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Observação Participante e Diário de Campo: quando utilizar e como analisar?

Chapter · April 2021

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Juliana Loureiro de Almeida Campos Taline Cristina Silva


Federal University of Rio de Janeiro Universidade Estadual de Alagoas
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Ulysses Paulino de Albuquerque


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OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE
E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO
UTILIZAR E COMO ANALISAR?

Juliana Loureiro Almeida Campos,


Taline Cristina da Silva, Ulysses Paulino de Albuquerque

A pesquisa qualitativa tem sua origem nas Ciências Sociais e


constitui uma abordagem interpretativa que se preocupa em
entender os significados que as pessoas dão a certos fenômenos que
ocorrem dentro de seus contextos sociais (Snape & Spencer 2003).
A tradição antropológica da pesquisa qualitativa fez com que esta
seja conhecida muitas vezes como pesquisa etnográfica (Triviños
1987), a qual busca compreender e descrever algum grupo social,
suas crenças e práticas culturais por meio da imersão do pesqui-
sador no contexto social a ser investigado (Snape & Spencer 2003).
Entretanto, outros autores preferem considerar a etnografia como
parte da pesquisa qualitativa e não como sinônimo (Richardson et
al. 2012; Krefting 1991).
Na investigação qualitativa, a coleta e análise dos dados
devem ser preferencialmente realizadas de maneira simultânea, de
forma que a análise acompanhe o processo de coleta de informações
desde o início, norteando assim o trabalho de campo (Pineda et al.

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2011). É comum que os conceitos e hipóteses sejam desenvolvidos e
revisados ao longo do processo de pesquisa. Os métodos qualitati-
vos utilizados para coletar dados são diversos e envolvem entrevis-
tas, métodos participativos, história oral, pesquisas em arquivos his-
tóricos, interpretação de fotografias e vídeos, entre outros.
Nesse capítulo, iremos nos deter na abordagem de dois méto-
dos muito utilizados nesse tipo de pesquisa: a observação partici-
pante e o diário de campo. Nós discutiremos quando esses métodos
devem ser utilizados e como os dados coletados podem ser analisa-
dos e apresentados, bem como as vantagens e desvantagens do uso
de cada um deles.

A observação participante

Antes de definirmos em que consiste a observação partici-


pante, consideramos pertinente introduzir brevemente o conceito
de observação. Segundo Richardson et al. (2012) a observação é o
exame minucioso sobre um fenômeno no seu todo ou em algumas
de suas partes, é a captação precisa do objeto examinado.
Existem duas maneiras de executar a observação dentro de
uma abordagem qualitativa de pesquisa: a observação não partici-
pante e a observação participante. Também chamada de observação
direta, na observação não participante o investigador não se insere
em um grupo social como se fosse membro do grupo observado,
apenas atua como espectador atento, procurando ver e registrar o
máximo de ocorrências que interessa ao seu trabalho (Richardson
et al. 2012). De forma contrária, na observação participante o obser-
vador não é apenas um espectador. O pesquisador se une a cultura

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estudada para registrar ações, interações ou eventos que ocorrem,
permitindo não só que os fenômenos sejam estudados à medida que
surgem, mas também oferecendo ao pesquisador a oportunidade de
obter informações por meio da experiência dos fenômenos por si
mesmos (Ritchie 2003). O observador participante tem mais condi-
ções de compreender os hábitos, atitudes, interesses, relações pes-
soais e características da vida diária da comunidade do que o ob-
servador não participante (Richardson et al. 2012). Nesse sentido,
Bernard (2006) destaca a importância de o pesquisador realizar uma
imersão profunda no grupo estudado, estabelecendo, dessa forma,
relações de confiança que podem facilitar o trabalho da observação
participante. Para Minayo et al. (2002), a importância dessa técnica
está no fato de permitir captar diversas situações ou fenômenos que
não são obtidos por meio apenas de perguntas, uma vez que o pes-
quisador vivencia o dia a dia da cultura estudada.
Uma questão importante com relação a observação participan-
te é que muitos pesquisadores creem erronemanente na ideia de que,
durante o trabalho de campo, existe a necessidade de que os mesmos
ajam e se comportem da mesma forma que o grupo cultural estudado.
Por exemplo, não é porque você está estudando um grupo indígena
que você deve se comportar como um indígena. Pelo contrário, esse
tipo de comportamento pode soar artificial e até causar um distan-
ciamento por parte do grupo. O importante é ser aceito no ambiente
de pesquisa e adquirir a confiança do grupo a ser estudado. Whyte
(1943) traz um ótimo exemplo desse tipo de atitude. Tentando se ajus-
tar ao comportamento do grupo urbano que estudava em Boston,
Estados Unidos, o pesquisador entrou em uma roda de conversa na
qual o grupo falava palavras obscenas e vulgares. O mesmo começou,
então, a agir e falar da mesma forma com que o grupo falava. Whyte

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(1943) relata que todos olharam para ele, surpreendidos, e um deles
falou que não esperava que ele falasse desse jeito, insistindo que o
grupo queria que ele continuasse a ser diferente deles. O pesquisador
percebeu que não havia expectativa para que ele se tornasse alguém
exatamente igual ao grupo cultural estudado, e que as pessoas esta-
vam satisfeitas com ele porque o viam diferente. Em sua obra, Whyte
(1943) argumenta que, na observação participante, é preciso aprender
quando perguntar e quando não perguntar, assim como deve-se saber
que tipo de pergunta pode ser feita. Richardson et al. (2012) apontam
que o fato de o pesquisador se sentir “tão participante” pode levar ao
esquecimento, por parte do mesmo, sobre seus objetivos de pesquisa,
negligenciando-os, involuntariamente, e perdendo a objetividade do
trabalho científico. Não raro essa falta de objetividade leva ao pesqui-
sador a observar os fenômenos não a partir da perspectiva do acadê-
mico (do pesquisador), mas do integrante da cultura com a qual inte-
rage, enviesando as suas interpretações.

Coletando os dados por meio da observação participante

Bernard (2006) acredita que o maior desafio da observação


participante é o início dela, ou seja, a chegada e instalação do pes-
quisador dentro de uma cultura. O autor sugere que a escolha de um
grupo que se mostre aberto e de fácil acesso irá facilitar o processo
de coleta de dados. Além disso, Richardon et al. (2012) destacam a
obrigatoriedade do pesquisador apresentar previamente os objetivos
e a justificativa da pesquisa, para que não ocorram dúvidas sobre os
objetivos do estudo e elevar o grau de aceitação do pesquisador pelo
grupo.

98 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


O tempo de permanência necessário para realizar uma boa
observação participante pode variar muito em função dos objetivos
da pesquisa. Bernard (2006) argumenta que provavelmente será ne-
cessário um bom tempo até que o pesquisador se estabeleça dentro
do grupo social, aprenda e domine a língua se for o caso, estabeleça
uma boa relação de confiança, a ponto de poder fazer bons questio-
namentos e receber boas respostas. Por exemplo, Berreman (1962)
precisou de seis meses para que os moradores da aldeia Sirkanda,
na Índia, se sentissem confortáveis e realizassem sacrifícios animais
na sua frente, uma prática comumente realizada pelo grupo. Por sua
vez, Yu (1995) passou quatro meses como observador participante
em um restaurante chinês para observar as diferenças nas percep-
ções de empregados chineses e não-chineses com relação a um bom
serviço, remuneração adequada e as funções administrativas.
Para que a observação participante atinja rigorosamente os
objetivos da pesquisa, é importante que o pesquisador elabore cui-
dadosamente suas anotações do fenômeno observado, descrevendo
ao máximo todos os acontecimentos percebidos (Selltiz et al. 1987).
Portanto, antes de iniciar a observação, o primeiro passo é
escolher as formas de registro de tais observações. Mais adiante dis-
cutiremos o diário de campo e notas de campo como instrumentos
bastante adequados para o registro dessas percepções, permitindo
a organização dos dados da forma que parecer mais conveniente ao
observador.
A fotografia é um ótimo instrumento de registro e representa
parte da experiência de mundo do fotógrafo a partir de sua percep-
ção inicial, podendo assumir posteriormente novas interpretações
do grupo social que é fotografado (Soilo 2012). Assim, as fotografias
não só auxiliam o pesquisador a compreender a cultura estudada,

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como também podem permitir que as pessoas estudadas interpre-
tem o próprio comportamento ou fenômeno que é objeto de estudo
do pesquisador (Harper 2002). Um ótimo exemplo do uso da foto-
grafia para registrar dados e comportamentos sociais é a obra de
Malinowski, “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, publicada em
1922, que consiste no relato do trabalho de campo do antropólogo
nas Ilhas Trobiand ao estudar os grupos humanos que lá habitavam
(ver Malinowski 1922).
Outra forma de registro inclui a utilização de gravadores de
som e filmadoras, lembrando sempre de solicitar a permissão de uso
por parte dos observados. Recomendamos a utilização de gravado-
res sempre que houver a necessidade de registrar uma conversa ou
um diálogo, já que seu uso permite que a conversa flua livremente
e sem interrupções. O vídeo, por sua vez, proporciona o registro de
detalhes que não são capturados por meio de fotografias ou grava-
dores de som (Brigard 1995). Além disso, o vídeo permite que a prá-
tica estudada seja observada em outros momentos, podendo ser in-
terpretada posteriormente ao trabalho de campo (Fuller 2007). No
entanto, é necessário que o pesquisador disponha de recursos finan-
ceiros para a produção do vídeo, visto o alto custo dos equipamen-
tos e a necessidade de contratação de pessoal.

O diário de campo

O diário de campo é um documento pessoal e consiste em


uma forma de registro de observações, comentários e reflexões para
uso individual do pesquisador (Falkembac 1987). Segundo Triviños
(1987), no âmbito das ciências sociais, as anotações realizadas no

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diário de campo podem ser entendidas como todo o processo de
coleta e análise de informações, isto é, compreenderiam descrições
de fenômenos sociais, explicações levantadas sobre os mesmos e
a compreensão da totalidade da situação em estudo. É um docu-
mento que apresenta tanto um “caráter descritivo-analítico”, como
também um caráter “investigativo e de sínteses cada vez mais pro-
visórias e reflexivas”, ou seja, consiste em “uma fonte inesgotável
de construção, desconstrução e reconstrução do conhecimento pro-
fissional e do agir através de registros quantitativos e qualitativos”
(Lewgoy & Arruda 2004).
Destacamos que o diário de campo pode ser empregado em
diferentes tipos de investigações, com diferentes objetivos e formas
de registro. Nas ciências humanas, por exemplo, essa ferramenta
consiste no registro completo e preciso das observações dos fatos
concretos, acontecimentos, sentimentos, relações verificadas, expe-
riências pessoais do profissional/investigador, suas reflexões e co-
mentários. Desse modo, deve ser usado diariamente para garantir
uma maior sistematização e detalhamento possível de todas as si-
tuações ocorridas no dia e das entrelinhas nas falas dos sujeitos du-
rante a investigação ou intervenções.
O estudo etnográfico reside na construção de um diário de
campo. É um exercício que se baseia na observação direta a respei-
to dos comportamentos culturais de um grupo social. É importante
destacar que um etnógrafo pode deter, além do diário de campo, di-
versas notas de campo para anotações sobre as entrevistas e obser-
vações no desenrolar do cotidiano. Enquanto as observações regis-
tradas no diário de campo apresentam uma redação mais livre, nas
notas de campo o pesquisador registra observações de forma a fa-
cilitar a análise dos dados (Arthur & Nazroo 2003). Spradley (2016)

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sugere dois tipos de notas de campo: as condensadas e as extensas.
As notas de campo condensadas envolvem frases pequenas e pala-
vras, se tornando uma maneira prática e rápida de registro de dados.
Por outro lado, as notas de campo extensas devem apresentar textos
mais detalhados, nos quais o pesquisador deve destacar ao máximo
as observações que não foram registradas nas notas de campo con-
densadas. Bernard (1988) recomenda que as notas de campo sejam
codificadas, de modo a reduzir a informação complexa a um con-
junto menor de ideias, tornando possível a localização de padrões
dentro do conjunto de dados coletados.
Nas ciências naturais, o diário de campo, cada vez menos
usado, pode ser útil para fornecer um registro permanente do que
está acontecendo no mundo natural. Como exemplo, temos os diá-
rios de naturalistas famosos que forneceram informações a res-
peito da biodiversidade, como Charles Darwin (ver Darwin 1989).
Quando se refere as reflexões que a experiência do pesquisador em
campo suscitou, esse será o diário de campo íntimo (Weber 2009).
Uma visão do diário de campo como um material que retrata a inti-
midade do pesquisador pode ser vista na publicação do diário pes-
soal de Malinowski (1967), publicado por iniciativa de sua esposa
Valetta Malinowska. Nesse livro encontramos um Malinowski
muito humano e que muitas vezes não fez questão de esconder seus
sentimentos de antipatia e até mesmo de agressividade pelos nativos
com os quais trabalhou. Sem dúvida alguma, a publicação do mate-
rial íntimo do antropólogo gerou muitas discussões sobre o trabalho
de campo, mas que também levou a discussão da dimensão subje-
tiva do pesquisador que encara o desafio de estudar outras culturas
carregando o “fardo” de sua humanidade, portanto, de suas fraque-
zas, desejos, vícios e virtudes.

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Como utilizar o diário de campo

O diário de campo facilita criar o hábito de observar, des-


crever e refletir com atenção os acontecimentos do dia de trabalho,
por essa condição ele é considerado um dos principais instrumentos
científicos de observação e registro. Os fatos devem ser registrados
no diário o quanto antes após o observado para garantir a fidedig-
nidade do que se observa (Falkembach 1987).
Recomenda-se que, para a boa estruturação do diário de
campo, é preciso que o pesquisador saiba que tipo de informação
será necessário registrar. Por exemplo, pode ser importante regis-
trar informações que descrevam o local onde o trabalho de campo
é desenvolvido, quais informações o ajudarão a entender o que se
observa, e que outras informações o pesquisador gostaria de ter ao
analisar suas anotações depois de uma semana, um mês ou um ano.
Angrosino (2007) destaca a importância de registrar os dados de
uma forma organizada e que contenha a maior quantidade de deta-
lhes possíveis, como a descrição do cenário escolhido, o número de
participantes da pesquisa e suas características socioeconômicas, a
cronologia dos eventos (anotar data, local e hora de ocorrência do
evento), descrições dos comportamentos e interações, registros de
conversas e outras interações verbais.
O diário de campo é importante para o processo etnográfico,
para que vários componentes da pesquisa não sejam esquecidos. A
escrita contínua no diário de campo também é importante porque as
perspectivas e interpretações do etnógrafo frequentemente mudam
ao longo da duração do processo de trabalho de campo. Isso ocorre
porque interpretações precoces são muitas vezes norteadas por pa-
radigmas que o pesquisador traz para o campo. À medida que ele

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ou ela passa pelo processo de aprendizagem do sistema cultural em
estudo, eles muitas vezes acham que interpretações posteriores dos
mesmos fenômenos diferem daquelas interpretações anteriores. Por
exemplo, Malinowski (1922) registrou em seu livro: “Imagine your-
self then, making your first entry into the village, alone or in com-
pany with your white cicerone. Some natives flock round you, espe-
cially if they smell tobacco. Others, the more dignified and elderly,
remain seated where they are. Your white companion has his rou-
tine way of treating the natives, and he neither understands, nor is
very much concerned with the manner in which you, as an ethno-
grapher, will have to approach them. The first visit leaves you with
a hopeful feeling that when you return alone, things will be easier.
Such was my hope at least.” (p.4).

Analisando os dados coletados

Após os dados devidamente coletados, é chegada a hora da


análise. Minayo (2000) recomenda a reflexão sobre as finalidades
da fase de análise, que são: estabelecer uma compreensão dos dados
coletados, confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e /ou res-
ponder às questões formuladas, e ampliar o conhecimento sobre o
assunto pesquisado, articulando-o ao contexto social do qual faz
parte. Angrosino (2007) sugere duas formas principais de análise de
dados: a análise descritiva que consiste em decompor os dados, veri-
ficando padrões e regularidades, e a análise teórica que é a explica-
ção dos padrões e regularidades encontrados a partir de um cenário
teórico adotado pelo pesquisador.

104 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Como primeiro passo, sugerimos que o pesquisador transfira
suas notas de campo, gravações de áudio e qualquer outro registro
para um computador. Isso permite que o pesquisador tenha uma
cópia dos seus dados, além de facilitar a localização de qualquer pa-
lavra ou expressão que se deseje rever ou analisar. A seguir, apre-
sentamos algumas formas de análise dos dados coletados, ficando a
critério do pesquisador a escolha da forma que mais considerar ade-
quada, seja em função dos objetivos da pesquisa, seja em função dos
tipos de dados que foram coleados.

Categorias

Trabalhar com categorias implica em agrupar elementos,


ideias ou expressões em torno de um conceito que seja capaz de
abranger tudo isso (Minayo et al. 2002). É a classificação das notas
de campo, agrupando-as em temas (Angrosino 2007). As catego-
rias podem ser estabelecidas antes do trabalho de campo ou no mo-
mento da coleta de dados. No entanto, Minayo et al. (2002) sugerem
que a escolha das categorias seja feita antes do trabalho de campo,
mas também logo após este, dessa forma as categorias poderão ser
comparadas. As categorias estabelecidas antes da coleta de dados
são conceitos mais gerais e abstratos, exigindo uma fundamentação
teórica sólida por parte do pesquisador (Minayo et al. 2002). Por
exemplo, imagine que você, leitor, está investigando a concepção de
natureza dos membros de uma comunidade de pescadores. Antes
da coleta de dados, a categoria estabelecida poderá ser “representa-
ção ambiental”, entendida como a forma com que os indivíduos ex-
ternalizam o que é percebido, influenciada por aspectos biológicos

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e culturais (Silva et al. 2016). Após o trabalho de campo, suponha-
mos que os seguintes trechos das falas dos pescadores tenham sido
registrados:
i) natureza é o rio e os animais que nele se encontram;
ii) a natureza é linda, sem ela nós não existiríamos;
iii) são as árvores com frutos como manga, abacate, mamão,
banana...;
iv) natureza é tudo que foi criado por Deus.
Se fôssemos estabelecer categorias para as frases acima, pode-
ríamos dizer que os trechos i e ii podem ser enquadrados na catego-
ria “visão romântica”, o trecho iii pode pertencer a categoria “visão
utilitarista” e o trecho iv pode pertencer a categoria “visão sagra-
da” de natureza. O próximo passo é relacionar essas categorias com
aquelas definidas antes do trabalho de campo, que no nosso caso foi
a categoria geral “representação ambiental”. Nesse sentido, o pesqui-
sador pode se esforçar para compreender como os conceitos de na-
tureza são determinados pelos filtros biológicos e culturais detidos
pelos pescadores, procurando aprofundar as contradições entre as
ideias apresentadas.
Essa análise de categorias pode ser apresentada em tabelas ou
quadros. Na primeira coluna podem ser inseridas as categorias, na
segunda coluna serão inseridos os trechos de falas ou diálogos que
abrangem tais categorias, e na terceira coluna podem ser inseridas
as interpretações destes trechos relacionados às categorias elenca-
das, discutindo os achados com base em referenciais teóricos. Caso
prefira, as informações da terceira coluna podem ser transpostas
para um texto corrido logo abaixo da tabela ou quadro.

106 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Método hermenêutico-dialético

Discutido por Rychlak (1986) e Stein (1987) e proposto por


Minayo (2000) como um método de interpretação qualitativa de
dados, o método hermenêutico-dialético sugere que a fala dos atores
deve ser situada em seu contexto socioeconômico e político para que
seja melhor compreendida, e que as categorias sejam formuladas a
partir dessa contextualização. Minayo (2000) propõe três passos
para a execução do método proposto: o primeiro passo é a ordena-
ção dos dados, onde se faz um mapeamento dos dados coletados, en-
volvendo a transcrição do texto, releitura do material e a organiza-
ção dos relatos; o segundo passo é a classificação dos dados por meio
da releitura dos textos e a identificação de informações relevantes,
que darão origem às categorias; o terceiro passo é a análise final, ou
seja, o momento de articular os dados e os referenciais teóricos rela-
cionados ao tema de pesquisa, respondendo as perguntas de pesqui-
sa com base nos objetivos.

Análise de Conteúdo

A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise


das comunicações visando obter, por meio da descrição do conteú-
do das informações, indicadores que permitam inferir conhecimen-
tos relativos às condições de produção/recepção dessas mensagens
(Bardin 1977). A técnica da análise de conteúdo pode ser resumida
como um tratamento da informação contida em mensagens e textos,
e podem ser aplicadas nos mais diversos tipos de conteúdo, como
discursos, documentos, livros, textos de revistas e jornais. Diante da

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 107


diversidade de informações pelas quais essa análise pode ser apli-
cada, vamos nos deter às técnicas direcionadas a análise de conteú-
dos coletados por meio da observação participante e do diário de
campo.
Richardson et al. (2012) destacam a importância de atentar
para características como objetividade, sistematização e inferência
ao realizar a análise de conteúdo. Por exemplo, em uma análise de
conteúdo em forma de categorias, apresentada anteriormente, os au-
tores sugerem que, para alcançar a objetividade, devem ser atingidos
a homogeneidade (não misturar critérios de classificação), a exaus-
tividade (classificar a totalidade do texto), a exclusão (um mesmo
elemento não deve ser classificado em mais de uma categoria) e a
objetividade. A sistematização consiste em aplicar regras consisten-
tes, e a inferência está relacionada com o ato de procurar esclarecer
as causas da mensagem ou as consequências que ela pode provocar.
Os critérios para a organização de uma análise são a pré-a-
nálise, a exploração do material e o tratamento dos dados, a infe-
rência e a interpretação (Bardin 1977). Na fase de pré-análise, é feita
a organização do material, a elaboração das hipóteses e objetivos e
a definição do campo de pesquisa. Durante a descrição analítica,
o material coletado e as informações registradas serão analisados
tendo como base as hipóteses e referenciais teóricos. Essa fase en-
volve a codificação e categorização das unidades de registro, que
podem ser um tema, uma palavra ou uma frase. É uma fase de ex-
ploração do material, que implica em leituras exaustivas, quando se
aplica o que foi definido na fase anterior, inserindo o discurso em
categorias de análise. Por fim, a fase de interpretação inferencial im-
plica em desvendar o conteúdo, voltando-se para a busca de tendên-
cias comuns entre os dados. Os resultados são tratados de maneira

108 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


a serem significativos e válidos, podendo ser submetidos a testes es-
tatísticos, o que não exclui a interpretação qualitativa (Richardson
et al. 2012). As formas de tratamento são diversas, e envolvem o cál-
culo de frequências e porcentagens, análise fatorial, análise de con-
tingência, entre outros (Richardson et al. 2012). Nesta fase são pro-
postas inferências e interpretações dos resultados alcançados. Para
um maior aprofundamento do método de análise de conteúdo, ver
Bardin (1977), Triviños (1987) e Richardson et al. (2012).

Considerações finais

Como vimos neste capítulo, o uso do diário e notas de campo


em associação com a observação participante são instrumentos de
pesquisa importantes para etnobiologia, uma vez que essa lida di-
retamente com grupos humanos e fenômenos da natureza. Estes
métodos permitem que o pesquisador observe e registre, com pro-
fundidade, informações úteis para sua pesquisa. É importante res-
saltar que estas técnicas podem ser facilmente complementadas com
outros métodos de coleta de dados de características qualitativas ou
quantitativas, os quais podem ser encontrados em outros capítulos
desta obra. Finalmente, recomendamos atenção, cautela e muita de-
dicação na utilização desses métodos por parte do pesquisador para
que os resultados das pesquisas etnobiológicas sejam alcançados
com sucesso.

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 109


Agradecimentos

Agradecemos a Springer pela permissão concedida para re-


produção deste texto, publicado no livro Methods and Techniques
in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença:
5032020240143).

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112 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA

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