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Vanessa Coelho Moraes
Resumo: O processo de revitalização linguística dos Kiriri consiste em buscar métodos e estratégias
para ter falantes da língua que falavam seus antepassados. Infelizmente seus últimos falantes já
morreram e em função disso, os Kiriri buscam através de diferentes fontes palavras que possam dar
origem a novos falantes do seu próprio idioma. Uma das suas estratégias para efetivar isso é através
da tradição oral, buscando palavras que os mais velhos conhecem e que suas entidades sagradas
falam. Outro método é estudar a gramática e o catecismo do padre Mamiani, pois possuem
descrições sobre essa língua. Assim, pretendo apresentar como esta se desenvolvendo esse
processo e como esses índios estão correlacionando diferentes saberes afim de poderem falar a
“língua dos antigos”.
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Mestranda do programa de pós graduação em antropologia da Universidade Federal da
Bahia,Vanessa_c.m009@hotmail.com
determinadas etnias afirmando que possuem uma língua indígena, apesar de não
terem nenhum falante vivo.
Diante desse fato, não podemos acusar essas comunidades de mentirosos ou
loucos. Na medida em que um conceito não nos é útil para analisar a realidade é
necessário abandoná-lo e repensar nossas categorias de tal forma que nossa
reflexão sobre o outro não diminua ou desrespeite seu conhecimento.
Dizer para um índio que sua linguagem está morta ou extinta, sendo que esse
indígena afirma que sua etnia possui uma língua, isso pode ser facilmente
interpretado como desrespeito ao conhecimento tradicional daquele povo. Assim, é
necessário admitir que não só é possível a existência de uma língua indígena sem
pessoas que falam cotidianamente, como isso é uma realidade de diversas etnias
como os Tuxá, Kiriri, Tumbalalá, Tupinambá, dentre outros.
A partir do caso Kiriri é perceptível como o conceito de língua morta ofende a
realidade desses povos. Nessa etnia não existem índios que falam rotineiramente
essa língua, porém reivindicam que possuem uma, a qual era falada por seus
ancestrais. Atualmente buscam formas de promover seu processo de revitalização
linguística, que ocorre principalmente a partir da correlação que fazem sobre
diferentes saberes que surgem de variadas fontes, as quais são, as obras do Padre
Mamiani, o saber ritual e a tradição oral. Irei separar esse artigo em quatro partes,
cada uma destinada a explicar essas diferentes fontes e no final irei mostrar como
elas estão sendo articuladas nos diversos grupos políticos.
É importante saber que o povo Kiriri é uma etnia que viveu em aldeamentos
missionários ao longo do século XVII. Documentos históricos mostram que existiam
índios dessa etnia em quatro aldeamentos diferentes, que eram Aldeia de Santa
Teresa em Canabrava (atual de Ribeira do Pombal/BA), Aldeia Nossa Senhora da
Conceição em Natuba(atual Nova Sure/BA),Aldeia do Geru (atual Tomar do
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Argolo entende que línguas francas são línguas que surgem a partir do contato entre povos que possuem
diferentes línguas e em função disso surge uma língua franca que permite a comunicação entre esses grupos.
Em campo ouvi relatos dos Kiriri que tanto em sonhos como no ritual existem
momentos em que os encantados falam em uma língua que é identificada como
sendo a “língua dos antigos”. Às vezes falam palavras no meio de uma frase que
está sendo dita em português e em certos momentos falam frases inteiras na “língua
dos antigos”. Alguns índios anotam essas palavras e frases e incorporam esse
conhecimento ao léxico que estão elaborando sobre a sua língua.
É preciso refletir e relativizar sobre o que é o falante de uma língua. Em geral,
costumamos pensar que os falantes de uma língua são aqueles que sabem se
comunicar através dela nas mais diversas situações cotidianas. Os Kiriri pensam
diferente. Certa vez, em campo, um dos professores dessa etnia explicou-me que os
encantados foram índios que tinham muito conhecimento religioso e sabiam falar
sua língua, mas que infelizmente não puderam passar essa sabedoria adiante ou
esse tipo de saber acabou se perdendo ao longo dos anos que os Kiriri passaram
sendo discriminados e por isso tiveram que deixar de realizar determinadas práticas.
Hoje, esses índios que tinham esse conhecimento reaparecem no toré como
encantados trazendo diferente saberes, principalmente o linguístico. Em função
disso, apesar de existirem poucos índios que conseguem ter alguns diálogos na
língua, seus principais falantes são os encantados que aparecem através
incorporação de algumas mulheres (NASCIMENTO,1994). Até porque, os poucos
Kiriri que conseguem se comunicar, não utilizam essa linguagem cotidianamente,
tanto por serem poucos, quanto pela falta de vocabulário para se referir a tudo que
faz parte do seu cotidiano.
A chegada do toré é algo central para o processo de revitalização linguística
dessa etnia, pois é a partir desse momento de retomada territorial e luta pelo seu
reconhecimento étnico que surgem esses primeiros falantes. Assim, além da
vontade de ter uma língua indígena por uma questão identitária, eles também
buscam isso para que possam se comunicar com suas entidades sagradas.
Esse movimento de revitalização linguística começa a ganhar destaque na
década de 90, principalmente após muitas discriminações que passaram por não
falarem uma língua indígena. Alguns Kiriri relataram que muitos não indígenas
acreditavam que eles não eram índios, porque falavam apenas português. Até
mesmo, indígenas de outras etnias já haviam dito que os Kiriri não eram índios,
porque não possuíam uma língua. Além disso, um dos professores certa vez
mencionou que faltava algo na sua identidade e esse algo era a língua. Não por
coincidência o processo de revitalização linguística surge como uma extensão do
processo de retomada territorial e luta pelo reconhecimento étnico.
É válido ressaltar que algumas pessoas que estão mais a frente desse
processo linguístico e vem buscando aprender as palavras com suas entidades
sagradas relatam que as palavras que os mais velhos conhecem e as palavras que
aprendem com os encantados são as mesmas, porém são pronunciadas com
diferentes sotaques.
Essas três formas pelas quais esses índios tem buscado efetivar esse
processo de revitalização linguística está intimamente ligado ao que pensam sobre o
que é uma língua e sobre a “língua dos antigos”, essas duas noções operam entre
os Kiriri muito diferente da forma como os linguistas pensam os fenômenos relativos
à linguagem.
Entre eles, a palavra língua tem diferentes significados, basicamente
identifiquei três formas que elas são mais comumente usadas. Uma delas se
expressa como sinônimo de linguagem e comunicação, significando toda a
expressão que é usada para se comunicar, independente de com quem se
comunique. Para eles, essas noções são tão válidas para falar da linguagem dos
humanos quanto para falar da linguagem das plantas, dos animais ou ainda de
entidades sobrenaturais, levando em consideração que se comunicam com todos
esses seres de maneiras diferentes, bem como todos esses seres tem um modo
próprio de se comunicar com eles.
Além disso, a palavra língua pode ser referente a um idioma, como o
português. Nesse caso é interessante ressaltar que o discurso de alguns professores
indígenas é de que o português deve ser ensinado na norma culta, porque os
estudantes devem saber escrever uma redação de maneira que lhes possibilite
passar em um concurso ou no vestibular. Eles disseram que é importante permitir
que o aluno expresse sua fala da sua maneira, porém na hora de escrever ele
precisa fazer isso de acordo com a norma culta. Uma das professorar certa vez
relatou que um dos problemas enfrentados na escola não indígena era que os
professores diziam que havia o certo e o errado e que o certo era a norma culta,
onde claramente se fazia um ensino que valorizava apenas a forma de se expressar
que esteja em consonância com as regras gramaticais. Ela diz que “os professores
indígenas tem a consciência de que o aluno pode falar de outras formas, mas que
deve escrever na norma culta para poder se comunicar com os outros e fazer
provas” e que o aluno “deve aprender pro mundo lá fora”. Eles têm noção de que há
diferenças na forma como as pessoas falam a depender da aldeia. São comuns
discursos que dizem que as pessoas da aldeia de Mirandela falam mais devagar do
que as pessoas que moram na aldeia de Cajazeiras e Araçá.
Além disso, outro conceito de língua é o que aparece como sinônimo da sua
própria língua. O que ironicamente tem um aspecto inverso ao do português, pois
enquanto eles possuem uma noção do português que ressalta e valoriza as
diferentes formas de se expressar, a noção que têm sobre sua própria língua não
admite mudanças linguísticas, no limite a língua que eles almejam um dia voltar a
falar, deve ser exatamente igual à língua que seus antepassados falavam, sem
variação ou distinção. A ideia geral que eles têm sobre o que é a “língua dos antigos”
dá base para eles se deslegitimem mutuamente sobre o próprio ensino da língua.
Atualmente, existem 8 segmentos políticos, cada um composto por um
cacique diferente, o qual é responsável por liderar seu grupo. Os caciques são
Manoel, Lázaro, Agricio, Jailson, João, Osano, Marcelo e Roberto.
Cada cacique possui em média 2 ou 3 conselheiros, os quais são como o
porta-voz deste nas aldeias que possuem famílias que lhes seguem. Os
conselheiros fazem uma ponte entre o cacique e a comunidade, mobilizando
politicamente seu grupo. Além disso, todo cacique tem um pajé, o qual é
responsável tanto por realizar obrigações religiosas quanto por promover ações
políticas em prol da sua comunidade.
Cada grupo político está em uma etapa diferente no processo de revitalização
linguística. Dentre eles 5 destacam-se nesse processo, que são os grupos de
Manoel, Lázaro, Osano, Agricio e João. Cada um com seus próprios métodos e em
uma etapa diferente do processo. Os grupos de Lázaro, Marcelo e João têm utilizado
mais os conhecimentos que obtêm por via religiosa para conhecer a “língua dos
antigos”. Eles fazem rituais que são secretos e só quem pode participar são os
índios que possuem um conhecimento religioso significativamente acima da média.
Quando pergunto como eles aprendem a língua através dos rituais, em geral
respondem que é o segredo dos índios e eu não posso ficar sabendo como funciona.
Esses três grupos políticos fazem um toré com as músicas na língua através
do que aprenderam com suas entidades sagradas. Além disso, esses grupos
procuram os mais velhos para coletarem o material que eles têm sobre a língua,
juntando o conhecimento ritual com o que os anciões falam, para compor seu próprio
léxico.
Outra forma que eles estudam também está associado ao material do
Mamiani, no final desses torés eles fazem a oração que está no catecismo que esse
padre fez. Eles não conseguem compreender linguisticamente esse material e
desconfiam da sua legitimidade, afinal, essas obras foram escritas por um branco e
a tradução de muitas palavras que estão nele é diferente da forma como essas
palavras aparecem entre os mais velhos e no ritual. Apesar disso rezam o pai nosso
que está no catecismo, o que é legitimado pelos encantados.
Os grupos de Agricio e Manoel estudam de outra forma que não
necessariamente está ligada ao ritual. No grupo de Manoel se destaca nesse
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processo o grupo de jovens de Cajazeiras . Eles estudam a língua, utilizando mais a
obra de Mamiani. Junto com uma ONG, fizeram um material didático chamado
“idioma kipeá kiriri”, no final desse livro tem um conjunto de palavras, o qual eles
coletaram com um dos mais velhos (Zito) e traduziram de acordo como estava nas
obras de Mamiani. Além disso, tem algumas orações nesse material as quais foram
retiradas do catecismo desse padre.
O grupo de Agricio também não estuda a língua através dos rituais, os
estudiosos da língua que fazem parte desse segmento em geral usam o livro do
grupo de jovens de cajazeiras e perguntam aos índios de outros grupos quais
palavras conhecem.
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Cajazeiras é uma aldeia, onde esse cacique atua como uma importante liderança
Conclusão
Bibliografia: