivendo e
identificando com dois mundos, evita muitas consequências da perda linguística a longo prazo.
A realidade das línguas brasileiras
Para visualizar melhor a perda etno-linguística dentro do território nacional, Rodrigues (1986) traça uma linha desde
São Luis de Maranhão até o Porto Alegre no Rio Grande do Sul, e de acordo com o mapeamento das terras indígenas,
vemos nitidamente o grande desaparecimento de comunidades indígenas na lado leste dessa linha, a mesma área onde
antigamente houve os primeiros encontros entre os colonizadores e as numerosas etnias que ocupavam essa região.
Hoje, a grande maioria desses grupos simplesmente não existem mais.
Angel Mori (2013), linguista de UNICAMP, afirma que na época da chegada dos portugueses no Brasil “existiam mais
de mil línguas, das quais hoje restam apenas 15%”. Conforme uma pesquisa recente do Museu Paraense Emílio
Goeldi, “um quarto das 154 línguas indígenas ainda vivas no Brasil está ameaçado de extinção, já que contam com
menos de cem falantes” (Etnolinguistica, 2013).
De acordo com o Atlas Interativo de Línguas em Perigo (UNESCO 2010) o Brasil entra no ranking como o terceiro pais
do mundo com o maior número de línguas ameaçadas de extinção. Essa afirmação se baseia nos dados da UNESCO,
nas quais constam 180 línguas brasilerias, 45 delas sendo classificadas em situação crítica de extinção.5 A grande
maioria das demais línguas brasileiras estão catalogadas em situação de ‘vulnerável’, ou seja, prestes para sofrer perda.
5 O cálculo do número total das línguas brasileiras vareia de acordo com as entidades fazendo o levantamento. Isso é
natural, pois a divisão entre língua e dialeto pode ser feita de várias formas, algumas instituições fazendo essa determinação de
acordo com as estruturas linguísticas das variedades envolvidas, e outras instituições fazendo-a de acordo com as categorias
estabelecidas pelos falantes nativos. O importante neste artigo não é focar o número específico de línguas ameaçadas, mas a
porcentagem delas em relação ao todo.
Também é importante prestar atenção nos trabalhos feitos por diversos linguistas trabalhando com as línguas
indígenas brasileiras, a maioria produzindo descrições das estruturas dessas línguas (seja de nível fonológico,
morfológico ou gramatical). Estas descrições foram feitas por pesquisadores que, trabalhando e convivendo com
comunidades específicas, têm visto e apontado para um processo acelerado de mudança linguística em todos os cantos
deste pais. Por exemplo, temos a descrição da língua sabanê de Mato Grosso, um documento que nos alertou para o
fato desta língua ter apenas 3 falantes nativos, trabalho esse elaborado pelo linguista da USP, Gabriel Antunes de
Araujo (2004). A linguista Stella Telles (2002), da UFP, publicou uma gramática das línguas latundê e lakondê (ambos
de Rondônia), registrando os últimos 10 falantes de latundê, e a única e última falante da língua lakondê, Teresa
Lakondê. Essa cena se repete anualmente nas pesquisas linguísticas deste pais, e somando cada situação crítica, e
escutando a voz de cada especialista, podemos ver uma tendência maior. As línguas brasileiras, de forma geral, estão
passando grande perigo.
Dentro desse estado de perigo, fica evidente que muitas línguas brasileiras sofrerão extinção iminente, sem nenhum
registro e sem nenhuma possibilidade de revitalização. Muitas outras línguas ainda estão no início do processo de
perda, quando algo pode ser feito. Mas se queremos ajudar na preservação de uma parte desta riqueza linguística,
deste patrimônio nacional, teremos que adotar uma perspectiva nova, e fazer isso agora.
Por que então devemos nos preocupar com as línguas minoritárias deste pais? Para responder a essa pergunta, vamos
primeiro relacionar o que se perde cada vez que uma língua morre:
O modelo do Lewis chama-se o SUM (ou MUS, Modelo de Uso Sustentável. Veja Lewis, 2010). Dentro desse
modelo, ele introduz o EGIDS, uma escala que mede a vitalidade linguística das línguas.9 No lado direito, temos
incluido a escala da UNESCO para facilitar as comparações entre os dois modelos.
A tabela acima mostra as línguas indígenas brasileiras dentro da escala EGIDS. Nesta escala, 12 línguas se encontram
no nível 4, ou seja, são faladas pela comunidade toda e disfrutam de uma forma escrita usada e respaldada pelo sistema
educacional do pais. 31 estão no nível 5, ou seja, são faladas pela comunidade toda e desfrutam de uma forma escrita,
mas só de caráter informal. 18 estaõ na fase 6a, faladas por todas as faixa etárias da comunidade. 34 estão no nível 6b,
onde algumas crianças já não falam mais a língua. 20 estão no nível 7, faladas apenas pelos pais. 23 estão no nível 8a,
faladas apenas pelos avós. 38 estão no nível 8b, apenas faladas por um grupo bem pequeno de idosos. 38 estão no
nível 9, onde ninguém mais fala a língua além de usar algumas frases isoladas. 21 se encontram no último nível 10,
pois já se perderam completamente.10
Usando o Ethnologue (Lewis et al, 2013), podemos então identificar línguas brasileiras em cada nível começando no
nível 4.11 Nesta lista temos registrado alguns nomes específicos, entre muitos outros, para servir como exemplos de
cada nível.
Nível 4
Gavião de Jiparaná, Jamamadi, Xavante
Nível 5
Nadeb, Enawene-Nawe, Hupda
Nível 6a
Mehinaku, Pirahã, Suyá, Caló
Nível 6b
Aikana, Kadiweu, Kaingang, Bororo
Nível 7
Paumari, Terena, Xokleng
Nível 8a
Latundê, Rikbaktsa, Salumã
Nível 8b
Sabanê, Lakondê, Kwaza
Nível 9
Katukina, Potiguara, Tupinikin
Nível 10
Agavotaguerra, Kabixí, Karipuna de Rondônia
Mas dentro dessa variedade de situações, voltamos a enxergar o mesmo fato preocupante. Somando os dados, vemos
que 35% das línguas brasileiras se encontram nos nívies 4-6a, ou seja, contextos onde o uso é maçico e saudável,
enquanto 65% estão nos níveis 6b – 10, ou seja, em uma das fases de perda. De todos os dados, este é o número mais
preocupante. No Brasil, este último grupo, o grupo em perigo, acaba sendo quase o dobro do primeiro grupo (Lewis
et al, 2013).
10 Nos dados sobre as línguas brasileiras no Ethnologue, o nível 10 inclui todas as línguas sem nenhum falante que se
perderam desde o ano 1950 (quando o Ethnologue começou a coletar tais dados). Este grupo de 21 idiomas inclui tanto as línguas
extintas que já foram registradas de alguma maneira, e também aquelas que não têm nenhuma documentação. Mas, sendo que o
nível 10 teoricamente implica que existe um registro da língua extinta, uma parte deste grupo de 21 cai além do nível 10, e está
assim fora da lista, ou seja, completamente esquecida.
11 O modelo SUM avalia o nível das línguas de acordo com 5 fatores sociolinguísticos. Esses fatores são: 1) funções
adequadas, 2) formas de aquisição, 3) motivação - que inclui motivações econômicas e atitudes de prestígio, 4) ambiente, e 5) a
diglossia (ou a divisão de funcões linguísticas na sociedade). Aqui não temos o espaço para uma explicação maior desses fatores
importantes, mas para o leitor que deseja mais informações, veja Lewis, 2010.
Níveis sustentáveis, não sustentáveis, e as forças causativas
Dois princípios fundamentais nos ajudam a avaliar as línguas na hora de aplicar a escala do EGIDS. O primeiro
princípio é o princípio da “gravidade”: quando línguas se encontram em contato com outras línguas, a língua de
menos vitalidade, poder econômico e prestígio geralmente sofre um processo de perda, caindo gradativamente (ou às
vezes rapidamente) pelos níveis da escala EGIDS. 12 Essa queda é uma tendência universal, exercendo uma força
comparada à força da gravidade.
As forças que causam as perdas linguísticas são muitas, e são complexas e interligadas, mas sabemos que o contato
prolongado entre os povos, o prestígio de um povo acima dos outros, e as forças econômicas são três fatores
principais.13 É claro que as guerras e epidemias também fizeram parte dessa história. Mas no mundo de hoje, com o
contato acelerado que a maioria dos povos no Brasil tem com a sociedade nacional, os fatores econômicos acabam
tendo mais influência. Esses fatores econômicos são internos e externos, incluindo uma falta cada vez maior de
autonomia e oportunidade econômica do lado de dentro da cultura tradicional, acompanhada por um aumento de
oportunidades econômicas do lado de fora. Se o controle da economia e da maioria dos bens e dos domínios
importantes na vida de um povo fica nas mãos de uma outra cultura, e se essa cultura fala outra língua, esse povo terá
dificuldade em segurar a sua língua tradicional. Infelizmente, esse quadro, na maioria dos casos, define cada vez mais o
mundo indígena brasileiro de hoje. A tendência geral, então, será a perda linguística. Essa tendênica é a tal “gravidade”
implícita no modelo EGIDS contra a qual as línguas minoritárias estão lutando. Para não sofrer perda de vitalidade, as
línguas minoritárias precisam ser mantidas pelas suas comunidades por esforços intencionais.
O segundo princípio nos diz a respeito da força relativa de cada nível. Os 10 níveis encontrados no EGIDS não têm o
mesmo poder na manutenção linguística. Cinco desses níveis são sustentáveis, ou seja, podem ser mantidos pela
comunidade por um tempo de longo prazo, ou de muitas gerações. Os outros níveis não têm essa sustentabilidade, e
por isso são mais sujeitos à queda. Como a tendência é de cair e não subir, então os níveis não-sustentáveis são
simplesmente um estágio passageiro entre um nível e o nível inferior. Quando uma comunidade fala uma língua que se
encontra num nível não-sustentável, precisa de um grande esforço comunitário para evitar a queda e para subir para o
próximo nível sustentável. Subir de um nível inferior para um nível muito acima, pulando os níveis intermediários, não
é possível. A subida, já que é algo difícil, só acontece passando por um nível de cada vez. O alvo então do trabalho de
manutenção ou fortalecimento linguístico é de ajudar uma comunidade a chegar a um nível sustentável de uso. Esses 5
níveis sustentáveis podem ser identificados da seguinte maneira:
Os 5 Níveis Sustentáveis:
Níveis 1-3 Comunicação Internacional Sustentável - Sempre segura
12Quando falamos da “perda” ou da “morte” de uma língua, é de fato uma metáfora. Na verdade, as línguas não se perdem e nem
morrem, mas são os povos que tomam a decisão de não usá-las.
13 O SUM também explica as influências das mudanças linguísticas, usando o fator de “motivação”. Para Lewis, a motivação
inclui tanto as motivações econômicas quanto as motivações sociais (ou seja, percepções de prestígio) que incentivam uma
comunidade a adotar uma outra variedade linguística. Veja Lewis 2010.
Para entendermos melhor estes princípios, mostramos a escala do EGIDS junto com os níveis sustentáveis, usando a
imagem de uma montanha para facilitar a compreensão. Os lugares íngremes da montanha correspondem aos níveis
não-sustentáveis, enquanto os lugares planos correspondem aos níveis sustentáveis.
E
S
Q
U
E
C
I
D
A
(ilustração adotada do “Guia para Planejar o Futuro da sua Língua”, SIL, 2013)
O nível sustentável mais crítico de todos na trajetória de uma língua é o nível 6a, ou seja, o nível de oralidade sustentável.
Este é o nível onde todas as faixas etárias na comunidade utilizam a língua de forma oral, pois ainda existe a
transmissão intergeracional da língua entre os pais e filhos dentro de casa. Aqui se encontra o cerne da vitalidade
linguística. A família e as suas relações internas constituem o berço da língua materna (veja Fishman 2001:467), e esse
berço pode se tornar uma fortaleza para a defesa da língua mãe. Por isso, é por meio deste nível que avaliamos todos
os outros. Acima da oralidade sustentável temos os níveis mais seguros. Abaixo desse patamar, mesmo existindo outros
níveis sustentáveis, a língua já sofreu um enfraquecimento. Este quadro mostra essa hierarquia importante.
Mais seguras
Menos
seguras
ESTRATÊGIAS DIFERENCIADAS
Quando uma comunidade aceita o desafio de desenvolver a sua língua, chega o momento do planejamento do
desenvolvimento linguístico. A princípio cada nível linguístico exige uma estratégia diferenciada.
Niveis 0-4
Os nívies 0-4 representam línguas fortes e saudáveis, línguas que não precisam de desenvolvimento maior.
Níveis 5-6a
Nos níveis 5 e 6a, nos quais existe o uso oral da língua por parte de toda a comunidade, mas o uso da língua escrita
não está bem desenvolvido (ou não existe), o próximo passo no desenvolvimento da língua envolve um foco na língua
escrita, com o alvo de chegar ao próximo nível sustentável, o nível 4. Existem opinões diferentes entre linguistas e
educadores em termos dos detalhes e até os propósitos do ensino na língua materna. Alguns afirmam que deve ser
implementado um projeto de alfabetização e educação que seja multilíngue, começando primeiro na língua materna
(L1), e passando por um período em que a língua nacional (L2) é adicionada, e finalmente, nas últimas séries, passando
para um ensino inteiramente na língua nacional. Este modelo de educação multilíngue tem sido adotado com sucesso
em muitos paises, e é a recomendação da UNESCO (2003) para comunidades indígenas. Exemplos de sucesso da
educação multilíngue em línguas destes níveis se encontram no Brasil e no mundo todo. Aqui podemos citar o caso
dos nadëb, etnia do estado de Amazonas, mostrando o grande sucesso de alfabetização multilíngue nesse povo, após
uma decisão por parte da comunidade de utilizar a sua língua materna de forma escrita (veja SIL, 2013). Também se
destaca o novo projeto de educação multilíngue nas línguas minoritárias da Índia (MacKenzie, 2008).
Outros, principalmente linguístas brasileiros, afirmam que devemos abraçar a diversidade com um modelo de
educação focado na interculturalidade. Nesta perspectiva, para evitar uma política assimilatória ou integracionista, as
comunidades indígenas precisam ou de alfabetização inteiramente na L1, ou de dois sistemas paralelas, uma na L1, e
outra na L2. Para este autor, cada nível de vitalidade e cada situação sociolinguística requer o seu próprio sistema de
ensino, um sistema que também seja de acordo com os desejos da comunidade. Para as comunidades no nível 6a (ou
até o 6b) que tenham a assimilação como seu alvo final, então a educação multilíngue citada acima pode ser a melhor,
ajudando a controlar o processo de assimilação de uma maneira ordenada e lenta, evitando assim os problemas de
choque cultural. Entre as outras comunidades de nível 6a ou 5, que tenham o desejo de desenvolver a sua língua de
forma escrita o máximo possível, criando a sua própria literatura, mas ou mesmo tempo preparando os seus filhos
para terem proficiência alta na língua nacional, seria recomendado um sistema que começasse com a L1, e depois
adicionasse a L2 depois de uns anos, e então as duas línguas continuariam fazendo parte da educação até o final (veja
uma descrição deste modelo em Franchetto, 2004). Os argumentos a favor e contra cada uma destas propostas são
muitas e são polêmicas. Vale simplesmente lembrar que nos níveis de 5 a 6a, a alfabetização na língua é o próximo
passo no desenvolvimento linguístico. O modelo MUS prefere deixar os detalhes do sistema de educação para a
escolha da comunidade.
Níveis 6b a 7
No nível 6b (e talvez 7), temos o início da perda da transmissão intergeracional, e os primeiros não-falantes da língua
entre as crianças. Este é o ponto mais crítico na mudança linguística pois é o último momento quando algo pode ser
feito para evitar a perda geralizada. Neste nível o mais apropriado é focar o fortalecimento do uso oral, e não o uso
escrito, pois é justamente o uso oral que está sendo abandonado pela geração dos jovens. O alvo, então, é planejar
estratégias para chegar no nível 6a, um nível sustentável. Este foco oral pode incluir projetos visando etno-artes, etno-
música, poesia étnica, lendas e mitos, a história do povo, todos de forma oral e não escrita. A mídia (principalmente o
áudio) pode ganhar um valor muito grande nesta fase. O uso por escrito deve esperar para um tempo mais futuro
quando todos as crianças e jovens voltarem a usar a língua de forma oral. Como exemplos de projetos deste tipo,
focando a implantação de estratêgias orais, citamos um projeto da UNESCO (2007) em parceria com o Museu Goeldi
nas línguas Pareci, Djeoromitxi e Kaapor.
Níveis 8-9
Nos níveis 8a, 8b, e 9, geralmente a única estratégia que pode ser adotada é ajudar a comunidade a resgatar ou
escolher frases ou palavras limitadas, geralmente cumprimentos e saudações, que possam servir como marcadores de
identidade. Estes projetos são mais raros e menos documentados, pois a estratêgia é nova. Podemos citar o projeto
mestre-aprendiz do linguista Leanne Hinton, da Universidade de California, Berkeley, que está sendo implementado
em várias línguas da California (Hinton e Hale 2013).
Nível 10
Antes da língua chegar no nível 10, é crítico desenvolver um trabalho de descrição linguística que pode assegurar um
registro da língua (tanto de forma escrita e de forma gravada), evitando a perda e esquecimento total. Esta tarefa,
mesmo continuando sendo uma necessidade, tem melhorado muito, já que o número de línguas brasileiras sendo
alvos de descrições linguísticas tem aumentado significativamente nos últimos anos. Em vez de citar autores
específicos aqui, basta mencionar os maiores centros de pesquisas em línguas indígenas brasileiras, ou seja, a
UNICAMP, a USP, o Museu Goeldi, e o Museu Nacional/UFRJ.
Várias implicações surgem. A primeira foi levantada por Grinevald em 1998 (citada em 2008 por Bruna Franchetto,
linguista do Museu Nacional/UFRJ), quando ela diz que projetos de educação não devem "cair na armadilha de achar
que os problemas se resolvem na escola". Isso porque as línguas minoritárias se encontram em situações radicalmente
diversas. Então a abordagem certa precisa adotar um modelo híbrido, que inclui uma educação focada no repertório
linguístico de cada pofo, etno-artes e estratégias orais, além de descrições linguísticas formais. As metodologias
diferenciadas devem partir de decisões sempre feitas de acordo com o nível, estado, e contexto de cada língua,
evitando a tendência de aplicar o mesmo molde em todos os casos.14
APLICAÇÃO PRÁTICA
Evitando os extremos é importante. Em vez de extremos, precisamos de uma perspectiva equilibrada. Por exemplo, o
monolinguismo na língua nativa (ou mesmo na língua nacional) não é o alvo de fortalecimento linguístico. Isso seria
um erro fatal, pois as sociedades envolvidas precisam de saber a língua nacional para se defenderem, para se
comunicarem, e para não serem exploradas diante da sociedade abrangente. Em vez do monolinguismo, então,
devemos dar a preferência ao bilinguismo (ou o multilinguismo), e criar um espaço dentro da nossa cultura brasileira
em que essa diversidade pode ser exercida e valorizada. O bilinguismo permite os povos manterem as suas culturas e
práticas e ao mesmo tempo aproximarem e crescerem na historia nacional do jeito e da maneira que eles desejarem.
Essa liberdade e vontade de viver em duas (ou mais) culturas é necessária e até comum em muitas partes do mundo,
ajudando a comunidade a criar uma identidade múltipla, sabendo como agir e como falar nos contextos certos.
Quando um povo cria funções separadas para cada língua no seu repertório, essas línguas podem conviver por muito
tempo, e o bilinguismo é preservado.15 Sem essa divisão de funcões, o bilinguísmo levará o povo para um
monolinguismo futuro na língua majoritária. Abraçando e separando ambas as línguas, então, ajuda o povo a transitar
entre os dois mundos com facilidade e auto-confiança, sem serem obrigados a escolherem uma ou a outra.
Outro extremo se trata dos sonhos de uma revitalização completa em comunidades onde a língua não é usada mais.
Não é o caso que todas as línguas ameaçadas podem (ou mesmo devem) ser fortalecidas ou salvas. Essa possibilidade
cabe primeiramente ao povo que é o dono dessa língua. Se os falantes não querem usar a sua língua em certo
contexto, não adianta a influência de forças externas. Segundo, essa possibilidade é limitada pelo estado real da língua
conforme os fatores sociolinguísticos e o grau de perda já sofrido. Projetos de revitalização começados tarde demais
em línguas que se encontram nos niveis mais avançados da perda linguística têm pouquíssimas chances de sucesso. O
14 A linguista Maria de Socorro Pimental da Silva (2007) nos alerta a mais um fato. Mesmo tendo uma política educacional
que se diz valorizar as línguas nas escolas indígenas (como prometeu o projeto Açai em 1999 em Rondônia), na grande parte das
escolas nas aldeias essa política não se cumpre. Da Silva afirma que “...não existe, de verdade, um ensino bilíngue pluralista e
funcional. O que há é um tratamento prestigioso, de forma alienada e acrítica da língua portuguesa. E o desprestígio das línguas
indígenas no contexto escolar”.
15 Essa divisão de funções é conhecida como “diglóssia” nos estudos socio-linguísticos (veja Fishman, 1991:1), e é
considerada como um critério fundamental para um bilinguísmo saudável e sustentável.
próprio Fishman (2001), um dos fundadores da sociolinguística, alerta que existe uma porcentagem significativa dos
projetos de revitalização em andamento no mundo todo que não têm alcançado os seus objetivos iniciais, e não têm
conseguido frear o processo da extinção. A maioria desses projetos foram começados já nas últimas fases de
vitalidade. Por isso, é mais realista pensarmos em projetos de fortalecimento graduais (ajudando as línguas com mais
chances a subirem para o próximo nível sustentável) em vez de tentar uma revitalização completa de línguas sem
possibilidades futuras.
Mas também, por outro lado, não é o caso que nada pode ser feito. Como temos visto nos dados acima, existe um
número crescente de projetos, no mundo todo, que mostram as possibilidades positivas quando comunidades de
falantes são conscientizadas e apoiadas a tomarem decisões próprias, e quando essas decisões foram feitas antes de
chegar a um momento crítico. Nestes casos, hábitos novos podem resultar em línguas que estão sendo usadas por
mais falantes, em mais ambientes, e em formas mais diversas. Esta é a possibilidade que nos empolga.
Sendo que o sucesso dos projetos de fortalecimento dependem dos fatores presentes desde o início, uma outra grande
implicação é que podemos escolher onde investir, colocando a maioria do nosso tempo, e a maioria dos nossos
recursos humanos e financeiros onde eles têm uma chance maior de sucesso, nessas situações em que a língua pode
chegar a um nível sustentável. Tambem é importante lembrar que o número de linguistas disponíveis no Brasil,
embora crescente, ainda é limitado, e as discussões com as comunidades devem levar essas limitações em conta.
Tudo isso sugere uma teoria sempre vinculada com a prática, mesmo nas metas contempladas. Se a comunidade
quiser manter a língua, é importante encorajá-la a focar seus esforços em subir apenas até o próximo nível sustentável.
Isso representa um passo só na escala do EGIDS – mas é um passo difícil. Todas as entidades envolvidas, e
especialmente as lideranças das sociedades indígenas, devem entender que qualquer tentativa de manter ou preservar
uma língua minoritária será um esforço tremendo pois a tendência nessas situações é sempre perder vitalidade, e
nunca ganhar. Precisa ser um esforço intencional, contínuo, e comunitário.
Isso implica em um processo inicial de ajudar essas comunidades a construírem uma autoconscientização sobre o
estado da sua língua, e entenderem quais são as opcões e os desafios para mantê-la. Também implica numa
perspectiva e política de agência e autonomia que lhes permite pensar e tomar decisões cabíveis sobre o seu próprio
futuro. Finalmente implica que em alguns casos a sociedade indígena, mesmo após ser conscientizada sobre a
vitalidade atual da sua língua e as opções que existem (especialmente a opção de manter o multilinguismo), optará por
um nível de vitalidade sustentável para a sua língua que é inferior ao nível atual, e pela adoção da língua nacional. Tal
decisão acontece mais com as línguas que já se encontram em um estado grave de mudança linguística. Após o
trabalho de conscientização, devemos permitir e apoiar as comunidades indígenas a realizarem a sua própria visão do nível
sustentável mais apropriado para o futuro da sua língua.
A importância de uma perspectiva participativa, dando o poder de escolha aos falantes nativos, foi levantada na
proposta do linguista Diego Barbosa Da Silva, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2009):
Portanto, dentro desse sentido de preservação, devemos ter sempre em mente que o indivíduo-falante deve ter o
direito de escolher qual língua quer utilizar, seja ela dos seus ancestrais, materna ou de maior prestígio nacional e
internacional.
Felizmente existem ferramentas linguísticas e pedagógicas para auxiliar nesse processo de diálogo e conscientização, e
existem entidades, incluindo universidades, ONGs, e missões, prontas para servirem às comunidades indígenas nesta
caminhada. Seria um grande passo para o futuro do Brasil se pudéssemos nos aproveitar dessas entidades, uní-las e
focá-las numa mesma direção, e construir parcerias de longo prazo entre elas e os grupos étnicos deste pais. Pensamos
que esse caminho só vai ser encontrado se trabalharmos juntos- as várias entidades do governo, as ONGs, e em
primeiro lugar, as comunidades indígenas em si.
CONCLUSÃO
Concluímos estas observações com um breve sumário. Nestas páginas temos indicado um caminho, uma possível
resposta para encarar a grande ameaça enfrentada pelas línguas brasileiras. Esta resposta inclui uma teoria adequada,
(que consegue entender e definir as causas, os nívies, e as consequências da perda linguística), uma estratégia
diferenciada (entendendo quais métodos se aplicam em quais contextos), uma aplicação prática, (que foca as coisas
possíveis), e uma abordagem participativa (passando a decisão final para as comunidades afetadas). Esses quatro
componentes, detalhados neste trabalho, são críticos para chegar a uma solução apropriada.
Agora cabe a nós, as entidades que trabalham a favor das etnias indígenas brasileiras, pensarmos como podemos
alinhar as nossas estratêgias com esses quatro componentes, levando em conta a realidade sociolinguística de cada
povo, e os rumos que eles sonharem.
Referências Bibliográficas
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