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A TRANSFORMAÇÃO DO

SILÊNCIO EM LINGUAGEM E
AÇÃO
Audre Lorde

Publicado por ​Angelica Rente​ em​ ​31 de janeiro de 2017

Audre Lorde, poeta e ativista feminista estadunidense, discute, nesta palestra,

a importância de rompermos o silêncio que oprime e transformá-lo em ação

que liberta e transforma.


Eu passei a acreditar cada vez mais que o que é mais importante para mim

deve ser falado, verbalizado e compartilhado, mesmo com o risco de ser

ferida ou mal-compreendida. Que falar me beneficia, para além de qualquer

outro efeito. Estou aqui, como uma poeta negra lésbica, e o significado de

tudo isto reside no fato de que eu ainda estou viva, e poderia não estar. Há

menos de dois meses eu ouvi de dois médicos, uma mulher e um homem,

que eu teria que passar por uma cirurgia de mama e que havia 60 a 80 por

cento de chances de que o tumor fosse maligno. Entre esta notícia e a

cirurgia, houve um período de três semanas de agonia, resultante da

involuntária reorganização de minha vida inteira. A cirurgia foi bem sucedida,

e o tumor era benigno.

Mas durante estas três semanas eu fui forçada a olhar para mim mesma e

para minha vida com uma clareza áspera e urgente, que me deixou abalada,

mas muito mais forte. Esta é uma situação enfrentada por muitas mulheres,

por algumas de você aqui hoje. Algo do que experienciei durante este tempo

me ajudou a elucidar muito do que eu sinto em relação à transformação do

silêncio em linguagem e ação.

Ao me tornar forçada e essencialmente consciente de minha mortalidade e do

que eu queria e desejava para minha vida, ainda que ela fosse curta, as

prioridades e omissões se tornaram fortemente realçadas por uma luz

impiedosa, e o que mais me causou arrependimento foram meus silêncios.

Do que eu tinha medo? Questionar ou falar sobre o que eu acreditava poderia

significar dor ou morte. Mas todas nós sofremos de tantas formas tão
diferentes, todo o tempo, e a dor ou se transforma, ou acaba. A morte, por

outro lado, é o silêncio final. E ela poderia chegar rapidamente, agora, sem

considerar se eu já havia dito o que era necessário ser dito ou se eu apenas

estava me traindo em pequenos silêncios, enquanto planejava falar algum

dia, ou esperava pelas palavras de outra pessoa. E eu comecei a reconhecer

uma fonte de poder dentro de mim que vem do conhecimento de que, mesmo

que seja mais desejável não ter medo, aprender a colocar o medo em

perspectiva me dava uma grande força.

Eu ia morrer, se não agora, mais tarde, quer eu tivesse falado, quer não.

Meus silêncios não haviam me protegido. Seu silêncio não a protegerá. Ao

contrário, a cada palavra real dita, a cada tentativa que eu fiz de dizer estas

verdades pelas quais eu ainda estou procurando, eu entrei em contato com

outras mulheres e examinamos juntas as palavras que serviriam a um mundo

no qual nós todas acreditávamos, conciliando nossas diferenças. E foram a

preocupação e o carinho de todas estas mulheres que me deram forças e me

permitiram examinar as questões essenciais da minha vida.

As mulheres que me apoiaram durante aquele período foram negras e

brancas, velhas e jovens, lésbicas, bissexuais e heterossexuais, e todas

partilhávamos de uma guerra contra as tiranias do silêncio. Todas elas me

ofereceram força e consideração, sem as quais eu não poderia ter

sobrevivido intacta. Destas semanas de medo agudo nasceu o conhecimento

– a partir desta guerra que todas estamos lutando contra as forças da morte,
sutis ou não, conscientes ou não – de que eu não sou apenas uma baixa, sou

também uma guerreira.

Quais são as palavras que você ainda não possui? O que você precisa dizer?

Quais são as tiranias que você engole diariamente e tenta tornar suas, até

que você adoeça e morra delas, ainda em silêncio? Talvez, para algumas de

vocês aqui hoje, eu seja o rosto de um de seus medos. Porque eu sou uma

mulher, porque sou Negra, porque sou lésbica, porque sou eu mesma – uma

poeta guerreira Negra fazendo seu trabalho – e estou aqui perguntando a

você: você está fazendo o seu?

É claro que eu tenho medo, porque a transformação do silêncio em

linguagem e ação é um ato de auto-revelação, o que sempre parece

carregado de perigo. Mas, minha filha, quando eu contei a ela sobre nosso

tema e minha dificuldade com ele, me disse: “Diga a elas sobre como você

nunca é uma pessoa realmente inteira se permanecer em silêncio, porque há

sempre um pequeno pedaço em você que quer ser dito e, se você continuar

ignorando-o, ele fica cada vez mais louco, cada vez mais quente, e se você

não o falar, um dia ele irá simplesmente se levantar e dar um soco na sua

boca pelo lado de dentro”.

A respeito do silêncio, cada uma de nós é capaz de desenhar o rosto de seu

próprio medo – medo do desprezo, da censura, dos julgamentos, do

reconhecimento, dos desafios, da aniquilação. Mas a maioria de nós, eu

penso, teme a visibilidade sem a qual não podemos realmente viver. Neste
país, no qual as diferenças raciais criam uma constante e não-dita distorção

de visão, as mulheres Negras, de um lado, sempre têm sido muito visíveis e,

por outro lado, têm sido invisibilizadas através da despersonalização do

racismo. Mesmo dentro do movimento feminista, nós tivemos que lutar, e

ainda temos, por esta visibilidade que também nos deixa mais vulneráveis,

nossa Negritude. Porque, para sobreviver na boca deste dragão que

chamamos américa, temos que aprender esta lição fundamental e vital: que

nunca foi esperado que sobrevivêssemos. Não como seres humanos. E isto

ainda é verdade para a maioria de você aqui, Negras ou não. E que a

visibilidade que nos torna mais vulneráveis é a que também é fonte de nossa

grande força. Porque a máquina irá tentar nos pulverizar de qualquer modo,

quer falemos, quer não. Podemos sentar nos nossos cantos, mudas para

sempre, enquanto nossas irmãs e nós mesmas somos devastadas, enquanto

nossas crianças são distorcidas e destruídas, enquanto nossa terra é

envenenada; podemos sentar em nossos cantos seguros mudas como uma

porta, e nem assim sentiremos menos medo.

Em minha casa, neste ano, estamos celebrando a festa do Kwanza, o festival

afro-americano da colheita, que começa no dia seguinte ao Natal e dura sete

dias. Há sete princípios do Kwanza, um para cada dia. O primeiro princípio é

Umoja, que significa “unidade”, a decisão de empenhar-se em manter a

unidade dentro de si e na comunidade. O princípio para ontem, o segundo

dia, era Kujichagulia – auto-determinação – a decisão de definir a nós

mesmas, nos nomearmos, e falarmos por nós, ao invés de sermos definidas e

faladas por outrem. Hoje é o terceiro dia do Kwanza, e o princípio para hoje é
Ujima – trabalho e responsabilidade coletivos – a decisão de construir e

manter a nós mesmas e nossas comunidades unidas e de reconhecer e

resolver nossos problemas juntas.

Cada uma de nós está aqui agora porque, de uma forma ou de outra, nós

partilhamos de um compromisso com a linguagem e com o poder dela, e com

a retomada desta linguagem que tem sido usada para trabalhar contra nós.

Na transformação do silêncio em linguagem e ação, é vitalmente necessário

que cada uma de nós estabeleça ou examine sua função nesta

transformação, e que reconheça seu papel como sendo vital nela.

Para aquelas de nós que escrevem, é necessário examinar não só a verdade

do que falamos, mas a verdade da linguagem através da qual a dizemos.

Para as outras, é compartilhar e espalhar estas palavras que são

significativas para nós. Mas, primariamente, para todas nós, é necessário

ensinar estas verdades através da vivência e da fala delas, verdades nas

quais acreditamos e as quais sabemos para além do entendimento. Porque

somente desta forma poderemos sobreviver, ao tomarmos parte de um

processo de vida que é criativo e contínuo, que é crescimento.

E isto nunca acontece sem medo – da visibilidade, da dura luz do escrutínio

e, talvez, do julgamento, da dor, da morte. Mas nós já convivemos com todos

eles, em silêncio, com exceção da morte. E eu lembro a mim mesma, todo o

tempo agora, que se eu tivesse nascido muda ou tivesse feito um voto de

silêncio durante minha vida toda para garantir minha segurança, ainda assim
eu teria sofrido, e ainda assim eu morreria. Isto é muito bom para estabelecer

uma perspectiva.

E, onde quer que as palavras das mulheres estejam gritando para serem

ouvidas, nós precisamos, cada uma de nós, reconhecer nossa

responsabilidade em buscar por estas palavras, lê-las e partilhá-las, e

examiná-las em sua pertinência em relação às nossas vidas. Que não nos

escondamos atrás das zombarias da separação que nos foram impostas e as

quais nós, com frequência, aceitamos como sendo nossas. Por exemplo, “Eu

não posso ensinar mulheres Negras a escrever – a experiência delas é tão

diferente da minha!”. No entanto, quantos anos você passou ensinando

Platão e Shakespeare e Proust? Ou outra: “Ela é uma mulher branca, o que

ela teria a me dizer?” Ou, “Ela é uma lésbica, o que meu marido diria, ou meu

diretor?”. Ou ainda, “Essa mulher escreve sobre seus filhos e eu não tenho

filhos”. E todos estes outros meios infinitos pelos quais nós nos furtamos de

nós mesmas e umas das outras.

Podemos aprender a trabalhar e a falar quando estamos com medo, da

mesma forma que aprendemos a trabalhar e falar quando estamos cansadas.

Fomos socializadas para respeitar o medo mais do que nossas próprias

necessidades de expressão através da linguagem e de definição, e,

enquanto esperamos em silêncio pelo luxo final do destemor, o peso deste

silêncio nos sufocará.


O fato de que estamos aqui e que eu estou dizendo estas palavras é uma

tentativa de quebrar este silêncio e conciliar algumas destas diferenças entre

nós, porque não é a diferença que nos imobiliza, mas o silêncio. E há muitos

silêncios a serem rompidos.

(palestra proferida no painel ​“Lesbianismo e Literatura” da Modern Language

Association, em Chicago, Illinois - EUA, dezembro de 1977)

https://transformativa.wordpress.com/2017/01/31/a-transformacao-do-silencio-

em-linguagem-e-acao-audre-lorde/

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