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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

Diego Moraes Guimarães

A VONTADE DE SABER EM FOUCAULT:


UMA ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DA
SEXUALIDADE

Salvador
2012

DIEGO MORAES GUIMARÃES

A VONTADE DE SABER EM FOUCAULT:


UMA ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DA
SEXUALIDADE

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Filosofia


da Universidade Federal da Bahia, como quesito parcial para
a obtenção do grau de Bacharel em Filosofia.

Orientador: Prof. Me. Ricardo Calheiros Pereira

Salvador
2012

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Agradecimentos

Em meio a tantos acontecimentos e problemáticas que precisamos lidar no


desabrochar da vida, se faz inevitável, a necessidade de um momento ou espaço para
agradecer a quem espontaneamente esteve ao meu lado, não só na construção deste
trabalho, mas, sobretudo, na construção da minha vida. Portanto, minha gratidão fica
aos meus poucos amigos, por me mostrarem que a vida não se constrói sozinho e aos
meus distintos professores, por me ensinarem os diversos caminhos que podem ser
trilhados, na busca pela fugidia liberdade.

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Para a minha mãe, Norma Lúcia Ramos Moraes

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Resumo

O presente trabalho apresenta como conteúdo a temática da sexualidade a partir das


contribuições de Michel Foucault. Trata-se de uma pesquisa em que a sexualidade é
tomada enquanto discurso científico, ou seja, o que se pretende abordar é o que
historicamente se enuncia acerca da sexualidade humana, tornando-a assim, um saber.
Ora, tendo em vista analisar a história do discurso sobre o sexo a partir das relações de
poder, é que lançaremos mão, particularmente, do pensamento de Foucault como
alicerce fundamental para nossa investigação a respeito da sexualidade, enquanto
construção discursiva. E para essa empreitada, nossas reflexões serão mediadas a partir
do primeiro volume da obra História da Sexualidade; A Vontade de Saber (1976). Com
este livro, Foucault inicia seus primeiros escritos sobre o conceito de sexualidade no
Ocidente, pontuando e enfatizando o século XIX, como uma época marcada, pelo
fenômeno da intensa produção de teorias sobre sexualidade, contrapondo-se, desse
modo, à hipótese repressiva.

Palavras-chave: história da sexualidade, incitação ao discurso, poder-saber.

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Índice

INTRODUÇÃO...................................................................................................7

1 – Sobre a vontade de saber........................................................................9

1.1 O duplo aspecto do projeto foucaultiano............................................9


1.2 Uma análise sobre o discurso da sexualidade....................................16

2 – Sexualidade: uma construção discursiva..........................................19

2.1 Repressão sexual: um mecanismo aparente.......................................19


2.2 A ciência do sexo e a propaganda dos discursos.................................22

3 – Por uma nova perspectiva do poder.....................................................27

3.1 O poder-saber e a sexualidade..............................................................27

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................35

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................37

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INTRODUÇÃO

Talvez pensar, examinar, avaliar ou formular ideias sobre a sexualidade não


sejam a tarefa ou a reflexão mais habitual da Filosofia. Entretanto, não é por conta
disso, que haveremos de sabotar o nosso intento aqui, de procurar na história da
filosofia ocidental, centelhas que nos remetam ao tema da sexualidade. Ora, tendo em
vista tal jornada é que lançaremos mão do pensamento de Michel Foucault, do seu olhar
filosófico e, sobretudo crítico, sobre o discurso da sexualidade humana. Ou seja,
tentaremos compreender a partir da análise do primeiro volume da História da
Sexualidade, A Vontade de Saber, o que se inscreve, o que se relata, o que de diz, e
também, o que nos é velado e proibido, quando o assunto é o sexo em seu discurso e
enunciado.
Segundo Foucault, podemos compreender que o florescer histórico do século XIX
é marcado também – no que diz respeito à análise do que se formula sobre o discurso do
sexo – pelo seu recrutamento e controle. Ao pontuar e identificar esse século como
momento precursor do encerramento da sexualidade, não significa que Foucault queira
nos evidenciar somente uma gênese, uma origem ou um nascimento de onde e quando
começou as investidas no campo da sexualidade, mas, sobretudo, nos parece que seu
intento é mais profundo: Foucault deseja investigar o que subjaz a estrutura de como
conhecemos e vivemos a sexualidade. E para isso é necessário que se analise a base, o
solo, o terreno, a possibilidade que assegura este cárcere, este nivelamento do nosso
sexo. A história que Foucault quer nos contar é a das condições de possibilidade para o
conhecimento. E o conhecimento que estamos dispostos a averiguar, sob a orientação da
filosofia foucaultiana, é o da sexualidade. Ou melhor, nos deteremos em investigar o
solo fértil que possibilitou germinar uma teoria da sexualidade; seus discursos, suas
modalidades, sua versatilidade e seu campo de ação.
Nosso ponto de partida então é questionar se: a história da sexualidade deve ser
contada e compreendida sob a ótica da repressão sexual? Por muito acreditávamos que
sim. Uma vez que as sexologias do século XIX, tal qual foram pensadas, por exemplo,
segundo Sigmund Freud e Wilhelm Reich, apesar do traço comum de disseminarem
teorias arrebatadoras, têm uma acentuada característica, percebida por Foucault e
parafraseada por nós: o de formularem o discurso do sexo por via da repressão. Porém,
após os escritos e as denúncias de Michel Foucault temos a ligeira impressão de que a
nossa pergunta inicial é obsoleta, ingênua. Foucault afirma haver uma crença entre nós

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de que a repressão, e somente a repressão, pesa sobre o discurso, sobre o pensamento e
sobre as práticas, quando nos referimos ao sexo. Ora, é sobre essa e outras
considerações, pertinentes ao tema da sexualidade, que iremos nos deter nesta pesquisa.
No primeiro capítulo do presente texto pretendemos nos reportar ao que Foucault
designa como “A Vontade de Saber”, fazendo assim, uma contextualização em que o
conceito de sexualidade está inserido, através do que designamos como duplo aspecto
do projeto foucautiano: as perspectivas arqueológicas e genealógicas, concebidas
enquanto métodos de investigação. De início, nossa proposta é interpretar as análises
históricas inauguradas pelo filósofo, sobre o discurso da sexualidade, evidenciando os
aspectos, tanto arqueológico, referente ao modo de investigação presente em seus
primeiros escritos, quanto genealógico, presente nos derradeiros escritos e caracterizado
pela ênfase à problemática do poder. Ainda assim, nos preocupamos em fazer uma
espécie de preâmbulo do método ou estilo utilizado por Foucault, com o intento de
mostrar de onde nossas questões partem, e qual o terreno em que sua a filosofia é
formulada.
Após essas considerações metodológicas, a segunda sessão da pesquisa tratará do
que Foucault concebe por sexualidade, a saber, uma construção discursiva oriunda das
relações de poder. Além do mais, apontaremos nesse capítulo a análise crítica feita à
hipótese repressiva, ao defendermos o ponto de vista, em que Foucault refuta a ideia de
que sobre o sexo paira uma repressão, que proíbe e controla a livre circulação dos
discursos sobre sexualidade. Ora, na medida em que a repressão se apresenta como um
mecanismo aparente, Foucault afirma haver uma incitação aos discursos sobre o sexo,
que devidamente articulados sustentam a emergente “scientia sexualis”, ou ciência do
sexo, caracterizada como um dispositivo de sexualidade.
Por fim, na terceira sessão, será analisada a nova perspectiva do poder elaborada
no projeto intelectual de Foucault em que o poder é tomado diferentemente, enquanto
relações de poder de cunho produtivo. Com esta distinta forma de se conceber o poder,
Foucault nos sinaliza que o poder, que historicamente conhecemos como repressor,
também e, sobretudo, produz, exercendo sua função positiva ao fabricar discursos, no
caso, o discurso da sexualidade.

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1. Sobre a vontade de saber

A Vontade de Saber¹ inaugura o projeto anunciado por Michel Foucault sobre a


História da Sexualidade. Neste primeiro volume podemos perceber o cunho mais amplo,
mais geral dos elementos e das questões suscitadas pelo filósofo, que de modo bastante
peculiar, nos apresenta o panorama no qual suas idéias críticas estão inseridas e em qual
direção poderão ser desenvolvidas. Com esta obra, Foucault nos convida e nos introduz
a uma maneira distinta de se pensar a sexualidade, a saber, no seu percurso e contexto
históricos – seja da proliferação ou da repressão dos discursos – além de pensá-la na sua
relação, um tanto desconhecida por nós, com o poder. Assim, ao analisar a sexualidade
enquanto objeto histórico Foucault percebe e pontua, que junto a esta dita sexualidade
estão imbricadas relações de poder, ou melhor, se pudermos nos expressar de modo
diferente; se existe o discurso da sexualidade e, por conseguinte um arranjo das suas
práticas é porque estes foram possibilitados e construídos, pelas relações desiguais do
poder. Ainda assim é a partir da Vontade de Saber que trataremos da sexualidade
enquanto discurso, enunciado e conceito para que possamos então compreendê-la, no
modo em que se encontra subjugada às relações de poder que possibilitaram, contudo, a
constituição de um saber sobre o sexo.

1.1 O duplo aspecto do projeto foucaultiano

A História da Sexualidade tem no bojo do seu primeiro volume, intitulado A


Vontade de Saber, raízes ou aspectos, tanto arqueológicos quanto genealógicos. Ora, o
que significa tal afirmação? Significa que a análise desta obra, engendrada por Foucault,
sobre o caráter discursivo da sexualidade, é caracterizada como um marco na transição
do pensamento deste filósofo, pois reúne elementos tanto da perspectiva arqueológica,
adotada nos primeiros escritos: Arqueologia do Saber (1969), quanto da genealógica,
presente nos derradeiros escritos: Microfísica do Poder (1979). Desse modo, o itinerário
filosófico foucaultiano perpassa por uma metodologia específica que busca em sua
investigação uma afinação complementar entre filosofia e história. Para
compreendermos melhor este distinto posicionamento teórico proposto por Foucault, no
qual história e filosofia se encontram, se faz necessário que nos debrucemos sobre esse
olhar filosófico frente à historiografia, típico do pensamento foucaultiano, para que num
__________
¹ Ed. Graal, Rio de Janeiro, 2001.

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primeiro momento possamos nos aproximar dos conceitos fundamentais do projeto
intelectual de Foucault: a arqueologia e a genealogia. O fato de atribuirmos à Vontade
de Saber, um perfil, digamos assim, arqueológico-genealógico é porque enxergamos, no
percurso de nossas pesquisas, fortes indícios e evidências de que a análise sobre o
discurso da sexualidade, também utiliza-se de um método investigativo de ordem
historiográfica; como são, os já mencionados, arqueológico e genealógico. Mas em que
consiste primeiramente a arqueologia? A arqueologia é um método filosófico pautado
na investigação da História². Visa-se a partir dela uma análise das regras de formação e
produção dos discursos, que em ultima instância, afirmam e condicionam uma verdade,
cujo potencial regula, controla e opera os enunciados, no caso, o enunciado da
sexualidade. Com a arqueologia o que Foucault pretende é a exposição, senão a
denúncia, das práticas que geram determinados discursos, ou o que ele chama de prática
discursiva³. Ao longo de sua análise arqueológica sobre a história da sexualidade,
Foucault percebe que a historia tradicional elabora somente, os fatos de determinada
época, como acontecimentos fechados e cíclicos, presos numa contínua e progressiva
causalidade. Tendo em vista a arqueologia, Foucault propõe um novo modo de fazer e
questionar a história dos saberes, qual seja, a descrição dos modos e das possibilidades
que se dão as nossas declarações, ou mais especificamente: quais a normas
historicamente percebidas que afirmam e nos conduzem a uma verdade produzida sobre
a nossa experiência da sexualidade?
Na arqueologia não se busca o momento exato em que algo foi dito, ou colocado
em prática pela primeira vez, nem tampouco a gênese e a continuidade de determinada
__________
² O conceito de História tomado por Foucault se distingue fundamentalmente da concepção tradicional
atribuída a esta disciplina. Ou seja, a História convencional, segundo Foucault, se caracteriza por narrar,
senão interpretar, os fatos notáveis ocorridos numa dada sociedade, por via da sucessão contínua de
eventos e ações, determinando assim a origem, o aperfeiçoamento e o progresso dos acontecimentos.
Quando Foucault resignifica o termo História, é uma tentativa de ultrapassar esses preceitos habituais da
História clássica. É no método arqueológico que Foucault encontra a saída de uma ideia de causalidade
atribuída à História tradicional e estabelece o terreno para se pensar a História numa perspectiva crítica,
admitindo suas rupturas, transformações e descontinuidades.
³ As práticas discursivas se caracterizam de algum modo como elo entre discurso e prática. Significa
afirmar que este conceito reúne elementos tanto da fabricação e ajuste dos discursos - compostos por uma
unidade de enunciados - quanto da aplicação e produção destes, nas instituições e nas relações sociais,
definindo assim um saber, além de determinar funções e formas de comportamento numa época.

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invenção. Esse tipo de investigação, segundo Foucault, cabe à historiografia tradicional
e seus historiadores, que comumente concentram-se na interpretação determinista da
sucessão dos fatos e da geração das coisas, além obviamente, do acréscimo ilustrativo
dos feitos dos grandes homens, estadistas, generais ou ocasionalmente eclesiásticos.
Definitivamente à medida que nos debruçamos sobre o olhar arqueológico, nas obras de
Foucault e, especialmente na Vontade de Saber, nos damos conta da distância, senão do
abismo, que está entre a arqueologia e a história tradicional. Uma vez que seus recursos
e objetos de estudo se distinguem essencialmente. Parece que a historia em seu viés
tradicional está voltada, por exemplo, para o momento em que a não cientificidade
passa à ciência, ou a não filosofia passa à filosofia, constituindo e pontuando assim a
geração e a sucessão das coisas. Já a preocupação da arqueologia é a especificidade em
que se dão as coisas, ou seja, o conjunto de elementos que concorrem para que
determinado discurso germine. O interesse do arqueólogo pintado por Foucault não é
atingir o fundo último do saber, nem a constituição última do mundo, nem a certeza e a
verdade do conhecimento, mas suas pretensões são as de investigar a regularidade dos
enunciados, a descrição dos fatos e a multiplicidade dos eventos, tal qual se encontram
em seus arquivos4. A história que o arqueólogo quer traçar é de como as instituições, os
processos econômicos e as relações sociais podem dar lugar a tipos definidos de
discursos.

A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as


imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos
discursos; mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras.
Ela não trata o discurso como documento, como signo de alguma coisa, como
elemento que deveria ser transparente, mas cuja opacidade importuna é preciso
atravessar frequentemente para reencontrar, enfim, aí onde se mantém a parte,
a profundidade do essencial; ela se dirige ao discurso em seu volume próprio,
na qualidade de monumento. Não se trata de uma disciplina interpretativa: não
busca um “outro” discurso mais oculto. Recusa-se a ser “alegórica”.
(FOUCAULT, 1969, p. 159).
_________
4
O termo arquivo não designa o que habitualmente atribui-se e ele, ou seja, no pensamento de Foucault
este conceito não significa o lugar em que se acumula uma série de textos ou documentos que traduzem
ou representam uma cultura ou a identidade de um povo. Mas, ao olhar foucaultiano: “O arquivo é, de
início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos
singulares.” (FOUCAULT, 1969, p. 149). Enfim, de acordo com Foucault o arquivo não revela a
expressão de uma época de modo imparcial, mas só temos acesso a esta época porque todo um jogo de
relações tornou-o acessível. Em linhas gerais, para Foucault o que é arquivado é manipulado e por isso
cabe ao arqueólogo delatar que o arquivo só exprime a História de uma perspectiva restrita, a perspectiva
da lei, da regra. No arquivo não só se guarda os discursos, mas os formam e os transformam.

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Com isso, pode-se perceber que o método arqueológico, apesar de retroativo, não
pretende exatamente nos remeter ao instante crucial em que algo foi estabelecido,
definido, fixado, mas, no entanto, quer nos descrever os discursos historicamente
definidos e que de uma forma ou de outra estes discursos conduziram, guiaram e
determinaram as condutas de uma época. A arqueologia, enfim, traduz o rastrear de um
investigador crítico frente a um filão histórico, sem pretensões de desmascarar ou
desvelar o que subjaz os discursos emergentes. O objeto que o arqueólogo reescreve é o
discurso, nem mais, nem menos.
Tendo em vista que nos aproximamos em alguma medida do aspecto arqueológico
atribuído ao projeto foucaultiano, devemos a partir de então, nos ater ao outro aspecto
que atribuímos à Vontade de Saber, o já mencionado, genealógico. Resta-nos, portanto
questionar: em que consiste a genealogia proposta por Foucault? A genealogia é
também um método e um instrumento de investigação utilizado pelo filósofo em
algumas de suas obras, ela significa um salto qualitativo em seu pensamento e,
sobretudo no rumo da filosofia contemporânea, uma vez que simboliza uma transição de
um modo de pensar mais restrito ao campo dos discursos – concernentes à arqueologia –
para um modo de exame que envolve também as práticas, as instituições e, sobretudo as
relações de poder. Pelo fato de A Vontade de Saber representar fielmente as
peculiaridades do posicionamento genealógico é que fazemos menção a esse tipo de
método, ou melhor, a esse tipo de prática crítica 5. Para Foucault o discurso da
sexualidade, e a formulação do mesmo, perpassam pelo crivo do poder. Ora, o poder e
as relações que este reverbera constituem o saber sobre o sexo, ou melhor, o saber
legitimador e determinante sobre a nossa sexualidade. O aspecto genealógico da
Vontade de Saber é exatamente esse olhar empreendido por Foucault sobre os discursos,
os enunciados, as práticas e os condicionamentos presentes na história do sexo.
A genealogia do poder que Foucault tem em vista está sob a influência do
pensamento de Nietzsche que na Genealogia da Moral propõe, em caráter geral, uma
retomada, ou releitura histórico-crítica dos valores morais da nossa tradição ocidental,
__________
5
Segundo a pesquisadora e especialista Johanna Oksala em seu livro Como ler Foucault, a genealogia é
melhor compreendida quando a associamos a uma “prática crítica” do que simplesmente a um método. A
genealogia não se restringiria a ser apensar um método, mas ultrapassa essa rigidez digna da estrutura,
porque se caracteriza por abarcar e considerar as subdivisões, as camadas e os confrontos presentes num
dado conceito.

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que até então se encontravam regidos por uma cultura de matriz judaico-cristã. No
entanto, não é somente com o resgate ou a reformulação da genealogia que Foucault,
digamos assim, homenageia Nietzsche, mas também com a noção de poder. Sobre esta
noção nos deteremos no último capítulo do presente texto. Ora, a genealogia como
podemos perceber, assim como a arqueologia, toma por base a dimensão histórica como
o lugar para se compreender as distintas formas de discursos que se proliferaram no
percurso da sociedade ocidental. Entretanto, essas duas formas de olhar ou reconstituir o
passado não pretendem desenvolver ou interpretar uma história linear, estável, contínua
e progressiva dos discursos, daí a crítica à história no sentido tradicional, mas sim, quer
restaurar ou descrever a história em seu caráter múltiplo e descontínuo, com suas
diversas nuances e constantes oscilações. De modo que a abordagem dada por Foucault
sobre a genealogia se caracteriza fundamentalmente por analisar aquilo que
normalmente não se fazia ou se atribuía uma história – como o sexo, por exemplo – e
que a partir de um dado momento surge todo um emaranhado de teorias, um conjunto de
conhecimentos e noções gerais, criando assim, uma história do que não se tinha história.
E essa recém-descoberta “história” deveria ser contada por poucos, restrita a uma
comunidade específica, repleta de regras e normas, uma vez que tomaria de assalto e
conduziria o que antes não tinha excessiva rédea, usurpando assim da população o
direito de falar e portar-se frente a sua própria intimidade, em última instância frente a
sua própria história. A crítica apontada por Foucault e percebida através do percurso
genealógico é que ao se formular histórias ou teorias sobre algo, que até então não se
produzia, corre-se o risco, senão o fatalismo, que este algo perca o tom da familiaridade,
do simples, da marca da espontaneidade, e ganhe uma rede de adornos a partir de uma
evidência e dum destaque forjados. A história da sexualidade se configuraria a essa
maneira, como certifica Foucault nas primeiras páginas da Vontade de saber:

Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As
práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência
excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma
tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade,
da decência, se comparados com os do século XIX. Gestos diretos, discursos
sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente
misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo nem escândalo, entre os
risos dos adultos: os corpos “pavoneavam”. Um rápido crepúsculo se teria
seguido à luz meridiana, até as noites monótonas da burguesia vitoriana. A
sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa.
A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da
função de reproduzir. (FOUCAULT, 2001, p. 9).

Ora, é a partir dessas palavras que Foucault introduz sua crítica ao que vem a ser

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a ciência do sexo, ou como o próprio autor chama; scientia sexualis. Este termo será
melhor estudado por nós mais adiante, mas de antemão já apontamos que Foucault nos
revela que a ciência do sexo ou as sexologias que despontam no século XIX, inscrevem
o sexo numa perspectiva científica e moldado pela repressão. É daí a base de toda crítica
foucautiana, ao perceber que os discursos emergentes sobre o sexo e a sexualidade
estavam entrelaçados e esboçados a partir das relações de poder. É em consonância com
esse pensamento, a saber, essa associação entre poder, saber e sexualidade que o livro A
Vontade de Saber foi desenvolvido e concebido.
Percebamos então, a importância da genealogia no pensamento de Foucault, uma
vez que esta trouxe a tona o que fez de Foucault um pensador singular; evidenciar para
seus leitores que os saberes, que julgamos como verdades eternas, são procedentes de
relações de poder, confirmando para nós que não existe conhecimento despretensioso e
sem intenções, por mais útil, fundamental ou essencial que nos pareça. O saber sobre a
sexualidade, do qual estamos nos debruçando e destrinchando neste trabalho, é um
exemplo de um saber constituído por mecanismos de poder. E por isso estamos em
defesa de uma análise sobre a construção do discurso da sexualidade.
Quando Foucault nos alerta veementemente da relação entre poder e saber, parece
que sua pretensão, está em nos por a desconfiar do conhecimento dito padrão e legítimo,
ou seja, que o conhecimento e, sobretudo o conhecimento científico está intimamente
vinculado ao contexto social e político no qual se encontra inserido. Podemos ainda ser
mais claros, para Foucault a genealogia nos evidencia que o conteúdo dos saberes aos
quais temos acesso não está desvinculado de tendências e influências que legitimam os
preconceitos de uma sociedade. A ciência moderna com o status que atribuímos a ela de
soberana é formulada e financiada pelos que estão no poder, e estes por sua vez,
moldam nossos interesses e necessidades. Em última instancia o que Foucault quer nos
dizer em sua genealogia do poder é que não há saber sem um conjunto de regras e
limitações que caracterizam o discurso de um período histórico. Dessa maneira, este
filósofo destrona a verdade científica de seu pedestal imaculado e a concebe como um
embate entre opiniões e critérios que findam num consenso. Este consenso, leia-se
verdade, varia de tempo em tempo, e tem a incrível capacidade de afirmar o que somos,
de domar nossos ímpetos e doutrinar nossos comportamentos. Em linhas gerais, seja no
âmbito da sexualidade ou em qualquer outro, não ultrapassamos a barreira do
convencional. Contudo, o que a genealogia almeja segundo Foucault é:

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Manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é demarcar os
acidentes, os ínfimos desvios - ou ao contrário as inversões completas - os
erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que
existe e tem valor para nós, é descobrir que na raiz daquilo que nós
conhecemos e daquilo que nós somos, não existem a verdade e o ser, mas a
exterioridade dos acidentes. (FOUCAULT, 1979, p. 21).

Ainda assim, pode-se notar que o sentido histórico tomado pela genealogia
significa estudar e aceitar a história com suas múltiplas nuances, com suas agitações e
deslizes, com seus altos e baixos. O genealogista entende que a história não segue o
curso retilíneo, uniforme e progressivo de um caminho aberto e possibilitado por uma
origem exclusiva. Mas compreende que o percurso histórico é feito de acontecimentos e
descaminhos em meio a contradições e equívocos.
Ora, em virtude do que já foi elaborado e exposto acerca da genealogia e
anteriormente sobre a arqueologia, enquanto aspectos presentes no pensamento de
Foucault, faz-se inevitável uma tentativa de encadear, ou de modo mais simples, de
costurar esses conceitos, tendo em vista evidenciar que tanto a arqueologia quanto a
genealogia traduzem um estilo e um processo de construção da escrita foucaultiana, ou
seja, ao pontuarmos essa transição percebemos que ela diz respeito ao trajeto teórico
percorrido por Foucault para elaborar suas investigações. Arqueologia e genealogia não
se anulam, mas ao contrário, se encontram em particular consonância na filosofia de
Foucault; assim como melhor evidencia Johanna Oksala:

A passagem da arqueologia para a genealogia que ocorreu no pensamento de


Foucault nos anos 70 não significou o abandono do uso da historiografia como
método filosófico. Ele não abandonou tampouco nenhum dos importantes
insights metodológicos que caracterizavam a arqueologia. Isso teria significado
recuar para uma história tradicional, “ingênua”. A mudança para a genealogia
ocorrida no início dos anos 70 é uma mudança no foco do seu questionamento.
O que lhe interessava na história da ciência não eram mais questões
concernentes às regras internas e condições da emergência de práticas
discursivas, ou se o desenvolvimento da ciência era contínuo ou descontínuo.
Ele se voltou, em vez disso, para o estudo da conexão entre as relações de
poder e a formação do conhecimento científico. A principal asserção de sua
genealogia é que as regras que regulam as práticas científicas estão sempre
associadas às relações de poder da sociedade em questão. (OKSALA, 2011, p.
62-63).

Enfim, é dessa resumida maneira que compreendemos e designamos o duplo


aspecto do projeto foucaltiano, presente sobretudo na Vontade de Saber.

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1.2 Uma análise sobre o discurso da sexualidade

Considerando o que foi exposto até então, como uma espécie de preliminar ou
contexto no qual o pensamento de Foucault repousa, e que de alguma forma é base para
desenvolver nossa pesquisa, enveredemos agora em diante, aos pormenores de uma
investigação sobre a construção do discurso da sexualidade.
Podemos, portanto, partir do pressuposto de que a história da sexualidade contada
por Michel Foucault não se sustenta a partir de um encadeamento harmônico do que já
se tem dito sobre o sexo. Seu intento, ao contrário, é lançar mão de um olhar crítico
sobre o que se tem relatado e escrito acerca de uma sexualidade, no percurso histórico
do homem ocidental, recusando assim, uma mera repetição dos fatos e uma exaltação
das teorias já existentes sobre esse tema. De fato, Foucault está longe de ser o primeiro a
ter se debruçado e proposto, uma reflexão dos termos que designam o que seja o sexo,
entretanto, nos parece ser o pioneiro em fazer uma analítica do que diz respeito ao saber
sobre o sexo, desvencilhando-o das amarras da tradicional repressão. O alvo da crítica
foucaultiana é o discurso moderno da sexualidade o qual afirma que sobre o sexo paira
uma nebulosa repressão que proíbe a circulação livre desse assunto, distanciando o
indivíduo, cada vez mais, de uma possível liberdade sexual. Em contrapartida, o que
Foucault está em defesa é de pensar a sexualidade em outros moldes e através de outra
perspectiva, a saber, de mediar o discurso da sexualidade humana, construído e
possibilitado por relações de poder.

Em suma, gostaria de desvincular a análise dos privilégios que se atribuem


normalmente à economia de escassez e aos princípios de rarefação, para, ao
contrário buscar as instâncias de produção discursiva (que evidentemente,
também organizam silêncios), de produção de poder (que, algumas vezes têm a
função de interditar), das produções de saber (as quais, frequentemente, fazem
circular erros ou desconhecimentos sistemáticos); gostaria de fazer a história
dessas instâncias e de suas transformações. (FOUCAULT, 2001, p. 17).

Ora, essa passagem ilustra e traduz um pouco, do que seria a abordagem


diferenciada trazida por Foucault sobre o que atravessa o discurso da sexualidade, qual
seja, a recusa duma maciça repressão, em prol da intensa multiplicação dos discursos.
Sobre o sexo se fala, e não se cala! Logo e a partir daí, o sexo é colocado enquanto
discurso, sobretudo, enquanto discurso científico, e não enquanto silêncio proveniente
da repressão. É nessa direção que o conteúdo e a proposta presentes no livro A Vontade
de Saber seguem: na direção da contramão, do corte, da ruptura do que até então se
concebia, quando a questão é o sexo. A vontade de saber que Foucault quer denunciar

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reside no fato de que os discursos são incitados e não reprimidos, se são incitados, seja
por instituições ou nas relações sociais, é porque querem ouvir-nos, querem saber. Cabe
então perguntarmos: esse querer saber tem em vista a despretensiosa intenção de ajudar
o homem? Tem em vista auxiliá-lo no progresso tanto pessoal quanto social trazendo-
lhe a fugidia felicidade? Podemos afirmar que essas questões e suas possíveis respostas
atravessam o primeiro volume da História da Sexualidade. Ainda nesse contexto,
podemos lançar outra questão: que vontade de saber é essa que permeia a sexualidade
humana? Ora, a análise dessa vontade de saber é timidamente lançada num curso
elaborado por Foucault no Collège de France, cuja introdução diz:

O curso deste ano inaugura uma série de análises que, fragmento por
fragmento, procura constituir pouco a pouco uma “morfologia da vontade de
saber”. Esse tema da vontade de saber será analisado ora através de pesquisas
históricas determinadas, ora por si mesmo e em suas implicações teóricas. Este
ano tratava-se de situar o seu lugar e definir o seu papel numa história dos
sistemas de pensamento; fixar, ao menos provisoriamente, um modelo inicial
de análise; de provar sua eficácia através de um primeiro conjunto de
exemplos. (FOUCAULT, 1970-1982, p. 11).

É possível notar o cunho inaugural e um tanto geral do projeto empreendido por


Foucault sobre a História da Sexualidade, e coube à Vontade de Saber efetuar-se como
ponto de partida. Encontramos nessa obra os primeiros passos, para uma análise do
processo de formulação discursiva da sexualidade, enquanto objeto histórico, e
evidentemente um objeto distinto, do que já se havia produzido sob a ótica da repressão.
A sexualidade é tratada por Foucault em termos de dispositivo 6, ou seja, a sexualidade é
constituída por uma rede de elementos e um conjunto de funções que determinam e
condicionam os indivíduos em um dado momento histórico, a partir de um jogo de
interesses e estratégias. Talvez num primeiro instante o dispositivo soe para nós, como
mais um mecanismo reprodutor da repressão, por atuar numa sociedade através de um
sistema coercivo; mas aí toda crítica foucaultiana pautada na objeção da análise do sexo
sob a égide da repressão, seria incoerente, porém o que ele nos sinaliza é que o
dispositivo pode até se caracterizar como uma estrutura repressora, mas para que essa
estrutura aconteça e desponte, seria necessário primeiramente, que do sexo se fale, se
__________
6
O dispositivo em Foucault é o elo entre um saber – a sexualidade, por exemplo – e as relações de poder
que o possibilitam. Com este termo Foucault tenta demarcar: “um conjunto decididamente heterogêneo
que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas.” (FOUCAULT,
1979, p. 244).

17
enuncie, em última instância, o promova, pois, é a partir do que é extraído de nossas
afirmações mais íntimas, que para Foucault, a sexualidade se ergue enquanto discurso
científico, e sobretudo enquanto dispositivo, pois segundo ele, existe uma vontade de
saber, “anônima e polimorfa” que atravessa o sexo querendo examiná-lo e desvendá-lo,
através da incitação aos discursos. Por isso, que Foucault trata a repressão por via da
hipótese, da probabilidade, uma vez que para ele o que existe e serve de fundamento
sobre o sexo é um dispositivo que se constitui e se expande a partir do que é dito e
incitado a dizer, e não a partir da proibição que gera o silêncio. Toda extorsão é válida e
todo discurso detalhado é bem vindo para que a sexualidade moderna seja sitiada e
formulada em termos de dispositivo.

Examinai, portanto, diligentemente, todas as faculdades de vossa alma, a


memória, o entendimento, a vontade. Examinai, também, com exatidão todos
os vossos sentidos,... Examinai, ainda, todos os vossos pensamentos, todas as
vossas palavras e todas as vossas ações. Examinai, mesmo, até os vossos
sonhos para saber se, acordados, não lhes teríeis dado o vosso consentimento...
Enfim, não creiais que nessa matéria tão melindrosa e tão perigosa, exista
alguma coisa de pequeno e leve. (FOUCAULT, 2001, p. 23).

O que Foucault denuncia para seu leitor é que todo esse arranjo em torno do sexo,
para que dele se fale cada vez mais, é fabricado e alimentado por essa vontade de saber
que além de ultrajante é intencional e dominadora. Precisamos entender que essa
vontade de saber que nos assola é anterior ao que concebemos e percebemos,
historicamente por repressão. E esse querer saber para Foucault é interessado sim, e
mais do que isso, o saber está envolto de relações de poder, que por sua vez possibilita e
corrobora os discursos. A observação singular feita por este filósofo é que a história da
sexualidade tem sido contada, somente a partir do viés repressor que as relações de
poder exercem contra o saber sobre o sexo, e por conta disso, fala-se somente do sexo
por via da repressão, e que, além do mais, buscamos por uma libertação sexual. O que
Foucault está em defesa é que se faz necessário reescrever, ou melhor, descrever, uma
história da sexualidade, atentando agora em diante, para o fato de que não é a repressão
que fundamenta os discursos sobre o sexo, mas sim, a incitação e a multiplicação destes.
Desse modo, estaríamos mais próximos de um olhar crítico acerca da sexualidade, como
Foucault propõe na Vontade de Saber.

18
2. Sexualidade: uma construção discursiva

A originalidade do pensamento de Foucault no que diz respeito à sexualidade


pode ser evidenciada a partir de uma de suas constatações fundamentais, a saber, que ao
longo da história do homem ocidental o discurso sobre o sexo não esteve estritamente
vinculado ao segredo, ao silêncio e, nem ao menos à repressão, como afirmam, por
exemplo, os principais teóricos que são alvos da crítica foucaultiana; Sigmund Freud e
Wilhelm Reich em suas teorias científicas, que despontam no século XIX. Mas, sobre o
sexo, o que se pode evidenciar, a princípio, é uma espécie de estímulo ou incitação, para
falar-se dele, e especialmente, falar do modo mais detalhado. Ou seja, com Foucault
percebemos que o século XIX é sim, um momento histórico, em que o discurso
científico sobre o sexo ganha fôlego e impulso. Esses discursos dizem a verdade do
sexo, e carregados de promessas e ofertas, garantem revoluções sexuais que trariam a
liberdade, o prazer e a felicidade. A análise foucaultiana, da qual trataremos aqui, é a de
que não existe um sexo verdadeiro a ser descoberto ou libertado, mas sim, que o
conceito emergente de sexualidade, enquanto proposta inovadora de se pensar as formas
de prazer, não escapa dos moldes de uma construção discursiva resultante das relações
de poder com o saber, constituindo assim, um dispositivo chamado sexualidade.

2.1 Repressão sexual: um mecanismo aparente

O que é próprio das sociedades modernas não é terem condenado o sexo a


permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre,
valorizando-o como o segredo. (FOUCAULT, 2001, p. 36).

Segundo Foucault, o conceito de sexualidade vem sendo tratado, seja por teóricos,
cientistas ou filósofos sempre e fundamentalmente pelo viés da repressão. Ou seja, as
teorias sobre sexualidade que despontam no século XIX afirmam que desde o século
XVII, sobretudo, com a ascensão da sociedade burguesa e o desenvolvimento do
capitalismo, instaurou-se como problemática resultante desse novo tipo de sociedade, a
chamada “Idade da repressão”. A partir de então a sexualidade é confinada, controlada e
dominada por intermédio de proibições, e assim, novos moldes são impostos e a lei
toma por base, por exemplo, o casal dito legítimo e que procria. Em contrapartida, a
sexualidade analisada por Foucault, ao nível do discurso, é tratada enquanto um
fenômeno vinculado a incitação e não, à repressão. Com isso, podemos perceber que
Foucault ao estudar a historia da sexualidade, rompe com as tradicionais teorias que até
então, interpretavam o sexo estritamente ao nível da repressão, e inaugura deste modo,

19
uma série de estudos a respeito das relações históricas entre o discurso sobre o sexo e as
articulações do poder.

Não penso tanto, aqui, na multiplicação provável dos discursos “ilícitos”,


discursos de infração que denominam o sexo cruamente por insulto ou
zombaria aos novos pudores; o cerceamento das regras de decência provocou,
provavelmente, como contra-efeito, uma valorização e uma intensificação do
discurso indecente. Mas o essencial é a multiplicação dos discursos sobre o
sexo no próprio campo do poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar
cada vez mais; obstinação das instâncias do poder a ouvir falar e a fazê-lo falar
ele próprio sob a forma da articulação explícita e do detalhe infinitamente
acumulado. (FOUCAULT, 2001, p. 22).

A sexualidade vista sob a ótica foucaultiana ultrapassa os moldes da hipótese


repressiva, que se caracteriza por investigar por qual determinante ou causa somos
reprimidos sexualmente. E esse é o ponto crucial da nossa análise: compreender, ou nos
aproximar, de uma maneira que possamos pensar a sexualidade distante das amarras da
censura7, como habitualmente se tem pensado. Entretanto, se faz necessário esclarecer e
ressaltar que apesar de Foucault refutar a ideia de uma repressão, que fundamenta e
permeia a sexualidade, este autor, acredita sim, numa depuração dos discursos quando a
questão é a nossa sexualidade. Ou seja, se pudermos ser mais claros, segundo Foucault,
quando se percorre e analisa a historia da sexualidade, o que se pode perceber é que o
discurso que a envolve, num primeiro momento, não foi reprimido, mas provavelmente,
sofreu uma aparente remoção ao nível social, para que do sexo se fale somente em
determinadas circunstâncias e para determinados ouvintes. O que se enuncia sobre
sexualidade, a partir de então, passa pelo crivo da família, da escola e da ciência, e uma
série de normas e regras são instauradas, afim de que o sexo seja encerrado da
circulação social. Porém, todo esse cerceamento em torno do sexo não passa de um
mecanismo aparente, pois ao nível dos discursos o sexo é constantemente incitado. Ora,
que significa afirmar isso? Significa que há cerca de três séculos, como nos aponta
Foucault, somos incitados a falar das nossas práticas sexuais e dos nossos desejos mais
íntimos, ao invés de calá-los, como ilusoriamente, concebíamos antes da análise deste
pensador.
O discurso sobre o sexo se torna um fenômeno, pois desde a Idade Média uma
crescente fermentação e valorização desses discursos, ganha espaço. Assim, o homem
ocidental se vê então, obrigado a declarar seus prazeres, a dizer o que lhe apetece e a
__________
7
Para Foucault a cesura tem sua lógica, e tal interdição se expressa das seguintes formas; “afirmar que
não é permitido, impedir que se diga, negar que exista” (FOUCAULT, 2001, p. 82).

20
descrever suas preferências sexuais. A sexualidade portando, é construída a partir do
que enunciamos sobre nossos gostos e, por conseguinte sobre nós mesmos. Daí a crítica
foucaultiana de que não há, somente, uma repressão sexual, mas o que acontece também
e, sobretudo num grau mais acentuado, é que somos instigados a afirmar o que motiva
nosso gozo. Ora, e quem escuta nossas enunciações? Ou melhor, quem desperta e aguça
em nós a fala excessiva sobre sexo? A proposta de Foucault é que saibamos
prontamente por quem os nossos discursos são inicialmente analisados. E ele nos diz:
pelo confessionário. E quem está por trás do confessionário? A penitência e, sobretudo,
a instituição religiosa que foi a primeira a tomar cabo não só de nossas infrações, mas
também de nossos deleites e sensações mais íntimos. Ou seja, a história do homem
ocidental ao longo dos três últimos séculos é falar tudo sobre seu sexo e a partir daí ser
orientado e modificado em seu comportamento, diante seu próprio sexo. O falar
gratuitamente e em meio social sobre o sexo é que era vetado e censurado pelas
“instituições de poder e saber8”, e essas mesmas instituições queriam, obrigavam,
insinuavam que o indivíduo se desnudasse diante de vossas senhorias.
Ora, o sexo deve ser confessado a essas instituições que detém o poder, porque
quem direciona o nosso saber são elas. Confessemos com detalhes sórdidos e
minuciosos nossas peripécias sexuais, sejam elas rudes ou delicadas, extravagantes ou
singelas. O importante é que nosso leque seja aberto às averiguações exaustivas, até que
extraiam toda multiplicidade necessária de nossos discursos. E para isso não houve
economia em criar mecanismos para que do sexo se fale, faça-se falar, descreva,
registre, enfim, que provoque o discurso em suas diversas formas, porém, sempre
controlando e regulando o que tais instituições condenavam como ilícito.

Não se fala menos do sexo, pelo contrário. Fala-se dele de outra maneira; são
outras pessoas que falam, a partir de outros pontos de vista e para obter outros
efeitos (FOUCAULT, 2001, p. 29-30).

Os educadores, médicos, administradores e pais estão à frente do que se incita e


inibe acerca do sexo. Desde criança estamos rodeados, ou melhor, cercados por pessoas
que implantam em nós o conteúdo sexual, e que por sua vez, estas mesmas pessoas
foram devidamente instruídas e qualificadas, enquanto “locutores do sexo”. No século
XVIII teve início essa “atenção” em especial à criança e ao adolescente, acredita-se que
__________
8
Aqui as instituições de poder-saber são dentre tantas; a escola (instituição pedagógica), a família, a
igreja, a ciência (em especial a medicina).

21
por motivos evidentes; treiná-los para obedecerem a hierarquia que tem incutida em si
articulações de poder. O que interessa a Foucault não é somente a massificação dos
discursos sobre sexo, mas que estes discursos estão carregados de conteúdo moral e
direcionamentos comportamentais. São discursos que interferem e modificam a
dinâmica das relações sociais, tornando-as submissas a um utilitarismo econômico e
político.

2.2 A ciência do sexo e a propaganda dos discursos

Sobre o sexo uma série de estudos, de afirmações e promessas. O século XIX é o


lugar em que as bases para uma possível revolução sexual são lançadas. Tem-se a
serviço da população, especialistas, médicos e instrutores devidamente capacitados a
exercerem o papel de tutores de uma sexualidade. Foucault nos aponta como exemplo
três instâncias que controlavam as práticas sexuais: o direito canônico, a pastoral cristã e
a lei civil. Cada uma a sua maneia soube como demarcar a fronteira entre o normal e o
anormal, o saudável e o doente, no âmbito do sexo. O prazer se torna objeto de
investigação científica, daí a vontade de saber; e a partir de um dado momento
histórico, se estabelece uma demasiada curiosidade acerca do sexo, de modo que somos
tomados por uma vontade, quase que autônoma, de saber o que é o sexo. Somos
conduzidos a acreditar que junto ao sexo está a verdade sobre nós mesmos, porque o
sexo revelaria a nossa face mais íntima e, quanto mais íntimo for o alcance da
investigação sobre nosso corpo, mais produtivo é o controle sobre ele. Assim, a
“scientia sexualis9” traça seu campo de ação, e a propaganda dos discursos se estabelece
como um marco na historia da sexualidade.
A ciência sexual que Foucault denuncia se ergue, a partir de enunciados
proferidos pelos indivíduos, que por sua vez, são incitados e excitados a buscar um sexo
verdadeiro. O sexo desde então, ganha uma roupagem científica, é tomado de assalto
pela suposta neutralidade da ciência, como objeto de investigação excessiva e exaustiva.
O direito e a verdade sobre o sexo pertencem agora em diante, ao discurso científico. E
como a ciência, por muitas vezes, foi o lugar onde creditamos nossas certezas, ela teve
__________
9
Ciência do Sexo desenvolvida a partir do século XIX que produzia os discursos distanciando cada vez
mais o sexo do âmbito do humano. Junto à confissão a Ciência do Sexo é segundo Foucault “expressão
obrigatória e exaustiva de um segredo individual” (FOUCAULT, 2001, p. 61).

22
subsídio suficiente para determinar seus critérios de verdade e fomentar seus
preconceitos. O empreendimento de Foucault é que entendamos porque ao longo da
história de nossas sociedades, durante tantos séculos, a procura pela verdade do sexo se
fez presente em diferentes épocas e civilizações. De modo que sobre o nosso sexo criou-
se um emaranhado de conceitos, teorias, de prescrições comportamentais, de formas de
controle e de sujeição. A história do homem, pontua Foucault, é marcada a partir de um
dado momento, por fazer-se revelar suas nuances sexuais. Toda uma engrenagem é
meticulosamente desenvolvida para que confessemos nossos prazeres. E este é o ponto
que pretendemos a princípio compreender: por que essa vontade tão tensa e latente de
querer saber sobre a sexualidade humana?

Por isso mesmo, Foucault procura externar sua posição indicando as razões
pelas quais o homem contemporâneo é levado sempre a ter uma vontade de
saber sobre o sexo. Vontade de saber que tem nas práticas e nos discursos da
verdade do sexo, seus referentes; vontade em torno da qual uma ciência do
sexo se ergueu em fins do século XVIII, se consolidou no século XIX, e
adquiriu sua potência máxima com o advento da psicanálise. Essa vontade de
saber imprime-se como uma experiência da qual não é possível escapar pois se
torna uma vontade de saber a verdade do sexo em nós. (VILAS BOAS, 2002,
p. 98).

Uma serie de instrumentos e aparelhos foram cautelosamente elaborados para que


motivação não nos faltasse, em falar do sexo constantemente. O confessionário, a sala
da aula, o consultório médico, a nossa casa foram os cenários em que toda essa empresa
foi construída. A empresa, cujo empreendimento, resume-se em nos convencer de que é
no sexo que está o princípio essencial que trará o tão sonhado encontro com nós
mesmos e com a tal da liberdade. Desde então, com tamanha habilidade e ímpeto, foi
despertada em nós uma vontade de saber que historicamente não era nossa. O saber
sobre o sexo passa a ocupar as questões mais centrais das teorias e ciências do século
XIX. Além de pretender, através de suas técnicas disciplinares, enquadrar, enumerar,
classificar, decifrar as práticas sexuais dos indivíduos, e desse modo, criar e nomear
uma série de sexualidades: a infantil, a do adolescente, o do homossexual e a do louco, a
do normal. Com a ciência do sexo, os limites entre normal e anormal foram rigidamente
estabelecidos, e cada individuo se viu rotulado em suas particularidades, porque a
ciência assim quis. Que ciência e essa que toma o homem e suas práticas sexuais como
um objeto qualquer passível de exame constante e minucioso a procura de uma suposta
patologia? Nas palavras de Foucault, a nossa civilização ocidental, foi a única a tratar da
sexualidade pelo viés da ciência, ou seja, a por em prática uma “scientia sexualis” que

23
ordena e controla o sexo fundamentalmente pela relação entre poder e saber. As demais
civilizações, como a Índia e o Japão, diz Foucault, estavam voltadas para extrair do
prazer o próprio prazer, ou o que ele chama de “ars erotica” 10. Não havendo, portanto,
uma preocupação com o proibido e o permitido. Para essas civilizações o prazer é uma
arte e o privilegio de conhecer essa arte erótica, traria para seu praticante o contato com
o sublime, através do gozo. A parte que coube à nossa civilização se distanciou, e
muito, do prazer tomado enquanto arte. Ficamos, essencialmente, com o prazer
enquanto ciência, ou seja, a dinâmica na qual concebemos o prazer é conforme e a partir
da inter-relação, poder-saber.
Um dos rituais mais importantes, que segundo Foucault, contribuiu para a
formação da ciência do sexo foi a confissão. Já mencionamos aqui, sobre o papel do
confessionário como referente ao lugar em que cabe a cada indivíduo relatar sobre seu
sexo, todavia, não podemos deixar de acrescentar que, enquanto fator histórico de
produtor de verdades, o ato de se confessar é um exemplo e tem valor preponderante na
filosofia foucaultiana. Pois desde a Idade Média este é o veículo para a produção de
discurso ou digamos, para a produção de verdade enquanto confissão “científica”.

Desde então nos tornamos uma sociedade singularmente confessada. A


confissão difundiu amplamente seus efeitos: na justiça, na medicina, na
pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, na esfera mais
cotidiana e nos ritos mais solenes; confessam-se os crimes, os pecados, os
pensamentos e os desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a
infância; confessam-se as próprias doenças e misérias; emprega-se a maior
exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em
particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama; fazem-
se a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de confiar a outrem,
com o que se produzem livros. Confessa-se – ou se é forçado a confessar.
Quando a confissão não é espontânea ou imposta por algum motivo interior, é
extorquida; desencavam-na na alma ou arrancam-na ao corpo. A partir da Idade
Média, a tortura a acompanha como uma sombra, e a sustenta quando ela se
esquiva. (FOUCAULT, 2001, p. 59).

A Idade Média, de alguma forma, é para Foucault, um momento na historia do


ocidente em que de maneira embrionária, tem-se início uma espécie de incitação aos
discursos. A instituição religiosa começa, através da penitência da confissão, vasculhar
a vida de seus discípulos, com o objetivo de ouvi-los e induzi-los. Confessar tornou-se
uma exigência, e não somente confessar, mas confessar a verdade. A confissão se
dissipa e se enraíza entre as instituições e as relações de modo geral, duma forma que
não nos percebemos coagidos a formular enunciados. Damos como fato comum revelar-
nos, pois, acreditamos que assim nos encontraremos. A confissão se disfarça como um

24
caminho para a liberdade. Porém, Foucault nos alerta: a confissão é um instrumento
histórico de produzir verdade, regida e pautada por relações de poder. É no
confessionário que a verdade do sexo é inicialmente composta. Além do que, o sexo
sempre esteve presente na confissão como elemento preponderante. Foi no ritual da
confissão que aprendemos a formular o discurso sobre o sexo e não, através de um
ensino ou iniciação mais específica sobre o que é o prazer. Que fique claro que coube a
instituição religiosa dar o ponto de partida nas questões sobre sexualidade, entretanto,
não foi a única que “educou” nossos prazeres, e esse é um ponto importante para
compreendermos a historia da sexualidade narrada por Foucault. Este pensador quer nos
contar que a sexualidade, a qual fazemos tanta reverência, vem sendo construída e
lapidada desde a Idade Média com o advento do confessionário, e vem se estendendo
até os dias de hoje, através das diversas instâncias institucionais que nos cercam; a
pedagogia, a medicina, a psiquiatria e o direito. Essas instituições e as suas formas de
extorquir a verdade, seja por via de interrogatórios, consultas ou manuscritos,
consolidou um marco histórico para o Ocidente: a propaganda e a massificação dos
discursos científicos sobre o sexo.
O século XIX se caracteriza pela apropriação do procedimento da confissão, em
discurso científico, ou seja, a confissão enquanto narração de si a um interlocutor, passa
agora em diante, pelo crivo da ciência e de suas técnicas de exame e avaliação. A
ciência toma de assalto a relação interrogado e interrogador estabelecida pela confissão,
e a partir de então, regula e interpreta o discurso daquele que enuncia. Quem analisa
nossos discursos detém a verdade e possibilitará, através de um diagnóstico, a cura dos
nossos “males” sexuais. Fomos conduzidos a buscar uma verdade do sexo nas
sexologias emergentes do século XIX e acabamos por aceitar que tais teorias, nos
trariam a verdade sobre o que somos, ou melhor, a verdade sobre o que é o homem,
através da face mais íntima que o constitui e o fundamenta: o sexo. Entretanto, para
Foucault o sexo não revelaria nossa face mais íntima, mas sim, uma das nossas faces, já
que Foucault não vê o sexo como um ponto fixo que guarda a chave originária, sobre o
que é o homem. O homem pintado por Foucault não se restringe ao que designam como
sexualidade, o homem foucaultiano é múltiplo, plural, constituído a partir de uma
miscelânea de elementos que conjuntamente o revela.
A sexualidade para Foucault tem sido historicamente, uma confluência de todas
as tentativas de falar sobre o sexo, pelo viés da repressão, desde a Idade Média até os
dias atuais, com seu ápice no século XIX. A sexualidade é resultado da estratégica inter-

25
relação saber, poder e prazer. Foi através dessas instâncias que a “scientia sexualis” foi
instaurada como um dispositivo que não trata do sexo tendo em vista o prazer pelo
próprio prazer, como supunha, por exemplo, a “ars erotica”. Mas sim, o prazer envolto
de técnicas disciplinares e conduzido por discursos científicos possibilitados por
relações de poder essencialmente estratégicas.

Diz-se, frequentemente, que não fomos capazes de imaginar novos prazeres.


Pelo menos, inventamos um outro prazer: o prazer da verdade do prazer, prazer
de sabê-la, exibi-la, descobri-la, de fascinar-se ao vê-la, dizê-la, cativar e
capturar os outros através dela, de confiá-la secretamente, desalojá-la por meio
de astúcia; prazer específico do discurso verdadeiro sobre o prazer.
(FOUCAULT, 2001, p. 69).

Podemos perceber, portanto, que o problema para Foucault é o de compreender,


por que no Ocidente, a questão da verdade tem sido constantemente relacionada com a
temática do prazer, ou seja, os discursos emergentes sobre a sexualidade têm estatuto de
verdade, porque é no âmbito da ciência que eles vêm sendo elaborados, logo, como a
ciência é historicamente para nós, o lugar em que se fabrica a verdade, não seria
diferente quando o assunto fosse a verdade do sexo. Além do que, o sexo guardaria
aquele segredo originário sobre nós mesmos, e que só teríamos acesso, a partir da nossa
fala e com o devido auxílio de um especialista. Para Foucault a sexualidade é uma
construção discursiva porque é um conjunto ordenado de palavras ditas e não ditas,
expressas na “scientia sexualis” com capacidade de sujeição sobre os indivíduos, a
partir da produção de verdade.
Contudo, vale ainda dizer que Foucault ao fazer da sexualidade um objeto
histórico de investigação, deseja apontar-nos que é preciso rever o que concebemos por
sexualidade. Após as denuncias de Foucault, a sexualidade até então, conhecida por nós,
deixou talvez, de exercer o papel daquilo que mais nos traduz. Mas a sexualidade é um
saber proporcionado pelas relações de poder inerentes ao discurso científico. Se temos
acesso a um discurso sobre a sexualidade, esse discurso é certamente oportuno, pois
garante poder e controle para quem os fabrica. A vontade de saber sobre o sexo não nos
garante a liberdade e o gozo que tanto almejamos, pelo contrário, torna nosso corpo
dócil e limitado e, sobretudo, reféns dos padrões comportamentais, por conta dos efeitos
que o discurso da sexualidade exerce sobre nós.

26
3. Por uma nova perspectiva do poder

Trata-se portanto de, ao mesmo tempo, assumir outra teoria do poder, formar
outra chave de interpretação histórica; e, examinando de perto todo um
material histórico, avançar pouco a pouco em direção a outra concepção do
poder. Pensar, ao mesmo tempo, o sexo sem a lei e o poder sem o rei.
(FOUCAULT, 2001, p. 87).

Historicamente não nos faltam razões para vincularmos o poder à repressão, uma
vez que as grandes instituições e seus aparelhos de dominação vêm se desenvolvendo e
se destacando cada vez mais, seja pela ascensão contínua das múltiplas formas de
controle, ou pela diversidade das modalidades de sujeição. Nos impondo, e
proporcionando assim, uma interpretação única e constante da noção de poder, pautada
na rigidez da autoridade. De modo que o poder tem sido representado apenas na figura
do Monarca, do Estado, ou de quem detém a lei. Logo, o poder se torna algo que se
almeja, porque nos colocaria numa situação privilegiada em relação à maioria. O poder
que até então temos conhecimento e experimentamos, ao longo da história, se apresenta
a nós como aquilo que regula, ordena e, sobretudo oprime nossas condutas dentro de um
campo de ação. Entretanto, para Foucault é preciso reinventar o que, por costume,
concebemos como poder, precisamos romper com a concepção engessada que temos do
poder, que estritamente delimita, e partirmos para uma nova perspectiva do poder que
também produz, em detrimento do poder que somente restringe. Ora, partindo do que
foi exposto até então, acerca da vontade de saber e sobre o caráter discursivo da
sexualidade, direcionemos nossas últimas considerações para o que de fato permeia as
questões anteriormente lançadas: as relações históricas entre o discurso da sexualidade e
o poder.

3.1 O poder-saber e a sexualidade

Durante muito tempo acreditou-se que a investigação filosófica foucaultiana se


restringia a uma espécie de análise dos saberes e do conhecimento. Ora, essa “crença”
não é descabida ou sem propósito, uma vez que Michel Foucault em seus primeiros
escritos, elaborou essencialmente, questões que demonstraram seu interesse, por
exemplo, pelas ciências humanas e também, pelas condições e critérios que tornam, ou
possibilitam um discurso ser científico ou não. Ou seja, as inquietações de Foucault
estavam em torno, das ciências que tomam o homem como objeto de conhecimento, e

27
do modo como historicamente estabelecemos e distinguimos um saber como verdadeiro
ou falso. Dessa maneira, caracterizando seus primeiros textos como voltados para o
saber científico e, por conseguinte questionando o estatuto de verdade que atribuímos à
ciência. Uma das obras que traduz esse primeiro momento de Foucault é A Arqueologia
do Saber (1969) em que são lançadas nesse livro, as bases para se pensar o estudo
científico das culturas e sociedades através de seus vestígios e discursos. Entretanto,
apesar das evidências em algumas obras de Foucault de haver uma análise histórica dos
saberes, o intento fundamental de Foucault é em suma, o fenômeno do poder. Ora, é
sobre tal fenômeno e sua inter-relação com o discurso da sexualidade que iremos
dedicar nossas derradeiras considerações acerca do pensamento foucaultiano. Com este
filósofo a noção de poder não somente traduz uma forma distinta de se pensar o que é o
poder, mas vai além de uma nova teorização, ao afirmar que as relações de poder são
relações típicas e inerentes a vida em sociedade. Assim, Foucault de algum modo
desmistifica o poder como uma coisa, ou algo a ser conquistado e trata-o como um jogo
de estratégia10 cuja dinâmica pode ser representada através de lutas específicas, que
podem multiplicar suas formas e se renovar constantemente.
Portanto, podemos perceber que o poder para Foucault não tem sede única, nem
tampouco um ponto de partida fixo. O poder nos atravessa e, dessa maneira, determina
como pensamos e agimos e, sobretudo como nos comportamos sexualmente. A vontade
de saber sobre o sexo é também vontade de poder, de modo que o discurso criado sobre
a sexualidade sempre esteve envolto das relações de poder, relações estas, que
historicamente controlam e oprimem o sexo. Porém, o que iremos tratar aqui é
exatamente um viés contrário ao que concebemos tradicionalmente por poder, uma vez
que estamos habituados a pensar o poder somente em sua instância punitiva e
repressora. Para Foucault é preciso fazer uma analítica do poder, ou seja, saber quais
instrumentos o torna possível e qual o seu campo de ação, e assim, entender porque só
conhecemos a face negativa do poder.
Ainda assim, precisamos de alguma forma compreender ou nos aproximar, do que
__________
10
Foucault faz uma sutil e importante distinção entre o que ele chama de estratégia e a dominação.
Segundo ele, a estratégia apesar de se assemelhar à dominação no instante em que um indivíduo tenta
determinar a conduta de outro, difere, no momento em que essa tentativa de condução não é nociva ou
perigosa. Na estratégia há consentimento mútuo e possibilidade de alteração e inversão nas relações de
poder, na dominação há imposição e imobilidade, e isso parece-nos irreversível.

28
é o poder, desta relação de forças que segundo Foucault, perpassa singularmente todas
as relações estabelecidas em sociedade; determinando, condicionando e, especialmente
afetando nossas escolhas, gostos, discursos e gestos. Continuamente, no percurso
histórico do pensamento ocidental, o poder esteve vinculado e representado, somente
como mero reprodutor da força bruta, da proibição e expressão da violência. Porém, se
faz necessário entender que apesar do poder indicar ou significar a sobreposição entre
um indivíduo e o outro, a natureza do poder não é apenas repressora.

Quando se define os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção


puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz
não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta uma noção
negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou.
Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer
não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se
mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força
que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma
saber, produz discursos. (FOUCAULT, 1979, p. 8).

O interessante é notarmos que o poder também produz e incita, e por isso não é
unicamente repressor. Esta noção de poder, tratada exclusivamente como proibição ao
longo da história do pensamento em nossa sociedade, seria essencialmente insuficiente.
Foucault, ao tentar compreender porque se concebeu de maneira tão rasa a dinâmica do
poder, quer em último caso pensar como de maneira tão veemente, se tomou o poder
somente no âmbito do negativo, e dessa forma comprometendo significativamente, o
modo como lidamos historicamente com o poder e suas nuances.
O Convite foucaultiano é que nos aventuremos em busca de uma genealogia do
poder, ou seja, de uma análise e averiguação histórica do que consiste a problemática do
poder, evidenciando sua relação íntima com o saber da sexualidade. Se Michel Foucault
nos apresenta uma nova perspectiva do poder, sob uma ótica polimorfa, ou seja, o poder
visto como múltiplo, como forma de relação, ou ainda uma relação de força com outras
forças, diferenciando-se de uma concepção vertical ou unilateral, é porque Nietzsche
possibilitou esta interpretação, este caminho, na sua obra Vontade de Poder. Nos
mostrando que todos os seres, vivem sob a égide do poder, num mundo constituído
fundamentalmente de relações de poder, em que a vida aspira sua manifestação máxima
de potência e se faz a partir das micro-lutas, dos embates, dos confrontos e
enfrentamentos naturais entre forças que querem vencer em consonância com o prazer,
oferecendo-nos assim um poder de cunho positivo, criativo, renovador e condutor de

29
uma nova possibilidade, de uma nova maneira e, sobretudo, de uma nova vontade, que
em última instância, possa nos reinventar.
A proposta foucaultiana é que para nos aproximarmos melhor dessa face um tanto
quanto curiosa de se encarar o poder, de fato, se faz necessário certo distanciamento, do
modo tradicional de pensarmos o poder como soberano, ou mesmo que esses poderes
são derivados de um poder específico, ou que partem de um ponto central. Mas sim, o
que se percebe com esta maneira distinta de se analisar o poder é um emaranhado de
poderes onde a horizontalidade é o espaço para que estas relações plurais ganhem corpo.

Uma sociedade não é um corpo unitário no qual se exerceria um poder e


somente um, mas é, na realidade, uma justaposição, uma ligação, uma
coordenação, uma hierarquia também, de diferentes poderes, porém diferentes
poderes que permanecem na sua especificidade; (...). Portanto, a existência de
região de poder; a sociedade é um arquipélago de poderes diferentes.
(FOUCAULT, 1981, p. 26).

O poder enquanto relação de força está infiltrado nas relações de modo geral. E
assim, passa pelos dominados tanto quanto pelos dominantes. E o que tem haver afinal o
poder com o saber? É o que Foucault nos lança como questionamento em A Vontade de
Saber; que vontade de saber é essa? Mais especificamente, por que se quer saber tanto
acerca do sexo, da sexualidade humana? Podemos arriscar que não é um saber gratuito,
mas sim intencional e dominador, para gerir e controlar a vida em sua multiplicidade.
Assim, na medida em que o poder é exercido o saber é regulamentado. Não há como
separar a ciência das relações de poder, de modo que os discursos e enunciados que
alicerçam a construção dos saberes científicos, seja do que é disseminado como padrão,
ou como periférico, o poder participa. Foucault quer nos dizer que o sujeito que conhece
não é livre por seu conhecimento, mas o conhecimento ao qual tem acesso, só tem
acesso por existir uma face do poder que lhe permite isso. Daí a complexidade do
poder-saber que é instaurado entre técnicas e estratégias.
A ideia de saber ou conhecer, para poder, e do poder permitir e ditar os discursos
dos saberes é para que sigamos um movimento; a tendência de convergirmos para uma
homogeneização. Querem nos dizer, implantar, educar no que diz respeito também à
nossa sexualidade. E para que possam gerir nossa sexualidade, dizer o que devemos
escolher e ser, não houve contenção de mecanismos, de modalidades de subjetivação, de
instituições modeladoras de comportamento.

Se a sexualidade se constitui como domínio a conhecer, foi a partir de relações


de poder que a instruíram como objeto possível; e em troca, se o poder pôde

30
tomá-la como alvo, foi porque se tornou possível investir sobre ela através de
técnicas de saber e de procedimentos discursivos. (FOUCAULT, 2001, p. 93).

Foucault nos provoca a pensar que nossos discursos são resultados de um


condicionamento ao que devemos conhecer e gostar como verdade. E se nos permitem
podemos ir além desta asserção; para Foucault a verdade não existe de modo natural,
mas é oriunda de jogos de poder aos quais nossos discursos estão submetidos. Há em
cada época ou momento histórico o que Foucault chama de dispositivo, uma estrutura,
como já mencionamos anteriormente, que detém um conjunto de elementos
heterogêneos, a saber; discursos, instituições, leis, enunciados científicos e proposições
filosóficas, que absorvem a população e impõe dessa maneira, enunciados e
comportamentos no que diz respeito à sexualidade. O alerta ou a denúncia foucaultiana
é que nossa vida em sociedade tem por base o controle, a disciplina, somos coordenados
por um campo restrito de ideias onde nossos pensamentos, praticas e fala, são produtos
do poder, poder este que dita nossa verdade e cria nossa sexualidade.

A que se deve obedecer, a que coação estamos submetidos, como, de um


discurso a outro, de um modelo a outro, se produzem efeitos de poder? Então e
toda essa ligação do saber e do poder, mas tomando como ponto central os
mecanismos de poder, é isso, no fundo, o que constitui o essencial do que quis
dizer. (FOUCAULT, 2003, p. 54).

Percebamos, portanto que o objeto da filosofia de Foucault é a história dos


mecanismos de poder e da maneira como eles se engendram. E como se averigua as
instâncias do poder no tecido social? Para Foucault, é na produção de verdade,
entendendo a verdade como um conjunto de procedimentos e de enunciados, que
construídos se dão a cada instante, e que se disseminam através dos discursos, fazendo-
nos entender e enxergar os efeitos do poder que nos une e nos ata. É na interface do
saber e do poder, da verdade e do poder que a problemática foucaultiana ganha fôlego.
Enfim, o que Foucault nos mostra é que esta face do poder, que lhe interessa, deve ser
vista como mecanismo, procedimento e, sobretudo como técnica. O poder encarado
como técnica é passível de invenção e aperfeiçoamento e, conseguintemente de melhor
rendimento. O aspecto positivo para Foucault, em última instância, é o alcance que o
poder pode engendrar e as técnicas que pode desenvolver, para se obter e manter aquilo
que se tem. Talvez pensar a noção de poder na perspectiva positiva proposta por
Foucault seja uma ironia, para que percebamos que o que valoramos na nossa sociedade
é o anseio pelo poder repressor, em detrimento do poder criativo e construtivo.

31
No entanto, não podemos deixar de esclarecer, que essa perspectiva positiva do
poder, analisada por Foucault, não significa dizer que o poder é algo bom, ou que
contém a qualidade do que é bom e benevolente, até porque a problemática trazida por
este filósofo, sobre as nuances do poder, não diz respeito ao juízo de valor que pode ser
associado a este. Mas a questão acerca do aspecto positivo do poder, que especialmente
interessa a Foucault é a disposição e a capacidade de cumprir e desempenhar o seu
dever, o seu papel, ou seja, o poder é tratado enquanto relação positiva, porque produz e
fabrica aquilo que lhe é devido. No caso, o encargo do poder é produzir saberes e, mais
especificamente, o saber sobre o sexo. Daí Foucault apontar a relação permanente e
mútua entre saber, poder e sexualidade. A sexualidade enquanto resultado da construção
de um saber científico está sujeita às relações de poder, que são próprias ao
conhecimento. O poder ao produzir conhecimento, produz também indivíduos, uma vez
que determina a forma como pensamos e a maneira como podemos agir dentro de uma
arena restrita de possibilidades. Fabricando assim, indivíduos úteis e dóceis, logo, mais
fáceis de serem manobrados. Ainda assim, a dinâmica positiva do poder investida sobre
a sexualidade é o que Foucault chama de produção dos discursos. Nesse aspecto o poder
é hábil, favorável e também lucrativo ao produzir e a incitar enunciados sobre o sexo,
que seriam vantajosos para um grupo restrito de indivíduos, que querem saber para
poder. Querem saber para regular, normalizar e adequar.
Contudo, o poder para Foucault não é somente repressor, porque a repressão é
apenas uma, das múltiplas facetas do poder, entretanto, apesar de ser uma, esta é a face
que se tem mostrado mais marcante para nós, porque a repressão castiga, machuca,
deixa cicatrizes, e cicatrizes não se apagam, tampouco se esquecem. Prova disso é o fato
de não termos conhecimento acerca da alta produtividade que o poder promove em
nossa sociedade, porque estávamos até então, mergulhados na onda de opressão que o
poder muitas vezes nos impõe, nos imprime. A originalidade do pensamento de
Foucault é ter percebido que nossas invenções, criações e o que acreditávamos ser a
nossa liberdade estão na esfera do poder, deste mesmo poder que também reprime.
Estamos então na fronteira entre a produção e a repressão. O que de fato estamos
produzindo? A troco de que nos sujeitamos? Será que poderíamos nos aproximar de um
poder que não só produza conhecimento para subjugar o outro, mas que torne o outro
consciente de suas possibilidades? A intenção de lançar essas questões embasadas na
filosofia de Foucault não é para que tenhamos uma resposta pronta e correta, mas para
que possamos vislumbrar mais questões, mais inquietações, e especialmente, mais

32
resistências11, no sentido foucaultiano da palavra, ou seja, as formas de resistência como
aqueles espaços em que temos para não ceder às técnicas normalizadoras. O poder não é
soberano porque existe a resistência para enfrentá-lo, senão, o poder nos regeria sem
que tivéssemos a menor capacidade de resistir. A resistência seria aí a nossa estratégia
para driblar o estado de dominação e fazer das relações de poder uma dinâmica
contínua.

Não acredito que possa haver uma sociedade sem relações de poder, se as
compreendermos como os meios pelos quais indivíduos tentam guiar,
determinar o comportamento de outros. O problema não e tentar dissolvê-las na
Utopia de uma comunicação perfeitamente transparente, mas dar ao próprio eu
as regras da lei, as técnicas de controle, e também a ética, o ethos, a prática de
si, o que permitiria esses jogos de poder serem jogados com o mínimo de
dominação. (Segundo Foucault, 1984, citado por OKSALA, 2011, p.86)12

Contudo, nossa intenção neste trabalho, é que frente a um panorama filosófico-


histórico trazido por Michel Foucault possamos refletir um pouco sobre as evidências e
padrões que organizam o modo de pensar e agir que caracterizam nossa sociedade,
sobretudo no que diz respeito ao saber sobre o sexo. Talvez o pensamento de Foucault
suscite ou nos remeta a uma ideia exacerbada de revolução, anarquia ou na mais rasteira
das proposições, de libertinagem. Porém, ao nos colocarmos no lugar de investigar um
pouco mais, percebemos que Foucault não nos propõe soluções, receitas; provavelmente
daí que surjam as incompatibilidades, críticas, e acusações de uma filosofia meramente
criticista, depreciativa. No entanto, este filósofo quer fazer assumidamente a história dos
problemas. Portanto, compreende-se que estamos diante de um pensamento de cunho
esclarecedor, tamanha é a habilidade de Foucault, quando trata de algo que fatalmente
atinge parte duma sociedade; que é a intolerância social, o desrespeito com uma
modalidade de vida diferente. O pensamento de Foucault parece estar voltado para as
rupturas, para os movimentos de resistência, para as alternativas, para as minorias e
isso, prejudicaria diretamente, tal qual um boicote, as nocivas amarras que insistem em
nos enlaçar a um poder pejorativo e à ferrenha tentativa deste, de nos aplicar técnicas de
__________
11
A resistência para Foucault coexiste ao poder. Quando Foucault afirma que não há sociedade sem
relações de poder, simultaneamente ele diz, que não há relações de poder sem resistência. A resistência
assume um papel de possibilidade de transformação da tendência determinista do poder. Poder e
resistência estabelecem entre si uma relação estratégica.
12
FOUCAULT, Michel. “ The ethic of care for the self as a practice of freedom”, 1984. In: OKSALA,
Johanna. Como ler Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 86.

33
controle e dominação. O problema é que apesar de estarmos frente a algumas denúncias
e, não podermos mais nos resguardar na alienação, continuamos à deriva, continuamos
em alguma medida os mesmos, porque não cedemos voluntariamente espaço para as
diferenças, em última instância, não cedemos espaço à emancipação e recaímos
fatalmente na mesmice.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dessa pesquisa, nossa despretensiosa intenção, foi a de nos


aproximarmos um pouco do pensamento de Michel Foucault, no que diz respeito às suas
considerações sobre a noção de sexualidade. Para tanto, foi preciso uma laboriosa e
cuidadosa investigação, que nos permitisse uma constante interação com alguns
conceitos que permeiam a análise da sexualidade proposta por Foucault, além
evidentemente, do auxílio indispensável de seus comentadores.
Para tal empreitada partimos essencialmente do primeiro volume da história da
sexualidade, A vontade de saber, percorrendo e apreciando seu conteúdo ousado e
envolvente. Além do mais, foi preciso efetuar a difícil tarefa de delimitar o que
queríamos de fato trazer como reflexão nesse trabalho, a saber, a análise da construção
do discurso da sexualidade, uma vez que ao estudar Foucault, exige-se de seu leitor uma
postura interpretativa, um tanto quanto dinâmica, já que os conceitos e princípios
trazidos ou explanados pelo filósofo, estão entrelaçados intimamente com outros tantos
conceitos, de modo que somos conduzidos por seu estilo a nos debruçarmos e
refletirmos sobre toda uma conjuntura conceitual, e não sobre um conceito apenas.
Ainda assim, se queríamos ao menos traduzir o que significa, por exemplo, a
sexualidade para Foucault, tivemos que tomar não só o conceito de sexualidade em si
mesmo, mas os pressupostos que tornaram e definiram essa sexualidade, a saber: as
relações de poder, o sujeito e o conhecimento científico. Ou seja, quando nos deparamos
com o pensamento de Foucault, além das dificuldades habituais na lida com o texto
filosófico, encontramos aí um convite para se pensar não só as inter-relações
conceituais, a ideia, ou a teoria, mas também refletirmos sobre o reencontro, se
podemos dizer assim, desses conceitos com a prática, com as coisas, com o mundo, em
última instância, no encontro do homem com as instâncias que estão ao seu redor.
Com Foucault, tivemos a possibilidade de perceber através de seu recurso à
história, seja pela arqueologia ou pela genealogia, que a sexualidade concebida a partir
do século XIX é uma construção discursiva oriunda das relações de poder. Vimos
também que a emergente ciência do sexo, que afirmava haver uma inibição e uma
repressão sobre nossa sexualidade, era ela mesma um agente controlador do sexo. Muito
embora, para Foucault, esse controle só era possível, porque anteriormente e
primordialmente, houve um intenso e constante estímulo sobre o indivíduo, para que
este enunciasse sobre sua sexualidade.

35
Concluímos então, que a tese central de Foucault ao historicizar a sexualidade é,
portanto, combater a hipótese repressiva, ao afirmar que o sexo não foi somente e
fundamentalmente reprimido pelas instâncias de poder, como nos conta as tradicionais
teorias sobre sexualidade, mas sim, que estas instâncias de poder deram condições para
que esta sexualidade fosse construída enquanto saber. Daí a ideia do poder positivo
sugerida por Foucault, que o poder não só reprime os discursos ou práticas sexuais, mas,
sobretudo os produzia. Foi através da proliferação dos discursos, do exame cauteloso do
que cada indivíduo enunciava acerca de suas práticas sexuais, que a sexualidade pôde se
consolidar enquanto ciência do sexo. Podemos notar desse modo, que o poder, ou
melhor, as relações de poder, produzem e lançam as condições para o conhecimento,
conhecimento este, que cria sujeitos ao inventar novas formas de classificação que
ditam e diferem os comportamentos normativos, do patológico, assim, interferindo na
maneira como cada indivíduo se comporta e pensa sobre si mesmo e sobre o outro,
quando a questão é a sexualidade.
Em suma, o que tentamos fazer aqui, mesmo que superficialmente, foi nos
aproximar da pergunta: por que se quer saber sobre o sexo? A partir da análise
foucaultiana acredita-se que essa vontade de saber não é gratuita ou ingênua, nem
tampouco serviria para nos libertar ou ainda nos colocar frente à verdade sobre nos
mesmos, por meio do sexo. Para Foucault, a vontade de saber revela a intenção de
controle e dominação que o saber proporciona sobre aquilo que investiga enquanto
objeto, no caso, o homem e seu sexo. O que Foucault quer nos dizer é que não existe
uma sexualidade natural, essencial ou verdadeira que devemos tratar de descobrir para
enfim sermos livres, mas, que a sexualidade enquanto tal é um discurso científico
construído e proveniente de certas convenções históricas e culturais que modelam e
padronizam as formas como devemos sentir prazer.

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