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João Paulo Ignacio

O PROCESSO DE
SUBJETIVAÇÃO DO SER
AFRICANO E A FILOSOFIA
MODERNA
A subjetividade como dispositivo político na
construção do ser negro
1ª edição
2020

Cia do eBook
Copyright © 2020 João Paulo Ignacio
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Ignacio, João Paulo.


O processo de subjetivação do ser africano e a Filosofia Moderna: a subjetividade como
dispositivo político na construção do ser negro / João Paulo Ignacio. – Timburi, SP: Editora Cia
do eBook, 2020.
Versão eletrônica
EPUB, 1 MB.
ISBN xxx-xx-xxxxx-xx-x
1. Filosofia. 2. Psicologia. 3. Grupos étnicos, raciais - racismo.
1. Título.
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Sumário
Folha de rosto
Página de créditos
Introdução

O nascimento do sujeito a partir da filosofia moderna: investigações sobre a


possibilidade de uma verdade para um sujeito em geral

Sujeito universal x sujeito pluriversal: a importância de se buscar outros


modos de subjetivação
A subjetividade hegemônica ocidental e os seus impactos sócio-históricos:
da exclusão racial à putrefação do ser
Indivíduo-Sujeito e o Escravo-Coisa: a escravidão como processo de
produção da (não) subjetividade
A subjetividade Negra contemporânea: a ontologia do colonizado
atualmente

Considerações finais
Referências bibliográficas

Sobre o autor
Introdução
O presente ensaio busca abrir uma discussão sobre os dispositivos
políticos e ontológicos que perpassam os modos de subjetivação ocidentais
sobre a população negra e seus impactos subjetivos decorrentes do processo
de colonização, exploração e estratificação racial. Visamos pensar os
processos de alienação incididos sobre os povos vindos da diáspora africana
até os sujeitos negros da atualidade, apontando como o racismo antinegro
moderno fixa estruturas físicas, geográficas e subjetivas que precisam ser
rompidas no processo de descolonização. Após compreender o processo de
alienação e subjetividade produzida na colonização, procuraremos fazer
uma análise sobre a construção da subjetividade do negro no ocidente, bem
como seus impactos no cenário político social contemporâneo.
Falar sobre a construção da subjetividade é ter que se reaver com uma
antiga questão que se arvora na tradição filosófica ocidental. Foucault
(2016), por exemplo, nos aponta que esta questão se resume na relação,
aparentemente, intrínseca que existe entre ‘subjetividade e verdade’, pois ao
que parece, historicamente, a verdade e o sujeito estão em franca
aproximação. O autor ainda afirma que além de um emparelhamento
conceitual e teórico, há, entre esses termos, uma aproximação
sociohistórica, o filósofo francês aponta que a subjetividade aparece
historicamente como um suporte à verdade.
Foucault (2016) abre a discussão introduzindo três questões
importantes, as quais duas são pertinentes ao presente trabalho: a primeira
questão é se há um conhecimento verdadeiro que contemple uma ideia de
sujeito geral; a segunda questão reside na possibilidade de se formular uma
verdade sobre a subjetividade; a terceira e última pergunta, visa questionar
quais são as consequências que um certo discurso, dito verdadeiro, produz
sobre a subjetividade.
As questões primeira e terceira levantadas por Foucault são
extremamente importantes aqui, pois elas serão a bússola que guiará o
presente ensaio na busca por novos questionamentos. Atentando-se, neste
momento, para a primeira questão, será prudente empreender uma
investigação histórica sobre esse desejo de uma verdade que conjure a
existência de um sujeito geral, ou seja, uma verdade que contemple a todos.
Vale ressaltar que para Foucault (2016) a verdade é definida como um
sistema de obrigações, desta forma, buscar uma verdade geral dos sujeitos,
ao que parece, é buscar um sistema de obrigações, as quais todos os sujeitos
devem se resignar.
Antes de iniciar a investigação sobre busca pela verdade para o sujeito
em geral, ou sujeito universal, é preciso estabelecer um ponto de partida.
Marton (2011) aponta que o nascimento da subjetividade é o ponto de
partida para os tempos Modernos e que tal entendimento chega a ser
consenso entre os diversos pensadores, segundo o autor. Para o filósofo
alemão Martin Heidegger (1889-1976), o que acontece com o nascimento
da subjetividade é uma atualização ôntica, ou seja, é a essência humana
sendo mudada e elevada à outra condição de Ser, é nesse cenário que nasce
um novo conceito de Ser humano. No prólogo do ‘haja luz’ da Modernidade
está a figura enigmática de René Descartes (1596 – 1650), o ponto de
partida desta investigação.
O nascimento do sujeito a partir da filosofia
moderna: investigações sobre a possibilidade
de uma verdade para um sujeito em geral
Segundo Ditchfield (2011), a partir de seu pensamento o filósofo
francês despertou equivocadas interpretações de diversos fenômenos,
todavia, o autor aponta que apesar das controvérsias, Descartes foi muito
importante no rompimento com o saber medieval e na fundação do saber
moderno. Pollo (2012), em seu livro ‘O medo que temos do corpo’, afirma
que umas das importâncias de Descartes para o Ocidente é que ele quebrou
o princípio de identidade existente entre saber e verdade. A partir desse
fundamento o filósofo procurou se desvencilhar do conhecimento
precedente aos tempos Modernos, ao qual ele mesmo foi instruído desde a
tenra infância. O feito de Descartes foi demonstrar que o conhecimento, até
então vigente, não era isento de equívocos, para isso ele se valeu da dúvida
metódica como princípio de sua investigação.
Ao que o filósofo afirma:

Da filosofia não direi nada, a não ser que quando vi que tinha sido cultivada por
muitas eras pelos homens mais distintos, e que ainda não há uma única questão
dentro de sua esfera que não esteja ainda em disputa, e nada então que não esteja
sob dúvida (...) sobre as outras ciências, já que estas tomam emprestado seus
princípios da filosofia, julguei que nenhuma superestrutura sólida poderia ser
criada em fundações tão fracas. (DESCARTES, 2011, p. 18)

O argumento cartesiano é construído, a priori, na dúvida sobre a


possibilidade de haver um conhecimento verdadeiro, algo muito
interessante, pois o campo que lhe causa principal desconfiança sobre a
legitimidade dos saberes ditos verdadeiros da época é o campo do saber
filosófico. Instruído na filosofia escolástica desde jovem, o filósofo visa
questionar os pilares do saber que recebeu, para ele o saber filosófico era
cheio de aberturas e as dúvidas pairavam sobre muitos assuntos, deixando o
saber objetivo como algo impossível. A dúvida de Descartes sobre o saber
filosófico é estendida a outros campos do conhecimento, a outras ciências,
isso acontece porque, segundo o próprio filósofo, as outras ciências tomam
emprestadas da Filosofia os princípios que as regem, para ele é impossível
que um sistema sólido possa se construir nas fracas bases da Filosofia.
Ao fazer um profundo questionamento sobre a legitimidade do saber
pregresso e vigente do seu tempo, Descartes topa com o velho problema
filosófico existente entre ‘verdade e subjetividade’, o que o filósofo questiona
no saber escolástico é a sua efetividade, ou seja, ele perscruta os níveis
efetivos de verdade existente no saber da sua época, as incertezas
cartesianas sobre o que é confiável ou não o impelem a tomar como falso
tudo que lhe é duvidoso e como enganador aquilo que o já lhe enganou.
O primeiro obstáculo encontrado por Descartes em sua busca pela
verdade já o faz tropeçar no começo de sua investigação, o filósofo não
objeta um saber que lhe é estranho, mas um saber que lhe é próprio, que o
compõe e é fundamental na sua constituição subjetiva, seu primeiro
obstáculo é ele mesmo enquanto sujeito. Assim, quando Descartes questiona
o saber de sua época ele o faz na primeira pessoa.
Ao que o filósofo diz:

“Há já algum tempo eu me apercebi de que desde meus primeiros anos, recebera
muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em
princípio tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de
modo que me era necessário tentar seriamente, desfazer-me de todas as opiniões
a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos,
se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências.”.

O primeiro problema da investigação cartesiana remonta o problema


exposto acima entre ‘verdade’ e ‘subjetividade’, porém, vale dizer, a
investigação cartesiana é diferente da investigação foucaultiana, esta busca
uma investigação histórica do problema, enquanto aquela caminha para
uma investigação, pode-se dizer, metafísica do problema. Todavia, vale a
pena ressaltar, que ambas as investigações apontam para a relação
intrínseca entre verdade e sujeito, entretanto, a primeira parece sustentar
que a verdade se manifesta no próprio ser, enquanto a segunda aponta a
subjetividade historicamente como suporte à verdade.
Retornando à investigação primeira, segundo Blackburn (1997), a
epistemologia cartesiana se inicia pelo anseio da certeza, ou seja, da
verdade. É visando alcançar o que é verdadeiro que Descartes deixa o
‘estudo das letras’, para buscar a ciência do conhecimento de si mesmo. É
no ato introspectivo de René Descartes que são lançados os pilares da
subjetividade Moderna, pois é pensando a si mesmo e duvidando de todas
as outras coisas, que ele encontra em si o “Eu Racional”. Um “Eu” que
pensa, o ‘Eu da Razão’. A célebre frase ‘Cogito ergum sum’ de Descartes
conjura o problema que lhe aflige, é no Eu pensante que ele encontra a
verdade de que precisa, a verdade do Ser, nasce, portanto, a subjetividade
enquanto verdade.
A introdução e o desfecho da investigação cartesiana parecem
culminar no entendimento de que a verdade é mais do que uma produção
dialética, mas, além disso, é uma atualização ôntica, o que significa que a
dialética que tangência a verdade, é uma dialética do Ser, não do Saber. O
movimento do ‘Eu sou’ cartesiano é um movimento, sobretudo, em direção
à verdade que não é duvidosa ou enganosa, ou seja, uma verdade que é
evidente e única. Tal verdade é encontrada pelo filósofo no próprio Ser, pois
a certeza (verdade) de sua existência habita no ‘Eu’ pensante, capaz de
conceber ideias claras e distintas, cuja adesão é irresistível.
A presente investigação que nos conduziu até aqui, permite que se
infira que a subjetividade que nasce na Modernidade é um ato de
afirmação do homem sobre si mesmo, ou seja, se outrora, a verdade era
algo externo ao homem como no mundo das ideias de Platão, agora a
manifestação da verdade está no próprio homem, isso significa que ela
reside no próprio sujeito, nasce do Ser e se manifesta na figura de um ‘eu
racional’. Desta forma, não é um absurdo afirmar que a subjetividade se
torna uma nova categoria de verdade, ou seja, um novo sistema de
obrigações que funda o sujeito, uma verdade que é sobre si mesmo e que
molda o mundo com o qual ele se relaciona.
Mosé (2012) afirma que a subjetividade Moderna – ou sistema de
regras que constitui os sujeitos – é a mesma de hoje e que ela se sustenta na
ideia de que os sujeitos são capazes de pensar, agir, afirmar e deliberar a
partir de si mesmos. A autora afirma que, para além de elucubrações
ontológicas, os sujeitos têm o atributo/capacidade de pensar e isso lhes
confere o estatuto de Ser. Desta forma, o Ser humano agora é definido como
alguém racional, autodeterminado e livre; isso lhes dá o direito de se
autogovernar, ou seja, o nascimento da subjetividade é também uma
mudança na estrutura política, na arte de organização da polis, uma
mudança substancial na forma do governo de si e dos outros.
A subjetividade, pode-se dizer, é uma verdade que funda o sujeito, que
configura o Ser e que tem em si princípios inatos e racionais, é uma verdade
que não pode ser negada racionalmente, que faz nascer o sujeito forjado do
ardente fogo da razão e da liberdade. O sujeito e a verdade agora aparecem
circunscritos e amalgamados na consciência. Lá onde são um só, sujeito e
verdade, é que está o ‘eu sou’, portanto, o sujeito da razão é aquele que está
consciente de si, que sabe que a verdade depende de si mesmo, pois ela
habita o próprio sujeito, essa ciência – que Descartes afirma ser parte de
uma iluminação divina, para que não caia em um solipsismo frágil – só é
alcançada por aqueles que pensam. O sujeito racional será descrito como
alguém superior, é aquele que contempla o cosmos e encontra suas virtudes
pela via da razão.
Garcia-Roza (1985) parece conjurar essas afirmações em um dos mais
belos percursos sobre essa relação entre ‘verdade e subjetividade’, ele afirma
que a filosofia moderna construiu uma ‘subjetividade-representação’ cujo
interior dela mantém as finalidades do discurso platônico, qual seja, o
verdadeiro conhecimento, o conhecimento da verdade. Assim, segundo
propõe o autor, o Mundo das Ideias de Platão é permutado pela
Subjetividade, considerando isso, Descartes, por mais que tenha tentado
abandonar as ‘velhas letras’, jamais deixou de ser platônico e que pese o
Mundo das Ideias de Platão carregava um caráter próprio do ocidente, o
que não será diferente com a Subjetividade, ambos os modelos pretendem o
Universal.
Em Platão há o anseio pela verdade, cuja localização está fora do
sujeito e deve ser buscada por ele, entretanto, há um giro feito na
modernidade que não deixa escapar a relação fundamental que existe entre
verdade e sujeito. O que não escapa a Platão e a Descartes é que a verdade,
esse sistema de obrigações, sempre incide sobre o sujeito como aspiração
geral, ou seja, ambos os sistemas procuram formular modelos gerais de
verdade sobre os sujeitos.
Sujeito universal x sujeito pluriversal: a
importância de se buscar outros modos de
subjetivação
Antes de caminhar em direção aos impactos que essa formulação do
sujeito causou sobre a subjetividade e os indivíduos, será importante
aprofundar um pouco mais sobre o conceito de sujeito na filosofia moderna,
para que se possa compreender como esse sujeito – que aparentemente
possui uma verdade geral – aparece como sujeito universal. Segundo aponta
Roudinesco e Plon (1998), o termo sujeito é fluente na psicologia, na
filosofia e na lógica, podendo ser pensado como uma instância que se
relaciona sempre com um predicado ou, por preferência, um atributo, neste
caso, o sujeito da Modernidade é relacionado integralmente ao atributo do
pensamento ou da razão.
Essa interpretação semântica do sujeito que se constitui na
modernidade parece ficar clara na própria filosofia cartesiana quando o
filósofo afirma:

o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser destacado de mim.
Sou, existo: isto é certo, mas por quanto tempo? O tempo que eu pensar, pois,
talvez, se eu deixasse de pensar eu poderei deixar de existir. (DESCARTES apud
QUINET, 2000, p. 11.)

Em Descartes o sujeito é, e o é enquanto senhor dos seus próprios


pensamentos, ou seja, o sujeito é uma instância que tem como atributo
fundamental o pensamento, logo, a razão. Talvez aqui esteja revelado um
dos motivos pelos quais os seres africanos tenham sidos objetados no
reconhecimento de serem tomados como produtores de qualquer filosofia,
de qualquer conhecimento ‘racional’.
Quinet (2000) expõe que quando Descartes afirma que a substância
que constitui o sujeito é o pensamento, ele arquiteta uma estrutura de
sujeito, o sujeito do pensamento. A partir de então esse sujeito pensa e isso
assinala sua existência, tal sujeito do pensamento toma por verdade aquilo
que a razão manifesta de forma única e transparente, ou seja, em ideias
claras e distintas. O Sujeito em Descartes é o homem enquanto senhor de si,
aquele que pensa e através desse pensar delineia sua existência. Como
aponta Mancebo (2002), a Modernidade parece deflagrar, desta forma, no
Ocidente, um modo de subjetivação próprio que organiza a subjetividade a
partir do método hegemônico da individuação, nasce, portanto, o indivíduo.
Ao que a autora afirma:

“no individualismo, forma hegemônica das sociedades ocidentais, o valor da


identidade individual é dado, sobretudo, pela ideia de autonomia do sujeito em
relação ao todo. Deste modo, o indivíduo do ‘individualismo’ se apresenta como
um ser que pré-existe ao social e que se organiza para atender, incentivar,
desenvolver, exprimir etc. suas potencialidades concedidas como “naturais” ou
“intrínsecas”. (Mancebo, 2002)

A partir da Modernidade o modo de subjetivação que começa a se


tornar hegemônico é aquele que pode ser chamado de “indivíduo-sujeito”,
esse modelo de subjetivação – de individuação – é subsidiada pela filosofia.
Tem-se a partir de agora a ideia de indivíduo-sujeito, aquele que é a um só
tempo senhor de si e pensante, ou seja, ele é livre e racional, domina sobre a
natureza selvagem e participa dos interesses públicos tendo como princípios
a si próprio, sobressaindo os livres interesses individuais, onde o social e o
privado estão em uma relação permanente de poder e oposição.
Abre-se aqui uma breve discussão sobre a diferença entre o modo
hegemônico de subjetivação europeu, a individuação, e aquele que
podemos chamar de modo de subjetivação essencialmente africano, o
Ubuntu. Antes, é justo apontar que a investigação sobre o modelo de
construção do sujeito cartesiano traz um caráter mais ontológico, enquanto
a apresentação dos princípios da filosofia Ubuntu traz o caráter
proeminentemente ético. Esse salto de uma perspectiva ontológica para
uma perspectiva ética abre inúmeros horizontes, mas não é estranha ao
Ocidente, a psicanálise, nascida no início do século XX, parece entender
também que a estrutura fundamental que compõe o sujeito não é ôntica,
mas ética.
No capítulo III, intitulado ‘O sujeito da certeza’, do Seminário XI, Lacan
(2008) aponta a importância de se localizar o estatuto inconsciente como
ético e não ôntico. Porém, essa discussão caberá em outro texto, mas fato é
que, a psicanálise, um dos discursos que mais se opõem ao pensamento de
um sujeito ontologicamente absoluto, como aponta Foucault (2013), possui
fundamentos similares aos princípios da filosofia Ubuntu.
Segundo Nogueira (2011), ubuntu é uma palavra que traz como
significado ou possibilidade de tradução ‘aquilo que é pertencente a todos’,
segundo o autor, Ubuntu é um modo de experimentação da vida, uma
forma de estar no mundo a partir de um posicionamento ético, uma
experiência de existir comunitária onde o social e o ancestral é que
precedem o sujeito. Ubuntu é, pode-se dizer, um modo de subjetivação que
antagoniza ao modelo hegemônico da individuação, pois ela não requer
necessariamente o caráter imanente racional, mas busca, antes de tudo, no
outro e na comunidade, a substância do ‘ser sujeito’.
Sobre os princípios da filosofia Ubuntu, Nascimento (2016) coloca que
ela pode ser entendida como uma Filosofia do Nós, cuja responsabilização
pelo outro, a solidariedade e o compartilhamento da vida comum são
aspectos fundamentais. O autor ressalta que essa visão de Comum compôs a
cosmovisão do mundo negro-africano.
É possível, portanto, argumentar que o sujeito da concepção Ubuntu
nasce de uma interação ética, de um ato singular e profundo com outro
humano. O sujeito nasce em Ubuntu da ancestralidade, sendo assim, o
sujeito não emerge de um método racional introspectivo, antes ele se
manifesta nos encontros e desencontros da vida, a partir de experiências
corporais, espirituais, afetivas, racionais, sociais, éticas e ancestrais.
A filosofia Ubuntu pode, então, ofertar aos dias atuais uma
possibilidade de subjetivação que está além da individuação, uma cuja
premissa esteja fundamentada em pilares comunitários como: ‘eu sou
porque nós somos’. Desta forma, em vez de uma subjetividade individual a
opção que pode ser promovida e buscada é a de uma subjetividade
ancestral, comunitária, pluriversal.
Uma subjetividade ancestral e comunitária, ao que tudo indica, pode
implicar algo ainda mais profundo do que se inferiu até agora, o modo de
subjetivação que resgata os princípios da filosofia Ubuntu e os coloca como
fundamentais na produção de uma nova subjetividade parece apontar para
horizontes mais distantes. Há no modo de subjetivação essencialmente
africano uma fratura profunda no “Eu”, o que tange, principalmente, sua
centralidade. No “nós” da filosofia Ubuntu o “eu” é deslocado, empurrado
para cima ou para baixo, para a esquerda ou para a direita até que deixe de
ser o centro da constituição subjetiva e se localize nas periferias do ser. Esse
“nós” parece configurar-se também como uma modalidade de liberdade,
uma liberdade necessária, uma libertação da centralidade do “eu”, do
egoísmo crônico que estrutura as sociedades ocidentais, uma libertação que
afronta o privatismo, cada vez mais, sistemático do Estado, uma libertação
que promove um afastamento na estreita relação que o Eu mantém com os
pronomes possessivos.
Essa liberdade fez parte do processo insurgente de diversos países
africanos contra a colonização, segundo Mbembe (2019), a descolonização
se traduz como significado político da vontade ativa de comunidade. Tal vontade,
que para o autor, é uma vontade de vida, que tem como finalidade a
produção de uma obra compartilhada e Comum a todos, no passado, o
senso de uma unicidade plural era tão forte que aqueles que
experimentaram a libertação dos grilhões da colonização eram capazes de
dar suas próprias vidas em prol e pela afirmação de suas ideias e pelo legado
de deixar às gerações futuras uma herança de liberdade.
O “nós” essencial nas filosofias africanas parece introduzir uma
perspectiva ética, uma ética do passe, como diz Mbembe (2019), passar “a
outra coisa”. O passante, aquele que vive sob as diretrizes dessa nova ética,
que precisa deixar pelo caminho os adornos e marcas do colonizador. Uma
das marcas mais profundas do colono é sua identidade egóica territorial e
linguística, ou seja, o “eu” pertence a um determinado lugar, que fala certa
língua e isso parece lhe dar um senso de propriedade, isto é, o “eu” é
detentor de posses.
A ética do passante apresentada por Mbembe (2017), é uma ética que
aponta para a necessidade de desprendimento territorial e descentramento
do sujeito, para Mbembe (2017) “não pertencer a propriamente nenhum
lugar é próprio do homem, uma vez que ele é um composto de outros seres
vivos e de outras espécies, e pertence a todos os lugares em conjunto”. A
ética do passante é uma ética da solidariedade, da passagem e da reconexão,
na qual o mundo é a casa de todos e território comum, ou seja, não
pertence somente a alguns agentes. Esse afastamento permite a nomeação e
habitação dos indivíduos em qualquer território.
A subjetividade hegemônica ocidental e os
seus impactos sócio-históricos: da exclusão
racial à putrefação do ser
Agora o presente ensaio busca focar nos possíveis impactos sociais e
históricos que o modo de subjetivação hegemônico ocidental, a
individuação, acabou trazendo para os povos africanos no contexto colonial.
A narrativa que se segue tem como intuito apresentar e defender pelo
menos duas hipóteses sobre as consequências oriundas da subjetividade
ocidental sobre os seres africanos, a primeira é o aviltamento da condição
humana a partir de um processo de desumanização dos seres africanos e a
segunda hipótese é a morte em vida do sujeito desumanizado.
Os sujeitos modernos foram descritos de forma pungente, apaixonante
e inovadora, por vários filósofos da modernidade, eles buscavam apresentar
um novo conceito de Homem, porém, este conceito, além de racional,
figurava um perfil estético, pois como aponta Nogueira (2014), a razão
fundadora desses sujeitos foi unanimemente masculina e branca. Coelho e
Arreguy (2018) afirmam que as diferenças físicas existentes entre os seres
africanos e os homens brancos europeus eram fator fundamental na
inferiorização dos povos oriundos da África, fazendo com que esses sujeitos
fossem localizados à margem de seus direitos de serem reconhecidos como
humanos.

“Essa categorização do humano por ‘raças’ compõe uma contradição no cerne


do projeto racionalista, baseado no fato de que todos os seres humanos seriam
iguais em direitos, embora essas prerrogativas só servissem aos homens brancos e
europeus.” (COELHO e ARREGUY, 2018, p. 22).

É assim que no palco da sociedade Moderna figura-se uma imagem


que contrapõe o Homem Branco europeu, pois vale lembrar, a
subjetividade individualista ocidental firma-se em antagonismos. Assim,
para além dos bendizeres ao perfil do novo Ser ou do novo Homem, está o
seu contraste que compõe a cena de fundo no palco Moderno, esse homem
que contrasta com o perfil instituído como padrão, também carrega suas
características, que foram descritas pelos filósofos europeus como
reprováveis e odiosas. Sua descrição histórica é munida de agressividade,
violência e desprezo, o seu reflexo é fosco e sua imagem retrata o não-ser.
Esse homem que contrapõe a figura do Homem Branco Ocidental é o
“homem” epidermicamente negro e de origem africana.
Apontar que a produção desses ideais de sujeito são frutos de uma
filosofia moderna essencialmente racista, não é uma tarefa simples, antes, é
colocar-se nas trincheiras dos embates intelectuais para questionar algo que
é factual na história do ocidente. A filosofia moderna agiu, em última
instância, como uma psicologia da colonização, subsidiando conceitos de
sujeito e produzindo modos de subjetivação excludentes, eugênicos e
higiênicos, deliberando sobre quem é e quem não é sujeito. Sendo assim,
cabe perguntar: como os filósofos Modernos pensaram os seres humanos
oriundos do continente africano? Em que categoria, a Europa escravocrata
da modernidade, colocou as pessoas africanas “importadas” da África?
Towan (2015) parece nos apontar o caminho, ao que ele afirma:

“São os filósofos europeus que formularam o silogismo do racismo, o fundamento


ideológico do imperialismo europeu. O silogismo pode se enunciar assim:
O homem é um ser essencialmente pensante, racional.
Ora, o negro é incapaz de pensamento e raciocínio.
Ele não tem filosofia, ele tem uma mentalidade pré-lógica etc.
Portanto, o negro não é verdadeiramente um homem e pode ser, legitimamente,
domesticado, tratado como um animal.”. (p. 27)

É ocupando o lugar de selvagens e subumanos que os seres africanos


serão colocados pelos filósofos europeus como seres domesticáveis. Os
negros passam a não possuir o estatuto de sujeitos, sequer possuem a
faculdade contemplativa ou racional, portanto, não eram considerados seres
humanos, desta forma, passaram a ser pensados enquanto coisas, animais,
selvagens. Para exemplificar, vale mencionar o relato de Nogueira (2014)
sobre Voltaire (1694 – 1778) que escreveu em sua obra, ‘Tratado de metafísica’,
que ao fazer um exame sobre a capacidades dos animais; examinava um
filhote de negro de seis meses, além de um filhote de elefante e um filhote de
macaco.
A primeira coisa que o Ocidente negou ao ser africano foi sua
humanidade, criou-se então uma categoria para encaixar essas pessoas, uma
categoria de exclusão e subjugação, cria-se a categoria do ‘negro’. A partir
disto cada sujeito de origem africana perderá sua identidade, sua
nacionalidade, sua cultura, seu nome, seu sobrenome, sua história, ele ou
ela será apenas visto e chamado de ‘negro’ ou ‘negra’.
Ao que é colocado por Hegel:

“a principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a
intuição de qualquer objetividade fixa como Deus, como leis, pelas quais o
homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de
sua essência [...] O negro representa, como já dito o homem natural, selvagem e
indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo
o que chamamos de sentimento, para realmente compreendê-los. Neles, nada
evoca a ideia do caráter humano [...] a carência de valor dos homens chega a ser
inacreditável. (Hegel apud Andrade, 1999, p. 86-87).

É evidente que a Filosofia Ocidental, sobretudo Moderna, foi a


principal produtora de valores e crenças racistas disfarçadas de verdade, a
humanidade ocidental europeia cativou em seu coração e firmou em seu
imaginário cultural a necessidade de criar categoriais raciais, ofertando,
principalmente aos seres africanos, o lugar de raça de subumanos e
selvagens. O racismo ‘antinegro’ é epistêmico, político, lógico e proposicional,
é um empreendimento caro ao ocidente, algo construído e instalado em
diversas instâncias e instituições. O racismo é o ato fundador das sociedades
ocidentais, não há um lugar no ocaso onde o racismo não se faça presente,
desde ambições político-econômicas à supremacia intelectual, desde a
pureza à “suposta” superioridade de raças, o ocidente está apodrecido pelo
racismo.
Segundo Ramose (2011), a ideia de que os seres africanos deveriam ser
domesticados e tratados como animais produziu dois efeitos políticos: o
primeiro foi a espada e o segundo a cruz, ou seja, o genocídio e/ou a
conversão. Para o autor os interesses políticos imperialistas da Europa – que
eram justificados pela filosofia e pela religião messiânica – foram os
combustíveis do processo de colonização, sendo assim, os que não foram
colonizados pela doçura da palavra divina, foram exterminados pelo
cortante fio da espada. O tratamento para com os ‘negros’ foi, desta forma,
definido a partir da filosofia e da religião.
Para demonstrar a violência que fora outrora subsidiada pela filosofia é
necessário visitar Kant:

“Os negros de África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se
eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único
exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões
de pretos e que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem
sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse
algo grandioso na arte ou na ciência, ou me qualquer outra aptidão; já entre
brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa,
adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é
a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação
às capacidades mentais quanto à diferença de cores. [...] Os negros são muito
vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-
los a pauladas.”. (Kant apud Andrade, 2017, p. 302).

Essa violência de dispersar a pauladas os seres ‘mentalmente inferiores’ é


apoiada e disseminada pela Filosofia na Modernidade, podemos perceber
que a filosofia funcionou como dispositivo político na produção de
subjetividades (verdades) que excluíram e desumanizaram os seres africanos,
legitimando a destruição, a exploração e o extermínio dos povos africanos e
seus descendentes. Essa nova dialética da qual a subjetividade foi
instrumento político, fortalecendo e reforçando os interesses imperialistas do
continente Europeu, produziu falácias filosóficas como as que foram
introduzidas por Kant, Hegel e Voltaire, eles são exemplos do poder político
que a filosofia exerceu no velho continente.
Existe, porém, algo que precisa ser destacado nesse cenário, o lugar da
verdade, um lugar que remonta o dilema anteriormente discutido sobre
‘verdade e subjetividade’. Se outrora a verdade era algo que habitava um
mundo externo e transcendente ao mundo dos homens, na Modernidade,
com as muitas mudanças, a verdade é incorporada ao sujeito, isso produz
um efeito acachapante no cenário Europeu e no mundo como um todo,
pois o homem como ser dotado de razão, tornou-se também capaz de
produzir verdades. Assim, quando a filosofia moderna nega aos seres
africanos o estatuto de sujeito, o faz criando entorno dessa exclusão, uma
série de crenças e valores capazes de se configurarem e cristalizarem como
verdade, nasce, portanto, mitos e estórias que vão compor o imaginário
social e determinar a história. Foi assim que se criou a pior e mais desonrosa
falácia sobre os seres africanos, a saber, a tese de que os seres africanos não
têm filosofia.
Afirmações taxativas de que os seres africanos não têm filosofias, que
suas práticas culturais são vaidades místicas e que eles são seres desprovidos
de razão não pode escapar à análise que é feita aqui sobre do racismo
antinegro financiado pela filosofia moderna. Nogueira (2014) aponta que o
racismo antinegro traz muitas visões e interpretações sobre sua origem, há
aqueles que não veem esse tipo de racismo como algo específico dos tempos
modernos, antes, desde tempos antigos esse sistema já era empregado nas
civilizações ocidentais, porém, algo é destacado pelo autor. Segundo ele, na
Modernidade, há um agravamento do racismo antinegro, isso acontece
porque esse novo patamar é banhado por uma perspectiva europeia bélica
de civilizar os ‘incivilizados’.
A violência racial que tomou forma no processo civilizatório europeu
desencadeou-se a partir de um processo geopolítico que buscava o
estabelecimento hegemônico, não de um saber, mas de uma forma de ser,
de um sujeito, o sujeito Universal. Assim, a Europa dispensou ao Novo
Mundo e à África uma política que, segundo Mbembe (2019), buscava se
estabelecer há um só tempo como rito e como fato, ou seja, como regra e
verdade; uma política da língua, do ato, da ética, do saber, das estórias, da
cultura, do genocídio e do acidente, essa política é o colonialismo.
Mbembe (2019) aponta que o processo de colonização se configurou
como uma pirâmide de certezas, como um feixe de complexidades, para
além de um dispositivo e uma tecnologia, esse processo foi um sistema
político com forte poder de proliferação e incrível capacidade de mudança
adaptativa, ou seja, sua força de expansão foi gritante e a maneira com que
se adequou aos diferentes lugares, com diferentes climas, povos e ambientes
é notável. Isso significa, portanto, que o colonialismo, sistema político,
inflou-se subserviente ao ideal civilizatório europeu que pode ser traduzido
como um desejo de hegemonia geopolítica que tinha como método
fundamental a violência racial, que por sua vez tem como crença coronária
a instituição de um sujeito universal.
A Europa Moderna não negou aos seres africanos apenas a filosofia. A
filosofia existe desde a antiguidade fruto de um sujeito, o sujeito racional e
do pensamento, novamente volta-se a destacar; a verdade, o conhecimento,
a razão como atributos do sujeito, logo, os seres africanos não são sujeitos
sem filosofia, na verdade eles não são sujeitos. O racismo epistêmico é
reflexo do genocídio subjetivo que a África e a América sofreram durante e
após o processo colonial, a colonização foi um processo violento que
começou na ‘psiqué’ (alma), metamorfoseando o interior e doravante tomou
o corpo, a terra, o ar, a natureza, o outro, o todo. Nas palavras de Mbembe
(2019, p. 18) a colonização “habituada a vencer sem ter razão, (...) [exigiu]
dos colonizados não apenas que eles mudassem suas razões de viver, mas
que mudassem de razão – seres em falha perpétua”. Foi assim que os
sujeitos africanos sofreram, a partir do subsídio das produções filosóficas,
uma grande e grave violência psíquica.
Indivíduo-Sujeito e o Escravo-Coisa: a
escravidão como processo de produção da
(não) subjetividade
A diáspora vivida pelos seres humanos oriundos da África no período
colonial deve ser compreendida como uma experiência contínua e profunda
de mortificação. O processo de colonização foi marcado, pode-se dizer, pela
produção em massa da categoria ontológica de ‘Escravo-Coisa’. Se as colônias
do velho continente produziam matérias-primas, a Europa, por sua vez,
tinha como maior produção, a transformação de pessoas com identidades e
vivências próprias, em ‘coisas’ producentes. Sendo assim, é possível inferir
que uma das marcas centrais do processo escravocrata europeu é a
‘bestialização’ dos seres africanos, bem como a coisificação dos seus corpos,
nessa perspectiva o corpo se torna ‘coisa’ e ser se torna ‘escravo’.
Como nos aponta Nogueira (2014):

(...) vale a pena registrar que uma especificidade do racismo antinegro é a


desumanização radical que se transforma em zoomorfização sistemática. Os
povos negros foram interpretados pelos europeus como criaturas sem alma,
animalizados, tomados como coisas. (...). (p. 25)

Quando trazidos para o Ocidente, o que marcou o processo de


transformação dos seres africanos não foi só a mudança geográfica, mas a
instituição do não-ser (humano) e a imposição de uma categoria ôntica
negativa, ‘não-subjetiva’ ou ‘des-subjetiva’, uma condição de ‘não-sujeitos’. Uma
sentença psíquica sobre cada pessoa escravizada. Esse processo de produção
do escravo é a verdadeira hecatombe africana, pois desde a saída da África
até a comercialização no Ocidente o que vai sendo produzido em cada
pessoa é a condição de escravo. Desta forma, o processo de transformação
do “indivíduo-sujeito” em “escravo-coisa” pode ser considerado um modo de
subjetivação ocidental construído unicamente para escravizar povos
africanos, esse sistema de subjetivação Ocidental para o escravo, pode ser
chamado de ‘necrosubjetividade’, um sistema que faz morrer o sujeito e nascer
a coisa.
Há uma dedução possível para explicar essa transição de categoria do
‘indivíduo-sujeito’ para o ‘escravo-coisa’. Podemos inferir que o processo de
subjetivação colonial do ocidente, imputado sobre as pessoas africanas,
culminou em um efeito reativo que se caracteriza pela morte essencial dos
atributos ontológicos e singulares que cada um trouxe da África. Isso
acabou deflagrando nesses sujeitos um processo de apagamento da
ancestralidade, um desligamento profundo das suas histórias, uma renúncia
imposta as suas culturas e uma horrificação das suas crenças, resultando na
retirada da sua condição de ser humano.
Doravante, os efeitos desse processo foram devastadores, pois se os
modos de subjetivação ocidental produziam uma subjetividade autônoma e
autodeterminada no Homem Ocidental Branco manifestando-lhe um “Eu
racional”, em contraste a isso, o modo de subjetivação colonial produziu
nos seres africanos uma ‘necrosubjetividade’, uma subjetividade necrosada, cuja
reação contrária manifesta um ‘Eu colonizado’. O Eu colonizado é uma forma
de alienação absoluta que se constitui no apagamento da ancestralidade e
na construção de uma categoria ontológica específica, que é a do ‘escravo-
coisa’, ou do ‘negro-escravo’, preparando esses seres unicamente para produção
e para morte. Esse é o prefácio da colonização, efetuar uma docilização dos
seres africanos, talhando como marca psíquica a alienação e a
subserviência, algo que é transmitido até hoje de maneira sorrateira e sutil
nos modos de subjetivação contemporânea.
A subjetividade Negra contemporânea: a
ontologia do colonizado atualmente
Fanon (2008) se debruça sobre as marcas psicológicas que constituem o
jogo psíquico da atualidade. Segundo ele, a alienação do negro está
implicada na dupla falta de consciência das realidades econômicas e sociais
que envolve as questões raciais. Os processos de estratificação econômica e
social são, sobretudo, processos marcados pelo fator racial e pela história
que perfaz toda institucionalização do racismo antinegro. Desta forma, para
Fanon, como aponta Gordon (2008), o racismo e o sistema colonial podem
ser entendidos como modos socialmente produzidos de ver e viver no
mundo, ou seja, são modos de subjetivação que permitem construir os
sujeitos de maneira deliberada, como aponta o comentador fanoniano, os
negros são produzidos como negros.
O próprio Fanon (2005, p. 52) expõe sobre o assunto e afirma que: “foi
o colono que fez e continua a fazer o colonizado”, desta forma, as
afirmações até aqui feitas parecem confluir. O sistema colonial é um sistema
político de produção e objetificação dos seres colonizados, em especial, os
povos africanos. Sobretudo, há no processo colonial uma produção
sistemática de categorias ontológicas e imagéticas que se constituem
dubiamente, sempre uma em oposição a outra, entidades ficcionais que são
refletidas de forma dialética. De um lado há o Indivíduo-Sujeito, em sua
cidade fortificada de luzes incandescentes e arranha-céus luminosos, há
ainda os carros de luxo, abundância na comida e opulência nos trajes,
contrapartida, há a cidade do Objeto-Corpo (categoria atualizada e
contemporânea do Escravo-Coisa), furtado de dignidade, sem comida e
maltrapilho, tem como companheira, nas noites frias e violentas, a miséria.
Esse é o mundo do colono e do colonizado, eles se atualizam, mas suas
estruturas se fixam sempre nos antagonismos, na qualidade de vida, nos
interesses políticos, no reconhecimento ou não reconhecimento de serem
considerados sujeitos de direitos.
Essas estruturas socioeconômicas perversas produzem, segundo Fanon
(2008), um duplo processo que se inicia na esfera econômica e desemboca
na interiorização de uma inferioridade epidérmica. Essa inferiorização
efetiva uma alienação profunda do ‘negro’, fazendo-o desejar, ver no espelho
um reflexo branco, desta forma fica claro para Fanon que, em algum grau,
subjetivo e inconsciente o ‘negro’ quer ser branco. Esse fenômeno se dá,
primeiro porque as estruturas e instituições coloniais ainda parecem estar
vigentes, em boa parte, das antigas colônias europeias; segundo, é que por
mais que a Europa escravocrata e imperialista tenha propagado a tese
racista de que os seres africanos não são seres humanos, ela ofertou ao
colonizado um modo de subjetivação que encontra na própria branquitude
o processo de redenção da raça.
No Brasil, especialmente, a ideia de um embranquecimento da raça
como método de salvação racial foi estabelecida por muito tempo como
saída dessa condição bestial para uma condição humana, assim, o ‘negro’,
muitas das vezes, vê no embranquecimento da pele, dos costumes e da raça
o caminho para a sua humanização.
Apontar que o negro, em sua condição de alienação, só se reconhece
enquanto humano, quando adota uma postura, um modo de viver branco,
ou melhor, incorpora uma subjetividade branca, que é chancelada e
legitimada pela branquitude, é apresentar os motivos que fazem da
subjetividade ocidental uma prisão interna sobre cada negro hoje. É como
se a humanidade dos seres africanos e seus descendentes só pudesse ser
restituída se este renunciar a sua essência, de sua real subjetividade que é a
ancestralidade.
É na tentativa de ser aceito pela comunidade branca que o processo de
colonização se atualiza e reencarna as pessoas de cor no cenário
contemporâneo. Assim, o ‘negro’ muda sua forma de ser radicalmente. Muda
sua forma de falar, sua forma de amar, sua forma de pensar e sentir. A única
forma vigente é a forma branca, e tudo que lhe for próprio da “negritude” é
rejeitado e denegado subjetivamente, então as peles negras são tomadas por
máscaras brancas e a subjetividade do colono vai se tornando a verdade do
colonizado, é por ela que ele se define, é por ela que ele se entende.
É necessária uma tomada de consciência desses processos perversos de
subjetivação por parte de todos, pois como aponta Nascimento (2016), os
negros e mulatos são invadidos até suas condições mais íntimas na
experiência de ser. O autor expõe que os negros são “educados” a aceitarem
como comum e até concordarem com as formas manifestas e latentes de
desigualdades raciais, facilmente traduzidas em desigualdades sociais.
Tornar os sujeitos epidermicamente negros, conscientes de suas condições
raciais, torná-los conscientes da luta racial e da luta de sobrevivência
travada histórica e cotidianamente é um passo necessário para um processo
de libertação subjetiva do povo cuja ancestralidade vem da África.
O racismo, segundo Ramose (2011), tem estatuto ontológico, ou seja, é
de ordem subjetiva, logo, os negros experimentam de modo geral uma
subjetividade que, na maioria das vezes, senão todas as vezes, não são suas,
que não os identifica, por isso são invadidos em suas condições mais íntimas
e afastados de suas identidades ancestrais. Nessa condição o que há é o
‘negro’, experimentando em vida uma paradoxal morte subjetiva que reforça
o seu ‘Eu colonizado’.
Esse modo de subjetivação mortificador, essa ‘necrosubjetividade’,
constitui-se como o estado da alma que se encontra num luto permanente.
O luto da morte de si mesmo, da perda de sua dignidade, da condição de
miséria que lhe é imposta, da precarização da vida que lhe é realidade
insistente, da fome que consome suas forças, do descaso do Estado, do peso
dos estigmas sociais que lhes são aferidos permanentemente.
A subjetividade necrosada é uma subjetividade mortificada, destinada
para corpos descartáveis e desumanizados, são seres em condições
miseráveis, destituídos de voz política, social e econômica. É uma existência
que não vislumbra meios de libertação coletiva, que vive fechada em um
individualismo natimorto, a necrosubjetividade é uma forma de não-ser cuja
pele expressa a origem africana, mas a alma manifesta uma subserviência
ao que é branco, o que se configura numa perda contínua do ser africano.
O estado absoluto de perda da identidade africana é denunciado por
Nascimento (2008), em seu livro “O genocídio do Negro brasileiro”,
quando ele afirma que no país há uma parte da população que está
condicionada pela preocupação de ser branca. O autor, ao analisar dados
de uma pesquisa, aponta para o fato de que a pesquisa dava aos seus
recenseados a faculdade de autodeclaração da sua própria cor ou raça e isso
fez com que muitos negros e filhos de pais interraciais se autodeclarassem
brancos. O fato de muitos negros terem a necessidade de se declararem
brancos apresenta como a subjetividade desses indivíduos é tomada de
inanição do Ocidente.
A ‘necrosubjetividade’ nos aponta que os modos de subjetivação ocidental
são, em última análise, um grande sarcófago negro, pois manifesta nos
corpos epidermicamente negros, um vazio de Ser e uma falta de si mesmo,
de sua ancestralidade, de sua história. Esse estado disforme do não-ser que foi
e é imputado sobre os seres cuja origem vem do continente africano tem
capacidade de distorcer a identidade dos sujeitos, alterando suas sensações e
percepções, sua capacidade de pensamento autônomo e seus desejos, bem
como seus sonhos e suas vidas. Nesse estágio o ‘negro’ não se reconhece em
sua própria cor, resta-lhe apenas um corpo imerso numa existência tomada
de valores e princípios brancos e ocidentais.
Considerações finais
O presente artigo buscou apontar os modos de subjetivação incididos
sobre os seres africanos, bem como a influência da filosofia moderna nesse
processo. Para pensar esses aspectos foi feito um percurso histórico e teórico
que se iniciou no ‘Eu pensante’, fundado pelo cogito cartesiano até o os dias
atuais, apresentando uma visão racial de um dos maiores eventos modernos,
a saber, a subjetividade. Analisei como o ‘sujeito da verdade’ inaugurado
pelos modernos estabelece, em minha visão, uma só categoria para
‘subjetividade e verdade’, fazendo com que ‘pensamento-verdade’ e ‘ser-
existência’ se tornem uma mesma coisa, o sujeito racional, que ao observei,
por um viés racial, como essa tese do sujeito racional produziu efeitos raciais
profundos no cenário moderno e contemporâneo.
Apontei ainda que a subjetividade, enquanto uma verdade que funda o
sujeito, nasce na Modernidade a partir da lógica que condiciona o sujeito a
sua capacidade de pensar racionalmente. Doravante as filosofias modernas
nutridas por crenças raciais e, outrora, falaciosas passaram a localizar os
seres africanos fora da categoria de ‘sujeito’, afirmando que eles eram
incapazes de razão. Essas filosofias, inclusive, influenciaram fortemente no
projeto civilizatório e geopolítico europeu, desta forma, foi possível perceber
que a filosofia produzida durante o período da modernidade, como aponta
Nogueira (2014), participou decisivamente no reconhecimento daqueles que
eram e não eram sujeitos, portanto, possuidor ou não de humanidade e
direitos.
Os modos de subjetivação moderna, por sua vez, funcionaram como
dispositivo fundamental no sistema político da colonização, configurando
subjetividades que foram experimentadas como morte em vida pelos seres
africanos e reforçou uma condição de não-sujeitos produzindo uma coisificação
desses indivíduos. É interessante destacar que a subjetividade não é algo
negativo para os seres africanos, mas os modos de subjetivação oriundos de
uma subjetividade universal, sim, em especial o modo de subjetivação
individualizante.
A ideia deste ensaio é que a pluralidade do sujeito seja incluída no
processo de subjetivação dos indivíduos, uma proposta que pense
subjetividades e sujeitos pluriversais. Assim como a filosofia europeia
contribuiu na produção dos modos de subjetivação europeus, propõe-se que
as filosofias e saberes africanos reconstruam, recordem e construam novos
horizontes subjetivos para os seres africanos, mas é necessário,
urgentemente, que se tenha um processo de desconstrução do ‘Eu
colonizado’.
Discutiu-se também, no presente artigo, o conceito de ‘necrosubjetividade’,
uma subversão do modo de subjetivação ocidental imputado sobre os seres
africanos que consiste em uma produção do não-ser, em uma mortificação
do sujeito. No período escravagista esse modo de subjetivação produzia uma
categoria ontológica chamada de ‘Escravo-coisa’ que aparece definida como
uma metamorfose do corpo em coisa e do ser em escravo, essa categoria é
produzida para o trabalho e para a morte, contrapartida, nos dias atuais
essa ‘necrosubjetividade’ atualiza-se na categoria ontológica que designei como
‘Objeto-corpo’ que aparece sob a condição de miséria e morte, que é
apresentada por Mbembe (2019) como uma classe de supérfluos, cujo
destino é incerto, nem o Estado e nem o mercado sabem o que fazer com
elas, pois já não podem mais serem submetidas ao trabalho forçado, não
podem ser vendidas como escravas e já não podem mais ser amontoadas em
instituições penitenciárias. Essa gente, como afirma Mbembe (2019),
“constitui carne humana vergada sob a lei do desperdício, da violência e da
doença, entregues ao evangelismo norte-americano, as cruzadas do Islã e a
todo tipo de fenômenos de feitiçaria e de iluminação”.
Por fim, parece ser urgente pensar novas formas de se organizar
subjetivamente, para que nasçam sujeitos que trazem em seus sangues e em
suas almas a ancestralidade africana e que a subjetividade colonial dê lugar
a uma subjetividade ancestral, uma subjetividade que resgata uma unidade
coletiva, mas que ao mesmo tempo é plural, como a própria África. É
tempo de produzirmos novas subjetividades, que os modelos europeus não
sejam mais os únicos e nem hegemônicos.
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Sobre o autor
João Paulo: João Paulo Ignacio é Bacharel em Psicologia pela
Universidade Veiga de Almeida – UVA; é Psicanalista Lacaniano e
graduando em Filosofia pela UFRJ; Membro do Laboratório Ousia da
UFRJ e Membro pesquisador e fundador do Laboratório Geru Maa de
Africologia e Estudo Ameríndios – UFRJ.

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