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moderno. No primeiro, com o papel imenso que representa, o well as morally a monstruous aberration( 1). Não é num terreno
escravo não é senão a resultante de um processo evolutivo natural de "moral absoluta" que precisamos ou devemos nos colocar para
cujas raízes se prendem a um passado remoto; e ele se entrosa fazer o juízo da escravidão moderna. Já sem falar na devastação
por isso perfeitamente na estrutura material e na fisionomia moral que provocará, tanto das populações indígenas 'da América, como
da sociedade antiga. Figura nela de modo tão espontâneo, aparece das do continente hegro, o que de mais grave determinará, entre
mesmo tão necessário e justificável como qualquer outro elemento os povos colonizadores e sobretudo em suas colônias do Novo
constituinte daquela sociedade. lt neste sentido que se compreende Mundo, é o fato de vir a nova escravidão desacompanhada, ao
a tão citada e debatida posição escravista de um filósofo como contrário do que se passara no mundo antigo, de qualquer ele
Aristóteles, que, pondo-se embora de parte a apreciação que dele mento construtivo, a não ser num aspecto restrito, puramente
se possa fazer como pensador, representa no entanto, nos seus material, da realização de uma empresa de comérciQ: um negócio
mais elevados padrões, o modo de sentir e de pensar de uma apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores. E
época. A escravidão na Grécia ou em Roma seria como o salariado por isto, para objetivo tão unilateral, puseram os povos da Europa
em nossos dias: embora discutida e seriamente contestada na
de lado todos os princípios e normas essenciais em que se fundava
sua legitimidade por alguns, aparece contudo aos olhos do con
a sua civilização e cultura. O que isto representou para eles, no
junto como qualquer coisa de fatal, necessário e insubstituível.
correr do tempo, de degradação e dissolução, com repercussões
Coisa muito diferente se passará com a escravidão moderna, que se vão afinal manifestar no próprio terreno do progresso e da
que é a nossa. Ela nasce de chofre, não se liga a passado ou prosperidade material, não foi ainda bem apreciado e avaliado,
tt·adição alguma. Restaura apenas uma instituição justamente nem cabe aqui abordar o assunto. Mas terá sido este um dos
quando ela já perdera inteiramente sua razão de ser, e fora subs fatores, e dos de primeiro plano, do naufrágio da civilização ibérica,
tituída por outras formas de trabalho mais evoluídas. Surge assim tanto de uma corno de outra de suas duas nações. Foram elas
como um corpo estranho que se insinua na estrutura da civilização
que mais se engajaram naquele caminho; serão elas também suas
ocidental, em que já não cabia. E vem contrariar-lhe todos os
principais vítimas ( 2).
padrões morais e materiais estabelecidos. Traz uma revolução,
mas nada a prepara. Como se explica então? Nada mais particular, Muito mais grave, contudo, foi a escravidão para as nascentes
mesquinho, unilateral. Em vez de brotar, como a escravidão do colônias americanas. Elas se formam neste ambiente deletério
mundo antigo, de todo o conjunto da vida social, material e moral, que ela determina; o trabalho servil será mesmo a trave mestra
ela nad:,i mais será que um recurso de oportunidade de que lan de sua estrutura, o cimento com que se juntarão as peças que
çarão mão os países da Europa a fim de explorar comercialmente as constituem. Oferecerão por isso um triste espetáculo humano;
os vastos territórios e riquezas do Novo Mundo. lt certo que a e o exemplo do Brasil, que vamos retraçar aqui, se repete mais
escravidão americana teve na península seu precursor imediato ou menos idêntico em todas elas.
no cativeiro dos mouros, e logo depois, dos negros africanos, que Mas há outra circunstância que vem caracterizar ainda mais
as primeiras expedições ultramarinas dos portugueses trouxeram desfavoravelmente a escravidão moderna: é o elemento de que
para a metrópole como presas de guerra ou fruto de resgates. Mas se teve de lançar mão para alimentá-la. Foram eles os indígenas
não foi isto mais que um primeiro passo, prelúdio e preparação da América e o negro africano, povos de nível cultural ínfimo,
do gra:nde drama que se passaria na outra margem do Atlântico.
lt aí que verdadeiramente renascerá, em proporções que nem o ( 1 ) John Kellis Ingram, S lavery.
mundo antigo conhecera, o instituto já condenado e pràticame:ate ( 2) A Inglaterra também teve papel proeminente no restabelecimento
abolido. da escravidão; e sabe-se que durante séculos seus comerciantes tiveram o
Por este recurso de que gananciosamente lançou mão, pagará quase monopólio do tráfico negreiro, pelo qual a nação chegou até a
a Europa um pesado tributo. Podemos repetir o conceito que ex tomar armas. Ma5 não sofreu tão fundamente os efeitos danosos da escravidão,
porque seu papel foi sobretudo este de intermediário. O trabalho servil nunca
prime a propósito John Kellis Ingram: "Not long after the disap· assentou pé na Inglaterra propriamente.
270 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 271
comparado ao de seus dominadores ( 3). Aqui ainda, a comparaçãrr l!: a esta passividade aliás das culturas negras e indí�ena; no
com o que ocorreu no mundo antigo é ilustrativa. �foste último, Brasil que se deve o vigor com que a do branco_ se 1mpo_s e
predominou inconteste, embora fosse muito reduzido, relativa
a escravidão se forneceu de povos e_ raças que mmtas v_ez�s se mente à das outras raças, a sua contribuição demográfica. O negro
equiparam a seus conquistadores, se na� os superam. Contnbmram
assim para estes com valores culturais de elevado teor. Roma e o índio teriam tido certamente outro papel na formação brasi
não teria sido o que foi se não contasse com o que lhe trouxeram leira, e papel amplo e fecundo, se diverso tivesse sido o �umo
seus escravos, recrutados em todas as partes do mundo conhecido, dacl.o à colonização; se se tivesse procurado neles, ou aceitado
e que nela concentram º. que então havia de _melhor e cultural uma colaboração menos unilateral e mais larga que a do simples
mente mais elevado. Mmto lhes deveu e mmto deles aprendeu esforço físico. :Mas a colonização brasileira se processa num plano
a civilização romana. O escravo não foi nela a simples máquina acanhado; outro objetivo não houve que utilizar os recursos natu
de trabalho bruto e inconsciente que é o seu sucessor americano. rais do seu território para a produção extensiva e precipitada de
um pequeno número de gfneros altamente remunerados no mer
Na América, pelo contrário, a que assistimos? Ao recruta cado internacional. Nunca se desviou de tal rumo, fixado desde
mento de povos bárbaros e semib�r�aros, arrar:ic�?os _ do_ se? o primeiro momento da conquista; e parece que não havia tempo
habitat natural e incluídos, sem trans1çao, numa c1v1hzaçao mte1- a perder, nem sobravam atenções para empresas mais assentes,
ramente estranha. E aí que os esperava? A escravidão no .seu estáveis, ponderadas. Só se enxergava uma perspectiva: a remu
pior caráter, o homem �edu�ido à "mais simples �xpressão, pou';? neração farta do capital que a Europa aqui empatara. A, terra
.
senão nada mais que o urac10nal: Instrumento vivo de trabalho , era inexplorada, e seus recursos, acumulados durante seculos,
o chamará Perdigão Malheiro ( 4). Nada mais se queria dele '. ,e jaziam à flor do solo. O trabalho para tirá-los de lá não pedia
nada mais se pediu e obteve que a sua força bruta, material. grandes planos nem impur:iha jroblcmas co1!1l?lexos: bastava o
Esforço rnuscufar primário, sob a direção e açoite do feitor. Da mais simples esforço matenal. o que se ex1gm de negro e de
mulher, mais a passividade da fêmea na cópula. Num e noutro índio que se incumbiriam da tarefa.
caso, o ato físico apenas, com exclusão de qualquer outro ele Correndo parelhas com esta contribuição que se impôs às
mento ou concurso moral. A "animalidade" do Homem, não a sua
"humanidade." raças dominadas, ocorre outra, este subproduto da escravidão
largamente aproveitado: as fáceis carícias da escrava para a satis
A contribuição do escravo preto ou índio para a fo:°1ação fação das necessidades sexuais do colono privado de mulheres
brasileira, é além daquela �nergia motriz q�ase nu,�a. Nao que de sua raça e categoria. Ambas as funções se valem do ponto
deixasse de concorrer, e mmto, para a nossa cultura , no 7entido de vista moral e humano; e ambas. excluem, pela fom1a com que
amplo em que a antropologia emprega a. expressão; mas e antes se praticaram, tudo que o negro ou o índio poderiam ter trazido
uma contribuição passiva, resultante do simples fato da presença como valor positivo e construtor de cultura.
dele e da considerável difusão do seu sangue, que uma mterven
ção ativa e construtora. O cabedal de c�ltura que traz �onsig� Uma última circunstância diferencia e caracteriza a escra
da selva americana ou africana, e que nao quero subestimar, e vidão americana: é a diferença profunda de raças que separa os
abafado, e se não aniquilad , detu�a-se pelo estatuto social, escravos de seus senhores. Em algumas partes da América, tal
_?
material e moral a que se ve reduzido seu portador. E aponta diferença constituiu, como se sabe, obstáculo intransponível à
aproximação das classes e dos indivíduos, e reforçou por isso
por isso apenas, muito timidamente, aqui e acolá. Age mais como consideravelmente a rigidez de uma estrutura que o sistema social,
fermento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se
lhe sobrepõe ( 5). cm si, já tornava tão estanque internamente. Mas não me ocuparei
<l.:stas colônias, porque entre nós a aproximação se realizou, e,
corno já notei cm outro capítulo, em escala apreciável. Isto con
( 3) Esta observação não seria tão exata com relação a certos indí tudo dentro de limites que apesar de tudo não são amplos, pelo
genas america�os, como os d? :México e do al�iplano andino, se os conqms
_ _
tadores não tivessem, de m1c10 e com ferocidade quase sem precedente, menos até o momento histórico que nos interessa aqui. Existiu
feito tábua-rasa de todos seus valôres culturais.
( 4) A escravidão no Brasil. 3.ª parte, 126. nc·o-africrma, m:iis que qualquer outra coisa, e que se _perdeu a grandeza e
. . .
( 5) Isto é, entre outros, particularmente o caso do �mcretismo reli ,·k:v,1�-�-0 do cristianismo, também não conservou a espontaneidade e riquez:i
gioso que resultou do amálgama �e catolicismo e paganismo '. em �º::s <le culoriJo <las crenças negras em seu estado nativo.
. .
várias, que formaria o fundo rehg10s0 de boa parte <lo Brns1l. Rehg1ao
Formação do Brasil Contemporâneo 273
2i2 Caio Prado Júnior
sempre um forte preconceito discriminador das raças, que se justificar-se, levado por contingências extremas, porém os seus
era tolerante e muitas vezes se deixava iludir, fechando os olhos escrúpulos não foram partilhados pelos brasileiros que o ajudaram,
a sinais embora bem sensíwis da origem racial dos indivíduos e que agiram com a maior naturalidade, como se estivessem no
mestiços, nem por isso deixou de se manter, e de forma bem uso de um direito indiscutível ( 6).
marcada, criando obstáculos muito sériO'S à integraçüo da socie O papel da simples cor na discriminação das classes e no
dade colonial num conjunto se não racial, o que seria mais demo tratamento recíproco que elas se dispensam, reflete-se até nos
morado, pelo menos moralmente homogêneo. Não discutirei aqui usos e costumes legais. Observou Perdigão Malheiro que nos leilões
o preconceito de raça e de cor, nem sua origem; se ligado a de escravos, se os lances "a bem da liberdade" - que são os feitos
certos caracteres psicológicos inatos de ordem estética ou outra, sob promessa de alforria - excluíam em regra qualquer outro,
ou se fruto apenas de situações e condições sociais particul�res. isto era no caso de escravos claros, uma norma absoluta ( 7).
O fato incontestável, aceite-se qualquer daqueles pontos de vista, Acrescenta o mesmo autor que era notória a repugnância contra
é que a diferença de raça, sobretudo quando se manifesta e:n a escravidão de gente de cor clara; e chega até ao exagero de
caracteres somáticos bem salientes, como a cor, vem, se nao concluir que se não fora a cor escura dos escravos, os costumes
provocar - o que é passível de dúvidas bem funda'.11e�ta?as, _ e brasileiros não tolerariam mais o cativeiro. 1! verdade que ele
a meu ver incontestáveis -, pelo menos agravar uma d1scnrnmaçao escrevia isto em 1867, quando a escravidão já perdera muito de
já realizada no terreno social. E isto porque empresta urna marca sua força moral; e que os conceitos citados partem de um escritor
iniludível a esta diferença social. Rotula o indivíduo, e contribui notoriamente simpático à causa da liberdade - seu grande livro
assim para elevar e reforçar as barreiras que separam as classes. não é aliás senão um libelo a favor dela. O seu aepoimento,
A aproximação e fusão se tornam mais difíceis, acentua-se o entretanto, conserva assim mesmo muito do seu valor, e com l?rova
predomínio de uma sobre a outra. o quanto a simples cor atua no sentido de rebaixar os indiv1duos
Isto não exclui, e sabemos que não exclui entre nós, urna da raça dominada; faz entrever também como seria mais dura e
circulação intra-social apreciável, que permitiu aqui a elevação áspera a escravidão quando, como se dava entre nós, à discrimi
a posições de destaque, e isto ainda na colônia, de indivíduos nação social se acrescenta este caráter marcado e iniludível.
de indiscutível origem negra. índia também, está claro; mas' _ o Em suma, verifica-se por tudo que acabamos de ver que na
caso é muito menos de se destacar, porque o preconceito não fui escravidão, tal como se estabelece na América, em particular no
aí excessivamente rigoroso, como no caso do africano. Mas, acei Brasil, de que trato aqui, concorrem circunstâncias especiais que
tando aquela elevação, não se eliminava o preconceito. ContOT acentuam seus caracteres negativos, agravando os fatores moral
nava-se com um sofisma que já lembrei acima, um "branquea mente corruptores e deprimentes que ela, por si só, já encerra.
mento" aceito e reconhecido. Aceitava-se uma situação criada Incorporou à colônia, ainda em seus primeiros instantes, e em
pela excepcional capacidade de elevação de um mestiço particular proporções esmagadoras, um contingente estranho e heterogêneo
mente bem dotado; mas o preconceito era respeitado. Aliás est� de raças que beiravam ainda o estado de barbárie, e que no con
elevação social de indivíduos de origem negra só se admitia nos tacto com a cultura superior de seus dominadores, se abastarda
de tez mais clara, os brancarrões, em que o sofisma do branquea ram por completo. E o incorporaram de chofre, sem nenhum
mento não fosse por demais grosseiro. O negro ou mulato escuro, está 9.io preparatório. No caso do indígena, ainda houve a educação
este não podia abrigar quaisquer esperanças, por melhores que jesmtica e de outras Ordens, que com todos seus defeitos, trouxe
.
fossem suas aptidões: inscrevia-se nele, indelevelmente, o estigma todavia um começo de preparação de certo alcance. Mesmo depois
de uma raça que à força de_ se manter n?s í�fimos degr�us d! da expulsão dos jesuítas, o que desfalcou notavelmente a obra
,,
escala social, acabou confundmdo-se com eles.. Negro ou preto missionária, pois as demais Ordens não souberam ou não puderam
são na colônia, e sê-lo-ão ainda por muito tempo, termos pejora suprir a falta, o estatuto dos índios, embora longe de corresponder
tivos; empregam-se até como sinônimos de "escravo". E o indi ao que deveria ter sido em face da legislação vigente, e cujas
víduo daquela cor, mesmo quando não o é, trata-se como tal. intenções eram justamente de amparar e educar este selvagem
A este respeito, Luccock refere um caso ilustrativo. Necessitando que se queria integrar na colonização, ainda contribuiu para
certa vez do auxílio de dois pretos livres que se encontravam em
companhia, forçou-os, diante de sua relutância e com auxílio de ( 6) Notes, 203.
outras pessoa!!, à ajuda- pedida. Fê-lo, assim o afirma procurando ( 7) A escravidão no Brasil, 3,a Parte, 116.
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manter o indígena afastado nas formas mais deprimentes da escra
ddão; e se n:'.O Ih:, proporcionou f(randcs vantagens e progressos e deplorada-por todos os observadores contemporâneos, nacionais
materiais, concedeu-lhe um mínin\o de proteçã'o e de estímulo. e estrangeiros. Bem como o baixo nível e ineficiência do trabalho
Mas para o negro africano, nada disto ocorreu. As ordens reli e da produção, entregues como estavam a pretos boçais e índios
giosas, solfcitas em defender o índio, foram as primeiras a aceitar, apáticos. O ritmo retardado da economia colonial tem aí uma de
a promover mesmo a escravidão africana, a fim de que os coionos, suas principais causas.
necessitados• de escravos, lhes deixassem livres os movimentos no Este e outros resultados da escravidão e dos elementos que
setor indígena. O negro não teve no Brasil a proteção de nin g uém, para ela concorreram serão analisados, em conjunto com os demais
Verdadeiro "pária" social, nenhum gesto se esboçou em seu favor. fa _tores_ da _vida colonial e de seus costumes, noutro . capítulo.
E se é certo que os costumes e a própria legislação foram com F1care1 aqm apenas na estrutura da sociedade brasileira. No que
relação a ele mais benignos na sua brutaliàade escravista que diz respeito ao escravo e seu estatuto jurídico e social, não creio
em outras colônias americanas� tal não impediu contudo que o que seja necessário insistir num assunto já largamente desenvol
negro fosse aqui tratado com o último dos descasos no que diz vido em outros trabalhos( 8). A colônia acompanhou neste terreno
respeito à sua formação moral e intelectual, e preparação para o direito romano, para quem o escravo é uma "coisa" do seu
a sociedade em que à força o incluíram. Estas não iam além senhor, que dela dispõe como melhor lhe aprouver. As restrições
do batismo e algumas rudimentares noções de religião católíca, a esta regra, e que trazem alguma proteção ao escravo, não são
mais decoradas que aprendidas, e que deram apenas para formar, numerosas. Aliás o "fato" é aqui mais forte que o "direito", em
com suas crenças e superstições nativas, este amálgama pitoresco, geral fora do alcance do cativo; e se houve alguma atenuação
mas profundamente corrompido, incoerente e ínfimo como valor aos rigores da escravidão, tal como resultaria da propriedade
cultural, que sob o nome de "catolicismo''., mas que dele só tem absoluta e ilimitada, ela se deve muito mais aos costumes que
o nome, constitui a verdadeira religião de milhões de brasileiros; foram entre nós, neste terreno, relativamente brandos. Não tanto
e que nos seus caracteres extremos, Quirino, Nina Rodrigues, e corno é hoje voz corrente, opinião que se reporta mais ao último
mais recentemente Artur Ramos, trouxeram à luz da sombra em período da escravidão, posterior à abolição do tráfico africano, e
que um hipócrita e absurdo pudor a tinham mantido. quando a escassez e portanto o preço dos escravos tornavam antie
conómico um tratamento excessivamente brutal e descuidado. Os
As raças escravizadas e assim incluídas na sociedade colonial,
depo�mentos mais antigos que possuímos desmentem, para época
mal preparadas e adaptadas, vão formar nela um corpo estranho
antenor, aquela tradição de um passado mais chegado a nós,
e incômodo. O processo de sua absorção se prolongará até nossos
dias, e está longe de terminado. Não se trata apenas da eliminação ainda viva e por isso dominante. Não encontramos neles nada que
nos autorize a considerar os senhores brasileiros de escravos
étnica que preocupa tanto os "racistas" brasileiros, e que, se
humanos e complacentes; e pelo contrário, o que sabemos dele;
demorada, se fez e ainda se faz normal e progressivamente seni
nos leva a conclusões bem diversas( 9). O que há em tudo isto
maiores obstáculos. Não é este aliás- o aspecto mais grave do é que o escravo brasileiro parece ter sido melhor tratado que em
problema, aspecto mais de "fachada", estético, se quiserem: em
algumas outras colônias americanas, em particular nas inglesas
si, a mistura de raças não tem para o país importância alguma, e francesas. Terá influído aí a índole portuguesa, sobretudo quando
e de certa forma até poderá ser considerada vantajosa. O que amaciada pelo contacto dos trópicos e a geral moleza que carac
pesou muito mais na formação brasileira é o baixo nível destas teriza a vida brasileira( 10). Também o regime patriarcal, de que
massas escravizadas que constituirão a imensa maioria da popu falarei abaixo, abrandará o contacto de senhores e escravos dando
lação do país. No momento que nos ocupa, a situação era natural aqueles um quê de paternal e de protetor dos seus serv�s. Isto
mente muito mais grave. O tráfico africano se mantinha, ganhava parece tanto mais exato que é nas regiões de forn1ação mais
até em volume, despejando ininterrutamente na colônia contin
gentes maciços de populações semibárbaras. O que resultará
daí não poderia deixar �e ser este aglomerado incoerente e des ( 8) Para isto, será sempre principal a obra já citada de Perdigão
conexo, mal amalgamado e repousando em bases precárias que Malheiro, A escravidão no Brasil, que é clássica, e até hoje não foi igua
lada por outra.
é a sociedade colonial brasileira. Certas conseqüências serão mais ( 9) Veja-se em particular o que diz Vilhena, Recopilação, passim.
salientes: assim o baixo teor moral nela reinante, que se verifica ( l _O) �os_ter d�rá do proprietário brasileiro: "Seus hábitos pacíficos
<' sua mclol enc,
entre outros sintomas na relaxação geral de costumes, assinalada _ a t_iraorepetira
11, 312. Sa111t-H1hne
dei� �,m -s_enhor brando, mas indiferente". Voyages,
mais ou menos a mesma coisa.
276 Caio Prado Júnior
Formação do Bra�il Confempor<Íneo 277
recente, onde não se tinham por isso constituído aquelas relações dirá um observador perspicaz como Vilhena_. poucos são os mu
patriarcais, fruto de lenta sedimentação, que vamos encontrar latos, e raros os brancos que nelas �e querem empregar, nem
um rigor mais acentuado no tratamento que se dispensa aos ag_ueles mesmos _ indigentes que em Portugal nunca passaram de
escravos. No momento que nos ocupa, observamo-lo nas duas criados de servir, de moços de tábua(?) e cavadores de ema
regiões cuja prosperidade, e pois grande afluxo de escrav.os, da...; os criados ( que vêm de Portugal) têm por melhor sorte
datavam de pouco, segunda metade ou fins do séc. XVIII: ,o o ser vadio, o andar morrendo de fome, o vir parar em soldado
Maranhão e o Rio Grande do Sul; em oposição às capitanias e às vezes em ladrão, do que servir um amo honrado que lhes
de colonização ou de progresso mais antigo: Bahia, Pemambuco; . paga bem, que os sustenta, os estima, e isto por não fazerem o
Rio de Janeiro. que os negros faze� em outras casas; as filhas do país têm um
Quanto à função desempenhada pela escravidão, ela é, não hm�re tal, que a filha do homem mais pobre, do mais abjeto, a
preciso acrescentá-lo, considerável. Ao tratar da economia da colô mais desamparada mulatinha forra com mais facilidade irão para
nia, já vimos que praticamente todo o trabalho é entre nós servil o patíbulo do que servir ainda a uma duquesa, se a terra as
Mas é preciso distinguir nestas funções da escravidão dois setores houvesse"(l3).
_ No campo é a mesma coisa� nenhum homem livre
que têm caracteres e sobretudo conseqüências distintas: o das pegana da enxada sem desdouro, e por isso, dirá o mesmo Vilhena,
atividades propriamente produtivas e as do serviço doméstico. havendo embora terras abundantes carecem de propriedade até
Apesar da amplidão e importância econômica muito maiores do mesmo aqueles que poderiam ser proprietários pois não tendo
primeiro setor, o último não pode ser esquecido ou subestimado. 150$000 para comprar cada um negro que trabalhe o m1>smo é
Não só ele é numericamente volumoso - pois intervém, a par ser proprietário que o não ser"( 14).
das legítimas necessidades do serviço domestico, a vaidade aos Nestas_ con�ições, não é _de admirar que tão pequena margem
de ocupaçoes dignas se destme ao homem livre. Se não é ou não
senhores que se alimenta com números avultados de servos( 11);
como é grande a participação que tem na vida social da colônia pode ser proprietário ou fazendeiro, senhor de engenho ou lavra
e na influência que sobre ela exerce. Neste sentido, e excluído d�r, não lhe sobrarão senão algumas raras ocupações rurais -
o elemento econômico, ele ultrapassa mesmo largamente o papel feitor, m�s!re d3s engenho�, etc. ( 15); algum ofício mecânico que
do outro setor. O contacto que o escravo doméstico mantém com a escrav1dao nao m�nopohzou e que n3.o se torna indigno dele
seus senhores e com a sociedade branca em geral, é muito maior, pela �r�ncura exc�ssiva_ de sua pele; as funções públicas, se, pelo
muito mais íntimo. E é certamente por ele que se canalizou para contrario, for suf1c1entemente branco; as armas 0u o comércio
a vida brasileira a maior parte dos malefícios da escravidão. Do negociante propriamente ou caixeiro. Nesta última profissão, aind�
pouco que ela trouxe de favorável, também: a ternura e afeti esbarra _com outra �estrição: o co�ércio é I!rivilégio dos "reinóis"
vidade da mãe preta, e os saborosos quitutes da culinária os nascidos no Remo. Os naturais da colónia encontram aí as
afro-brasileira( 12). portas fechadas, não· por determinações legais ou preconceitos de
Assim no campo como na cidade, no negócio como em casa, qualquer
_ natureza, mas por um uso estabelecido de longa data,
o escravo é. onipresente. Torna-se muito restrito o terreno reser e �1��amente guardado pelos primeiros instalados, justamente os
r�mois, que P?� convenção táci�a, mas rig��osa, conservam para
vado ao trabalho livre, tal o poder absorvente da escravidão. E
a utilização universal do escravo nos vários misteres da vida si e seus patncios um monopólio de fato. Os vindos do Reino
escreverá o Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro'.
econômica e social acaba reagindo sobre o conceito do trabalho,
não cuidam em nenhuma outra cousa que em se fazerem senhores
que se torna ocupação pejorativa e desabonadora. "Como todas
ào comércio que aqui há e não admitirem filho nenhum da terra
as obras servis e artes mecânicas são manuseadas por escravos,
a caixeiros por donde possam algum dia serem negociantes; e
( 11) Refere Vilhena que na Bahia chegavam algumas casas a ter 60
a 70 escravos, portas a dentro, servindo a maior parte, como Jogo se vê, ( 13) Recopilação, 140.
mais para ostentação de riqueza e poder dos senhores. :( 14) Recopilação, 933.
( 12) Gilberto Freyre, na sua Casa Grande e Senzala, embora não . ( 15) Na ind ístria pastoril, em particular na dos sertões do Nordeste
faça expressamente a devida distinção entre estes dois setores diferentes do vimos que o trabalho livre é mais comum; mas trata-se de um setor d�
trabalho escravo, refere-se sobretudo e quase exclusivamente a este último. O pouc�s- ocupaç�es, em que a mã�-de-ob1;a é. escassa. Além disto, pelas
s1;1btítulo da sua obra! "for":°ção da família brasileira", e o objetivo prin c?nd1çoes Recu]iares em que se realiza, esta mais ou menos reservada e�clu
c:pal que tem em mira o mdicaram claramente. s1v<.1mente a po,Pulação nativa local.
278 Caio Prad-0 Júnior Formação do Brasil Contemporànen 279
daí_ abrangerem em si tudo que é comércio" (16). Situação muito ao Vaticano (21). Aliás os mestiços são numerosos no clero bra
sén� e prenhe das mais graves conseqüências, sobre que voltarei sileiro. A Igreja sempre honrou no Brasil sua tradição democrática,
abaixo. a maior força com que contou para a conquista espiritual do
Ocidente. O que ocorreu na Europa medieval se repetiria na
. _ Sob�am �inda, para os indivíduos livres da colônia, as pro colonização do Brasil: a batina se tornaria o refúgio da inteli
hssoes liberais - advogados, cirurgiões, etc. São naturalmente
ocupações por natureza de acesso restrito. Exigem aptidão especial, gência e cultura; e isto porque é sobretudo em tal base que se
preparos e estudos que não se podem fazer na colônia, e portanto faria a seleção para o clero. Ele foi assim, durante a nossa fase
re�ursos de certa monta. São por isso muito poucos os profissio colonial, a carreira intelectual por excelência, e a única de pers
nais: em 1792 não havia no Rio de Janeiro senão 32 advogados e pectivas amplas e gerais; e quando, realizada a Independência,
24 solicitadores (17). Os médicos então eram exceção. Em toda se teve de recorrer aos nacionais para preencher os car�os polí
a capitania de São Paulo, observava Martius em 1818, não havia ticos do país, é sobretudo nele que se recrutarão os candidatos(22).
estabelecido nenhum médico ou cirurgião verdadeiro (18). O A Igreja tem assim na colônia um papel importante como vazão
mesmo se dirá dos engenheiros, de que a · colônia não contava para colocações. Reconhecia-o, e não só o proclamava, mas ainda
senão com raros militares (19 ). o justificava nos últimos anos do séc. XVIII, uma autoridade
Restará a Igreja. Esta sim oferece oportunidades mais amplas. eclesiástica autorizada como o superior da Província dos Capuchos
Os estudos se podiam fazer em grande parte no Brasil; e mesmo do Rio de Janeiro, Frei Antônio da Vitória: "Hoje não há verda
completar, sobretudo com relação aos seculares. Os seminários deiras vocações para o estado religioso; quase todos o procuram
foram ?r�nolog��amente os primeiros institutos de ensino superior por modo de vida, e principalmente no Brasil, onde faltam em
_ pregos em que os pais arrumem seus filhos. Debaixo deste prin
da coloma. Aba� _?S candidatos ao estado eclesiástico que de
monstrassem aptidoes encontravam sempre amparo, e não faltava cípio parece que se faz uma injustiça aos brasileiros, privando-os
quem lhes :usteasse os estudos,. aqui �u na Europa. É certo que deste benefício, quando seus pais são os que sustentam e vestem
o preconceito de cor também tmha ai o seu lugar, e quem não todos os religiosos daquele continente, e reparam os seus con
foss_e de pura or!gem branca, necessitava dispensa especial(20). ventos" (23).
Mais uma questao de forma: o estudante com reais qualidades Em suma, o que se verifica é que os meios de vida, para os
acabava sempre vencendo. Não foi este o caso de Luís Antônio destituídos de recursos materiais, são na colônia escassos. Abre-se
da S_ilva e Sousa, depois poeta e historiador de algum nome, assim um vácuo imenso entre os extremos da escala social: os
_ , senhores e os escravos; a pequena minoria dos primeiros e a
mestiço de ongem humihssima, e que apesar de ver fechadas
no Brasil as portas da Igreja, acabou obtendo dispensa necessária multidão dos últimos. Aqueles dois grupos são os dos bem clas
em Roma, e com o auxílio do próprio ministro português junto sificados da hierarquia e na estrutura social da colônia: os pri
meiros serão os dirigentes da colonização nos seus vários setores;
os outros, a massa trabalhadora. Entre estas duas categorias niti
damente definidas e entrosadas na obra da colonização compri
(16) Relatório, 452. me-se o número, que vai avultando com o tempo, dos desclassifi
( 17) Em 1794 os números eran: respectivamente de 33 e 22. Vejam cados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais
se os Almanaques daqueles anos publicados nos Anais da Biblioteca Nacio
nal, 59. ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma. Aquele
( 18) Trav�ls, � ook, I, 53. No Rio de Janeiro, os médicos eram em contingente vultoso em que Couty mais tarde veria o "povo
-
1794, 9, e os c1rurg1oes, 29. Almanaque cit. brasileiro", e que pela sua inutilidade daria como inexistente,
( 19) É para atender a esta. penúria de profissionais que o governo resumindo a situação social do país com ªS\uela sentença que
rnetr�pohtano resolveu em 1799 ordenar que as Câmaras concedessem
pe�soes. para aquel�s que, tendo demonstrado habilidade, fossem cursar a ficaria famosa: "Le Brésil n'a pas de peuple (24).
Universidade de C01mbra ou a Academia de Lisboa. Cada Câmara deveria
pagar os estudos de pelo menos 2 topógrafos, 2 engenheiros hidráulicos (21) J. M. P. de Alencastre, Biografia do Cónego Luís António da
um. co�tador, 1:m médico e um cirurgião. Veja-se circular às Câmaras d� Silva e Sousa, 241.
capitania de Sao �a1:lo, escrita pelo governador. Reg. VII, 381. ( 22) Nos cargos do Parlamento os eclesiásticos só passarão para um
( 20) A pr_?f1ssao no Ordem dos Carmelitas, por exem pio, se fazia plano inferior no segundo império.
�ob protesto de lançar fora o professor logo que se provar que tem casta ( 23 )Correspond�ncia dtJ várias autoridades, 291.
d:; mouro, mulato, judeu, ou outra infec:ta nação." Frei Caneca. Obras, 283. (24) L'esclavage au Br�sil.
2,SO Caio Prado ]iínior Formação do Brasil Contemporâneo 281
O número dl'sle demento indefinido soci:1lrn,'11l:.>, {, ,n·an contramos também brancos mais ou menos puros, que expelidos
tajado: e cresce contínua e ininterruptamente porque ,ls causas I JtJe ou fugidos dela aproveitam a vastidão do território para se
provocam seu apareciml:nlo si'to permanentes. No tempo de Couty, abrigarem no deserto.
este o calcula, numa populac/10 total de 12 milhões, em nada Uma segunda parte da população vegetativa da colônia é
menos que a metade, 6 milhôcs. Seria m2nor talvez a proporção a daqueles que, nas cidades, mas sobretudo no campo, se encos
nos três milhões de princípios do século; mas ainda assim com tam a algum senhor poderoso, e em troca de pequenos serviços,
preenderia com certeza a grande, a imensa maioria da população às vezes até unicamente de sua simples presença, própria a
livre da colônia. Compõe-se sobretudo de pretos e mulatos forros aumentar a clientela do chefe e insuflar-lhe a vaidade, adquirem
ou fugidos da escravidão; índios destacados de seu habitat nati\"O, o direito de viver à sua sombra e receber dele proteção e
mas ainda mal ajustados na nova sociedade_. em que os engloba auxUio. São então os chamados agregados, os moradores dos en
ram; mestiços de tollos os matizes e categorias, que, não sendo genhos, cujo dever de vassalos será mais tarde roclamado e
escravos e não .podendo ser senhores, se vêem repelidos de r
justificado, em Pernambuco, num momento difíci e de aguda
qualquer situação estável, ou pelo preconceito ou pela falta de crise política ( 28).
posições disponíveis; at� brancos, br.ancos puros, e entre eles, como Finalmente a última parte, a mais degradada, incômoda e
já referi anteriormente, até rebentos de troncos portugueses ilus nociva é a dos desocupados pem1anentes, vagando de léu em léu
tres, como estes Meneses, Barreto, Castro, Lacerda e outros que à cata do que se manter e que, apresentando-se a ocasião, enve
Vilhena assinala em Cairu, arrastando-se na indigência( 25); os redam francamente pelo crime. :e: a casta numerosa dos "vadios",
nossos poor whites, detrito humano segregado pela colonização que nas cidades e no campo é tão numerosa, e de tal forma
escravocrata e rígida que os vitimou. caracterizada por sua ociosidade e turbulência, que se torna uma
Uma parte destà subcategoria colonial é composta daqueles das preocupações constantes das autoridades e o leitmotiv de seus
que vegetam miseravelmente nalgum canto mais ou menos remoto relatórios; e não se ocupam menos dela outros observadores con
e apartado da civilização, mantendo-se ao deus-dará, embrutecidos temporâneos da vida colonial. O Vice-Rei Luís de Vasconcelos
e moralmente degradados. Assim uma grande parte da população se queixa deles amargamente, e urge providências ao deixar o
amazônica, estes tapuias que deixaram de ser silvícolas, e não governo em 1789( 29). Vilhena lhes consagra longas páginas de
chegaram a ser colonos ( 26); os caboclos, índios puros ou quase suas cartas(30); o Brigadeiro Cunha Matos considera-os um dos
puros de outras partes da colônia, em situação mais ou menos maiores flagelos da capitania de Goiás(31), e o presidente da
idêntica, isolados do mundo civilizado que os cerca e rejeita, e Mesa de Inspeção do Rio de Janeiro, o Des. Rocha Carneiro,
reconcentrados numa miserável economia naturalista que não vai dissertando sobre a agricultura da colônia, indica os vadios como
além da satisfação de suas mais imperiosas necessidades vitais. um dos obstáculos ao seu desenvolvimento(32). Os vadios não
A eles se equiparam negros e pardos que, excluídos da sociedade escapam também à observàção dos viajantes estrangeiros: Saint
ativa, procuram imitar a vida daqueles filhos do continente.. _-Hilaire e Martius referem-se a eles amiúde, e sentiram muito bem
Quando fugidos da escravidão, são os quilombolas, que às vezes
se agrupam e constituem concentrações perigosas para a ordem
social, e são a preocupação constante das autoridades: os temíveis vulto, estão longe de ser o único. Estas aglomerações negras de escravos
"quilombos" ( 27). Numa tal situação arredada da civilização_ en- fugidos se formaram e dissolveram repetida e continuamente em todo correr
da nossa história, e em todos os pontos do território; e muitas vezes mos
traram d() que estariam capazes se lhes tivesse sido dada oportunidade de se
( 25) Recopilação, 519. estabilizarem.
( 26) José Veríssimo os descreve, embora mais tarde, mas em con ( 28) Durante a agitação praieira, que teve seu desenlace na revolta
dições que teriam sido as mesmas, três quartos de século antes, no seu de 1848, e quando se publicou em opúsculo. A eleição para senadores,
magnífico trabalho: As populações indígenas da Amazónia. citado por Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, I, 88, em que o
( 27) l!: de se notar que s6 por uma questão de analogia da situação assunto é tratado.
dos quilombos relativamente à ordem oficial da colonização é que pode ( 29) Ofício, 34.
mos1 em muitos casos, inclui-los nesta categoria inútil e vegetativa da ( 30) Recopilação, 939.
população colonial. Os quilombos foram freqüentemente mais que -isto, e ( 31) Corografia histórica, 290.
constituem organizações notáveis, cheias de vigor e capacidade construü.va ( 32) Carta de 28 de abril de 1797, in Correspondência de várias
Os Palmares, quê' são o principal e mais notório exemplo de quilombu d� autoridades, 279,
282 Caio Prado Júnior Formaçcio do Brasil Contemvorâ11eo 28:l
que não se trata de casos esporádicos, mas de uma verdadeira pré-anárcpiico permanPntP. No torvC'linho �las paiXÕC:'S e �<'�Vi�
endemia social( 33). dicaçiies ('11t:io cksencadc,iclas, pdt'. _rn,11p111w1� t� do t•cr111h�r�1í
social e político c3uc provoca a lra11�1�·.m ck coloma para Impt·no
f: entre estes desclassificados que se recrutam os bandos livre, aquela massa deslocada, inddinida. m:'il enquadrada na
turbulentos que infestam os sertões, e ao abrigo de uma autoridade ordem social, e na realidade produto e vítima dela, se lançará
pública distante ou fraca hostilizam e depredam as populações na luta com toda a violência de instintos longamente refreados, e
sedentárias e pactas; ou pondo-se a serviço de poderosos e man com muitas tintas da barb(uic ainda tiio próxima que lhe corria
dões locais, servem os seus caprichos e ambições na lutas de nas veias em grandes correntes. Não resta a menor dúvida que
campanário que eles entre si sustentam; como estes Feitosas do as agitações, anteriore� e posteriores à Ind
Ceará, que durante anos levam o interior da capitania a ferro _ _ependê,n�ia, as do tor
mentoso penado ela mmondade e elo pnmciro �ceemo do Segundo
e fogo, e só foram dominados e presos graças a um estratagema Império, todas elas ainda tão mal cstuelaelas, sao �ruto em grande
do Gov. Oeynhausen( 34). Mas apesar de. casos extremos como parte d�queb situação que acab�rnos d� _ analisar. É naquel�
este, o arrolamento dos indivíduos sem eira nem beira nas milícias elemento desenraizado da populaçao brasileira que se recrutara
particulares dos grandes proprietários e .?�efes locais ainda co?s a maior parte da força armada para a luta das facções políticas
litui um penhor de segurança e tranqmhdade, porque canaliza que se formam; e ela servirá de aríete das reivindicações populares
sua natural turbulência e lhes dá um mínimo de organização e contra a estrutura maciça do Império, que apesar da força do
disciplina. Entregues a si mesmos, eles mant_eriam _ o sert�o des empuxo, resistirá ao� seus golpe5; Tem assim u,m grande interesse
policiado em constante p_olvorosa, e normahzana1? o cnme .. E histórico acentuar a1 a nossa anahse, porque e no momento que
.
não se veria nestas vashdoes desamparadas pela lei o que Samt precede imediatamente aqueles acontecimentos, que encontramos
-Hilaire com surpresa constatava: uma relativa segurança de que uma situação, embora madura, ainda não perturbada pela luta.
seu caso pessoal era exemplo flagrante. Nenhuma vez, nos longos Tanto mais fácil por isso é a tarefa do observador.
anos em que perambulou pelo interior do Brasil, foi jamais
incomodado. Vimos as condições gerais em que se constitui aquela massa
popular - a expressão não é exagerada -, <;_i_ue vive mais ou
Nas cidades, os vadios são mais perigosos e nocivos, pois menos à margem da ordem social: a carência de ocupações nor
não encontram, como no campo, a larga hospitalidade que lá se mais e estáveis capazes de absorver, fixar e dar uma base segura
pratica, nem chefes sertanejos prontos a engajarem sua belicosi de vida à grande maioria da população livre da colônia. Esta
dade. No Rio de Janeiro era perigoso transitar só e desarmado em situação tem causas profundas, de que vimos a principal mais
lugares ermos, até em pleno aia. O primeiro intendente de polícia saliente e imediata: a escravidão, que desloca os indivíduos livres
da cidade tomará medidas enérgicas contra tais elementos. tvias o da maior parte das atividades e os força para situações em que a
mal se perpetuará, e só na Repúbli<'a, ninguém o ignora, serão ociosidade e o crime se tomam imposições fatais. Mas alia-se,
os famosos "capoeiras", sucessores dos vadios da colônia, elimi para o mesmo efeito, outro fator que se associa aliás intimamente
nados da capilal. a ela: o sistema econômico da produção colonial. No ambiente
Como se vê, além da sua massa, a subcategoria da população asfixiante da grande lavoura, vimo-lo noutro capítulo, não sobra
colonial de que nos ocupamos fazia muito bem sentir sua pre lugar para outras atividades de vulto. O que não é produção
sença. Ainda o fará mais nas agitações que preccde?11 a In<lepen em larga escala de alguns gêneros de grande expressão comercial
dôncia e vão até meados do século, mantendo o pais num estado e destinados à exportação, é fatalmente relegado a um segundo
plano mesquinho e miserável. Não oferece, e não pode oferc�er
(33) Entre outras passagens, veja-se Voyage aux sources ... , I; 127, campo para atividades remuneradoras e de nível elevado. E assm1,
para o primeiro; Viagem, II, 254, para o ?�tro. todo aquele que se conserva fora daquele estreito círculo traçado
(34) O governador apresentou-se ofic1almente em suas propnedades, pela grande lavoura, e são quase todos além do senhor e �cu
e fazendo convocar, sob pretexto de revista, as ordenanças de que o prin escravo, não encontra pela frente perspectiva alguma.
cipal dos Feitosas era comandante, dispensou-as depois de um longo _dia
. Um último fator, finalmente, traz a sua contribuição, e con
ele exercício fatigantes. Aproveitando-se <lcpms de um momento el e ma
tenção do Feitosa, para cm sua casa e quando ele me�os '? esperava, dar-lhe tribuição apreciável de resíduos sociais inaproveitáveis. t :a
,·oz de prisão c partir apressadamento com o seu pns10nc1ro. Koster ( Vo11a instabilidade que caracteriza a economia e a produção brasileira
;.:,·s, 1, :E2) rel.lla o fato, ocorrido pouco antes de sua estada n,;c111ela
capitania.
e não lhes permite nunca assentarem-se sólida e permanentementr.
284 Caio Prado Júnior Formafão ,lo Brasil Contempor4neo 285
em bases seguras. Em capítulo anterior já assinalei esta evolução ç?io colonial. Vejamos aqui antes os seus caracteres sociais e
por arrancos, por ciclos em que se alternam, no tempo e no econômicos que servem de base ao mais.
espaço, prosperidade e ruína, e que resume a história econômica Poderíamos retraçar a origem remota desta unidade singular
do Brasil-colônia. As repercussões sociais de uma tal história de nossa estrutura social a suas raízes portuguesas, e ir buscá-la
foram nefastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedaço tanto na organização e nas sólidas relações de famílht do Reino,
da estrutura colonial, desagrega-se a parte da sociedade atingida como no paternalismo da constituição da monarq_uia. Mas não _é
pela crise. Um número mais ou menos avultado de indivíduos preciso ir tão longe,· porque sobrelevam, e _d� mmto, causas mais
inutiliza-se, perde suas raízes e base vital de subsisténcia. Passará .
próximas: as circunstâncias do 1;11ei� �r�sileiro. Se o patnarc:i
então a vegetar à margem da ordem social. Em nenhuma época lismo se encontra em germe nas mshtmçoes portuguesas, questao
e lugar isto se torna mais catastrófico e atinge mais profunda e
que prefiro deixar aberta, o que realmente determinou sua e�
extensamente a colônia, que no momento preciso em que aborda .
plêndida floração no Brasil é o meio local em q1;1e se co11shtm.
mos a nossa história, e nos distritos da mineração. Vamos encontrar O clã patriarcal, na forma em que se apresenta, e algo de espe
aí um número considerável destes indivíduos desamparados, evi cífico da nossa organização(36). É do regime econômico que ele
dentemente deslocados, para quem não existe o dia de amanhã, brota, deste grande domínio que absorve a maior parcela da
sem ocupação normal fixa e decendente remuneradora; ou deso produção e da riqueza colo1:1iais. Em tomo ��queles que a pos
cupados inteiramente, alternando o recurso à caridade com o .
suem e senhoreiam, o propnetáno e sua famiha, vem agrupar-se
crime. O vadio na sua expressão mais pura. Os distritos auríferos a população: uma parte por destino nat1;1r�l e inelutá�rel, os
de Minas Gerais, Goiás, �fato Grosso oferecem tal espetáculo em escravos; a outra, pela atração que exerce o umco centro existente,
proporções alarmantes que assustarão todos os contemporâneos. real e efetivo, de poder e riqueza. O domínio é vasto, o que
Uma_ boa parte da �opulação destas capitanias estava nestas nele se passa dificilmente ultrapassa�á , s�us limites Fi;a :por
. .
condições, e o futuro nao pressagiava nada de menos sombno(35). ,-
isso inteiramente na alçada do propnetano; esta ate vai alem,
São estas em suma as causas fundamentais daquelas formas e se estende sobre a população vizinha que gira na órbita do
inorgânicas da sociedade colonial brasileira que passei em revista. domínio próximo. A autoridade pública é fraca, distante; não só
Vejamos, a par delas, os seus aspectos organizados. E em tal não pode contrabalançar o poder de fato que encontra já estabe
terreno, um logo ocorre que, com a escravidão que lhe constitui lecido pela_ frente, mas precisa contar com ele se quer agir na
a base essencial, domina o cenário da vida na colônia: é o "clã maior parte do território de sua jurisdição, onde só com suas
patriarcal" - emprego uma expressão já consagrada -, unidade forças chega já muito apagada, se não nula. Quem realmente
em que se agrupa a população de boa parte do país, e que, na possui aí autoridade e prestí�io é o senhor rural, o grande
base do grande domínio rural, reúne o conjunto de indivíduos proprietário. A administração e obrigada a reconhecê-lo, e, de
que participam das atividades dele ou se lhe agregam; desde o fato, como veremos, o reconhece.
proprietário que do alto domina e dirige soberanamente esta A própria Igreja e seu clero, que constituem a segunda esfera
pequena parcela de humanidade, até o último escravo e agregado administrativa da colônia, também estão, em parte pelo menos,
que entra para sua clientela. Unidade econômica, social, adminis na dependência do grande domínio. Capela de engenho ou fazen
trativa, e até de certa forma religiosa. Quando me ocupar·da orga da e seu capelão; igreja da freguesia próxima e seu pároco, que
nização administrativa da colônia, veremos como este poder ver encontram no grande domínio a maior parte de sua clientela:
dadeiramente soberano dos grandes proprietários, com aquelas não são elas e eles acessórios e servidores do grande domínio
unidades sobre que se estende, se ajusta à estrutura da administra-
( 1) "A escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização
que este país jamais possuiu . . . Social e economicamente, a · escravidão
340 Caio Prado /tÍnior Formação do Brasil Contempordneo 341
estado primitivo. As relações servis são e permanecerão relações
Para constatar o a�erto da observação, basta-nos comparar os puramente materiais de trabalho e produção, _ e nada ou quase
setores da vida colonial em que respectivamente domina uma e
outra forma de trabalho, escravo ou livre. À organização do nada mais acrescentarão ao complexo cultural da colônia.
primeiro, à sua sólida e acabada estruturação e coesão, corres A outra função do escravo, ou antes da mulher escrava,
ponderá a dipersão e incoerência do outro. Vimos estes dois instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus senhores
aspectos da sociedade colonial: de um lado o escravo ligado ao e dominadores, não tem um feito menos elementar. Não ultra
seu senhor, e integrados ambos nesta célula orgânica que é o passará também o nível primário e puramente animal do contacto
"clã" patriarcal de que aquele laço forma a textura principal; sexual, não se aproximando senão muito remotámente da esfera
doutro, o setor imenso e inorgânico de populações desenraizadas, propriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve
flutuando sem base em tomo da sociedade colonial organizada; de todo um complexo de emoções e sentimentos tão amplos que
chegando apenas, em parcelas pequenas a se agregar a ela, e chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele ato
a�quirindo assim os únicos visos de organização que apresentam. que afinal lhe deu origem ( 2).
Fica-se em suma na tentação de generalizar ainda mais o conceito Em alguns outros setores, a escravidão foi mais fecunda.
de Alberto Tôrres, e não ver na servidão senão o único elemento Destaquemos a "figura boa da ama negra" - a expressão é de
real e sólido de organização que a colônia possui. Gilberto Freyre, - que cerca o berço da criança brasileira de
Mas seja como for, a análise da sociedade colonial obriga uma atmosfera de bondade e ternura que não é fator de menor
a um desdobramento de pesquisa., Qualquer generalização que importância nesta florescência de sentimentalismo, tão caracte
abranja as duas situações tão diversas que nela se encontram rística da índole brasileira, e que se de um lado amolece o indi
correrá o risco de erros consideráveis de apreciação. Para com víduo e o desampara nos embates da vida - não padece dúvida
preendermos, no seu conjunto, O§> laços que 1he mantêm a coesão que boa parte da deficiente educação brasileira tem aí sua origem,
e de que se forma a sua trama, temos que vê-la como de fato - doutro contribui para quebrar a rudeza e brutalidade próprias
ela se constitui: de um núcleo central organizado. cujo elemento de uma sociedade nascente. Mas neste, como em muitos casos
principal é a escravidão; e envolvendo este núcleo, ou dispondo-se semelhantes, é preciso distinguir entre o papel de escravo e do
nos largos vácuos que nele se abrem, sofrendo-lhe mesmo, em negro, o que Gilberto Freyre acentuou com tanto acerto. A
muitos casos, a influência da proximidade, uma nebulosa social distinção é difícil: ambas as figuras confundem-se no mesmo indi
incoerente e desconexa. víduo, e a contribuição do segundo se realiza quase sempre através
Não preciso acentuar mais uma vez o papel que a escravidão do primeiro. Mas não é impossível, e de uma forma geral, o que
tem naquele primeiro setor, o orgânico da sociedade colonial. se conclui é que se o negro traz algo de positivo, isto se anulou
Ma� _devemos acrescentar aqui o caráter primário das relações na maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais. O
soc1a1s que dela resultam, e daquilo que com ela se constituiu. escravo enche o cenário, e permitiu ao negro apenas que apontasse
Primário no sentido em que não se destacam do terreno puramente em raras oportunidades. Já notei acima que outro teria sido o
material em que se formam; ausência quase completa de superes papel do africano na formação cultural da colônia se lhe tivessem
t�tura, dir-se-ia para empregar uma expressão que já se vulga permitido se não o pleno, ao menos um mínimo de oportunidade
rizou. Realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá para o desenvolvimento de suas aptidões naturais. Mas a escra
na sociedade colonial, fator trabalho e fator sexual, não determi vidão, como se praticou na colônia, o esterilizou, e ao mesmo
nará senão relações elementares e muito simples. O trabalho tempo que lhe amputava a maior parte . de suas qualidades,
escravo nunca irá além do seu ponto de partida: o esforço físico aguçou nele o que era portador de elementos corruptores ou
constrangido; não educará o indivíduo, não o preparará para que se tornaram tal por efeito dela mesma. E o baixo nível de
um plano de vida humana mais elevado. Não lhes acrescentará sua cultura, em oposição ao da raça dominante, impediu-lhe de
elementos morais; e pelo contrário, degradá-lo-á, eliminando mesmo
nele o conteúdo cultural que porventura tivesse trazido· do seu
(2) "Le miracle de l'amour Tiumain, c'est que, sur un instínct tres
deu-nos, por longos anos, todo o esforço de toda a ordem que então aimple, le désir, il construit les édifices de sentiments les plus complexes
possuímos, e fundou toda a produção material que ainda lemos." O et les plus délicats." ( André Maurois.) t este milagre que o amor da
Problema Nacional, 11. senzala não realizou e não podia realizar no Brasil-colônia.
342 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 343
se afi ar com vigor e sobrepor-se à sua miserável condição, áO daquilo gue sai do círculo estreito desta forma particular de
contráno do que em tantas instâncias ocorreu no mundo antigo.
l"1?
atividade produtora.
Em suma, a escravidão e as relações que dela derivam, se A luz desta vista d'olhos preliminar por sobre a sociedade
bem que constituam a base do único setor organizado da sociedade colonial, toma-se possível compreender a maior parte dos seus
colonial, e tivesse por isso permitido a esta manter-se e se desen traços e caracteres essenciais. Porque ela se soma e sumaria
volver, não ultrapassam contudo um plano i:nuito inferior, e não na observação geral feita de início: a falta de nexo moral que
frutificam numa superestrutura ampla e complexa. Serviram apenas define a vida brasileira em princípios do século passado, a po
para momentaneamente conservar o nexo social da colônia. No breza de seus vínculos sociais. Tomo aquela expressão "nexo
o_utro _setor dela, o que se mantém à margem da escravidão, a moral", no seu sentido amplo de conjunto de forças de aglutinação,
s1tuaçao se apresenta_, em cert� sentido, pior. A �norganização é complexo de relações humanas que mantêm ligados e unidos os
, indivíduos de uma sociedade .e os fundem num todo coeso e
ai a regra. O que aliás sua ongem faz prever; vimo-lo anterior
�1ente: aquela parte da fopulação que o constitui e que vegeta compacto. A sociedade colonial se definirá antes pela desagregação,
à margem da vida colonia , não é senão um derivado da escravidão, pelas forças dispersivas; mas elas são em nosso caso as da inércia;
ou diretamente, ou substituindo-a lá onde um sistema organizado e esta inércia, embora infecunda, explic'.l suficientemente a relativa
de vida econômica e social ,não pôde constituir-se ou se manter. estabilidade da estrutura colonial: para contrariá-la e manter a
Para este setor não se pode nem ao menos falar em "estrutura" precária integridade do conjunto, bastaram os tênues laços mate
social, porque é a instabilidade e incoerência que a caracterizam, riais primários, econômicos e sexuais, ainda não destacados de
tendendo em todos os casos para estas formas extremas de desa seu plano original e mais inferior, que se estabelecem como resul
gregação social, tão salientes e características da vida brasileira tado imediato da a;iroximação de indivíduos, raças, grupos dís
e que notei em outro capítulo: a vadiagem e a caboclização(3)'. pares, e não vão alem deste contacto elementar. É fundada nisto,
e somente nisto, que a sociedade brasileira se manteve, e a obra
É isto, em resumo, que o observador encontrará de essencial da colonização pôde progredir.
na sociedade da colônia: de um lado uma organização estéril no Poderíamos acrescentar a pressão exterior que o poder, a
que diz respeito a relações socia:is de nível superior; doutro,· um autoridade e ação soberana da metrópole exerceram sobre a
estado, ou antes um processo de desagregação mais ou menos sociedade colonial, contribuindo assim para congregá-la. Não é
adiantado, conforme o caso, resultante ou reflexo do primeiro, e de desprezar este fator, que apesar do raio limitado de sua exten
que se alastra progressivamente. E note-se, antes de seguirmos são e penetração - já o vimos ao falar da administração pública
adiante, e repisando um assunto já ventilado, que tais aspectos na colônia, -· contou por muito na subsistência e manutenção da
correspondem grosseiramente, no terreno econômico aos dois estrutura social brasileira. Os acontecimentos posteriores, que
setores que aí fomos �nco�o:ar: a grande la�oura e a' mineração precedem imediatamente a Independência e a seguem, estão aí
de �m lado? as dema�s �ti�1�ades que reum na catego1a getal para demonstrá-lo. O enfraquecimento daquele poder levou o
de economia de· subs1stencia , do outro. A observação e impor país, durante muito tempo, para a iminência da anarquia, que
tante porque vem confirmar mais uma vez o que já foi dito aliás muitas vezes, e em vários setores, embora restritos, se tomou
sobre a caracterização da economia brasileira, votada essencial efetiva; e só se conteve com a constituição de um Estado que,
mente à produção de alguns gêneros exportáveis; este seu caráter embora nacional de nome e formação, reproduziu quase integral
unilateral se revela aqui sensivelmente, mostrando a precariedade mente a monarquia portuguesa que viera substituir; que não
brotou do íntimo da sociedade brasileira, incapaz de tal criação,
( 3) Há exceções a assinalar, exceções em que vemos se constituírem mas lhe é imposta do exterior, continuando a exercer sobre ela
neste setor da vida colonial formas sociais mais aperfeiçoadas. Mas são o mesmo tipo de pressão que o daquela ( 4).
raras_, como a mais interessante e conhecida delas; o "mutirão", que ainda
subsiste em certas partes do Brasil, e que consiste no trabalho em comum
e auxílio mútuo na lavoura. Saint-Hilaire teve ocasião de observar o mutirão ( 4) Não se caracterizará isto unicamente pelo fato da perpetuação da
numa região do hoje Triângulo Mineiro. Voyage aux sources .. . , II, 269. organização monárquica no Estado nacional brasileiro, investida aliás na
Parece contudo que. s� trata antes �? uma sobrevivência indígena, e o 11H·,mn dinastia; o gue por si já é uma prova do artificialismo da constituiçáo
.
exemplo de Samt-H1laire refere-se alias a populações com alta dose de •111c adotamos. Nüo havia no Brasil, afora o hábito do passado, base
sangue mestiço. Não se trataria então de uma criação, mas de um traço · al�uma para o trono. Mas não é somente nisto que se assinala a persistência
cultural que sobrou da vida comunitária do índio. do regime político anterior, embora sob vestimenta nacional; é o pro-
344 Caio Prado Júnior Forma,;:ão do Brasil ContemporâneQ 34S
ociosidade que para os senhores resulta do trabalho entregue intei
Há �inda que levar em conta uma certa uniformidade de ramente a escravos. É esta uma atitude psicológica por d�mais
" .
ati�des , em�reguemos es�a expressão ampla, que identifica 0 con hecida para nela nos demorarm os. Um e outro efeito da
coni unto colomal e suas varias partes. Un iformidade de senti escravidão se somarão para fazer ou evitar quaisquer atividades.
mentos, ?� usos, de crenças, de língua. De cultura, numa palavra. A indolência, o ócio dos casos extremos, mas sempre uma ati
El : serv1�1a, e de f�to serviu de base moral e psicológica ara vidade retardada, uma geral moleza e um mínimo de dispêndio
a ,�rmaç� º do Brasil como nação, e lhe proporcionou a uniJade de energia resultarão daí para o conjunto da sociedade colonial.
, _
nacronal !ª rea�zada na geografia e na tradição. Mas neste sentido Tudo repousará exclusivamente no trabalho força.do e não co n
ela se afirmara post:riormente, em oposição à metrópole e mais sentido imposto pela servidão; fora disto, a atividade colonial é
,
tar�e as outras naçoes estrangeiras. É antes um fardo político, quase nula. Onde falta a obrigação sancionada pelo açoite, o
e na� tra:, no moi:nento e no assunto particular que nos ocupa, tronco e demais instrumentos inventados para dobrar a von tade
_
cont�r�mçao_ apre,:rável para trama da sociedade colonial. Aquela humana, ela desaparece. Os, libertos que se fazem _por via de
oposr�ao_ amda nao representa papel social, mas começa apenas regra vadios, apesar da escola em que se formaram, e disto uma
o polrtrco. das provas.
<?aracterizemos agora, mais de perto, a· vida colonial e as Isto, para as atividades de natureza física, é regra pratica
rclaçoes que �ela vamos encontrar. Tod� sociedade organizada mente universal: nenhum homem livre se rebaixa a empregar
s � f�nda p1_ ec1p�amente na regulamentaçao, não importa a com os músculos no trabalho. É de Luccock uma anedota bem ilus
p.exrdade postenor 9u� dela resultará, dos dois instintos primários trativa do caso: tendo ido buscar um serralheiro de cujos serviços
do I-!omem: o economrco e o sexual. Isto não vai aqui como afir precisava, este o fez esperar longamente na expectativa de um
m�çao de princípio, incabível· em nosso assunto mas servirá negro de serviço para transportar sua ferramenta de trabalho,
umcamente de fio condutor à análise que vamos e�preender das pois carregá-la pelas ruas da cidade não era ocupação digna de
relações fundamentais que se estabelecem no seio da sociedade um homem livre ( 5). As outras funções se praticam sempre com
colonial. Na primeira categoria, o elemento que definirá, e na um mínimo de energia. Uma lentidão e economia de esforços
bas� do qua! se formarão aquelas relaçF,es, é o trabalho, tomado que faziam a cada passo o desespero dos enérgicos europeus
aqu� n� �entrdo amplo. e mais geral <le atividade que proporciona que nos visitavam.
ao md1v1duo seus meros de subsi<.t.êncía. Na outra O conteúdo
Somente num setor encontramos mais atividade: é no dos
ser;ão as relações que se estabelecem entre sexos opo�tos e as que
colonos recentes ainda não contaminados pelo exemplo do país;
dar resultam: as rel.ações de família, em suma.
destes reinóis que. vinham para cá "fazer a América", ávidos de
_R,elativamente ao. trabalho, já se viu acima alguma coisa que ganho, dispostos a tudo e educados numa escola de trabalho e
ser�rra par� caractenzar os laços que dele derivam. Assim o ambição muito diferente da dos brasileiros. Eles representam, com
eferto_ depnmente que. exerce sobre sua conceituação o regime os escravos, os únicos elementos verdadeiramente ativos da colônia.
servil. Ha outro de quase igual importância: o estímulo para a Num interessante ensaio sobre as causas da Independência, escrito
em 1823 e dedicado ao soberano português, Francisco Sierra y
longam�nto ?e· um situação política e institucional de conjunto, que s6 Mariscai analisa com muita clareza este abismo de concepção
se mo�1f1car _ � de uma forma substancial em período muito adiantado da e atitudes que separa brasileiros de portugueses imigrantes.
evolu �ao _nacional do p aís. E aquilo era tão bem sentido, que as revolu ções
Enquanto esses últimos, chegados ao Brasil de mãos abanando,
escreverá Mariscai, "não há nada a que se não sujeitem, e com
e ag itaçoe� da pnme1ra _ _ parte do Império tomam o caráter de reações
.
c�:itra o govem? do Rio de Janeiro", tal como fariam contra O de
L1.�bo�. O federalismo ,b�asileiro tem aí a sua essência; pelo menos o da economia e trabalho chegam a ter grandes cabedais", o brasileiro,
pn mc1ra Pª.rt� do r,�peno. - J;,- pobreza da vida social brasileira encontra nascido na abastança, "o orgulho se apodera dele, e este é sempre
na ,
const�.tmçao poht1�a do pa i s independente uma . confirmação flagrante. maior que os meios de o sustentar... não conhece o trabalho
� )a ª. cau sa das dificuldades e problemas de orgamzação e funcionamento
nem a economia ... e quando chega ao estado viril, já está pobre",
c
mst1tuc1o?al q ue �1_ �emos d� enfrentar, e que levaram até aquele esdrúxulo
� artif�cial Imperw const1tucwnal que tivemos. Compare-se isto para
1lustraç,10, com o que ocorreu nas colônias inglesas da América do' Norte
que, separando-se da metrópole, criaram um sistema não só original de
gov e�no, mas que_ foz época e lançou um marco saliente na evolu ção
,
poht1ca da Humanidade.
(5) Notes, 17.
Formação do Brasil Confemporcfoeo 347
346 Ceio Prado Júnior
porque, conclui com muita lógica o nosso autor, "não há cabedal Mas seja como for, o índio e com ele seus descendentes ma�
que chegue a quem gasta muito, e não ganha nada" ( 6). ou menos mestiçados, mas formados na sua escola,,e que co�s?
Uma tal atitude da grande maioria, da quase totalidade da tuem parte tão apreciável d� pop ulação _ colo_nia�; tem por feiçao
colônia relativa ao trabalho, de generalizada que é, e mantida dominante, para todos os efeitos da colomzaçao, a falta completa
através do tempo, acabará naturalmente por_ se integrar na psico e absoluta de energia e ação" ( 8). E esta seria uma_ das princip�is
logia coletiva como um traço profundo e inerraigável do caráter razões por que as regiões onde eles formam contmgentes muito
brasileiro. A preguiça e o ócio, aqui n� Brasil, "até se pega grandes nunca fizeram mais que vegetar. O governaâoc do Pará,
como visgo", dirá Vilhena. Mas se a escravidão, nas suas várias D. Francisco de Sousa Coutinho, escrevia desalentado à metrópole
repercussões, é a responsável principal por isto, há outros fatures depois de três anos de governo: "O poderoso inimigo destes
de segundo plano que não deixam de ter o seu papel. O principal habitantes e a mais poderosa causa entre muitas outras de seu
deles é a contribui9ão do sangue indígena, considerável corno atraso é a preguiça deles" ( 9).
sabemos. A indolência do índio brasileiro tornou-se proverbial, . Ao influxo do sangue indígena como fator de indolência,
e de certo modo a observação é exata. Onde se erra é atribuindo-a ainda há que acrescentar esta causa geral_ que é o sistema ec�nô
a não se sabe que "caracteres inatos" do selvagem. Na sua vida · mico da colônia, tão acanhado de oportunidades e de perspectivas
nativa, mesmo na civilizada quando se empenha em tarefas que tão mesquinhas. Não seria um tal ambiente propício a estimular
conhece, e sobretudo cujo alcance compreende, o selvagem brasi as energias e atividades dos indivíduos, uma escola muito favorável
leiro é tão ativo como os indivíduos de qualquer outra raça. Será de trabalho.
indolente, e só aí o colono interessado o enxergava e julgava, De tudo isto resultará para a colônia, em conjunto, um
quando metido num meio estranho, fundamentalmente diverso do tom geral de inércia. Paira 1;ªatmos��ra em 9ue a popu�ação
seu, onde é forçado a uma atividade metódica, sedentária e or colonial se move, ou antes descansa , um virus generalizado
ganizada segundo padrões que não compreende. Em que até os de preguiça, de mol�za que a to�os, c�m ra� a� exceçõ�s, atinge.
estímulos nada dizem a seus instintos: a ganância, a participação O aspecto do Brasil e de estagnaçao. , Sa1�t-�ilaire, d�pois de lon
em bens, os prazeres que para ele não são nem bens nem prazeres. gas peregrinações e de uma pe�ane_nc1a Jª de muitos anos :m
Nada houve de mais ridículo nos sistemas de educação dos índios _
contácto íntimo com a vida do pais, nao esconderá sua admiraçao,
que isto de tentar levá-los por tais incentivos, modelados por e por isso elogiará calorosamente · os mora�ores de ltu e Sorocaba
figurinos europeus e estranhos a seus gostos ( 7). ,
( São Paulo), porque encontrou ai. . . um 1ogo de bola; no est�do
de espírito em qu� s� ac�ava, e t;ndo �� vista o 9ue presen�iara
até então, constituia isto Já uma prova de energia ( 10). Ate nos
( 6) Idéias gerais sobre a revolução do Brasil, 55. Esta diferença é seus prazeres e folguedos, a população �olon�af é apática ( �l).
de tal forma produto do meio, que os próprios filhos do português enrique A apatia, Paulo Prado esqueceu-se de a incluir ��tre os fat� res
cido, brasileiros de nascimento e educação, observa o mesmo Mariscai, da tristeza brasileira, que não vem somente da luxuria e da cobiça,
não seguem o exemplo dos pais, e "entrarão na ordem geral, he dizer, mas sobretudo de um:,i inatividade sistemática, que acaba se ::ipo-
cahem na pobreza."
( 7) Até um homem profundamente conhecedor das raças de sua terra
natal, o Pará, e muito simpático a elas, como José Veríssimo, não enxergou ( 8) José Veríssimo, Populações indígenas da Amazónia, 308. _
inteiramente esta situação paradoxal dos índios perante a civilização. A ( 9) Informações, 66.
indolência, a falta de ambição que se observam no índio não são senão ( 10) Voyage aux provinces de Saint-Paul ..., I, 378. . .
fruto de sua completa indiferença, quando não de hostilidade, relativamente ( 11) Seria muito interessante estudar o folclore brasileiro sob est.:,
a uma civilização que se lhe impôs, e cujo valor, com todos os atrativos aspecto em paralelo com o de outros países. Pelo que <;iualquer um já poderá
que tem para nós, é para ele nulo. Enxergar no indígena brasileiro, ou _
p or si observar a conclusão não oferece a menor duvida. Com pare-se um
em outras raças de cultura diferente da nossa, falhas de caráter onde não festejo pop ular' brasileiro com o de qualquer das populaçõ� s da Europ�,
há senão atitudes próprias de um inadaptado ou revoltado, é o vczo por exemplo: à apatia e tristeza daquele, corresponde o entusiasmo e alegna
sobretudo dos anglo-americanos. 1fas qual seria, perguntamos nós, a reação destes últimos. O próprio Carnaval, para quem o tiver observado com
de um destes enérgicos anglo-saxões a quem lhe pedisse um dia de trabalho atenção não escapa à regra. Afora as expansões de caráter acentuadamente
a ser pago com um jantar de piriio de açaí 011 de mandioca puba? Mutat.is orgíaco ou de cultos de crenças ancestrais que nos dias comuns levam o
mutandis, é a mesma coisa que se passa com o indígena. O único estímulo indivíd�o à polícia, nada mais �á neie. - Note-se ainda _q�e .º elemento
civilizado que o índio compreendeu foi a aguanlenle, que por isso a brasileiro mais ativo neste setor e o negro, que tem a trad1çao do trabalho
colonização empregou largamente. escravo.
348 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 349
clerando do indivíduo todo, tirando-lhe até a energia de rir e raro se eternizá, põrque o novo colono, mesmo estabilizado: aca
folgar( 12). bará preferindo a facilidade de costumes que lhe proporcionam
Que dizer, nestas condições, do teor econômico da colônh? mulheres submissas de raças dominadas que encontra aqui, às
Não _pode deixar de ser, e não foi efetivamente, mais qu3 uma restrições que a família lhe trará. E quando não, já estará tão
lástima. Porque afora o trabalho constrangido e mal execub.�o habituado a tal vida que o freio da mulher e dos filhos não
do escravo, não se vai além do estritamente necessário para nJo atuará nele senão muito pouco( 14).
perecer à míngua. E isto explica suficientemente, a par das condi Lançadas nesta base não familiar, outras circunstâncias vêm
ções gerais da economia que já assinalei, e que são afinal a caus�1 reforçar a irregularidade dos costumes sexuais da colônia. A escra
1
indireta de tudo isto que estamos vendo, o baixo, o ínfimo padrão vidão, a instabilidade e insegurança econômicas . .. ; tudo contri
de vida da população colonial, a sua pobreza, sem excetuar mesmo buiria ara se opor à constituição da família, na sua expressão
as classes mais favorecidas. Do Brasil em conjunto, dirá Vilhena integra , em bases sólidas e estáveis. A formação brasileira, ao
que, apesar dos recursos naturais dele, é a "morada da pobreza." contrário do que se afirma correntemente, não se processou, salvo
E aos habitantes da Bahia, a segunda, se não a primeira cidade no caso limitado e como veremos, deficiente, das classes superiores
da colônia em riqueza, com exceção dos grandes comerciantes e da "casa-grande", num ambiente de família. Não é isto que ocorre
de alguns senhores de engenho e lavradores "aparatosos", que com a massa da população: nem com o colono recém-chegado,
aliás nada mais têm de seu que esta aparência de ricos, chamará . nem com o escravo, escusado acrescentá-lo; talvez ainda menos
de "congregação de pobres"( 13). com esta parte da população livre, econômica e socialmente ins
Vejamos o segundo grupo de relações sociais .a que me referi tável que temos já visto sob outros aspectos, e à qual falta base
acima, as que derivam mediata ou imediatamente dos impulsos sólida em que assentar a constituição da família( 15).
sexuais dos indivíduos. Sobre os costumes do Brasil-colônia, neste Quanto à casa�grande, se é certo que o seu núcleo é a família,
particular, há uma documentação abundante que só faz o desâ ou antes, a família ao senhor, e só ele ( da pequena, da minúscula
nimo do pesquisador obrigado a escolher. O desregramento atinge minoria portanto, e isto se esquece freqüentemente); e se, neste
tais proporções e se dissemina de tal forma, qUe volta debaixo sentido, é um ambiente familiar que cerca o filho-rico da socie
da pena de cada observador da vida colonial, por mais despreve dade colonial, exceção, no conjunto, quase única; há que abrir
nido que seja. A causa primeira e mais profunda de um tal estado larga margem para restrições se pelo conceito de família não
de coisas é com certeza, e já toquei incidentemente no assunto, entendemos apenas uma estrutura exterior, mas todo aquele com
a forma pela qual se processou, na maior parte dos casos, a plexo de normas, de "atmosfera" mesmo, que concede à família,
emigração para o Brasil. Ela não se faz senão excepcionalmente nas sociedades da nossa civilização, o grande papel de formador
por grupos familiares constituídos, mas quase sempre por indi dos indivíduos e do seu caráter. Neste sentido, a casa-grande
víduos isolados que vêm tentar uma aventura, e que mesmo tendo ficou muito aquém de sua missão. O sistema de vida a que dá
família, deixam-na atrás à espera de uma situação mais definida lugar, a promiscuidade com escravos, e escravos do mais baixo
e segura do chefe que emigrou. Espera que se prolonga e não teor moral, as facilidades que proporciona às relações sexuais
irregulares e desbragadas, a indisciplina que nela reina, mal
( 12) Paulo Prado, Retrato do Brasil. A tristeza brasileira foi observada disfarçada por uma hipócrita submissão, puramente formal, ao
por Saint-Hilaire, que a opõe à alegria do campônio francês ( Voyage aux pai e chefe, tudo isto faz a casa-grande, antes uma escola de
sources, I, 124); e a ela se refere ainda em outras passagens de seus diários. vício e desregramento, apanhando a criança desde o berço, que
Em particular no que diz respeito às crianças, em que deplora a falta de formação moral( 16). A família perde aí inteiramente, ou quase,
de espontaneidade e contentamento, id., 1, 374. De tudo isso poderíamos
talvez excetuar o Rio Grande do Sul, de formação aliás tão diferente· do
resto do país. ( 14) Ainda hoje isto se verifica, e a cada passo topamos com imi
( 13) Recopilação, 926 e 927. - A pabreza da papulação colonial é grantes casados na Europa e amancebados no Brasil.
testemunhada não só pelo depoimento de todos os observadores contem ( 15) ·11: talvez por isso que tanto se insiste no Brasil sobre a origem
porâneos, mas hoje ainda pelos escassos e miseráveis vestígios que nos familiar Esta orige� eleva e_ distingu� os in�i�í�uos, parque é p�óp�ia só
legou. Onde as constmções, os objetos, todo este aparelhamento que uma de umà- classe superior reduzida. Ser de familia entre nós, const1tma um
sociedade mesmo medíocre deixa sempre atrás de si? Nada ou quase distintivo de superioridade, de quase nobreza.
nada possuímos de uma época que não está ainda a século e meio de ( 16) Sobte_ este assunto, Vilhena nos forneçe uma síntese admirável
nós; e o que ficou é em regra um pobre testemunho. de observações às• quais não precisamos acrescentar nada. Recopilação, 138 e
350 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 351
l1s suas virtudes; e em vez de ser o que lhe concede razão moral tor e de classe que impedia a regularização de muitas situaçõé
básica de existência e que é de disciplinadora da vida sexual extramatrimoniais; preconceito tão forte_ que pode levar até a
dos indivíduos, torna-se pelo contrário campo aberto e amplo para desenlaces extremos, como este caso trágico de um ex-gov�mador
o mais desenfreado sexualismo. Advirta-se que não é no terreno de duas capitanias, Fernando Delgado de Castilho, que,. apaixona?º
dos sentimentos que me coloco aqui; não são as reações emotivas por uma mulher de condição Iiumilde, de quem tivera vános
e afetivas nas relações recíprocas de homem para mulher, ou de filhos, preferiu suicidar-se a levá-la, casada com ele, para o Reino,
pais para filhos que procuro negar, ou mesmo subestimar. Até de onde o chamavam(l9).
pelo contráriô, destas s6 se poderiam recriminar os excessos, der Como se vê, seriam freqüentes os casos da vida em com�m
ramando-se em condescendências e tolerâncias sem limite que extraconjugal que não se poderiam s6 por isso, e Pª!ª ? �fe.ito
não foram pouco responsáveis pela má educação que receberam que temos em vista, considerar como exemplos · de mdisciplina
as gerações coloniais ( 17). Mas não é por este lado somente que sexu'al. Aliás, de tão freqüentes que eram, acabam nem . se notando,
devemos analisar a família; o seu conteúdo é mais amplo que e a opinião pública os admitia sem o,menor constrangimento(20�.
o da simples esfera sentimental e afetiva. E se neste pecou a Mesmo contudo sem formar nosso jmzo sobre os costumes sexuais
família brasileira pelo excesso, nos demais falhou lamentavelmente. da colônia com esta irregularidade aparente e tão generalizada,
Reduzido assim, extensiva e intensivamente, o papel da família temos outros elementos seguros para nos fixar sobrç eles . "Os
na vida colonial, ficou aberta larga margem à indisciplina sexual. brasileiros" escreverá Hércules Florence em 1828, relatando a
Não podemos aqui limitar nossas observações ao fato da maior expedição Langsdorff que acompanhou na CJU�lidade de desen�ist�,
ou menor freqüência do casamento, pois este não s6 não é, por si "cujas amáveis qualidades são tão caractenshcas e?cont�m, mcli
apenas, uma garantia de regularidade e disciplina sexuais, como nados como são aos prazeres, nas mulheres do pais facilidade de
esta regularidade, entendida em termos sociol6gicos, não é exclu costumes, e em geral não pensam em se deixar prender nos laços
siva das relações legalmente sancionadas. Precisamos por isso
dirigir nossas atenções sobretudo para o grau de estabilidade que (Mem6ria sobre a agricultura, 123 ). Os emolumentos matrimoniais cobra
apresentam as relações sexuais, sejam ou não sancionadas legal dos pelo· clero não eram só pesados em confronto com a _pobr�za da
mente pelo casamento. E isto é em nosso caso, e para os fins que população; os abusos são freqüentes. :Assim no caso das provi.soes, h�nças
_ _
temos aqui em vista, particularmente importante, porque segundo para o casamento, cuja cobrança foi considerada �eg� por_ acórdao da_
o que se colige dos depoimentos contemporâneos, quase se pode Junta da Coroa de 28 de março de 1791, o que nao impedm que conti
.
nuassem como dantes a serem exigidas, apesar dos pro!estos. Ve1a-s� a
afirmar que, fora o caso das classes superiores, o casamento este respeito a longa controvérsia entre o Senado da Camara e o bispo
constitui uma situação excepcional. Mas é preciso reconhecer que de São Paulo, e que se encontra no Registro daquela, XII, 289, 317, 424
muitas das situações legalmente irregulares se explicam por outros e outras passagens. - Esta questão do custo dos casamentos .e o �b�t�culo
motivos que a simples indisciplina sexual. Assim, em muitos casos, que oferecia à regularização de situações ilegais, s'ó pela 1�poss1bih�ade
a dificuldade da realização do casamento pela distância em que material que determina, tem no Brasil um papel de �rt� unportância, e
.
ainda ,depois da República, achou o legislador const1tu�t� que deVIa
fica o sacerdote celebrante nestas paróquias imensas, onde um _
inclinar a obrigação da sua gratuidade no texto da Consbtu1çao de 1891
padre s6, e quase sempre pouco diligente, . tem de atender (art. 72 � 4.º). Aliás inutilmente; o mal era muito antigo para desaparecer
populações esparsas por dezenas de léguas de raio. Maior obs só com isto. ·
táculo à realização do casamento, e mais freqüente, é o seu custo; (19) Saint-Hilaire, que o conheceu pessoalmente quando governador
a este respeito, as queixas contemporâneas abundam, e está-se de Goiás, relata a tragédia ocorrida em 1821. Voyage aux sources . .., II, 83.
sempre às voltas com a questão(18). Ainda há o preconceito de Sobre o preconceito, como obst�culo contra .º �s�ento, Cunha Matos
refere casos interessantes em Goiás (Corografia hist6rica_, 29�). yma d�s
_
maiores pressões. contra as alianças com m�lheres de �on�ç_:lo mfenor partia
segs. E lembremos que ele é um professor, um educador, que fala portanto das irmandades leigas, cujos estatutos mcluíam dispositivos e �pressos .ª
com autoridade e experiência postas a serviço de uma inteligência crítica respeito, cominando pena de exclusão aos irmãos que contra1ssem tais
notável. casamentos.
(17) Veja-se o que a respeito escreve o mesmo autor já citado acima: (20) Saint-Hilaire, Voyage aux provinces de Rio de �aneir?: .. , II, 28.
_
Sier�a y Mariscai, Idéif1s gerai.s sobre a revolução do Brasil. O citado Governador Delgad9 de Castilho, quand o em Goiás, v1v1a pubh�
_
(18) Para não deixar de. citar um depoimento entre os muitos que mente em palácio .com a amante e os filhos. Nmguém o estranhava. I!: o
possuím.os, remeto º �eitor para º que diz a respeito um dos espíritos m is fato do casamento fora de sua classe, e não a mancebia, livre com quem
. _
esclarecidos de prmcipios , . � se quisesse, que provocava repulsa.
do seculo passado: o Cons. Veloso de Oliveira •
352 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 351
2o matrimônio." :8 acrescenta mais adiante que "as moças filh:1s "saimentos", como se dizia. Mas daí pará útn verdadeiro espírito
de pais pobres nem sequer pensam em casamento;. não lhes passa religioso, vai distância considerável. As festas religiosas indig
pela cabeça a possibilidade de arranjarem um marido sem o navam o piedoso Saint-Hilaire, que as chama de "irreverentes ceri
engodo do dote, e como ignoram os meios de uma mulher poder mônias, em que ridículas palhaçadas se misturam aquilo que a
viver do trabalho honesto e perseverante, são facilmente arrastadas religião católica apresenta de mais respeitável"(24). Sobre o
à, vida licenciosa" ( 21). Florence repete quase textualmente o que espírito religioso da colônia, o mesmo autor endossa a opinião
o Marquês do Lavradio escrevia meio século antes: "As mulheres que ouviu do vigário de São João dei-Rei, e que "os brasileiros
por se não empregarem e por falta de meios para se sustentarem, eram naturalmente religiosos, mas que sua religião não ia além
se prostituem" ( 22). dos sentidos; e quanto aos pastores, este parecem considerar a
Toc·amos aqui um ponto que é o mais alarmante sintoma da ofensa e o perdão como simples funções maquinais"(25).
geral indisciplina de costumes que reina na sociedade colonial: Não é assim de esperar dos mandamentos religiosos um freio
a larga disseminação da prostituição. Não há recanto da colônia sério à corrupção de costumes. O culto fica nos ritos externos,
em que não houvesse penetrado, e em larga escala. Não falemos estes sim rigorosamente observados. Quanto à moral, era-se de
naturalmente das grandes e médias aglomerações, onde o fato uma tolerância infinita. Coisa que não é para admirar: afora as
é mais natural, e sempre se encontrou em toda parte. Observemos causas �e�ais e m�is pr��nd�s q�e numa sociedade como a nossa
os pequenos, os mais insignificantes arraiais: quase toda a sua da coloma, e cuia fe1çao Já ficou bastante caracterizada nas
população fixa é constituída, além dos vadios, de prostitutas. f: páginas acima, tomam inviável uma compreensão· elevada da
um depoimento este geral: "Nós mais humildes povoados, teste Religião e do seu culto, cabe nisto ao clero, aliás vítima também
munhará Saint-Hilaire, a mais vergonhosa libidinagem se mostra d:s mesi:nas circunstâncias, um� boa dose de responsabilidades.
com uma imprudência que não se encontraria nas cidades mais Nao cogitou ele nunca, em con1unto, de levar a sério a instrução
corrompidas da Europa." ( 23). Circunstância aliás que explica o religiosa: o seu desleixo ileste terreno é lamentável, e parece que
destino da parte feminina deste numeroso contingente da popu os s�cerdotes não tê� outra função na colônia que presidir ou
lação, cuja masculina já vimos noutro capítulo: os desocupados e praticar os atos exteriores do culto e recolher os tributos eclesiás
vadios, vivendo de expedientes, com um pé na ociosidade e outro ticos. "Em muitos lugares,a firma Saint-Hilaire, a religião se con
no crime. �erva só por tradição, pois os fiéis, afastados de centros povoados
Formava a Religião, para ·tamanha corrupção, dique de importantes, passavam a vida num completo isolamento e sem
alguma eficácia? Que a crença religiosa tem na vida colonial o menor socorro espiritual" (26). Nos outros lugares, embora pre
papel considerável, já o notei em outro lugar. Esta aparece lite sentes, os padres se ocupavam muito mais em atividades privadas
ralmente entranhada por atos e cerimônias do culto. Folheando e com seus negócios, já o vimos anteriormente. E a este abandono
as Atas da Câmara de São Paulo p. ex., não se virará página quase em que deixa a população, acrescenta o clero o exemplo tão
em que não se encontre algum "termo de ajuntamento" para o freqüente de uma vida escandalosa e desregrada. O resultado
fim de comparecer a Câmara incorporada a missas importantes de . �-do isto �ão é de admirar porta�to que tenha sido aquela
ou de ação de graça� por isto ou aquilo, tedeuns, procissões - reh�iao reduzida a um �squeleto de praticas ex�eriores e maquinais
vazio de qualquer sentimento elevado, e que e ao que se reduziu
o catolicismo na colônia (27).
( 21) Esboço da viagem de Langsdorff, 361 e 448.
( 22) Carta de 12 de janeiro de 1778, cit., p. Fernandes Pinheiro, Os
últimos Vice-Reis do Brasil, 244. Logo adiante acrescenta: "Na facilidade ( 24) yoyage aux sources, I, 102.
que os homens têm com o trato das mulheres se segue também os poucos ( 25) • Les pasteurs semblent considerér comme un ;eu l'offense et le
que buscam o estado de casado." pardon" loc. cit.
(23) Voyage aux sources .. . , I, 127. Saint-Hilaire é em matéria desta ( 26) Voyage aux sources, II, 238.
natureza de uma reserva bem própria do seu feitio profundamente religioso. ( 27) Há qt� e acrescentar as deturpações da mais grosseira superstição,
. .
Seus diários são todos de reticências no assunto, e percebe-se a sua repug fruto da 1gnorancia e sobretudo da contaminação de crenças e cultos estra
nância em tratar dele. Mas a fidelidade do observador não pode esconder nhos ao cr(st!anism�, t!aziclos pel,;,s african_os e corrompidos pela escravidão.
_ ,
o que tão escandalosamente se evidencia; e daí o interesse que apresentam A· contnbmçao do md1gena e pequen:i pois em matéria de crença religiosa,
. _
para nós observações arrancadas a tamanhos escrúpulos. Outros viajantes su:i cultura ativa e como se sa_be rudimentar. - Somente os jesuítas, pode-s�
� _ intensa e sistemática de instrução e educação
foram mais francos. afmnar, realizaram obra mais
354 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 3:i5
subiam para sucessivos graus de recurso: ouvidor, Relação, Supli Janeiro(54). Hospitais não havia senão uns rarís�imos miljtares,
cação de Lisboa, às vezes até Mesa do Desembargo do Paço, como o do Rio de Janeiro, que se instalo\! no antigo colégio dos
arrastando-se sem solução por dezenas de anos. A segurança públi Jesuítas(55), e as Santas Casas de lv1isericórdia, que embora
ca era precária. Já vimos os recursos e adaptaçõE-s a que a poucas, constituem a mais bela e quase �ni�a inst�tuiçã�, social
administração teve de recorrer para suprir_ sua incapacidade neste ae certo vulto da colônia. Das obras publicas, vimos Jª uma
terreno da ordem legal, delegando poderes que darão nestes amostra nestes miseráveis caminhos e mais vias de comunicação.
quistos de mandonismo que se perpetuarão pelo Império a dentro, E afora isto, legou-nos a colônia pouquíssimas obras dig_na� de
se não a República, e tomando tão difícil em muitos casos a menção; algumas fortalezas medíocres _e o aqueduto da Carioca,
ação. legal e política da autoridade. Mas mesmo com esta adapta no Rio de Janeiro, quase esgotam a hsta(56).
ção forçada, não se conseguiu fazer predominar a ordem; a O fomento da produção estava inteiramente entregue à boa
insegurança foi sempre a regra, não só nestes sertões despoliciados vontade de um ou outro administrador mais esforçado, e nun�a
que constituem a maior parte da colônia, mas nos próprios grandes passou de pequenas e limitadas providências(5�). A_ lista poderia
e maiores centros, à sombra das principais autoridades. Se o ser alongada, mas inutilmente, neste m�sm? .?ial?asao: a ?1;srr�a
banditismo e o crime permanente não assolaram a colônia exces falta de esforço construtivo, a mesma mehciencia . e negligencia
sivamente, isto se deveu muito mais à índole da população, e se encontrará por toda parte. _Dm exen:iplo b_ astana para carac
não às providências de uma administração inexistente na maior terizar a administração colonial: a mmeraçao. Durante . q�ase
parte do território da colônia(52). um século, a exploração do ouro e dos diamantes constitum �
maior riqueza da monarquia, a base em que as;ento� a prospe:i
As finanças não estão em melhor postura; alguma coisa, e dade e até mesmo a existência do trono portugues. Pois nem assim
bastante ilustrativa, já foi dita acima com respeito à arrecadação ela mereceu mais que a consideração de um bem trib�t�vel,
das rendas públicas. O manejo delas não é de melhor qualidade. uma fonte de renda que se tratava de expl?�ar ao maximo.
Nunca se viveu, em todas as capitanias, cidades e vilas de cujas Afora isto nada se fez, e deixou-se toda a matena ao abandono.
finanças temos notícias, senão . em regime permanente de deficit. A incapacidade da administração colon�al? a �egligência e_ i�ércia
E um deficit "desorganizado", se podemos sem pleonasmo acres que demonstrou diante da imensa d1ssipaçao e destruiçao de
centar este qualificativo para caracterizar o sistema financeiro riqueza natural que se praticava i;i�s minas, é um atestado que
da colônia, onde a falta de rendimentos para cobrir as despesas dispensa quaisquer outros comentanos.
se resolvia sumariamente com o calote, não se pagando, nem .. _
Se no terreno da eficiência é este o retrato da admmistraçao
com boas intenções, os credores que não fossem protegidos das colonial, não é ele mais avantajado no da morali�ade., De alt_o
autoridades. Nem o soldo das tropas se satisfazia regularmente, a baixo da escala administrativa, com raras exceçoes, e a mais
e o espetáculo de soldados mendigando pelas ruas era comum. grosseira imoralidade e corrupção que <l�n�ina_ desbragadai:nente.
Se nas suas funções essenciais a administração era isto, nas Poder-se-ia repetir aqui, sem nenh�ma m1us!iça, o conceito do
outras é pior. A instrução pública estava reduzida a umas poucas ,
Soldado Prático: "Na 1ndia não ha cousa sa: tudo esta podre
aulas de primeiras letras, latim e grego, esparsas pelos principais e afistulado, e muito perto de herpes ..." Os mais honestos e
centros, e ao parco ensino ministrado nas maiores cidades pelas
ordens religiosas(53). Os serviços de higiene e saúde pública se
constatam pelo estado das principais cidades, Bahia e Rio de (54) Para a Bahia: Vilhena, Recopilaçã?; para º. Itio de J�neiro, ·
sobretudo Oliveira Lima, D. João VI no Brasil. Inscrevia-se no ativo da
administração a introdução da vacina nos primeiros ano_s d� séc. XIX;.
(52) Sobre a justiça e segurança na colônia, veja-se a critica de Saint (55) Sobre este hos ita1: Pedro Cúrio de Carvalho, Histórico da Mlpl-
-Hilaire, que resume admiravelmente o assunto: Voyage aux provinces de talização militar no Brasif.
Rio de Janeiro ... , I, 364 e segs. (56) Há ainda os edificios públicos, poucos além �s .1g!e1as.
.
O v�1pr
(53) Sobre o ensino da Bahia, consulte-se Vilhena, Recopilação, Carta dessas tem sido consideravelmente exagerado. A1gumas tem, nao há dúvida,
VIII, que escreve com a autoridade própria de professor régio que era. valor artístico; mas nenhuma a grandeza ou suntuosidade gue se lhes quer
Para o Rio de Janeiro, vejam-se as interessantes considerações duma repre emprestar. Ao lado dos monun:ientos religiosos �as co�ôo1as hispano-ame
sentação dos professores régios em 1787, e publicada na Correspondência ricanas, México e Peru em particular, fazem med1ocre figura.
de vártas autoridades, 215. - Um résumo sumário, mas bem feito, da (57) Lembremos aqui a administração, única sob este aspecto, uo
instrução colonial, é o trabalho de Moreira de Azevedo, Instrução nos Marquês do Lavradio no Rio de Janeiro. Também a de Lôbo de Almada na
tempos coloniais. Capitania do füo Negro.
334 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contemf)Ordneo 335
digno� delegados da administração régia são àqueles que não raramente foram além dos proveitcs imediatos que sob a f.Qnna
..
de tributos podia auferir da colônia. Um governador do Rio
embolsam sumariamente os bens públicos, ou não usam dos cargos
para especulações privadas; porque de diligência e bom cumpri Grande do Sul aliás um dos mais notáveis, Silva Gama, resumia
mento dos deveres, nem se pode cogitar. Aliás o próprio sistema em 1805 este pensamento numa confissão crua e mm: "'Nada me
vigente de negociar os cargos públicos abria naturalmente portas interessa com mais fervor, escrevia ele ao governo '40 Reino,, do
largas à corrupção. Eles eram obtidos e vendidos como a mais que a fiscalização da Real Fazenda. Diminuir as suas, despesas.
vu_Igar merca?oria. Mas isto ainda é o de menos, porque estava nos o quanto é possível, fazer arrecadar ansiosamente tudo \que possa.
metodos aceitos e reconhecidos. O que fazia Vieira, já século pertencer-lhe sem dano dos vassalos, e esquadrinhar novos ·recur
e meio antes, conjugar no Brasil o verbo "rapio" ( no sermão do sos para aumentá-la, são os objetivos do meu maior desvel�": (59).
Bom Ladrão) em todos os modos, tempos e pessoas, era esta Um obje!ivo !iscal, nad� mais que _isto, é o que anima a metrópole
geral e universal prática, que já passara para a essência da na colomzaçao do Brasil. Raros sao os atos da administração ou
administração colonial, do peculato, do suborno e de todas as os administradores que fazem exceção à regra. Pombal, cujo
demais formas de corrupção administ�.itiva. Se fo��� alinhar aqui governo é o único talvez, depois do período lieróico da história.
testemunhos, seria um não acabar :-,unca. E mesr .o fazendo neles portuguesa, que teve vistas largas, Pombal mesmo não eonseguiu
o desconto da maledicência, a adm:nistração :1ã0 sairia mais rea desvencilhar-se inteiramente do que estava no fundo da cons
bilitada: isto porque, salvo er.i discursos la dai:órios e de ordem ciência nacional, ou antes da política da monarquia. O ouro e
pessoal ( que pela sua freqii .!ncia já não co-_1stituem nenhum bom
1
os diamantes, então, fizeram perder o resto da cabeça e bom�senso
sintoma), não se encon1 ra nos depoimentos contemporâneos q�e sobravam à metrópole. Com uma ânsia sem paralelo, ela se
nenh atua sobre o metal e as pedras como um cão esfaimado sobre ,o
_ _um conceito, já não digo elogioso, mas de tolerância e justi osso que aflora na terra cavada. Só que não tinha sido ela guem
ficativa para com a administração. Parta de onde partir a crítica
ou observação, dos simples cidadãos nascidos na colônia ou dos o escavara . . . Durante um século quase, não haverá outra
r�fnóis, ':°mo dos mesmos delegados do poder, a opinião é inva preocupação séria e de conseqüência que a cobrança <los
navel e igualmente severa. Acrescente-se a isto o que referem os direitos régios, o quinto; a história administrativa dó -Brasil
- se
viajantes estrangeiros que nos visitaram em princípios do século contará em função dela.
passado, quase todos eles da maior consciência e honestidade e Assente numa tal base, a administração colonial não podia
sem motivo especial algum para não dizerem a verdade e ter-se-á s�r outra �oisa que foi. N,egl�gencia-se tudo que não seia per<:ep
uma �ole?ão de dados tais que, a não ser que se conteste a çao de tributos; e a ganancia da coroa, tão crua e cinicamente
afirma�a, ª, mercantilização brutal dos objetivos da colonização,
frÓpna hipótese fundamental de toda pesquisa histórica e que contamma�a todo mundo. Sera o arrojo então geral para o lucro,
1
( 1) "A escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização
que este país jamais possuiu... Social e economicamente, a · escravidão
340 Caio Prado Júnior Formação do Bras-il Contempordneo 341
estado primitivo. As relações servis são e permanecerão relações
Para constatar o a.:::erto da observação, basta-nos comparar os
puramente màteriais de trabalho e produção, . e nada ou quase
setores da vida colonial em que respectivamente domina uma e
outra forma de trabalho, escravo ou livre. À organização do nada mais acrescentarão ao complexo cultural da ,colônia.
primeiro, à sua sólida e acabada estruturação e coesão, corres A outra função do escravo, ou antes da mulher escrava,
ponderá a dipersão e incoerência do outro. Vimos estes dois instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus senbores
aspectos da sociedade colonial: de um lado o escravo ligado ao e dominadores, não tem um feito menos elementar. Não ultra
seu senhor, e integrados ambos nesta célula orgânica que é o passará também o nível primário e puramente animal do con'tacto
"clã" patriarcal de que aquele laço forma a textura principal; sexual, não se aproximando senão muito remotámente da esfera
doutro, o setor imenso e inorgânico de populações desenraizadas, propriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve
flutuando sem base em tomo da sociedade colonial organizada; de todo um complexo de emoções e sentimentos tão amplos que
chegando apenas, em parcelas pequenas a se agregar a ela, e chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele ato
a1quirindo assim os únicos visos de organização que apresentam. que afinal lhe deu origem ( 2).
Fica-se em suma na tentação de generalizar ainda mais o conceito Em alguns outros setores, a escravidão foi mais fecunda.
de Alberto Tôrres, e não ver na servidão senão o único elemento Destaquemos a "figura boa da ama negra" - a expressão é de
real e sólido de organização que a colônia possui. Gilberto Freyre, - que cerca o berço da criança brasileira de
Mas seja como for, a análise da sociedade colonial obriga uma atmosfera de bondade e ternura que não é fator de menor
a um desdobramento de pesquisa., Qualquer generalização que importância nesta florescência de sentimentalismo, tão caracte
abranja as duas situações tão diversas que nela se encontram rística da índole brasileira, e que se de um lado amolece o indi
correrá o risco de erros consideráveis de apreciação. Para com víduo e o desampara nos embates da vida - não padece dúvida
preendermos, no seu conjunto, o� laços que lhe mantêm a coesão que boa parte da deficiente educação brasileira tem aí sua origem,
e de que se forma a sua trama, temos que vê-la como de fato - doutro contribui para quebrar a rudeza e brutalidade próprias
ela se constitui: de um núcleo central organizado, cujo elemento de uma sociedade nascente. Mas neste, como em muitos casos
principal é a escravidão; e envolvendo este núcleo, ou dispondo-se semelhantes, é preciso distinguir entre o papel de escravo e do
nos largos vácuos que nele se abrem, sofrendo-lhe mesmo, em negro, o que Gilberto Freyre acentuou com tanto acerto. A
muitos casos, a influência da proximidade, uma nebulosa social distinção é difícil: ambas as figuras confundem-se no mesmo indi
incoerente e desconexa. víduo, e a contribuição do segundo se realiza quase sempre através
Não preciso acentuar mais uma vez o papel que a escravidão do primeiro. Mas não é impossível, e de uma forma geral, o que
tem naquele primeiro setor, o orgânico da sociedade colonial. se conclui é que se o negro traz algo de positivo, isto se anulou
Mas devemos acrescentar aqui o caráter primário das relações na maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais. O
sociais que dela resultam, e daquilo que com ela se constituiu. escravo enche o cenário, e permitiu ao negro apenas que apontasse
Primário no sentido em que não se destacam do terreno puramente em raras oportunidades. Já notei acima que outro teria sido o
material em que se formam; ausência quase completa àe superes papel do africano na formação cultural da colônia se lhe tivessem
permitido se não o pleno, ao menos um mínimo de oportunidade
�tura, dir-se-ia para empregar uma expressão que já se vulga
rizou. Realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá para o desenvolvimento de suas aptidões naturais. Mas a escra•
na sociedade colonial, fator trabalho e fator sexual, não determi vidão, como se praticou na colônia, o esterilizou, e ao mesmo
nará senão relações elementares e muito simples. O trabalho tempo que lhe amputava a maior parte. de suas qualidades,
escravo nunca irá além do seu ponto de partida: o esforço físico aguçou nele o que era portador de elementos corruptores OU·
constrangido; não educará o indivíduo, não o preparará para que se tomaram tal por efeito dela mesma. E o baixo nível !la
um plano de vida humana mais elevado. Não lhes acrescentará sua cultura, em oposição ao da raça dominante, impediu-lhe de
elementos morais; e pelo contrário, degradá-lo-á, eliminando mesmo
nele o conteúdo cultural que porventura tivesse trazido· do seu
(2) "Le miracle de l'amour humain, c'est que, sur un ln#fnct trN
deu-nos, por longos anos, todo o esforço de toda a ordem que então aimple, le désir, il construit les édifices de sentiments lei plw .compl,-,
possuímos, e fundou toda a produção material que ainda ternos." O et les plus délicats." (André Maurois.) :E: este milagre que o amor ela
Problema Nacional, 11. senzala não realizou e não podia realizar no Brasil-colônia.
342 Caio Prado Júnior Formação do Brasil ComnsPo,.._ 3-C3
se afinnat com vigor e sobrepor-se à sua miserável condição, &.o daquilo gue sai do círculo estreito desta forma particular de
contrário do que em tantas instâncias ocorreu no mundo antigo. atividade produtora.
Em suma, a escravidão e as relações que dela derivam, se À luz desta vista d'olhos preliminar por sobre a sociedade
bem que constituam a base do único setor organizado da sociedade colonial, torna-se possível compreender a maior parte dos seus
colonial, e tivesse por isso permitido a esta manter-se e se desen traços e caracteres essenciais. Porque ela se soma e sumaria
volver, não ultrapassam contudo um plano muito inferior, e não na observação geral feita de início: a falta de nexo moral que
frutificam numa superestrutura ampla e complexa. Serviram apenas define a vida brasileira em princípios do século passado, a po
para momentaneamente conservar o nexo social da colônia. No breza de seus vínculos sociais. Tomo aquela expressão "nexo
outro setor dela, o que se mantém à margem da escravidão, a moral", no seu sentido amplo de conjunto de forças de aglutinação,
situação se apresenta, em certo sentido, pior. A inorganização é complexo de relações humanas que mantêm ligados e unidos os
aí a regra. O que aliás sua origem faz prever; vimo-lo anterior indivíduos de uma sociedade e os fundem num todo coeso e
rilente: aquela parte da opulação que o constitui e que vegeta compacto. A sociedade colonial se definirá antes pela desagregação,
à margem da vida coloniaf., não é senão um derivado da escravidão, pelas forças dispersivas; mas elas são em nosso caso as da inércia;
nu diretamente, ou substituindo-a lá onde um sistema organizado e esta inércia, embora infecunda, explic:i suficientemente a relativa
de vida econômica e social ,não pôde constituir-se ou se manter. estabilidade da estrutura colonial: para contrariá-la e manter a
precária integridade do conjunto, bastaram os tênues laços mate
Para este setor não se pode nem ao menos falar em "estrutura"
social, porque é a instabilidade e incoerência que a caracterizam, riais primários, econômicos e sexuais, ainda não destacados de
seu plano original e mais inferior, que se estabelecem como resul
tendendo em todos os casos para estas formas extremas de desa
tado imed!ato da ª,Proximação de indivíduos, raças, grupos dís
gregação social, tão salientes e características da vida brasileira, _
pares, e nao vao alem deste contacto elementar. É fundada nisto,
e que notei em outro capítulo: a vadiagem e a caboclização ( 3). e somente nisto, que a sociedade brasileira se manteve, e a obra
É isto, em resumo, que o observador encontrará de essencial da colonização pôde progredir.
na sociedade da colônia: de um lado uma organização estéri� no Poderíamos acrescentar a pressão exterior que o poder, a
que diz respeito a relações socia,is de nível superior; doutro, um autoridade e ação soberana da metrópole exerceram sobre a
estado, ou antes um processo de desagregação mais ou menos sociedade colonial, contribuindo assim para congregá-la. Não é
adiantado, conforme o caso, resultante ou reflexo do primeiro, e de desprezar este fator, que apesar do raio limitado de sua exten
que se alastra progressivamente. E note-se, antes de seguirmos são e penetração - já o vimos ao falar da administração pública
adiante, e repisanào um assunto já ventilado, que tais aspectos na colônia, -- contou por muito na subsistência e manutenção da
correspondem grosseiramente, no terreno econômico, aos dois estrutura social brasileira. Os acontecimentos posteriores, que
setores que aí fomos encontrar: a grande lavoura e a mineração precedem imediatamente a Independência e a seguem, estão aí
de um lado, as demais atividades que reuni na categoria getal para demonstrá-lo. O enfraquecimento daquele poder levou o
de "eçonomia de subsistência", do outro. A observação é impor país, durante muito tempo, para a iminência da anarquia, que
tante porque vem confirmar mais uma vez o que já foi dito aliás muitas vezés, e em vários setores, embora restritos, se tomou
sobre a caracterização da economia brasileira, votada essencial efetiva; e só se conteve com a constituição de um Estado qlie,
mente à produção de alguns gêneros exportáveis; este seu caráter embora nacional de nome e formação, reproduziu quase integral
unilateral se revela aqui sensivelmente, mostrando a precariedade mente a monarquia portuguesa que viera substituir; que não
brotou do íntimo da sociedade brasileira, incapaz de tal criação,
( 3) Há exceções a assinalar, exceções em que vemos se constituírem mas lhe é imposta do exterior, continuando a exercer sobre ela
neste setor da vida colonial formas sociais mais aperfeiçoadas. Mas são o mesmo tipo de pressão que o daquela ( 4).
raras, como a mais interessante e conhecida delas, o "mutirão", que ainda
subsiste em certas partes do Brasil, e que consiste no trabalho em comum
e auxílio mútuo na lavoura. Saint-Hilaire teve ocasião de observar o mutirão ( 4) Não se caracterizará isto unicamente pelo fato da perpetuação da
numa região do hoje Triângulo Mineiro. Voyage aux sources . .., II, 269. organização monárquica no Estado nacional brasileiro, invés.tiaa aliás na
Parece contudo que se trata antes de uma sobrevivência indígena, e o nH·sma dinastia; o ciue por si já é uma prova do artificialismo d@ constitult·ilq
exemplo de Saint-Hilaire refere-se aliás a populações com alta dose de que adotamos. Não havia no Brasil, afora o hábito dQ passado, IM11u
sangue mestiço. Não se trataria então de uma criação, mas de um traço alguma para o trono. Mas não é somente nisto que se assinala· a persist(mcln
cultural que sobrou da vida comunitária do índio, <lu regime político a,nterior, embora sob vestimenta nacional; -6 o pto-
344 Caio Prado Júnior Formação do Brasit �on&.m� :U:S
ociosidade que para os senhores resulta do trabalho entre�e intei
.. .
Há !inda que levar em conta uma certa uniform idade de ramente a escravos. É esta uma atitude psicológica por demais
uh�des , em�reguemos esta expressão ampla, que identifica 0
, conhecida para nela nos demorarmos. Um e outro efeito .da
WnJunto colomal e suas várias partes. Uniformidade de senti
,mcntos, ?� usos, de crenças, de língua. De cultura, numa palavra.
escravidão se somarão para fazer ou evitar quaisquer atividades.
A indolência, o ócio dos casos extremos, mas sempre uma ati
E!: servi�ia, e de f�to serviu de base moral e psicológica para
vidade retardada, uma geral moleza e um mínimo de dis�ndio
a 1 �rmaç�,º do Brasil
_ como nação, e lhe proporcionou a unidade
de energia resultarão daí para o conjunto da sociedade .colonial.
nac10nal lª rea!izada n� geografia e na tradição. Mas neste sentido
Tudo repousará exclusiva.mente no trabalho força.do e não con
ela se ,afl!'mara posteriormente, em oposição à metrópole e mais
sentido imposto pela servidão; fora disto, a atividade colonial é
tarde_ as outras nações estrangeiras. É antes um fardo político,
quase nula. Onde falta a obrigação sancionada pelo açoi�e, o
e na � tr �:_ no mo�ento e no assunto particular que nos ocupa, tronco e demais instrumentos inventados para dobrar a vontade
cont:i�mça_o apre:iavel para trama da sociedade colonial. Aquela
humana, ela desaparece, Os, libertos que se fazem �r via de
oposi�a _o amda nao representa papel social, mas começa apenas
regra vadios, apesar da escola em que se formaram, e disto uma
o pohtico.
das provas.
(_?aracterizemos agora, mais de perto, a vida colonial e as Isto, para as atividades de natureza física, é regra pratica
rdaçoes que �ela vamos encontrar. Toda sociedade organizada
mente universal: nenhum homem livre se rebaixa a empregar
s� funda precipuamente na regulamentação, não importa a com
os músculos no trabalho. É de Luccock uma anedota bem ilus
pLexidade posterior 9-u� dela resultará, dos dois instintos primários
trativa do caso: tendo ido buscar um serralheiro de cujos serviços
do J:!omem: º.ec�m_omi?O e ? sexual. Isto não vai aqui como afir
precisava, este o fez esperar longamente na expectativa de um
maçao de prmcipio, mcabivel em nosso assunto · mas servirá negro de serviço para transportar sua ferramenta de trabalho,
unicamente_ de fio c�ndutor à análise que vamos e�preender das pois carregá-la pelas ruas da cidade não era ocupação digna de
relaçoes fundamentais que se estabelecem no seio da sociedade um homem livre( 5). As outras funções se praticam sempre com
colonial. Na primeira <:_ategoria, o elemento que definirá, e na
um mínimo de energia. Uma lentidão e economia de esforços
bas� do qua! se formarao aquelas relaçEes, é o trabalho, tomado que faziam a cada passo o desespero dos enérgicos europeus
aqu� n� �entido amplo e mais geral de atividade que proporciona que nos visitavam.
ao individuo seus meios de subsir,Lência. Na outra o conteúdo
se�ão as relações que s� estabelec�i:n entre sexos opo�tos e as que Somente num setor encontramos mais atividade: é no dos
dai resultam: as rel.açoes de familia, em suma. colonos recentes ainda não contaminados pelo exemr,lo do país;
destes reinóis que. vinham para cá "fazer a América', ávidos de
R
_ elativamente ao .trabalho, já se viu acima alguma coisa que ganho, dispostos a tudo e educados numa escola de trabalho e
,
ser�ira par� caracterizar os laços que dele derivam. Assim o
ambição muito diferente da dos brasileiros. Eles representam, com
efeito _ deprimente que. exerce sobre sua conceituação o regime os escravos, os únicos elementos verdadeiramente ativos da colônia.
servil. Há outro de quase igual importância: o estímulo para a Num interessante ensaio sobre as causas da Independência, escrito
em 1823 e dedicado ao soberano português, Francisco Sierra y
longam�nto _ de. um situação política e institucional de conjunto, que só Mariscal analisa com muita clareza este abismo de concepção
se mo?1ficar� de uma forma substancial em período muito adiantado da e atitudes que separa brasileiros de portugueses imigrantes.
evolu?ªº _nac10nal do _ p_aís. E aquilo era tão bem sentido, que as revoluções
e ag1taçoe,� da pnme1ra parte do Império tomam o caráter de reações Enquanto esses últimos, chegados ao Brasil de mãos abanando,
c�:itrn o governo do Rio de Janeiro", tal como fariam contra o de escreverá Marisca!, "não há nada a que se não sujeitem, e com
L,�·bo�. O federalismo ,b:asileiro tem al a sua essência; pelo menos O da economia e trabalho chegam a ter grandes cabedais", o brasileiro,
pnmc1ra rart _ : do I,n�peno. - J:- pobreza da vida social brasileira encontra nascido na abastança, "o orgulho se apodera dele, e este é sempre
n,a co�st1_tmçao pohti�a do pais independente uma . confirmação flagrante.
,
� c)a ,1_ causa das _d1f1culdades e problemas de orgamzação e funcionamento
maior que os meios de o sustentar. . . não conhece o trabalho
rnst1tu_c1�?ªl que \i�emos de en_frentar, e q�e levaram até aquele esdrúxulo nem a economia ... e quando chega ao estado viril, já está pobre",
� artif �cial Impe110 const1tuc10nal que tivemos. Compare-se isto para
ilustrnçao, com o que ocorreu nas colônias inglesas da América do' Norte
que, separando-se da metrópole, criaram um sistema não só original de
gov_e�no, mas que. fez época e lançou um marco saliente na evolução
pohhca da Humamdade. (5) Notes, 17.
346 Ceio Prado Júnior Formação do Brasil Confempordar,o 347
porque; conclui com muita iógica o nosso autor, "não há cabedal Mas seja como for, o índio e Cóm ele seus de$cendentes mlll:s
que chegue a quem gasta muito, e não ganha nada" ( 6). ou menos mestiçados, mas formados na sua escola, e gue CO�sti
Uma tal atitude da grande maioria, da quase totalidade da tuem parte tão apreciável da população colonial, têm. por feição
colônia relativa ao trabalho, de generalizada que é, e mantida dominante, para todos os efe�tos da coloniza�ão, "a falta �mJ.>let_a
através do tempo, acabará naturalmente por se integrar na psico e absoluta de energia e ação ( 8). E esta sena uma_ das pnn.cip�is
logia coletiva como um traçq profundo e inerraigável do caráter razões por que as regiões onde eles formam contingentes· muito
brasileiro. A preguiça e o ócio, aqui n� Brasíl, "até se pega grandes nunca fizeram mai� que veget�r. O govemad� do Pará,
como visgo", dirá Vilhena. Mas se a escravidão, nas suas várias D. Francisco de Sousa Coutinho, escreVIa desalentado a metf9pole
repercussões, é a responsável principal por isto, há outros fatures dep ois de três anos de governo: "O poderoso inimigo destes
de segundo plano que não deixam de ter o seu papel. O principal habitantes e a mais poderosa causa entre muitas outras de seu
deles é a contribui9ão do sangue indígena, considerável como atraso é a preguiça deles" ( 9).
sabemos. A indolência do índio brasileiro tomou-se proverbial, . Ao influxo do sangue indígena como fator de indolência,
e de certo modo a observação é exata. Onde se erra é atribuindo-a ainda há que acrescentar esta causa geral que é o sistema e�nô
a não se sabe que "caracteres inatos" do selvagem. Na sua vida mico da colônia, tão acanhado de oportunidades e de perspectivas
nativa, mesmo na civilizada quando se empenha em tarefas que tão mesquinhas. Não seria um tal ambiente propício a estimular
conhece, e sobretudo cujo alcance compreende, o selvagem brasi as energias e atividades dos indivíduos, uma escola muito favorável
leiro é tão ativo como os indivíduos de qualquer outra raça. Será de trabalho.
indolente, e só aí o colono interessado o enxergava e julgava, De tudo isto resultará para a colônia, em conjunto, um
quando metido num meio estranho, fundamentalmente diverso do tom geral de inércia. Paira �a atmos��ra em 9ue a popu� ação
seu, onde é forçado a uma atividade metódica, sedentária e or colonial se move, ou antes descansa , um VIrus generalizado
ganizada segundo padrões que não compreende. Em que até os de pre guiça, de moleza que a todos, com raras exceções, atinge.
estímulos nada dizem a seus instintos: a ganância, a participação O aspecto do Brasil é de estagnação. ,Sai� t-�ilaire, d� pois de lon
em bens, os prazeres que para ele não são nem bens nem prazeres. gas peregrinações e de uma pe�anencia Já de muitos an?s �m
Nada houve de mais ridículo nos sistemas de educação dos índios _
contacto íntimo com a vida do pais, nao esconderá sua admiraçao,
que isto de tentar levá-los por tais incentivos, modelados por e por isso elogiará calorosamente ·, os mora�ores de ltu e Sorocaba
figurinos europeus e estranhos a seus gostos(7). ( São Paulo), porque encontrou a1. . . um 70�0 de bola; no est�do
de espírito em que se achava, e tendo em VIsta o que presenciara
até então, constituía isto já uma "prova" de energia ( 10). Até nos
( 6) Idéias gerais sobre a revolução do Brasil, 55.Esta diferença é seus prazeres e folguedos, a população :°lon� al é apática ( ;l).
de tal forma produto do meio, que os próprios filhos do português enrique A apatia, Paulo Prado esqueceu-se de a mclmr ��tre os fat�res
cido, brasileiros de nascimento e educação, observa o mesmo Mariscai, da tristeza brasileira, que não vem somente da luxuria e da cobiça,
não seguem o exemplo dos pais, e "entrarão na ordem geral, he dizer, nias sobretudo de um� inatividade sistemática, que acaba se apo-
cahem na pobreza."
( 7) Até um homem profundamente conhecedor das raças de sua terra
natal, o Pará, e muito simpático a elas, como José Veríssimo, não enxergou ( 8) José Veríssimo, Populações indígenas da Amazônia, 308..
inteiramente esta situação paradoxal dos índios perante a civilização. A (9) InfON1UJÇões, 66.
indolência, a falta de ambição que se observam no índio não são senão ( 10) Voyage aux provinces de Saint-Paul ..., I, 378...
fruto de sua completa indiferença, quando não de hostilidade, relativamente ( 11) Seria muito interessante estudar o folclore brasileiro sob , est.,
a urna civilização que se lhe impôs, e cujo valor, com todos os atrativos aspecto em paralelo com o de outros países.Pelo que 9 u_alquer um já poder:\
que tem para nós, é para ele nulo. Enxergar no indígena brasileiro, ou por si observar, a conclusão não oferece a menor duvida.9omparc-se um
em outras raças de cultura diferente da nossa, falhas de caráter onde não festejo popular brasileiro com o de qualquer das populaço�s da E�
há senão atitudes próprias de um inadaptado ou revoltado, é o veza
sobretudo dos anglo-americanos. Mas qual seria, perguntamos nós, a reação p or exemplo: à apatia e tristeza daquele, corresponde o _ entusiasmo e alegria
destes últimos. O próprio Carnaval, para quem o tiver observado com
de um destes enérgicos anglo-saxões a quem lhe pedisse um dia de trabalho atenção não escapa à regra.Afora as expansões de caráter acen�adamcmte
a ser pago <.:om um jantar de pir<io de açaí ou de mandioca puba? Mutc1ti.1 org íaco ou de cultos de crenças ancestrais que nos dias comuns levam o
mutanclis, é a mesma coisa que se passa mm o indígena. O único estímulo
civilizado que o índio compreendeu foi a aguardente, que por isso a
indivíd�o à polícia, nada mais há neie. - Note-se ainda _q�e .ºelelT!eTito
brasileiro mais ativo neste setor é o negro, que tem a trad1çao do trabalho
colonização empregou largamente. escravo.
348 Caio Prodo Júnior Formação do BrasU Contem�MO :MO
dcrando <lo indivíduo todo, tirando-lhe até a energia de rir e raro se eternizá, porque o novo colonó, mesmo estabilizado_, aca
folgar( 12). bará preferindo a facilidade de co�tumes que lhe proporcio_na�
Que dizer, nestas condições, do teor econômico da coloní:-t? mulheres submissas de raças dommadas que encontra aqm, as
Não pode deixar de ser, e não foi efetivamente, mais quê uma restrições que a família lhe trar?. E quando não, já �stará t�o
lástima. Porque afora o trabalho constrangido e mal executn,!o habituado a tal vida que o freio da mulher e dos filhos nao
do escravo, não se vai além do estritamente necessário para n;'.o atuará nele senão muito pouco(l4).
perecer à míngua. E isto explica suficientemente, a par das condi _ Lançadas nesta base não familiar, outras circunstâncias vêm
ções gerais da economia que já assinalei, e que são afinal a cansa reforçar a irregularidade dos costumes sexuais da colônia. A escr�
indireta de tudo isto que estamos vendo, o baixo, o ínfimo padri:o vidão, a instabilidade e insegurança econômicas ... ; tudo contn
de vida da população colonial, a sua pobreza, sem excetuar mesmo buiria para se opor à constituição da família, na sua expressão
as classes mais favorecidas. Do Brasil em conjunto, dirá Vilhena integral, em bases sólidas e estáveis. A formação brasileira, ao
que, apesar dos recursos naturais dele, é a "morada da pobreza." contrário do que se afirma correntemente, não se processou, salvo
E aos nabitantes da Bahia, a segunda, se não a primeira cidade no caso limitado e como veremos, deficiente, das classes superiores
da colônia em riqueza, com exceção dos grandes comerciantes e da "casa-grande", num ambiente de família. Não é isto que ocorre
de alguns senhores de engenho e lavraàores "aparatosos", que com a me.ssa da população: nem com o colono recém-chegado,
aliás nada mais têm de seu que esta aparência de ricos, chamará . nem com o escravo, escusado acrescentá-lo; talvez ainda menos
de "congregação de pobres" ( 13). com esta parte da população livre, econômica e socialmente ins
Vejamos o segundo grupo de relações sociais .a que me referi tável que temos já visto sob outros aspectos, e à qual falta base
acima, as que derivam mediata ou imediatamente dos impulsos sólida em que assentar a constituição da família( 15).
sexuais dos indivíduos. Sobre os costumes do Brasil-colônia, neste Quanto à casa.-grande, se é certo que o seu núcleo é a família,
particular, há uma documentação abundante que só faz o desâ ou antes, a família ao senhor, e só ele ( da pequena, da minúscula
nimo do pesquisador obrigado a escolher. O desregramento atinge minoria portanto, e isto se esquece freqüentemente); e se, ne�te
tais proporções e se dissemina de tal forma, qu·e volta debaixo sentido, é um ambiente familiar que cerca o filho-rico da soci�
da pena de cada observador da vida colonial, por mais despreve dade colonial, exceção, no conjunto, quase única; há que abnr
nido que seja. A causa primeira e mais profunda de um tal estado larga margem para restrições se pelo conceito de família não
de coisas é com certeza, e já toquei incidentemente no assunto, entendemos apenas uma estrutura exterior, mas todo aquele com
a forma pela qual se processou, na maior parte dos casos, a plexo de normas, de "atmosfera" mesmo, que concede à família,
emigração para o Brasil. Ela não se faz senão excepcionalmente nas sociedades da nossa civilização, o grande papel de formador
por grupos familiares constituídos, mas quase sempre por indi dos indivíduos e do seu caráter. Neste sentido, a casa-grande
víduos isolados que vêm tentar uma aventura, e que mesmo tendo ficou muito aquém de sua missão. O sistema de vida a . que _ dá
família, deixam-na atrás à espera de uma situação mais definida lugar, a promiscuidade com escravos, e escravos do mais baix�
e segura do chefe que emigrou. Espera que se prolonga e não teor moral, as facilidades que proporciona às relações sexuais
irregulares e desbragadas, a inôisciplina que nela reina, mal
( 12) Paulo Prado, Retrato do Brasil. A tristeza brasileira foi observada disfarçada por uma hipócrita submissão, puramente formal, ao
por Saint-Hilaire, que a opõe à alegria do campônio francês ( Voyage aux pai e chefe, tudo isto faz a casa-grande, antes uma escola de
sources, I, 124); e a ela se refere ainda em outras passagens de seus diários. vício e desregramento, apanhando a criança desde o berço, que
Em particular no que diz respeito às crianças, em que deplora a falta de formação moral( 16). A família perde aí inteiramente, ou quase,
de espontaneidade e contentamento, id., I, 374. De tudo isso poderíamos
talvez excetuar o Rio Grande do Sul, de formação aliás tão diferente do
resto do país. ( 14) Ainda hoje isto se verifica, e a cada passo topamos com imi
( 13) Recopilação, 926 e 927. - A pabreza da papulação colonial é grantes casados na Europa e amancebados no Brasil.
testemunhada não só pelo depoimento de todos os observadores contem ( 15) -];: talvez por isso que tanto se insiste no Brasil sobre a origem
parâneos, mas hoje ainda pelos escassos e miseráveis vestígios que nos familiar. Esta orige� eleva e distingu; os in�i:'Í?,uos, porque é p�ópria só
legou. Onde as constmções, os objetos, todo este aparelhamento que uma _
de uma- classe supenor reduzida. Ser de fam1ha entre nós, constituía um
sociedade mesmo medíocre deixa sempre atrás de si? Nada ou quase distintiw de -superioridade, de quase nobreza.
nada possuímos de uma época que não está ainda a século e meio de ( 16) Sobre_ este assunto, Vilhena nos fomeçe uma síntese admirável
nós; e o que ficou é em regra um pobre testemunho. de observações ·As· quais não precisamos acrescentar nada. Recopilação, 138 e
350 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempor4neo 351
As �a:s vjrtu�esi e em vez de ser o que lhe concede razão moral tor e de classe que impedia a regularização de muitas situações·
_ extramatrimoniais; preconceito tão forte que pode levar até a
bás1� ?e ex1stencia e que é de disciplinadora da vida sexual
dos �divíduos, torna-se pelo contrário campo aberto e amplo para desenlaces extremos, como este caso trágico de um ex-governador
o mais �esenfreado sexualismo. Advirta-se que não é no terreno de duas capitanias, Fernando Delgado de Castilho, que, apaixonado
dos sentimentos que me coloco aqui; não são as reações emotivas por uma _mulher de condição lmmilde, de quem tivera vários
filhos, preferiu suicidar-se a levá-la, casada com ele, para o Reino,
e �etivas n�s relações recíprocas de homem para mulher, ou de
pais para filhos que procuro negar, ou mesmo subestimar. Até de onde o chamavam (19).
pelo contrárió, destas só se poderiam recriminar os excessos, der Como se vê, seriam freqüentes os casos da vida em comum
r�mando-se em condescendências e tolerâncias sem limite que extraconjugal que não se poderiam só por isso, e para o efeito
nao fora� pouco r�sponsáveis pe�a 1:°á educação que receberam que temos em vista, considerar como exemplos de indisciplina
.
L
as geraçoes c�lomais ( 17 Mas nao e por este lado somente que
,
sexual. Aliás, de tão freqüentes que eram, acabam nem se notando,
e a opinião pública os admitia sem o menor constrangimento(20).
devem�s analisar a famiha; o seu conteudo é mais amplo que
o d� simpl�s esfera sentimental e afetiva. E se neste pecou a Mesmo contudo sem formar nosso juízo sobre os costumes sexuais
. . da colônia com esta irregularidade aparente e tão generalizada,
familia brasileira pelo excesso, nos demais falhou lamentavelmente.
temos outros elementos seguros para nos fixar sobr� eles. "Os
�eduzido_ assiI?, extensiva e intensivamente, o papel da família brasileiros", escreverá Hércules Florence em 1828, relatando a
n� vida colomal, fi�1;1 �berta larga margem à indisciplina sexual.
Nao podemos ? qm limitar nossas observações ao fato da maior expedição Langsdorff que acompanhou na qualidade de desenhista,
ou menor frequenci , _ "cujas amáveis qualidades são tão características encontram, incli
� do casamento, pois este não só não é, por si nados como são aos prazeres, nas mulheres do país facilidade de
apenas, um� garantia de regularidade e disciplina sexuais, como
. costumes, e em geral não pensam em se deixar prender nos laços
e�ta regulanda�e, entendida em termos sociologicos, não é exclu
s1�� das relaçoes legalmente sancionadas. Precisamos por isso
_
dmgir nossas atençõ:s sobret�do p�ra o grau de estabilidade que ( Mem6ria sobre a agricultura, 123 ). Os emolumentos matrimoniais cobra
apresentam as relaçoes se�ua1s, se1am ou não sancionadas legal dos pelo· clero não eram s6 pesados em confronto com a pobreza da
mente pel� casai:iento. E _ isto é em nosso caso, e para os fins que população; os abusos são freqüentes. Assim no caso das provisões, licenças
temos aqm e_m vista, particularmente importante, porque segundo para o casamento, cuja cobrança foi considerada ilegal por ac6rdão da
o 9.ue se cohge dos depoimentos contemporâneos, quase se pode Junta da Coroa de 28 de março de 1791, o que não impediu que conti
nuassem como dantes a serem exigidas, apesar dos protestos. Veja-se a
afirm�r . que, f?ra � caso das classes superiores, o casamento este respeito a longa controvérsia entre o Senado da Câmara e o bispo
con�htm um� si�açao excepcional. Mas é preciso reconhecer que de São Paulo, e que se encontra no Registro daquela, XII, 289, 317, 424
_
mm!as das situaçoes le�al 1e�t� irregulares se explicam por outros e outras passagens. - Esta questão do custo dos casamentos e o obstáculo
_ 1;1
que oferecia à regularização de situações ilegais, s'6 pela impossibilidade
mot�".os que a simple� m�isciplma sexual. Assim, em muitos casos,
ª. dificuldade da reahzaçao do casamento pela distância em que material que determina, tem no Brasil um papel de certa importância, e
ainda ,depois da República, achou o legislador constituinte que devi;!
fica o sacerdote celebrante nestas paróquias imensas, onde um inclinar a obrigação da sua gratuidade no texto da Constituição de 1891
padre s�, e quase sempre pouco diligente, tem de atender ( art. 72 § 4.0). Aliás inutilmente; o mal era muito antigo para desaparecer
P?pula�oes �spa�sas por dezenas de léguas de raio. Maior obs só com isto.
taculo a real�zaçao do casamento, e mais freqüente, é o seu custo; ( 19) Saint-Hilaire, que o conheceu pessoalmente quando governador
a este r;speito, as queixas contemporâneas abundam, e está-se de Goiás, relata a tragédia ocorrida em 1821. Voyage aux sourcu .... , II, 83.
Sobre o preconceito, como obstáculo contra o casamento, Cunha Matos
sempre as voltas com a questão( 18). Ainda há o preconceito de refere casos interessantes em Goiás ( Corografia hist6rica, 298). U;ma 'das
maiores pressões contra as alianças corri mulheres de · condição inferior partia.
das irmandades leigas, cujos estatutos incluíam dispositivos expressos a
segs. E le1:1bremos que �!e � um professor, um educador, que fala portanto respeito, cbminando pena de exclusão aos irmãos que contraíssem tais
com autoridade e expenencia postas a serviço de uma inteligência crítica casamentos.
notável.
( 20) Saint-Hilaire, Voyage aux provinces de Rio de Janeiro •.., II, 28.
(17) V �ja-se o 9-�e a respeito escreve o mesmo autor já citado acima:
.
S1er�a y Manscal, Idews gerais sobre a revolução do Brasil. O citado Governador Delgadq de Castilho, quando em Goiás, vivia publica
mente em palácio com a amante e os filhos. Ninguém o estr�va. t ·o
( 18) Para não deixar de. citar um depoimento entre os muitos que
_ fato do casamento fora de sua classe, e não a mancebia, livre com quem
possu1mos, remeto º \e1_ tor para º que diz a respeito um dos espíritos mais
_ . _ , se quisesse, que provocava repulsa.
esclarecidos de prmc1p10s do seculo passado: o Cons. Veloso de Oliveira
352 _Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 35J
do matrimônio." :8 acreséenta mais adiante que "as moças filh:i.s ''saimentos", como se dizia. Mas daí pará um verdadeiro espírito
de país pobres nem sequer pensam em casamento:. não lhes passa religioso, vai distância considerável. As festas religiosas indig
pela cabeça a possibilidade de arranjarem um marido sem o navam o piedoso Saint-Hilaire, que as chama de "irreverentes ceri
engodo do dote, e como ignoram os meios de uma mulher poder mônias, em que ridículas palhaçadas se misturam aquilo que a
viver do trabalho honesto e perseverante, são facilmente arrastadas reli�ião católica apresenta de mais respeitável"(24). Sobre o
à,_vida licenciosa" ( 21). Florence repete quase textualmente o que espirito religioso da colônia, o mesmo autor endossa a opinião
o Marquês do Lavradio escrevia meio século antes: "As mulheres que ouviu do vigário de São João dei-Rei, e que "os brasileiros
por se não empre garem e por falta de meios para se sustentarem, eram naturalmente religiosos, mas que sua religião não ia além
se prostituem" ( 22). dos sentidos; e quanto aos pastores, este parecem considerar a
ofensa e o perdão como simples funções maquinais" (25).
Tocamos aqui um ponto que é o mais alarmante sintoma da
geral indisciplina de costumes que reina na sociedade colonial: Não é assim de esperar dos mandamentos religiosos um freio
a larga disseminação da prostituição. Não há recanto da colônia sério à corrupção de costumes. O culto fica nos ritos externos,
em que não houvesse penetrado, e em larga escala. Não falemos estes sim rigorosamente observados. Quanto à moral, era-se de
naturalmente das grandes e médias aglomerações, onde o fato uma tolerância infinita. Coisa que não é para admirar: afora as
é mais natural, e sempre se encontrou em toda parte. Observemos causas gerais e mais profundas que numa sociedade como a nossa
os pequenos, os mais insignificantes arraiais: quase toda a sua da colônia, e cuja feição já ficou bastante caracterizada nas
população fixa é constituída, além dos vadios, de prostitutas. É págin _ s acima, tomam inviável uma compreensão elevada da
_ �
um depoimento este geral: "Nós mais humildes povoados, teste Religiao e do seu culto, cabe nisto ao clero, aliás vítima também
munhará Saint-Hilaire, a mais vergonhosa libidinagem se mostra das mesmas circunstâncias, uma boa dose de responsabilidades.
com uma imprudência que não se encontraria nas cidades mais Não cogitou ele nunca, em conjunto, de levar a sério a instrução
corrompidas da Europa." ( 23). Circunstância aliás que explica o religiosa: o seu desleixo ileste terreno é lamentável, e parece que
destino da parte feminina deste numeroso contingente da popu os s�cerdotes não tê� outra função na colônia que presidir ou
lação, cuja masculina já vimos noutro capítulo: os desocupados e praticar os atos extenores do culto e recolher os tributos eclesiás
vadios, vivendo de expedientes, com um pé na ociosidade e outro ticos. "Em muitos lugares,a firma Saint-Hilaire, a religião se con
no crime. �erva só por tradição, pois os fiéis, afastados de centros povoados
importantes, passavam a vida num completo isolamento e sem
Formava a Religião, para ·tamanha corrupção, dique de
o menor socorro espiritual"(26). Nos outros lugares, embora pre
alguma eficácia? Que a crença religiosa tem na vida colonial
sentes, os padres se ocupavam muito mais em atividades privadas
papel considerável, já o notei em outro lugár. Esta aparece lite
e com seus negócios, já o vimos anteriormente. E a este abandono
ralmente entranhada por atos e cerimônias do culto. Folheando
em que deixa a população, acrescenta o clero o exemplo tão
as Atas da Câmara de São Paulo p. ex., não se virará página quase
freqüente de uma vida escandalosa e desregrada. O resultado
em que não se encontre algum "termo de ajuntamento" para o
de . �-do isto ?ão é de admirar porta ?to que tenha sido aquela
fim de comparecer a Câmara incorporada a missas importantes
reh�iao reduzida a um �squeleto de praticas exteriores e maquinais
ou de ação de graça� por isto ou aquilo, tedeuns, procissões -
vazio de qualquer sentimento elevado, e que é ao que se reduziu
o catolicismo na colônia (27).
( 21) Esboço da viagem de Langsdorff, 361 e 448.
(22) Carta de 12 de janeiro de 1778, cit., p. Fernandes Pinheiro, Os
últimos Vice-Reis do Brasil, 244. Logo adiante acrescenta: "Na facilidade (24) Voyage aux sources, I, 102.
que os homens têm com o trato das mulheres se segue também os poucos (25) "Les pasteurs semblent considerér comme un feu l'offense et le
que buscam o estado de casado." pardon" loc. cit.
(23) Voyage aux sources .. ., I, 127. Saint-Hilaire é em matéria desta (26) Voyage aux sources, II, 238.
natureza de uma reserva bem própria do seu feitio profundamente religioso. ( 27). Há. q�e acre �centar as deturpações da mais grosseira s1Jperstição,
Seus diários são todos de reticências no assunto, e percebe-se a sua repug fruto da 1gnornnc1a e sooretudo da contaminação de crenças e cultos estr:i•
nância em tratar dele. Mas a fidelidade do observador não pode esconder nhos ao_ cr(s�anism ?, t!azidos pelQs africanos e corrompidos pela escravidã('),
o que tão escandalosamente se evidencia; e daí o interesse que apresentam A contnbmçao . do ,md1gena é pequen � pois em matéria de crença religiosa,
para nós observações arrancadas a tamanhos escrúpulos. Outros viajantes su� cultura �ativa e como se sa be rudimentar. - Somente os jesuítas, p_ode-sl!
afirmar, realizaram obra mais _ mtensa
_ e sistemática de instruç.ão e educação
foram mais francos.
354 Caio Prado ]tÍ;iíor Formação do Brasil Contempor4n•o 353
Numa palavra, e para sintetizar o panorama da sociNhcle Mas por baixo palpita uma outra vida, uma transformação
colonial: incoerência e instabilidade no povoamento; pohrcza e que se esl.;>oça. Não é evidentemente possível, em terreno desta
miséria na economia; dissolução nos costumes; inércia e cormpc;:ío natureza, essencialmente dinâmico e não estático, fixar rigorosa
nos dirigentes leigos e eclesiásticos. Neste verdadeiro descalahro, mente "momentos"; trata-se de uma situação que ainda não existe,
ruína em que chafurdava a colônia e sua variegada população, que não tem conteúdo próprio, mas é apenas um estado latente
que encontramos da vitalidade, capacidade renovadora? que se revela por alguns precursores, sintomáticos mas isolados.
Naquela tremenda desordem colonial esboçava-se uma reação. Tais fatos vêm de longe, desde o início da colonização, se
Fruto das mais variadas situações, como todas as reações que quiserem. E em rigor, poderíamos ir apanhá-los em qualquer
vêm das profundezas, e levada por outros tantos impulsos diversos, altura de nossa evolução histórica. Divertimento a que se têm
ela se esboçava e ia pr�cisando os seus contornos. Um denomi dedicado muitos historiadores. Mas limitando nossa atenção
nador comum somará e identificará todas aqu elas situações: o aquele período que cavalga os dois séculos que precedem imedia
mal-estar generalizado que de alto a baixo perpassa a sociedade· tamente o atual, e que aliás escolhi por isso mesmo, vamos en
colonial e lhe tira estabilidade e equilíbrio. MaL-estar econômico contrá-los mais salientes, mais caros e precisos. A decomposição
e social de raízes profundas. que no caso particular de cada do sistema colonial está então mais adiantada, os germes de
indivíduo ou grupo se explicará por esta ou aquela circunstância autodestruição que contém, desde o início embora, se definem
especial e imediata, mas que em última análise derivará de então com mais nitidez. E ao mesmo tempo, as forças renovadoras
qualquer coisa de mais. fundamental e geral: o próprio �istema da que laboram em seu seio, e que são aqueles mesmos germes
colonização brasileira. vistos de um outro ângulo, começam a apontar com mais fr eqüên
A colonização produziu seus frutos quando reuniu neste terri cia e já podem ser apanhados mais facilmente.
tório imenso e quase deserto, em 300 anos de esforços, uma
população catada em três continentes, e com ela formou,. bem Elas então já indicam uma situação de conjunto nova, dife
ou mal, um conjunto social que se caracteriza e identifica por rente e contrária ao sistema colonial ainda dominante; e que,
traços próprios e inconfundíveis; quando devassóu a terra, explo embora ainda não exista, começa a se desenhar. 11: muito difícil,
rou o território e nele instalou aquela população; quando final se não impossível, caracterizá-la nesta fase anterior à sua eclosão;
mente remeteu por cima do oceano, para os me rcados da Europa, ela não passa de reação informe, incoerente e desconexa que
caixas de açúcar, rolos de tabaco, fardos de algodão, barras de se revela apenas por sintomas, circunstâncias exteriores diversas,
ouro e pedras preciosas. Até aí construiu; mas ao mesmo tempo, e às vezes até contraditórias entre si. O historiador, ao ocupar-se
a par desta construção, foi acumulado um Fassivo considerável. dela, enfrenta o risco de tratar o assunto anacrônicamente, isto é,
Não por "erros", seja a nossa apreciação moral ou de capacidade, conhecedor que é da fase posterior, em que ocorre seu desenlace,
mas por contingências que não poderia ter obviado, e que só em que ela se define, projetar esta fase no passado. O que não
com o tempo se revelariam vícios profundos e orgânicos: a incor raro tem sido feito. Como o processo que ora nos ocupa vai dar
poração apressada de raças e culturas tão dife rentes entre si, o na separação da colônia de sua metrópole, na ·Independência,
trabalho servil, a dispersão do povoamento, tantos outros elementos são as manifestações neste sentido que se procuram. Simplismo
gue caracterizam a colonização e a constituem. Tudo isto que lamentável, que não somente restringe consideravelmente o objeto
fora em seu tempo inevitável, necessário e por isso mesmo da pesquisa, como a desvia de seu verdadeiro sentido. O final da
"acertado", revelava agora bem claramente, três séculos depois cena, ou antes, o primeiro grande acontecimento de conjunto q�e
do in�cio da colonização, seu lado negativo. E é isto que vemos vamos presenciar será, não há dúvida, a independência política
110 momento em que abordamos aqui a nossa história: daí o da colônia. Mas este final não existe aiuda antes dela, nem -está
nspecto de decomrosição em que se apresenta então a nossos olhos "imanente" no passado; ele será apenas a resultante de um
o sistema colonia brasileiro. concurso ocasional ·de forças que estão longe, todas elas, de
tenderem, cada qual só por si, para aquele fim. Algumas, possi_
reli,,in�a na colônia. A sua influência neste terreno é considerável, e a eles velmente; todas certamente não. Mas como concorrem sem �!io,
se âeve com certeza, em boa parte, esta "mecanização" do culto religioso, e têm cada qual seu papel, nenhuma pode ser desprezada. Além
que é um dos traços mais salientes do catolicismo brasileiro: av�lit>-se o
efeito do sistema de educação inspirado em seus f amosos "exercícios espi clisto, e sobretudo, são elas e não o seu desenlace que nos devem
rituais", caindo em cheio nesta sociedade colonial ignorante e primitiva! inicialmente ocupar.
:$56 Caio Prado Júnior Formação do Brtuil ContempordlNO 351
J;: esta a única atitude legítima de uma pesquisl! objetiva, fcstam exteriormente sobretudo por aquele mal-estar generalizado
e que está muito lonae do que freqüentemente se faz, e que que assinalei acima e que atinge toda a colônia, é a mesma
consiste, depois de conhecida a evolução de uma situação histórica infra-estrutura econômica descrita nos primeiros capítulos deste
admiti-la a priori como . contida e imanente nela desde seus trabalho. Achamo-nos ar, vamos repeti-lo, em presença de uma
primeiros passos. Partir da presunção, no caso vertente, que o economia constituída na base da exploração, e exploração preci
�im fatal e necessário de uma colônia é tornar-se J;><?liticamente pitada e extensiva dos recursos naturais de um território virgem,
mdependente da metrópole, e que isto já estava inclmdo em nosso para abastecer o comércio internacional de alguns gêneros tropicais
destino quando Cabral avistou os primeiros paus que boiavam no e metais preciosos de grande valor comercial. É esta, em última
mar e faziam suspeitar da proximidacle de terras; e procurar, análise, a· substância da nossa economia colonial, a própria expli
claí por diante, todos os sinais remotos de uma "independência" cação e definição da obra colonizadora que Portugal aqui realizou.
futura, necessária e fatal. Tal base, com o desenvolvimento da população, com o concurso
Está claro 9.ue a previsão da separação da metrópole, a idéia de outros fatures vários, se torna, através do tempo, restrito e
de _que o Brasil seria um dia nação independente, já aparece incapaz de sustentar a estrutura que sobre ela se formara. Sufi
ciente de início, e ainda por muito tempo para prover aos fins
�u�t� antes da realização do fato, e está no pensamento de alguns precípuos da colonização - a ocupação do território, o aproveita
UJ?ivi�uos, qu�, o� por intuição, ou no mais das vezes por simples
rmmetismo e ilaçao de exemplos semelhantes ocorridos noutras mento dele com um relativo equilíbrio econômico e social; para
pa1:_es, es�eravam, � mesmo às vezes trabalhavam pela sua reali promover, enfim, o progresso das forças produtivas -, aquela
_ base acabou por se tornar insuficiente para manter a estrutura
�çao. E isto tambem precisa ser levado em consideração. Mas social que sobre ela se constituíra e desenvoivera; e a isto se
nao esgota o assunto, e sobretudo não o explica, porque não será
esta ou aquela idéia, de um ou de muitos indivíduos - aliás, no chegou sem que fosse preciso a intervenção de fatores estra
caso vertente, de poucos relativamente, - que será a "causa" da nhos, mas pelo · simples desdobramento natural do processo
Independência. Muitas outras idéias, até opostas aquela, e espo da colonização.
sadas por um n�mero incomparavelmente maior de pessoas, inter Tal insuficiência se verifica pelos resultados a que levara
pretavam as coisas de outra torma. Idéias são matéria que nunca aquele desdobramento, e que acumulados, tornavam iminente,
falta: há-as sempre de todos os naipes e para. todos os gostos. na· fase que nos ocupa, uma desagregação completa, se não a
E se paramos nelas sem procurar diretamente os fatos que as paralisação da vida do país. O mais saliente dele, o mais sensível,
inspiram, ficamos na impossibilidade de explicar porque, de um é o estado a que se reduzira o acervo material do território,. com
momen_to para outro, uma destas idéias e não outra qualquer, que se contara até então para manter aquela vida. Tinham-se já
ganha impulso, se alastra, vence e acaba se realizando. As idéias quase esterilizado as fontes mais acessíveis de riqueza: terras esgo
por si, não fazem nada; e para o historiador não devem serv� tadas por processos bárbaros de cultura ou por devastações
senão de sinais, expressões ou sintomas aparentes de uma reali impensadas, depósitos minerais exauridos. . . Note-se que não vai
dade que vai por baixo, nos fatos concretos, e que as provoca. aqui recriminação alguma aos métodos de exploração empregados,
Abstraiamos portant? aqui, e inic_ialmente, do que se passaria e que eram, dadas as circunstâncias, os únicos possíveis, Eles
são fruto do sistema geral que se adotou na colonização do ter
�um ��ro que por ora _ign?ramos, e indaguemos apenas daquelas ritório brasileiro, fazem parte integrante dele; e tal sistema não
forças a que me refen acima, e que são o motor de uma trans
formação, cujo sentido e direção não podemos ainda conhecer, poderia ter sido evitado e substituído por outro na fase preli-
mas que trabalham contra o sistema colonial. Note-se que emprego minar da colonização.
es(a expressão, "sistema colonial", não no sentido restrito do Há ainda outro resultado fundamental que se precisa destacar.,
regime de colônia, de subordinação política e administrativa à e a que levara o processo de colonização. Corr.elato aliás, e
metrópole; mas no de conjunto de caracteres e elementos econô intimamente ligado aquele primeiro, e sempre ao mesmo sistema
micos, soc�ais _e políticos que constituem a obra aqui realizada colonial. É a proporção considerável de populações que com ó
pela colomzaçao, e que <leram no Brasil. tempo vão ficanclo à margem da atividade produtiva normal da
O fio. condutor que . �a com�lefi�ade dos �atos com que colonização. O círculo desta atividade se encerxa quase exclusiva
temos de hdar nos condu21ra ao mais mhmo da sociedacle colonial mente com os dois termos fundamentais da organiza� econ6micà
para nele descobrirmos a origem de tais "forças", que se rnani- e social da colônia: senhores e escravos; os primeiros, piomotmes
�38 Çaio Prado Júnior Fo�ão do Bra.4 C� 359
e dirigentes da colonização; os outros, seus agentes. Enquanto anteriores, e que foi sem dúvida um espírito brilhante, de larga
houve apenas senhores e escravos, e é o que se dá no início .Ja cultura, e profundo conhecedor da colônia.
colonização, tudo ia bem. Todos os povoadores do território bra Outros, de feitio menos conservador, enxergavam mais longe,
sileiro tinham seu lugar próprio na estrutura social da colônia, já falam em reformas substanciais. O nosso tã ? �onheci�o e lem
e podiam normalmente desenvolver suas atividades. Mas forma brado Luís dos Santos Vilhena, professor regio na cidade do
ram-se aos poucos outras categorias, que não eram de escravos Salvador, e autor da Recopilação de Notícias Soteropolitanas e
nem podiam ser de senhores. Para elas não havia lugar no sistema Brasílicas, os representa( 28).
produtivo da colônia. Apesar disto, seus contingentes foram cres
O governo metropolitano não fica à margem destas cogitações.
cendo, crescimento que também era fatal, e resultava do mesmo O final do s�c!-11º XVIII � primeir?s anos �o se�uinte se carac
sistema da colonização. Acabaram constituindo uma parte consi ,
terizam por mumeras medidas legais e providencias que_ revelam
derável da população e tendendo sempre para o aumento. O muito bem a compreensão em que se estava da necessidade de
desequilíbrio era fatal. reformas; ou pelo menos, de que alguma cois � tinha de _ser feita.
A tais feições mais salientes e fundamentais do processo evo Na realidade, contudo, nada se fez de verdadeiramente eficaz( 29).
lutivo da colonização, agregam-se outras derivadas delas ou com As medidas mais bem intencionadas, e aparentemente revolu
elas intimamente relacionadas. Dispenso-me de enumerá-las aqui, cionárias do sistema colonial, como por exemplo a liberdade para
porque isto seria recapitular toda a matéria deste livro; nela se o estabelecimento de manufaturas de ferro em 1795, ou a reforma
encontram, embora vistas de um ângulo estático, em vez do do regime da mineração em 1803, bem como outras semelhantes,
dinâmico que ora nos interessa. O que em suma se verifica, é se frustraram na prática, e isto porque, sobretudo, não se tocou
que o sistema de colonização adotado no Brasil, o nosso "sistema nos elementos substanciais do sistema.
colonial", depois de ter produzido durante três séculos' frutos Por que esta incapacidade, que não se explica unicamente
apreciáveis que contrabalançavam o negativo da sua feição, tocara pelos vícios da administração portuguesa e a profunda decadência
o extremo de sua evolução, pelo menos em alguns e principais da dinastia reinante, de realizar reformas efetivas? Precisaríamos
de seus aspectos; e a .curva que desenhara na História começava aqui, para esclarecer bem a questão, remontar muito longe, e
a infletir decididamente para baixo, para sua consumação. Esgo perscrutar intimamente a própria história portuguesa. Não temos
tara suas possibilidades, e seria necessariamente substituído espaço para isto, que foge ao assunto que diretamente nos in_teressa.
por outro. Mas não podemos passar-lhe inteiramente ao largo, porque muitas
O fato aliás se tomara tão sensível e patente que não houve circunstâncias da matéria que nos ocupa não se compreenderiam
entre os contemporâneos esclarecidos e que nos legaram seus sem ele. Assinalemos portanto, sumariamente, o que de modo
pensamentos, quem não o enxergasse. Lá pelos . fins do séc. XVIII mais direto se liga ao nosso assunto, e que explica muita coisa
começam a aparecer e se multiplicar os "reformadores" e seus dos fatos que se seguem.
projetos. No curso deste trabalho tenho recorrido a muitos deles, Trata-se da atitude geral do governo português com relação
não pelos planos que apresentam, o que não tem hoje interesse à sua colônia americana. A monarquia portug1,1esa se tomara
prático, mas pela lucidez com que muitos enxergavam a situação, desde o séc. XV, de um pequeno e insignifiçante reino continental
fornecendo-nos por isso dados precisos para a reconstrução de europeu, em grande império marítimo e colonial; é na base deste
um passado que era para eles um "presente" tão bem compreen
dido. Uns, a maioria, pregavam uma espécie de cristalização das (28) Veja-se sobretudo, para o que nos interessa aqui, a 24.ª e última
condições vigentes, uma perpetuação, em ambiente de estufa, de suas cartas.
do sistema colonial tal como tinha sido e ainda era praticado. Os (29) Destaquemos aqui o nome de D. Rodrigo de Sousa Coutinho,
. males, que enxergavam muito bem, não os atribuíam ao sistema depois Conde de Unhares, que em 1796 assume a Secretaria do Ultramar,
propriamente, mas ao modo pelo qual se praticava, e sobretudo e cuja longa administração, que só veio terminar no Brasil para onde acom
panhou o Regente em 1808, é as�i �alada por �ma constante e inteli�en!e
aos desvios que nele se tinham introduzido. Em suma, o que preocupação relativamente aos negoc10s do Brasil. A presença do seu 1rrnao
propõem é o restabelecimento dele em sua pureza original. O D. Francisco no Pará, que governou até 1803, mostra os laços que ligavam
exemplo mais tí pico deste modo de pe nsar é o do autor auônimo o ministro à colônia, semelhantes nisto aos do Marquês de Pombal, que
do Roteiro do Maranhão, que utilizei largamente nos capítulo:; também teve um irmão no governo da mesma capitania: o autor <lo Díre
tJrio eles lndios, Franci�"º Xavier de Mendonça Furtado.
360 Caio P,aào Júnior f'ormação do Brasil Co11temporâ11eo 361
império, que a seu tempo se alargara por vastas áreas <le trt� política portuguesa, não havia aqui uma socieda_de ou 1;1ma eco
continentes, e se reduzira na fase que ora nos ocupa praticamente nomia de que se ocupar, fosse embora em funçao dos mteresses
só ao Brasil, que se reorganiza sua estrutura e sua vida, em que portugueses, mas tão-somente "finanças" a e�d�r. L��do-se a
a parte continental, o Reino propriamente, forma o ápice e céntro maior e mais importante parte da correspondencia oficial e_ d?
controlador. Mas isto em condições especialíssimas, que distin legislação relativa ao Brasi!, percebe-se isto ! r_ied�atamente. :�nás
guem o império português dos outros com que ombreia no U,ni nunca se procurou esconde-lo, e o Real Eram e o personagem
verso, do britânico em particular. A monarquia absoluta portu que representa em nossa história colonial, e �em nenhum disfarce,
guesa tem por figura central e convergente de toda vida dela, o maior papel.
o rei; e com ele a corte, esta chusma de palacianos que cercam Será esta a razão fundamental da incapacidade da política
o trono e constituem, quase todos, uma nobreza togada (}Ue -portuguesa em realizar reformas substanciais que atingissem o s�u
ocupa os empregos, comissões e outras funções mais ou menos "sistema colonial". Porque este sistema não podia ser outra coisa
ligadas à estrutura administrativa da monarquia ( 30). para ela senão o que era: um simples setor, embora o essencial,
A política portuguesa é determinada por tal circunstância. daquela grande empresa comercial que é a monarquia portuguesa,
Os usufrutuários são o rei e sua corte que ele mesmo constitui, com o seu rei no balcão. Esta organização que começa com o
e com quem reparte os seus proventos; não a nação portuguesa, tráfico de escravos, marfim e ouro na Costa da Africa, continua
que só indiretamente se beneficiava das possessões imensas da com o da pimenta e das especiarias na 1ndia, � se encerra _c?1:°
monarquia. Assim foi desde o início da expansão lusitana no o do açúcar, ouro, diamantes e algodão no Brasil; que permitma
ultramar. );: aliás ao rei que Portugal deve suas conquistas: os ao Reino ocupar dois continentes e povoar um tercei_r�, tomara-se
descobrimentos lusitanos resultam de uma obra empreendida .
obsoleta. Já não funcionava normalmente, e os sacrificios que se
exclusivamente, desde seus primeiros passos até a última provi faziam para mantê-la apesar de tudo, recaí�m inte�ramente no
dência, por iniciativa e atos dos soberanos ou de seus delegados último retalho que ainda lhe sobrava: a colôma amencana. Como
imediatos( 31). Foi esta aliás a base do absolutismo português, reformá-la portanto, se isto destruiria a última base da orga?izaçã�?
do poder imenso e incontrastável do monarca. Só com a substituição desta por outra qualquer. Mas isto nao
Por estas razões, o Império Lusitano não será um desdobra ocorreria, e não podia ocorrer aos dirigentes de Portugal? porque
mento natural da nação, e esta não figurará na sua base, nem seria a sua autodestruição. Não ocorreria, pouco mais tarde,
será ela o núcleo convergente da monarquia. Sem entrar em mais nem aqueles que derrubariam o poder absoluto do rei, procurando,
pormenores, que estenderiam demasiado o assunto, podemos con aliás inutilmente, substituir-se a ele.
cluir relativamente ao conteúdo da política lusitana, em particular Verifica-se assim que o sistema colonial não é uma criação
no que diz respeito ao Brasil. Ela é antes de tudo um "negócio" arbitrária, reformável a seu talante. Suas raízes vão longe e mer
do rei, e todos os assuntos que se referem à administração pública gulham no mais profundo da monarquia �ortu�esa de que a
são vistos deste ângulo particular. Assim os problemas políticos colônia faz parte. A sorte de uma estava ligada a outra. Como
e administrativos que suscita a colônia americana são sempre
pois reformá-la senão pela separação da colônia? Mas ,�ta �pa
abordados de um ponto de vista estritamente financeiro. Para a
ração, se se tomava assim a primeira providência para a reforma
que se impunha - pelo menos hoje podemos afirmá-lo, J>Orque
( 30) A influência territorial é em Portugal mínima, e acessória da estamos na posição cômoda de quem vê tudo que se passou,
outra, a burocrática. As proporções do Reino, em relação a seu vasto Império,
explicam o fato suficientemente. antes e depois; mas naquele tempo, e para os co�tem�n�?5
.;
( 31) Só há urna exceção de vulto a esta regra: é o sistema das dona a coisa não era tão simples e clara -, nem por is� a idesa,
tárws, adotado nas Ilhas e repetido no Brasil, em que se procurou substituir daquela separação surgiu assim espontaneamente, lampejo e:t-nihlJ,o
a iniciativa privada à do r-ei. O fracasso no Brasil foi completo, como se de um cérebro privilegiado e angustiado por um problema que
sabe, ou então serviu apenas, num ou noutro ponto, para um tímido ensaio.
E b�o depois deste modesto início, a intervenção dos donatários pr:i.tica pedia solução; e que, partindo daí, se p�opaga:u, como � epiô�
illé'nte desaparece e só subsisite nos proveitos que auferiam de suas capi mia ou o incêndio de uma floresta, ate reumr- um numerQ suf1,·
tanias, sem contribuírem em nada para a obra da colonização, que será toda ciente de adeptos decididos e suficientemente valotó$0S para se
de iniciativa real. Depois dos primeiros tempos da colônia, os donatários transfom1ar, num passe de mágica, em ação. Os fatos hist6ricos
somente scrüo lembrados pela história elo Brasil quan�?o se trata de fazer
reverter seus direitos à coroa, o que se consuma no séc. XVIII.
são infelizmente mais complexos que este gênero fácil e suave
:..G2 Caio Prado J.:.nior Formação do B7�il Contempordneo 363
Assim, a explicação de que é a '!idéia"_ da Independênciâ
de explicação, tipo "conto da carochinha", em que se deleitam que constitui a força propulsora da renovaçao que �e operava
muitos historiadores. _
no seio da colônia parece pelo menos arriscada. Mais co;rente
Houve é certo, já o notei, quem visse prematuramente a sepa
ração da colônia. Ocupemo-nos com estes profetas, para liquidar
com os aconteci me�tos_ é que as vári�s idéias da separaçao,
_ _
?ª
federação, da hqmdaçao do portugues vendeHo ou tabemeHO
o assunto, de importância aqui aliás secundária, e colocá-lo em ( esta última, sobretudo, andava na boca de todo mundo), bem
seus devidos termos. É depois da independência das colônias como outras que também se agitavam, embor� fossem me!1os
inglesas da América do Norte ( 1776), e claramente por inspiração salientes: a libertação dos escravos, a supressao das barreiras
dela, que se começa a cogitar nas rodas brasileiras do exterior de cor e de classe; que estas vária� idéias nã� foss;m mais que
em imitar-lhes o exemplo. Um estudante brasileiro rle Montpellier reflexos, no pensament� dos individu�s de s1tuaçoes ob1etiv _ . s,
:i
(França), onde era grande a colônia (32), Joaquim José da Maia, exteriores a qualquer cerebro; que estao nos fatos, nas relaçoes
escreve sobre o assunto a Jefferson, então embaixador da União e oposições dos indivíd os entre si: o senhor �e engenho o,u
Americana em Paris, pedindo o auxílio do seu país para a Inde 1;1
fazendeiro devedor que e persegmdo _ pelo comerciante portugues
pendência do Brasil; chega mesmo a entrevistar-se com ele. Mas credor; o pé-descalço que o vendeiro português não quer co_ mo
a coisa não teve maior andamento. Outros dois estudantes, José caixeiro; o mulato que o branco exclui d� ma�or P�,rte das funçoes,
Alvares Maciel e Domingos Vidal de Barbosa, este último também ,
que despreza e humilha; o lavrador obng� do que se sente
de Montpellier levaram suas conversas e discussões mais longe, espoliado pelo senhor de engenho que lhe mói a ca�a; o �scravo
pois de volta ao Brasil participam da Inconfidência Mineira, tendo que se quer libertar . . . O osições todas qu� com igual 1usteza
sido o primeiro, com toda probabilidade, quem forneceu a l?
podem ser vistas pelo lado mverso: o comerc_iante que em_prestou
Tiradentes o material ideológico de que o ardente alferes se seu dinheiro e não faz senão cobrar o devido; o vendeHO que
utilizaria para colorir e enfeitar a conspiração e a projetada revolta. prefere seus patrícios mais diligentes e afins com seu tempera·
Nesta, bem como na chamada Inconfidência da Bahia ( 1798), mento; o branco que se formou na convicção, incutida desde o
talvez menos na última, e possivelmente também naqueles con nascimento e oficialmente reconhecida, da superioridade de sua
cluios do Rio de Janeiro em 1794, de que resultou a prisão, entre raça; o senhor de escravos que precisa de mão-de-obra, e não
outros, de Mariano José Pereira da Fonseca, futuro Marquês de faz mais que se conformar com o que está nas leis, nos costumes,
Maricá e único moralista que as letras tiveram até hoje, a idéia na moral, em toda ordem estabelecida e reconhecida. Todos
da separação teve, como se sabe, bastante relevo. Falou-se aí estão com a razão, e c�da q�al forjará ou ad�Rt�� á - é este
claramente do estabelecimento no Brasil de um regime político _ ,.
naturalmente o caso mais frequente, - alguma ideia para sen
independente da metrópole. Mas este pensamento nunca saiu de uso próprio e que justifique sua posição e suas pretensões.
peq11enas rodas e conciliábulos secretos. Nem mesmo entre os Se desço ao que poderá parecer minúcias, é que são elas
espíritos mais esclarecidos da colônia tratava-se de uma idéia que mais importam. Cada uma daquelas situações que aparecem
generalizada. Pelo contrário, muito poucos, excepcionais mesmo à tona dos acontecimentos, que poaemos apalpar e acompanhar,
eram aqueles que, mesmo admitindo a necessidade de reformas, ligam-se a contradições ge�ais que vêm . do }��g�. do �istema
e batendo-se por elas, levavam sua opinião a extremos revolu colonial, que resultam daqmlo que chamei os v1c1os do �1s!en �a.
cionários. Até às vésperas da Independência, e entre aqueles e que o processo da colonização foi pondo, um a �m, em evidencia.
mesmos que seriam seus principais fautores, nada havia que indi Em todos os casos e:itados, como em outros quaisquer da mesma
casse um pensamento separatista claro e definido. O próprio natureza, os indivíduos em jogo não são senão criaturas daquele
José Bonifácio, que seria o Patriarca da Independência, o foi sistema, e sofrem-lhe as contingências: o proprietário endividado
apesar dele mes�o, pois sua idéia sempre fora unicamente a de que não pode pagar, o comerciante credor que não rece�e seu
uma monarquia dual, uma espécie de federação luso-brasilcira(33). crédito, o pé-descalço que não encontra trabalho e �eios de
subsistência, e assim por diante. Tudo isto provém, direta ou
( 32) As primeiras gerações de médicos do nosso país, formados no
último quartel do séc. XVIII, vêm sobretudo desta Universidade, então a de suas leis e praxes. Era a "ralé" que hostilizava _os por��1gueses, Viag_em,
primeira da Europa na matéria. II, 291. Aliás os portugueses indiviélualmente, mmto mais que o regime,
( 33) Observou Martius que na Bahia, onde esteve em 1819, a gente noção abstrata que a maioria ainda não alcançava.
mais fina e de boa educação era toda apegada a Portugal e à conserva�·ão
Formação do Brasil Contemporâneo 365
�64 Caio Prado Júnior
indir�tamente, daquele sistell'la colonial, e são todos estes pequenos s0:11'->ra com seu dinheiro ao prestígio e posição social daqueles(36).
confhtos,_ S_?mados uns aos outros, que porão a sociedade colonial A oposição ao negociante português - mascate, marinheiro, pé
em _ebuhçao, preparando o terreno para sua transformação. O -de-chumbo, o epítero com que o tratam varia -, se genernliza,
sentido de�t� será no de solucionar tais conflitos, pondo termo como �,ef�ri noutro capítulo, porque este, empo_lgando o co�ér_cio
às contrad1çoes profundas do sistema donde provêm; harmoni <la coloma, o grosso como o de retalho, exclm · dele o brasileiro,
zando-as -�m elem�ntos nov?s que vão surgir no próprio processo que vê cercearem-se-lhe os meios de subsistência; o conflito assim
das oposiçoes em Jogo, e tirando a estas a razão de ser. Tais se aprofunda e estende.
elementos novos constituirão a transformação esperada ( 34). Outra contradição do sisteina colonial é de natureza étnica,
:E: assim nas contradições profundas do sistema colonial, resultado da posição deprimente do escravo preto, e em menor
donde brota� aquel�s conflitos que agitam a sociedade, e donde proporção, do indígena, o que dá no preconceito contra todo indi
brotará tamb�m a smtese ?elas que porá termo a tais conflitos, víduo de cor escura. É a grande maioria da população que é aí
fazendo surgir um novo sistema em substituição ao anterior é atingida, e que se eraue contra um sistema que além do efeito
aí q�e �ncontrare?1?s as forças_ motoi:as que renovarão os quad�os moral, resulta para efa na exclusão de tudo quanto de melhor
econ�mi?°s e sociais, da colôma. Ve1amos_ pois tais contradições. oferece a existência na colônia. O papel político desta oposição
A pnm�rra, porque e a _que representa maior papel e atinge as de raças, ainda pouco avaliado, é no entanto considerável. Afora
cl�sses m�uentes e domu�a�tes na ordem colonial, tem por con o que se percebe da luta surda e revolta latente das raças opri
_ midas, e que os depoimentos contemporâneos, apesar de muito
teudo a cISao que se venfica entre proprietários - senhores de
engenho, lavradores, fazendeiros, - de um lado, comerciantes do reticentes no assunto, não podiam esconder - corno por exemplo
outro ..p me t_enho referido ao assunto, procurando caracterizar a observação de Vilhena sobre o "att·evimento" dos mulatos( 37)
-, ocorrem sintomas mais graves e prenúncios de choque em
a . posiçao re.Jattva des�as classes, separadas por interesses antagô
mcos que tem sua ongem, sobretudo, na situação respectiva de perspectiva. A devassa procedida por ocasião da Inconfidência
devedor e credor. O que aguça o conflito é a insoivabi-lidade baiana revela-nos, através dos depoimentos prestados, bem como
crônica dos débitos comerciais na colônia, resultante da crise mais no texto de papéis sediciosos que se fixaram nos lugares públicos
ou menos intensa em que se debate a produção brasileira em da cidade, que o nervo principal do levante projetado era a dife
particular a do açúcar, no correr do séc. XVIII, e que, em úÍtima rença de castas, a revolta contra o preconceito de cor( 38). Aliás
análise provém das condições de uma economia débil, mal estru quase todos os consipadores prelios são pardos e mulatos da mais
turada e conduzida, e visceralmente ligada a um mercado exterior baixa extração.
p�ecário � ince�to ( 35). Aguça-o também a diferença profunda de A condição dos escravos é outra fonte de atritos. Não se
vida e psicologia que separa as classes referidas e os indivíduos julgue a normal e aparente quietação dos escravos, perturbada
aliás pelas fugas, formação de quilombos, insurreição mesmo -
9ue respectiv�mente as ?°mpõem, fruto também de condições
merentes ao sistema colomal: de um lado brasileiros proprietários como as que agitam a Bahia em princípios do século passado, e
que se consideram a "nobreza" da terra educados num regime que se repetem em 1807 09, 13, 16, 26, 27, 28, 30 e 35 ( 39), -
de vida _ larga e de g;randes �astos, desprezando o trabalho e a fosse expressão de um confoimismo total. É uma revolta constante
economia; doutro o mascate', o imigrante enriquecido, formado que lavra surdamente entre eles sobretudo lá onde são mais nume-
numa rude escola de trabalho e parcimôr.ia, e que vem fazer
( 36) "Os portugueses são ativos e industriosos, escreverá Martius, os
brasileiros, nascidos na fartura e criados entre escravos domésticos de pouca
. (é34) C?mo esta Õacmonização" em todos os casos que temos em educação, preferem o gozo ao trabalho, e deixam aos forasteiros o comércio,
vista posterior � período que ora nos ocupa, não cabe aqui o seguimento preferindo desfrutar o bem-estar da fazenda." Viagem, II, 479. Boa parte
do processo que ficará para a segllllda parte deste trabalho. Mas da análise da crise social e política brasileira de princípios do século passado está
que segue ?ªs contradições fundamentais que solapam o sistema colonial, contida nesta observação.
se percebera o rumo para o qual tendem. ( 37) Recopilnção, 46.
.. ( 35)em Não . me deterei no . assunto que pertence antes à história eco ( 38) Inconfidência da Bahia, em 1798. Devassas e seqüestro. O texto
n_ o, m1c� particular; para ma1s aprecíações sobre a situação comercial e dos papéis sediciosos foi publicado por Brás do Amaral em apêndice ao seu
fmaceira da produção brasileira no momento que ora nos ocupa e na fase trabalho sobre A conspiração republicana da Bahia de 1798.
�;11e .º precede, re�eto o leitor, entre outros, para o trabalho contemporâneo ( 39) Estudou-se até hoje, unicamente, Nina Rodrigues, Os Africanoi
Jª diversas vezes citado: Descrição econômica . .. no Brasil, 166.
366 Caio 'Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 367
rosos. mais conscientes de sua força, ou de nm nível cubm1l colônia e do sistema político e econômico que a constih1i. o
mais elevado, o que se dá particularmente na Bahia( 40). Re1ati que aliás se encontra implícito em todas as páginas deste tr:1lJ:li',o
vamente a esta cidade, que foi o maior centro de aaitações servis em que procurei analisar a obra da colonízação em pr:nC'Íp:ns
na história brasileira, conta-nos Vilhena o estadob de perpétuo do século passado. A enumeração que fiz acima das que aparçc,'m
alarma da população livre, sob a ameaça perene desta "corporação com mais evidência é antes exemplificação. É o sistema colonial
temível'', como ele chama os escravos ( 41). em conjunto que aparece profundamente minado e corroído. Os
A estas situações específicas de oposições e atritos, acrescem aspectos com que tal desagregação apareca na superfície dos
outras �ais gerais que resultam_ diretamente da administração acontecimentos, desabrochando em choques e conflitos vários, são
metropolitana, de seus atos e processos. São os que, no assunto, multiformes e complexos, e é s6 por abstração e para facilitar a
mais se estudaram: a ação do fisco, os processos empregados exposição que podemos reduzi-los aos esquemas simples que
no recrutamento, a mesquinha política econômica da metrópole, apresentei, e que são uma sombr:a da realidade integral. As contra
o despotismo dos capitães-generais, etc. Mas o papel deste fator, dições do sistema colonial têm de comum unicamente isto: o
embora mais aparente, é relativamente pequeno no conjunto do de refletirem a desagregação deste sistema e de brotarem dele.
processo revolucionário que agitava a colônia. No mais das vezes, No seu conteúdo, bem como nos aspectos cambiantes a cada
momento e em cada lugar cómo que se apresentam, divergem
?S �t?s e_ abusos _da administração serviram antes de pretexto e consideravelmente. Não é possível alinhá-los num dualismo rígido,
1ustificaçao de atitudes extremadas e revolucionárias, ou contri
buíram apenas como fatores imediatos, a gota dágua no copo em dois campos opostos e rutidamente definidos. Se os seus
trans�o�d�nte (_42). termos respectivos se opõem num caso, penetram-se e se confun
_ A ação da política metropolitana com relação dem noutro. Para exemplificar com os mesmos casos que empre
à coloma e mais mteressante, no caso vertente, não nestas medidas
pa;Íiculares, mas no seu aspecto geral e de conjunto que lembrei guei acima, temos os proprietários e indivíduos das classes infe
acim �, � que a�e como força co�servadora principal do "sistema riores livres unindo-se contra os pegociantes; mas juntando-se
colomal , e freio às transformaçoes em elaboração. também com estes últimos contra os escravos; e vemos ainda
Não haveria vantagem em continuar aqui nesta dissecação aquelas classes inferiores congregando-se contra proprietários e
das contradições e fontes de atrito que laboram no seio da comerciantes que estão por cima, e que para este efeito, como
possuidores, se aliam contra as não-possuidoras. . . Veremos
brancos lutar com pretos e mulatos contra o preconceito de cor
( 40) Note-se que a par de reivindicações materfrtis, ou envolvendo-as ( Inconfidência baiana); mulatos e pretos, com os brancos, a favor
e com elas se confundindo, aparecem outras de natureza relio'"'iosa ' como
ficou bem claro na revolta de 1835 na Bahia. dele; portugueses contra a metr6pole, e brasileiros a favor ...
( 41) � t�mor perfeitamente 1ustificável em que se vivia revela-se no Isto num momento para mudarem de posição respectiva logo em
alarma co_ns!deravel que causavam quaisquer opiniões contra a legitimidade seguida, e de novo mais tarde . . . É este aliás o espetáculo em
da escrav1da�, como neste caso ocorrido em 1794, e de que nos dá conta todas as situações análogas, em qualquer época ou lugar; e cuja
a correspondencia do Governador D. Fernando José de Portugal. Tratava-se aparente ilogicidade se procura explicar ingenuamente, generali
de um _ca1;u_chi�h?? Frei José de Bolonha, que andava propagando, até pelo
confess10na_no, ideias pouco _ ortodoxas a respeito. Logo que o fato chegou zando casos muito particulares e no conjunto insignificantes, em
ao co_nhec1mento das autondades, o frade foi severamente punido pelo termos individuais e morais: incoerência, idealismo ... conforme
Arc�b1spo, su_spenso de confess:1r e embarcado incontinenti no primeiro o gosto e as preferências pessoais do julgador. Quando os homens,
nav10 de partida. Carta do governador de 18 de junho de 1794. O trnbalho joguetes dos acontecimentos, são por efes levados e dispostos no
servil deu origem a muitas outras contradições imanentes no sistema colo tabuleiro da H�st6ria, sem que no mais das vezes sequer se dêem
n;�l, e que só se r�solveram intef;amente muito mais tarde, pela abolição.
Nao me_ ocupo aqm do assunto, Jª tratado noutro lugar ( Evolução política conta do que estão fazendo e do que se passa.
do Brasil), 1;orque emb?ra presen_tes na fase que nos interessa, pertencem Precisamos acrescentar que aquela aparência il6gica e incon
mais_ ao eno?º posterior. Refen-me no texto unicamente à contradição
gruente dos fatos não s6 torna difícil sua interpretação, como
mais geraf e imediata que resulta da escravidão, e que é a oposição de constitui a razão da dubiedade e incerteza que apresentam toçlas
escravos e s�nh?res, porque _é a qu�. r_ �presenta em nosso r;nomento o principal
papel, contnbumdo i:ara a mtranqmhdade geral que sera o terreno propício as situações semelhantes a esta que analisamos. Duhiedade e
para as transformaçoes que se elaboravam no seio do sistema colonial. incerteza que estão nos pr6prios fatos, e que nenhum ru:tifício•
( 42) O caso. da "d_errama", em Minas Gerais, para o pagamento do de explicação pode desfazer. Os fatos claros em seu conjunto,
qumto, e que devia servlf de pretexto aos conspiradores da Inconfidência e definidos, s6 vêm em seguida, quando tais situações. amadurecem.
para desencadearem o movimento, é um exemplo no assunto.
Formação do Brasil Contempol'd9Co :169
368 Caio Prado Júnior
lnút.il procurá-los antes, to rcendo os acontecim entos ao gqsto
particufa r do obse rvador. E mesmo depois daqueles primei ros
tudo, é orgtmico, ar ti�ub.do ?entro e �o� ?ª .
colôni a, sist�m�ti�
e consciente. Não se n a por sunples comcidencia que os pnnciJ?alS
fatos �eci�ivos, qu anto não de co rr erá até que o p rocesso se com fautores da Independência, até o p róprio futu ro Imperador, ;-ei� m
pl ete m�eiram ente com a solução de todas as contr adições para maçons, que to das as palav ras de o r dem, que saem a publico
se repetir e renovar noutras que se vão formando e su rgem inces e p rocu r am orientar ?s aconte: im entos, apareça:° an_tes e se ela
santemente? É o movimento eterno da História, do Homem e . .
bor em nas lojas maçonicas. Nao se t rata de comcidencia. O que
de t odas a� coisas, qu e não p'ára e não cessa, e de que nós, com há é uma ação subterrânea e sistemática que trabalha em certo
os pobres 2nstrumentos de compreensão e de expr essão que pog.. sentido. Noutras palav ras, além dos indivíduos que atu am em
,
smmos, nao apanhamos e sobretudo não pod emos ·reproduzir todos os grandes fatos da n ossa história de�� e os último� an_?S
senão numa parcela ínfima, cortes desaj eitaaos numa realidade do . séc. XVIII, há uma organização em atividade, organ! zaç ao
que não se define estática, e sim dinamic amente. de que m uitas vezes aqueles indivídu os nada mais são qu� simples
No momento que nos ocupa, não ent r amos ainda na fase dos instrumentos, e digamos a palavra, nem semp re pe rfeitamente
�c?i:itecimentos decisi�os e de grande enve rgadu ra, cujo marco conscientes de seus atos.
imcial pod emos grosseiramente f aze r coincidir com a t ransferência Através da maçonaria, a política br asileira, ou antes os p ri-
da cort� po�g�esa para o Rio de Janeiro. Mas vimos que as me iros vagidos do que seria a nossa política, articulam-se com um
_
C?ntradiçoes ai Já estao latentes, e começam a se manifestar em movimento internacional de p rop orções muito mais v�stas. Com?
sintomas alarmantes que põem em xeque toda a estrutu ra colonial. se sabe, a maçonaria se organiza no B rasil, ou por açao de brasi
Para onde levará aquele processo confuso, complicado, oposto leiros, bem como de portugueses, chegados da Europa e que agem
mesmo nos seus próprios termos, como o mar encapelado em que por impulsos vindos de lá, como é o caso, entre outros, da
as vagas se !azem e desfazem, convergem e divergem, rolam na primeira loja de Pernambuco, fundada em 1796 po� Ai:ruda
. ,
r;nesma direçao ou se entrecruzam, para dar afinal numa resultante Câmara, o naturalista, sob o nome de Areopago; ou entao direta
.
umca e comum que é o embate violento contra o penhasco ou mente por agentes est rangeiros, espe cial e? te destacados p�ra
1? _
a on�a que se al �str� e espr eguiça pela areia? Não nos ocupemos este fim, ou que pare cem com toda a evidenci a tal, na medida
com isto que � adiante d� nosso assunto. No limite de tempo em que se pode penetrar � véu �e mistério 9ue cer ca a vida
. - . ' ,
dele, a imprecisao amda e completa; a ação dos indivíduos maçônic a. É o caso de ste cavaleiro Lau rent que aportou no
como s�as idéias e opiniões, divergem la rgamente; mais qu e isto'. Rio de Janeir o em 1801, e fundou aí a p rim eir a loj� r eg-µh:r _ sob
contradize m-se dentro das mesm as correntes de pensam ento e de o nome de Reunião ( 44). De qualqu er form a, as lo1as maçomcas
ação, quando não no p róprio íntimo dos atores do dr ama que se do B rasil são evidentemente o rganizadas sob encomenda de suas
repr�senta;1a . E este é o <_:aso da própria e única organização que matrizes eu ropéias.
.
na mcoerencia e confusao geral do mom ento se orienta e se Em princípios do séc. XIX havia lojas e�palhadas pelos pi:m
conduz com mais p recisão e segur ança: refiro-me às sociedades cipais centr os da colônia, e não só se articulavam entre s1 e
sec retas, em particular à maçonaria. com as da Europa, suas inspirador as, mas com as dos Estados
Já não pode haver mais dúvidas acerca do papel que a maço Un idos e das demais colônias am ericanas. A interv enção de uma
. poder osa o rg anização de�ta natureza na vid� brasileira P?r si
nana r epresentou na história brasileira desde fins do séc. XVIII, _ ,
quando aqui penetra e se o rganiza. Papel que não é somente já mostra que acima dos mdividuos que se agi�am no cenáno d_a
aquele que em regra se lhe concede, o mais insignificante deles política da colônia, há uma vontade e ação gerais, certamente mais
e que é o de uma àe suas lojas, o Grande Oriente do Rio de Janeiro'. fortes que as daqueles. Aliás a maior parte dos personagens que
e s. �u rebento: º. Apostolado <!,os Andradas( 43), que saem a público têm algum papel saliente naquele período é for mada de maçons .
. Da presunção se po de passar à ce rteza quando se compulsam
drngmdo os ultrmos acontecimentos que precedem imediatamente
a !?dependência e a determinam. O papel da ·maçonaria é muito os fatos que numa out ra nout ra ocasião rompe ram o �istério
, .
mais amplo e profundo, como também mais antigo; e mais que maçônico, trazendo a luz o que se d�s en rolava no i�teno� . das
lojas. A ação da maçonaria aparece entao em toda su� m� e�dade
.
( 43) ? Apostolado não era propriamente maçônico, mas inspirou-se
e extensão, e sente-se que é ela, mais que qualquer individuo ou
na m�ç�nar1a, e tem o mesmo caráter, embora represente tendência política
antagomca.
( 44) Manifesto maçónico de José Bonifácio.
370 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo :r71
gru�o de indivíduos, quem estava controlando, por detrás dos ou aqueles, a maçonaria não poderia torner os fatos da nossa
bashdores, os acontecimentos da nossa história. história. Limitou-se a tirar partido deles para os seus fins, como
Não é poss�vel esmiuçar aqui um assunto que se prende aos os primeiros tirariam dela para os próprios.
. É assim que, em síntese, se deve interpretar a intervenção da
maiores acontecimentos !nternacionais do séc. XVIII e do seguinte,
e 9ue ultrapassam sensivelmente a história particular do Brasil. maçonaria na política brasileira de fins do séc. XVIII e princípios
Ha um ponto contudo que toca de perto o nosso assunto e não do seguinte. Ela não traz modificação alguma aos fatos que nos
pode por isso deixar de ser elucidado. E ele é o do sentido e interessam. Procurando controlar e orientar os acontecimentos
da medida em que aquela intervenção estranha participa dos brasileiros, a maçonaria não lhes acrescentará nem tirará nada
fatos que ora. n?s ?cupam. Está claro que a situação colonial, de substancial, corno aliás seria absurdo imaginar. O que a inte
tal qual a anahse1 acima, com suas contradições e conflitos internos ressa é somente o grande objetivo que é seu, e que assinalei
n_a�a ,�em a ver com a maçonaria ou com qualquer outra açã� acima; quanto à melhor forma de contribuir para isto ?.t!.''"'"�
ou ideia desta ou daquela natureza vindas de fora. É uma situacão da situação particular do Brasil, havia grande margem de alter
fruto d_e condi9�es pró�rias da colô iª: e que se liga unicame�te nativas, e nunca houve mesmo entre os próprios maçons unani
!1
ao regime .P?hhco e sistema econom1co e social aqui vigentes. midade de opinião ou de ação a respeito. Qualquer reforma,
Neles se ongma e a eles deve exclusivamente sua razão de ser( 45). fosse em que direção fosse, iria atingir o absolutismo português,
o grande alvo visado aqui pela maçonaria. A simples agitação,
O papel da maçonaria foi neste, como em tantos casos aná mesmo que nada de concretb se realizasse, já seria um resultado
log?s,_ tentar ��icular �1:1ª situação própria e interna de uma apreciável. Qualquer caminho, portanto, poderia servir, e só lhe
coloma europeia, _à pohtica �eral da Europa, cujo objetivo era interessava que fosse perturbada a estabilidade do trono português.
a reforma que ve10 a dar afmal neste novo equilíbrio do conti Explicam-se assim as lutas no seio das lojas ou entre elas, e que
n;nte; e de cad� um dos seus países em particular, que é O do trazem muitas vezes para o interior da orianização os conflitos
sec. XIX. Tudo isto não toca senão remotamente o nosso assunto que vão por fora e que ela procura conduzir( 46).
porque a intervenção_ d� maçonaria numa insignificante colôni�
com? nós, só lhe podia mteressar, e de fato só lhe interessou, na Numa palavra, a diretiva e ação geral e efetiva da maçonaria
medida em que contribui para atingir um dos redutos do abso como entidade internacional, não desce às minúcias da política
lutismo europeu, contra que, de �ma forma geral, ela se dirigia. particular da colônia. Neste setor, agirá como estimulante apenas.
E por isso, em tal qualidade internacional e de conjunto, só
!ra_tava-se no caso da monarqma portuguesa. Era uma ação
indireta e remotamente pode interessar ao Brasil. Os nossos maçons,
md_lfeta, em que o Brasil não servia senão como instrumento.
agindo neste ou naquefe sentido, e dentro dos objetivos especiais
C01sa semelhante se passa aliás com as demais colônias ameri
e particulares da colônia que tinham em vista, estão na realidade
canas, em que o �im almejado era o trono espanhol. Daí o inte
agindo não como "maçons", mas como "brasileiros." O que o
resse da rnaçonana em apoderar-se e manejar uma situação que
fato de pertencerem à maçonaria lhes acrescenta é a organização,
se desenhav� nas �lônias da An;iérica, e que de uma forma ou a possibilidade de uma maior unidade de vistas e de ação conjunta,
outra podena serv!f a seus propositos. que sem ela, e na falta de outra organização semelhante, teria sido
. De seu_ lado, os �rasileiros e todos que tinham um interesse ainda mais dispersiva e incoerente que foi. O mínimo de conti
direto . na vida da colonia, e sentiam, mais que compreendiam a nuidade na linha de ação que se insinua e serpenteia através dos
necessi�ade de reformas, encontraram na maçonaria um instru confusos acontecimentos políticos da colônia desde fins do séc.
mento ideal, tanto pelo seu prestígio e ligações internacionais XVIII, e que iriam dar afinal na Independência, é sem dúvida
como pela força que s� acumulava atrás dela, paià. â. realizaçã� atribuível à circunstância de terem pertencido a maioria e os
d�que�as reformas. Mmtos, naturalmente, não agiram senão por principais atores deles a um organismo bem articulado e já com
mimetismo, � foram ser�ir depois d� simples joguetes mais ou larga .:xp�riência políti:ª· A maçonaria emprestou assim alguma
menos conscientes nas maos da orgamzação. Mas seja com estes consc1enc1a a uma açao que, sem ela, embora continuasse a
existir, teria sido certamente cega e desorientada. Ou teria, o que
( 45) Observação necessária, embora evidente, para responder às fanta-
.
sias � certos_ tra?a�os ap_ressados pseudo-históricos, tipo panfleto, que com ( 46) O i\fanifesto maçônico citado revela alguns aspectos daqueles
ob1et1"'.os e msp1raçao un�camente de propaganda política de momento, se
atrito,; e lutas intestinas.
vulganzaram nao faz muito no Brasil 1942).
Formação do Brasil Contempordneo 373
372 Caio Prado Júnior
é mais provável, recorrido a outra or�anização semelhante, frita Também não é de desprezar a intervenção inglesa, esta menos
sob encomenda e que a teria substitmdo. Se se preferiu- a ma�o sentida nos seus efeitos diretos porque, aliada de Portugal e
naria para a tarefa, foi por motivos óbvios. sua protetora, a Grã-Bretanha manejava mais seus negócios e
Há, portanto - empreguemos a palavra um pouco arriscada, interesses na própria corte do Reino. Mas embora toda esta
mas exata se nos colocamos no ponto de vista de uma história matéria de intervenção secreta de governos estrangeiros ainda
local como a que fazemos aqui - há uma "coincidência" entre um esteja pouco devassada, não se pode pôr em dúvida a grande
fato de nossa história, e outro de natureza muito mais ampla: de atividade subterrânea que vai em conseqüência dela pela nossa
um lado, a situação brasileira, tal como resulta d& suas circuns p olítica dos primeiros anos do século passado, e que é pelo menos
tâncias peculiares; doutro, uma internacional, estranha em prin- · de iguais conseqüências às interve:nções espetaculares que a
cípio, mas que indiretamente se liga a nós· a maçonaria e seus História oficial registra.
objetivos na política européia. Ainda há finalmente mais um setor em que a política brasi
Não seria esta aliás a ocorrência única de uma tal "coinci leira se liga ao momento internacional. f: o da ideologia que se
dência". Encontramo-la em outros setores, ligados todos mais ou adota aqui, e que servirá para explicar, justificar e emprestar aos
menos intimamente ao primeiro assinalado. A intervenção nos nossos fatos o calor das emoções humanas; tal é sempre o papel
fatos de que orci. nos ocupamos, já não de uma organização privada das ideologias, que os homens raramente dispensam, e que em
como a maçonaria, mas dos próprios poderes públicos das nações nosso caso, não sabendo ou não podendo forjá-las nós mesmos,
estrangeiras, é bem sensível. � o caso em particular da França fomos buscar no grande e prestigioso arsenal do pensamento
revolucionária e bonapartista, adversária de Portugal que se aliara europeu. Em especial, na filosofia aa Enciclopédia e dos pensa
com seus inimigos se_culares, e agora mais que nunca: os �gleses. dores franceses do séc. XVIII.
A ação do governo francês, indiretamente através de suas liga O porque desta escolha deve ser procurado, em primeiro
ções na Europa, e em particular com a maçonaria - que volta lugar, em razões semelhantes às que fizeram adotar aqui, para
aqui à baila, e que é, no exterior, uma das grandes armas da organismo político dirigente, a maçonaria internacional. Aliás a
Revolução -, mas também diretamente por agentes seus que afinidade entre esta organização e aquela filosofia é notória, e
trabalhavam no Brasil, se faz sentir a cada passo. Em 1809, o isto já explica muita coisa. Mas além disto, é de considerar que
governo português, então recém-chegado ao Rio de Janeiro, nenhum pensamento, nenhuma idéia, e sobretudo nenhum con
chama a atenção da Junta interina que então governava a Bahia, junto teórico deu aos fatos universais do séc. XVIII - "universal"
para vários franceses aí domiciliados, inclusive e sobretudo um aqui é o da civilização ocidental a que nos filiamos -, uma
"certo Abade", cujo nome não é citado e que se ignora, franceses interpretação mais ajustada, tão harmoniosa, tão esteticamente
esses que tinham ficado desde o temyo em que tocara naquele perfeita, um corpo de doutrina tão completa e geral como aquela
porto a esquadra que transportava Jerônimo Bonaparte, irmão filosofia. E particularmente tão a calhar com as necessidades do
do Imperador( 47). � também possível que a conspiração desco momento, e de acordo com os impulsos mais íntimos dos contem
berta em Pernambuco em 1801, e de que participavam o natura p orâneos. Comparável a ela, só se encontrará, para a situação
lista Arruda Câmara, fundador, anos antes, do já citado Areópago, do século seguinte, o socialismo. Não é pois sem motivo plena
e os irmãos Cavalcânti de Albuquerque, senhores do engenho mente justificável que empolgasse todo mundo pensante, e servisse
de Suaçuna, conspiração que tinha por obietivo tomar Pernam "oficialmente" para vestir das roupagens do pensamento os fatos
buco independente sob a proteção de Napoleão Bonaparte, então que se desenrolavam no mundo. Os brasileiros não poderiam
Primeiro Cônsul, tivesse agido por inspiração direta de agentes ficar imunes ao contágio. Alás vários representantes da intelli
franceses( 48). Este assunto ainda não está bem esclarecido; mas gentsia da colônia estiveram em contacto direto e íntimo com ela,
traz sem dúvida muita luz sobre a confusa história dos aconteci sejam os que estudaram na França, sejam os que procuravam
mentos que nos ocupam. por outro motivo qualquer o que já era então a Meca do pensa
mento ocidental. Em Portugal, colônia comercial da Inglaterra,
( 47) Carta de 17 de nooembro de 1809. Bras do Amaral nos seu� mas intelectual da França, a filosofia deste país se difundira
Esclarecimentos sobre o modo pelo qual se preparou a Independ8ncia, largamente; e até no rançoso casarão de Coimbra, as reformas
publicou este e outros documentos sobre o assunto.
(48) Vejam-se as anotações de Oliveira Lima à Hist6ria da Revofoção de Pombal tinham-lhe aberto algumas frestas que foram avida
ele 1817 de Muniz Tavares, pág. 73. mente aproveitadas.
374 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordne:J 375
Será assim, na medida em que idéias gerais, se não idéias dades e a "gente boa" da época. A correspondência oficial deixou
tout courl puderam penetrar a espessa crosta de ignorância estampado o terror que prnvocam tais idéias( 52). O simples
colonial, será a filosofia francesa do séc. XVIII que dominará os conhecimento da língua francesa chegava a ser mal visto: um
espíritos capazes deste domínio ( 49). O fato é tão notório que tio de Fernandes Pinheiro, futuro Visconde de São Leopoldo,
não se precisa mais insistir nele. Tudo que se escreveu no Brasil cônego da catedral de São Paulo, sabendo que ensinavam francês
desde o último quartel do séc. XVIII, que é quando realmente ao sobrinho, reclamou revoltado, na sua qualidade de chefe da
se começa a escrever alguma coisa entre nós, traz o cunho do família, a suspensão formal deste estudo que ia pôr a inocente
pensamento francês: idéias, o estilo, o modo de encarar as coisas criança em contacto com os "libertinos, ímpios e ateus princípios
e abordar os assuntos. Aliás a leitura dos nossos avós, a parca daquela nação"( 53).
leitura que se fazia nesta colônia de analfabetos em que só um Mas a ideologia revolucionária francesa venceria estas resis
punhado de pessoas saberia ler, e destas, muito poucas se ocupa tências, e se adotará "oficialmente" para as circunstâncias brasi
riam com coisas do espírito, é quase toda de origem ou inspiração leiras. Nos seus traços gerais, ela parecia perfeitamente aplicável
francesa. As devassas da justiça colonial, que os acontecimentos às necessidades políticas da colônia. A "liberdade, igualdade e
políticos tomam freqüentes desde fins do séc. XVIII, desvendam fraternidade", que como norma política a sumaria, ia prestar-se
-nos os segredos das principais bibliotecas particulares que então bastante bem às várias situações que aqui se apresentam. Casti
havia na colônia, e que, seqüestradas e arroladas, chegaram até gada embora, e deformada não raro ( que castigo aliás, e que
nós nas páginas amarelecidas e roídas de traça dos autos. A aeformação não cabem no vago da fórmula francesa?), ela servirá
literatura francesa, e só ela no que diz respeito a filósofos, mora de lema a todos que pretendiam alguma coisa: senhores de
listas, políticos, está aí abundantemente representada ( 50). Os via engenho e fazendeiros contra negociantes; mulatos contra brancos;
jantes estrangeiros que nos visitaram em princípios do século pés-descalços contra calçados; brasileiros contra portugueses ...
passado notarão a influência decisiva da cultura francesa; e o Faltou apenas "escravos contra senhores", justamente aqueles a
favor das idéias racionalistas e revolucionárias daquela .cultura, quem mais se aplicaria como lema reivindicador; é que os escravos
no momento em questão, é lamentado por Saint-Hilaire, que embo falavam - quando falavam, porque no mais das vezes agiram
ra francês, formava politicamente em campo oposto a elas. E Mar apenas e não precisaram de roupa�ens ideológicas -, falavam
tius observará o que ainda hoje, à primeira vista, nos parece um na linguagem mais familiar e acess1vel que lhes vinha das flo
paradoxo: apesar do completo domínio comercial exercido pela restas, das estepes e dos desertos africanos ... ( 54).
Inglaterra, e do número muito maior de ingleses aqui domiciliados,
a cultura francesa não sofre concorrência( 51). Aliás a cultura
inglesa ainda se ignora inteiramente. Os ingleses não eram com
suas idéias tão fefizes como com seus tecidos, sua ferramenta e
sua louça.
Uma tal difusão do pensamento francês, "idéias jacobinas"
ou "abomináveis princípios franceses", como se dizia aqui em
certas rodas, não deixava de alarmar muito seriamente as autori- (52) Veja-se, entre outros casos, o de um comerciante da Bahia,
acusado de ter, em sexta-feira santa, dado um "banquete de carne", o que
provocou até uma devassa; o bode expiatório foram os "abomináveis prin
( 49) Notemos aqui, mais uma vez, a contribuição que para este cípios franceses", como lhes chama a correspondência oficial. Vigilância
terreno particular trouxe a maçonaria, incumbindo-se de propagar no Brasil do governo português..• Veja-se também: Brás do Amaral, Esclarecimen
o que· era, pode-se dizer, sua ideologia oficial. Acresce o fato de ser a tos... , 380.
maior parte das lojas brasileiras filiadas ao Oriente da Ilha de França ( Isle (53) Con. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, Apontamentos bio
de France), com sede em Paris. Não se esqueça finalmente o prestígio da gráficos.
França na América depois que prestou seu concurso à libertação das (54) A identificação com a ideologia francesa foi em certos meios
colônias inglesas do continente. São outros tantos fatos que explicam, revolucionários tamanha, que "francês" se tornou sinônimo de reformador,
naquela época, a vassalagem intelectual do Brasil aquele país. revolucionário. :E: o que se lê nos depoimentos prestados na devassa da
( 50) Vejam-se os Autos da Devassa da Inconfidência Mineira e In conspiração de 1798 na Bahia, em que ocorrem expressões como "fulano
confidência da Bahia de 1798, Devassas e Seqiiestros. tem cara de francês", "convinha que todos se fizessem franceses para
( 51) Viagem, II, 293, viverem em abundúncia", etc.
376 Caio Prado Júnior Formação cio Brasil Contcmportlneo 377