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Organização Social

Naturalmente o que antes de mais nada, e acima de tudo,


caracteriza a sociedade brasileira de princípios do séc. XIX, é
a escravidão. Em todo lugar onde encontramos tal instituição,
aqui como alhures, nenhuma outra levou-lhe a palma na influên­
cia que exerce, no papel que representa em todos os setores da
vida social. Organização econômica, padrões materiais e morais,
nada há que a presença do trabalho servil, quando alcança as
proporções de que fomos testemunhas, deixe de atingir; e de um
modo profundo, seja diretamente, seja por suas repercussões
remotas. Não insistirei aqui sobre a influencia material e moral
da escravidão no seu caráter geral, o que a História e a Sociologia
já registraram tantas vezes, seja no tempo, seja no espaço. A
literatura sobre o assunto é ampla, e nada lhe poderíamos acres­
.centar sem repisar matéria fartamente debatida e conhecida.
Ficarei aqui apenas no que é mais peculiar ao nosso caso. Porque
a escravidão brasileira tem característicos próprios; aliás, os mais
salientes, tem-nos em comum com todas as colônias dos trópicos
americanos, nossas semelhantes; e são tais característicos, talvez
mais ainda que outros comuns à escravidão em geral, que mode­
laram a sociedade brasileira.
A escravidão americana não se filia, no sentido histórico, a
nenhuma das formas de trabalho servil que vêm, na civilização
ocidental, do mundo antigo ou dos séculos que o seguem; ela
deriva de uma ordem de acontecimentos que se inaugura no séc.
XV com os grandes descobrimentos ultramarinos, e pertence intei­
ramente a ela. Já notei acima, incidentemente, que o trabalho
servil, tendo atingido no mundo antigo proporções consideráveis,
declinara em seguida, atenuando-se neste seu derivado que foi
o servo da gleba, para afinal se extinguir por completo em quase
toda a civilização ocidental. Com o descobrimento da América,
ele renasce das cinzas com um vigor extraordinário. Esta circuns­
tância precisa ser particularmente notada. O fato de se tratar,
no caso da escravidão americana, do renascimento de uma insti­
tuição que parecia para sempre abolida <lo Ocidente, tem uma
importância capital. A ele se filia um conjunto de conseqüências
que farão do instituto servil, aqui na América, um processo ori-
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ginal e próprio, com repercussões que somente vistas de tal pearance of serfdorn in the most ad'?°'nced comm�nití�s, comes
ângulo se poderão avaliar. into sight the 11wdern system of colonial slavery, wh1ch, mstead of
Ressalta isto da comparação que püdemos fazer daqueles dois being the spontaneous outgrowth of social necessities, and subser­
momentos históricos da escravidão: o do mundo antigo e do ving temporary needs of human development, '!f-'as politically as
L

moderno. No primeiro, com o papel imenso que representa, o well as morally a monstruous aberration( 1). Não é num terreno
escravo não é senão a resultante de um processo evolutivo natural de "moral absoluta" que precisamos ou devemos nos colocar para
cujas raízes se prendem a um passado remoto; e ele se entrosa fazer o juízo da escravidão moderna. Já sem falar na devastação
por isso perfeitamente na estrutura material e na fisionomia moral que provocará, tanto das populações indígenas 'da América, como
da sociedade antiga. Figura nela de modo tão espontâneo, aparece das do continente hegro, o que de mais grave determinará, entre
mesmo tão necessário e justificável como qualquer outro elemento os povos colonizadores e sobretudo em suas colônias do Novo
constituinte daquela sociedade. lt neste sentido que se compreende Mundo, é o fato de vir a nova escravidão desacompanhada, ao
a tão citada e debatida posição escravista de um filósofo como contrário do que se passara no mundo antigo, de qualquer ele­
Aristóteles, que, pondo-se embora de parte a apreciação que dele mento construtivo, a não ser num aspecto restrito, puramente
se possa fazer como pensador, representa no entanto, nos seus material, da realização de uma empresa de comérciQ: um negócio
mais elevados padrões, o modo de sentir e de pensar de uma apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores. E
época. A escravidão na Grécia ou em Roma seria como o salariado por isto, para objetivo tão unilateral, puseram os povos da Europa
em nossos dias: embora discutida e seriamente contestada na
de lado todos os princípios e normas essenciais em que se fundava
sua legitimidade por alguns, aparece contudo aos olhos do con­
a sua civilização e cultura. O que isto representou para eles, no
junto como qualquer coisa de fatal, necessário e insubstituível.
correr do tempo, de degradação e dissolução, com repercussões
Coisa muito diferente se passará com a escravidão moderna, que se vão afinal manifestar no próprio terreno do progresso e da
que é a nossa. Ela nasce de chofre, não se liga a passado ou prosperidade material, não foi ainda bem apreciado e avaliado,
tt·adição alguma. Restaura apenas uma instituição justamente nem cabe aqui abordar o assunto. Mas terá sido este um dos
quando ela já perdera inteiramente sua razão de ser, e fora subs­ fatores, e dos de primeiro plano, do naufrágio da civilização ibérica,
tituída por outras formas de trabalho mais evoluídas. Surge assim tanto de uma corno de outra de suas duas nações. Foram elas
como um corpo estranho que se insinua na estrutura da civilização
que mais se engajaram naquele caminho; serão elas também suas
ocidental, em que já não cabia. E vem contrariar-lhe todos os
principais vítimas ( 2).
padrões morais e materiais estabelecidos. Traz uma revolução,
mas nada a prepara. Como se explica então? Nada mais particular, Muito mais grave, contudo, foi a escravidão para as nascentes
mesquinho, unilateral. Em vez de brotar, como a escravidão do colônias americanas. Elas se formam neste ambiente deletério
mundo antigo, de todo o conjunto da vida social, material e moral, que ela determina; o trabalho servil será mesmo a trave mestra
ela nad:,i mais será que um recurso de oportunidade de que lan­ de sua estrutura, o cimento com que se juntarão as peças que
çarão mão os países da Europa a fim de explorar comercialmente as constituem. Oferecerão por isso um triste espetáculo humano;
os vastos territórios e riquezas do Novo Mundo. lt certo que a e o exemplo do Brasil, que vamos retraçar aqui, se repete mais
escravidão americana teve na península seu precursor imediato ou menos idêntico em todas elas.
no cativeiro dos mouros, e logo depois, dos negros africanos, que Mas há outra circunstância que vem caracterizar ainda mais
as primeiras expedições ultramarinas dos portugueses trouxeram desfavoravelmente a escravidão moderna: é o elemento de que
para a metrópole como presas de guerra ou fruto de resgates. Mas se teve de lançar mão para alimentá-la. Foram eles os indígenas
não foi isto mais que um primeiro passo, prelúdio e preparação da América e o negro africano, povos de nível cultural ínfimo,
do gra:nde drama que se passaria na outra margem do Atlântico.
lt aí que verdadeiramente renascerá, em proporções que nem o ( 1 ) John Kellis Ingram, S lavery.
mundo antigo conhecera, o instituto já condenado e pràticame:ate ( 2) A Inglaterra também teve papel proeminente no restabelecimento
abolido. da escravidão; e sabe-se que durante séculos seus comerciantes tiveram o
Por este recurso de que gananciosamente lançou mão, pagará quase monopólio do tráfico negreiro, pelo qual a nação chegou até a
a Europa um pesado tributo. Podemos repetir o conceito que ex­ tomar armas. Ma5 não sofreu tão fundamente os efeitos danosos da escravidão,
porque seu papel foi sobretudo este de intermediário. O trabalho servil nunca
prime a propósito John Kellis Ingram: "Not long after the disap· assentou pé na Inglaterra propriamente.
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comparado ao de seus dominadores ( 3). Aqui ainda, a comparaçãrr l!: a esta passividade aliás das culturas negras e indí�ena; no
com o que ocorreu no mundo antigo é ilustrativa. �foste último, Brasil que se deve o vigor com que a do branco_ se 1mpo_s e
predominou inconteste, embora fosse muito reduzido, relativa­
a escravidão se forneceu de povos e_ raças que mmtas v_ez�s se mente à das outras raças, a sua contribuição demográfica. O negro
equiparam a seus conquistadores, se na� os superam. Contnbmram
assim para estes com valores culturais de elevado teor. Roma e o índio teriam tido certamente outro papel na formação brasi­
não teria sido o que foi se não contasse com o que lhe trouxeram leira, e papel amplo e fecundo, se diverso tivesse sido o �umo
seus escravos, recrutados em todas as partes do mundo conhecido, dacl.o à colonização; se se tivesse procurado neles, ou aceitado
e que nela concentram º. que então havia de _melhor e cultural­ uma colaboração menos unilateral e mais larga que a do simples
mente mais elevado. Mmto lhes deveu e mmto deles aprendeu esforço físico. :Mas a colonização brasileira se processa num plano
a civilização romana. O escravo não foi nela a simples máquina acanhado; outro objetivo não houve que utilizar os recursos natu­
de trabalho bruto e inconsciente que é o seu sucessor americano. rais do seu território para a produção extensiva e precipitada de
um pequeno número de gfneros altamente remunerados no mer­
Na América, pelo contrário, a que assistimos? Ao recruta­ cado internacional. Nunca se desviou de tal rumo, fixado desde
mento de povos bárbaros e semib�r�aros, arrar:ic�?os _ do_ se? o primeiro momento da conquista; e parece que não havia tempo
habitat natural e incluídos, sem trans1çao, numa c1v1hzaçao mte1- a perder, nem sobravam atenções para empresas mais assentes,
ramente estranha. E aí que os esperava? A escravidão no .seu estáveis, ponderadas. Só se enxergava uma perspectiva: a remu­
pior caráter, o homem �edu�ido à "mais simples �xpressão, pou';? neração farta do capital que a Europa aqui empatara. A, terra
.
senão nada mais que o urac10nal: Instrumento vivo de trabalho , era inexplorada, e seus recursos, acumulados durante seculos,
o chamará Perdigão Malheiro ( 4). Nada mais se queria dele '. ,e jaziam à flor do solo. O trabalho para tirá-los de lá não pedia
nada mais se pediu e obteve que a sua força bruta, material. grandes planos nem impur:iha jroblcmas co1!1l?lexos: bastava o
Esforço rnuscufar primário, sob a direção e açoite do feitor. Da mais simples esforço matenal. o que se ex1gm de negro e de
mulher, mais a passividade da fêmea na cópula. Num e noutro índio que se incumbiriam da tarefa.
caso, o ato físico apenas, com exclusão de qualquer outro ele­ Correndo parelhas com esta contribuição que se impôs às
mento ou concurso moral. A "animalidade" do Homem, não a sua
"humanidade." raças dominadas, ocorre outra, este subproduto da escravidão
largamente aproveitado: as fáceis carícias da escrava para a satis­
A contribuição do escravo preto ou índio para a fo:°1ação fação das necessidades sexuais do colono privado de mulheres
brasileira, é além daquela �nergia motriz q�ase nu,�a. Nao que de sua raça e categoria. Ambas as funções se valem do ponto
deixasse de concorrer, e mmto, para a nossa cultura , no 7entido de vista moral e humano; e ambas. excluem, pela fom1a com que
amplo em que a antropologia emprega a. expressão; mas e antes se praticaram, tudo que o negro ou o índio poderiam ter trazido
uma contribuição passiva, resultante do simples fato da presença como valor positivo e construtor de cultura.
dele e da considerável difusão do seu sangue, que uma mterven­
ção ativa e construtora. O cabedal de c�ltura que traz �onsig� Uma última circunstância diferencia e caracteriza a escra­
da selva americana ou africana, e que nao quero subestimar, e vidão americana: é a diferença profunda de raças que separa os
abafado, e se não aniquilad , detu�a-se pelo estatuto social, escravos de seus senhores. Em algumas partes da América, tal
_?
material e moral a que se ve reduzido seu portador. E aponta diferença constituiu, como se sabe, obstáculo intransponível à
aproximação das classes e dos indivíduos, e reforçou por isso
por isso apenas, muito timidamente, aqui e acolá. Age mais como consideravelmente a rigidez de uma estrutura que o sistema social,
fermento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se
lhe sobrepõe ( 5). cm si, já tornava tão estanque internamente. Mas não me ocuparei
<l.:stas colônias, porque entre nós a aproximação se realizou, e,
corno já notei cm outro capítulo, em escala apreciável. Isto con­
( 3) Esta observação não seria tão exata com relação a certos indí­ tudo dentro de limites que apesar de tudo não são amplos, pelo
genas america�os, como os d? :México e do al�iplano andino, se os conqms­
_ _
tadores não tivessem, de m1c10 e com ferocidade quase sem precedente, menos até o momento histórico que nos interessa aqui. Existiu
feito tábua-rasa de todos seus valôres culturais.
( 4) A escravidão no Brasil. 3.ª parte, 126. nc·o-africrma, m:iis que qualquer outra coisa, e que se _perdeu a grandeza e
. . .
( 5) Isto é, entre outros, particularmente o caso do �mcretismo reli­ ,·k:v,1�-�-0 do cristianismo, também não conservou a espontaneidade e riquez:i
gioso que resultou do amálgama �e catolicismo e paganismo '. em �º::s <le culoriJo <las crenças negras em seu estado nativo.
. .
várias, que formaria o fundo rehg10s0 de boa parte <lo Brns1l. Rehg1ao
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2i2 Caio Prado Júnior
sempre um forte preconceito discriminador das raças, que se justificar-se, levado por contingências extremas, porém os seus
era tolerante e muitas vezes se deixava iludir, fechando os olhos escrúpulos não foram partilhados pelos brasileiros que o ajudaram,
a sinais embora bem sensíwis da origem racial dos indivíduos e que agiram com a maior naturalidade, como se estivessem no
mestiços, nem por isso deixou de se manter, e de forma bem uso de um direito indiscutível ( 6).
marcada, criando obstáculos muito sériO'S à integraçüo da socie­ O papel da simples cor na discriminação das classes e no
dade colonial num conjunto se não racial, o que seria mais demo­ tratamento recíproco que elas se dispensam, reflete-se até nos
morado, pelo menos moralmente homogêneo. Não discutirei aqui usos e costumes legais. Observou Perdigão Malheiro que nos leilões
o preconceito de raça e de cor, nem sua origem; se ligado a de escravos, se os lances "a bem da liberdade" - que são os feitos
certos caracteres psicológicos inatos de ordem estética ou outra, sob promessa de alforria - excluíam em regra qualquer outro,
ou se fruto apenas de situações e condições sociais particul�res. isto era no caso de escravos claros, uma norma absoluta ( 7).
O fato incontestável, aceite-se qualquer daqueles pontos de vista, Acrescenta o mesmo autor que era notória a repugnância contra
é que a diferença de raça, sobretudo quando se manifesta e:n a escravidão de gente de cor clara; e chega até ao exagero de
caracteres somáticos bem salientes, como a cor, vem, se nao concluir que se não fora a cor escura dos escravos, os costumes
provocar - o que é passível de dúvidas bem funda'.11e�ta?as, _ e brasileiros não tolerariam mais o cativeiro. 1! verdade que ele
a meu ver incontestáveis -, pelo menos agravar uma d1scnrnmaçao escrevia isto em 1867, quando a escravidão já perdera muito de
já realizada no terreno social. E isto porque empresta urna marca sua força moral; e que os conceitos citados partem de um escritor
iniludível a esta diferença social. Rotula o indivíduo, e contribui notoriamente simpático à causa da liberdade - seu grande livro
assim para elevar e reforçar as barreiras que separam as classes. não é aliás senão um libelo a favor dela. O seu aepoimento,
A aproximação e fusão se tornam mais difíceis, acentua-se o entretanto, conserva assim mesmo muito do seu valor, e com l?rova
predomínio de uma sobre a outra. o quanto a simples cor atua no sentido de rebaixar os indiv1duos
Isto não exclui, e sabemos que não exclui entre nós, urna da raça dominada; faz entrever também como seria mais dura e
circulação intra-social apreciável, que permitiu aqui a elevação áspera a escravidão quando, como se dava entre nós, à discrimi­
a posições de destaque, e isto ainda na colônia, de indivíduos nação social se acrescenta este caráter marcado e iniludível.
de indiscutível origem negra. índia também, está claro; mas' _ o Em suma, verifica-se por tudo que acabamos de ver que na
caso é muito menos de se destacar, porque o preconceito não fui escravidão, tal como se estabelece na América, em particular no
aí excessivamente rigoroso, como no caso do africano. Mas, acei­ Brasil, de que trato aqui, concorrem circunstâncias especiais que
tando aquela elevação, não se eliminava o preconceito. ContOT­ acentuam seus caracteres negativos, agravando os fatores moral­
nava-se com um sofisma que já lembrei acima, um "branquea­ mente corruptores e deprimentes que ela, por si só, já encerra.
mento" aceito e reconhecido. Aceitava-se uma situação criada Incorporou à colônia, ainda em seus primeiros instantes, e em
pela excepcional capacidade de elevação de um mestiço particular­ proporções esmagadoras, um contingente estranho e heterogêneo
mente bem dotado; mas o preconceito era respeitado. Aliás est� de raças que beiravam ainda o estado de barbárie, e que no con­
elevação social de indivíduos de origem negra só se admitia nos tacto com a cultura superior de seus dominadores, se abastarda­
de tez mais clara, os brancarrões, em que o sofisma do branquea­ ram por completo. E o incorporaram de chofre, sem nenhum
mento não fosse por demais grosseiro. O negro ou mulato escuro, está 9.io preparatório. No caso do indígena, ainda houve a educação
este não podia abrigar quaisquer esperanças, por melhores que jesmtica e de outras Ordens, que com todos seus defeitos, trouxe
.
fossem suas aptidões: inscrevia-se nele, indelevelmente, o estigma todavia um começo de preparação de certo alcance. Mesmo depois
de uma raça que à força de_ se manter n?s í�fimos degr�us d! da expulsão dos jesuítas, o que desfalcou notavelmente a obra
,,
escala social, acabou confundmdo-se com eles.. Negro ou preto missionária, pois as demais Ordens não souberam ou não puderam
são na colônia, e sê-lo-ão ainda por muito tempo, termos pejora­ suprir a falta, o estatuto dos índios, embora longe de corresponder
tivos; empregam-se até como sinônimos de "escravo". E o indi­ ao que deveria ter sido em face da legislação vigente, e cujas
víduo daquela cor, mesmo quando não o é, trata-se como tal. intenções eram justamente de amparar e educar este selvagem
A este respeito, Luccock refere um caso ilustrativo. Necessitando que se queria integrar na colonização, ainda contribuiu para
certa vez do auxílio de dois pretos livres que se encontravam em
companhia, forçou-os, diante de sua relutância e com auxílio de ( 6) Notes, 203.
outras pessoa!!, à ajuda- pedida. Fê-lo, assim o afirma procurando ( 7) A escravidão no Brasil, 3,a Parte, 116.
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manter o indígena afastado nas formas mais deprimentes da escra­
ddão; e se n:'.O Ih:, proporcionou f(randcs vantagens e progressos e deplorada-por todos os observadores contemporâneos, nacionais
materiais, concedeu-lhe um mínin\o de proteçã'o e de estímulo. e estrangeiros. Bem como o baixo nível e ineficiência do trabalho
Mas para o negro africano, nada disto ocorreu. As ordens reli­ e da produção, entregues como estavam a pretos boçais e índios
giosas, solfcitas em defender o índio, foram as primeiras a aceitar, apáticos. O ritmo retardado da economia colonial tem aí uma de
a promover mesmo a escravidão africana, a fim de que os coionos, suas principais causas.
necessitados• de escravos, lhes deixassem livres os movimentos no Este e outros resultados da escravidão e dos elementos que
setor indígena. O negro não teve no Brasil a proteção de nin g uém, para ela concorreram serão analisados, em conjunto com os demais
Verdadeiro "pária" social, nenhum gesto se esboçou em seu favor. fa _tores_ da _vida colonial e de seus costumes, noutro . capítulo.
E se é certo que os costumes e a própria legislação foram com F1care1 aqm apenas na estrutura da sociedade brasileira. No que
relação a ele mais benignos na sua brutaliàade escravista que diz respeito ao escravo e seu estatuto jurídico e social, não creio
em outras colônias americanas� tal não impediu contudo que o que seja necessário insistir num assunto já largamente desenvol­
negro fosse aqui tratado com o último dos descasos no que diz vido em outros trabalhos( 8). A colônia acompanhou neste terreno
respeito à sua formação moral e intelectual, e preparação para o direito romano, para quem o escravo é uma "coisa" do seu
a sociedade em que à força o incluíram. Estas não iam além senhor, que dela dispõe como melhor lhe aprouver. As restrições
do batismo e algumas rudimentares noções de religião católíca, a esta regra, e que trazem alguma proteção ao escravo, não são
mais decoradas que aprendidas, e que deram apenas para formar, numerosas. Aliás o "fato" é aqui mais forte que o "direito", em
com suas crenças e superstições nativas, este amálgama pitoresco, geral fora do alcance do cativo; e se houve alguma atenuação
mas profundamente corrompido, incoerente e ínfimo como valor aos rigores da escravidão, tal como resultaria da propriedade
cultural, que sob o nome de "catolicismo''., mas que dele só tem absoluta e ilimitada, ela se deve muito mais aos costumes que
o nome, constitui a verdadeira religião de milhões de brasileiros; foram entre nós, neste terreno, relativamente brandos. Não tanto
e que nos seus caracteres extremos, Quirino, Nina Rodrigues, e corno é hoje voz corrente, opinião que se reporta mais ao último
mais recentemente Artur Ramos, trouxeram à luz da sombra em período da escravidão, posterior à abolição do tráfico africano, e
que um hipócrita e absurdo pudor a tinham mantido. quando a escassez e portanto o preço dos escravos tornavam antie­
conómico um tratamento excessivamente brutal e descuidado. Os
As raças escravizadas e assim incluídas na sociedade colonial,
depo�mentos mais antigos que possuímos desmentem, para época
mal preparadas e adaptadas, vão formar nela um corpo estranho
antenor, aquela tradição de um passado mais chegado a nós,
e incômodo. O processo de sua absorção se prolongará até nossos
dias, e está longe de terminado. Não se trata apenas da eliminação ainda viva e por isso dominante. Não encontramos neles nada que
nos autorize a considerar os senhores brasileiros de escravos
étnica que preocupa tanto os "racistas" brasileiros, e que, se
humanos e complacentes; e pelo contrário, o que sabemos dele;
demorada, se fez e ainda se faz normal e progressivamente seni
nos leva a conclusões bem diversas( 9). O que há em tudo isto
maiores obstáculos. Não é este aliás- o aspecto mais grave do é que o escravo brasileiro parece ter sido melhor tratado que em
problema, aspecto mais de "fachada", estético, se quiserem: em
algumas outras colônias americanas, em particular nas inglesas
si, a mistura de raças não tem para o país importância alguma, e francesas. Terá influído aí a índole portuguesa, sobretudo quando
e de certa forma até poderá ser considerada vantajosa. O que amaciada pelo contacto dos trópicos e a geral moleza que carac­
pesou muito mais na formação brasileira é o baixo nível destas teriza a vida brasileira( 10). Também o regime patriarcal, de que
massas escravizadas que constituirão a imensa maioria da popu­ falarei abaixo, abrandará o contacto de senhores e escravos dando
lação do país. No momento que nos ocupa, a situação era natural­ aqueles um quê de paternal e de protetor dos seus serv�s. Isto
mente muito mais grave. O tráfico africano se mantinha, ganhava parece tanto mais exato que é nas regiões de forn1ação mais
até em volume, despejando ininterrutamente na colônia contin­
gentes maciços de populações semibárbaras. O que resultará
daí não poderia deixar �e ser este aglomerado incoerente e des­ ( 8) Para isto, será sempre principal a obra já citada de Perdigão
conexo, mal amalgamado e repousando em bases precárias que Malheiro, A escravidão no Brasil, que é clássica, e até hoje não foi igua­
lada por outra.
é a sociedade colonial brasileira. Certas conseqüências serão mais ( 9) Veja-se em particular o que diz Vilhena, Recopilação, passim.
salientes: assim o baixo teor moral nela reinante, que se verifica ( l _O) �os_ter d�rá do proprietário brasileiro: "Seus hábitos pacíficos
<' sua mclol enc,
entre outros sintomas na relaxação geral de costumes, assinalada _ a t_iraorepetira
11, 312. Sa111t-H1hne
dei� �,m -s_enhor brando, mas indiferente". Voyages,
mais ou menos a mesma coisa.
276 Caio Prado Júnior
Formação do Bra�il Confempor<Íneo 277
recente, onde não se tinham por isso constituído aquelas relações dirá um observador perspicaz como Vilhena_. poucos são os mu­
patriarcais, fruto de lenta sedimentação, que vamos encontrar latos, e raros os brancos que nelas �e querem empregar, nem
um rigor mais acentuado no tratamento que se dispensa aos ag_ueles mesmos _ indigentes que em Portugal nunca passaram de
escravos. No momento que nos ocupa, observamo-lo nas duas criados de servir, de moços de tábua(?) e cavadores de ema­
regiões cuja prosperidade, e pois grande afluxo de escrav.os, da...; os criados ( que vêm de Portugal) têm por melhor sorte
datavam de pouco, segunda metade ou fins do séc. XVIII: ,o o ser vadio, o andar morrendo de fome, o vir parar em soldado
Maranhão e o Rio Grande do Sul; em oposição às capitanias e às vezes em ladrão, do que servir um amo honrado que lhes
de colonização ou de progresso mais antigo: Bahia, Pemambuco;­ . paga bem, que os sustenta, os estima, e isto por não fazerem o
Rio de Janeiro. que os negros faze� em outras casas; as filhas do país têm um
Quanto à função desempenhada pela escravidão, ela é, não hm�re tal, que a filha do homem mais pobre, do mais abjeto, a
preciso acrescentá-lo, considerável. Ao tratar da economia da colô­ mais desamparada mulatinha forra com mais facilidade irão para
nia, já vimos que praticamente todo o trabalho é entre nós servil o patíbulo do que servir ainda a uma duquesa, se a terra as
Mas é preciso distinguir nestas funções da escravidão dois setores houvesse"(l3).
_ No campo é a mesma coisa� nenhum homem livre
que têm caracteres e sobretudo conseqüências distintas: o das pegana da enxada sem desdouro, e por isso, dirá o mesmo Vilhena,
atividades propriamente produtivas e as do serviço doméstico. havendo embora terras abundantes carecem de propriedade até
Apesar da amplidão e importância econômica muito maiores do mesmo aqueles que poderiam ser proprietários pois não tendo
primeiro setor, o último não pode ser esquecido ou subestimado. 150$000 para comprar cada um negro que trabalhe o m1>smo é
Não só ele é numericamente volumoso - pois intervém, a par ser proprietário que o não ser"( 14).
das legítimas necessidades do serviço domestico, a vaidade aos Nestas_ con�ições, não é _de admirar que tão pequena margem
de ocupaçoes dignas se destme ao homem livre. Se não é ou não
senhores que se alimenta com números avultados de servos( 11);
como é grande a participação que tem na vida social da colônia pode ser proprietário ou fazendeiro, senhor de engenho ou lavra­
e na influência que sobre ela exerce. Neste sentido, e excluído d�r, não lhe sobrarão senão algumas raras ocupações rurais -
o elemento econômico, ele ultrapassa mesmo largamente o papel feitor, m�s!re d3s engenho�, etc. ( 15); algum ofício mecânico que
do outro setor. O contacto que o escravo doméstico mantém com a escrav1dao nao m�nopohzou e que n3.o se torna indigno dele
seus senhores e com a sociedade branca em geral, é muito maior, pela �r�ncura exc�ssiva_ de sua pele; as funções públicas, se, pelo
muito mais íntimo. E é certamente por ele que se canalizou para contrario, for suf1c1entemente branco; as armas 0u o comércio
a vida brasileira a maior parte dos malefícios da escravidão. Do negociante propriamente ou caixeiro. Nesta última profissão, aind�
pouco que ela trouxe de favorável, também: a ternura e afeti­ esbarra _com outra �estrição: o co�ércio é I!rivilégio dos "reinóis"
vidade da mãe preta, e os saborosos quitutes da culinária os nascidos no Remo. Os naturais da colónia encontram aí as
afro-brasileira( 12). portas fechadas, não· por determinações legais ou preconceitos de
Assim no campo como na cidade, no negócio como em casa, qualquer
_ natureza, mas por um uso estabelecido de longa data,
o escravo é. onipresente. Torna-se muito restrito o terreno reser­ e �1��amente guardado pelos primeiros instalados, justamente os
r�mois, que P?� convenção táci�a, mas rig��osa, conservam para
vado ao trabalho livre, tal o poder absorvente da escravidão. E
a utilização universal do escravo nos vários misteres da vida si e seus patncios um monopólio de fato. Os vindos do Reino
escreverá o Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro'.
econômica e social acaba reagindo sobre o conceito do trabalho,
não cuidam em nenhuma outra cousa que em se fazerem senhores
que se torna ocupação pejorativa e desabonadora. "Como todas
ào comércio que aqui há e não admitirem filho nenhum da terra
as obras servis e artes mecânicas são manuseadas por escravos,
a caixeiros por donde possam algum dia serem negociantes; e
( 11) Refere Vilhena que na Bahia chegavam algumas casas a ter 60
a 70 escravos, portas a dentro, servindo a maior parte, como Jogo se vê, ( 13) Recopilação, 140.
mais para ostentação de riqueza e poder dos senhores. :( 14) Recopilação, 933.
( 12) Gilberto Freyre, na sua Casa Grande e Senzala, embora não . ( 15) Na ind ístria pastoril, em particular na dos sertões do Nordeste
faça expressamente a devida distinção entre estes dois setores diferentes do vimos que o trabalho livre é mais comum; mas trata-se de um setor d�
trabalho escravo, refere-se sobretudo e quase exclusivamente a este último. O pouc�s- ocupaç�es, em que a mã�-de-ob1;a é. escassa. Além disto, pelas
s1;1btítulo da sua obra! "for":°ção da família brasileira", e o objetivo prin­ c?nd1çoes Recu]iares em que se realiza, esta mais ou menos reservada e�clu­
c:pal que tem em mira o mdicaram claramente. s1v<.1mente a po,Pulação nativa local.
278 Caio Prad-0 Júnior Formação do Brasil Contemporànen 279
daí_ abrangerem em si tudo que é comércio" (16). Situação muito ao Vaticano (21). Aliás os mestiços são numerosos no clero bra­
sén� e prenhe das mais graves conseqüências, sobre que voltarei sileiro. A Igreja sempre honrou no Brasil sua tradição democrática,
abaixo. a maior força com que contou para a conquista espiritual do
Ocidente. O que ocorreu na Europa medieval se repetiria na
. _ Sob�am �inda, para os indivíduos livres da colônia, as pro­ colonização do Brasil: a batina se tornaria o refúgio da inteli­
hssoes liberais - advogados, cirurgiões, etc. São naturalmente
ocupações por natureza de acesso restrito. Exigem aptidão especial, gência e cultura; e isto porque é sobretudo em tal base que se
preparos e estudos que não se podem fazer na colônia, e portanto faria a seleção para o clero. Ele foi assim, durante a nossa fase
re�ursos de certa monta. São por isso muito poucos os profissio­ colonial, a carreira intelectual por excelência, e a única de pers­
nais: em 1792 não havia no Rio de Janeiro senão 32 advogados e pectivas amplas e gerais; e quando, realizada a Independência,
24 solicitadores (17). Os médicos então eram exceção. Em toda se teve de recorrer aos nacionais para preencher os car�os polí­
a capitania de São Paulo, observava Martius em 1818, não havia ticos do país, é sobretudo nele que se recrutarão os candidatos(22).
estabelecido nenhum médico ou cirurgião verdadeiro (18). O A Igreja tem assim na colônia um papel importante como vazão
mesmo se dirá dos engenheiros, de que a · colônia não contava para colocações. Reconhecia-o, e não só o proclamava, mas ainda
senão com raros militares (19 ). o justificava nos últimos anos do séc. XVIII, uma autoridade
Restará a Igreja. Esta sim oferece oportunidades mais amplas. eclesiástica autorizada como o superior da Província dos Capuchos
Os estudos se podiam fazer em grande parte no Brasil; e mesmo do Rio de Janeiro, Frei Antônio da Vitória: "Hoje não há verda­
completar, sobretudo com relação aos seculares. Os seminários deiras vocações para o estado religioso; quase todos o procuram
foram ?r�nolog��amente os primeiros institutos de ensino superior por modo de vida, e principalmente no Brasil, onde faltam em­
_ pregos em que os pais arrumem seus filhos. Debaixo deste prin­
da coloma. Aba� _?S candidatos ao estado eclesiástico que de­
monstrassem aptidoes encontravam sempre amparo, e não faltava cípio parece que se faz uma injustiça aos brasileiros, privando-os
quem lhes :usteasse os estudos,. aqui �u na Europa. É certo que deste benefício, quando seus pais são os que sustentam e vestem
o preconceito de cor também tmha ai o seu lugar, e quem não todos os religiosos daquele continente, e reparam os seus con­
foss_e de pura or!gem branca, necessitava dispensa especial(20). ventos" (23).
Mais uma questao de forma: o estudante com reais qualidades Em suma, o que se verifica é que os meios de vida, para os
acabava sempre vencendo. Não foi este o caso de Luís Antônio destituídos de recursos materiais, são na colônia escassos. Abre-se
da S_ilva e Sousa, depois poeta e historiador de algum nome, assim um vácuo imenso entre os extremos da escala social: os
_ , senhores e os escravos; a pequena minoria dos primeiros e a
mestiço de ongem humihssima, e que apesar de ver fechadas
no Brasil as portas da Igreja, acabou obtendo dispensa necessária multidão dos últimos. Aqueles dois grupos são os dos bem clas­
em Roma, e com o auxílio do próprio ministro português junto sificados da hierarquia e na estrutura social da colônia: os pri­
meiros serão os dirigentes da colonização nos seus vários setores;
os outros, a massa trabalhadora. Entre estas duas categorias niti­
damente definidas e entrosadas na obra da colonização compri­
(16) Relatório, 452. me-se o número, que vai avultando com o tempo, dos desclassifi­
( 17) Em 1794 os números eran: respectivamente de 33 e 22. Vejam­ cados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais
se os Almanaques daqueles anos publicados nos Anais da Biblioteca Nacio­
nal, 59. ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma. Aquele
( 18) Trav�ls, � ook, I, 53. No Rio de Janeiro, os médicos eram em contingente vultoso em que Couty mais tarde veria o "povo
-
1794, 9, e os c1rurg1oes, 29. Almanaque cit. brasileiro", e que pela sua inutilidade daria como inexistente,
( 19) É para atender a esta. penúria de profissionais que o governo resumindo a situação social do país com ªS\uela sentença que
rnetr�pohtano resolveu em 1799 ordenar que as Câmaras concedessem
pe�soes. para aquel�s que, tendo demonstrado habilidade, fossem cursar a ficaria famosa: "Le Brésil n'a pas de peuple (24).
Universidade de C01mbra ou a Academia de Lisboa. Cada Câmara deveria
pagar os estudos de pelo menos 2 topógrafos, 2 engenheiros hidráulicos (21) J. M. P. de Alencastre, Biografia do Cónego Luís António da
um. co�tador, 1:m médico e um cirurgião. Veja-se circular às Câmaras d� Silva e Sousa, 241.
capitania de Sao �a1:lo, escrita pelo governador. Reg. VII, 381. ( 22) Nos cargos do Parlamento os eclesiásticos só passarão para um
( 20) A pr_?f1ssao no Ordem dos Carmelitas, por exem pio, se fazia plano inferior no segundo império.
�ob protesto de lançar fora o professor logo que se provar que tem casta ( 23 )Correspond�ncia dtJ várias autoridades, 291.
d:; mouro, mulato, judeu, ou outra infec:ta nação." Frei Caneca. Obras, 283. (24) L'esclavage au Br�sil.
2,SO Caio Prado ]iínior Formação do Brasil Contemporâneo 281
O número dl'sle demento indefinido soci:1lrn,'11l:.>, {, ,n·an­ contramos também brancos mais ou menos puros, que expelidos
tajado: e cresce contínua e ininterruptamente porque ,ls causas I JtJe ou fugidos dela aproveitam a vastidão do território para se
provocam seu apareciml:nlo si'to permanentes. No tempo de Couty, abrigarem no deserto.
este o calcula, numa populac/10 total de 12 milhões, em nada Uma segunda parte da população vegetativa da colônia é
menos que a metade, 6 milhôcs. Seria m2nor talvez a proporção a daqueles que, nas cidades, mas sobretudo no campo, se encos­
nos três milhões de princípios do século; mas ainda assim com­ tam a algum senhor poderoso, e em troca de pequenos serviços,
preenderia com certeza a grande, a imensa maioria da população às vezes até unicamente de sua simples presença, própria a
livre da colônia. Compõe-se sobretudo de pretos e mulatos forros aumentar a clientela do chefe e insuflar-lhe a vaidade, adquirem
ou fugidos da escravidão; índios destacados de seu habitat nati\"O, o direito de viver à sua sombra e receber dele proteção e
mas ainda mal ajustados na nova sociedade_. em que os engloba­ auxUio. São então os chamados agregados, os moradores dos en­
ram; mestiços de tollos os matizes e categorias, que, não sendo genhos, cujo dever de vassalos será mais tarde roclamado e
escravos e não .podendo ser senhores, se vêem repelidos de r
justificado, em Pernambuco, num momento difíci e de aguda
qualquer situação estável, ou pelo preconceito ou pela falta de crise política ( 28).
posições disponíveis; at� brancos, br.ancos puros, e entre eles, como Finalmente a última parte, a mais degradada, incômoda e
já referi anteriormente, até rebentos de troncos portugueses ilus­ nociva é a dos desocupados pem1anentes, vagando de léu em léu
tres, como estes Meneses, Barreto, Castro, Lacerda e outros que à cata do que se manter e que, apresentando-se a ocasião, enve­
Vilhena assinala em Cairu, arrastando-se na indigência( 25); os redam francamente pelo crime. :e: a casta numerosa dos "vadios",
nossos poor whites, detrito humano segregado pela colonização que nas cidades e no campo é tão numerosa, e de tal forma
escravocrata e rígida que os vitimou. caracterizada por sua ociosidade e turbulência, que se torna uma
Uma parte destà subcategoria colonial é composta daqueles das preocupações constantes das autoridades e o leitmotiv de seus
que vegetam miseravelmente nalgum canto mais ou menos remoto relatórios; e não se ocupam menos dela outros observadores con­
e apartado da civilização, mantendo-se ao deus-dará, embrutecidos temporâneos da vida colonial. O Vice-Rei Luís de Vasconcelos
e moralmente degradados. Assim uma grande parte da população se queixa deles amargamente, e urge providências ao deixar o
amazônica, estes tapuias que deixaram de ser silvícolas, e não governo em 1789( 29). Vilhena lhes consagra longas páginas de
chegaram a ser colonos ( 26); os caboclos, índios puros ou quase suas cartas(30); o Brigadeiro Cunha Matos considera-os um dos
puros de outras partes da colônia, em situação mais ou menos maiores flagelos da capitania de Goiás(31), e o presidente da
idêntica, isolados do mundo civilizado que os cerca e rejeita, e Mesa de Inspeção do Rio de Janeiro, o Des. Rocha Carneiro,
reconcentrados numa miserável economia naturalista que não vai dissertando sobre a agricultura da colônia, indica os vadios como
além da satisfação de suas mais imperiosas necessidades vitais. um dos obstáculos ao seu desenvolvimento(32). Os vadios não
A eles se equiparam negros e pardos que, excluídos da sociedade escapam também à observàção dos viajantes estrangeiros: Saint­
ativa, procuram imitar a vida daqueles filhos do continente.. _-Hilaire e Martius referem-se a eles amiúde, e sentiram muito bem
Quando fugidos da escravidão, são os quilombolas, que às vezes
se agrupam e constituem concentrações perigosas para a ordem
social, e são a preocupação constante das autoridades: os temíveis vulto, estão longe de ser o único. Estas aglomerações negras de escravos
"quilombos" ( 27). Numa tal situação arredada da civilização_ en- fugidos se formaram e dissolveram repetida e continuamente em todo correr
da nossa história, e em todos os pontos do território; e muitas vezes mos­
traram d() que estariam capazes se lhes tivesse sido dada oportunidade de se
( 25) Recopilação, 519. estabilizarem.
( 26) José Veríssimo os descreve, embora mais tarde, mas em con­ ( 28) Durante a agitação praieira, que teve seu desenlace na revolta
dições que teriam sido as mesmas, três quartos de século antes, no seu de 1848, e quando se publicou em opúsculo. A eleição para senadores,
magnífico trabalho: As populações indígenas da Amazónia. citado por Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, I, 88, em que o
( 27) l!: de se notar que s6 por uma questão de analogia da situação assunto é tratado.
dos quilombos relativamente à ordem oficial da colonização é que pode­ ( 29) Ofício, 34.
mos1 em muitos casos, inclui-los nesta categoria inútil e vegetativa da ( 30) Recopilação, 939.
população colonial. Os quilombos foram freqüentemente mais que -isto, e ( 31) Corografia histórica, 290.
constituem organizações notáveis, cheias de vigor e capacidade construü.va­ ( 32) Carta de 28 de abril de 1797, in Correspondência de várias
Os Palmares, quê' são o principal e mais notório exemplo de quilombu d� autoridades, 279,
282 Caio Prado Júnior Formaçcio do Brasil Contemvorâ11eo 28:l
que não se trata de casos esporádicos, mas de uma verdadeira pré-anárcpiico permanPntP. No torvC'linho �las paiXÕC:'S e �<'�Vi�­
endemia social( 33). dicaçiies ('11t:io cksencadc,iclas, pdt'. _rn,11p111w1� t� do t•cr111h�r�1í
social e político c3uc provoca a lra11�1�·.m ck coloma para Impt·no
f: entre estes desclassificados que se recrutam os bandos livre, aquela massa deslocada, inddinida. m:'il enquadrada na
turbulentos que infestam os sertões, e ao abrigo de uma autoridade ordem social, e na realidade produto e vítima dela, se lançará
pública distante ou fraca hostilizam e depredam as populações na luta com toda a violência de instintos longamente refreados, e
sedentárias e pactas; ou pondo-se a serviço de poderosos e man­ com muitas tintas da barb(uic ainda tiio próxima que lhe corria
dões locais, servem os seus caprichos e ambições na lutas de nas veias em grandes correntes. Não resta a menor dúvida que
campanário que eles entre si sustentam; como estes Feitosas do as agitações, anteriore� e posteriores à Ind
Ceará, que durante anos levam o interior da capitania a ferro _ _ependê,n�ia, as do tor­
mentoso penado ela mmondade e elo pnmciro �ceemo do Segundo
e fogo, e só foram dominados e presos graças a um estratagema Império, todas elas ainda tão mal cstuelaelas, sao �ruto em grande
do Gov. Oeynhausen( 34). Mas apesar de. casos extremos como parte d�queb situação que acab�rnos d� _ analisar. É naquel�
este, o arrolamento dos indivíduos sem eira nem beira nas milícias elemento desenraizado da populaçao brasileira que se recrutara
particulares dos grandes proprietários e .?�efes locais ainda co?s­ a maior parte da força armada para a luta das facções políticas
litui um penhor de segurança e tranqmhdade, porque canaliza que se formam; e ela servirá de aríete das reivindicações populares
sua natural turbulência e lhes dá um mínimo de organização e contra a estrutura maciça do Império, que apesar da força do
disciplina. Entregues a si mesmos, eles mant_eriam _ o sert�o des­ empuxo, resistirá ao� seus golpe5; Tem assim u,m grande interesse
policiado em constante p_olvorosa, e normahzana1? o cnme .. E histórico acentuar a1 a nossa anahse, porque e no momento que
.
não se veria nestas vashdoes desamparadas pela lei o que Samt­ precede imediatamente aqueles acontecimentos, que encontramos
-Hilaire com surpresa constatava: uma relativa segurança de que uma situação, embora madura, ainda não perturbada pela luta.
seu caso pessoal era exemplo flagrante. Nenhuma vez, nos longos Tanto mais fácil por isso é a tarefa do observador.
anos em que perambulou pelo interior do Brasil, foi jamais
incomodado. Vimos as condições gerais em que se constitui aquela massa
popular - a expressão não é exagerada -, <;_i_ue vive mais ou
Nas cidades, os vadios são mais perigosos e nocivos, pois menos à margem da ordem social: a carência de ocupações nor­
não encontram, como no campo, a larga hospitalidade que lá se mais e estáveis capazes de absorver, fixar e dar uma base segura
pratica, nem chefes sertanejos prontos a engajarem sua belicosi­ de vida à grande maioria da população livre da colônia. Esta
dade. No Rio de Janeiro era perigoso transitar só e desarmado em situação tem causas profundas, de que vimos a principal mais
lugares ermos, até em pleno aia. O primeiro intendente de polícia saliente e imediata: a escravidão, que desloca os indivíduos livres
da cidade tomará medidas enérgicas contra tais elementos. tvias o da maior parte das atividades e os força para situações em que a
mal se perpetuará, e só na Repúbli<'a, ninguém o ignora, serão ociosidade e o crime se tomam imposições fatais. Mas alia-se,
os famosos "capoeiras", sucessores dos vadios da colônia, elimi­ para o mesmo efeito, outro fator que se associa aliás intimamente
nados da capilal. a ela: o sistema econômico da produção colonial. No ambiente
Como se vê, além da sua massa, a subcategoria da população asfixiante da grande lavoura, vimo-lo noutro capítulo, não sobra
colonial de que nos ocupamos fazia muito bem sentir sua pre­ lugar para outras atividades de vulto. O que não é produção
sença. Ainda o fará mais nas agitações que preccde?11 a In<lepen­ em larga escala de alguns gêneros de grande expressão comercial
dôncia e vão até meados do século, mantendo o pais num estado e destinados à exportação, é fatalmente relegado a um segundo
plano mesquinho e miserável. Não oferece, e não pode oferc�er
(33) Entre outras passagens, veja-se Voyage aux sources ... , I; 127, campo para atividades remuneradoras e de nível elevado. E assm1,
para o primeiro; Viagem, II, 254, para o ?�tro. todo aquele que se conserva fora daquele estreito círculo traçado
(34) O governador apresentou-se ofic1almente em suas propnedades, pela grande lavoura, e são quase todos além do senhor e �cu
e fazendo convocar, sob pretexto de revista, as ordenanças de que o prin­ escravo, não encontra pela frente perspectiva alguma.
cipal dos Feitosas era comandante, dispensou-as depois de um longo _dia
. Um último fator, finalmente, traz a sua contribuição, e con­
ele exercício fatigantes. Aproveitando-se <lcpms de um momento el e ma­
tenção do Feitosa, para cm sua casa e quando ele me�os '? esperava, dar-lhe tribuição apreciável de resíduos sociais inaproveitáveis. t :a
,·oz de prisão c partir apressadamento com o seu pns10nc1ro. Koster ( Vo11a­ instabilidade que caracteriza a economia e a produção brasileira
;.:,·s, 1, :E2) rel.lla o fato, ocorrido pouco antes de sua estada n,;c111ela
capitania.
e não lhes permite nunca assentarem-se sólida e permanentementr.
284 Caio Prado Júnior Formafão ,lo Brasil Contempor4neo 285
em bases seguras. Em capítulo anterior já assinalei esta evolução ç?io colonial. Vejamos aqui antes os seus caracteres sociais e
por arrancos, por ciclos em que se alternam, no tempo e no econômicos que servem de base ao mais.
espaço, prosperidade e ruína, e que resume a história econômica Poderíamos retraçar a origem remota desta unidade singular
do Brasil-colônia. As repercussões sociais de uma tal história de nossa estrutura social a suas raízes portuguesas, e ir buscá-la
foram nefastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedaço tanto na organização e nas sólidas relações de famílht do Reino,
da estrutura colonial, desagrega-se a parte da sociedade atingida como no paternalismo da constituição da monarq_uia. Mas não _é
pela crise. Um número mais ou menos avultado de indivíduos preciso ir tão longe,· porque sobrelevam, e _d� mmto, causas mais
inutiliza-se, perde suas raízes e base vital de subsisténcia. Passará .
próximas: as circunstâncias do 1;11ei� �r�sileiro. Se o patnarc:i­
então a vegetar à margem da ordem social. Em nenhuma época lismo se encontra em germe nas mshtmçoes portuguesas, questao
e lugar isto se torna mais catastrófico e atinge mais profunda e
que prefiro deixar aberta, o que realmente determinou sua e�­
extensamente a colônia, que no momento preciso em que aborda­ .
plêndida floração no Brasil é o meio local em q1;1e se co11shtm.
mos a nossa história, e nos distritos da mineração. Vamos encontrar O clã patriarcal, na forma em que se apresenta, e algo de espe­
aí um número considerável destes indivíduos desamparados, evi­ cífico da nossa organização(36). É do regime econômico que ele
dentemente deslocados, para quem não existe o dia de amanhã, brota, deste grande domínio que absorve a maior parcela da
sem ocupação normal fixa e decendente remuneradora; ou deso­ produção e da riqueza colo1:1iais. Em tomo ��queles que a pos­
cupados inteiramente, alternando o recurso à caridade com o .
suem e senhoreiam, o propnetáno e sua famiha, vem agrupar-se
crime. O vadio na sua expressão mais pura. Os distritos auríferos a população: uma parte por destino nat1;1r�l e inelutá�rel, os
de Minas Gerais, Goiás, �fato Grosso oferecem tal espetáculo em escravos; a outra, pela atração que exerce o umco centro existente,
proporções alarmantes que assustarão todos os contemporâneos. real e efetivo, de poder e riqueza. O domínio é vasto, o que
Uma_ boa parte da �opulação destas capitanias estava nestas nele se passa dificilmente ultrapassa�á , s�us limites Fi;a :por
. .
condições, e o futuro nao pressagiava nada de menos sombno(35). ,-
isso inteiramente na alçada do propnetano; esta ate vai alem,
São estas em suma as causas fundamentais daquelas formas e se estende sobre a população vizinha que gira na órbita do
inorgânicas da sociedade colonial brasileira que passei em revista. domínio próximo. A autoridade pública é fraca, distante; não só
Vejamos, a par delas, os seus aspectos organizados. E em tal não pode contrabalançar o poder de fato que encontra já estabe­
terreno, um logo ocorre que, com a escravidão que lhe constitui lecido pela_ frente, mas precisa contar com ele se quer agir na
a base essencial, domina o cenário da vida na colônia: é o "clã maior parte do território de sua jurisdição, onde só com suas
patriarcal" - emprego uma expressão já consagrada -, unidade forças chega já muito apagada, se não nula. Quem realmente
em que se agrupa a população de boa parte do país, e que, na possui aí autoridade e prestí�io é o senhor rural, o grande
base do grande domínio rural, reúne o conjunto de indivíduos proprietário. A administração e obrigada a reconhecê-lo, e, de
que participam das atividades dele ou se lhe agregam; desde o fato, como veremos, o reconhece.
proprietário que do alto domina e dirige soberanamente esta A própria Igreja e seu clero, que constituem a segunda esfera
pequena parcela de humanidade, até o último escravo e agregado administrativa da colônia, também estão, em parte pelo menos,
que entra para sua clientela. Unidade econômica, social, adminis­ na dependência do grande domínio. Capela de engenho ou fazen­
trativa, e até de certa forma religiosa. Quando me ocupar·da orga­ da e seu capelão; igreja da freguesia próxima e seu pároco, que
nização administrativa da colônia, veremos como este poder ver­ encontram no grande domínio a maior parte de sua clientela:
dadeiramente soberano dos grandes proprietários, com aquelas não são elas e eles acessórios e servidores do grande domínio
unidades sobre que se estende, se ajusta à estrutura da administra-

(35) Há outro fator que teria também contribuído para o empo­


brecimento da população colonial, embora em proporções relativamente ( 36) Como aliás também de outras colônias ibero-americanas, e mes­
pequenas. São os dnculos, os de mão-morta e sobretudo os morgados. mo também dos Estados sulinos da União norte-americana. Entre nós, estu­
Estes últimos fazem objeto de considerações interessantes de Vilhena, na dou-o Oliveira Viana, que o batizou, nos seus aspectos econômic?s . e polí­
últill1a de suas cartas incluídas na Recopilação. Os morgados existiram no ticos ( Populações meridionais do Brasil, Evolução do Povo Brasileiro, Pe­
Brasil cm reaular número; o mais notável foi talvez o dos Viscondes de quenos estudos de psicologia social); Gi)berto Freyre,. que descnv�l�cu
Asscca, nos Campos dos Goitacascs. Extinguiram-se os morgados pela lei consideravelmente o assunto, acentuou mais o lado social e antropolog1co
n.º 56 de 5 de outubro de 1835.; ( Casa Grande e Senzala, Sobrados e· Mucambos).
286 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contemporâ11eo 287
que congrega quase todos seus fiéis?(37). Nada resta portanto, maior; rnas o contacto permanente, diuturno, ele anos a fio, �
como força autônoma e desembaraçada de peias, que este último. não ck cxistênci;is sucessivas, acabará ;iproximando-os e aplai­
À sua sombra, larga e acolhedora, dispensadora única dos meios nando as arestas mais vivas.
de subsistência e de proteção, virão todos se abrigar. Constitui-se assim no grande domínio um conjunto de rela­
ções diferentes das de simples propriedade escravista e· exploração
Constituído assim numa sólida base econômica, e centrali­
zando a vida social da colônia, o grande domínio adquirirá aos econômica. Relações mais amenas, mais humanas, que envolvem
toda sorte de sentimentos afetivos. E se de um lado estas novas
poucos os clcmais caracteres que o definirão. De simples unidade
relações abrandam e atenuam o poder absoluto e o r-igor da
produtiva, torna-se desde lo�o célula orgânica da sociedade colo­
autoridade do proprietário, doutro elas a reforçam, pül'que a.
nial; mais um passo, e sera o berço do nosso "clã", da grande
tomam mais consentida e aceita por todos. Ele já será ouvido
família patriarcal brasileira. Processo que não vem de chofre, como um protetor, quase um pai. Há mesmo um rito católico que
que se desenvolverá aos poucos, mercê das condições peculiares se· aproveitará para sancionar a situação e as novas relações:
em que o numeroso grupo humano que habita o domínio passa o testemunho nas cerimônias religiosas do batismo e do casa·
a existência nesta comunhão forçada e estritamente circunscrita mento, que criarão títulos oficiais para elas: padrinho, afíUw.do,
a seus limites. Uma análise comparativa nos mostra estágios dife­ compadres. . . , .
rentes da evolução, coexistindo no momento que nos ocupa e Colocado assim no centro da vida social da coloma, o grande
refletindo a maior ou menor antiguidade das regiões observadas. proprietário se aristocratiza. Reúne para ist? os el_emen�os que
Nos velhos e tradicionais centros do Norte, Bahia e Pernambuco, constituem a base e origem de todas as anstocracias: nquezas,
já com um largo passado de sedimentação, a floração patriarcal poder, autoridade. A que se unirá a tradição, . qu� a família
é esplêndida e produz todos os seus frutos; menos no Rio patriarcal, com a autoridade absoluta do chefe, dmgmdo e esco­
de Janeiro; e ainda muito pouco nestas regiões novas da lhendo os casamentos, assegura. Esta aristocratização não é apenas
segunda metade do séc. XVIII, o Maranhão e os Campos dos de nome, fruto da vaidade e da presunção dos intitulados. Cons­
Goitacases. É o contacto prolongado, que se repete ao longo de titui um fato real e efetivo; os grandes proprietários rurais for­
gerações sucessivas, que vai modelando as relações internas do marão uma classe à parte e privilegiada. Cercam-nos o respeito
domínio e vestindo-as de roupagens que disfarçam a crueza pri­ e prestígio, o reconhecimento universal da posição que ocupa�.
mitiva do domínio escravocrata. O senhor deixará de ser o simples Um contemporâneo, que não é um bajulador qualquer, mas espi­
proprietário que explora comercialmente suas terras e seu pessoal; rito esclarecido e crítico notável da vida baiana de fins do séc.
o escravo também não será mais apenas a mão-de-obra explorada. XVIII, dirá deles: "Formão em aquella Comarca hum Corpo
Se trabalha para aquele, e até forçado pelo açoite do feitor ou respeitável de per si, e tão nobre por natureza, que em nenhuma
o tronco da senzala, também conta com ele, e dele depende outra corporação, e em r:enhum outro Paiz se encontra outra
para os demais atos e necessidade de sua existência; toda ela igual a ella: em si compreh�mde as melhores fami�ias des�e, e
se desenrola, do nascimento à morte, freqüentemente por gerações de todo mais Continente; sao as pessoas que mais honrao a
sucessivas, na órbita do senhor e do seu domínio, pequeno mundo Patria, que a fazem mais rica, mais brilhante, mais poderosa
fechado em função do qual se sofre e se goza. Multiplicam-se pelo solido dos seus estabelecimentos e mais naturaes posses­
assim os laços que apesar das distâncias vão atando uma a outro. sões" ( 38). Quase um século antes, Antonil dissera coisa semelhante.
O mesmo se dá com os trabalhadores livres ou agregados; liber­ Assim constituída, a aristocracia colonial tomará os caracteres
dade relativa que não vai além da de trocar um senhor por de todas as aristocracias: o orgulho, a tradição, pelo menos de
outro igual; e isto mesmo nem sempre. Um pouco mais afastados família e do sangue que lhe corre nas veias( 39) . Mas isto não
e autônomos, os rendeiros e lavradores mais modestos, os obri­
gados: nas relações com estes haverá mais crises, uma fricção
( 38) Discurso preliminar, 290. O país e o continente a que se refere
o autor, não são o Brasil ou a América, como interpretaríamos com nossa
( 37) "No Brasil, a catedral, ou igreja mais poderosa que o próprio terminologia geográfica atual; mas regiões e possessões portuguesas na
rei, seria substituída pela casa-grande do engenho...; a igreja que age na América como era então corrente dizer-se.
formação brasileira, articulando-a, não é a catedral com o seu bispo... ( 39) A tradição do sangue não é contudo muito antiga. Borges da
nem a igreja isolada e só, ou de mosteiro ou abadia. .. É a capela de Fonseca, meio século apenas antes do momento que nos ocupa, encontrou
engenho ... ' Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, 20. cm Pernambuco, que é o mais antigo centro de tradição aristocrática do
288 Caio Prado Jú11ior Formação do Brasil Contemuoráneo 289
a hlrá arrogante: o tom geral da vida hrasilPira, a sua mokza e é tido por isso em melhor conceito, e não humilha ou desabona(42)
maciez nos contactos humanos não cbriam margem para isto. Nos campos do Extremo-Sul o teor de vida também comporta
Terá contudo o fraco de todas as castas privilegiadas de curto este tom mais democrático; há uma igualdade maior, menos
p:=tssado: o de querer entroncar-se em outras mais antigas. Vilhena absentismo, maior comunhão entre estancieiros e peões. Notemos
satirizará por isso os aristocratas da colônia, e se referirá aos contudo que, como no Nordeste, os escravos são aí raros; e tudo
escudos de armas "que por vinte e tantos mil réis mandão vir isto sem contar o caráter e gêneros de vida dos habitantes, tão
da Corte ... "( 40). especiais e peculiares.
Tudo isto é particularmente o caso da grande lavoura nos Mas com todas estas diferenças e atenuações, as distinções
principais centros da colônia: a do açúcar ou do tabaco na Bahia, sociais e predomínio absoluto e patriarcal do proprietário e senhor
Pernambuco, Rio de Janeiro, ou a do algodão no Maranhão. são elementos que se associam de uma forma geral a todos os
Nas minas repete-se, mutatis mutandis, o caso. E fato semelhante grandes domínios da colônia. E, mais ou menos caracterizadamente,
se passa também nos domínios pastoris, embora aí se altere algo o grupo social que neles se constitui exerce as mesmas funções
a fisionomia da vida social, subordinando-se às condições peculia­ e ocupa o mesmo lugar na vida econômica, social e administrativa
res em que se realiza esta atividade. Em particular nos sertões da colônia, descritos acima no seu estado mais puro e completo.
do Nordeste. O pessoal reduzido, a pequena proporção de escra­ O mesmo já não se dá, está visto, neste outro setor da
vos, as relações de trabalho em que se destaca a grande autono­ economia colonial que é o das lavouras e propriedades de pe­
mia e independência do vaqueiro, bem como a maior e geral queno vulto. Para uma parte delas, não há novidade: os modestos
liberdade de movimentos do pessoal empregado, a dispersão das lavradores ou plantadores de cana; as pequenas culturas de
fazendas e currais que constituem o domínio, limitam a autoridade tabaco ou de algodão, que como vimos são numerosas; as próprias
absoluta do proprietário e cerceiam o seu poder, comparado ao culturas alimentares, que se distribuem em tomo dos grandes
que exerce sobre seu humilde pessoal o senhor de engenho do centros de permeio com a grande lavoura; tudo isto vive como
litoral. Acresce ainda o absentismo dele, mais acentuado e pro­ que nos poros desta última e gira na sua órbita. Não tem por
longado que na agricultura, o que alheia mais as classes e dificulta si, cada qual daquelas pequenas unidades, vulto suficiente para
aquela comunhão que encontramos noutros setores ( 41). Contudo, ado_tar os caracteres do grande domínio; mas não o tem também
os mesmos caracteres patriarcais e aristocráticos, embora com as­ para ser completamente autônoma, e sofre da vizinhança avas­
pectos próprios, estão aí presentes. Na pecuária do sul de Minas, no saladora do grande proprietário; participa assim do regime que
entanto, o quadro se modifica mais. Já citei em outro lugar a ele estabelece quase pelo mesmo título que os simples rendeiros
obsen,ação de Saint-Hilaire, que encontrou aí uma certa democra­ e agregados.
tização dos hábitos e dos costumes nas classes superiores, e isto A situação não será a mesma naquelas reg10es em que não
apesar da presenç-a numerosa de escravos: o proprietário e sua se constituiu ou não se manteve por um ou outro motivo a pro­
família são mais rudes e menos altaneios; assemelham-se antes priedade e domínio típicos da grande lavoura. É o caso que
ao camponês europeu abastado que ao nobre, como se dá nos dis­ já vimos do litoral sul da Bahia, do Espírito Santo e de outros
tritos mineradores. O fazendeiro e seus filhos participam ativamen­ setores da colônia. Incluem-se também aí, embora em circunstân­
te do manejo da propriedade, tratam do gado e ocupam-se com as cias especiais, os distritos de colonização açoriana de· Santa
culturas; conduzem até, eles próprios, as boiadas ou tropas de Catarina. Os do Rio Grande do Sul não precisam ser lembrados
bestas que se destinam aos mercados consumidores. O trabalho porque se encontram já em franca evolução e deslocamento para
a pecuária e outras atividades desta derivadas: a indústria do
charque.
Brasil, grancle.s dificuldades para escrever a sua Nobilía-rquia porque, como
Em tais regiões, ou boa parte delas, a maioria da população
ele próprio declara, encontrou "�ujeitos dos mais nohres da terra que nem cabe antes naquela subcategoria vegetativa e inorgânica da socie­
sabiam dar noticia da naturalidade de seus avós." Nobiliarquia Pernam­ dade colonial 9ue acima analisei. A agricultura que pratica é
bucanas Noticia preliminar. rudimentar, mais próxima do tipo caboclo. Se contribuiu para o
( 40) Recopilação, 44. comércio com algum_ excesso, é em proporções relativamente
( 41) O retrato 9-ue José de Alencar foz cm O Sertane;o do grande
domínio pastoril do Nordeste, embora lar;!:«mcnte fant:1sbta, é em linhas
gerais mna reconstituição que nos propúrciona alguns índices aceitáveis. (42) Voyage aux sources .. . , I, 77.
290 Caio P,ado ]ÚNior Formação do Brasil Contemporâneo 291
pequenas; às wzcs até esporadicamente apenas. As relações sociais entabular negociações, avistar-se com amigos, assistir às festas.
que se estabelecem nestas regiões de baixo nível econômico se Viver a "vida social", enfim, depois dos longos dias de segrega­
distinguem por isso profundamente das da grande lavoura, fruto mento na roça. De população fixa, os pequenos centros urbanos
que são estas últimas de uma atividade realizada em condições não contam senão com raros comerciantes - e mesmo estes são
muito diversas. Nada há que lembre aí o grande senhor patriarcal, freqüentemente fazendeiros da vizinhança que acrescentam assim
aristocrata e poderoso, dominando seu vasto círculo de escrarns o negócio às suas atividades rurais; excepcionalmente algum artí­
e clientes. ·Uma uniformidade e igualdade maiores, e portanto fice: quem precisará deles, quando as fazendas têm tudo e satis­
mais independência e menos hierarquia. Mas caracteres estes fazem suas necessidades com o próprio pessoal? Mais numerosos
negativos e resultantes; antes reflexos da inorganização que de os vadios e as prostitutas. Tão disseminadas ambas as categorias,
instituições sociais distintas e próprias. até nos menores povoados e arraiais, que os chefes de tropas,
Devemos fazer aqui um lugar à parte à colonização açoriana boiada� e comboios procuravam o quai.ito _possível passar ao largo
de Santa Catarina. Encontra-se aqui qualquer coisa de inteira­ deles, mdo pousar no mato de preferencia, ao risco do debocne
mente diverso e singular na fisionomia do Brasil. Não preciso e dissipação entre seus empregados. Nem mesmo o padre é sempre
�ep�tir o que já lembrei, aci�a: a pequena propri�dade_ domina um morador fixo do povoado. Comumente acrescenta às suas
mteuamente, o escravo e muito raro, a populaçao e etnicamente funções sacerdotais outras mais terrenas de fazendeiro ou mine­
homogênea. Nenhum predomínio de grupos ou castas, nenhuma rador, coisa que espantava e horrorizava o piedoso Saint-Hilaire,
hierarquia marcada de classes. Trata-se em suma de uma comu­ que via o abandono espiritual em que deixava o seu rebanho
nidade cujo paralelo encontraremos apenas nas colônias tempe­ de fiéis.
radas da América, e foge inteiramente às normas da colonização Na medida da importância da aglomeração, a população fixa
tropical, formando uma ilha neste Brasil de grandes domínios cresce. As funções se tornam mais diferenciadas e exclusivas:
escravocratas ou seus derivados( 43). o comerciante é só comerciante, e não apenas nas horas disponíveis
Tudo isto que acabamos de ver é em particular a situação da lavoura; as artes e ofícios já começaram a se destacar das
do campo; mas se nele se origina e estabelece, transporta-se tal atividades rurais, e aparecem nos centros urbanos os primeiros
qual para os centros urbanos. A maior parte destes não é senão artífices autônomos. Vão surgindo algumas autoridades fixas e
um apêndice rural, um puro reflexo do campo. Em torno da permanentes, como o juiz que não é o mais simples fazendeiro
igreja paroquial e de um pequeno comércio, a venda e a loja, a exercer o cargo nas horas vagas: nos ;ulgados mais importantes,
eles se constituem( 44). A quase totalidade de seus moradores haverá um juiz letrado, que não é do lugar, que vem de fora;
será de lavradores que vivem normalmente dispersos na vizinhança, donde sua designação. Haverá mais os servcntuários que se podem
às vezes até mesmo muito afastados, e que os procuram só aos manter só com os proventos do cargo: escrivães, meirinhos, etc.,
domingos e dias de festa. Quem os visita nestes ou nos demais e não precisam completar o orçamento com outras ocupações.
dias os encontrará alternadamente animados, ativos, ruidosos, ou Mesmo contudo nos grandes, nos maiores centros da colônia,
então vazios de gente, em silêncio, mortos. É que a população, a população de origem e raízes rurais predomina, se não em
entregue nos dias comuns aos seus afazeres rurais, s6 concorre número, pelo menos em categoria e riqueza. São os fazendei ros,
nos outros, para cumprir seus deveres religiosos, fazer compras, senhores de engenho, grandes lavradores que formam a sua nata
social. Dividirão o tempo, alternando a residência: na estação
( 43) Saint-Hilaire escreve pormenorizadamente as condições de vida da safra e de maiores trabalhos rurais, permaneccriio, quando
nesta região que visitou. (Voyage aux prodnces de Saint-Paul ..., II.) É muito diligentes, o que nem sempre é o caso, nas suas fazendas e
interessante destacar, para fazer-lhe o paralelo com os grandes centros escra­ engenhos. No mais preferirão os prazeres e distrações da cidade.
vocratas da colônia, a observação do naturalista sobre a posição social rela­
tiva da mulher e do homem, com preeminência marcada daquela; enquanto O absentismo é nos grandes propdctários a regra; e este hábito
é o contrário, como sabemos, que se passa no reste do país, e constitui é deplorado por todos aqueles que descjr.riam ver melhor parados
1�1e:.rno um dos traços mais salientes e característicos do patriarcalismo. Há os trabalhos da lavoura, abandonados como ficam aos cuidados
co:n certeza relação direta entre tal fato e as circunstâncias particulares de, _ prepostos �ouco dilig�ntes ou capazes. "Os �randes proprie­
da formação social daquela região.
( 44) Em muitas parte:; do interior do 13rasil, os povoados hoje ainda tanos do Brasil, escrevera o Cons. Veloso de 01ivcira cm 1810
M; dc�ignam localmente por "comércio". Isto muitas vezes até citrnndo se principalmcn!e da parte marítima, vivem quase todos concentra�
tral,, de cidades de maiores vulto, sedes de município e de comarca. <los nas ci<la<les e vilas, ah,111Jo;1am1o a cultura e direc:ão
� inteira
292 Caio Prado Júnior Formação do Bra�il Contemporâneo S,l:l
,nas suas fazendas à mais crassa iguorância e às sem-razões dos da Costa Cardoso, José Caetano Alves e alguns outros, têm cons­
rústicos ilhéus <los Açôres e de pobres emigrados <las províncias tituído a sua riqueza e o seu fundo no maior comércio de comissões
<lo norte de portugal ... " ( 45). E o presidente <la N�esa de Inspeção que têm tido, isto é, de fazendas e navios que lhes têm. sido
do Rio de Janeiro, o Desembargador Rocha Game1ro, descrevendo consignados. . . Estes homens, ainda que têm de fundo, e são
em 1798 ad ministro D. Rodrigo <le Sous_a Coutinho o estado <la honrados e verdadeiros, não posso considerar as suas casas como
agricultura da colônia, aponta o absentismo como um dos prin­ casas de comércio porque é preciso saber que eles ignoram o
cipais males de que ela sofria( 46). o que é esta profissão, que eles nem conhecem os livros que lhes são
São assim os centros urbanos um reflexo das condições domi­ necessários, nem sabem o modo regular da sua escrituração"( 49).
nantes no campo. Os senhores rurais formam, aí também, a classe Apesar disto, o comércio tem na vida social da colônia uma
superior. Mas já não estão sós: ombreiam com eles e gozam posição importante. Não que goze de grande consideração; pelo
mesmo de preeminência social e protocolar, as altas autoridades contrário, o trato de negócios não se via com bons olhos, e trazia
da administração militar, civil, e eclesiástica: vice-reis, c�Ritães­ mesmo um certo desabono aos indivíduos nele metidos. Fruto
-generais, governadores, comandantes e altas patentes militares, de um velho preconceito feudal que nos veio da Europa, e que
desembargadores, bispos. . . Há também os profissionais; advo­ se manterá no Brasil até época muito recente(50). Muitas pessoas
gados sobretudo e solicitadores, que se integram como partes abonadas da colônia escondiam por isso seus interesses e ativi-.
efetivas na ordem judiciária( 47). dades comerciais sob a capa de testas-de-ferro que :iparecem
O comércio forma nestes· grandes centros uma classe bem por elas manejando seus capitais(51). Mas com tudo isto, o co­
diferenciada e definida. Já me referi à sua qualidade predominan­ mércio é uma classe credora, é quem financia a grande lavoura.
temente "reino!", isto é, nativa do Reino. Mas, mesmo sem contar Senhores de engenho, lavradores, fazendeiros são seus devedores;
os pequenos comerciantes de retalho e de gêneros de primeira e tanto mais presos às dívidas que sua posição social, vaidade e
necessidade, que segundo Vilhena são na Bahia "multidões"( 48), educação perdulária os levam a gastos excessivos e supérfluos,
e que naturalmente não tem relevo social algum, o que propria­ que nos momentos de crise, os põem em dificuldades e apertos
mente seria o grande comércio, não parece ter sido de envergadura. muito sérios(52). Oficialmente também, o negociante não sofre
Distinguiam-se então dois ramos de atividades comerciais: o nego­ restrição alguma e está em pé de igualdade com as demais classes
ciante propriamente, "dispensado" e "matriculado" regularmente, possuidoras. A antiga legislação portuguesa que lhe impunha
e o simples comissário, com direitos e atividades limitadas. Seria algumas diminuições, como a de não poder ocupar os cargos dos
o que é hoje um consignatário ou agente comercial, agindo sempre Senados das Câmaras ( Câmaras Municipais), caíra em desuso
por conta e em nome alheios. Os primeiros são em reduzido no Brasil, e encontramos mercadores nas Câmaras de todas as
número. É o que nos iiiforma o Marquês do Lavradio, falando
embora da principal praça da colônia, o Rio de Janeiro: "A
maior parte das pessoas a que aqui se dá o nome de comerciantes, ( 49) Relatório, 453. "No Brasil, há comerciantes de cabedal que
nada mais são que uns simples comissários ... ; a única casa que nem ler sabem." COTr Bras. Jan. 1813. X, 89.
ainda se conserva na regra de comerciantes é a de que se acha ( 50) "As colocações comerciais mais altas, escreverá Oliveira Lima,
senhor dela Francisco de Araújo Pereira, com sociedade de seus só para o fim do reinado deixaram de ser consideradas mésalliaces." ( O
primos e de alguns �6ci�s em Europa. Aquele� nego:iantes que Império brasileiro, 247.) As atribulações de um Mauá, incompreendido e
antipatizado, não tiveram outra origem; para os bacharéis e proprietários
aqui passam por mais ncos, como Brás Carneiro Leao, Manuel manejavam o Império, ele é apenas o "comerciante", o homem de negócios.
( 51) Vilhena, Recopilação, 49.
( 45) Memória sobre a agricultura, 93. ( 52) Vejam-se a respeito disto e das relações pouco amistosas de
( 46) Oficio de 28 de abril de 1798, in Correspondência de várias senhores de engenho e lavradores, devedores crônicos sempre pouco fol­
autoridades, 227. gados, e comerciantes, credores exigentes, as interessantíssimas observações
( 47) O advogado colonial não é o simples profissional de nossos dias; relativas à Bahia da segunda metade do séc. XVIII do autor anômimo da
tem a categoria de um alto serventuário da justiça, e é uma parte, um Descrição preliminar . .., 27. O autor é francamente simpático aos agricul­
verdadeiro órgão da justiça pública. Vestígio deste passado encontramos tores, e acusa amargamente o comércio, que "engrossa com o suco, leite
ainda nas fórmulas de praxe que os adv0$ados eontemporâneos empregam e sangue da agricultura ... " ( como se vê, a canti�a é velha); mas reco­
nos seus discursos oficiais, nhece a "indiscrição e bem conhecida irregularidade' dos gastos de senhores
( 48) Recopilação, 50. e lavradores.
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cidades e vifas ela colônia ( 53). Formavam mesmo uma categoria que aqui tivessem feito fortuna, fossem e1;nboi-a de origem metro­
reconhecida e oficialmente prezada, e nesta qualidade partici­ politana.
pavam dos conselhos da administração pública. Assim nas Mesas A luta de proprietários e comerciantes, reforçada assim com
de Inspeção, criadas em 1751 nas principais praças da colônia fundamento na naturalidade dos oponentes, se manifesta na colô­
para superintenderem o comércio do açúcar e do tabaco, entra­ nia, como se sabe, de longa data; e sai mesmo para o terreno
vam os negociantes com dois representantes, ao lado de dois da violência em agitações que se tomaram notáveis, a revolta
dos senhores de engenho e outros dois dos lavra�ores de tabaco. de Beckrnann, no Maranhão, e a guerra dos Mascates em Pernam­
Nestas condições o comércio, apesar da prevenção que contra buco. Com o tempo ela se aprofundará, e se alastra com a
ele havia, ocupa uma posição de relevo. Pode fazer frente à participação de outros grupos. A monopolização das posições
outra classe possuidora da colônia, os proprietários, e disputar-lhes comerciais praticada em benefício dos reinóis, vai atingir outras
a J;>rimazia. É o que efetivamente se deu, e as hostilidades que classes da população nativa da colônia, fechando-lhes as portas
dai resultam são de grande repercussão política. Teremos aqui para possíveis colocações, já de si tão escassas. A luta acabará
no Brasil uma réplica da tradicional rivalidade de nobres e envolvendo todo mundo, levantando contra os "mascates", "pés­
burgueses que enche a história da Europa. E se tornarão entre -de-chumbo" ou "marinheiros", ( é como pejorativamente se desig­
nós tanto mais vivas e acirradas que trazem um cunho nacional, nam os portugueses) a oposição geral dos colonos nativos do Brasil.
pois como vimos, são nativos do Reino aqueles últimos, enquanto Será nas agitações da Independência e no período que a
os outros vêm dos primeiros ocupantes e desbravadores da terra. segue, prolongando-se aliás por muito tempo, que tal situação
Com mais direitos, portanto, entenderão eles. se definirá claramente, degenerando não raro em lutas armadas
A administração e a política metropolitana tinham natural­ de grande intensidade ( 54).
mente que contemporizar com ambas as facções, igualmente
fortes. As suas simpatias íntimas, no entanto, pelo menos a pessoal
dos seus representantes e funcionários na colônia, também reinóis
por via de regra, tinham de ser, está claro, por seus patrícios. E
tudo isto vai num crescendo sensível, na medida em que os
caracteres "nacionais" das classes em luta se vão definindo. A
distinção entre nativos do Reino e da colônia, a princípio amorfa
apenas sentida, é mais uma simples questão secundária, de "fato"
e não de "direito", se tornará com o tempo um assunto palpitante
e essencial. Já começa no momento que ora nos ocupa a se
exprimir em termos próprios: brasileiros, em oposição a portu­
gueses, quando "portugueses" tinham sido até então todos, nas­
cidos aqui ou acolá, e "brasileiros" os residentes na colônia ou

( 53) Afirma Gayozo que em São Luís do Maranhão se recomeçou a


excluir os negociantes do Senado, em 1792. ( Compêndio histórico, 132.)
J. F. Lisboa duvida desta informação ( Obras, II, 52.) Realmente, já então
tinham caído em desuso completo as detemlinações legais a respeito, e que
este último autor citado sumaria (loc. cit. II, 169 ), sendo a última de 1947.
Até na vila fronteira a São Luís, Alcântara, a menos de 3 léguas de dis­
tância, havia oficiais da Câmara mercadores de profissão. Mas J. F. Lisboa
não fundamenta a sua dúvida, e é de crer que Gayozo, contemporâneo do
que refere, falasse verdade. Em todo caso, o que se passaria em São Luís
é no momento que nos ocupa uma exceção única. - Confirmando a afir­ ( 54) Analisei a matéria, no conjunto da história brasileira, embora
maç,ão de Gayozo encontramos a Provisão da Mesa do Dest:mbargo de 17 resumidamente, em meu trabalho, Evolução política do Brasil, São Paulo
de julho de 1813, onde se determina que podiam 0c11par os cargos da 1933. - Mas adiante, no último capítulo, voltarei sobre este aspecto político
Câmara de São Luís todos os domiciliados na cidade, mesmo que n:':o fossem da oposição de comerciantes, proprietários e demais classes da população
naturais dela. entre si.
;!06 Caio Prado Jiínior Formação do Brasil Contemporâneo 297
este ponto. O que interessa é que no momento que nos ocupa,
a administração portuguesa, e com ela a da colôn�a, orien!ava:se
por princípios diversos, em que aquelas noções citadas nao tem
Iunr: O Estado aparece como unidade inteiriça que funciona
nim todo único, e àbrange o indivíduo, conjuntamente, em todos
seus aspectos e manifestações. Há, está claro, uma divisão de
trabalhÔ, pois os mesmos órgãos e pessoas representantes do
Ac.hninistrnçJo Estado não poderiam desenvolver sua atividade, simultaneamente,
em todos os terrenos; e nem convinha aumentar excessivamente
o poder de cada qual. Expressão integral deste poder, e síntese
Para se compreender a administração colonial é preciso antes completa do Estado, só o r�i'. �as delegaç�es que necessaria1!1�n_te
de mais nada desfazer-se de muitas noções que já se tornaram faz do seu poder, nasce a d1visao das funçoes. Mas uma tal d�v1sao
em nossos dias verdadeiros prejuízos, mas que no momento 9ue é mais formal que funcional; corresponde antes a uma necessidade
ora nos ocupa começavam apenas a fazer caminho nas ideias prática que a uma distinção que estivesse na essência das coisas,
contemporâneas e nos sistemas jurídicos em vigor; e em par:ti­ na naturez� específica das funções esta�ai�. A pr�pria divis�o
cular, ignorava-as por completo a administração portuguesa. Assu:p marcada, mtida e absoluta, entre um d1re1to publico, que diz
a de "funções" ou "poderes" do Estado, separados e substancial­ respeito às relações coletivas, e priuado, às individuais,. d�stinção
mente distintos - legislativo, executivo, judiciário; assim também fundamental em que assenta toda estrutura do nosso d1re1to mo­
esferas paralela� e di�erentes das ativi�ades �st�tais: �eral, pro­ derno, deve ser entendida então, 'e entre nós, de uma forma bem
_ ,
vincial, local. Amda, fmalmente, uma d1ferenciaçao, no mdiv1duo, diversa da dos nossos dias.
de dois planos distintos, de origem diferente e regulados diver­ Não é possível aventurar-me aqui no desenvolvimento teórico
samente: o das suas relações externas e jurídicas, que cabem no destas questões, pois seria isto entrar para o terreno de uma
Direito, e o do seu foro íntimo - a crença religiosa com seu filosofia histórica do direito que nos levaria longe, exigindo trata­
complexo de práticas e normas a que ela obriga: o código moral mento à parte e alheio ao nosso assunto. Se fiz a observação
e sacramenta[-, regulado pela Relio"ião. A divisão do Homem, acima, observação apenas e não afirmação de princípios, foi
como dizia Lacerda ae Almeida, em dois seres distintos, o cidadão unicamente para definir a posição que devemos tomar ao abordar
na República e o fiel na Igreja" ( 1). Todas estas noções se con­ a análise histórica, e puramente histórica, como é esta aqui, da
sideram hoje "princípios científicos", o que quer dizer, dados administração colonial; preparar o espírito do leitor, mais dado
absolutos, universais. Rejeitá-los na prática, na regulamentação a noções de que precisamos aqui fazer tábua-rasa; e para adotar
jurídica de uma sociedade, naquilo que se chamou direito positivo, um ponto de partida que facilite a análise q�e segue, e que
constitui perante a "ciência jurídica" moderna, um "erro'\ c.la é unicamente a noção ampla e geral em que efetivamente assenta
mesma natureza e tão grave como seria o do arquiteto que e err que se entrosa a administração colonial: a da monarquia
planejasse uma construção sem atenção às leis da gravidade. Mas portuguesa, organismo imenso que vai do rei e sua �abeça, chefe,
o fato é que não era assim entendido então, naquela monarquia pai, representante de Deus na terra, supremo dispensador de
portuguesa do séc. XVIII de que fazíamos parte. Considere-se todas as graças e regulador nato de toáas as atividades, mais
isto hoje um "erro", fruto da ignorância ou do atraso, como dirá que isto, de todas as "ex�missões" pessoais e individuais de seus
o progressismo; ou, como julgo pessoalmente mais verdadeiro, súditos e vassalos, até o ultimo destes, mas ainda assim com seu
um certo "momento histórico", não é meu objetivo discutir aqui papel e sua função, modestos embora, mas afetivos e reconhecidos
no conjunto do organismo político da monarquia. Despidos assim
( 1) A Igre;a e o Estado, 29. Lacerda de Almeida nat1:1ralrnente :,<>m: de todas as outras noções que são para nós de data recente
bate esta distinção, como crente que é, mas no terreno teónco, que nao e que a do período ora em vista, não correm o risco de anacronismos
aquele em que me coloco aqui; e que aliás não interessa. Cito apenas a
passagem para frisar duas concepções diferentes, ambas tão acertadas W:Oª berrantes, tão freqüentes nesta matéria e que tanto a obscurecem.
como a outra, porque são fatos históricos � �ão da?os abso�utos, e que_ �­ Ainda há uma coisa que devemos manter presente. � que
teressa trazer para aqui porque, com as 1de1as ho1e er_n vigor, a :idmm1s­ a administração colonial nada ou muito pouco apresP.nt.1 daquela
traçiio colc,ni1l, ern muitos de seus aspectos, se torna mcompreens1vel sem
a devida clist;nção entre elas.
uniformidade e simetria que estamos hoje habituados a ver nas
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administrações contemporâneas. Isto é, · funções bem discrimi­ freqüente, gera uma confusão tão inextricável que os próprios
nadas, competências bem definidas, disposição ordenada, segundo contemporâneos mais versados em leis nunca sabiam ao certo
um princípio uniforme de hierarquia e simetria, dos diferentes em que pé se achavam. Como resultado, as leis não só eram uni­
órgãos administrativos. Não existem, ou existem muito poucas formemente aplicadas no tempo e no espaço, como freqüente··ncnte
normas gerais que no direito público da monarquia portuguesa se desprezavam inteiramente, havendo sempre, caso fosse neces­
regulassem de uma forma completa e definitiva, à feição moder­ sário, um ou outro motivo justificado para a desobeditncia. E
na, atribuições e competência, a estrutura da administração e daí, a relação que encontramos entre aquilo que lemos nos textos
de seus vários departamentos. Percorra-se a legislação adminis­ legais e o que efetivamente se pratica é muitas vezes remota
trativa da colônia: encontrar-se-á um amontoado que nos parecerá e vaga, se não redondamente contraditória. Sendo assim, e como
inteiramente desconexo, de determinações particulares e casuíticas, é esta prática que mais nos interessa aqui, e não a teoria, temos
de regras que se acrescentam umas às outras sem obedecerem que recorrer com a maior cautela aqueles textos legais, e procurar
a plano algum de conjunto. Um cipoal em que nosso entendimen­ de preferência outras fontes para fixarmos a vida administrativa
to jnridico moderno, habituado à clareza e nitidez de princípios da colônia, tal como realmente ela se apresentava. Para isto,
gerais, de que decorrem com uma lógica "aristotélica" todas as infelizmente, estamos ainda mal aparelhados. Se é verdade que
regr-as especiais e aplicações concretas com um rigor absoluto, já possuímos regular cópia de documentos oficiais publicados,
se confunde e se perde. Depois das Ordenações, as últimas, as eles o foram apenas em poucas circunscrições do país: Rio de
f�lipinas de 1643, e que formam a base da legislação portuguesa, Janeiro, São Paulo; muito menos em Minas Gerais, na Bahia,
decorreram, até o momento que nos ocupa, século e meio de Pernambuco; quase nada nas outras. E dado o sistema assimétrico
cartas de lei, alvarás, cartas e• provisões régias, ordens, acórdãos, da administração colonial, ficamos, mesmo com o conhecimento
assentos e que mais, formando tudo o conjunto embaralhado e daquelas fontes, numa grande incerteza do resto, e portanto do
copioso da chamada legislação extmvagante. Mas nem mesmo a conjunto.
legislação anterior às Ordenações foi por elas toda revogada; Por todas estas razões, devemos abordar a análise da admi­
em particular naquilo que diz respeito à administração colonial, nistração colonial com o espírito preparado para toda sorte de
o direito das Ordenações é omisso, e continuaram em vigor depois incongruências. E sobretudo, não procurar nela esta ordem e
delas e até a Independência ( e quantas mesmo até mais tarde?), harmonia arquitetônica das instituições que observamos na admi­
disposições inclusive do primeiro século da colonização. E as nistração moderna, e que em vão se tentará projetar num passado
própria Ordenações, embora formem código, estão muito longe caótico por natureza. De um modo geral, pode-se . afirmar que
daquela generalidade, lógica, método e precisão dos nossos códigos a administração portuguesa estendeu ao Brasil sua organização
modernos. :E: todo t:ste caos imenso de leis que constitui o direito e seu sistema, e não criou nada de original para a colônia. As
administrativo dá colônia. Orientar-nos nele é tarefa árdua. órgãos "donatárias" o foram; mas os donatários desapareceram cedo,
e funções que existem num lugar, faltam noutros, ou neles apa­ substituídos pelos governadores e capitães-generais. As funções
recem sob forma e designação diferentes; os delegados do poder destes ainda guardarão um cunho próprio e característico, ine­
recebem muitas vezes instruções especiais, incluídas em simples xistente em Portugal. Mas elas confirn1am, menos que invalidam,
c-orrespondência epistolar, que fazem lei e freqüentemente esta­ a observação da falta de originalidade da metrópole no organizar
belecem normas originais, distribuição de funções e competências administrativamente a colônia, a incapacidade por ela demons­
diferentes da anteriormente em vigor. Quando se cria um novo trada em criar órgãos diferentes e adaptados a condições peculiares
órgão ou função, a lei não cogita nunca de entrosá-los harmoni­ que não se encontravam no Reino. O "gove:11ador" é uma figura
camente no que já se acha estabelecido: regula minuciosa e híbrida, em que se reuniram as funções do "Governador das
casu1sticamente a matéria presente, tendo em vista unicamente armas" das províncias metropolitanas; um pouco das de outros .
dS necessidades imediatas. Mesmo quando um destes órgãos ou órgãos, como do "Governador da Justiça", do próprio rei. Contudo,
funções, ou coisa semelhante, já se encontra noutro lugar, a nova nunca se caracterizou nitidamente, e sua competência e jurisdição
regulamentação não se preocupa com isto, e estabelece novas variaram sempre com o tempo, de um governador para outro,
e especiais detemúnações. E tudo isto com a prática de acres­ de uma para outra capitania; variaram sobretudo em função da
centar o revigoramento, de_ um modo geral, de todas as ordens personalidade, caráter e tendências dos indivíduos revestidos do
anteriores, ou apelar para "o que se pratica no Heino", como é cargo. E como o único modelo mais aproximado que se tinha
300 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contemporâneo 301
dele no Reino era o do citado governador das amuzs, ele s<0mpre tornava quase inútil pela distância em que ficavam de seus admi­
foi, acima de tudo, militar, com prejuízo considerável para o bom ndrados. Veja-s� pói exemplo o que se dá com as Relações do
funcionamento da administração colonial. Hio de Janeiro e ela Bahia, que contava cada qual para mais de
Afora isto, as inovações são insignificantes e não alteram o 30 pessoas, entre desembargadores e funcionários, todos larga­
sistema e caráter da administração que será na colônia um símile mente remunerados, enquanto na maior parte da colônia a admi­
perfeito da do Reino. O que se encontrará de diferente se deverá Pistração e justiça não tinham autoridade alguma presente ou
mais às condições particulares, tão profundamente diversas das acessível, ou então se entregavam, nos melhores casos, à incom­
da metrópole, a que tal organização administrativa teve de se p�tência e ignorância de leigos como eram os juízes ordinários,
ajustar; ajustamento que se processará de "fato", e não regulado simples cidadãos escolhidos por eleição popular e que serviam
por normas legais; espontâneo e forçado pelas circunstâncias; gratuitamente. Coisa semelhante se repete na divisão territorial
aitado quase sempre pelo arbítrio das autoridades coloniais. administrativa. É nas vilas, sedes dos termos e das comarcas, que
Originalidade deliberada, compreensão das diferenças e capaci­ se concentram as autoridades: ouvidores, juízes, câmaras e as
dade para concretizá-la em normas adaptadas às necessidades demais. Era este o modelo do Reino, e ninguém pensou em modi­
peculiares da colônia, isto a metrópole raramente fez, e nunca ficá-lo. Ou se tratava de uma vila, então todas aquelas autoridades
de uma forma sistemática e geral. 11: só no regime fiscal, quando deviam estar presentes, ou não era vila, e não tinha nada. Assistimos
se tratava de tributos e a melhor forma de arrecadá-los, que a por isso aos dois extremos igualmente absurdos e altamente pre­
administração portuguesa procurava sair um pouco da sua rotina. judiciais: vilas com termos imensos, de território inacessível, na
Mas ainda aí, que falta de imaginação! A história acidentada da sua maior parte, aos agentes da àdministração concentrados na
cobrança dos quintos está aí para comprová-lo. Mas à parte sede; e vilas apenas nominais, em que nem havia gente suficiente
isto, praticamente todas as instituições que vamos encontrar no e capaz para preencher o número, elevado demais para elas, de
Brasif não são mais que repetição pura e simples das similares cargos públicos( 3). Entre estes extremos não havia meio tern10.
metropolitanas. Nos melhores casos, nos de maior originalidade, Obviou-se em parte ao mal de jurisdições em territórios imensos
não passam de plágios ou arremedos muito mal disfarçados. com a prática das correições e visitações, isto é, espécie de excnr­
Poderíamos multiplicar os exemplos neste sentido: seria aliás �õe_s �d_?1inistrati�as em que as autoridades percorriam as suas
mais fácil e sumario enumerar as criações propriamente origi­ 1unsd1çoes; mas isto que, dado aquele sistema de concentração
nais( 2). Mas para não alongar demasiado o assunto, lembremos deveria ser qualquer coisa de permanente, constituía aconteci­
aqui apenas o caso mais flagrante, e de todos talvez' o de efeitos mento excepcional, e só as autoridades mais dirigentes o pratica­
mais nefastos daquela norma de copiar servilmente aqui sistemas vam com alguma assiduidade. Mas mesmo quando é este o caso,
do Reino. Foi o de centralizar o poder e concentrar as autoridades; �quelas excursões_ administrativas nã� tinha� ª. maior parte da uti­
reuni-las todas nas capitais e sedes, deixando o resto do território lidade qu� poderiam ter, dadas as circunstancias em que se reali­
praticamente desgovernado e a centenas de léguas muitas vezes zavam; e isto porque, sempre de acordo com as similares do Rei­
da autoridade mais próxima. Naturalmente a extensão do país, a �o, _seu objetivo era mais de fiscalização, supervisão geral ou audi­
dispersão do povoamento, a deficiência de recursos tornavam enc1a de recursos; e na verdade muito menos havia que fiscalizar,
diftcil a solução do problema de fazer chegar a administração, superver ou tomar conhecimento de recursos, que agir e adminis­
numa forma eficiente, a todos os recantos de tão vasto território. trar efetiva e diretamente.
Mas em vez de obviar aqueles inconvenientes com uma dispersão Mas deixemos estas críticas à administração colonial, que re­
máxima de agentes, a administração metropolitana, repetindo fiel­ servo para analisar em conjunto mais adiante, para nos ocupàrmos
mente o que se praticava no minúsculo Reino, deixava-as todas, propriamente com a organização da colônia. O Brasil não Gonstitui
ou a maior parte delas, nos centros principais onde sua ação se para os efeitos da administração metropolitana, uma unidade. O
que havia nesta banda do oceano, aos olhos dela, eram várias
( 2) Foi somente a administração de Pombal que procurou criar na
colônia alguma coisa de novo. Sua intenção em todo caso era esta. Se fra­ ( 3) Isto se verificou particulam1ente com relação às antigas aldeias
cassou na maior parte dos casos, é que não contava com outra coisa que a de índios, elevadas a vilas, pela lei de 6 de junho de 1755. Em poucas
rotina e incapacidade da burocracia portuguesa, contra a qual nada pôde delas a Câmara e demais órgãos administrativos puderam se organizar e
fazer. funcionar normalmente.
302 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 303
colônias ou províncias, até mesmo "países", se dizia às vezes, que, organizadas no Brasil, embora seu papel fosse aqui praticamentE"
sob o nome oficial de capitanias, se integravam no conjunto da nulo( 4).
monarquia portuguesa, e a constituíam de parceria com as demais As funções do Conselho não se limitavam a uma simples di­
_
partes dela: as províncias do Reino de Portugal e as do ele Algarve, reçao geral. Entrava no conhecimento de todos os assuntos colo­
os estabelecimentos da África e do Oriente. A monarquia forma niais, por menos _ im:ro�antes que fossem, e cabia-lhe resolvê-los não·
um complexo heterogêneo de reinos, estados, províncias européias só em segunda mstancia, mas quase sempre diretamente. Os dele­
e ultramarinas, capitanias e outras circunscrições sem título certo, gados régios, por mais elevada que fosse sua categoria, não da­
qualquer coisa de semelhante ao Império Britânico de nossos dias. vam um passo se?1 sua ordem ou consentimento expresso. A ex­
O que hoje designamos por Brasil, reunia um grupo daquelas cir­ tens_a e pormen1onzada correspondência dos governadores, as mi­
cunscrições; e s6 assim, para os efeitos da análise da administra­ nuc10sas _ordens e cartas régias que .ie lá se expediam, mostram a
ção colonial, que o devemos entender. A nossa unidade, embora que particulares e jet�lhes mí?imos desciam as providências dire­
,
existisse na geografia e mesmo no consenso de todos, aparecia ofi­ t�s da me�r?pole. A 1�gerencia da metrópole nos mínimos negó­
cialmente apenas nos títulos honoríficos do Vice-Rei do Brasil ( que cios coloma1s, escrever� J.. F. Lisboa, tocava a extremos quase fa­
assim mesmo era correntemente mais conhecido por Vice-Rei elo bulosos. Empregados semi-subalternos iam prestar suas contas à
H.io de Janeiro, onde tinha sua sede), e no do Prmcipe do Brasil, corte; na corte deviam justificar-se todas as dívidas de ausentes
que traziam os :primogênitos da dinastia de Bragança e herdeiros excedentes a uma alçada ínfima; começadas na Bahia na corte é
da coroa. Tambem se encontra no chamado Estado do Brasil, que que iam concluir-se as arrematações de certas rendas. Era da
reunia, mas só nominalmente, as capitanias meridionais, em opo­ corte fina!rnen�e q�e se expediam licenças para advogar, passa­
sição ao Estado do Pará e Maranhão, que compreendia, também P?rtes, baixas, 1sençoes de recrutamento e diversas outras providên­
só nominal�en�e e� nossa época, estas capitanias e mais �s subal­ cias sobre foguetes, marca e qualidade das madeiras das caixas de
, . _ açúcar, e custa a crê-lo, até sobre as saias, adornos, excursões no­
temas do Piam e Sao Jose do Rio Negro. Mas estas des1gnaçoes
já tinham perdido, fazia muito tempo, qualquer significação prá­ turnas
_ e lascívia das �scravas"( 5). De tudo se queria saber em
tica. A confusão entre estes dois pseudo-estados é mesmo tamanha, Lisboa, e por tudo se mteressava o Conselho. Pelo menos teorica­
que no texto de uma lei importante como o alvará de 17 de agosto mente, pois na realidade, a impossibilidade material de atender a
de 1758 que aprovou o Diretório dos índios, encontramos a desig­ tamanho acúmulo de serviço não só atrasava consideravelmente 0
nação Estados do Brasil empregada nos dois sentidos: geral para o expediente, de dezenas de anos às vezes, mas deixava grande nú­
Brasil todo, e especial no sentido acima. De fato, restava ainda mero _ de casos a dormir o sono da eternidade nas gavetas dos ar­
como sinal da antiga divisão, no momento que nos ocupa, unica­ qmvos.
mente a jurisdição da Casa de Suplicação de Lisboa, que funcio­ . _As capitanias que formavam o Brasil são de duas ordens: prin­
nava como tribunal de segunda instância para as capitanias do cip�is e subalternas. �stas são mais ou menos sujeitas aquelas;
mmto, como as do Rio Grande do Sul e Santa Catarina ao Rio
Estado do Pará e Maranhão, cabendo tal jurisdição, nas demais
de Janeiro, ou a do Rio Negro ao Pará; pouco, como a do Ceará
capitanias, às Relações da Bahia e do Rio de Janeiro. Também na
e outras subalternas de Pernambuco. Mas em conjunto e de uma
divisão eclesiástica, pois as dioceses do Pará e do Maranhão eram
forma geral, os poderes dos governos são os mesmos em ambas as
sufragâneas do Arcebispado de Lisboa, e as outras, do Primaz da
Bahia.
Para a administração geral das capitanias ( bem como de todas �4 ) !inham-se tomado com o tempo purame�te honoríficas, e seus
"hábitos .., isto é, o titulo de participação, eram franca e abertamente ven­
as demais possessões portuguesas da África e Oriente) havia o didos. Assim o p�i do Visconde Nogueira da Gama, futuro mordomo do
Conselho Ultramarino, que se subordinava a um dos quatro Secre­ l�perador, adqumu o título para o seu filho, que contava então apenas
tários de Estado do Governo ( Secretário de Estado dos Neg6cios seis anos ( 1806), por 10.000 cruzados. Ewgio histórico do Visconde., em
da Marinha e Domínios Ultramarinos). Pelo Conselho transitavam sessão do Instituto Histórico e� 1887. - Na Gazeta fº Rio de 25 de julho
todos os negócios da -::olônia, salvo unicamente os da competência de 1810 encontra-se o anúncio da venda de um Habito de Cristo.
(5) Obras, II 75. vol. I das Publicações do Arquivo Nacional, se
ela Mesa de Consciência e Ordens, outro departamento da admi­ encontrará. o Catáwgo das cartas régias, provisões, alvarás, avisos, portarias,
n_istração portuguesa, e que se ocupava com os �ssuntos eclesiás­ etc. expedidas ao governador e mais tarde Vice-Rei do Rio de Janeiro de
ticos, bens de defuntos e ausentes, e com os negocios das Ordens 1662 a 1821. Vale a pena passar por ele os olhos para ver os assunto� de
Militares ( as de Cristo, Avis e S. Tiago); estas ordens estavam que se ocupava a administração em Lisboa.
304 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 305
categorias provinciais. S6 o título do governador diferia: cafitã�­
-general e governador, nas principais, capitão-mor �e cap1tama efetivo e penüànente: trata cie todos os neg6cios militares pessoal­
( não confundir com capitão-mor de ordenanças), o� s1mplesmc�1t <" mente, e não existe na capitania ou tra patente que se ocupe deles
governador nas demais. O capitão-general do Rio de JancirO, em conjun to: os vários comandan tes são todos seus subordinados,
t êm funções restritas a seus corpos ou comissões respectivas (9).
aepois de Í763 ( dantes era o tla Bahia) tin ha o título _alt�ss_onan:e
mais oco de Vice-Rei do Brasil. Seus poderes, em prmc1p10, nao Nesta qualidade de militar, o governador é grandemente absorvido
eram maiores que os de seus colegas de outras capitanias, e não pelas suas funções, a que deve dedicar o melhor das suas aten­
se estendiam, além da sua jurisdição territorial de simples capitão­ ções. Sobretudo quando é o caso de capitanias onde os assuntos
-general( 6). desta natureza são prementes, como é o caso do Rio de Janeiro,
cujas subalternas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul se acha­
. A capitania forma pois a maior unidade admin ist rativa da vam nas fronteiras de vizinhos com que vivíamos em dificuldades
colônia. Divide-se seu territ6rio em eomarcas, sempre em pequeno e atritos. O caráter essencialmente militar das funçõ_es do gover­
número(7). A comarca compõe-se de termos, com s��e nas vil�s nador aparece então claramente; basta observar o lugar de dest a­
ou cidades respectivas ( 8). Os termos, por sua vez d1v1de1:1-se em que e o espaço que os assuntos desta natureza ocupam na corres­
,
freguesias, circunscrição eclesiástica que forma a paroqm �, _ sede pondência e nos relatórios dos vice-reis do Rio de Janei ro: sobra­
de uma igreja paroquial, e que servi� também _P�ra a admm�stra­ -lhes pouco para tratar de outras matérias (10).
ção civil. Finalmente as freguesias ainda se d1v1dem em bairros,
Mas embora participe deste caráter militar, o governador é
circunscri ção mais imprecisa, e cujo principal papel aparece na
a cabeça de toda administração em geral. Não e ntrarei no porme­
organização das ordenanças, como veremos abaixo.
nor da sua competê ncia, enumerando suas atribuições, porque é
Passemos sumariamente em revista as autoridades e hierar­ geral e ampla, em todos os setores, com relativamente poucas ex­
quia administra!iva destas várias _circu�scriç?:.s. Na capítani� o ceções e restrições(11). Com isto, não é de admi rar que seja
:.
chefe supremo e o governador ( v1ce-re1, cap1�ao-��neral, �ap�tao­ levado aquele poder absoluto que tem sido a maior crítica feita à
-mor, governador simplesmente). A sua funça�, Jª o notei, � es­ administração colonial, sobretudo pelos historiadores do século
_ _
sencialmente militar. Não que ele se1a necessariamente um m1htar passado, tão próximos ai nda do tempo em que sua figura temida
de profissão, o que aliás não é comum. Mas é o comandante supre­ se projetava sobre o país. Crítica muitas vezes exagerada, porque
mo de todas as forças armadas de sua capitania, bem como das aquela figura de regulete com que se apresenta, e aparecia efeti­
subalternas. E não apenas nominal ou para certas ocasiões, mas vamente aos contemporâneos, encobre na realidade fraquezas que
só hoje, passadas as paixões do momento e devassados os segredos
(6) Numa controvérsia entre o Vice-Rei do Rio de Jane i_ro_ e o Capi­ dos arquivos, podemos avaliar. com mais segurança. Em primeiro
tão-General de São Paulo, Bernardo José de Lorena, sobre o limite das ca­ lugar, acima do governador, vigilante, ativo c estorvante, lá se
pitanias respectivas, em que aliás o segundo a�abou vencendo, ambo� ª
ªP : encontrava o governo central da metrópole. Vimos até que pon to
recem no mesmo plano. Veja-se como se rfaere ao assunto o V1ce-I;-e1 ele levava sua i ngerência na vida da colônia; o governador ficava
interessado no seu Ofício de 1789 ao entregar o governo ao _sucessor, J?ag.
38. Há uma certa jurisdição do Vice-Rei do Rio de Janeiro em Mmas por isso, em regra, adstrito a normas muito precisas e rigorosas,
Gerais embora fosse esta capitania principal.
( 7) Minas Gerai s, 4; Bahia, 4 ( uma delas Sergipe);. �ão Paulo. 3
( com Paraná, que formava a comarca de Paranauuá e Curitiba; em 1811 ( 9) A pretensão de alguns comandantes em se sobreporem nos negó­
criou-se mais a comarca de Itu); Pernambuco, 3 ( Alagoas era uma delas). cios militares à autoridade do governador, ou agirem paralelamente, não era
Goiás, 2 ( d Jpois da divisão de 1809.) - As demais capi tanias só tinham regular; ocorreu sem dúvida, mas, quando encontrava pela frente um gover­
urna comarca. nador enérgico e consci ente de suas funções, restabelecia-se loao a verda­
( 8) O título de cidade era puramente honorífi co, e não tr�zia privi- deira hierarquia. Veja-se a respeito o que refere o Marquês do Lavradio
légio algum. Havia as seguintes cidades nos primeiros. anos do seculo . pas­ no seu Relat6rio, 413. Às vezes, à sua qualidade de comandante-chefe, o
sado: São Paulo, Mariana, Rio de Jane iro, Cabo Fno, Salvador, Olinda, govern�dor alia ainda a de comandante nato de alguma unidade, como do
Paraíba, Natal, São Luís do Maranhão, e Belém do Pará. As c_ida<les sedes 1.0 regimento ou terço auxiliar na Bahia e outras ca_pitanias.
de bispado se chamavam episcopais ( Bahia, arquiepiscopal). _Ma_nana, embora (10) O Cons. Veloso de Oliveira, escrevendo em 1822 sobre a ne­
cidade episcopal, não era nem sede de comarca, e pertencia a comarca �e cessidade da reforma da administração brasileira, critica sobretudo o caráter
Vila Rica ( Ouro Prêto). Cabo Frio era c idade porque desde sua fundaçao militar da administração colonial. Mem6ria sobre o melhoramento da capi­
adotou este título, não se sabe· bem por quê. As demais são de criação tania de Sã.o Paulo, 103.
expressa, e se originam de antigas vilas. ( 11) Para uma idéia ma is concreta, veja-se a enumeração dos poderes
e das limitações em Pereira da Silva, Fundação do Impbio Brasileiro, I, 173.
306 Caio Prado ]úniot
Formação d-O Brasil Contempordneo 307,
traçadas com mmucias até extravagantes, e na f eitura das qua)s conse qüência d o sistema geral da administração portuguesa: res­
e ra previame nte pouco se não nada ouvi do. Se en_ contrarnos h?JC trição de poderes, estreito controle, fiscalização opre ssiva das ati­
or dens em abundância, poucas são as consultas vmdas d o Remo vidades funcionais. Siste ma que não é ditado por um espírito su­
( 12) .Além disso, devia o governador prestar contas pormeno­ perior de ordem e métod o, mas reflexo da atividade de desconfian­
rizadas da sua gestão, sobretudo a, s�u termo, q1_1 a�do_ até_ se �us­ ça generalizada que o governo ce ntral assum e com relação a todos
pendia o pagamento do soldo do ultimo ano ate hqm?açao fm� l seus age ntes, com presunção muito mal disfarçada de desle ixo,
e aprovação d aquelas contas. E_ o governo metro�� htano abna incapacidade, desonestidade mesmo em todos eles. A confiança
largamente os ouvidos a toda sorte de quei_xas e cnt�c�s que lhe com outorga de autonomia, contrabalançadas embora por uma res­
chegassem, fosse qual fosse sua orige m. Se isto be neficiava J?ºu� ponsabilidade efetiva, é coisa que não penetrou nunca nos pro­
a população, é que só o interessavam realmente assuntos fiscais, cessos da administração portuguesa.
rendimentos, fraudes, contraban dos ... Ainda há uma circunstância, de ordem mais ge ral, que apara
Há ainda a considerar as demais autoridades da colônia, que muito as asas governamentais do Brasil-colônia: é o espírito de
embora de categoria inferior, funcionavam como contrapesos mui­ indisciplina que reina por toda parte e em todos os se tores. Fruto
to sensíveis à autoridade do governador. Isto se deve em grande de condições geográficas e da forma com que se constituiu o país:
parte ao curioso sistema de hierar�uia que domina en_1 �uitos ime nsidad e d o território, dispersão da população, constituição caó­
setores. Aquelas autoridades, e m mmtos casos, e dos mais impor­ tica e heterogênea de la, falta de sedimentação social, de educação
tantes, não formam propriame nte degraus infe riores da escala e pre paro para um regim e policiado. São fatores profundos e ge­
administrativa, no sentido que hoje damos a esta noção; não se rais que me reservo para rever em conjunto noutro capítulo. Mas
subordinam inteiramente à autoridade superior do governador a sua conseqüência mais flagrante , e que se reflete diretamente
como simples cumpridores de ordens. Assim nas Relações, que são no te rre no da administração, é a do solapamento da autoridade
órgãos judiciários e administrativos ao m esmo te� po, o gover­ pública, a dissolução de seus poderes que se anulam muitas vezes
nador é um simples participante, embora na qualidade nata de diante de uma de sobediência e indisciplina sistemáticas.
presidente; e os demais membros não são seus subor dinados._ O Mas com tudo isto, não quero subestimar o pode r e a autori­
mesmo se repete nos órgãos fazendários, as Juntas de Arrecadaçao. d ade dos governadore s, nem me smo red uzir-lhes a expre ssão na
Também o fato de constituírem e stes e outros órgãos da ad mi­ vida administrativa da colônia. Não somente suas atribuições são
nistração entidades coletivas, organizadas e m forma colegial, não conside ráveis - nenhuma outra autoridade da colônia se lhes e m­
é fator menos ponde rável na limitação do pode r do gove rnador. pare lha, e nenhuma dispõe como ele do conjunto das forças arma­
Não é preciso insistir sobre a impessoali dade e dimi�uição de res­ das, - como ainda o simples fato de re presentarem e encarnare m,
ponsabilidade individual que resulta . de um tal siste ma, e que a pessoa do rei, e terem a faculdade de se manifestar como se fos­
atuam como os outros tantos fatores de autonomia e independ ência sem o próprio monarca, é circunstância que basta, no sistema
de seus me mbros. E sen do o caso, nada se pre sta melhor à obstru­ político da monarquia absoluta de Portugal, para dar a medida
ção da marcha dos negócios. Avalie-se como atravess�r �a amortec�­ ao papel de relevo que ocupam( 13). Acresce ainda a grande dis­
da a aç.ão do governador, transitando por uma coletividade hostil tância em que se acha a metrópole e a morosidade com que se
ou pouco tolerante para com ele, o que muitas vezes se deu.
Finalmente há alguns órgãos e negócios importantes da admi­
nistração colonial em que não existe inte rferência alguma do go­ ( 13) Nas cerimônias públicas e homenagens ao trono, como por
ocasião de acontecimentos notáveis na dinastia reinante - nascimentos, casa­
vernador; pelo menos legal. Assim n__a s Intendênc� d? ouro e d�s mentos, aniversários, etc. -, o governador recebia o beija-mão como se
diamantes, e nas Mesas de Inspeçao, de que alias Já falei_ mais fora o próprio rei (Atas da Câmara de São Paulo, XX, 210). Em muitos
acima. Todas estas limitações da autoridade do governador são casos, o governador editava ordens falando diretamente em nome do sobe­
rano, e encabeçando-as com a fórmula de praxe: D.-, Rei ou Rainha, etc.
( Registro da Câmara de São Paulo, XII 588). - Observo que nestas como
( 12) Percebe-se muito bem o sistema na correspondência dos gover­ em outras citações da Atas da Câmara de São Paulo ( Act.) e Registro da
nadores.· A regra é eles exporem os objetos da administração e pedirem mesma ( Reg.) trata-se, salvo declaração expressa em contrário, de casos
instruções. Sugestões muito humildes e reticentes, muito menos conselhos, que recorrem constantemente na fonte citada; refiro um ou outro apenas,
encontram-se �penas nos governadores de maior envergadura e persona­ para não alongar a citação, procurando selecionar os mais típicos e refe­
lidade. rentes ao momento - que nos interessa_ em particl,llar.
308 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contemporâneo 309
menos. Não havia critério quase nenhum para o recrutamento,
man!festa sua ação(l�). Sobra assim boa margem para a auto­
_ nem organização regular dele. Tudo dependia das necessidades
nomia e mesmo o arbitno dos governadores, se não do abuso. E
do momento e do arbít�ío das autoridades. Fazia-se geralmente
não faltaram capitães-generais deste naipe( 15). Mas também, pe­ . _
assim: f!xadas as necessidades dos quadros, os agentes recruta­
los relatórios e correspondência que possuímos, sabemos das difi­
dores saiam à cata das vítimas; não havia hora ou lugar que lhes
culdades com que lutavam mesmo os mais enérgicos, e os obstá­
fosse defeso e entravam pelas casas a dentro, forçando portas e
culos encontrados a cada passo para se fazerem obedecer e reali­
janelas, até pelas escolas e aulas para arrancar delas os estudantes
zare':1, as providê�cias do seu go verno. Entre outros, o longo e
, ( 18)· Quem fosse encontrado e julgado em condições de tomar as
adm1ravel Relatório que o Marques do Lavradio, um dos maiores
armas, era íncontínentí, sem atenção a coisa alguma, arrebanhado
adminístrad?res que o Brasil colonial teve, apres�ntou ao seu su­
e levado a�s postos. Refere Vilhena que mu�tas vezes se espalha­
cessor depms de aez anos do governo (1769-79), e um documento
ram pela cidade (Bahia) os soldados de um recrímento todo, que,
a este respeito dos mais convincentes.
em hor� de antemão fixada, tinham ordem de âeter quantas pes­
Passemos aos demais ó��ãos da administração. Podemos agru­ soas estivessem ao seu alcance, com as únicas limitações de serem
,
pá-los em tres setores: militar, geral, fazendário. Além destes, brancas e não militares. Todos os detidos eram conduzidos à ca­
alguns outros de natureza especial que a.nalisarei em último lugar. deia e aos corpos da g\.Iarda, e somente lá se fazia a seleção dos
As for�s armadas das capitaT.li-as compunham:se da tropa de linha, capazes para o serviço militar. Havia casos em que de centenas
_
das milicUJS e dos corpos de ordenanças. A primeira representa a
tropa regular e profissional, permanentemente sob as armas. Era �� presos
_ se _apuravam a�enas, poucas dezenas de
, aptos. Até ecle­
siasticos sofnam destas v10lencias, o que não e pouco num meio
quase sempre composta de regimentos portugueses que conserva­ em que a batina merecia um respeito geral e profundo ( 19).
vam mesmo seu nome do lugar onde tinham sido formados, como
os de Bragança e Moura, estacionados em fins do século no Rio de . Explica-se �ssim porque, ao menor sinal de recrutamento pró­
Janeiro, e o de Estremoz, em Santa Catarina, Paratí e Angra dos ximo, a populaçao desertasse os lugares habitados indo refugiar-se
Rei�( 16). Para <:°mpletar os efetivos que vinham do Reino, pro­ no mato. O mesmo Vilhena refere 5iue na Bahia, logo que se co­
cedia-se ao engapmento para a tropa na própria colônia. Em prin­ meçavam a fazer recrutas, era infahvel a carestia dos gêneros de
cípio, só brancos deviam ser alistados, norma impossível de seguir primeira necessidade, �arque os lavradores abandonavam as roças.
aqui, dado o caráter da população. Havia por isso grande tole­ E� 1797, ve�os em Sao Paulo despovoarem-se as regiões de Ati­
rância com relação à cor, os pretos contudo, e os mulatos muito baia e Nazare porq�e nelas s� assinalara a presei:iça de agentes
escuros, eram excluídos( 17). Para o alistamento concorriam, além rec�tadores; e a Camara paulistana alarmada, pois era naquelas
dos voluntários, que eram poucos, os forçados a sentar praça - reg10es que se abastecia a capital, pedia providências ao governador
criminosos, vadios e outros elementos incômodos de que as auto­ ( Reg. X, 148). Exemplos entre mil outros da verdadeira convulsão
ridades queriam livrar-se. Quando isto não bastava, lançava-se mão periódica que provocava o recrutamento em todos os setores da
do recrutamento. colônia.
O recrutamento pa.ra as tropas constituí, durante a fase colo­ As milícias sã? tropas_ auxilia�es: como as de linha, organi­
nial da história brasifeíra, como depois ainda no Império, o maior z ��-se_ em regr�, la pelos fms do seculo, em regimentos ( em subs­
espantalho da população; e a traaíção oral ainda conserva em h!uiçao aos antigos terços), e se recrutam por serviço obrigatório e
alguns lugares bem viva a lembrança deste temor. E não é para na_o. r�munerado, , na população da colônia. Eram comandadas por
o�iciais tan:bem e�c�lhidos na população civil, e que igualmente
( 14) Calculava-se num. mínimo de quase dois anos o tempo necessário nao se podiam exim1r ao serviço não remunerado que prestavam;
para a solução de qualquer negócio. Consulta do Cons. Ultramarino de e ta_mbem _por a!gumas patentes regulares destacadas para as or­
1732. Em princípio de séc. XIX a situação continuava a mesma, porque gamzar e mstru1r. O enquadramento das milícias se fazia numa
nem se tinham aperfeiçoado sensiveJmente os meios de comunicação, nem ba�� territorial ( f�egue:ias)', bem como e: sobretudo, pelas catc­
a burocracia portuguesa se tornara mais expedita.
( 15) Como amostra, no momento que nos ocupa, veja-se o que Saint­ gouas da populaçao. Nao ha, a este respeito, muita uniformidade
Hilaire observou pessoalmente em suas viagens; em particular, Voyage aux
provinces de Rio de Janeiro, I, 356. ( 18) Vilhena, Recopilação, 287. Vilhena era professor régio, e assis­
( 16) Almanaques do Rio de Janeiro. tiu a muitas destas cenas.
( 17) Nas instruções para o recrutamento no Rio, de 16 de agosto de ( 19) Vilhena, Recopilação, 256.
1816, incluem-se os "pardos cuja cor seja mui fusca."
Formação do Brasil Contemporânea 311
310 Caio Pr4do Júnior
entre as vanas capitanias. Na Bahia, por exemplo, eram as �ilí­ respectivo. As companhias, comandadas por um capitão, um te­
cias conhecidas por tropas urbanas, compunham-se dos segumtes nente e um sargento ou alferes, compunham-se de 250 homens, e
re<Timentos:
0
dos úteis, formado pelos comerciantes e seus caixeiros; se dividiam em esquadras de 25 homens cada uma, comandada!.
de Infantaria, em que entravam os artífices, vendeiros, taberneiros por um cabo. Naturahnente estes efetivos são os legais, havendo
e outros, mas todos brancos; o de Henrique Dias, composto de na realidade muitas variações que a própria lei aliás autorizava
pretos forros(20); finalmente o Quarto Regto. Auxiliar de Arti­ atenta às circunstâncias(22). As patentes superiores das ordenan­
lharia, formado de pardos e mulatos. Havia ainda algumas com­ ças conservavam também as antigas denominações: capitão-mor,
panhias indep�ndentes c?�1 missões especiais: uma de familiares, que corresponde ao coronel na organização em regimento, e sar­
duas companluas de capztaes de assalto, formadas de pretos e de­ gento-mor o major da organização regimental, ou antes, o te­
signadas para, em tempo de_ guerra, explo�ar a campa�ha, trans­ neate-coronel, pois não havia nos terços o "comandante de bata­
_
mitir ordens e mensa<Tens
0 ( sao as companhias de. comumcaçoes de lhão", unidade inexistente. Além das suas funções militares, que
hoje); e em tempo de paz, dar caça aos escravos e criminosos for�­ são, dada sua constituição, necessariamente .restritas, as ordenan­
gidos. Estes iíltimos corpos, que também se enco�t:am nas demais ças têm um papel considerável na administração geral da colônia.
capitanias, são os d� :'ulgarme�te chamad?s cap1taes-d�-�to, de :É o que veremos adiante, pois quero antes passar em revista o
tão tenebrosa memona. No Rio de Janeiro, a orgamzaçao das resto da organização administrativa.
milícias difere bastante: sei.\ quadro ainda é o terço, antiga unidade Vejamos, depois dos militares, os órgãos da administração ge­
portuguesa substituída na segunda metade do séc. XVIII pelos ral e civil. Incluem-se aí tanto funções propriamente administra­
regimentos, de inspiração francesa; e são divididas em três terços tivas (em nossa terminologia moderna), como de justiça. Encon­
que tomam o nome das freguesias em que se formavam; C?ande­ tramos aqui um caso concreto da observação já feita no início
lária, São José e Santa Rita, e mais um dos homens pardos libertos deste capítulo: a confusão de poderes e. atribuições que hoje nos
(21). parecem substancialmente distintos. Não só se ocupam dos ne­
A última categoria das forças armadas, a 3,a linha, para em­ gócios de ambos os setores as mesmas autoridades, como não há
pregar uma designação atual, eram as ordenanças, forma�as P?r diferença substancial no seu modo de agir num e noutro terreno.
todo o resto da população masculina entre 18 e 60 anos, nao alis­ Na aplicação da lei não se distinguia quando era caso de simples
tada ainda na tropa de linha ou nas milícias, e não dispensada do
ação administrativa dos agentes do poder, ou quando se trata­
serviço militar por algum motivo especial; os eclesiásticos, por
va do restabelecimento de arreitos entre partes em litígio. Se qual­
exemplo. Ao contrário das milícias, as ordenanças constituem uma
quer ato de uma autoridade, fosse ela qual fosse, envolvesse ofensa
força local, isto é, que não podia ser afastada do lugar em que se
formava e em que residiam seus efetivos. Não havia recrutamento de direitos ou interesse (no funcionamento da administração não
para as ordenanças, mas só um arrolamento, pois toda a p�pulação, se distinguia um caso do outro), não cabia ao ofendido instaurar
uma ação, mas unicamente recorrer do ato à autoridade superior
dentro dos limites fixados, considerava-se como automaticamente
competente. Quando não se tratava de atos de autoridades, mas de
engajada nelas. Limitava-se sua atividade militar a convocações
simples particulares, cabia então ao ofendido provocar a ação da­
e exercícios periódicos, e, eventualmente, acorrer quando chama..
das para serviços locais: comoção intestina, defesa, etc. quelas: estaríamos então no caso típico da ação judiciária em nos­
• . e so processo atual. Mas percebe-se que entre as duas hip?teses não
A organização das ordenanças conservava em toda coloma, _
há distinção substancial alguma, pelo menos no que diz respeito
conservará até sua extinção em pleno Império (1&11), os antigos
ao funcionamento da administração, que é o q�e mais nos ink­
terços divididos em companhias. Incluía-se em cada terço, cujo
ressa aqui.
comandante supremo é o capitão-mor, toda a população do têrmo
Não posso evidentemente entrar no pormenor de um assunto
de excessiva especialização, e que trouxe à baila unicamente para·
(20) Também chamado dos Henriques, designação de muitos corpos
pretos da colônia e cuja tradição vinha dos corpos de escravos libertos
que se faça uma idéia do sistema administrativo da colônia, bem
organizados por Henrique Dias nas guerras holandesas. (22) As Ordenanças foram criadas em Portugal por lei de dezembro
(21) Para pormenores da organização militar, vejam-se, relativamente de 1569, sendo regulamenbclas pela de 10 de dezL'rnbro do a110 seguüite.
à Bahia as Cartas VI e VII da Recopilação de Vilhena; para o Rio de depois de algumas modificações, foi a matéria codificada no Regimento
Janeiro,' em particular os Almanaques de 1792 e 1794, e o Relatório do das Ordenanças de 30 de abril de 1758, que inclui várias disposições espe­
Marquês do Lavradio. çiais referentes ao Brasil.
312 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contemporâneo :n:1
diverso do de nossos dias, e sem a qual não se cori1prcff,1crh o bros são os oficiais: três vereadores e um procurador. As eleições
assunto que estamos analisando. Não nos deixemos por isso ilu­ são populares, isto é, vota o povo; ou antes,. o povo qualificado, os
dir, entre outros casos, com a designação que trazem os cargos homens bons, na expressão das leis. São as pessoas gradas do ter­
administrativos da colônia, e que se empregam hoje numa acep­ mo e da vila, que figuram em listas especialmente feitas para este
ção diferente e mais restrita. Particularmente a de "juiz". O juiz fim: chamam-se também às vezes de republicanos(24). Já vimos
c.-olonial - seja o de fora, o ordinário, o almotacé ou o vintenário como esta questão do direito de voto, que inclui o de participar da
ou de vintena, - tem não só as funções dos nossos juízes modernos, Câmara, tomou em certos lugares uma forma política, pomo de
julgando, dando sentença, resolvendo litígios entre pàrtes desavin­ discórdia, ou antes arma de luta entre facções adversas: proprie­
das; mas também os dos nossos simples agentes administrativos: tários e nativos da colônia, de um lado, comerciantes e reinóis,
executam medidas de administração, providenciam a realização de do outro. As eleições eram em princípio indiretas(25). Os votantes
disposições legais·... E isto sem distinguir absolutamente, na prá­ congregados na casa do Senado da Câmara, indicavam por maio­
tica, a duplicidade (duplicidade para nós), das funções que estão ria seus eleitores, que apartados em três pares, organizavam, cada
exercendo. Compete-lhe de um modo geral executar a lei e as obri­ qual a sua, três listas tríplices, isto é, contendo três nomes dos
gações do seu cargo: que esta execução ou ação seja espontânea, que escolhem para os cargos da Câmara. O presidente,_ que seria
provocada por s0us jurisdicionados ou simples ato deles, desavin­ o ouvidor, e na sua falta, o juiz mais ·velho em exercício, "con­
dos entre si ou não, a diferença não importa: eles agirão sempre certava" (conferia) as listas, e formava com os nomes mais votados
da mesma forma. três róis definitivos que se encerravam em bolas de cera, os pe­
Para se apanhar melhor o sistema geral da administração co­ louros. Pela "primeira oitava de Natal" ( 8 de dezembro) de cada
lonial, comecemos pelos órgãos inferiores, pois os superiores não ano, e com assistência do povo, em "vereança" especial, compa­
funcionam, por via de regra, senão co:.110 instâncias de recursos. recia um menino de sete anos, e metendo a mão por um cofre
O mais importante é o Senado da Câmara(23) que tem sua sede onde se guardavam os três pelouros, tirava um, cuja lista servirá
nas vilas ou cidades, e estende sua jurisdição sobre o termo res­ no ano seguinte. Assim em três anos consecutivos, depois do que,
pectivo. Há de se estranhar que falando da administração geral esgotados os pelouros e as listas, procedia-se a nova eleição. Esta
das capitanias, comece pelas Câmaras, que são órgãos típicos da forma de eleição se chamava de pelouro; mas quando um dos as­
administração local. Mas aqui, mais uma vez, devemos por de lado sim eleitos, impedido por qualquer motivo, tinha de ser substituído,
nossas concepções atuais. No sistema administrativo da colônia, procedia-se mais sumariamente, escolhendo então a própria Câ­
já o assinalei, não existem administrações distintas e paralelas, ca­ mara o substituto: chamava-se então eleição de barrete. Conforme
da uma com esfera própria de atribuições: uma geraf, outra local. ocorresse um ou outro caso, dizia-se do juiz, dos vereadores ou do
A administração é uma _só e ver-se-á, pelo desenvolvimento do procurador, que eram "de pelouro" ou "de barrete". O juiz e o
assunto, que competem às Câmaras atribuições que segundo nossa procurador, eleitos de uma ou outra forma, deviam. ser confirma­
classificação moderna são tanto de ordem geral como local. Elas aos pelo ouvidor com as chamadas cartas de usança. Os vereadores,
fupcionam efetivamente como órgãos inferiores da administração pelo contrário; empossavam-se· logo que se iniciava seu mandato,
geral das capitanias. sem outra formalidade que o juramento de bem servir o cargo.
Comnõe-se o Senado da Câmara de um juiz presidente, que
pode ser 1etrado, diríamos hoje "togado", de nomeação régia, e é
então o chamado juiz-de-fora; mais freqüentemente é um cidadão (24) Vejam-se as. listas organizadas _por ocas1ao da ·cnaçao das vilas
leigo, eleito como os demais membr9s da Câmara: será o fuiz ordi­ de São Carlos (Campinas) e Porto Feliz, em São Paulo, nos Does. Inte­
ressantes, III, 3 e 32. Nas vilas em que havia iuiz-de-fora os oficiais da
. ário. Os juízes ordinários eram sempre dois, exercendo alterna­ Câmara não eram eleitos, mas nomeados pelo poder central. Esta não era
damente suas funções em cada mês <lo ano para o qual tinham urna regra absoluta, e não está .contida em nenhum texto legal, a não ser
si<lo eleitos. Ao contrários dos juízes-de-fora, serviam sem remu­ excepcionalmente e sem caráter geral ( corno no Regimento da Relação do
neração, como os demais membros da Câmara. Estes outros mem- Rio de Janeiro de 13 de out. de 1751). Representa uma das mais impor­
tantes .invasões do Poder Real nas atribuições locais e municipais caracte­
rísticas no Portugal do séc. XVII.
( 23) "Senado" é título honorifico e especial que as Câmara da co­ , ( 25) Digo em princípio porque é isto que geralmente se pratica; mas
lônia se arrogaram abusivamente. Só em raros- casos o títu}Q será confii­ na referência acima feita nos Does. Int., figura o termo de eleição da pri­
nuclo kg:11:r:�.,tc. lJ!eira Càmara, e a eleição foi aí direta.
314 Caio Prado Júnior Forma�ál) do Bra,# Çontempordneo 315
Já vemos, em tudo isto, a intervenção direta na Câmara de auto­ Além da questão do seu patrimônio e das suas finanças, cabiam
ridades estranhas a ela. à Câmara várias nomeações: do ;uiz almotacel a quem competia
O povo, sempre na acepção restrita que indiquei acima, não fiscalizar o comércio dos gêneros de primeira necessidade e zelar
participa das deliberações da Câmara unicamente por ocasião pela higiene e limpeza públicas; dos ;uízes vintenários ou de vin­
das eleições. Quando se tratava de assunto de muita importância tena, com jurisdição nas freguesias ( havia um vintenário para cada
e relevante interesse público, também era convocado para, em uma), e com iguais atribuições que os juízes-de-fora ou ordinários,
comum com o Senado, assentar medidas e tomar decisões (Reg· mas de alçada menor, aliás muito pequena; além destas autorida­
XII, 99; e Act., XX, 179). des, nomeava a Câmara seus funcionários internos: escrivão, sín­
Organizado assim o Senado da Câmara, e reunindo-se ordi­ dico, etc.
nariamente em "vereança" ou "vereação" duas vezes por semana, Competia ainda à Câmar-a editar posturas; processar e julgar
nas quartas e sábados, vejamos do que se ocupava. Nos primeiros os crimes de injúrias verbais, pequenos furtos e as infra� de
tempos da colônia, sabe-se que muito grande fora o seu raio de seus editos, chamadas causas de almotaçaria ( Ordenações, liv. I
ação. Algumas câmaras, sobretudo as àe São Luís do Maranhão, tit. 66 § 5 e tit. 65 § 25); resolver questões entre partes litigantes
do Rio de Janeiro, e também a de São Paulo, tomaram-se de fato, que versassem sobre servidões púb1icas - caminhos, águas, etc.
num certo momento, a principal autoridade das capitanias res­ ( Reg., XII, 393); e terras do seu patrimônio, (Reg. XII 275).
pectivas, sobrepondo-se aos próprios governadores, e cbegando até Mas em tudo isto é sempre difícil precisar o que é da compe­
a destituí-los do seu posto(26). Mas no momento que nos ocupa tência privativa da Câmara. Em todos os seus negócios vemos a
isto já passara fazia bem século e meio; vejamos pois o que faziam intervenção de outras autoridades, sobrepondo-se a ela ou corren­
naquele momento, e o que efetivamente representava sua função, do-lhe parelhas. O ouvidor e corregedor da comarca intervém a
nos termos da legislação em vigor, mas sobretudo na prática da todo propósito em questões de pura administração municipal. lt
administração pública. Elas tinbam patrimônio e finanças pró­ assim que lhe cabe tomar as contas das Câmaras, resolver sobre a
prias, independentes do Real Erário, isto é, das capitanias res­ forma de arrematação dos réditos (Reg., XII, 194); autorizar im­
pectivas a que pertenciam. O patrimônio compunha-se das terras posições (Reg., XII 477) e despesas ( Reg., XII 199); consentir
que lhes eram concedidas no ato da criação da vila; constituíam em abatimentos nos seus créditt,s (Reg. XII, 206); prover sobre a
estas terras o rossio, destinado para edificações e logradouros e forma de alienação das terras do patrimônio municipal ( Act., XX,
para a formação de pastos públicos(27). A Câmara podia ceder 406). Até na constituição das Câmaras o ouvidor intervém: não só,
parte destas terras aos particulares ou aforá-las(28). Constituíam como vimos, passando as cartas de usança aos juízes ordinários e
ainda o patrimônio municipal as ruas, praças, caminhos, pontes, procurador, sem o que não podem exercer seus cargos, mas também
chafarizes, etc. resolvendo sobre impedimentos e licença dos seus membros, po­
As finanças do Senado se formavam com os réditos que lhe dendo ou não, a pedido deles, dispensá-los (Reg. XII, II). Parti­
competia arrecadar: foros ( renda dos chãos aforados) e tributos cipa ainda das "vereanças" em que se elegem as listas de candi­
autorizados em lei geral ou especialmente concedidos pelo sobe­ datos ao posto de capitão-mor das ordenanças, como veremos abai­
rano( 29). Dois terços da renda municipal pertenciam à Câmara; xo; e prove alguns cargos municipais: vintenário (Reg., XII, 410).
o último revertia para o Real Erário da capitania. O governador também se imiscui nos assuntos municipais. Há
cargos que, embora de nomeação da Câmara, é ele quem prove,
( 26) T. F. Lisboa 1111alisa em pormenor este grande poder passado como o de escrivão, mandando juramentá-lo e dar-lhe posse (Act.,
• Obras, II, 46.
Camara. XX, 264). Casos até ocorrem em que o governador prorroga o
(27) Vejam-se os autos de ereção, já citados, das vilas de São Carlos mandato do juiz ordinário e de todos os demais membros da Câ­
e Pôrto Feliz, em São Paulo (Does. Int., III, 3 e 32), e da vila de Mon­
temor-o-novo, no Pará. ( Autos de criação . .. ) mara além do prazo para o qual foram eleitos, como se deu em
( 28) Esta matéria sempre foi largamente controvertida para se fixar São Paulo em 1799, quando todos os novos eleitos pediram e con-
até 9ue p�nto iam os direitos da Câmara de doar as terras do seu patri­
mômo. VeJa-se sobre este assunto, entre outros, Lima Pereira, Da proprie­
dade no Brasil. aferições de pesos e medidas, o produto das multas por iufração de pos­
( 29) Recaíam os tributos municipais nas reses entradas nos açougues turas municipais, e finalmente o aluguel das "casinhas" - em certos lugares,
-carne. abatida, �axa das balanças e� qu� �e pesavam todos os gêneros d� como na Bahia, chamavam-se as "cabanas" -, onde eram comerciados gê­
primeira necessidade, taxa do celeiro publico (mercado). Havia ainda as neros de primeíra necessidade.
316 Caio Prado Júnior Fõrmação do Bf08il Contempordneo 317
seguiram isenção; estava-se para proceder à elei.ção de barrete, f;:ianças próprias, e estarem revestidas de urna quase person�l­
que con�o vimos era indicada nestes casos, quando interveio a de­ lidade jurídica, o que não se encontra nos demais órgãos da admi­
cisão, a ordem do governador ( Act., XX, 153). Ocupa-se o go­ nistração colonial, elas funcionam como verdadeiros departamentos
vernador de assuntos puramente locais, realizando obras públicas do governo geral, e entram normalmente na organização e hierar­
e ordenando à Câmara que colabore com ele; assim na construção quia administrativa dele. Mas dada aquela sua característica, e
de bicas em São Paulo, em 1800 ( Reg., XII, 601); estabelece pro­ ainda mais a forma popular com que se constituem e funcionam,
vidências sobre o comércio de gêneros de primeira necessidà<les este contacto íntimo que mantêm com governadores e adminis­
( Reg., XII, 248), e medidas relativamente à administra�·ão Jas trados, as Câmaras assumem um pspe1 especial. "Cabeça do povo",
"casinhas". ( Reg., XII, 601). designa-se a si o Senado de São Paulo numa representação dirigi­
Em compensaçLJ, vemos a Câmara tratar de assuntos que da em 1798 ao bispo ( Reg., XII, 291); e é por ele que transita a
nada têm de local, como a nomeação dos fiscais da Intendência do maior parte das queixas e solicitações do povo ( Reg., XII 289).
Ouro. Em suma, não se encontra na administração colonial, re­ Será esta a origem da força com que contarão mais tarde as Câ­
pito, uma divisão marcada e nítida entre gove,·no geral e local. maras para agir efetivamente, como de fato agiram, e intervir,
Acresce ainda para comprová-lo, que de todos os atos da Câmara muitas vezes decisivamente, nos sucessos da constitucionalização,
há recurso para alguma autoridade superior: ouvidor, governador, independência e fundação do Império. Será o único órgão da admi­
Relação, até mesmo a corte. Doutro lado, as Câmaras agem como nistração que na derrocada geral das instituições coloniais, sobre­
verdadeiros órgãos locais da administração geral. É assim que o viverá com todo seu poder, quiçá até engrandecido.
governador se di.rige a elas, sob a forma de ordens, para a reali­ O juiz ordinário ou de fora, ,além de suas funções _como rne�­
zação de providências gerais do seu governo ( Reg. XII, 248 e 256). bro do Senado e seu presidente, tem uma esfera própna que alem
A Câmara funciona aí como simples departamento executivo, su­ de judiciária, é igualmente administrativa. Reporto-me ao que aci­
bordinado à autoridade do governador; e seu papel, neste terreno, ma já foi dito a tal respeito: além de julgar e dar sentenças, isto é,
tem grande amplitude, pois o contacto direto que ela mantém com resolver litígios entre partes desavindas, ele é um agente da admi­
à população permite às autoridades superiores, mais distantes e nistração e um executor de suas providências ( 30). Em ambos os
não dispondo de outros órgãos apropriados, executarem através casos, representa uma instância superior aos juízes vintenários,
dela suas decisões. Até para a publicação de editais emanados do e inferior do ouvidor da comarca.
gm·ernador com determinações dirigidéls ao povo, é à Câmara Este último, que em regra acumula as funções de corregedor,
que incumbe faze-lo (Reg., XII, 483). As Juntas da Fazenda, por - isto é, "fiscal" da administração, - vem logo acima, na hierar­
intermédio da Câmara, também fazem afixar editais de praça dos quia administrativa, dos órgãos que acabamos de ver. Cabe-lhe
contratos e ofícios ( Reg., XII, 589); e é por via dela que arrec<:1- jurisdiçiio nas comarcas e todos os termos respectivos. Não é pre­
dam alguns tributos ( Reg., XII, 508; e Act., XX, 4Z7). ciso especificar suas atribuições, que são as da administração em
-
Este caráter de mero departamento administrativo, subordi­ geral, embora em instância superior aos órgãos já analisados: Câ­
nado ao governo geral e nele entrosado mtirnarnente, aparece ainda mara e juízes. Já vimos aliás vários casos particulares de sua com­
bem claro .na forma e termos com que se referem ao Senado da petência ( 31). Os ouvidores são nomeados pelo soberano, e provi­
Câmara os relatórios dos governadores. Assim o Vice-Rei do Rio dos por três anos. Nas comarcas muito importantes, Bahia e Rio
de Janeiro, dando contas da sua administração, trata da Câmara de Janeiro, havia, além do ouvidor do cível, um do crime. Um e
local e de seus negócios indiscriminadamente com os demais órgãos outro faziam parte das Relações daquelas cidades. Estes órgãos
da adminstração, e referindo-se às suas funções e atos como se colegiais tinham jurisdição, respectivamente, sobre as capitanias
fossem assunto do "seu" governo ( Relatório do Marquês do La­ setentrionais ( menos Pará, Maranhão, Piauí e Rio Negro, que es-
vradio, entre outros). Coisa semelhante faz Vilhena quando enu­
mera e analisa o departamento da administração pública da Bahia, ( 30) Falando de suas atribuições, assim se exprime o Marquês do
em que não dá destaque algum ao Senado da G'irnara, tratando Lavradio: "procurar e promover o adiantamento e felicidade dos povos,
dele como dos demais órgãos e sob a epígrafe geral de "empregos assim para o sossego em que os déve conservar, como para os animar no
de Justiça e Fazenda". (Recopilação, Carta 10). seu comércio e agricultura e não lhes consentir preguiça e errados pre­
juízos." Relat6rio, 442.
Assim, embora as Câmaras tenham urna característica espe­ ( 31) Pela Carta Régia de 22 de julho de 1766 o Ouvidor exerci:1
cial que se revela sobretudo no fato de possuírem patrimônio e também a função de Intendente de Polícia.
318 Caio Prado ]tÍnior Formação do Brasil Co11temporâneo 319
tavam subordinados, como já referi, à Casa de Suplicação de Lis­ outras funções fazendárias(36). Segue o Juízo da Conservat6ria
hoa); e meridionais: Espírito Santo para o Sul, inclusive as capi­ dos vários contratos: dizíamos, azeite, sal; Juízo da Coroa e Exe­
tanias interiores. As Relações funcionavam sob a presidência do cuções; Juízo do Fisco, das Despesas, etc. E todos esses órgãos,
Governador (o Vice-Rei no Rio de Janeiro), e contavam, além dos como sempre, exercem cumulativamente funções que hoie dis­
ouvidores referidos, com vários outros membros: agravistas, pro­ tinguiríamos em judiciárias e administrativas.
curad,?r, juiz .da. c?roa, etc., t�dos com o título de "desembarga­ O principal tributo é o dízimo, que constitui um antigo di­
dores . As atnbmçoes da Relaçao, sempre a mesma observação, são reito eclesiástico, cedido pela Igreja, nas conquistas portuguesas,
judiciárias e administrativas; mas como funciona unicamente como à Ordem de Cristo, e que se 'confundiu mais tarde com os do rei,
tribunal de recursos e instância superior, não lhe cabendo nenhuma que se tomou, como se sabe, Grão-Mestre da Ordem. Como o nome
ação direta, o seu papel na administração se reduz muito, e asse­ indica, o dízimo recaía sobre a décima parte de qualquer pro­
melha-se mais aos modernos tribunais judiciários(32). dução. Seguiam-se os direitos de alfândega; as passagens dos rios
Passemos aos órgãos fazendários. Para gerir o Real Erário e registos ( alfândegas secas); as entradas (em Minas Gerais);
nas capitanias do Brasil(33), arrecadar tributos e efetuar despesas, . imposições especiais sobre bestas que vinham do Sul e se cobra­
há uma série de órgãos paralelos com funções mais ou menos espe­ vam em Sorocaba (São Paulo). Havia ainda os donativos, terças
cializadas. Eles não se subordinam uns aos outros, nem ao gover-. parles e novos direitos, que se pagavam pelas serventias dos ofícios
nador, no sentido em que hoje eqtendemos a hierarquia adminis­ de justiça (escrivães, meirinhos, solicitadores, etc.); bem como
trativa. É neste terreno que a falta de simetria e organização hierár­ emolumentos de provisões e patentes (nomeações para cargos pú­
blicos). Além destes tributos ordinários, há o subsídio literário
quica regular, que já assinalei como um dos traços característicos
do governo colonial, aparece de modo mais flagrante. O órgão criado em 1772 em todas as capitanias, bem como no Reino, para
principal da administração fazendária é a Junta da Fazenda( 34), atender às despesas com a instrução pública; e os subsídios extra­
que tem forma colegial e é presidida pelo governador. Cabem à ordinários, que se estabeleciam de vez em quando para atender a
Junta de uma forma geral as atribuições que seu nome indica; emergência do Estado(37). Estes dois últimos subsídios cobra�
mas as execuções são numerosas, particularmente nas capitanias vam-se com imposições especiais e várias sobre aguardente, gado
de maior importância, e cabem na competência de órgãos para­ entrado nos açougues, outros gêneros de consumo, também capi­
lelos: Junta de Arrecadação do Subsídio Voluntário(35), também tação dos escravos.
pre�idida pe!o gover�ador; a Alfândega? que arrecada os direitos A arrecadação dos tributos - e isto vai tanto para os do Real
de 1mportaçao; o Tribunal da Provedoria da Fazenda, que é não Erário como das Câmaras que referi acima, - se fazia em regra
só o que hoje são as procuradorias fiscais, mas exerce também por "contrato", isto é, entregava-se a particulares por um certo
prazo, geralmente três anos, e por uma determinada soma global
que o contratador se obrigava a pagar ao Erário, em troca dos
tributos que arrecadaria por sua conta. Os "contratos" eram pos­
(32) Entre os recursos administrativos de que toma conhecimento - tos em hasta pública, e entregues a quem mais desse. Quando o
e cito apenas um caso entre muitos outros -, estão os relativos aos impe­ Erário fazia a arrecadação por sua conta - o que acontecia rara­
dimentos para exercício dos cargos do Senado da Câmara, decididos. em mente, pois ele não estava aparelhado para isto, - dizia-se que
primeira instância pelo ouvidor ( Reg., XII, 11). ele a "administrava", que o contrato estava sob "administração".
( 33) O Erário das capitanias não era distinto, como o das Câmaras,
do da monarquia em geral. As capitanias não tinham fazenda ou patrimônio Tal sistema de arrecadação constitui uma das mais maléficas
próprios, e eles se confundiam com os do rei. prátic�s do governo colonial. Justificava-se aliás porque estava nos
(34) A designação varia: Tribunal da Junta da Real Fazenda no métodos fiscais de todas as nações contemporâneas, e tinha atrás
Rio de Janeiro; Junta da Real Fazenda, em São Paulo; Real Junt� da
Arrecadação da Real Fazenda, na Bahia; Junta de Arrecadação e Admi­
nistração da Real Fazenda, no Maranhão, etc. (36) Assim no Rio de Janeiro, a Provedoria expedia gulas para o
(35) Este subsídio especial foi instituído em 1756, par dez anos, pagamento de alguns tributos, como os de "passagem" para Minas Gerais.
para custear a reedificação de Lisboa destruída pelo terremoto; apesar do (37) Em princípios do século passado, achava-se em vigor, além do
seu prazo limitado, e da reclamação dos contribuintes, o subsídio se per­ subsídio para a reedificação de Lisboa, acima referido, o estabelecimento
petuou, continuando a ser arrecadado ainda em pleno Império. E nomi­
nalmente, sempre destinando-se à reconstrução de Lisboa. O caso é digno pela Carta Régia de 6 de abril de 1804 em virtude da "aflitiva situação
do Reino em conseqüência da perturbação da Europa."
de se registrar, como amostra das finanças da colônia e do Império.
Formação do Brasil Contempordneo 321,
320 Caio Prado Júnior
mÍ'Lo. Mas o abuso dos dizimelros não p:uáv:\ aL A fim de se foi­
de si uma tradição de séculos qüe vinha desde o Império Romano.
tarem ao incômoào de viaaens penosas, ele deixavam de cobrar
Mas esta respeitá)v'el vetustez do sistema não era consolo para a
seus dízimos anualmente, : faziãm-no de uma só vez calculando
população colonial, que muito sofreu dei�. Os �vidos _ cm:trata­
o valor global do tributo durante o período inteiro do seu contrato.
dores, sem outra consideração que o negócio em vista, nao tmham
Este cálculo se fazia na base. da produção e dos preços do ano da
contemplação nem tolerância. O poder público, que tem, ou déve
cobrança; bastava por isso, e era natu�almt::ntc o que aco�tecia
ter em· mira circunstàncias e interesses que nEio o de. simples arre­
sempre, que tal ano tosse de preços mais alto� q�e os demais, ou
cadador de rendas, não é o particular cujo único objetivo é cobrir­
de produção mais volumosa, para que o contnbumte pagasse, uma
-se, do que pagou pelo contrato.: e ainda ·embolsar �m luc� apr_e­ _
_
ciável. E as I verdadeiras extorsoes que o contnbumte sofna nao proporção média para todos os anos, superior aos 10% legais do
tributo.
eram nem ao menos compensadas por vantagem apreciável alguma
para o Erário; pois se o processo simplificava a cobra1�.ça, dout�o Por estas e por outras, as "excursões" dos dizimeiros à cata de
seus dízimos iam semeando na sua rota sinistra a desolação e a
lado, não era pouco freqüente o caso de contratadores msolvá�eis,
ruína. As execuções, realizadas com penhora incontinenti dos bens
incapazes de pagar o preço do contrato. Isto porque, no afa de
do devedor, quàntos bastassem para largamente assegurar o paga­
arrebatá-los, pois cônstituíam em princípio um dos melhores ne­
mento do débito e as consideráveis despesas judiciais, iam pelo
gócios da época, os licitantes iam freqüentem·ente �lém do que ?
, seu caminho arruinando os lavradores e paralisando a produção,
contrato podia render em tributos arrecadados; e �2·? so se arrm­
Saint-Hilaire, que observou o fato de perto, e assistiu pessoalmente
navam, mas deixava a fazenda de receber seus creditas. Isto sem
à ação dos dizimeiros, lhes atribuía uma das principais responsa­
contar o favoritismo e as vistas gordas dos ag�ntes do poder com
bilidades pela dispersão da população rural, que se afastava , para
relação a· contratadores amigos ou comparsas que nunca satisfa­
retiros quase inacessíveis em que se condenava a vegetar misera­
ziam suas dívidas para com a fazenda pública. Situação esta que
velmente, mas onde contava escapar à ação nefasta e aniquila­
é quase normal( 38).
dora do fisco( 39) .
O "dízimo" sempre correu parelhas, entre os grandes flagelos Depois desta tão triste incursão pelo regime fiscal da c�lôni�,
da administração da colônia, com o seu rival que acima já vimos: .
vejamos, para finalizar, a análise dos departamentos admmistrah­
o recrutamento. O que dele sofreu a população não é fácil �escre­ vos, o último grupo de órgãos que assinalei como sendo ?e natureza
ver. Já por si, trata-se de um tributo pesado: 10% da produçao bru­
especial. Algu�s. já fo:·am referi?os e tr�tad�s �m capitulos ante­
ta. Mas isto ainda é o de menos; muito pior foi a forma com que riores: a Admmistraçao elos 1ndws, a In,endencia do ouro e a elos
se cobrava, em espécie, em vez de ser in natura, como se devia en­ diamantes. Os demais são: a Intendência da Marinha, que nas
tendê-lo e como fora efetivamente no passado remoto da monar­ capitanias marítimas se ocupa�a com a �olíticl_l dos por�os e :?º
quia. Obrigava-se o produtor a satisfaz�r em �inheir? o valor de litoral bem como com armazens c estaleiros. Mesa de mspeçao,
um parte apreciável de um produto am�a nao reah;ª?�· e q�� também citad11 anteriormente, e que superintendia o comércio do
era mais ou menos arbitrariamente avaliado pelos dizimeiros _ . açúcar e do tabaco; havia Mesas na Bahia, Rio de Janeiro e em
Compreende-se o efeito catastrófico desta cobrança numa eco�o­ Pernambuco, Finalmente, restam as Coriservatóri,qs de cortes de
,
mia como a da colônia, em que a moeda escasseava e o credito madeira, criadas em Alagoas e Paraíba pela Carta Régia de 13 de
era praticamente inexistente, pelo menos para a maior parte das maio de 1797, e em Ilhéus (Bahia), pela de 11 de julho de 1799;
necessidades e das pessoas. Salvo o caso das grandes lavouras alta­ dirigiram-nas os ouvidores das comarcas respectivas, e se destina­
mente remuneradoras e bastante seguras, ninguém ousava pro­ vam a regular o corte de madeiras destinadas à construção naval.
duzir mais que o estritamente necessàrio para o consumo próprio Além dos seus quadros regulares, a administração colonial ai�:
ou para um mercado absolutamente garantido e conhecido de ante- da conta no seu funcionamento com os corpos de ordenança, ia
referidos acima, e que, embora não destinados a isto, acabaram
(38) Nas Instruções ao governador ?e Minas Gera_is, �arquês de exercendo papel do maior relevo em tal terreno. �ilít�rmen�e,
Barbacena, encontram-se observações e relaçoes de fatos mmtos interessa_ntes vimos que as ordenanças pouco valem: forças estacionánas, nao
sobre abusos de contratadores e prejuízos da fazenda dai, resultantes. _YeJ ª1:1-
-se em particular os §§ 109 e seg5. destas Instruções, Entre os func10nnno , se podem deslocar de suas sedes respectivas; em regra mal equipa-

negligentes e acumpliciados com os contratadores faltosos a,� a_cusados, esta
o Ouvidor de Vila Rica, Tomás Antonio. Gonzaga, o suave , Dtrceu de Ma­
( 39) Voyage aux .sources. , . , 1, 343.
rília-.
Formacão do Brasil Contempordneo 323
'322 Caio Prado Júnior
das e instruídas, elas são, como tropa, de valor ínfimo. Em prin- · "rico; compondo-se a maior parte dos mesmos povos de gentes
cípio, serviam como auxiliares locais das outras forças, de linha ou "da pior educação, de caracter o mais libertino, como são negros,
milícias, nos casos de agressão externa ou comoção intestina. Mas "mulatos, cabras, mestiços, e outras gentes semelhantes, não sen-
salvo num passado já remoto no momento que nos ocupa, nada . "do sujeitos mais que ao Governador e aos magistrados, sem serem
disto tivemos. Acontecimentos militares de vulto mais recentes, )rimeiro separados e costumados a conhecerem mais junto, assim
ocorreram apenas nas fronteiras do Sul; e outros atritos de menor 'outros sµperiores que gradualmente vão dando exemplo uns aos
importância no Mato Grosso. Mas aí as ordenanças não represen­ "outros da obediência e respeito, que são depositarios das leis e
taram nenhum papel: trata-se de regiões pouco povoadas, e onde "ordem do Soberano, fica sendo impossivel o governar sem socego
portanto não existiam; os socorros vieram todos de fora, e as forças "e sujeição a uns povos semelhantes. A experiencia o tem mostra_do,
que lutaram naqueles pontos são ou as de linha, ou as milícias re­ "porque em todas as partes aonde tem havido de (faltado) reduzir
crutadas em outras capitanias. "os povos a esta ordem, têm sido as desordens e inquietações im­
Mas se como força armada as ordenanças ocupam em nossa "ménsas, e ainda depois de cançado o executor da alta justiça de
história um plano obscuro, noutro setor, aliás não previsto pelas "fazer execuções no a quem a lei tem condemnado pelos seus de­
leis que as criaram, elas têm uma função ímpar. Sem exagero, pode­ "lictos, nem isto tem bastado para elles se diminuirem, e pelo
-se afirmar que são elas que tomaram possível a ordem legal e "contrario se tem visto que naquellas partes aonde os povos estão
administrativa neste território imenso, de população dispersa e "reduzidos a esta ordem, tudo se conserva com muito maior so­
escassez de funcionários regulares. Estenderam-se com elas, sobre "cego, e são menos frequentes as desordens, e são mais respeitaveis
todo aquele território, as malhas da administração, cujos elos teria "as leis"( 40).
sido incapaz de atar, por si só, o parco funcionalismo oficial que As idéias do Marquês, aí esboçadas, são no que se refere às
possuíamos; concentra-!':> ainda mais como estava nas capitais e milícias ( que ele chama, segundo o costume do seu tempo, de
maiores centros. "terços auxiliares"), menos praticáveis. Isto porque tais corpos,
A idéia de aprov�itar o sistema de ordenanças para este fim como forças de segunda linha e auxiliares imediatos da tropa re­
pode ser retraçada ao terceiro quartel do séc. XVIII; e creio fazer gular, têm uma função militar importante; e por isso deviam ser
justiça atribuindo-a à clarividência de um dos maiores adminis­ bastante bem instruídas, exercitadas e equipadas; além disto, nelas
tradores que o Brasil-colônia jamais teve: o já tantas vezes cita­ só se alistavam os indivíduos perfeitamente aptos para o serviço.
do Marquês do Lavradio. 'E: no precioso e inesgotável manancial Em conseqüência, não tiveram e não podiam ter a universalidade
de informações que é. o seu Relat6rio ao Vice-Rei que o vinha das ordenanças, que se organizam em todo o território da colônia,
substituir no governo em 1779, que encontramos, pela primeira enquanto as milícias não passaram de um número limitado de uni­
vez, referência expressa e clara ao assunto. O Marquês demonstra dades. Para os fins que o Marquês tinha em vista, são as orde­
aí como· compreendera a utilidade, a necessidade mesmo de arrolar nanças que mais se prestam ( 41).
toda a população colonial em corpos organizados, a fim de tê-la Isto, que no tempo daquele Vice-Rei, embora já se praticasse
assim facilmente ao alcance da administração, sujeita a ela e go­ sem uma consciência nítida do seu alcance, e fosse ainda apenas o
vernável. A passagem em que ele se refere à questão é longa, mas fruto da intuição de um político notável como o Marquês, tomar­
merece ser transcrita porque elucida completamente a matéria, e -se-ia depois um processo de administração perfeitamente esta­
a esgota; pouco lhe poderia ser acrescentado: "Para mim é forte belecido em regular funcionamento. 'E: o que verificamos pelas
"razão formar com todos os povos, assim os terços auxiliares ( mi­ referências que se faz.em às ordenanças lá pelos fins do século. Não
"lícias), com todos aquelles individuos que estão em edade, forças as procuremos em opiniücs ou dissertações teóricas, onde os pon­
"e agilidade para poderem tomar armas, como as das ordenanças, tos de vista pessoais do autor podem ter influído; mas nos documen­
"com aquelles que estão mais impossibilitados; e vem a ser a razão tos banais da administração, nos de mero expediente, em que os
"que é reduzir todos estes povos em pequenas divisões e estarem
sujeitos a um certo numero de pessoas, · que se devem escolher,
"sempre dos mais capazes para officiais, e que estes gradualmente
"se vão pondo no costume da subordinação, até chegarem a co­ ( 40) Relatório, 424.
nhece-la todos na pessoa que S. M. tem determinado para os go­ ( 41) Mas isto não exclui bem entendido, a utilização das milícias com
o mesmo objetivo, embora sem a mesma generalidade; as milícias sempn::
"vernar. Estes povos em um paiz tão dilatado, tão abundante, tão foram, ao contrário das ordenanças, corpos propriamente militares.
324 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 325
redatores não fazem mais c1ue repP,fü· C'anceitos vulgares e indis­ locais dirigir-se oficialmente ao governador so!icitando providên­
cutíveis. cias ( Reg., XII, 252 e 257).
Os oficiais superiores das or<lP-nanças - capitão-mor, sargento­ Note-se que tudo isto não é determinado por nenhuma lei:
-mor e capitão -, eram escolhidos pelo governador, de uma üs�a nasceu das circunstâncias imperiosas que a vastidão do território
tríplice ·organizada pelo Senado da Câmara do termo respectivo. e a dispersão da população. impunham a uma administração muito
Vejamos pois como o governador se dirige às Câmaras solicitando­ mal aparelhada para a tarefa. f: uma simples situaçfo de fato e
-lhes a organização de tais listas. Num ofício do governador de não de direito; mas graças a ela, a colônia se tornou governável.
São Paulo, em que tendo resolvido formar novos corpos numa d�1s O que facilitou a tarefa das ordenanças, dando força efetiva à
freguesias da capital, pE:de a indicação dos candidatos a oficial, hierarquia que representam, e permitindo-lhes o exercício das fun­
ele assim se exprime: "'O grande número de povo que existe na ções que nelas encontramos foi a preexistência na sociedade colo­
sobredita freguesia não pode ser bem governado, nem melhor dis­ nial de uma hierarquia social já estabelecida e universalmente re­
ciplinado para ocorr�ncia do Real serviço, sem advirem mais duas conhecida. Assinalei noutro capítulo este aspecto da organização
companhias porque assim possam os respectivos oficiais delas da colônia, disposta em "clãs" que se agrupam em tomo dos pode­
acautelar as necessárias providências a bem do· mesmo Real servi­ rosos senhores e mandões locais, os grandes proprietários, senho­
ço". ( Reg. Xll, 35). Nas cartas patentes dos oficiais de ordenanças res de engenho ou fazendeiros. Tal estrutura social abriu caminho
emprega.se linguagem semelhante: " ... fonnar uma companhia pa.-a o estabelecimento das ordenanças: não houve mais que ofi­
para melh9r auxiliar e conter na devida obediência os moradores cializar esta situação de fato, constituir com aqaeles "clãs" os cor-·
(Reg. XII, 54). São exemplos entre mil outros, que, pela banali­ pos destas últimas. E foi o que se fez colocando chefes e mandões
dade da matéria nelas contida, encerram fórmulas de praxe que locais nos postos de comando das ordenanças. Revestidos de paten­
por isso mesmo exprimem, não opiniões, mas fatos correntes e tes e de uma parcela de autoridade pública, eles não só ganharam
estabelecidos. em prestígio e força, mas se tomaram .em guardas da ordem e da
As atribuições administrativas dos oficiais de ordenanças apa­ lei que lhes vinham ao encontro; e a administração, amputando-se
recem a cada passo na rotina da administração. D.espiguemo-las ao talvez com esta delegação mais ou menos forçada de poderes, ga­
acaso no farto material do Registro da Câmara de São Paulo. nhava no entanto uma arma de grande alcance: punha a seu ser­
viço uma força que não podia contrabalançar, e que de outra forma
Numa carta em que o governador, dirigindo-se à Câmara, discute teria sido incontrolável. E com ela penetraria a fundo na massa
várias questões de jurisdição das diversas autoridades ( tratava-se da população, e teria efetivamente a direção da colônia( 42).
em espécie da competência das autoridades eclesiásticas), ele afir­
ma que só podem "obrigar" os moradores "paisanos" ( sic), os juí­ Também noutro terreno vieram as ordenanças em auxílio da
zes de direito e os oficiais de ordenança ( Reg., XII, 473). Tratando­ administração: no dos índios,. esta população mal assimilada que
-se da construção de um aterrado no rio Pinheiros, a Câmara, por se agrega à colonização, e que depois da legislação pombalina se
determinação do governador, ordena ao capitfo local de ordenan­ tomara em cidadãos pelo mesmo título que os demais colonos.
Não era fácil a tarefa de governá-los, mantê-los numa obediência
ças que, em dia e hora designados, mande gente da sua companhia,
com cabos suficientes, apresentar-se nas obras para a realização e sujeição que somente foram capazes de conseguir, inteira e es­
pont.meamente, a paciência ilimitada e a dedicação extrema dos
do serviço necessário sob a inspeção de um diretor escolhido por
missionários; e sobretudo o conhecimento que eles tinham da na­
ela ( Reg., XII, 175). Vemos noutras passagens os capitães de orde­ tureza humana, e o tacto e habilidade com que a manejavam;
nanças encarregados de coletar na respectiva freguesia a quota qualidades que naturalmente faltaram tanto aos colonos leigos co­
de seus moradores para as obras de uma ponte ( Reg., XII, 2:17). mo aos burocratas reinóis. O sistema de ordenanças substituiu, em­
Ainda em outro texto do Registro, lemos uma ordem do gov.ernador bora em parcela pequena, a autoridade dos padres, e dispensou um
mandando os oficiais da freguesia de Atibaia reterem os moradores pouco a força bruta com que ordinariamente se lidou com os índios
que estavam abandonando suas lavouras com receio do recruta­
mento, e ::nneaçando com isto o abastecimento da capital ( Reg.,
XII, 150). Um último exemplo das funções exercidas pelos oficiais ( 42) Revendo os nomes que encontramos nos postos de comando dos
corpos de ordenança, vamos descobrir neles a nata da população colonial,
çle ordenanças: num caso de interesse público da freguesia de os seus expoentes econômicos e sociais. Esta regra é invariável · em todos
Sant'An;l, sfmpre em São Paulo, vemqs Q capitão das ordenança� os setores do pais,
326 Caio frad9 Júnior Formap:io do llni:;it Ço11tcmpod1Jco =l:?7
para mantê-los em- obediência. Aproveitaram-se uns r�sto� de hie­ cuidadosamente sua descrença; mais que criminosos, eles, ªI_>are­
_
rarquia, consideração ou respeito que hav1 � �ntre o� �nd1ge�as: _e ceriam aos olhos do mundo que os cerca como loucos temiveIS. A
que apesar da dissolução de s:u.:' laç�s. s�cia1s e po�1hc�s pn��1h­ Religião não era ainda admitida, ela "era" simplesmente.
vos por efeito da longa persegmçao, su1e1ça? e escr,av1�açao sofuda, Decorre daí que as !1-ecessidade� es��tuais se .C?lo� no
ainda sobravam em estado latente. E nas vilas de md1os, que tanto mesmo plano que as exigencias da vida civil. A participaçao nas
abundaram depois das leis de Pombal, concederam-se os postos das atividades religiosas não é menos importante que nas �a<w:1ª
ordenanças aqueles dentre eles que gozasse_m �e r.:al ascend�n_ci_a última. Poder freqüentar os sacramentos, o culto, as cenmomas
e prestígio entre seus semelhantes. Koster uomzana estes oficiais da Igreja, constitui urgência que nada fica a dev_er ao qu� se pede
seminus, com seus bastões encastoados de ouro, símbolo da auto­ _
noutro setor: a justiça, a segurança, ou as demais providencias da
ridade mas não veria o sistema que representavam, e que cons­ administração pública. O Estado, �ão s� podia furtar a ela. E_ nem
tituía � base mais sólida em que se apóia a ordem política e admi­ jamais cogitou disto.. �elo contran?, �ISputou se�J?re à Ig�e1a de
nistrativa da colônia( 43). Roma o direito de mmistrar ele propno, a seus suditos, o alimento
Os quadros militares e civis que vimos an�lisando até_ aqui nã? espiritual que reclamavam. Nunca lhe escapou a importância po­
esgotam este assunto da administração colomal. Por mais m�e�i­ lítica disto( 44):
-
da que a primeira vista pareça sua inclusão neste lugar, a Religiao
Mas não é só inconcebível e inconcebida uma existência à
e o clero a ele pertencem por todos os títulos. A; posição da Igreja
mar�em da Religião e da Igreja: ela é im�ratic:ável mesn:io para o
e do seu culto é então muito diferente da de hoje, E para compre­
increu convicto e relutante. Atos de que mnguem se podia passar,
endê-la na sua intimidade, não nos basta assinalá-la traçando pa­
ralelos. Precisamos transportar-nos com um esforço ?: imaginação
mesmo pondo de parte qualquer sentimento r�ligioso, só �e pratica­
vam por intermédio da Igreja: a consta�açao do nascimento _ se
para ambiente inteiramente diverso, procurar participar d_aquela
fazia pelo batismo, o casamento só_ se _reali_zava _pe�any: auto_nd�de
atmosfera clerical e de religiosidade em que mergulha a vida co­
clerical. Além disto, o poder eclesiástico tmha 1unsdiçao privativa
lonial. Não que haja então um sentimento religioso mais agudo,
em muitos assuntos de fundamental importância, como nas ques­
mais profundo e elevadamente . senti�o. Ou se h��ve,. não é isso
tões relacionadas com o casamento: divórcio ( ou se preferirem,
que mais importa aqui. De mmto maiores conseq1;1encias é o _ fat?
o "repúdio"), separação de corpos, anulação. Também !1ºs as�untos
da onipresença de um conjunto de crenças e práticas que o_ mdi; que envolvessem matéria de pecado( 15). ��am as estlp':laçoe� �o
víduo já encontra dominantes ao nascer, e que_ o acompanharao ate Concílio de Trento, que Portugal foi a umca das naçoes cnst�s
o fim, mantendo-o dentro do raio de uma açao constante e pode­ a aprovar sem restrições; e �ue se mantiveram em vigor no Brasil,
rosa. Ele participará dos atos da Re!ig�ão, das cerimôi:iias do culto,
em seus traços essenciais, ate a República( 46).
com a mesma naturalidade e convicçao que de quaisquer outros
acontecimentos banais e diuturnos da sua existência terrena; e Se juridicamente, perante o direito positivo, :ra esta a posi­
contra eles não pensaria um momento em reagir. Será batizado, ção da Igreja, não era ela de menor relevo na rotina de todos os
.
confessará e comungará nas épocas próprias, casar-se-á perante um dias. Aceitava-a o senso comum, e umversalmente, como uma auto-
sacerdote, praticará os demais sacramentos e freqüentará festas e
cerimônias religiosas com o mesmo espírito com que intervém nos ( 44) A irreligiosidade é um fato moderno. Na s�cular di_sR:1ta entre
fatos que chamaríamos hoje, em oposição, da sua vida civil. Uma o Estado e a Igreja não se trata em absoluto de exclmr a Rehg1ao, como
se fez modernamente; mas sim afastar a interferência da Igreja de Roma
coisa necessária e fatal, como vestir-se, comer a certas horas, se­ em assuntos de transcendente importância política então, e de que o Estado
auir um regime de vida geral para todo o mundo. O cidadão da já não se preocupa mais: provimento dos ministros da religião, questões de
�olônia atravessará seus anos de. existência s�m que lhe a�lore à doutrina religiosa, etc.
. o pequno
. , . onshtma
. , pec dº B
mente um instante sequer a mais leve suspeita de que tais atos ( 45) Assim nos contratos ;urados, poIS � ll: :
noderiam ser dispensados. Haverá incréus e céticos - e a época por isso que as Ordenações proibiam os contratos com Juramento, p01s isto
�o momento que nos ocupa era propícia à sua multiplicação - seria transferir para a jurisdição eclesiá�tica a _ competência par_a c?nhec�r
de seu não cumprimento ( Ordenações, hv. 4. ht. 73). Competia amda �s
mas a incredulidade deles ficará restrita a seus pequenos, fechados autoridades eclesiásticas a abertura dos testamentos, por causa dos eventuais
e insulados círculos de maçons e livres-pensadores que escondem legados em favor da Igreja. Sobre jurisdição eclesiástica em geral na colônia,
veja-se Lacerda de Almeida, A Egr�;a e o Estado.. . .
( 46) As disposições do Concilio foram confmnadas no Brasil mde­
( 43) Koster, Voyages, I, 210, pendente pelo Dec. de 3 de nov. de 1827.
323 Caio frado Júnior Formação do Brasil Contemporâneo 329
rid:ide; ela e seus ministros. Não só se participava inteiramente da apesar de excluída do terr�no temp?ral pela legi_sl:ção pombalina,
sua atividade e do seu culto externo, mas para ela se sujeitavam continuava a ação da Igre1a, atraves de suas missoes regulares, e
os indivíduos mesmo em assuntos de sua vida privada e íntima. mesmo em alcruns
° casos seculares. E ainda, finalmente, não deve­
Não é o caso de abordar aqui a secular controvérsia sobre as atri­ mos esquecer o papel que representa no setor ?�s divers� s p�­
buições respectivas da Igreja e do Estado, o "Papa e o Rei", cqmo blicas, sabido como é que a maior parte das festividades e diverti­
se dizia, e que só muito recentemente perdeu seu sentido e sua mentos populares se realizava sob seus auspícios ou direção( 48).
razão de ser. t-.fas, de fato, e particularmente na sociedade colo­ A Igreja for?1a assim uma esfera de gr�n�e imyort �ncia d�
niai que ora nos interessa, a intervenção da Igreja e de seus mi­ , . ,
administração publica. Emparelha-se a admimstraçao civil, e e
nistros é considerável. Não só pelo respeito e deferência que me­ mesmo muito difícil, se não impossível distinguir na prática uma
recem, o que lhes outorga uma ascendência geral e marcada em da outra em muitos correntes casos. Daí os atritos, que são fre­
qualquer matéria; mas ainda pelo direito reconhecido de se imis­ qüentes, entre autoridades civis e eclesiásticas( 49). Porém mais
cuírem em muitos assuntos específicos e particulares. Assim na comum e normal é a colaboração; colaboração tão íntima e indis­
vida doméstica dos casais, zelando pela sua boa conduta, pela sua pensável ao funcionamento regular da administração em geral que
existência em comum; podendo e devendo mesmo chamá-los even­ nada há que lembre o que se passa n� atualida?e· É um ana_cr?­
tualmente à ordem e r!ar parte dos renitentes às autoridades reli­ _
nismo berrante projetar relações de ho1e da Ig�·eia com a ad �n_is­
giosas superiores; também na educação dos filhos, em que lhes tração civil, naquele passado, procurando analisa-las com cntenos ?1
compete de pleno direito intervir e fiscalizar a ação dos pais. De semelhantes. Mais que simples relações, o que havia era uma ver­
um modo geral, consideram-se os religiosos como zeladores dos dadeira comunhão, uma identidade de propósitos animados pelo
bons costumes; e contam para isto como sanções que vão desde mesmo espírito.
as repreensões, expondo os faltosos à reprovação pública, até às Não entrarei nos pormenores da organização eclesiástica da
penaüdades mais específicas, inclusive a maior delas, a excomu­ colônia, tanto do clero secular como do regular, não nos esque­
nhão, que exclui o indivíduo do grêmio da Igreja. Isto fará sorrir cendo também das ordens terceiras e outras irmandades leigas que
os céticos de hoje, mas não assim os seus antepassados de um sé­
culo apenas. O anátema religioso isolava o atingido por ele num
sempre tiveram no Brasil papel saliente nas atividade
_ � re}igiosa�.
Nada há de particular, neste terreno, que diga respeito a Igre1a
círculo distante de repulsa geral; fazia dele um banido da socie­ da colônia. Aqui como alhures, no passado como no presente, a
dade de seus semelhantes. Mesmo que o seu íntimo não fosse afe­ organização clerical é em substância a mesma. Lembremos unica­
tado, sofria cruelmente a sanção da opinião pública que os sacer­ mente o padroado, concedido ao rei de Portugal e nas suas pos­
dotes facilmente manejavam e alarmavam. E isto sem contar que sessões ultramarinas, o que lhe permitia larga ingerência nos ne­
ficava, nos casos extremos, excluído da participação de atos indis­ gócios eclesiásticos, inclusive e sobretudo a criação e provimento
pensáveis à sua vida normal( 47). dos bispados; ereção de igrejas e d�limitação de jurisdiçõe� �erri­
Ainda há muitos setores em que a atividade administrativa toriais; autorização para estabelecimento de Ordens rehgios�s,
da Igreja teve não só a participação notável, mas ainda, em muitos conventos ou mosteiros. Cabia ainda ao m,?narca, J.?º r concessa�
casos importantes, exclusiva. Assim em tudo que hoje chamaría­ .
como vimos à Ordem de Cristo, a percepçao dos dízimos, que e
mos de assistência social ao pauperismo e indigência; à velhice e um tributo eclesiástico destinado originalmente à manutenção do
infância desamparadas; aos enfermos, etc. O mesmo podemos dizer clero. Em compensação, competia à coroa prover a esta manuten-
do ensino. Tanibém da catequese e civilização dos índios, em que,
( 48) Notemos que em todos estes setores cabe ainda hoje em dia à
( 47) Sobre as atribuições eclesiásticas, além do que se conhece da Igreja um papel considerável entre nós. Mas entre o. presente e o passad_ o
teoria do direito canônico, é interessante consultar as provisões de cargos há uma diferença a tal respeito essencial, porque ho1e ela age como enti­
eclesiásticos que encerram em regra muitas delas, e naturalmente as mais dade privada, e não se distingue,. s_enão quanti�ati_vamente,
interessantes para o historiador por serem as mais atuais e importantes no _ de oub
objetivos iguais; enquanto na coloma, ela constitu� autoridade
�tr� com
período em questão. Encontram-se algumas provisões nos documentos já 1: )1ca.
( 49) Veja-se, entre outros, um caso de conflito de competencia ocor­
publicados da colônia, como por exemplo no Registro da Câmara de São Paul.o; rido em São Paulo nos últimos anos do século XVIII, e que é particular ­
entre outras, veja-se para amostra, Reg. XII, 361. i;; pena que os arquivos mente interessante porque o encerra o governador com um longo ofício
eclesiásticos ainda não estejam, na sua maior parte, ao alcance clo grande dirigido ao. bispo em que discute e procura discriminar cuidadosamente
público. fües deitariam grande luz sobre a vida íntima da sociedade colonial. as esferas respectivas, eclesiástica e civil ( Reg., XII, 473).
3:JO Caio Prado Júnior Formação do Bra.sil Contempordneo 331
ção, e tal é o objetivo das côngruas, isto é, subvenções pecuniárias da ndministraçi:o portuguesa, e o clero secular e regular, seu
aos membros do clero(SO). funcionalismo. . . .
A par desta fonte de renda, tinha o clero outras. Assim os Está aí, cm suma, o esboço da organização a:dmmistrativa
emolumentos por atos religiosos ou da jurisdição eclesiástica - da colônia. Uma boa parte das crítica� que lhe podemo� fa�er
ministração dos sacramentos, dispensas, custas em processos ecle­ já está contida nessa análise. Vimos ai a falta de orgamzaçao,
siásticos, etc.; e sobretudo a desobriga da Quaresma que se pagava eficiência e presteza do seu funcionamento. Isto sem contar os
por ocasião da comunhão pa�cal e a que esta�am sujei�os todos nrocessos brutais empregados, de que o recrutamento e a cobrança
os maiores de sete anos obrigados à comunhao. A ma10r parte dos tributos são exemplos . máximos e índice _destacados do
destas imposições da Igreja ainda subsiste; mas enquanto hoje sistema geral em vigor. A complexidade dos órgaos, a confusão
têm um caráter de donativo e contribuição graciosa, constituem de funções e competência; a ausência de método e clareza na
então verdadeiros tributos públicos, impostos ou taxas em nossa confecção das leis, a regulamentação esparsa, d�sencontrada e
terminologia moderna, pois ninguém se podia regular e normal­ contraditória que a caracteriza, acrescida e comphcad.a J?Or . uma
mente furtar a elas. verborragia abundante em que não fa!tam às v�zes ate �isser-
Por efeito do padroado, a Igreja não gozou nunca, no Brasil, . tações literárias; o excesso de burocracia dos órgaos centrais em
de independência e autonomia. Os negócios eclesiásticos da colô­ que se acumula um funcionalismo inútil e numeroso, de. caráter
nia sempre estiveram inteiramente nas mãos do rei, que deles se mais deliberativo, enquanto os agentes efetivos, ?s executores,
ocupava através do departamento de sua administração já citado rareiam; a centralização administrativa que faz de Lisbo� a cabeça
acima, a Mesa de Consciência e Ordens. Mas a Igreja de Roma pensante única em negócios passados a centenas de _ leguas _que
exerceu sobre eles uma influência indireta e decisiva através da se percorrem em lentos barcos � vela;_tudo isto, que vimos acima,
preponderância de que gozou por muito tempo na corte portu­ não poderia resultar noutra coisa senao naquela monsín;1o�a, e�­
_
guesa a Companhia de Jesus, que teve o Reino, até a época de perrada e ineficiente máquina burocrática que é a admimstra�ao
_
Pombal, enfeudado a si e ao Papa. Depois da expulsão dos colonial . E com toda aquela complexidade e van�d�de ?e órgaos
Jesuítas ( 1759), desaparece aquela influência e o clero e negócios e funções, não há, pode-se dizer, nenhuma �speciah�açao. Todos
eclesiásticos do Brasil ficam inteiramente entregues ao poder sobe­ eles abrangem sempre o conjunto dos negÓ<;10s re.lativos a deter­
rano da coroa. Isto mesmo depois da reação ultramontana do minádo setor, confundindo assuntos os mais vanados e . q:1e .as
reinado de D. Maria, que nada modificou em essência na niatéria, mesmas pessoas não podiam por natureza exercer ;<>� eficiencia.
apesar do seu clericalismo e devoção de fanática em vésperas da O que mais se assemelharia a departamentos especializados, co�o
insanidade mental em que terminaria seus dias. Aliás o Papado, as Intendências do Ouro, a dos Diamantes, as Mesas de I�spe_ �ao
já muito enfraquecido e com as atenções ocupadas em ou�ros e alguns outros, nada são disto na realidade. A<;umulam atr�b:1iç�cs
setores mais importantes, não assume, relativamente ao Brasil e completamente distintas, ocupando-se das srmples provid�ncias
à sua metrópole, nenhuma atitude reivindicatória de seus direitos: administrativas e de política, com� do fomento �a produçao, d�
abandona inteiramente nas mãos do Rei Fidelíssimo os assuntos direção técnica, arrecadação de tributos e soluçao de contendas
religiosos da colônia. Bastará para nos certificarmos disto per­ entre partes. E é por isso que raramente s� encontram neles
. .
correr a correspondência das autoridades, tanto civis, como reli­ técnicos especializados . Nas vánas Inte�dencias. do Our�, por
giosas, relativamente a tais negócios, e se perceb_erá claramen�e exemplo, nunca se viu um geólogo, � mmeral�gista, um s��P.�es
a liberdade de movimentos do governo metropolitano da mate­ engenheiro. Eram indivíduos inteiramente leigos em ciencias
ria ( 51). A Igreja no Brasil se tomara em simples departamento paturais e conhecimentos técnicos que se . ocupavam com os
assuntqs de mineração. E isto porque deviam ser, ao mesmo
tempo, e sobretudo, burocratas, juristas, juízes.
. .
( 50) Sobre o Padroado da Coroa, veja-se a Alegação ;urídica, etc., de . Mas não precisamos ir procurar funções espec�alizadas p�ra
D. José Joaquim de Azeredo Coutinho. descobrir as fraquezas da administração colonial. Nas _própnas
. .
( 51) Veja-se particularmente a longa e mmuc1osa . _ do V1. cr:­
mformaçao
-Rei Luís de Vasconcelos, prestada em 1783 ao Secretário de Estado do atividades essenciais do Estado, ela é lamentável. Justiça cara,
governo português: Negócios eclesiásticos. - Ta_mbém a coleçãr C:orres­ moro�a e complicada; inacessível mesmo à grande 1:1aioria da
rondência de várias autoridades, em que há muitas cartas de a11tondades população. Os juízes escasseavam, grande parte deles n�� passav�
religiosas da colônia, sobre matéria de sua jurisdição, ao governo metro­ .
de juízes leigos e incompetentes; os processos, miciados ai,
politano.
Formação do Brasil Contemporâneo 333.
332 Caio Prüdo Júnior
Janeiro(54). Hospitais não havia s�não uns rarís�imos n,1il!tares,
subiam para sucessivos graus de recurso: ouvidor, Relação, Supli­
como o do Rio de Janeiro, que se mstalo\l no antigo colegio dos
cação de Lisboa, às vezes até Mesa do Desembargo do Paço,
Jesuítas(55), e as Santas Casas de Mis�ri:ór�ia, q�e emb�ra
arrastando-se sem solução por dezenas de anos. A segurança públi­ . -
ca era precária. Já vimos os recursos e adaptaçõts a que a poucas, constituem a �ais bela e quase 1;1m?a mst�tmça� social
de certo vulto da colonia. Das obras publicas, vimos Já uma
administração teve de recorrer para suprir_ sua incapacidade neste
amostra nestes miseráveis caminhos e mais vias de comunicação.
terreno da ordem legal, delegando poderes que darão nestes
E afora isto, legou-nos a colônia pouquíssimas obras dignas de
quistos de mandonismo que se perpetuarão pelo Império a dentro,
se não a República, e tomando tão difícil em muitos casos a menção; algumas fortalezas medíocres _e o ag_ueduto da Carioca,
no Rio de Janeiro, quase esgotam a lista(56).
ação legal e política da autoridade. Mas mesmo com esta adapta­
ção forçada, não se conseguiu fazer predominar a ordem; a O fomento da produção estava inteiramente entregue à boa
insegurança foi sempre a regra, não só nestes sertões despoliciados vontade de um ou outro administrador mais esforçado, e nunca
que constituem a maior parte da colônia, mas nos próprios grandes passou de pequenas e limitadas providências(5�). A lista poderia
_
e maiores centros, à sombra das principais autoridades. Se o ser alongada, mas inutilmente, neste m�sm? .?iaJ?asao: a �n�sn:a
banditismo e o crime pem1anente não assolaram a colônia exces­ falta de esforço construtivo, a mesma mef1ciencia e negligencia
sivamente, isto se deveu muito mais à índole da população, e se encontrará por toda parte. Um exemplo bastaria para carac­
não às providências de uma administração inexistente na maior terizar a administração colonial: a mineração. Durante quase
parte do território da colônia(52). um século, a exploração do ouro e dos diamantes constituiu �
maior riqueza da monarquia, a base em que as�ento� a prospe _n­
As finanças não estão em melhor postura; alguma coisa, e dade e até mesmo a existência do trono portugues. Pois nem assim
bastante ilustrativa, já foi dita acima com respeito à arrecadação ela mereceu mais que a consideração de um bem tributável,
das rendas públicas. O manejo delas não é de melhor qualidade. uma fonte de renda que se tratava de explorar ao máximo.
Nunca se viveu, em todas as capitanias, cidades e vilas de cujas Afora isto nada se fez, e deixou-se toda a matéria ao abandono.
finanças temos notícias, senão em regime permanente de deficit. A incapadidade da administração colon�al; a �egligência e_ i:1ércia
E um deficit "desorganizado", se podemos sem pleonasmo acres­ que demonstrou diante da imensa dissipaçao e destrmçao de
centar este qualificativo para caracterizar o sistema financeiro riqueza natural que se praticava nas minas, é um atestado que
da colônia, onde a falta de rendimentos para cobrir as despesas dispensa quaisquer outros comentários.
se resolvia sumariamente com o calote, não se pagando, nem . . _
Se no terreno da eficiência é este o retrato da admmistraçao
com boas intenções, os credores que não fossem protegidos das colonial, não é ele mais avantajado no da moralidade., De alt_o
autoridades. Nem o soldo das tropas se satisfazia regularmente, a baixo da éscala administrativa, com raras exceções, e a mais
e o espetáculo de soldados mendigando pelas ruas era comum. grosseira imoralidade e corrupção que d�n:ina desbragada1_nente.
Se nas suas funções essenciais a administração era isto, nas _
Poder-se-ia repetir aqui, sem nenhuma m1ust1ça, o conceito do
outras é pior. A instrução pública estava reduzida a umas poucas Soldado Prático: "Na índia não há cousa sã: tudo está podre
aulas de primeiras letras, latim e grego, esparsas pelos principais e afistulado, e muito perto de herpes ... " Os mais honestos e
centros, e ao parco ensino ministrado nas maiores cidades pelas
ordens religiosas ( 53). Os serviços de higiene e saúde pública se
( 54) Para a Bahia: Vilhena, Recopilação; para o !Tio de Janeiro, ·
constatam pelo estado das principais cidades, Bahia e Rio de sobretudo Oliveira Lima D. João VI no Brasil. Inscrevia-se no ativo ela
administração a introdução da vacina nos primeiros anos do séc. XI�.
( 52) Sobre a justiça e segurança na colônia, veja-se a crítica de Saint­ ( 55) Sobre este hos ital: Pedro Cúrio de Carvalho, H ist6ríco da hospi­
-Hílaire, que resume admiravelmente o assunto: Voyage aux provinces de talização militar no Brasi f.
Rio de Janeiro..., I, 364 e segs. (56) Há ainda os edifícios públicos, poucos além ?ªs ig!ejas. O v�lor
( 53) Sobre o ensino da Bahia, consulte-se Vilhena, Recopilação, Carta dessas tem sido consideravelmente exagerado. Algumas tem, nao ha, duvida,
,
VIII, que escreve com a autoridade própria de professor régio que era. valor artístico; mas nenhuma a grandeza ou suntuosidade que se lhes quer
Para o Rio de Janeiro, vejam-se as interessantes considerações duma repre­ emprestar. Ao lado dos monu�entos religiosos �as col_ônias hispano-ame­
sentação. dos professores régios em 1787, e publicada na Correspondência ricanas, México e Peru em particular, fazem med10cre figura.
de várias autoridades, 215. - Um résumo sumário, mas bem feito, da (57) Lembremos aqui a administração, única sob este aspecto, do
instrução colonial, é o trabalho de Moreira de Azevedo, Instrução nos Marquês do Lavradio no Rio de Janeiro. Também a de Lôbo de Almada na
tempos coloniais. Capitania do Rio Negro.
334 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contemporâneo 33!>
dignos delegados da administração régia são àqueles que não raramente foram além dos proveitGs imediatos que sob a forma
embolsam sumariamente os bens públicos, ou não usam dos cargos de tributos podia auferir da colônia. Um governador do Rio .
para especulações privadas; porque de diligência e bom cumpri­ Grande do Sul aliás um dos mais notáveis, Silva Gama, resumia
mento dos deveres, nem se pode cogitar. Aliás o pr6prio sistema em 1805 este pensamento numa confissão crua e nua: "Nada me
vigente de negociar os cargos públicos abria naturalmente portas interessa com mais fervor, escrevia ele ao governo do Reino do
largas à corrupção. Eles eram obtidos e vendidos como a mais que a fiscalização da Real Fazenda. Diminuir as sti:as despesas
vulgar mercadoria. Mas isto ainda é o de menos, porque estava nos o quanto é possível, fazer arrecadar ansiosamente tudo _que possa
métodos aceitos e reconhecidos. O que fazia Vieira, já século pertencer-lhe sem dano dos vassalos, e esquadrinhar novos recur­
e meio antes, conjugar no Brasil o verbo "rapio" ( no sermão do sos para aumentá-la, são os objetivos do meu maior desvefo"(59).
Bom Ladrão) em todos os modos, tempos e pessoas, era esta Um obje�ivo fiscal, nad� mais que isto, é o que anima a met:rópole
_
geral e universal prática, que já passara para a essência da na colomzaçao do Brasil. Raros são os atos da administração ou
administração colonial, do peculato, do suborno e de todas as os administradores que fazem exceção à regra. Pombal, cujo
demais formas de corrupção administ-.!tiva. Se fo� n '3 alinhar aqui governo é o único talvez, depois do período lieróico da história
testemunhos, seria um não acabar :,unca. E mesr .o fazendo neles portuguesa, que teve vistas largas, Pombal mesmo não conseguiu
o desconto da maledicência, a adm:.nistração :1ãr: sairia mais rea­ desvencilhar-se inteiramente do que estava no fundo da cons­
bilitada: isto porque, salvo er.1 discursos la· dai:órios e de ordem ciência nacional, ou antes da política da monarquia. O ouro e
pessoal ( que pela sua freqü 1ncia já não co·.1stituem nenhum bom
1
os diamantes, então, fizeram perder o resto da cabeça e bom-senso
sintoma), não se encon! ra nos depoimentos contemporâneos q�e sobravam à metrópole. Com uma ânsia sem paralelo, ela se
nen�um conceito, já não d�go elogioso, mas de tolerância e justi­ atua sobre o metal e as pedras como um cão esfaimado sobre o
_ _ osso que aflora na terra cavada. Só que não tinha sido ela quem
ficativa para com a administração. Parta de onde partir a crítica
ou observação, dos simples cidadãos nascidos na colônia ou dos o escavara ... Durante um século quase, não haverá outra
r�!nóis, <:°mo dos mesmos delegados do poder, a opinião é inva­ preocupação séria e de conseqüência que a cobrança dos
navel e igualmente severa. Acrescente-se a isto o que referem os direitos régios, o quinto; a história administrativa dó Brasil se
viajantes estrangeiros que nos visitaram em princípios do século contará em função dela.
passado, quase todos eles da maior consciência e honestidade e Assente numa tal base, a administração colonial não podia
sem motivo especial algum para não dizerem a verdade e ter-se-á s:r outra ;oisa que foi. Negl�gencia-se tudo que não seja percep­
_
uma coleção de dados tais que, a não ser que se conteste a çao de tributos; e a ganancia da coroa, tão crua e cinicamente
afirma�a, a mercantilização brutal dos objetivos da colonização,
J?rópria hipótese fundamental de toda pesquisa histórica e que contamma�á todo mundo. Será o arrojo então geral para o lucro,
e a "possibilidade de reconstruir o passado", levam com segurança
absoluta ao que ficou dito acima. para as migalhas 9ue sobravam do banquete real. O construtivo
da administração e relegado para um segundo plano obscuro em
Tem uma larga responsabilidade em tudo isto, afora o vício
que só idealistas deslocados debateram em vão.
que é g�ral na ad?1_inistraç�o portuguesa_ desde o tempo longínquo
das índias, o espmto particular que amma o governo metropoli­ Tudo isto se refere, em particular, à administração civil. A
tano no gerir a sua colônia. Se se justifica o conceito do autor eclesiástica, nada ou quase nada lhe fica a dever. Admitamos
anônimo do Roteiro do Maranhão que "as colônias são estabe­ contudo, de início, uma restrição que é de justiça salientar. Se
lecidas em utilidade da metrópole" ou daquele outro contem­ não muito pouco ao nível moral, pelo menos no da capacidade,
o clero da colônia é nitidamente superior ao funcionalismo civil,
porâneo para quem "seu efeito primário e comum é certamente
o de enriquecer a metrópole e aumentar-lhe o poder"(58) - como aliás a qualquer outra categoria particular da população
confissões em que há ao menos franqueza em matéria onde a colonial. Não seria por simples coincidência que boa parte dos
hipocrisi� tem hoje assen�o inconteste - Portugal no entanto indivíduos, de formação intelectual acima do comum extrema­
mente bai�� com que t�m�� contacto os viajantes estrangeiros
sempre mterpretou mesqumhamente este objetivo primordial e
que nos v1S1taram em prmc1pios do século passado, seja de ecle-
latente em todas as colonizações de caráter oficial. Suas vistas
( 59) Does. relativos à história da capitania de São Pedro do Rio
( 58) Roteiro, 102; e Rodrigues Barata, Memória da Capitania de Grande do Sul, 285.
Goiás, 337.
Formação do Brasil Contempordneo 337
336 Caio Prado Júnior
siásticos. Em Goiás, Saint�Hilaire chega a afirma r que as únicas os Superiores dos Carmeiitas e àos Capuchos( 66). Mas não é
pesso as com "alguns conhecimentos" são os padres(60). Também de um bispo, Frei Antônio do Destêrro, do Rio de Janeír�, e
não será tida co mo fruto do acaso a circunstância da tamanha em correspon dência oficial ao Secretário d: Estado, o segun�te
proporção de membros do clero aparecerem entre aqueles que texto tão elucida tivo da compreensão que tmha o clero colomal
se destacaram nas letras e ciências da colônia ; e de terem saíram de suas funções sacerdotais? "Como prêmio e remunera� ã� d o
dele os expoentes de seus principais ramos(61). Aliás já referi no · traba lho, escreve ele, que estimula fortemente a todos, pnnc1pal­
capítulo anterior a razão por que o clero se tomou a carreira mente -neste Brasil onde se cuida mais no interesse do que na
intelectual por excelência na colônia: é a única que a bre as -portas boa fama e glória do nome, me parec_ia mais preciso e just? que
a todos sem distinção de categoria. Refugia r-se-ão nele todos o u sua Majestade remunerasse enefechva�en�e a este� p:i-rocos
quase todos a quem a inteligência faz cócegas. (aqueles que tivessem servido com os 1? d1os) com 1gr�1as . de
Mas noutro terreno, no seu teor moral médio , a massa do .
Minas dan do a cada um tantos anos de p arocos n as ditas 1gre1as,
clero não se destaca muito acima de seus colegas da ad ministração po� s;rem pingues, quantos tiverem servido nas freguesias dos
leiga. A mercantilização das funções sacerdotais tomara-se pela índios"( 67). Poderiam ser alongados estes testemunhos, encon­
época em que nos achamos um fato consumado . Citei já a obser­ tradiços nos documentos da época, e que se não abundam ta_nto
vação de uma autoridade eclesiástica, que reconhece ter-se tomad o como os relativos à administração leiga, não são menos precisos
a batina um simples "modo de vida ', um eIU?reg o, parecendo ou convincentes. Mas bastará para supri-los todos, o que Saint­
a liás perfeitamente conformado com o fato(62). Que se podia -Hilaire católica e crente convicto, deplorando-o embora e pr o­
esperar daí? A geral e persistente grita dos povos contra os curan d� consolar o leitor cristão de tantos golpes vibrados à sua
tributos eclesiásticos é aliás um sintoma bem sensível do caminho sensibilidade, descreve com minúcias em seu longo capítulo dedi­
que tomara o clero colonial. Baltasar da Silva Lisboa, alto fun­ cado ao clero brasileiro(68).
cionário da administração, expondo ao Vice-Rei os assuntos de Nestas condições, não é de esperar do clero colonial, animado
suas atribuições, assim rematava as considerações que faz sobre de tal espírito, grande diligência no cumprime1_1to dos seus dever�s.
o clero : "Eles só querem dinheiro, e não se embaraçam que E de fato, é o que se verifica. E_ l� ex� rcerá ahvam�nte_ sua funçao
tenham bom título"(63). Noutro ofício do ano seguinte repete de satisfazer às necessidades espmtua1s da populaçao la onde pode
conceito semelhante(64). Pa ra se ter uma idéia do que ia pelos ser e é bem remunerado por ela: nas paróquias "pingues" a que se
conventos do Brasil em matéria de costumes e corrupção, leia-se refere O bispo acima citaao; nas capelas de engenhos abastados. _O
a longa expo sição que a respeito faz o Vice-Rei Luís de Vascon­ resto da população fica ao desamparo . Para ela, os padres _ rezarao
celos ao Secretário de Estado, e que repete resumidamente no no máximo as missas e ministrarão a comunhão da desobnga que
relatório com que entrega o governo ao sucessor que o vinha constitui o melhor de seus rendimentos. O resto do tempo, ocupar­
substituir(65); se se desejar um depoimento ainda mais autorizado -se-ão em afazeres bem distanciados de suas obrigações: muitos são
e insu�peito, veja-se o que dizem de seus conventos respectivos fazendeiros: era eclesiástico o melhor farmacêutico de São João dei­
-Rei, e preparava e vendia ele próprio suas drogas; um outro sacer­
dote ven dia tecidos no balcão de sua loja ... (69).
(60) Voyage aux sources, I, 347.
(�l) José Mariano da Conceição Veloso, nas c1encias naturais; José
Joaqmm da Cunha Azeredo Coutinho nas ciências econômicas; José de
Sousa Azevedo Pizarro e Gaspar da Madre de Deus, na historiografia; (66) Correspondência de váris autoridades, 168 e 285.
José Maurício Nunes Garcia, na música. E isto para não falar senão dos (67) Correspondência do bispo do Rio de Janeiro (1754-1800), 42. O
contemporâneos do momento que nos ocupa. Note-se ainda que o gênero grifo é meu. . . .
literário único ell) que a colônia produziu alguma coisa de mais destaque (68) Voyage aux provinces de Ri? de Janeiro,_ I, cap. VIII. Ap�sar
, acrescenta Samt­
foi a oratória sacra. A nossa poesia não pode ter a pretensão de ultrapassar de suas afirmações, que constituem o mm � veemente _h!'el?
o consumo interno e da erudição literária. -Hilaire que neste assunto p0<lerão acusa-lo de _re�1cencias, mas_ nunca �e
(62) Frei Antônio da Vitória, superior dos Capuchos do Rio de Ja­ exageros. Em outras muitas passagens de seus diários, o naturah�ta fra��es
neiro, Correspondência de várias autoridades, 291. abunda em observações sobre os padres e seus costumes no Brasil. Catohco
(63) Carta de 20 de outubro de 1787. Correspondência de várias fervoroso, o assunto lhe despertava naturalmente a atenção. O maior e
autoridades, 226. único elogio que lhes faz, em conjunto, é relativamente �o cl�ro da comarca
(64) Loc. cít., 228. de Minas Novas, onde afirma parecer-lhe haver menos simonia que no resto
(65) Negócios eclesiásticos, e Ofício, 33. da capitania. Id. II, 256.
(69) Saint-Hilaire, Voyage aux sources ..., I, 132.
338 Caio Prado Júnior Formaf,ãO do Brasil Contempordneo 339
E se assim cumpriam, ou deixavam àe cumprir seus deveres
fundamentais, que dizer dos ele assistência e amparo social que
a tradição, como seus estatutos e a divisão estabelecida das
funções públicas lhes impunham? Algumas Ordens, aiguns de
seus membros pelo menos, ocupavam-se aincla com a catequese
dos índios, e citei em capítulos anteriores alguns destes raríssimos Vida Social e Política
exemplos. Em certos conventos ministravam-se educação e ensino;
mas só nas maiores capitais, e para grupos reduzidos da população.
Algumas irmandades leigas dedicavam-se aos enfermos, expostos Temos os elementos agora para concluirmos sobre a vida
e indigentes, como os sempre lembrados com justiça Irmãos da social da colônia conclusões que nos darão o tom geral desta
Misericórdia. Há exemplo de dedicação e trabalho, e não quero vida e o aspecto de conjunto que apresenta a obra da colonização
subestimá-los; mas infelizmente exceções, casos raros num oceano portuguesa no Brasil. Observamos nos seus difere� tes_ aspect? s
de necessidades não atendidas e de que ninguém se preocupava. esse aglomerado heterogêneo de raças que a colomzaçao reumu
A grande maioria do clero, secular e regular, desde os mais altos aqui ao acaso, sem outro objeti�o que realizar uma . vasta �ml:'resa
dignatários até os mais modestos coaajutores, deixava-se ficar _
comercial, e para _que contnbmram conforme as circunsta�cias e
numa indiferença completa de tais assuntos, usufruindo placida­ as exigências daquela empresa, brancos europeus, negros af�1canos,
mente suas côngruas e demais rendimentos, ou suprindo a defi­ indígenas do contine?te. Três raças e culturas �argame�te d1s�ares,
ciência deles com atividades e negócios privados. _
de que duas, semi-barbaras em seu estado nativo,_e cuias aptidoes
Que parcela de responsabilidade caberá disto, diretamente, à culturais originárias ainda se sufocara�, fomecerao o con�n&en�e
política metropolitana? Com a expulsão dos jesuítas, desfalcara-se maior; raças arrebanhadas pela força e mcorporadas pela v10lencia
a colônia do quase único elemento que promovera em larga na colonização, sem que para isso se lhes dispensasse o menor pre­
escala uma atividade social apreciável. Mas os efeitos nocivos da paro e educação para o convívio em uma sociedade tão estranha
medida de Pombal, neste terreno de que nos ocupamos, não para elas; cuja escola única foi quase sempre o eito e a senzala.
devem ser exagerados. Já passara, fazia muito, o tempo dos Numa população assim constituída originariam�nte e �m que
Nóbregas e Anchietas, e a Companhia de Jesus decaíra conside­ tal processo da formação se perpetuava e se mantinha amda no
ravelmente. O que seria no futuro, é difícil se não impossível momento que nos ocupa, o primeiro traço que é de esperar, e
assentar com segurança. Mas avaliar a perda pela bitola daqueles que de fato não falhará à expectativa, é a ausência de nexo moral.
primeiros missionários, seria anacronismo lamentável. Raças e indivíduos mal se unem, não se fundem num todo coeso:
A ineficiência do clero no momento que nos ocupa tem justapõe-se antes uns aos outros; constituem-se unidades e grupos
causas mais profundas que esta ou aquela medida singular da incoerentes que apenas coexistem e se tocam. Os mais fortes
política metropolitana ou da própria Igreja de Roma. Umas de laços que lhes mantêm a integridade social não serão senão os
caráter geral, e que atingem o conjunto da estrutura eclesiástica primários e mais rudimentares vínculos humanos, os res1: ltantes
universal nos tempos que precedem a nossa época. Não me cabe direta e imediatamente das relações de trabalho e produçao: em
aqui abordá-las. Outras locais, próprias da colônia. E estas se particular, a subordinação do escravo ou do semi-escravo ao seu
resumem na resposta a ser dada a uma questão fundamental: senhor. Muito poucos elementos novos se incorporarão a este
estava a sociedade colonial apta a produzir um clero capaz, de cimento original da sociedade brasileira, cuja trama ficará assim
elevado teor moral e na altura de suas funções? Havia nela reduzida quase exclusivamente aos tênues e sumários laços que
ambiente social e moral para isto, e para a manutenção e floresci­ resultam do trabalho servil. É neste sentido que não faltaria razão
mento de um clero daquele naipe? As conclusões gerais sobre a a Alberto Tôrres, quando num aparente paradoxo que esca.11dali­
sociedade colonial em princípios do século passado, e que me zaria seus contemporâneos, ele levanta a voz para fazer a apologia,
esforçarei por esboçar no próximo caoítulo, fornecerão talvez não como escravocrata, mas pela primeira vez como sociólogo,
alguns elementos para a resposta pedida. do regime servil ( 1).

( 1) "A escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização
que este país jamais possuiu . . . Social e economicamente, a · escravidão
340 Caio Prado /tÍnior Formação do Brasil Contempordneo 341
estado primitivo. As relações servis são e permanecerão relações
Para constatar o a�erto da observação, basta-nos comparar os puramente materiais de trabalho e produção, _ e nada ou quase
setores da vida colonial em que respectivamente domina uma e
outra forma de trabalho, escravo ou livre. À organização do nada mais acrescentarão ao complexo cultural da colônia.
primeiro, à sua sólida e acabada estruturação e coesão, corres­ A outra função do escravo, ou antes da mulher escrava,
ponderá a dipersão e incoerência do outro. Vimos estes dois instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus senhores
aspectos da sociedade colonial: de um lado o escravo ligado ao e dominadores, não tem um feito menos elementar. Não ultra­
seu senhor, e integrados ambos nesta célula orgânica que é o passará também o nível primário e puramente animal do contacto
"clã" patriarcal de que aquele laço forma a textura principal; sexual, não se aproximando senão muito remotámente da esfera
doutro, o setor imenso e inorgânico de populações desenraizadas, propriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve
flutuando sem base em tomo da sociedade colonial organizada; de todo um complexo de emoções e sentimentos tão amplos que
chegando apenas, em parcelas pequenas a se agregar a ela, e chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele ato
a�quirindo assim os únicos visos de organização que apresentam. que afinal lhe deu origem ( 2).
Fica-se em suma na tentação de generalizar ainda mais o conceito Em alguns outros setores, a escravidão foi mais fecunda.
de Alberto Tôrres, e não ver na servidão senão o único elemento Destaquemos a "figura boa da ama negra" - a expressão é de
real e sólido de organização que a colônia possui. Gilberto Freyre, - que cerca o berço da criança brasileira de
Mas seja como for, a análise da sociedade colonial obriga uma atmosfera de bondade e ternura que não é fator de menor
a um desdobramento de pesquisa., Qualquer generalização que importância nesta florescência de sentimentalismo, tão caracte­
abranja as duas situações tão diversas que nela se encontram rística da índole brasileira, e que se de um lado amolece o indi­
correrá o risco de erros consideráveis de apreciação. Para com­ víduo e o desampara nos embates da vida - não padece dúvida
preendermos, no seu conjunto, O§> laços que 1he mantêm a coesão que boa parte da deficiente educação brasileira tem aí sua origem,
e de que se forma a sua trama, temos que vê-la como de fato - doutro contribui para quebrar a rudeza e brutalidade próprias
ela se constitui: de um núcleo central organizado. cujo elemento de uma sociedade nascente. Mas neste, como em muitos casos
principal é a escravidão; e envolvendo este núcleo, ou dispondo-se semelhantes, é preciso distinguir entre o papel de escravo e do
nos largos vácuos que nele se abrem, sofrendo-lhe mesmo, em negro, o que Gilberto Freyre acentuou com tanto acerto. A
muitos casos, a influência da proximidade, uma nebulosa social distinção é difícil: ambas as figuras confundem-se no mesmo indi­
incoerente e desconexa. víduo, e a contribuição do segundo se realiza quase sempre através
Não preciso acentuar mais uma vez o papel que a escravidão do primeiro. Mas não é impossível, e de uma forma geral, o que
tem naquele primeiro setor, o orgânico da sociedade colonial. se conclui é que se o negro traz algo de positivo, isto se anulou
Ma� _devemos acrescentar aqui o caráter primário das relações na maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais. O
soc1a1s que dela resultam, e daquilo que com ela se constituiu. escravo enche o cenário, e permitiu ao negro apenas que apontasse
Primário no sentido em que não se destacam do terreno puramente em raras oportunidades. Já notei acima que outro teria sido o
material em que se formam; ausência quase completa de superes­ papel do africano na formação cultural da colônia se lhe tivessem
t�tura, dir-se-ia para empregar uma expressão que já se vulga­ permitido se não o pleno, ao menos um mínimo de oportunidade
rizou. Realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá para o desenvolvimento de suas aptidões naturais. Mas a escra­
na sociedade colonial, fator trabalho e fator sexual, não determi­ vidão, como se praticou na colônia, o esterilizou, e ao mesmo
nará senão relações elementares e muito simples. O trabalho tempo que lhe amputava a maior parte . de suas qualidades,
escravo nunca irá além do seu ponto de partida: o esforço físico aguçou nele o que era portador de elementos corruptores ou
constrangido; não educará o indivíduo, não o preparará para que se tornaram tal por efeito dela mesma. E o baixo nível de
um plano de vida humana mais elevado. Não lhes acrescentará sua cultura, em oposição ao da raça dominante, impediu-lhe de
elementos morais; e pelo contrário, degradá-lo-á, eliminando mesmo
nele o conteúdo cultural que porventura tivesse trazido· do seu
(2) "Le miracle de l'amour Tiumain, c'est que, sur un instínct tres
deu-nos, por longos anos, todo o esforço de toda a ordem que então aimple, le désir, il construit les édifices de sentiments les plus complexes
possuímos, e fundou toda a produção material que ainda lemos." O et les plus délicats." ( André Maurois.) t este milagre que o amor da
Problema Nacional, 11. senzala não realizou e não podia realizar no Brasil-colônia.
342 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 343
se afi ar com vigor e sobrepor-se à sua miserável condição, áO daquilo gue sai do círculo estreito desta forma particular de
contráno do que em tantas instâncias ocorreu no mundo antigo.
l"1?
atividade produtora.
Em suma, a escravidão e as relações que dela derivam, se A luz desta vista d'olhos preliminar por sobre a sociedade
bem que constituam a base do único setor organizado da sociedade colonial, toma-se possível compreender a maior parte dos seus
colonial, e tivesse por isso permitido a esta manter-se e se desen­ traços e caracteres essenciais. Porque ela se soma e sumaria
volver, não ultrapassam contudo um plano i:nuito inferior, e não na observação geral feita de início: a falta de nexo moral que
frutificam numa superestrutura ampla e complexa. Serviram apenas define a vida brasileira em princípios do século passado, a po­
para momentaneamente conservar o nexo social da colônia. No breza de seus vínculos sociais. Tomo aquela expressão "nexo
o_utro _setor dela, o que se mantém à margem da escravidão, a moral", no seu sentido amplo de conjunto de forças de aglutinação,
s1tuaçao se apresenta_, em cert� sentido, pior. A �norganização é complexo de relações humanas que mantêm ligados e unidos os
, indivíduos de uma sociedade .e os fundem num todo coeso e
ai a regra. O que aliás sua ongem faz prever; vimo-lo anterior­
�1ente: aquela parte da fopulação que o constitui e que vegeta compacto. A sociedade colonial se definirá antes pela desagregação,
à margem da vida colonia , não é senão um derivado da escravidão, pelas forças dispersivas; mas elas são em nosso caso as da inércia;
ou diretamente, ou substituindo-a lá onde um sistema organizado e esta inércia, embora infecunda, explic'.l suficientemente a relativa
de vida econômica e social ,não pôde constituir-se ou se manter. estabilidade da estrutura colonial: para contrariá-la e manter a
Para este setor não se pode nem ao menos falar em "estrutura" precária integridade do conjunto, bastaram os tênues laços mate­
social, porque é a instabilidade e incoerência que a caracterizam, riais primários, econômicos e sexuais, ainda não destacados de
tendendo em todos os casos para estas formas extremas de desa­ seu plano original e mais inferior, que se estabelecem como resul­
gregação social, tão salientes e características da vida brasileira tado imediato da a;iroximação de indivíduos, raças, grupos dís­
e que notei em outro capítulo: a vadiagem e a caboclização(3)'. pares, e não vão alem deste contacto elementar. É fundada nisto,
e somente nisto, que a sociedade brasileira se manteve, e a obra
É isto, em resumo, que o observador encontrará de essencial da colonização pôde progredir.
na sociedade da colônia: de um lado uma organização estéril no Poderíamos acrescentar a pressão exterior que o poder, a
que diz respeito a relações socia:is de nível superior; doutro,· um autoridade e ação soberana da metrópole exerceram sobre a
estado, ou antes um processo de desagregação mais ou menos sociedade colonial, contribuindo assim para congregá-la. Não é
adiantado, conforme o caso, resultante ou reflexo do primeiro, e de desprezar este fator, que apesar do raio limitado de sua exten­
que se alastra progressivamente. E note-se, antes de seguirmos são e penetração - já o vimos ao falar da administração pública
adiante, e repisando um assunto já ventilado, que tais aspectos na colônia, -· contou por muito na subsistência e manutenção da
correspondem grosseiramente, no terreno econômico aos dois estrutura social brasileira. Os acontecimentos posteriores, que
setores que aí fomos �nco�o:ar: a grande la�oura e a' mineração precedem imediatamente a Independência e a seguem, estão aí
de �m lado? as dema�s �ti�1�ades que reum na catego1a getal para demonstrá-lo. O enfraquecimento daquele poder levou o
de economia de· subs1stencia , do outro. A observação e impor­ país, durante muito tempo, para a iminência da anarquia, que
tante porque vem confirmar mais uma vez o que já foi dito aliás muitas vezes, e em vários setores, embora restritos, se tomou
sobre a caracterização da economia brasileira, votada essencial­ efetiva; e só se conteve com a constituição de um Estado que,
mente à produção de alguns gêneros exportáveis; este seu caráter embora nacional de nome e formação, reproduziu quase integral­
unilateral se revela aqui sensivelmente, mostrando a precariedade mente a monarquia portuguesa que viera substituir; que não
brotou do íntimo da sociedade brasileira, incapaz de tal criação,
( 3) Há exceções a assinalar, exceções em que vemos se constituírem mas lhe é imposta do exterior, continuando a exercer sobre ela
neste setor da vida colonial formas sociais mais aperfeiçoadas. Mas são o mesmo tipo de pressão que o daquela ( 4).
raras_, como a mais interessante e conhecida delas; o "mutirão", que ainda
subsiste em certas partes do Brasil, e que consiste no trabalho em comum
e auxílio mútuo na lavoura. Saint-Hilaire teve ocasião de observar o mutirão ( 4) Não se caracterizará isto unicamente pelo fato da perpetuação da
numa região do hoje Triângulo Mineiro. Voyage aux sources .. . , II, 269. organização monárquica no Estado nacional brasileiro, investida aliás na
Parece contudo que. s� trata antes �? uma sobrevivência indígena, e o 11H·,mn dinastia; o gue por si já é uma prova do artificialismo da constituiçáo
.
exemplo de Samt-H1laire refere-se alias a populações com alta dose de •111c adotamos. Nüo havia no Brasil, afora o hábito do passado, base
sangue mestiço. Não se trataria então de uma criação, mas de um traço · al�uma para o trono. Mas não é somente nisto que se assinala a persistência
cultural que sobrou da vida comunitária do índio. do regime político anterior, embora sob vestimenta nacional; é o pro-
344 Caio Prado Júnior Forma,;:ão do Brasil ContemporâneQ 34S
ociosidade que para os senhores resulta do trabalho entregue intei­
Há �inda que levar em conta uma certa uniformidade de ramente a escravos. É esta uma atitude psicológica por d�mais
" .
ati�des , em�reguemos es�a expressão ampla, que identifica 0 con hecida para nela nos demorarm os. Um e outro efeito da
coni unto colomal e suas varias partes. Un iformidade de senti­ escravidão se somarão para fazer ou evitar quaisquer atividades.
mentos, ?� usos, de crenças, de língua. De cultura, numa palavra. A indolência, o ócio dos casos extremos, mas sempre uma ati­
El : serv1�1a, e de f�to serviu de base moral e psicológica ara vidade retardada, uma geral moleza e um mínimo de dispêndio
a ,�rmaç� º do Brasil como nação, e lhe proporcionou a uniJade de energia resultarão daí para o conjunto da sociedade colonial.
, _
nacronal !ª rea�zada na geografia e na tradição. Mas neste sentido Tudo repousará exclusivamente no trabalho força.do e não co n­
ela se afirmara post:riormente, em oposição à metrópole e mais sentido imposto pela servidão; fora disto, a atividade colonial é
,
tar�e as outras naçoes estrangeiras. É antes um fardo político, quase nula. Onde falta a obrigação sancionada pelo açoite, o
e na� tra:, no moi:nento e no assunto particular que nos ocupa, tronco e demais instrumentos inventados para dobrar a von tade
_
cont�r�mçao_ apre,:rável para trama da sociedade colonial. Aquela humana, ela desaparece. Os, libertos que se fazem _por via de
oposr�ao_ amda nao representa papel social, mas começa apenas regra vadios, apesar da escola em que se formaram, e disto uma
o polrtrco. das provas.
<?aracterizemos agora, mais de perto, a· vida colonial e as Isto, para as atividades de natureza física, é regra pratica­
rclaçoes que �ela vamos encontrar. Tod� sociedade organizada mente universal: nenhum homem livre se rebaixa a empregar
s � f�nda p1_ ec1p�amente na regulamentaçao, não importa a com­ os músculos no trabalho. É de Luccock uma anedota bem ilus­
p.exrdade postenor 9u� dela resultará, dos dois instintos primários trativa do caso: tendo ido buscar um serralheiro de cujos serviços
do I-!omem: o economrco e o sexual. Isto não vai aqui como afir­ precisava, este o fez esperar longamente na expectativa de um
m�çao de princípio, incabível· em nosso assunto mas servirá negro de serviço para transportar sua ferramenta de trabalho,
umcamente de fio condutor à análise que vamos e�preender das pois carregá-la pelas ruas da cidade não era ocupação digna de
relações fundamentais que se estabelecem no seio da sociedade um homem livre ( 5). As outras funções se praticam sempre com
colonial. Na primeira categoria, o elemento que definirá, e na um mínimo de energia. Uma lentidão e economia de esforços
bas� do qua! se formarão aquelas relaçF,es, é o trabalho, tomado que faziam a cada passo o desespero dos enérgicos europeus
aqu� n� �entrdo amplo. e mais geral <le atividade que proporciona que nos visitavam.
ao md1v1duo seus meros de subsi<.t.êncía. Na outra O conteúdo
Somente num setor encontramos mais atividade: é no dos
ser;ão as relações que se estabelecem entre sexos opo�tos e as que
colonos recentes ainda não contaminados pelo exemplo do país;
dar resultam: as rel.ações de família, em suma.
destes reinóis que. vinham para cá "fazer a América", ávidos de
_R,elativamente ao. trabalho, já se viu acima alguma coisa que ganho, dispostos a tudo e educados numa escola de trabalho e
ser�rra par� caractenzar os laços que dele derivam. Assim o ambição muito diferente da dos brasileiros. Eles representam, com
eferto_ depnmente que. exerce sobre sua conceituação o regime os escravos, os únicos elementos verdadeiramente ativos da colônia.
servil. Ha outro de quase igual importância: o estímulo para a Num interessante ensaio sobre as causas da Independência, escrito
em 1823 e dedicado ao soberano português, Francisco Sierra y
longam�nto ?e· um situação política e institucional de conjunto, que s6 Mariscai analisa com muita clareza este abismo de concepção
se mo�1f1car _ � de uma forma substancial em período muito adiantado da e atitudes que separa brasileiros de portugueses imigrantes.
evolu �ao _nacional do p aís. E aquilo era tão bem sentido, que as revolu ções
Enquanto esses últimos, chegados ao Brasil de mãos abanando,
escreverá Mariscai, "não há nada a que se não sujeitem, e com
e ag itaçoe� da pnme1ra _ _ parte do Império tomam o caráter de reações
.
c�:itra o govem? do Rio de Janeiro", tal como fariam contra O de
L1.�bo�. O federalismo ,b�asileiro tem aí a sua essência; pelo menos o da economia e trabalho chegam a ter grandes cabedais", o brasileiro,
pn mc1ra Pª.rt� do r,�peno. - J;,- pobreza da vida social brasileira encontra nascido na abastança, "o orgulho se apodera dele, e este é sempre
na ,
const�.tmçao poht1�a do pa i s independente uma . confirmação flagrante. maior que os meios de o sustentar... não conhece o trabalho
� )a ª. cau sa das dificuldades e problemas de orgamzação e funcionamento
nem a economia ... e quando chega ao estado viril, já está pobre",
c
mst1tuc1o?al q ue �1_ �emos d� enfrentar, e que levaram até aquele esdrúxulo
� artif�cial Imperw const1tucwnal que tivemos. Compare-se isto para
1lustraç,10, com o que ocorreu nas colônias inglesas da América do' Norte
que, separando-se da metrópole, criaram um sistema não só original de
gov e�no, mas que_ foz época e lançou um marco saliente na evolu ção
,
poht1ca da Humanidade.
(5) Notes, 17.
Formação do Brasil Confemporcfoeo 347
346 Ceio Prado Júnior
porque, conclui com muita lógica o nosso autor, "não há cabedal Mas seja como for, o índio e com ele seus descendentes ma�
que chegue a quem gasta muito, e não ganha nada" ( 6). ou menos mestiçados, mas formados na sua escola,,e que co�s?­
Uma tal atitude da grande maioria, da quase totalidade da tuem parte tão apreciável d� pop ulação _ colo_nia�; tem por feiçao
colônia relativa ao trabalho, de generalizada que é, e mantida dominante, para todos os efeitos da colomzaçao, a falta completa
através do tempo, acabará naturalmente por_ se integrar na psico­ e absoluta de energia e ação" ( 8). E esta seria uma_ das princip�is
logia coletiva como um traço profundo e inerraigável do caráter razões por que as regiões onde eles formam contmgentes muito
brasileiro. A preguiça e o ócio, aqui n� Brasil, "até se pega grandes nunca fizeram mais que vegetar. O governaâoc do Pará,
como visgo", dirá Vilhena. Mas se a escravidão, nas suas várias D. Francisco de Sousa Coutinho, escrevia desalentado à metrópole
repercussões, é a responsável principal por isto, há outros fatures depois de três anos de governo: "O poderoso inimigo destes
de segundo plano que não deixam de ter o seu papel. O principal habitantes e a mais poderosa causa entre muitas outras de seu
deles é a contribui9ão do sangue indígena, considerável corno atraso é a preguiça deles" ( 9).
sabemos. A indolência do índio brasileiro tornou-se proverbial, . Ao influxo do sangue indígena como fator de indolência,
e de certo modo a observação é exata. Onde se erra é atribuindo-a ainda há que acrescentar esta causa geral_ que é o sistema ec�nô­
a não se sabe que "caracteres inatos" do selvagem. Na sua vida · mico da colônia, tão acanhado de oportunidades e de perspectivas
nativa, mesmo na civilizada quando se empenha em tarefas que tão mesquinhas. Não seria um tal ambiente propício a estimular
conhece, e sobretudo cujo alcance compreende, o selvagem brasi­ as energias e atividades dos indivíduos, uma escola muito favorável
leiro é tão ativo como os indivíduos de qualquer outra raça. Será de trabalho.
indolente, e só aí o colono interessado o enxergava e julgava, De tudo isto resultará para a colônia, em conjunto, um
quando metido num meio estranho, fundamentalmente diverso do tom geral de inércia. Paira 1;ªatmos��ra em 9ue a popu�ação
seu, onde é forçado a uma atividade metódica, sedentária e or­ colonial se move, ou antes descansa , um virus generalizado
ganizada segundo padrões que não compreende. Em que até os de preguiça, de mol�za que a to�os, c�m ra� a� exceçõ�s, atinge.
estímulos nada dizem a seus instintos: a ganância, a participação O aspecto do Brasil e de estagnaçao. , Sa1�t-�ilaire, d�pois de lon­
em bens, os prazeres que para ele não são nem bens nem prazeres. gas peregrinações e de uma pe�ane_nc1a Jª de muitos anos :m
Nada houve de mais ridículo nos sistemas de educação dos índios _
contácto íntimo com a vida do pais, nao esconderá sua admiraçao,
que isto de tentar levá-los por tais incentivos, modelados por e por isso elogiará calorosamente · os mora�ores de ltu e Sorocaba
figurinos europeus e estranhos a seus gostos ( 7). ,
( São Paulo), porque encontrou ai. . . um 1ogo de bola; no est�do
de espírito em qu� s� ac�ava, e t;ndo �� vista o 9ue presen�iara
até então, constituia isto Já uma prova de energia ( 10). Ate nos
( 6) Idéias gerais sobre a revolução do Brasil, 55. Esta diferença é seus prazeres e folguedos, a população �olon�af é apática ( �l).
de tal forma produto do meio, que os próprios filhos do português enrique­ A apatia, Paulo Prado esqueceu-se de a incluir ��tre os fat� res
cido, brasileiros de nascimento e educação, observa o mesmo Mariscai, da tristeza brasileira, que não vem somente da luxuria e da cobiça,
não seguem o exemplo dos pais, e "entrarão na ordem geral, he dizer, mas sobretudo de um:,i inatividade sistemática, que acaba se ::ipo-
cahem na pobreza."
( 7) Até um homem profundamente conhecedor das raças de sua terra
natal, o Pará, e muito simpático a elas, como José Veríssimo, não enxergou ( 8) José Veríssimo, Populações indígenas da Amazónia, 308. _
inteiramente esta situação paradoxal dos índios perante a civilização. A ( 9) Informações, 66.
indolência, a falta de ambição que se observam no índio não são senão ( 10) Voyage aux provinces de Saint-Paul ..., I, 378. . .
fruto de sua completa indiferença, quando não de hostilidade, relativamente ( 11) Seria muito interessante estudar o folclore brasileiro sob est.:,
a uma civilização que se lhe impôs, e cujo valor, com todos os atrativos aspecto em paralelo com o de outros países. Pelo que <;iualquer um já poderá
que tem para nós, é para ele nulo. Enxergar no indígena brasileiro, ou _
p or si observar a conclusão não oferece a menor duvida. Com pare-se um
em outras raças de cultura diferente da nossa, falhas de caráter onde não festejo pop ular' brasileiro com o de qualquer das populaçõ� s da Europ�,
há senão atitudes próprias de um inadaptado ou revoltado, é o vczo por exemplo: à apatia e tristeza daquele, corresponde o entusiasmo e alegna
sobretudo dos anglo-americanos. 1fas qual seria, perguntamos nós, a reação destes últimos. O próprio Carnaval, para quem o tiver observado com
de um destes enérgicos anglo-saxões a quem lhe pedisse um dia de trabalho atenção não escapa à regra. Afora as expansões de caráter acentuadamente
a ser pago com um jantar de piriio de açaí 011 de mandioca puba? Mutat.is orgíaco ou de cultos de crenças ancestrais que nos dias comuns levam o
mutandis, é a mesma coisa que se passa com o indígena. O único estímulo indivíd�o à polícia, nada mais �á neie. - Note-se ainda _q�e .º elemento
civilizado que o índio compreendeu foi a aguanlenle, que por isso a brasileiro mais ativo neste setor e o negro, que tem a trad1çao do trabalho
colonização empregou largamente. escravo.
348 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 349
clerando do indivíduo todo, tirando-lhe até a energia de rir e raro se eternizá, põrque o novo colono, mesmo estabilizado: aca­
folgar( 12). bará preferindo a facilidade de costumes que lhe proporcionam
Que dizer, nestas condições, do teor econômico da colônh? mulheres submissas de raças dominadas que encontra aqui, às
Não _pode deixar de ser, e não foi efetivamente, mais qu3 uma restrições que a família lhe trará. E quando não, já estará tão
lástima. Porque afora o trabalho constrangido e mal execub.�o habituado a tal vida que o freio da mulher e dos filhos não
do escravo, não se vai além do estritamente necessário para nJo atuará nele senão muito pouco( 14).
perecer à míngua. E isto explica suficientemente, a par das condi­ Lançadas nesta base não familiar, outras circunstâncias vêm
ções gerais da economia que já assinalei, e que são afinal a caus�1 reforçar a irregularidade dos costumes sexuais da colônia. A escra­

1
indireta de tudo isto que estamos vendo, o baixo, o ínfimo padrão vidão, a instabilidade e insegurança econômicas . .. ; tudo contri­
de vida da população colonial, a sua pobreza, sem excetuar mesmo buiria ara se opor à constituição da família, na sua expressão
as classes mais favorecidas. Do Brasil em conjunto, dirá Vilhena integra , em bases sólidas e estáveis. A formação brasileira, ao
que, apesar dos recursos naturais dele, é a "morada da pobreza." contrário do que se afirma correntemente, não se processou, salvo
E aos habitantes da Bahia, a segunda, se não a primeira cidade no caso limitado e como veremos, deficiente, das classes superiores
da colônia em riqueza, com exceção dos grandes comerciantes e da "casa-grande", num ambiente de família. Não é isto que ocorre
de alguns senhores de engenho e lavradores "aparatosos", que com a massa da população: nem com o colono recém-chegado,
aliás nada mais têm de seu que esta aparência de ricos, chamará . nem com o escravo, escusado acrescentá-lo; talvez ainda menos
de "congregação de pobres"( 13). com esta parte da população livre, econômica e socialmente ins­
Vejamos o segundo grupo de relações sociais .a que me referi tável que temos já visto sob outros aspectos, e à qual falta base
acima, as que derivam mediata ou imediatamente dos impulsos sólida em que assentar a constituição da família( 15).
sexuais dos indivíduos. Sobre os costumes do Brasil-colônia, neste Quanto à casa�grande, se é certo que o seu núcleo é a família,
particular, há uma documentação abundante que só faz o desâ­ ou antes, a família ao senhor, e só ele ( da pequena, da minúscula
nimo do pesquisador obrigado a escolher. O desregramento atinge minoria portanto, e isto se esquece freqüentemente); e se, neste
tais proporções e se dissemina de tal forma, qUe volta debaixo sentido, é um ambiente familiar que cerca o filho-rico da socie­
da pena de cada observador da vida colonial, por mais despreve­ dade colonial, exceção, no conjunto, quase única; há que abrir
nido que seja. A causa primeira e mais profunda de um tal estado larga margem para restrições se pelo conceito de família não
de coisas é com certeza, e já toquei incidentemente no assunto, entendemos apenas uma estrutura exterior, mas todo aquele com­
a forma pela qual se processou, na maior parte dos casos, a plexo de normas, de "atmosfera" mesmo, que concede à família,
emigração para o Brasil. Ela não se faz senão excepcionalmente nas sociedades da nossa civilização, o grande papel de formador
por grupos familiares constituídos, mas quase sempre por indi­ dos indivíduos e do seu caráter. Neste sentido, a casa-grande
víduos isolados que vêm tentar uma aventura, e que mesmo tendo ficou muito aquém de sua missão. O sistema de vida a que dá
família, deixam-na atrás à espera de uma situação mais definida lugar, a promiscuidade com escravos, e escravos do mais baixo
e segura do chefe que emigrou. Espera que se prolonga e não teor moral, as facilidades que proporciona às relações sexuais
irregulares e desbragadas, a indisciplina que nela reina, mal
( 12) Paulo Prado, Retrato do Brasil. A tristeza brasileira foi observada disfarçada por uma hipócrita submissão, puramente formal, ao
por Saint-Hilaire, que a opõe à alegria do campônio francês ( Voyage aux pai e chefe, tudo isto faz a casa-grande, antes uma escola de
sources, I, 124); e a ela se refere ainda em outras passagens de seus diários. vício e desregramento, apanhando a criança desde o berço, que
Em particular no que diz respeito às crianças, em que deplora a falta de formação moral( 16). A família perde aí inteiramente, ou quase,
de espontaneidade e contentamento, id., 1, 374. De tudo isso poderíamos
talvez excetuar o Rio Grande do Sul, de formação aliás tão diferente· do
resto do país. ( 14) Ainda hoje isto se verifica, e a cada passo topamos com imi­
( 13) Recopilação, 926 e 927. - A pabreza da papulação colonial é grantes casados na Europa e amancebados no Brasil.
testemunhada não só pelo depoimento de todos os observadores contem­ ( 15) ·11: talvez por isso que tanto se insiste no Brasil sobre a origem
porâneos, mas hoje ainda pelos escassos e miseráveis vestígios que nos familiar Esta orige� eleva e_ distingu� os in�i�í�uos, parque é p�óp�ia só
legou. Onde as constmções, os objetos, todo este aparelhamento que uma de umà- classe superior reduzida. Ser de familia entre nós, const1tma um
sociedade mesmo medíocre deixa sempre atrás de si? Nada ou quase distintivo de superioridade, de quase nobreza.
nada possuímos de uma época que não está ainda a século e meio de ( 16) Sobte_ este assunto, Vilhena nos forneçe uma síntese admirável
nós; e o que ficou é em regra um pobre testemunho. de observações às• quais não precisamos acrescentar nada. Recopilação, 138 e
350 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 351
l1s suas virtudes; e em vez de ser o que lhe concede razão moral tor e de classe que impedia a regularização de muitas situaçõé
básica de existência e que é de disciplinadora da vida sexual extramatrimoniais; preconceito tão forte_ que pode levar até a
dos indivíduos, torna-se pelo contrário campo aberto e amplo para desenlaces extremos, como este caso trágico de um ex-gov�mador
o mais desenfreado sexualismo. Advirta-se que não é no terreno de duas capitanias, Fernando Delgado de Castilho, que,. apaixona?º
dos sentimentos que me coloco aqui; não são as reações emotivas por uma mulher de condição Iiumilde, de quem tivera vános
e afetivas nas relações recíprocas de homem para mulher, ou de filhos, preferiu suicidar-se a levá-la, casada com ele, para o Reino,
pais para filhos que procuro negar, ou mesmo subestimar. Até de onde o chamavam(l9).
pelo contráriô, destas s6 se poderiam recriminar os excessos, der­ Como se vê, seriam freqüentes os casos da vida em com�m
ramando-se em condescendências e tolerâncias sem limite que extraconjugal que não se poderiam s6 por isso, e Pª!ª ? �fe.ito
não foram pouco responsáveis pela má educação que receberam que temos em vista, considerar como exemplos · de mdisciplina
as gerações coloniais ( 17). Mas não é por este lado somente que sexu'al. Aliás, de tão freqüentes que eram, acabam nem . se notando,
devemos analisar a família; o seu conteúdo é mais amplo que e a opinião pública os admitia sem o,menor constrangimento(20�.
o da simples esfera sentimental e afetiva. E se neste pecou a Mesmo contudo sem formar nosso jmzo sobre os costumes sexuais
família brasileira pelo excesso, nos demais falhou lamentavelmente. da colônia com esta irregularidade aparente e tão generalizada,
Reduzido assim, extensiva e intensivamente, o papel da família temos outros elementos seguros para nos fixar sobrç eles . "Os
na vida colonial, ficou aberta larga margem à indisciplina sexual. brasileiros" escreverá Hércules Florence em 1828, relatando a
Não podemos aqui limitar nossas observações ao fato da maior expedição Langsdorff que acompanhou na CJU�lidade de desen�ist�,
ou menor freqüência do casamento, pois este não s6 não é, por si "cujas amáveis qualidades são tão caractenshcas e?cont�m, mcli­
apenas, uma garantia de regularidade e disciplina sexuais, como nados como são aos prazeres, nas mulheres do pais facilidade de
esta regularidade, entendida em termos sociol6gicos, não é exclu­ costumes, e em geral não pensam em se deixar prender nos laços
siva das relações legalmente sancionadas. Precisamos por isso
dirigir nossas atenções sobretudo para o grau de estabilidade que (Mem6ria sobre a agricultura, 123 ). Os emolumentos matrimoniais cobra­
apresentam as relações sexuais, sejam ou não sancionadas legal­ dos pelo· clero não eram só pesados em confronto com a _pobr�za da
mente pelo casamento. E isto é em nosso caso, e para os fins que população; os abusos são freqüentes. :Assim no caso das provi.soes, h�nças
_ _
temos aqui em vista, particularmente importante, porque segundo para o casamento, cuja cobrança foi considerada �eg� por_ acórdao da_
o que se colige dos depoimentos contemporâneos, quase se pode Junta da Coroa de 28 de março de 1791, o que nao impedm que conti­
.
nuassem como dantes a serem exigidas, apesar dos pro!estos. Ve1a-s� a
afirmar que, fora o caso das classes superiores, o casamento este respeito a longa controvérsia entre o Senado da Camara e o bispo
constitui uma situação excepcional. Mas é preciso reconhecer que de São Paulo, e que se encontra no Registro daquela, XII, 289, 317, 424
muitas das situações legalmente irregulares se explicam por outros e outras passagens. - Esta questão do custo dos casamentos .e o �b�t�culo
motivos que a simples indisciplina sexual. Assim, em muitos casos, que oferecia à regularização de situações ilegais, s'ó pela 1�poss1bih�ade
a dificuldade da realização do casamento pela distância em que material que determina, tem no Brasil um papel de �rt� unportância, e
.
ainda ,depois da República, achou o legislador const1tu�t� que deVIa
fica o sacerdote celebrante nestas paróquias imensas, onde um _
inclinar a obrigação da sua gratuidade no texto da Consbtu1çao de 1891
padre s6, e quase sempre pouco diligente, . tem de atender (art. 72 � 4.º). Aliás inutilmente; o mal era muito antigo para desaparecer
populações esparsas por dezenas de léguas de raio. Maior obs­ só com isto. ·
táculo à realização do casamento, e mais freqüente, é o seu custo; (19) Saint-Hilaire, que o conheceu pessoalmente quando governador
a este respeito, as queixas contemporâneas abundam, e está-se de Goiás, relata a tragédia ocorrida em 1821. Voyage aux sources . .., II, 83.
sempre às voltas com a questão(18). Ainda há o preconceito de Sobre o preconceito, como obst�culo contra .º �s�ento, Cunha Matos
refere casos interessantes em Goiás (Corografia hist6rica_, 29�). yma d�s
_
maiores pressões. contra as alianças com m�lheres de �on�ç_:lo mfenor partia
segs. E lembremos que ele é um professor, um educador, que fala portanto das irmandades leigas, cujos estatutos mcluíam dispositivos e �pressos .ª
com autoridade e experiência postas a serviço de uma inteligência crítica respeito, cominando pena de exclusão aos irmãos que contra1ssem tais
notável. casamentos.
(17) Veja-se o que a respeito escreve o mesmo autor já citado acima: (20) Saint-Hilaire, Voyage aux provinces de Rio de �aneir?: .. , II, 28.
_
Sier�a y Mariscai, Idéif1s gerai.s sobre a revolução do Brasil. O citado Governador Delgad9 de Castilho, quand o em Goiás, v1v1a pubh�­
_
(18) Para não deixar de. citar um depoimento entre os muitos que mente em palácio .com a amante e os filhos. Nmguém o estranhava. I!: o
possuím.os, remeto º �eitor para º que diz a respeito um dos espíritos m is fato do casamento fora de sua classe, e não a mancebia, livre com quem
. _
esclarecidos de prmcipios , . � se quisesse, que provocava repulsa.
do seculo passado: o Cons. Veloso de Oliveira •
352 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 351
2o matrimônio." :8 acrescenta mais adiante que "as moças filh:1s "saimentos", como se dizia. Mas daí pará útn verdadeiro espírito
de pais pobres nem sequer pensam em casamento;. não lhes passa religioso, vai distância considerável. As festas religiosas indig­
pela cabeça a possibilidade de arranjarem um marido sem o navam o piedoso Saint-Hilaire, que as chama de "irreverentes ceri­
engodo do dote, e como ignoram os meios de uma mulher poder mônias, em que ridículas palhaçadas se misturam aquilo que a
viver do trabalho honesto e perseverante, são facilmente arrastadas religião católica apresenta de mais respeitável"(24). Sobre o
à, vida licenciosa" ( 21). Florence repete quase textualmente o que espírito religioso da colônia, o mesmo autor endossa a opinião
o Marquês do Lavradio escrevia meio século antes: "As mulheres que ouviu do vigário de São João dei-Rei, e que "os brasileiros
por se não empregarem e por falta de meios para se sustentarem, eram naturalmente religiosos, mas que sua religião não ia além
se prostituem" ( 22). dos sentidos; e quanto aos pastores, este parecem considerar a
Toc·amos aqui um ponto que é o mais alarmante sintoma da ofensa e o perdão como simples funções maquinais"(25).
geral indisciplina de costumes que reina na sociedade colonial: Não é assim de esperar dos mandamentos religiosos um freio
a larga disseminação da prostituição. Não há recanto da colônia sério à corrupção de costumes. O culto fica nos ritos externos,
em que não houvesse penetrado, e em larga escala. Não falemos estes sim rigorosamente observados. Quanto à moral, era-se de
naturalmente das grandes e médias aglomerações, onde o fato uma tolerância infinita. Coisa que não é para admirar: afora as
é mais natural, e sempre se encontrou em toda parte. Observemos causas �e�ais e m�is pr��nd�s q�e numa sociedade como a nossa
os pequenos, os mais insignificantes arraiais: quase toda a sua da coloma, e cuia fe1çao Já ficou bastante caracterizada nas
população fixa é constituída, além dos vadios, de prostitutas. f: páginas acima, tomam inviável uma compreensão· elevada da
um depoimento este geral: "Nós mais humildes povoados, teste­ Religião e do seu culto, cabe nisto ao clero, aliás vítima também
munhará Saint-Hilaire, a mais vergonhosa libidinagem se mostra d:s mesi:nas circunstâncias, um� boa dose de responsabilidades.
com uma imprudência que não se encontraria nas cidades mais Nao cogitou ele nunca, em con1unto, de levar a sério a instrução
corrompidas da Europa." ( 23). Circunstância aliás que explica o religiosa: o seu desleixo ileste terreno é lamentável, e parece que
destino da parte feminina deste numeroso contingente da popu­ os s�cerdotes não tê� outra função na colônia que presidir ou
lação, cuja masculina já vimos noutro capítulo: os desocupados e praticar os atos exteriores do culto e recolher os tributos eclesiás­
vadios, vivendo de expedientes, com um pé na ociosidade e outro ticos. "Em muitos lugares,a firma Saint-Hilaire, a religião se con­
no crime. �erva só por tradição, pois os fiéis, afastados de centros povoados
Formava a Religião, para ·tamanha corrupção, dique de importantes, passavam a vida num completo isolamento e sem
alguma eficácia? Que a crença religiosa tem na vida colonial o menor socorro espiritual" (26). Nos outros lugares, embora pre­
papel considerável, já o notei em outro lugar. Esta aparece lite­ sentes, os padres se ocupavam muito mais em atividades privadas
ralmente entranhada por atos e cerimônias do culto. Folheando e com seus negócios, já o vimos anteriormente. E a este abandono
as Atas da Câmara de São Paulo p. ex., não se virará página quase em que deixa a população, acrescenta o clero o exemplo tão
em que não se encontre algum "termo de ajuntamento" para o freqüente de uma vida escandalosa e desregrada. O resultado
fim de comparecer a Câmara incorporada a missas importantes de . �-do isto �ão é de admirar porta�to que tenha sido aquela
ou de ação de graça� por isto ou aquilo, tedeuns, procissões - reh�iao reduzida a um �squeleto de praticas ex�eriores e maquinais
vazio de qualquer sentimento elevado, e que e ao que se reduziu
o catolicismo na colônia (27).
( 21) Esboço da viagem de Langsdorff, 361 e 448.
( 22) Carta de 12 de janeiro de 1778, cit., p. Fernandes Pinheiro, Os
últimos Vice-Reis do Brasil, 244. Logo adiante acrescenta: "Na facilidade ( 24) yoyage aux sources, I, 102.
que os homens têm com o trato das mulheres se segue também os poucos ( 25) • Les pasteurs semblent considerér comme un ;eu l'offense et le
que buscam o estado de casado." pardon" loc. cit.
(23) Voyage aux sources .. . , I, 127. Saint-Hilaire é em matéria desta ( 26) Voyage aux sources, II, 238.
natureza de uma reserva bem própria do seu feitio profundamente religioso. ( 27) Há qt� e acrescentar as deturpações da mais grosseira superstição,
. .
Seus diários são todos de reticências no assunto, e percebe-se a sua repug­ fruto da 1gnorancia e sobretudo da contaminação de crenças e cultos estra­
nância em tratar dele. Mas a fidelidade do observador não pode esconder nhos ao cr(st!anism�, t!aziclos pel,;,s african_os e corrompidos pela escravidão.
_ ,
o que tão escandalosamente se evidencia; e daí o interesse que apresentam A· contnbmçao do md1gena e pequen:i pois em matéria de crença religiosa,
. _
para nós observações arrancadas a tamanhos escrúpulos. Outros viajantes su:i cultura ativa e como se sa_be rudimentar. - Somente os jesuítas, pode-s�
� _ intensa e sistemática de instrução e educação
foram mais francos. afmnar, realizaram obra mais
354 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 3:i5
subiam para sucessivos graus de recurso: ouvidor, Relação, Supli­ Janeiro(54). Hospitais não havia senão uns rarís�imos miljtares,
cação de Lisboa, às vezes até Mesa do Desembargo do Paço, como o do Rio de Janeiro, que se instalo\! no antigo colégio dos
arrastando-se sem solução por dezenas de anos. A segurança públi­ Jesuítas(55), e as Santas Casas de lv1isericórdia, que embora
ca era precária. Já vimos os recursos e adaptaçõE-s a que a poucas, constituem a mais bela e quase �ni�a inst�tuiçã�, social
administração teve de recorrer para suprir_ sua incapacidade neste ae certo vulto da colônia. Das obras publicas, vimos Jª uma
terreno da ordem legal, delegando poderes que darão nestes amostra nestes miseráveis caminhos e mais vias de comunicação.
quistos de mandonismo que se perpetuarão pelo Império a dentro, E afora isto, legou-nos a colônia pouquíssimas obras dig_na� de
se não a República, e tomando tão difícil em muitos casos a menção; algumas fortalezas medíocres _e o aqueduto da Carioca,
ação. legal e política da autoridade. Mas mesmo com esta adapta­ no Rio de Janeiro, quase esgotam a hsta(56).
ção forçada, não se conseguiu fazer predominar a ordem; a O fomento da produção estava inteiramente entregue à boa
insegurança foi sempre a regra, não só nestes sertões despoliciados vontade de um ou outro administrador mais esforçado, e nun�a
que constituem a maior parte da colônia, mas nos próprios grandes passou de pequenas e limitadas providências(5�). A_ lista poderia
e maiores centros, à sombra das principais autoridades. Se o ser alongada, mas inutilmente, neste m�sm? .?ial?asao: a ?1;srr�a
banditismo e o crime permanente não assolaram a colônia exces­ falta de esforço construtivo, a mesma mehciencia . e negligencia
sivamente, isto se deveu muito mais à índole da população, e se encontrará por toda parte. _Dm exen:iplo b_ astana para carac­
não às providências de uma administração inexistente na maior terizar a administração colonial: a mmeraçao. Durante . q�ase
parte do território da colônia(52). um século, a exploração do ouro e dos diamantes constitum �
maior riqueza da monarquia, a base em que as;ento� a prospe:i­
As finanças não estão em melhor postura; alguma coisa, e dade e até mesmo a existência do trono portugues. Pois nem assim
bastante ilustrativa, já foi dita acima com respeito à arrecadação ela mereceu mais que a consideração de um bem trib�t�vel,
das rendas públicas. O manejo delas não é de melhor qualidade. uma fonte de renda que se tratava de expl?�ar ao maximo.
Nunca se viveu, em todas as capitanias, cidades e vilas de cujas Afora isto nada se fez, e deixou-se toda a matena ao abandono.
finanças temos notícias, senão . em regime permanente de deficit. A incapacidade da administração colon�al? a �egligência e_ i�ércia
E um deficit "desorganizado", se podemos sem pleonasmo acres­ que demonstrou diante da imensa d1ssipaçao e destruiçao de
centar este qualificativo para caracterizar o sistema financeiro riqueza natural que se praticava i;i�s minas, é um atestado que
da colônia, onde a falta de rendimentos para cobrir as despesas dispensa quaisquer outros comentanos.
se resolvia sumariamente com o calote, não se pagando, nem .. _
Se no terreno da eficiência é este o retrato da admmistraçao
com boas intenções, os credores que não fossem protegidos das colonial, não é ele mais avantajado no da morali�ade., De alt_o
autoridades. Nem o soldo das tropas se satisfazia regularmente, a baixo da escala administrativa, com raras exceçoes, e a mais
e o espetáculo de soldados mendigando pelas ruas era comum. grosseira imoralidade e corrupção que <l�n�ina_ desbragadai:nente.
Se nas suas funções essenciais a administração era isto, nas Poder-se-ia repetir aqui, sem nenh�ma m1us!iça, o conceito do
outras é pior. A instrução pública estava reduzida a umas poucas ,
Soldado Prático: "Na 1ndia não ha cousa sa: tudo esta podre
aulas de primeiras letras, latim e grego, esparsas pelos principais e afistulado, e muito perto de herpes ..." Os mais honestos e
centros, e ao parco ensino ministrado nas maiores cidades pelas
ordens religiosas(53). Os serviços de higiene e saúde pública se
constatam pelo estado das principais cidades, Bahia e Rio de (54) Para a Bahia: Vilhena, Recopilaçã?; para º. Itio de J�neiro, ·
sobretudo Oliveira Lima, D. João VI no Brasil. Inscrevia-se no ativo da
administração a introdução da vacina nos primeiros ano_s d� séc. XIX;.
(52) Sobre a justiça e segurança na colônia, veja-se a critica de Saint­ (55) Sobre este hos ita1: Pedro Cúrio de Carvalho, Histórico da Mlpl-
-Hilaire, que resume admiravelmente o assunto: Voyage aux provinces de talização militar no Brasif.
Rio de Janeiro ... , I, 364 e segs. (56) Há ainda os edificios públicos, poucos além �s .1g!e1as.
.
O v�1pr
(53) Sobre o ensino da Bahia, consulte-se Vilhena, Recopilação, Carta dessas tem sido consideravelmente exagerado. A1gumas tem, nao há dúvida,
VIII, que escreve com a autoridade própria de professor régio que era. valor artístico; mas nenhuma a grandeza ou suntuosidade gue se lhes quer
Para o Rio de Janeiro, vejam-se as interessantes considerações duma repre­ emprestar. Ao lado dos monun:ientos religiosos �as co�ôo1as hispano-ame­
sentação dos professores régios em 1787, e publicada na Correspondência ricanas, México e Peru em particular, fazem med1ocre figura.
de vártas autoridades, 215. - Um résumo sumário, mas bem feito, da (57) Lembremos aqui a administração, única sob este aspecto, uo
instrução colonial, é o trabalho de Moreira de Azevedo, Instrução nos Marquês do Lavradio no Rio de Janeiro. Também a de Lôbo de Almada na
tempos coloniais. Capitania do füo Negro.
334 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contemf)Ordneo 335
digno� delegados da administração régia são àqueles que não raramente foram além dos proveitcs imediatos que sob a f.Qnna
..
de tributos podia auferir da colônia. Um governador do Rio
embolsam sumariamente os bens públicos, ou não usam dos cargos
para especulações privadas; porque de diligência e bom cumpri­ Grande do Sul aliás um dos mais notáveis, Silva Gama, resumia
mento dos deveres, nem se pode cogitar. Aliás o próprio sistema em 1805 este pensamento numa confissão crua e mm: "'Nada me
vigente de negociar os cargos públicos abria naturalmente portas interessa com mais fervor, escrevia ele ao governo '40 Reino,, do
largas à corrupção. Eles eram obtidos e vendidos como a mais que a fiscalização da Real Fazenda. Diminuir as suas, despesas.
vu_Igar merca?oria. Mas isto ainda é o de menos, porque estava nos o quanto é possível, fazer arrecadar ansiosamente tudo \que possa.
metodos aceitos e reconhecidos. O que fazia Vieira, já século pertencer-lhe sem dano dos vassalos, e esquadrinhar novos ·recur­
e meio antes, conjugar no Brasil o verbo "rapio" ( no sermão do sos para aumentá-la, são os objetivos do meu maior desvel�": (59).
Bom Ladrão) em todos os modos, tempos e pessoas, era esta Um obje!ivo !iscal, nad� mais que _isto, é o que anima a metrópole
geral e universal prática, que já passara para a essência da na colomzaçao do Brasil. Raros sao os atos da administração ou
administração colonial, do peculato, do suborno e de todas as os administradores que fazem exceção à regra. Pombal, cujo
demais formas de corrupção administ�.itiva. Se fo��� alinhar aqui governo é o único talvez, depois do período lieróico da história.
testemunhos, seria um não acabar :-,unca. E mesr .o fazendo neles portuguesa, que teve vistas largas, Pombal mesmo não eonseguiu
o desconto da maledicência, a adm:nistração :1ã0 sairia mais rea­ desvencilhar-se inteiramente do que estava no fundo da cons­
bilitada: isto porque, salvo er.i discursos la dai:órios e de ordem ciência nacional, ou antes da política da monarquia. O ouro e
pessoal ( que pela sua freqii .!ncia já não co-_1stituem nenhum bom
1
os diamantes, então, fizeram perder o resto da cabeça e bom�senso
sintoma), não se encon1 ra nos depoimentos contemporâneos q�e sobravam à metrópole. Com uma ânsia sem paralelo, ela se
nenh atua sobre o metal e as pedras como um cão esfaimado sobre ,o
_ _um conceito, já não digo elogioso, mas de tolerância e justi­ osso que aflora na terra cavada. Só que não tinha sido ela guem
ficativa para com a administração. Parta de onde partir a crítica
ou observação, dos simples cidadãos nascidos na colônia ou dos o escavara . . . Durante um século quase, não haverá outra
r�fnóis, ':°mo dos mesmos delegados do poder, a opinião é inva­ preocupação séria e de conseqüência que a cobrança <los
navel e igualmente severa. Acrescente-se a isto o que referem os direitos régios, o quinto; a história administrativa dó -Brasil
- se
viajantes estrangeiros que nos visitaram em princípios do século contará em função dela.
passado, quase todos eles da maior consciência e honestidade e Assente numa tal base, a administração colonial não podia
sem motivo especial algum para não dizerem a verdade e ter-se-á s�r outra �oisa que foi. N,egl�gencia-se tudo que não seia per<:ep­
uma �ole?ão de dados tais que, a não ser que se conteste a çao de tributos; e a ganancia da coroa, tão crua e cinicamente
afirma�a, ª, mercantilização brutal dos objetivos da colonização,
frÓpna hipótese fundamental de toda pesquisa histórica e que contamma�a todo mundo. Sera o arrojo então geral para o lucro,
1

e a "possibilidade de reconstruir o passado", levam com segurança


absoluta ao que ficou dito acima. para as migalhas 9ue sobravam do banquete real. O construtivo
da administração e relegado para um segundo plano obscuro em
Tem uma larga responsabilidade em tudo isto, afora o vício que só idealistas deslocados debateram em vão.
que é g�ral na ad�_inistraç�o portuguesa desde o tempo longínquo
das tnaias, ? espmto particular que anima o governo metropoli­ Tudo isto se refere, em particular, à administração civil. A
tano no genr a sua colônia. Se se justifica o conceito do autor eclesiástica, nada ou quase nada lhe fica a dever. Admitamos
anônimo do Roteiro do Maranhão que "as colônias são estabe­ contudo, de início, uma restrição que é de justiça salientar. Se
lecidas em utilidade da metrópole" ou daquele outro contem­ não muito po�� a� n��el moral, pelo _menos na da capacidade,
porâneo para quem "seu efeito primário e comum é certamente o clero da coloma e mtidamente supenor ao funcionalismo civil,
o d� �nriquecer a �etrópole e aumentar-lhe o poder" ( 58) - como aliás a qualquer outra categoria particular da _po:(>ulação
confissoes em que ha ao menos franqueza em matéria onde a �ol�n} ai. Não seria po� si?1ples coincid�ncia que boa parte dos
hipocrisi� tem hoje assento inconteste - Portugal no entanto mdiv1duos, de formaçao mtelectual acima do comum ,extre;ma­
sempre mterpretou mesquinhamente este objetivo primordial e mente ba�� com que t�m�� contac�o os viajantes estrangeiros
que nos v1S1taram em pnncipios do seculo passado, seja de ede-
latente em todas as colonizações de caráter oficial. Suas vistas
( 59) Does. relativos d história da capitania de S.ão Pedro 4ó 1Uo
( 58) Roteiro, 102; e Rodrigues Barata, Memória da Capitania de Grande do Sul, 285.
Goiás, 337.
Formaçiio do Brasil Contempordnet> '3;)'7
336 Caio Prado Júnior
nl:\l;ticos. Em Goiás, SaintJHilaire chega a afirmar que as únicas os Superiores d0s Carmeiitas e àos Capuchos(66). Mas não é
ptissr,as com "alguns conhecimentos" são os padres( 60). Também de um bispo, Frei Antônio do Destêrro, do Rio de Janeiro, e
uão será tida como fruto do acaso a circunstância da tamanha em correspondência oficial ao Secretário de Estado, o seguinte
proporção de membros do clero aparecerem entre aqueles que texto tão elucidativo da compreensão que tinha o clero colonial
se destacaram nas letras e ciências da colônia; e de terem saíram de suas funções sacerdotais? "Como prêmio e remuneração do
dele os expoentes de seus principais ramos( 61). Aliás íá referi no · trabalho, escreve ele, que estimula fortemente a todos, principal­
capítulo anterior a razão por que o clero se tornou a carreira mente -neste Brasil onae se cuida mais no interesse do que na
intelectual por excelência na colônia: é a única que abre as portas boa fama e glória do nome, me parecia mais preciso e justo que
a todos sem distinção de categoria. Refugiar-se-ão nele todos ou sua Maíestade remunerasse enefectivamente a estes párocos
quase todos a quem a inteligência faz cócegas. ( aqueles que tivessem servido com os índios) com igreías de
Mas noutro terreno, no seu teor moral médio, a massa do Minas, dando a cada um tantos anos de párocos nas ditas igreías,
clero não se destaca muito acima de seus colegas da administração po� serem pingues, quantos tiverem servido nas freguesias dos
leiga. A mercantilização das funções sacerdotais tornara-se pela índios" ( 67). Poderiam ser alongados estes testemunlios, encon­
época em que nos achamos um fato consumado. Citei íá a obser­ tradiços nos documentos da época, e que se não abundam tanto
vação de uma autoridade eclesiástica, que reconhece ter-se tomado como os relativos à administração leiga, não são menos precisos
a batina um simples "modo de vida", um ern.�rego, parecendo ou convincentes. Mas bastará para supri-los todos, o que Saint­
aliás perfeitamente conformado com o fato( 62). Que se podia -Hilaire, católica e crente convicto, deplorando-o embora e pro­
esperar daí? A geral e persistente grita dos povos contra os curando consolar o leitor cristão de tantos golpes vibrados à sua
tributos eclesiásticos é aliás um sintoma bem sensível do caminho sensibilidade, descreve com minúcias em seu longo capítulo dedi­
que tomara o clero colonial. Baltasar da Silva Lisboa, alto fun­ cado ao clero brasileiro ( 68).
c.:ionário da administração, expondo ao Vice-Rei os assuntos de Nestas condições, não é de esperar do clero colonial, animado
suas atribuições, assim rematava as considerações que faz sobre de tal espírito, grande diligência no cumprimento dos seus deveres.
o clero: "Eles só querem dinheiro, e não se embaraçam que E de fato, é o que se verifica. Ele exercerá ativamente sua função
tenham bom título"( 63). Noutro ofício do ano seguinte repete de satisfazer às necessidades espirituais da população lá onde pode
conceito semelhante( 64). Para se ter uma idéia do que ia pelos ser e é bem remunerado por ela: nas paróquias "pingues" a que se
conventos do Brasil em matéria de costumes e com1pção, leia-se refere o bispo acima citado; nas capelas de engenhos abastados. O
a longa exposição que a respeito faz o Vice-Rei Luís de Vascon­ resto da população fica ao desamparo. Para ela, os padres rezarão
celos ao Secretário de Estado, e que repete resumidamente no no máximo as missas e ministrarão a comunhão da desobriga que
relatório com que entrega o governo ao sucessor que o vinha constitui o melhor de seus rendimentos. O resto do tempo, ocupar­
substituir( 65); se se deseíar um depoimento ainda mais autorizado -se-ão em afazeres bem distanciados de suas obrigações: muitos são
e insu�peito, veía-se o que dizem de seus conventos respectivos fazendeiros: era eclesiástico o melhor farmacêutico de São João dei­
-Rei, e preparava e vendia ele próprio suas drogas; um outro sacer­
(60) Voyage aux sources, I, 347.
dote vendia tecidos no balcão de sua loía ... ( 69).
(61) José Mariano da Conceição Veloso, nas ciencias naturais; José
Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho nas ciências econômicas; José de (66) Correspondência de váris autoridades, 168 e 285.
Sousa Azevedo Pizarro e Gaspar da Madre de Deus, na historiografia; (67) Correspondência do bispo do Rio de Janeiro (1754-1800), 42. O
José Maurício Nunes Garcia, na música. E isto para não falar senão dos grifo é meu.
contemporâneos do momento que nos ocupa. Note-se ainda que o gênero (68) Voyage aux procinces de Rio de Janeiro, I, cap. VIII. Apesar
literário Único e!I) que a colônia produziu algu ma coisa de mais destaque de suas afirmações, que constituem o mais veemente libelo, acrescenta Saint­
foi a oratória sacra. A nossa poesia não pode ter a pretensão de ultrapassar -Hilaire que neste assunto poderão acusá-lo de reticências, mas nunca de
o consumo interno e da erudição literária. exacreros. Em outras muitas passagens de seus diários, o naturalista francês
(62) Frei Antônio da Vitória, superior dos Capuchos do Rio de Ja­ abu�da em observações sobre os padres e seus costumes no Brasil. Católioo
neiro, Correspondência de várias autoridades, 291. fervoroso, o assunto lhe despertava naturalmente a atenção. O .maior e
(63) Carta de 20 de outubro de 1787. Correspondência de várias único elogio que lhes faz, em conjunto, é relativamente ao clero da comnrea
autoridades, 226. de Minas Novas, onde afirma parecer-lhe haver menos �mQnia qtUl no reato
(64) Loc. cit., 228. da capitania. Id. II, 256.
(65) Negócios eclesiásticos, e Ofício, 33. ( 69) Saint-Hilaire, Voyage aux sources ..., I, 132.
338 Caio Prado Júnior Forma�ão d-O Brasil Contemi,ordM<i 339
E se assim cumpriam, ou deixavam de cumprir seus deveres
fundamentais, que dizer dos de assistência e amparo social que
a tradição, como seus estatutos e a divisão estabelecida das
funções públicas lhes impunham? Algumas Ordens, aiguns de
seus membros pelo menos, ocupavam-se ainda com a catequese
dos índios, e citei em capítulos anteriores alguns destes raríssimos Vida Social e Política
exemplos. Em certos conventos ministravam-se educação e ensino;
mas só nas maiores capitais, e para grupos reduzidos da população.
Algumas irmandades leigas dedioavam-se aos enfermos, expostos Temos os elementos agora para concluirmos sobre a vida
e indigentes, como os sempre lembrados com justiça Irmãos da social da colônia, conclusões que nos darão o tom geral desta
Misericórdia. Há exemplo de dedicação e trabalho, e não quero vida e o aspecto de conjunto que apresenta a obra da colonização
subestimá-los; mas infelizmente exceções, casos raros num oceano portuguesa no Brasil. O?servamos nos seus difere?tes aspect?s
de necessidades não atendidas e de que ninguém se preocupava. �
esse aglomerado heterogeneo de raças que a colomzaçao reumu
A grande maioria do clero, secular e regular, desde os mais altos aqui ao acaso, sem outro objetivo que realizar uma vasta empresa
dignatários até os mais modestos coaajutores, deixava-se ficar comercial, e para . que contribuíram conforme as circunstâncias e
numa indiferença completa de tais assuntos, usufruindo placida­ as exigências daquela empresa, brancos europeus, negros africanos,
mente suas côngruas e demais rendimentos, ou suprindo a defi­ indígenas do continente. Três raças e culturas largamente díspaFes,
ciência deles com atividades e negócios privados. de que duas, semi-bárbaras em seu estado nativo, e cujas ap�id®S
Que parcela de responsabilidade caberá disto, diretamente, à culturais originárias ainda se sufocaram, fornecerão o contingente
política metropolitana? Com a expulsão dos jesuítas, desfalcara-se maior; raças arrebanhadas pela força e incorporadas pela violência
a colônia do quase único elemento que promovera em larga na colonização, sem que para isso se lhes dispensasse o menor pi:e•
escala uma atividade social apreciável. Mas os efeitos nocivos da paro e educação para o convívio em uma sociedade tão estranha
medida de Pombal, neste terreno de que nos ocupamos, não para elas; cuja escola única foi quase sempre o eito e a senzala.
devem ser exagerndos. Já passara, fazia muito, o tempo dos Numa população assim constituída originariamente e em que
Nóbregas e Anchietas, e a Companhia de Jesus decaíra conside­ tal processo da formação se perpetuava e se mantinha ainda no
ravelmente. O que seria no futuro, é difícil se não impossível momento que nos ocupa, o primeiro traço que é de esperar; e
assentar com segurança. Mas avaliar a perda pela bitola daqueles que de fato não falhará à expectativa, é a ausência de nexo moral
primeiros missionários, seria anacronismo lamentável. Raças e indivíduos mal se unem, não se fundem num todo coeso:
A ineficiência do clero no momento que nos ocupa tem justapõe-se antes uns aos outros; constituem-se unidades e grupos
causas mais profundas que esta ou aquela medida singular da incoerentes que apenas coexistem e se tocam. Os mais fortes
política metropolitana ou da própria Igreja de Roma. Umas de laços que lhes mantêm a integridade social não serão senão os
caráter geral, e que atingem o conjunto da estrutura eclesiástica primários e mais rudimentares vínculos humanos, os resultantes
universal nos tempos que precedem a nossa época. Não me cabe direta e imediatamente das relações de trabalho e produção: em
aqui abordá-las. Outras focais, próprias da colônia. E estas se particular, a subordinação do escravo ou do semi-escravo ao seu
resumem na resposta a ser dada a uma questão f:undamental: senhor. Muito poucos elementos novos se incorporarão a este
estava a sociedade colonial apta a produzir um clero capaz, de cimento original da sociedade brasileira, cuja trama ficará assim
elevado teor moral e na altura de suas funções? Havia nela reduzida quase exclusivamente aos tênues e sumários laços que
ambiente social e moral para isto, e para a manutenção e floresci­ resultam do trabalho servil. É neste sentido que não faltaria raião
mento de um clero daquele naipe? As conclusões gerais sobre a a Alberto Tôrres, quando num aparente paradoxo que esca:,'ldali­
sociedade colonial em princípios do século passado, e que me zaria seus contemporâneos, ele levanta a voz para fazer a apologia,
esforçarei por esboçar no próximo caoítulo, fornecerão talvez não como escravocrata, mas pela primeira vez como sociólogo,
alguns elementos para a resposta pedida. <lo regime servil( 1).

( 1) "A escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização
que este país jamais possuiu... Social e economicamente, a · escravidão
340 Caio Prado Júnior Formação do Bras-il Contempordneo 341
estado primitivo. As relações servis são e permanecerão relações
Para constatar o a.:::erto da observação, basta-nos comparar os
puramente màteriais de trabalho e produção, . e nada ou quase
setores da vida colonial em que respectivamente domina uma e
outra forma de trabalho, escravo ou livre. À organização do nada mais acrescentarão ao complexo cultural da ,colônia.
primeiro, à sua sólida e acabada estruturação e coesão, corres­ A outra função do escravo, ou antes da mulher escrava,
ponderá a dipersão e incoerência do outro. Vimos estes dois instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus senbores
aspectos da sociedade colonial: de um lado o escravo ligado ao e dominadores, não tem um feito menos elementar. Não ultra­
seu senhor, e integrados ambos nesta célula orgânica que é o passará também o nível primário e puramente animal do con'tacto
"clã" patriarcal de que aquele laço forma a textura principal; sexual, não se aproximando senão muito remotámente da esfera
doutro, o setor imenso e inorgânico de populações desenraizadas, propriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve
flutuando sem base em tomo da sociedade colonial organizada; de todo um complexo de emoções e sentimentos tão amplos que
chegando apenas, em parcelas pequenas a se agregar a ela, e chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele ato
a1quirindo assim os únicos visos de organização que apresentam. que afinal lhe deu origem ( 2).
Fica-se em suma na tentação de generalizar ainda mais o conceito Em alguns outros setores, a escravidão foi mais fecunda.
de Alberto Tôrres, e não ver na servidão senão o único elemento Destaquemos a "figura boa da ama negra" - a expressão é de
real e sólido de organização que a colônia possui. Gilberto Freyre, - que cerca o berço da criança brasileira de
Mas seja como for, a análise da sociedade colonial obriga uma atmosfera de bondade e ternura que não é fator de menor
a um desdobramento de pesquisa., Qualquer generalização que importância nesta florescência de sentimentalismo, tão caracte­
abranja as duas situações tão diversas que nela se encontram rística da índole brasileira, e que se de um lado amolece o indi­
correrá o risco de erros consideráveis de apreciação. Para com­ víduo e o desampara nos embates da vida - não padece dúvida
preendermos, no seu conjunto, o� laços que lhe mantêm a coesão que boa parte da deficiente educação brasileira tem aí sua origem,
e de que se forma a sua trama, temos que vê-la como de fato - doutro contribui para quebrar a rudeza e brutalidade próprias
ela se constitui: de um núcleo central organizado, cujo elemento de uma sociedade nascente. Mas neste, como em muitos casos
principal é a escravidão; e envolvendo este núcleo, ou dispondo-se semelhantes, é preciso distinguir entre o papel de escravo e do
nos largos vácuos que nele se abrem, sofrendo-lhe mesmo, em negro, o que Gilberto Freyre acentuou com tanto acerto. A
muitos casos, a influência da proximidade, uma nebulosa social distinção é difícil: ambas as figuras confundem-se no mesmo indi­
incoerente e desconexa. víduo, e a contribuição do segundo se realiza quase sempre através
Não preciso acentuar mais uma vez o papel que a escravidão do primeiro. Mas não é impossível, e de uma forma geral, o que
tem naquele primeiro setor, o orgânico da sociedade colonial. se conclui é que se o negro traz algo de positivo, isto se anulou
Mas devemos acrescentar aqui o caráter primário das relações na maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais. O
sociais que dela resultam, e daquilo que com ela se constituiu. escravo enche o cenário, e permitiu ao negro apenas que apontasse
Primário no sentido em que não se destacam do terreno puramente em raras oportunidades. Já notei acima que outro teria sido o
material em que se formam; ausência quase completa àe superes­ papel do africano na formação cultural da colônia se lhe tivessem
permitido se não o pleno, ao menos um mínimo de oportunidade
�tura, dir-se-ia para empregar uma expressão que já se vulga­
rizou. Realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá para o desenvolvimento de suas aptidões naturais. Mas a escra•
na sociedade colonial, fator trabalho e fator sexual, não determi­ vidão, como se praticou na colônia, o esterilizou, e ao mesmo
nará senão relações elementares e muito simples. O trabalho tempo que lhe amputava a maior parte. de suas qualidades,
escravo nunca irá além do seu ponto de partida: o esforço físico aguçou nele o que era portador de elementos corruptores OU·
constrangido; não educará o indivíduo, não o preparará para que se tomaram tal por efeito dela mesma. E o baixo nível !la
um plano de vida humana mais elevado. Não lhes acrescentará sua cultura, em oposição ao da raça dominante, impediu-lhe de
elementos morais; e pelo contrário, degradá-lo-á, eliminando mesmo
nele o conteúdo cultural que porventura tivesse trazido· do seu
(2) "Le miracle de l'amour humain, c'est que, sur un ln#fnct trN
deu-nos, por longos anos, todo o esforço de toda a ordem que então aimple, le désir, il construit les édifices de sentiments lei plw .compl,-,
possuímos, e fundou toda a produção material que ainda ternos." O et les plus délicats." (André Maurois.) :E: este milagre que o amor ela
Problema Nacional, 11. senzala não realizou e não podia realizar no Brasil-colônia.
342 Caio Prado Júnior Formação do Brasil ComnsPo,.._ 3-C3
se afinnat com vigor e sobrepor-se à sua miserável condição, &.o daquilo gue sai do círculo estreito desta forma particular de
contrário do que em tantas instâncias ocorreu no mundo antigo. atividade produtora.
Em suma, a escravidão e as relações que dela derivam, se À luz desta vista d'olhos preliminar por sobre a sociedade
bem que constituam a base do único setor organizado da sociedade colonial, torna-se possível compreender a maior parte dos seus
colonial, e tivesse por isso permitido a esta manter-se e se desen­ traços e caracteres essenciais. Porque ela se soma e sumaria
volver, não ultrapassam contudo um plano muito inferior, e não na observação geral feita de início: a falta de nexo moral que
frutificam numa superestrutura ampla e complexa. Serviram apenas define a vida brasileira em princípios do século passado, a po­
para momentaneamente conservar o nexo social da colônia. No breza de seus vínculos sociais. Tomo aquela expressão "nexo
outro setor dela, o que se mantém à margem da escravidão, a moral", no seu sentido amplo de conjunto de forças de aglutinação,
situação se apresenta, em certo sentido, pior. A inorganização é complexo de relações humanas que mantêm ligados e unidos os
aí a regra. O que aliás sua origem faz prever; vimo-lo anterior­ indivíduos de uma sociedade e os fundem num todo coeso e
rilente: aquela parte da opulação que o constitui e que vegeta compacto. A sociedade colonial se definirá antes pela desagregação,
à margem da vida coloniaf., não é senão um derivado da escravidão, pelas forças dispersivas; mas elas são em nosso caso as da inércia;
nu diretamente, ou substituindo-a lá onde um sistema organizado e esta inércia, embora infecunda, explic:i suficientemente a relativa
de vida econômica e social ,não pôde constituir-se ou se manter. estabilidade da estrutura colonial: para contrariá-la e manter a
precária integridade do conjunto, bastaram os tênues laços mate­
Para este setor não se pode nem ao menos falar em "estrutura"
social, porque é a instabilidade e incoerência que a caracterizam, riais primários, econômicos e sexuais, ainda não destacados de
seu plano original e mais inferior, que se estabelecem como resul­
tendendo em todos os casos para estas formas extremas de desa­
tado imed!ato da ª,Proximação de indivíduos, raças, grupos dís­
gregação social, tão salientes e características da vida brasileira, _
pares, e nao vao alem deste contacto elementar. É fundada nisto,
e que notei em outro capítulo: a vadiagem e a caboclização ( 3). e somente nisto, que a sociedade brasileira se manteve, e a obra
É isto, em resumo, que o observador encontrará de essencial da colonização pôde progredir.
na sociedade da colônia: de um lado uma organização estéri� no Poderíamos acrescentar a pressão exterior que o poder, a
que diz respeito a relações socia,is de nível superior; doutro, um autoridade e ação soberana da metrópole exerceram sobre a
estado, ou antes um processo de desagregação mais ou menos sociedade colonial, contribuindo assim para congregá-la. Não é
adiantado, conforme o caso, resultante ou reflexo do primeiro, e de desprezar este fator, que apesar do raio limitado de sua exten­
que se alastra progressivamente. E note-se, antes de seguirmos são e penetração - já o vimos ao falar da administração pública
adiante, e repisanào um assunto já ventilado, que tais aspectos na colônia, -- contou por muito na subsistência e manutenção da
correspondem grosseiramente, no terreno econômico, aos dois estrutura social brasileira. Os acontecimentos posteriores, que
setores que aí fomos encontrar: a grande lavoura e a mineração precedem imediatamente a Independência e a seguem, estão aí
de um lado, as demais atividades que reuni na categoria getal para demonstrá-lo. O enfraquecimento daquele poder levou o
de "eçonomia de subsistência", do outro. A observação é impor­ país, durante muito tempo, para a iminência da anarquia, que
tante porque vem confirmar mais uma vez o que já foi dito aliás muitas vezés, e em vários setores, embora restritos, se tomou
sobre a caracterização da economia brasileira, votada essencial­ efetiva; e só se conteve com a constituição de um Estado qlie,
mente à produção de alguns gêneros exportáveis; este seu caráter embora nacional de nome e formação, reproduziu quase integral­
unilateral se revela aqui sensivelmente, mostrando a precariedade mente a monarquia portuguesa que viera substituir; que não
brotou do íntimo da sociedade brasileira, incapaz de tal criação,
( 3) Há exceções a assinalar, exceções em que vemos se constituírem mas lhe é imposta do exterior, continuando a exercer sobre ela
neste setor da vida colonial formas sociais mais aperfeiçoadas. Mas são o mesmo tipo de pressão que o daquela ( 4).
raras, como a mais interessante e conhecida delas, o "mutirão", que ainda
subsiste em certas partes do Brasil, e que consiste no trabalho em comum
e auxílio mútuo na lavoura. Saint-Hilaire teve ocasião de observar o mutirão ( 4) Não se caracterizará isto unicamente pelo fato da perpetuação da
numa região do hoje Triângulo Mineiro. Voyage aux sources . .., II, 269. organização monárquica no Estado nacional brasileiro, invés.tiaa aliás na
Parece contudo que se trata antes de uma sobrevivência indígena, e o nH·sma dinastia; o ciue por si já é uma prova do artificialismo d@ constitult·ilq
exemplo de Saint-Hilaire refere-se aliás a populações com alta dose de que adotamos. Não havia no Brasil, afora o hábito dQ passado, IM11u
sangue mestiço. Não se trataria então de uma criação, mas de um traço alguma para o trono. Mas não é somente nisto que se assinala· a persist(mcln
cultural que sobrou da vida comunitária do índio, <lu regime político a,nterior, embora sob vestimenta nacional; -6 o pto-
344 Caio Prado Júnior Formação do Brasit �on&.m� :U:S
ociosidade que para os senhores resulta do trabalho entre�e intei­
.. .
Há !inda que levar em conta uma certa uniform idade de ramente a escravos. É esta uma atitude psicológica por demais
uh�des , em�reguemos esta expressão ampla, que identifica 0
, conhecida para nela nos demorarmos. Um e outro efeito .da
WnJunto colomal e suas várias partes. Uniformidade de senti­
,mcntos, ?� usos, de crenças, de língua. De cultura, numa palavra.
escravidão se somarão para fazer ou evitar quaisquer atividades.
A indolência, o ócio dos casos extremos, mas sempre uma ati­
E!: servi�ia, e de f�to serviu de base moral e psicológica para
vidade retardada, uma geral moleza e um mínimo de dis�ndio
a 1 �rmaç�,º do Brasil
_ como nação, e lhe proporcionou a unidade
de energia resultarão daí para o conjunto da sociedade .colonial.
nac10nal lª rea!izada n� geografia e na tradição. Mas neste sentido
Tudo repousará exclusiva.mente no trabalho força.do e não con­
ela se ,afl!'mara posteriormente, em oposição à metrópole e mais
sentido imposto pela servidão; fora disto, a atividade colonial é
tarde_ as outras nações estrangeiras. É antes um fardo político,
quase nula. Onde falta a obrigação sancionada pelo açoi�e, o
e na � tr �:_ no mo�ento e no assunto particular que nos ocupa, tronco e demais instrumentos inventados para dobrar a vontade
cont:i�mça_o apre:iavel para trama da sociedade colonial. Aquela
humana, ela desaparece, Os, libertos que se fazem �r via de
oposi�a _o amda nao representa papel social, mas começa apenas
regra vadios, apesar da escola em que se formaram, e disto uma
o pohtico.
das provas.
(_?aracterizemos agora, mais de perto, a vida colonial e as Isto, para as atividades de natureza física, é regra pratica­
rdaçoes que �ela vamos encontrar. Toda sociedade organizada
mente universal: nenhum homem livre se rebaixa a empregar
s� funda precipuamente na regulamentação, não importa a com­
os músculos no trabalho. É de Luccock uma anedota bem ilus­
pLexidade posterior 9-u� dela resultará, dos dois instintos primários
trativa do caso: tendo ido buscar um serralheiro de cujos serviços
do J:!omem: º.ec�m_omi?O e ? sexual. Isto não vai aqui como afir­
precisava, este o fez esperar longamente na expectativa de um
maçao de prmcipio, mcabivel em nosso assunto · mas servirá negro de serviço para transportar sua ferramenta de trabalho,
unicamente_ de fio c�ndutor à análise que vamos e�preender das pois carregá-la pelas ruas da cidade não era ocupação digna de
relaçoes fundamentais que se estabelecem no seio da sociedade um homem livre( 5). As outras funções se praticam sempre com
colonial. Na primeira <:_ategoria, o elemento que definirá, e na
um mínimo de energia. Uma lentidão e economia de esforços
bas� do qua! se formarao aquelas relaçEes, é o trabalho, tomado que faziam a cada passo o desespero dos enérgicos europeus
aqu� n� �entido amplo e mais geral de atividade que proporciona que nos visitavam.
ao individuo seus meios de subsir,Lência. Na outra o conteúdo
se�ão as relações que s� estabelec�i:n entre sexos opo�tos e as que Somente num setor encontramos mais atividade: é no dos
dai resultam: as rel.açoes de familia, em suma. colonos recentes ainda não contaminados pelo exemr,lo do país;
destes reinóis que. vinham para cá "fazer a América', ávidos de
R
_ elativamente ao .trabalho, já se viu acima alguma coisa que ganho, dispostos a tudo e educados numa escola de trabalho e
,
ser�ira par� caracterizar os laços que dele derivam. Assim o
ambição muito diferente da dos brasileiros. Eles representam, com
efeito _ deprimente que. exerce sobre sua conceituação o regime os escravos, os únicos elementos verdadeiramente ativos da colônia.
servil. Há outro de quase igual importância: o estímulo para a Num interessante ensaio sobre as causas da Independência, escrito
em 1823 e dedicado ao soberano português, Francisco Sierra y
longam�nto _ de. um situação política e institucional de conjunto, que só Mariscal analisa com muita clareza este abismo de concepção
se mo?1ficar� de uma forma substancial em período muito adiantado da e atitudes que separa brasileiros de portugueses imigrantes.
evolu?ªº _nac10nal do _ p_aís. E aquilo era tão bem sentido, que as revoluções
e ag1taçoe,� da pnme1ra parte do Império tomam o caráter de reações Enquanto esses últimos, chegados ao Brasil de mãos abanando,
c�:itrn o governo do Rio de Janeiro", tal como fariam contra o de escreverá Marisca!, "não há nada a que se não sujeitem, e com
L,�·bo�. O federalismo ,b:asileiro tem al a sua essência; pelo menos O da economia e trabalho chegam a ter grandes cabedais", o brasileiro,
pnmc1ra rart _ : do I,n�peno. - J:- pobreza da vida social brasileira encontra nascido na abastança, "o orgulho se apodera dele, e este é sempre
n,a co�st1_tmçao pohti�a do pais independente uma . confirmação flagrante.
,
� c)a ,1_ causa das _d1f1culdades e problemas de orgamzação e funcionamento
maior que os meios de o sustentar. . . não conhece o trabalho
rnst1tu_c1�?ªl que \i�emos de en_frentar, e q�e levaram até aquele esdrúxulo nem a economia ... e quando chega ao estado viril, já está pobre",
� artif �cial Impe110 const1tuc10nal que tivemos. Compare-se isto para
ilustrnçao, com o que ocorreu nas colônias inglesas da América do' Norte
que, separando-se da metrópole, criaram um sistema não só original de
gov_e�no, mas que. fez época e lançou um marco saliente na evolução
pohhca da Humamdade. (5) Notes, 17.
346 Ceio Prado Júnior Formação do Brasil Confempordar,o 347
porque; conclui com muita iógica o nosso autor, "não há cabedal Mas seja como for, o índio e Cóm ele seus de$cendentes mlll:s
que chegue a quem gasta muito, e não ganha nada" ( 6). ou menos mestiçados, mas formados na sua escola, e gue CO�sti­
Uma tal atitude da grande maioria, da quase totalidade da tuem parte tão apreciável da população colonial, têm. por feição
colônia relativa ao trabalho, de generalizada que é, e mantida dominante, para todos os efe�tos da coloniza�ão, "a falta �mJ.>let_a
através do tempo, acabará naturalmente por se integrar na psico­ e absoluta de energia e ação ( 8). E esta sena uma_ das pnn.cip�is
logia coletiva como um traçq profundo e inerraigável do caráter razões por que as regiões onde eles formam contingentes· muito
brasileiro. A preguiça e o ócio, aqui n� Brasíl, "até se pega grandes nunca fizeram mai� que veget�r. O govemad� do Pará,
como visgo", dirá Vilhena. Mas se a escravidão, nas suas várias D. Francisco de Sousa Coutinho, escreVIa desalentado a metf9pole
repercussões, é a responsável principal por isto, há outros fatures dep ois de três anos de governo: "O poderoso inimigo destes
de segundo plano que não deixam de ter o seu papel. O principal habitantes e a mais poderosa causa entre muitas outras de seu
deles é a contribui9ão do sangue indígena, considerável como atraso é a preguiça deles" ( 9).
sabemos. A indolência do índio brasileiro tomou-se proverbial, . Ao influxo do sangue indígena como fator de indolência,
e de certo modo a observação é exata. Onde se erra é atribuindo-a ainda há que acrescentar esta causa geral que é o sistema e�nô­
a não se sabe que "caracteres inatos" do selvagem. Na sua vida mico da colônia, tão acanhado de oportunidades e de perspectivas
nativa, mesmo na civilizada quando se empenha em tarefas que tão mesquinhas. Não seria um tal ambiente propício a estimular
conhece, e sobretudo cujo alcance compreende, o selvagem brasi­ as energias e atividades dos indivíduos, uma escola muito favorável
leiro é tão ativo como os indivíduos de qualquer outra raça. Será de trabalho.
indolente, e só aí o colono interessado o enxergava e julgava, De tudo isto resultará para a colônia, em conjunto, um
quando metido num meio estranho, fundamentalmente diverso do tom geral de inércia. Paira �a atmos��ra em 9ue a popu� ação
seu, onde é forçado a uma atividade metódica, sedentária e or­ colonial se move, ou antes descansa , um VIrus generalizado
ganizada segundo padrões que não compreende. Em que até os de pre guiça, de moleza que a todos, com raras exceções, atinge.
estímulos nada dizem a seus instintos: a ganância, a participação O aspecto do Brasil é de estagnação. ,Sai� t-�ilaire, d� pois de lon­
em bens, os prazeres que para ele não são nem bens nem prazeres. gas peregrinações e de uma pe�anencia Já de muitos an?s �m
Nada houve de mais ridículo nos sistemas de educação dos índios _
contacto íntimo com a vida do pais, nao esconderá sua admiraçao,
que isto de tentar levá-los por tais incentivos, modelados por e por isso elogiará calorosamente ·, os mora�ores de ltu e Sorocaba
figurinos europeus e estranhos a seus gostos(7). ( São Paulo), porque encontrou a1. . . um 70�0 de bola; no est�do
de espírito em que se achava, e tendo em VIsta o que presenciara
até então, constituía isto já uma "prova" de energia ( 10). Até nos
( 6) Idéias gerais sobre a revolução do Brasil, 55.Esta diferença é seus prazeres e folguedos, a população :°lon� al é apática ( ;l).
de tal forma produto do meio, que os próprios filhos do português enrique­ A apatia, Paulo Prado esqueceu-se de a mclmr ��tre os fat�res
cido, brasileiros de nascimento e educação, observa o mesmo Mariscai, da tristeza brasileira, que não vem somente da luxuria e da cobiça,
não seguem o exemplo dos pais, e "entrarão na ordem geral, he dizer, nias sobretudo de um� inatividade sistemática, que acaba se apo-
cahem na pobreza."
( 7) Até um homem profundamente conhecedor das raças de sua terra
natal, o Pará, e muito simpático a elas, como José Veríssimo, não enxergou ( 8) José Veríssimo, Populações indígenas da Amazônia, 308..
inteiramente esta situação paradoxal dos índios perante a civilização. A (9) InfON1UJÇões, 66.
indolência, a falta de ambição que se observam no índio não são senão ( 10) Voyage aux provinces de Saint-Paul ..., I, 378...
fruto de sua completa indiferença, quando não de hostilidade, relativamente ( 11) Seria muito interessante estudar o folclore brasileiro sob , est.,
a urna civilização que se lhe impôs, e cujo valor, com todos os atrativos aspecto em paralelo com o de outros países.Pelo que 9 u_alquer um já poder:\
que tem para nós, é para ele nulo. Enxergar no indígena brasileiro, ou por si observar, a conclusão não oferece a menor duvida.9omparc-se um
em outras raças de cultura diferente da nossa, falhas de caráter onde não festejo popular brasileiro com o de qualquer das populaço�s da E�
há senão atitudes próprias de um inadaptado ou revoltado, é o veza
sobretudo dos anglo-americanos. Mas qual seria, perguntamos nós, a reação p or exemplo: à apatia e tristeza daquele, corresponde o _ entusiasmo e alegria
destes últimos. O próprio Carnaval, para quem o tiver observado com
de um destes enérgicos anglo-saxões a quem lhe pedisse um dia de trabalho atenção não escapa à regra.Afora as expansões de caráter acen�adamcmte
a ser pago <.:om um jantar de pir<io de açaí ou de mandioca puba? Mutc1ti.1 org íaco ou de cultos de crenças ancestrais que nos dias comuns levam o
mutanclis, é a mesma coisa que se passa mm o indígena. O único estímulo
civilizado que o índio compreendeu foi a aguardente, que por isso a
indivíd�o à polícia, nada mais há neie. - Note-se ainda _q�e .ºelelT!eTito
brasileiro mais ativo neste setor é o negro, que tem a trad1çao do trabalho
colonização empregou largamente. escravo.
348 Caio Prodo Júnior Formação do BrasU Contem�MO :MO
dcrando <lo indivíduo todo, tirando-lhe até a energia de rir e raro se eternizá, porque o novo colonó, mesmo estabilizado_, aca­
folgar( 12). bará preferindo a facilidade de co�tumes que lhe proporcio_na�
Que dizer, nestas condições, do teor econômico da coloní:-t? mulheres submissas de raças dommadas que encontra aqm, as
Não pode deixar de ser, e não foi efetivamente, mais quê uma restrições que a família lhe trar?. E quando não, já �stará t�o
lástima. Porque afora o trabalho constrangido e mal executn,!o habituado a tal vida que o freio da mulher e dos filhos nao
do escravo, não se vai além do estritamente necessário para n;'.o atuará nele senão muito pouco(l4).
perecer à míngua. E isto explica suficientemente, a par das condi­ _ Lançadas nesta base não familiar, outras circunstâncias vêm
ções gerais da economia que já assinalei, e que são afinal a cansa reforçar a irregularidade dos costumes sexuais da colônia. A escr�­
indireta de tudo isto que estamos vendo, o baixo, o ínfimo padri:o vidão, a instabilidade e insegurança econômicas ... ; tudo contn­
de vida da população colonial, a sua pobreza, sem excetuar mesmo buiria para se opor à constituição da família, na sua expressão
as classes mais favorecidas. Do Brasil em conjunto, dirá Vilhena integral, em bases sólidas e estáveis. A formação brasileira, ao
que, apesar dos recursos naturais dele, é a "morada da pobreza." contrário do que se afirma correntemente, não se processou, salvo
E aos nabitantes da Bahia, a segunda, se não a primeira cidade no caso limitado e como veremos, deficiente, das classes superiores
da colônia em riqueza, com exceção dos grandes comerciantes e da "casa-grande", num ambiente de família. Não é isto que ocorre
de alguns senhores de engenho e lavraàores "aparatosos", que com a me.ssa da população: nem com o colono recém-chegado,
aliás nada mais têm de seu que esta aparência de ricos, chamará . nem com o escravo, escusado acrescentá-lo; talvez ainda menos
de "congregação de pobres" ( 13). com esta parte da população livre, econômica e socialmente ins­
Vejamos o segundo grupo de relações sociais .a que me referi tável que temos já visto sob outros aspectos, e à qual falta base
acima, as que derivam mediata ou imediatamente dos impulsos sólida em que assentar a constituição da família( 15).
sexuais dos indivíduos. Sobre os costumes do Brasil-colônia, neste Quanto à casa.-grande, se é certo que o seu núcleo é a família,
particular, há uma documentação abundante que só faz o desâ­ ou antes, a família ao senhor, e só ele ( da pequena, da minúscula
nimo do pesquisador obrigado a escolher. O desregramento atinge minoria portanto, e isto se esquece freqüentemente); e se, ne�te
tais proporções e se dissemina de tal forma, qu·e volta debaixo sentido, é um ambiente familiar que cerca o filho-rico da soci�­
da pena de cada observador da vida colonial, por mais despreve­ dade colonial, exceção, no conjunto, quase única; há que abnr
nido que seja. A causa primeira e mais profunda de um tal estado larga margem para restrições se pelo conceito de família não
de coisas é com certeza, e já toquei incidentemente no assunto, entendemos apenas uma estrutura exterior, mas todo aquele com­
a forma pela qual se processou, na maior parte dos casos, a plexo de normas, de "atmosfera" mesmo, que concede à família,
emigração para o Brasil. Ela não se faz senão excepcionalmente nas sociedades da nossa civilização, o grande papel de formador
por grupos familiares constituídos, mas quase sempre por indi­ dos indivíduos e do seu caráter. Neste sentido, a casa-grande
víduos isolados que vêm tentar uma aventura, e que mesmo tendo ficou muito aquém de sua missão. O sistema de vida a . que _ dá
família, deixam-na atrás à espera de uma situação mais definida lugar, a promiscuidade com escravos, e escravos do mais baix�
e segura do chefe que emigrou. Espera que se prolonga e não teor moral, as facilidades que proporciona às relações sexuais
irregulares e desbragadas, a inôisciplina que nela reina, mal
( 12) Paulo Prado, Retrato do Brasil. A tristeza brasileira foi observada disfarçada por uma hipócrita submissão, puramente formal, ao
por Saint-Hilaire, que a opõe à alegria do campônio francês ( Voyage aux pai e chefe, tudo isto faz a casa-grande, antes uma escola de
sources, I, 124); e a ela se refere ainda em outras passagens de seus diários. vício e desregramento, apanhando a criança desde o berço, que
Em particular no que diz respeito às crianças, em que deplora a falta de formação moral( 16). A família perde aí inteiramente, ou quase,
de espontaneidade e contentamento, id., I, 374. De tudo isso poderíamos
talvez excetuar o Rio Grande do Sul, de formação aliás tão diferente do
resto do país. ( 14) Ainda hoje isto se verifica, e a cada passo topamos com imi­
( 13) Recopilação, 926 e 927. - A pabreza da papulação colonial é grantes casados na Europa e amancebados no Brasil.
testemunhada não só pelo depoimento de todos os observadores contem­ ( 15) -];: talvez por isso que tanto se insiste no Brasil sobre a origem
parâneos, mas hoje ainda pelos escassos e miseráveis vestígios que nos familiar. Esta orige� eleva e distingu; os in�i:'Í?,uos, porque é p�ópria só
legou. Onde as constmções, os objetos, todo este aparelhamento que uma _
de uma- classe supenor reduzida. Ser de fam1ha entre nós, constituía um
sociedade mesmo medíocre deixa sempre atrás de si? Nada ou quase distintiw de -superioridade, de quase nobreza.
nada possuímos de uma época que não está ainda a século e meio de ( 16) Sobre_ este assunto, Vilhena nos fomeçe uma síntese admirável
nós; e o que ficou é em regra um pobre testemunho. de observações ·As· quais não precisamos acrescentar nada. Recopilação, 138 e
350 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempor4neo 351
As �a:s vjrtu�esi e em vez de ser o que lhe concede razão moral tor e de classe que impedia a regularização de muitas situações·
_ extramatrimoniais; preconceito tão forte que pode levar até a
bás1� ?e ex1stencia e que é de disciplinadora da vida sexual
dos �divíduos, torna-se pelo contrário campo aberto e amplo para desenlaces extremos, como este caso trágico de um ex-governador
o mais �esenfreado sexualismo. Advirta-se que não é no terreno de duas capitanias, Fernando Delgado de Castilho, que, apaixonado
dos sentimentos que me coloco aqui; não são as reações emotivas por uma _mulher de condição lmmilde, de quem tivera vários
filhos, preferiu suicidar-se a levá-la, casada com ele, para o Reino,
e �etivas n�s relações recíprocas de homem para mulher, ou de
pais para filhos que procuro negar, ou mesmo subestimar. Até de onde o chamavam (19).
pelo contrárió, destas só se poderiam recriminar os excessos, der­ Como se vê, seriam freqüentes os casos da vida em comum
r�mando-se em condescendências e tolerâncias sem limite que extraconjugal que não se poderiam só por isso, e para o efeito
nao fora� pouco r�sponsáveis pe�a 1:°á educação que receberam que temos em vista, considerar como exemplos de indisciplina
.
L
as geraçoes c�lomais ( 17 Mas nao e por este lado somente que
,
sexual. Aliás, de tão freqüentes que eram, acabam nem se notando,
e a opinião pública os admitia sem o menor constrangimento(20).
devem�s analisar a famiha; o seu conteudo é mais amplo que
o d� simpl�s esfera sentimental e afetiva. E se neste pecou a Mesmo contudo sem formar nosso juízo sobre os costumes sexuais
. . da colônia com esta irregularidade aparente e tão generalizada,
familia brasileira pelo excesso, nos demais falhou lamentavelmente.
temos outros elementos seguros para nos fixar sobr� eles. "Os
�eduzido_ assiI?, extensiva e intensivamente, o papel da família brasileiros", escreverá Hércules Florence em 1828, relatando a
n� vida colomal, fi�1;1 �berta larga margem à indisciplina sexual.
Nao podemos ? qm limitar nossas observações ao fato da maior expedição Langsdorff que acompanhou na qualidade de desenhista,
ou menor frequenci , _ "cujas amáveis qualidades são tão características encontram, incli­
� do casamento, pois este não só não é, por si nados como são aos prazeres, nas mulheres do país facilidade de
apenas, um� garantia de regularidade e disciplina sexuais, como
. costumes, e em geral não pensam em se deixar prender nos laços
e�ta regulanda�e, entendida em termos sociologicos, não é exclu­
s1�� das relaçoes legalmente sancionadas. Precisamos por isso
_
dmgir nossas atençõ:s sobret�do p�ra o grau de estabilidade que ( Mem6ria sobre a agricultura, 123 ). Os emolumentos matrimoniais cobra­
apresentam as relaçoes se�ua1s, se1am ou não sancionadas legal­ dos pelo· clero não eram s6 pesados em confronto com a pobreza da
mente pel� casai:iento. E _ isto é em nosso caso, e para os fins que população; os abusos são freqüentes. Assim no caso das provisões, licenças
temos aqm e_m vista, particularmente importante, porque segundo para o casamento, cuja cobrança foi considerada ilegal por ac6rdão da
o 9.ue se cohge dos depoimentos contemporâneos, quase se pode Junta da Coroa de 28 de março de 1791, o que não impediu que conti­
nuassem como dantes a serem exigidas, apesar dos protestos. Veja-se a
afirm�r . que, f?ra � caso das classes superiores, o casamento este respeito a longa controvérsia entre o Senado da Câmara e o bispo
con�htm um� si�açao excepcional. Mas é preciso reconhecer que de São Paulo, e que se encontra no Registro daquela, XII, 289, 317, 424
_
mm!as das situaçoes le�al 1e�t� irregulares se explicam por outros e outras passagens. - Esta questão do custo dos casamentos e o obstáculo
_ 1;1
que oferecia à regularização de situações ilegais, s'6 pela impossibilidade
mot�".os que a simple� m�isciplma sexual. Assim, em muitos casos,
ª. dificuldade da reahzaçao do casamento pela distância em que material que determina, tem no Brasil um papel de certa importância, e
ainda ,depois da República, achou o legislador constituinte que devi;!
fica o sacerdote celebrante nestas paróquias imensas, onde um inclinar a obrigação da sua gratuidade no texto da Constituição de 1891
padre s�, e quase sempre pouco diligente, tem de atender ( art. 72 § 4.0). Aliás inutilmente; o mal era muito antigo para desaparecer
P?pula�oes �spa�sas por dezenas de léguas de raio. Maior obs­ só com isto.
taculo a real�zaçao do casamento, e mais freqüente, é o seu custo; ( 19) Saint-Hilaire, que o conheceu pessoalmente quando governador
a este r;speito, as queixas contemporâneas abundam, e está-se de Goiás, relata a tragédia ocorrida em 1821. Voyage aux sourcu .... , II, 83.
Sobre o preconceito, como obstáculo contra o casamento, Cunha Matos
sempre as voltas com a questão( 18). Ainda há o preconceito de refere casos interessantes em Goiás ( Corografia hist6rica, 298). U;ma 'das
maiores pressões contra as alianças corri mulheres de · condição inferior partia.
das irmandades leigas, cujos estatutos incluíam dispositivos expressos a
segs. E le1:1bremos que �!e � um professor, um educador, que fala portanto respeito, cbminando pena de exclusão aos irmãos que contraíssem tais
com autoridade e expenencia postas a serviço de uma inteligência crítica casamentos.
notável.
( 20) Saint-Hilaire, Voyage aux provinces de Rio de Janeiro •.., II, 28.
(17) V �ja-se o 9-�e a respeito escreve o mesmo autor já citado acima:
.
S1er�a y Manscal, Idews gerais sobre a revolução do Brasil. O citado Governador Delgadq de Castilho, quando em Goiás, vivia publica­
mente em palácio com a amante e os filhos. Ninguém o estr�va. t ·o
( 18) Para não deixar de. citar um depoimento entre os muitos que
_ fato do casamento fora de sua classe, e não a mancebia, livre com quem
possu1mos, remeto º \e1_ tor para º que diz a respeito um dos espíritos mais
_ . _ , se quisesse, que provocava repulsa.
esclarecidos de prmc1p10s do seculo passado: o Cons. Veloso de Oliveira
352 _Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 35J
do matrimônio." :8 acreséenta mais adiante que "as moças filh:i.s ''saimentos", como se dizia. Mas daí pará um verdadeiro espírito
de país pobres nem sequer pensam em casamento:. não lhes passa religioso, vai distância considerável. As festas religiosas indig­
pela cabeça a possibilidade de arranjarem um marido sem o navam o piedoso Saint-Hilaire, que as chama de "irreverentes ceri­
engodo do dote, e como ignoram os meios de uma mulher poder mônias, em que ridículas palhaçadas se misturam aquilo que a
viver do trabalho honesto e perseverante, são facilmente arrastadas reli�ião católica apresenta de mais respeitável"(24). Sobre o
à,_vida licenciosa" ( 21). Florence repete quase textualmente o que espirito religioso da colônia, o mesmo autor endossa a opinião
o Marquês do Lavradio escrevia meio século antes: "As mulheres que ouviu do vigário de São João dei-Rei, e que "os brasileiros
por se não empre garem e por falta de meios para se sustentarem, eram naturalmente religiosos, mas que sua religião não ia além
se prostituem" ( 22). dos sentidos; e quanto aos pastores, este parecem considerar a
ofensa e o perdão como simples funções maquinais" (25).
Tocamos aqui um ponto que é o mais alarmante sintoma da
geral indisciplina de costumes que reina na sociedade colonial: Não é assim de esperar dos mandamentos religiosos um freio
a larga disseminação da prostituição. Não há recanto da colônia sério à corrupção de costumes. O culto fica nos ritos externos,
em que não houvesse penetrado, e em larga escala. Não falemos estes sim rigorosamente observados. Quanto à moral, era-se de
naturalmente das grandes e médias aglomerações, onde o fato uma tolerância infinita. Coisa que não é para admirar: afora as
é mais natural, e sempre se encontrou em toda parte. Observemos causas gerais e mais profundas que numa sociedade como a nossa
os pequenos, os mais insignificantes arraiais: quase toda a sua da colônia, e cuja feição já ficou bastante caracterizada nas
população fixa é constituída, além dos vadios, de prostitutas. É págin _ s acima, tomam inviável uma compreensão elevada da
_ �
um depoimento este geral: "Nós mais humildes povoados, teste­ Religiao e do seu culto, cabe nisto ao clero, aliás vítima também
munhará Saint-Hilaire, a mais vergonhosa libidinagem se mostra das mesmas circunstâncias, uma boa dose de responsabilidades.
com uma imprudência que não se encontraria nas cidades mais Não cogitou ele nunca, em conjunto, de levar a sério a instrução
corrompidas da Europa." ( 23). Circunstância aliás que explica o religiosa: o seu desleixo ileste terreno é lamentável, e parece que
destino da parte feminina deste numeroso contingente da popu­ os s�cerdotes não tê� outra função na colônia que presidir ou
lação, cuja masculina já vimos noutro capítulo: os desocupados e praticar os atos extenores do culto e recolher os tributos eclesiás­
vadios, vivendo de expedientes, com um pé na ociosidade e outro ticos. "Em muitos lugares,a firma Saint-Hilaire, a religião se con­
no crime. �erva só por tradição, pois os fiéis, afastados de centros povoados
importantes, passavam a vida num completo isolamento e sem
Formava a Religião, para ·tamanha corrupção, dique de
o menor socorro espiritual"(26). Nos outros lugares, embora pre­
alguma eficácia? Que a crença religiosa tem na vida colonial
sentes, os padres se ocupavam muito mais em atividades privadas
papel considerável, já o notei em outro lugár. Esta aparece lite­
e com seus negócios, já o vimos anteriormente. E a este abandono
ralmente entranhada por atos e cerimônias do culto. Folheando
em que deixa a população, acrescenta o clero o exemplo tão
as Atas da Câmara de São Paulo p. ex., não se virará página quase
freqüente de uma vida escandalosa e desregrada. O resultado
em que não se encontre algum "termo de ajuntamento" para o
de . �-do isto ?ão é de admirar porta ?to que tenha sido aquela
fim de comparecer a Câmara incorporada a missas importantes
reh�iao reduzida a um �squeleto de praticas exteriores e maquinais
ou de ação de graça� por isto ou aquilo, tedeuns, procissões -
vazio de qualquer sentimento elevado, e que é ao que se reduziu
o catolicismo na colônia (27).
( 21) Esboço da viagem de Langsdorff, 361 e 448.
(22) Carta de 12 de janeiro de 1778, cit., p. Fernandes Pinheiro, Os
últimos Vice-Reis do Brasil, 244. Logo adiante acrescenta: "Na facilidade (24) Voyage aux sources, I, 102.
que os homens têm com o trato das mulheres se segue também os poucos (25) "Les pasteurs semblent considerér comme un feu l'offense et le
que buscam o estado de casado." pardon" loc. cit.
(23) Voyage aux sources .. ., I, 127. Saint-Hilaire é em matéria desta (26) Voyage aux sources, II, 238.
natureza de uma reserva bem própria do seu feitio profundamente religioso. ( 27). Há. q�e acre �centar as deturpações da mais grosseira s1Jperstição,
Seus diários são todos de reticências no assunto, e percebe-se a sua repug­ fruto da 1gnornnc1a e sooretudo da contaminação de crenças e cultos estr:i•
nância em tratar dele. Mas a fidelidade do observador não pode esconder nhos ao_ cr(s�anism ?, t!azidos pelQs africanos e corrompidos pela escravidã('),
o que tão escandalosamente se evidencia; e daí o interesse que apresentam A contnbmçao . do ,md1gena é pequen � pois em matéria de crença religiosa,
para nós observações arrancadas a tamanhos escrúpulos. Outros viajantes su� cultura �ativa e como se sa be rudimentar. - Somente os jesuítas, p_ode-sl!
afirmar, realizaram obra mais _ mtensa
_ e sistemática de instruç.ão e educação
foram mais francos.
354 Caio Prado ]tÍ;iíor Formação do Brasil Contempor4n•o 353
Numa palavra, e para sintetizar o panorama da sociNhcle Mas por baixo palpita uma outra vida, uma transformação
colonial: incoerência e instabilidade no povoamento; pohrcza e que se esl.;>oça. Não é evidentemente possível, em terreno desta
miséria na economia; dissolução nos costumes; inércia e cormpc;:ío natureza, essencialmente dinâmico e não estático, fixar rigorosa­
nos dirigentes leigos e eclesiásticos. Neste verdadeiro descalahro, mente "momentos"; trata-se de uma situação que ainda não existe,
ruína em que chafurdava a colônia e sua variegada população, que não tem conteúdo próprio, mas é apenas um estado latente
que encontramos da vitalidade, capacidade renovadora? que se revela por alguns precursores, sintomáticos mas isolados.
Naquela tremenda desordem colonial esboçava-se uma reação. Tais fatos vêm de longe, desde o início da colonização, se
Fruto das mais variadas situações, como todas as reações que quiserem. E em rigor, poderíamos ir apanhá-los em qualquer
vêm das profundezas, e levada por outros tantos impulsos diversos, altura de nossa evolução histórica. Divertimento a que se têm
ela se esboçava e ia pr�cisando os seus contornos. Um denomi­ dedicado muitos historiadores. Mas limitando nossa atenção
nador comum somará e identificará todas aqu elas situações: o aquele período que cavalga os dois séculos que precedem imedia­
mal-estar generalizado que de alto a baixo perpassa a sociedade· tamente o atual, e que aliás escolhi por isso mesmo, vamos en­
colonial e lhe tira estabilidade e equilíbrio. MaL-estar econômico contrá-los mais salientes, mais caros e precisos. A decomposição
e social de raízes profundas. que no caso particular de cada do sistema colonial está então mais adiantada, os germes de
indivíduo ou grupo se explicará por esta ou aquela circunstância autodestruição que contém, desde o início embora, se definem
especial e imediata, mas que em última análise derivará de então com mais nitidez. E ao mesmo tempo, as forças renovadoras
qualquer coisa de mais. fundamental e geral: o próprio �istema da que laboram em seu seio, e que são aqueles mesmos germes
colonização brasileira. vistos de um outro ângulo, começam a apontar com mais fr eqüên­
A colonização produziu seus frutos quando reuniu neste terri­ cia e já podem ser apanhados mais facilmente.
tório imenso e quase deserto, em 300 anos de esforços, uma
população catada em três continentes, e com ela formou,. bem Elas então já indicam uma situação de conjunto nova, dife­
ou mal, um conjunto social que se caracteriza e identifica por rente e contrária ao sistema colonial ainda dominante; e que,
traços próprios e inconfundíveis; quando devassóu a terra, explo­ embora ainda não exista, começa a se desenhar. 11: muito difícil,
rou o território e nele instalou aquela população; quando final­ se não impossível, caracterizá-la nesta fase anterior à sua eclosão;
mente remeteu por cima do oceano, para os me rcados da Europa, ela não passa de reação informe, incoerente e desconexa que
caixas de açúcar, rolos de tabaco, fardos de algodão, barras de se revela apenas por sintomas, circunstâncias exteriores diversas,
ouro e pedras preciosas. Até aí construiu; mas ao mesmo tempo, e às vezes até contraditórias entre si. O historiador, ao ocupar-se
a par desta construção, foi acumulado um Fassivo considerável. dela, enfrenta o risco de tratar o assunto anacrônicamente, isto é,
Não por "erros", seja a nossa apreciação moral ou de capacidade, conhecedor que é da fase posterior, em que ocorre seu desenlace,
mas por contingências que não poderia ter obviado, e que só em que ela se define, projetar esta fase no passado. O que não
com o tempo se revelariam vícios profundos e orgânicos: a incor­ raro tem sido feito. Como o processo que ora nos ocupa vai dar
poração apressada de raças e culturas tão dife rentes entre si, o na separação da colônia de sua metrópole, na ·Independência,
trabalho servil, a dispersão do povoamento, tantos outros elementos são as manifestações neste sentido que se procuram. Simplismo
gue caracterizam a colonização e a constituem. Tudo isto que lamentável, que não somente restringe consideravelmente o objeto
fora em seu tempo inevitável, necessário e por isso mesmo da pesquisa, como a desvia de seu verdadeiro sentido. O final da
"acertado", revelava agora bem claramente, três séculos depois cena, ou antes, o primeiro grande acontecimento de conjunto q�e
do in�cio da colonização, seu lado negativo. E é isto que vemos vamos presenciar será, não há dúvida, a independência política
110 momento em que abordamos aqui a nossa história: daí o da colônia. Mas este final não existe aiuda antes dela, nem -está
nspecto de decomrosição em que se apresenta então a nossos olhos "imanente" no passado; ele será apenas a resultante de um
o sistema colonia brasileiro. concurso ocasional ·de forças que estão longe, todas elas, de
tenderem, cada qual só por si, para aquele fim. Algumas, possi_­
reli,,in�a na colônia. A sua influência neste terreno é considerável, e a eles velmente; todas certamente não. Mas como concorrem sem �!io,
se âeve com certeza, em boa parte, esta "mecanização" do culto religioso, e têm cada qual seu papel, nenhuma pode ser desprezada. Além
que é um dos traços mais salientes do catolicismo brasileiro: av�lit>-se o
efeito do sistema de educação inspirado em seus f amosos "exercícios espi­ clisto, e sobretudo, são elas e não o seu desenlace que nos devem
rituais", caindo em cheio nesta sociedade colonial ignorante e primitiva! inicialmente ocupar.
:$56 Caio Prado Júnior Formação do Brtuil ContempordlNO 351
J;: esta a única atitude legítima de uma pesquisl! objetiva, fcstam exteriormente sobretudo por aquele mal-estar generalizado
e que está muito lonae do que freqüentemente se faz, e que que assinalei acima e que atinge toda a colônia, é a mesma
consiste, depois de conhecida a evolução de uma situação histórica infra-estrutura econômica descrita nos primeiros capítulos deste
admiti-la a priori como . contida e imanente nela desde seus trabalho. Achamo-nos ar, vamos repeti-lo, em presença de uma
primeiros passos. Partir da presunção, no caso vertente, que o economia constituída na base da exploração, e exploração preci­
�im fatal e necessário de uma colônia é tornar-se J;><?liticamente pitada e extensiva dos recursos naturais de um território virgem,
mdependente da metrópole, e que isto já estava inclmdo em nosso para abastecer o comércio internacional de alguns gêneros tropicais
destino quando Cabral avistou os primeiros paus que boiavam no e metais preciosos de grande valor comercial. É esta, em última
mar e faziam suspeitar da proximidacle de terras; e procurar, análise, a· substância da nossa economia colonial, a própria expli­
claí por diante, todos os sinais remotos de uma "independência" cação e definição da obra colonizadora que Portugal aqui realizou.
futura, necessária e fatal. Tal base, com o desenvolvimento da população, com o concurso
Está claro 9.ue a previsão da separação da metrópole, a idéia de outros fatures vários, se torna, através do tempo, restrito e
de _que o Brasil seria um dia nação independente, já aparece incapaz de sustentar a estrutura que sobre ela se formara. Sufi­
ciente de início, e ainda por muito tempo para prover aos fins
�u�t� antes da realização do fato, e está no pensamento de alguns precípuos da colonização - a ocupação do território, o aproveita­
UJ?ivi�uos, qu�, o� por intuição, ou no mais das vezes por simples
rmmetismo e ilaçao de exemplos semelhantes ocorridos noutras mento dele com um relativo equilíbrio econômico e social; para
pa1:_es, es�eravam, � mesmo às vezes trabalhavam pela sua reali­ promover, enfim, o progresso das forças produtivas -, aquela
_ base acabou por se tornar insuficiente para manter a estrutura
�çao. E isto tambem precisa ser levado em consideração. Mas social que sobre ela se constituíra e desenvoivera; e a isto se
nao esgota o assunto, e sobretudo não o explica, porque não será
esta ou aquela idéia, de um ou de muitos indivíduos - aliás, no chegou sem que fosse preciso a intervenção de fatores estra­
caso vertente, de poucos relativamente, - que será a "causa" da nhos, mas pelo · simples desdobramento natural do processo
Independência. Muitas outras idéias, até opostas aquela, e espo­ da colonização.
sadas por um n�mero incomparavelmente maior de pessoas, inter­ Tal insuficiência se verifica pelos resultados a que levara
pretavam as coisas de outra torma. Idéias são matéria que nunca aquele desdobramento, e que acumulados, tornavam iminente,
falta: há-as sempre de todos os naipes e para. todos os gostos. na· fase que nos ocupa, uma desagregação completa, se não a
E se paramos nelas sem procurar diretamente os fatos que as paralisação da vida do país. O mais saliente dele, o mais sensível,
inspiram, ficamos na impossibilidade de explicar porque, de um é o estado a que se reduzira o acervo material do território,. com
momen_to para outro, uma destas idéias e não outra qualquer, que se contara até então para manter aquela vida. Tinham-se já
ganha impulso, se alastra, vence e acaba se realizando. As idéias quase esterilizado as fontes mais acessíveis de riqueza: terras esgo­
por si, não fazem nada; e para o historiador não devem serv� tadas por processos bárbaros de cultura ou por devastações
senão de sinais, expressões ou sintomas aparentes de uma reali­ impensadas, depósitos minerais exauridos. . . Note-se que não vai
dade que vai por baixo, nos fatos concretos, e que as provoca. aqui recriminação alguma aos métodos de exploração empregados,
Abstraiamos portant? aqui, e inic_ialmente, do que se passaria e que eram, dadas as circunstâncias, os únicos possíveis, Eles
são fruto do sistema geral que se adotou na colonização do ter­
�um ��ro que por ora _ign?ramos, e indaguemos apenas daquelas ritório brasileiro, fazem parte integrante dele; e tal sistema não
forças a que me refen acima, e que são o motor de uma trans­
formação, cujo sentido e direção não podemos ainda conhecer, poderia ter sido evitado e substituído por outro na fase preli-
mas que trabalham contra o sistema colonial. Note-se que emprego minar da colonização.
es(a expressão, "sistema colonial", não no sentido restrito do Há ainda outro resultado fundamental que se precisa destacar.,
regime de colônia, de subordinação política e administrativa à e a que levara o processo de colonização. Corr.elato aliás, e
metrópole; mas no de conjunto de caracteres e elementos econô­ intimamente ligado aquele primeiro, e sempre ao mesmo sistema
micos, soc�ais _e políticos que constituem a obra aqui realizada colonial. É a proporção considerável de populações que com ó
pela colomzaçao, e que <leram no Brasil. tempo vão ficanclo à margem da atividade produtiva normal da
O fio. condutor que . �a com�lefi�ade dos �atos com que colonização. O círculo desta atividade se encerxa quase exclusiva­
temos de hdar nos condu21ra ao mais mhmo da sociedacle colonial mente com os dois termos fundamentais da organiza� econ6micà
para nele descobrirmos a origem de tais "forças", que se rnani- e social da colônia: senhores e escravos; os primeiros, piomotmes
�38 Çaio Prado Júnior Fo�ão do Bra.4 C� 359
e dirigentes da colonização; os outros, seus agentes. Enquanto anteriores, e que foi sem dúvida um espírito brilhante, de larga
houve apenas senhores e escravos, e é o que se dá no início .Ja cultura, e profundo conhecedor da colônia.
colonização, tudo ia bem. Todos os povoadores do território bra­ Outros, de feitio menos conservador, enxergavam mais longe,
sileiro tinham seu lugar próprio na estrutura social da colônia, já falam em reformas substanciais. O nosso tã ? �onheci�o e lem­
e podiam normalmente desenvolver suas atividades. Mas forma­ brado Luís dos Santos Vilhena, professor regio na cidade do
ram-se aos poucos outras categorias, que não eram de escravos Salvador, e autor da Recopilação de Notícias Soteropolitanas e
nem podiam ser de senhores. Para elas não havia lugar no sistema Brasílicas, os representa( 28).
produtivo da colônia. Apesar disto, seus contingentes foram cres­
O governo metropolitano não fica à margem destas cogitações.
cendo, crescimento que também era fatal, e resultava do mesmo O final do s�c!-11º XVIII � primeir?s anos �o se�uinte se carac­
sistema da colonização. Acabaram constituindo uma parte consi­ ,
terizam por mumeras medidas legais e providencias que_ revelam
derável da população e tendendo sempre para o aumento. O muito bem a compreensão em que se estava da necessidade de
desequilíbrio era fatal. reformas; ou pelo menos, de que alguma cois � tinha de _ser feita.
A tais feições mais salientes e fundamentais do processo evo­ Na realidade, contudo, nada se fez de verdadeiramente eficaz( 29).
lutivo da colonização, agregam-se outras derivadas delas ou com As medidas mais bem intencionadas, e aparentemente revolu­
elas intimamente relacionadas. Dispenso-me de enumerá-las aqui, cionárias do sistema colonial, como por exemplo a liberdade para
porque isto seria recapitular toda a matéria deste livro; nela se o estabelecimento de manufaturas de ferro em 1795, ou a reforma
encontram, embora vistas de um ângulo estático, em vez do do regime da mineração em 1803, bem como outras semelhantes,
dinâmico que ora nos interessa. O que em suma se verifica, é se frustraram na prática, e isto porque, sobretudo, não se tocou
que o sistema de colonização adotado no Brasil, o nosso "sistema nos elementos substanciais do sistema.
colonial", depois de ter produzido durante três séculos' frutos Por que esta incapacidade, que não se explica unicamente
apreciáveis que contrabalançavam o negativo da sua feição, tocara pelos vícios da administração portuguesa e a profunda decadência
o extremo de sua evolução, pelo menos em alguns e principais da dinastia reinante, de realizar reformas efetivas? Precisaríamos
de seus aspectos; e a .curva que desenhara na História começava aqui, para esclarecer bem a questão, remontar muito longe, e
a infletir decididamente para baixo, para sua consumação. Esgo­ perscrutar intimamente a própria história portuguesa. Não temos
tara suas possibilidades, e seria necessariamente substituído espaço para isto, que foge ao assunto que diretamente nos in_teressa.
por outro. Mas não podemos passar-lhe inteiramente ao largo, porque muitas
O fato aliás se tomara tão sensível e patente que não houve circunstâncias da matéria que nos ocupa não se compreenderiam
entre os contemporâneos esclarecidos e que nos legaram seus sem ele. Assinalemos portanto, sumariamente, o que de modo
pensamentos, quem não o enxergasse. Lá pelos . fins do séc. XVIII mais direto se liga ao nosso assunto, e que explica muita coisa
começam a aparecer e se multiplicar os "reformadores" e seus dos fatos que se seguem.
projetos. No curso deste trabalho tenho recorrido a muitos deles, Trata-se da atitude geral do governo português com relação
não pelos planos que apresentam, o que não tem hoje interesse à sua colônia americana. A monarquia portug1,1esa se tomara
prático, mas pela lucidez com que muitos enxergavam a situação, desde o séc. XV, de um pequeno e insignifiçante reino continental
fornecendo-nos por isso dados precisos para a reconstrução de europeu, em grande império marítimo e colonial; é na base deste
um passado que era para eles um "presente" tão bem compreen­
dido. Uns, a maioria, pregavam uma espécie de cristalização das (28) Veja-se sobretudo, para o que nos interessa aqui, a 24.ª e última
condições vigentes, uma perpetuação, em ambiente de estufa, de suas cartas.
do sistema colonial tal como tinha sido e ainda era praticado. Os (29) Destaquemos aqui o nome de D. Rodrigo de Sousa Coutinho,
. males, que enxergavam muito bem, não os atribuíam ao sistema depois Conde de Unhares, que em 1796 assume a Secretaria do Ultramar,
propriamente, mas ao modo pelo qual se praticava, e sobretudo e cuja longa administração, que só veio terminar no Brasil para onde acom­
panhou o Regente em 1808, é as�i �alada por �ma constante e inteli�en!e
aos desvios que nele se tinham introduzido. Em suma, o que preocupação relativamente aos negoc10s do Brasil. A presença do seu 1rrnao
propõem é o restabelecimento dele em sua pureza original. O D. Francisco no Pará, que governou até 1803, mostra os laços que ligavam
exemplo mais tí pico deste modo de pe nsar é o do autor auônimo o ministro à colônia, semelhantes nisto aos do Marquês de Pombal, que
do Roteiro do Maranhão, que utilizei largamente nos capítulo:; também teve um irmão no governo da mesma capitania: o autor <lo Díre­
tJrio eles lndios, Franci�"º Xavier de Mendonça Furtado.
360 Caio P,aào Júnior f'ormação do Brasil Co11temporâ11eo 361
império, que a seu tempo se alargara por vastas áreas <le trt� política portuguesa, não havia aqui uma socieda_de ou 1;1ma eco­
continentes, e se reduzira na fase que ora nos ocupa praticamente nomia de que se ocupar, fosse embora em funçao dos mteresses
só ao Brasil, que se reorganiza sua estrutura e sua vida, em que portugueses, mas tão-somente "finanças" a e�d�r. L��do-se a
a parte continental, o Reino propriamente, forma o ápice e céntro maior e mais importante parte da correspondencia oficial e_ d?
controlador. Mas isto em condições especialíssimas, que distin­ legislação relativa ao Brasi!, percebe-se isto ! r_ied�atamente. :�nás
guem o império português dos outros com que ombreia no U,ni­ nunca se procurou esconde-lo, e o Real Eram e o personagem
verso, do britânico em particular. A monarquia absoluta portu­ que representa em nossa história colonial, e �em nenhum disfarce,
guesa tem por figura central e convergente de toda vida dela, o maior papel.
o rei; e com ele a corte, esta chusma de palacianos que cercam Será esta a razão fundamental da incapacidade da política
o trono e constituem, quase todos, uma nobreza togada (}Ue -portuguesa em realizar reformas substanciais que atingissem o s�u
ocupa os empregos, comissões e outras funções mais ou menos "sistema colonial". Porque este sistema não podia ser outra coisa
ligadas à estrutura administrativa da monarquia ( 30). para ela senão o que era: um simples setor, embora o essencial,
A política portuguesa é determinada por tal circunstância. daquela grande empresa comercial que é a monarquia portuguesa,
Os usufrutuários são o rei e sua corte que ele mesmo constitui, com o seu rei no balcão. Esta organização que começa com o
e com quem reparte os seus proventos; não a nação portuguesa, tráfico de escravos, marfim e ouro na Costa da Africa, continua
que só indiretamente se beneficiava das possessões imensas da com o da pimenta e das especiarias na 1ndia, � se encerra _c?1:°
monarquia. Assim foi desde o início da expansão lusitana no o do açúcar, ouro, diamantes e algodão no Brasil; que permitma
ultramar. );: aliás ao rei que Portugal deve suas conquistas: os ao Reino ocupar dois continentes e povoar um tercei_r�, tomara-se
descobrimentos lusitanos resultam de uma obra empreendida .
obsoleta. Já não funcionava normalmente, e os sacrificios que se
exclusivamente, desde seus primeiros passos até a última provi­ faziam para mantê-la apesar de tudo, recaí�m inte�ramente no
dência, por iniciativa e atos dos soberanos ou de seus delegados último retalho que ainda lhe sobrava: a colôma amencana. Como
imediatos( 31). Foi esta aliás a base do absolutismo português, reformá-la portanto, se isto destruiria a última base da orga?izaçã�?
do poder imenso e incontrastável do monarca. Só com a substituição desta por outra qualquer. Mas isto nao
Por estas razões, o Império Lusitano não será um desdobra­ ocorreria, e não podia ocorrer aos dirigentes de Portugal? porque
mento natural da nação, e esta não figurará na sua base, nem seria a sua autodestruição. Não ocorreria, pouco mais tarde,
será ela o núcleo convergente da monarquia. Sem entrar em mais nem aqueles que derrubariam o poder absoluto do rei, procurando,
pormenores, que estenderiam demasiado o assunto, podemos con­ aliás inutilmente, substituir-se a ele.
cluir relativamente ao conteúdo da política lusitana, em particular Verifica-se assim que o sistema colonial não é uma criação
no que diz respeito ao Brasil. Ela é antes de tudo um "negócio" arbitrária, reformável a seu talante. Suas raízes vão longe e mer­
do rei, e todos os assuntos que se referem à administração pública gulham no mais profundo da monarquia �ortu�esa de que a
são vistos deste ângulo particular. Assim os problemas políticos colônia faz parte. A sorte de uma estava ligada a outra. Como
e administrativos que suscita a colônia americana são sempre
pois reformá-la senão pela separação da colônia? Mas ,�ta �pa­
abordados de um ponto de vista estritamente financeiro. Para a
ração, se se tomava assim a primeira providência para a reforma
que se impunha - pelo menos hoje podemos afirmá-lo, J>Orque
( 30) A influência territorial é em Portugal mínima, e acessória da estamos na posição cômoda de quem vê tudo que se passou,
outra, a burocrática. As proporções do Reino, em relação a seu vasto Império,
explicam o fato suficientemente. antes e depois; mas naquele tempo, e para os co�tem�n�?5
.;
( 31) Só há urna exceção de vulto a esta regra: é o sistema das dona­ a coisa não era tão simples e clara -, nem por is� a idesa,
tárws, adotado nas Ilhas e repetido no Brasil, em que se procurou substituir daquela separação surgiu assim espontaneamente, lampejo e:t-nihlJ,o
a iniciativa privada à do r-ei. O fracasso no Brasil foi completo, como se de um cérebro privilegiado e angustiado por um problema que
sabe, ou então serviu apenas, num ou noutro ponto, para um tímido ensaio.
E b�o depois deste modesto início, a intervenção dos donatários pr:i.tica­ pedia solução; e que, partindo daí, se p�opaga:u, como � epiô�­
illé'nte desaparece e só subsisite nos proveitos que auferiam de suas capi­ mia ou o incêndio de uma floresta, ate reumr- um numerQ suf1,·
tanias, sem contribuírem em nada para a obra da colonização, que será toda ciente de adeptos decididos e suficientemente valotó$0S para se
de iniciativa real. Depois dos primeiros tempos da colônia, os donatários transfom1ar, num passe de mágica, em ação. Os fatos hist6ricos
somente scrüo lembrados pela história elo Brasil quan�?o se trata de fazer
reverter seus direitos à coroa, o que se consuma no séc. XVIII.
são infelizmente mais complexos que este gênero fácil e suave
:..G2 Caio Prado J.:.nior Formação do B7�il Contempordneo 363
Assim, a explicação de que é a '!idéia"_ da Independênciâ
de explicação, tipo "conto da carochinha", em que se deleitam que constitui a força propulsora da renovaçao que �e operava
muitos historiadores. _
no seio da colônia parece pelo menos arriscada. Mais co;rente
Houve é certo, já o notei, quem visse prematuramente a sepa­
ração da colônia. Ocupemo-nos com estes profetas, para liquidar
com os aconteci me�tos_ é que as vári�s idéias da separaçao,
_ _

federação, da hqmdaçao do portugues vendeHo ou tabemeHO
o assunto, de importância aqui aliás secundária, e colocá-lo em ( esta última, sobretudo, andava na boca de todo mundo), bem
seus devidos termos. É depois da independência das colônias como outras que também se agitavam, embor� fossem me!1os
inglesas da América do Norte ( 1776), e claramente por inspiração salientes: a libertação dos escravos, a supressao das barreiras
dela, que se começa a cogitar nas rodas brasileiras do exterior de cor e de classe; que estas vária� idéias nã� foss;m mais que
em imitar-lhes o exemplo. Um estudante brasileiro rle Montpellier reflexos, no pensament� dos individu�s de s1tuaçoes ob1etiv _ . s,
:i
(França), onde era grande a colônia (32), Joaquim José da Maia, exteriores a qualquer cerebro; que estao nos fatos, nas relaçoes
escreve sobre o assunto a Jefferson, então embaixador da União e oposições dos indivíd os entre si: o senhor �e engenho o,u
Americana em Paris, pedindo o auxílio do seu país para a Inde­ 1;1
fazendeiro devedor que e persegmdo _ pelo comerciante portugues
pendência do Brasil; chega mesmo a entrevistar-se com ele. Mas credor; o pé-descalço que o vendeiro português não quer co_ mo
a coisa não teve maior andamento. Outros dois estudantes, José caixeiro; o mulato que o branco exclui d� ma�or P�,rte das funçoes,
Alvares Maciel e Domingos Vidal de Barbosa, este último também ,
que despreza e humilha; o lavrador obng� do que se sente
de Montpellier levaram suas conversas e discussões mais longe, espoliado pelo senhor de engenho que lhe mói a ca�a; o �scravo
pois de volta ao Brasil participam da Inconfidência Mineira, tendo que se quer libertar . . . O osições todas qu� com igual 1usteza
sido o primeiro, com toda probabilidade, quem forneceu a l?
podem ser vistas pelo lado mverso: o comerc_iante que em_prestou
Tiradentes o material ideológico de que o ardente alferes se seu dinheiro e não faz senão cobrar o devido; o vendeHO que
utilizaria para colorir e enfeitar a conspiração e a projetada revolta. prefere seus patrícios mais diligentes e afins com seu tempera·
Nesta, bem como na chamada Inconfidência da Bahia ( 1798), mento; o branco que se formou na convicção, incutida desde o
talvez menos na última, e possivelmente também naqueles con­ nascimento e oficialmente reconhecida, da superioridade de sua
cluios do Rio de Janeiro em 1794, de que resultou a prisão, entre raça; o senhor de escravos que precisa de mão-de-obra, e não
outros, de Mariano José Pereira da Fonseca, futuro Marquês de faz mais que se conformar com o que está nas leis, nos costumes,
Maricá e único moralista que as letras tiveram até hoje, a idéia na moral, em toda ordem estabelecida e reconhecida. Todos
da separação teve, como se sabe, bastante relevo. Falou-se aí estão com a razão, e c�da q�al forjará ou ad�Rt�� á - é este
claramente do estabelecimento no Brasil de um regime político _ ,.
naturalmente o caso mais frequente, - alguma ideia para sen
independente da metrópole. Mas este pensamento nunca saiu de uso próprio e que justifique sua posição e suas pretensões.
peq11enas rodas e conciliábulos secretos. Nem mesmo entre os Se desço ao que poderá parecer minúcias, é que são elas
espíritos mais esclarecidos da colônia tratava-se de uma idéia que mais importam. Cada uma daquelas situações que aparecem
generalizada. Pelo contrário, muito poucos, excepcionais mesmo à tona dos acontecimentos, que poaemos apalpar e acompanhar,
eram aqueles que, mesmo admitindo a necessidade de reformas, ligam-se a contradições ge�ais que vêm . do }��g�. do �istema
e batendo-se por elas, levavam sua opinião a extremos revolu­ colonial, que resultam daqmlo que chamei os v1c1os do �1s!en �a.
cionários. Até às vésperas da Independência, e entre aqueles e que o processo da colonização foi pondo, um a �m, em evidencia.
mesmos que seriam seus principais fautores, nada havia que indi­ Em todos os casos e:itados, como em outros quaisquer da mesma
casse um pensamento separatista claro e definido. O próprio natureza, os indivíduos em jogo não são senão criaturas daquele
José Bonifácio, que seria o Patriarca da Independência, o foi sistema, e sofrem-lhe as contingências: o proprietário endividado
apesar dele mes�o, pois sua idéia sempre fora unicamente a de que não pode pagar, o comerciante credor que não rece�e seu
uma monarquia dual, uma espécie de federação luso-brasilcira(33). crédito, o pé-descalço que não encontra trabalho e �eios de
subsistência, e assim por diante. Tudo isto provém, direta ou
( 32) As primeiras gerações de médicos do nosso país, formados no
último quartel do séc. XVIII, vêm sobretudo desta Universidade, então a de suas leis e praxes. Era a "ralé" que hostilizava _os por��1gueses, Viag_em,
primeira da Europa na matéria. II, 291. Aliás os portugueses indiviélualmente, mmto mais que o regime,
( 33) Observou Martius que na Bahia, onde esteve em 1819, a gente noção abstrata que a maioria ainda não alcançava.
mais fina e de boa educação era toda apegada a Portugal e à conserva�·ão
Formação do Brasil Contemporâneo 365
�64 Caio Prado Júnior
indir�tamente, daquele sistell'la colonial, e são todos estes pequenos s0:11'->ra com seu dinheiro ao prestígio e posição social daqueles(36).
confhtos,_ S_?mados uns aos outros, que porão a sociedade colonial A oposição ao negociante português - mascate, marinheiro, pé­
em _ebuhçao, preparando o terreno para sua transformação. O -de-chumbo, o epítero com que o tratam varia -, se genernliza,
sentido de�t� será no de solucionar tais conflitos, pondo termo como �,ef�ri noutro capítulo, porque este, empo_lgando o co�ér_cio
às contrad1çoes profundas do sistema donde provêm; harmoni­ <la coloma, o grosso como o de retalho, exclm · dele o brasileiro,
zando-as -�m elem�ntos nov?s que vão surgir no próprio processo que vê cercearem-se-lhe os meios de subsistência; o conflito assim
das oposiçoes em Jogo, e tirando a estas a razão de ser. Tais se aprofunda e estende.
elementos novos constituirão a transformação esperada ( 34). Outra contradição do sisteina colonial é de natureza étnica,
:E: assim nas contradições profundas do sistema colonial, resultado da posição deprimente do escravo preto, e em menor
donde brota� aquel�s conflitos que agitam a sociedade, e donde proporção, do indígena, o que dá no preconceito contra todo indi­
brotará tamb�m a smtese ?elas que porá termo a tais conflitos, víduo de cor escura. É a grande maioria da população que é aí
fazendo surgir um novo sistema em substituição ao anterior é atingida, e que se eraue contra um sistema que além do efeito
aí q�e �ncontrare?1?s as forças_ motoi:as que renovarão os quad�os moral, resulta para efa na exclusão de tudo quanto de melhor
econ�mi?°s e sociais, da colôma. Ve1amos_ pois tais contradições. oferece a existência na colônia. O papel político desta oposição
A pnm�rra, porque e a _que representa maior papel e atinge as de raças, ainda pouco avaliado, é no entanto considerável. Afora
cl�sses m�uentes e domu�a�tes na ordem colonial, tem por con­ o que se percebe da luta surda e revolta latente das raças opri­
_ midas, e que os depoimentos contemporâneos, apesar de muito
teudo a cISao que se venfica entre proprietários - senhores de
engenho, lavradores, fazendeiros, - de um lado, comerciantes do reticentes no assunto, não podiam esconder - corno por exemplo
outro ..p me t_enho referido ao assunto, procurando caracterizar a observação de Vilhena sobre o "att·evimento" dos mulatos( 37)
-, ocorrem sintomas mais graves e prenúncios de choque em
a . posiçao re.Jattva des�as classes, separadas por interesses antagô­
mcos que tem sua ongem, sobretudo, na situação respectiva de perspectiva. A devassa procedida por ocasião da Inconfidência
devedor e credor. O que aguça o conflito é a insoivabi-lidade baiana revela-nos, através dos depoimentos prestados, bem como
crônica dos débitos comerciais na colônia, resultante da crise mais no texto de papéis sediciosos que se fixaram nos lugares públicos
ou menos intensa em que se debate a produção brasileira em da cidade, que o nervo principal do levante projetado era a dife­
particular a do açúcar, no correr do séc. XVIII, e que, em úÍtima rença de castas, a revolta contra o preconceito de cor( 38). Aliás
análise provém das condições de uma economia débil, mal estru­ quase todos os consipadores prelios são pardos e mulatos da mais
turada e conduzida, e visceralmente ligada a um mercado exterior baixa extração.
p�ecário � ince�to ( 35). Aguça-o também a diferença profunda de A condição dos escravos é outra fonte de atritos. Não se
vida e psicologia que separa as classes referidas e os indivíduos julgue a normal e aparente quietação dos escravos, perturbada
aliás pelas fugas, formação de quilombos, insurreição mesmo -
9ue respectiv�mente as ?°mpõem, fruto também de condições
merentes ao sistema colomal: de um lado brasileiros proprietários como as que agitam a Bahia em princípios do século passado, e
que se consideram a "nobreza" da terra educados num regime que se repetem em 1807 09, 13, 16, 26, 27, 28, 30 e 35 ( 39), -
de vida _ larga e de g;randes �astos, desprezando o trabalho e a fosse expressão de um confoimismo total. É uma revolta constante
economia; doutro o mascate', o imigrante enriquecido, formado que lavra surdamente entre eles sobretudo lá onde são mais nume-
numa rude escola de trabalho e parcimôr.ia, e que vem fazer
( 36) "Os portugueses são ativos e industriosos, escreverá Martius, os
brasileiros, nascidos na fartura e criados entre escravos domésticos de pouca
. (é34) C?mo esta Õacmonização" em todos os casos que temos em educação, preferem o gozo ao trabalho, e deixam aos forasteiros o comércio,
vista posterior � período que ora nos ocupa, não cabe aqui o seguimento preferindo desfrutar o bem-estar da fazenda." Viagem, II, 479. Boa parte
do processo que ficará para a segllllda parte deste trabalho. Mas da análise da crise social e política brasileira de princípios do século passado está
que segue ?ªs contradições fundamentais que solapam o sistema colonial, contida nesta observação.
se percebera o rumo para o qual tendem. ( 37) Recopilnção, 46.
.. ( 35)em Não . me deterei no . assunto que pertence antes à história eco­ ( 38) Inconfidência da Bahia, em 1798. Devassas e seqüestro. O texto
n_ o, m1c� particular; para ma1s aprecíações sobre a situação comercial e dos papéis sediciosos foi publicado por Brás do Amaral em apêndice ao seu
fmaceira da produção brasileira no momento que ora nos ocupa e na fase trabalho sobre A conspiração republicana da Bahia de 1798.
�;11e .º precede, re�eto o leitor, entre outros, para o trabalho contemporâneo ( 39) Estudou-se até hoje, unicamente, Nina Rodrigues, Os Africanoi
Jª diversas vezes citado: Descrição econômica . .. no Brasil, 166.
366 Caio 'Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo 367
rosos. mais conscientes de sua força, ou de nm nível cubm1l colônia e do sistema político e econômico que a constih1i. o
mais elevado, o que se dá particularmente na Bahia( 40). Re1ati­ que aliás se encontra implícito em todas as páginas deste tr:1lJ:li',o
vamente a esta cidade, que foi o maior centro de aaitações servis em que procurei analisar a obra da colonízação em pr:nC'Íp:ns
na história brasileira, conta-nos Vilhena o estadob de perpétuo do século passado. A enumeração que fiz acima das que aparçc,'m
alarma da população livre, sob a ameaça perene desta "corporação com mais evidência é antes exemplificação. É o sistema colonial
temível'', como ele chama os escravos ( 41). em conjunto que aparece profundamente minado e corroído. Os
A estas situações específicas de oposições e atritos, acrescem aspectos com que tal desagregação apareca na superfície dos
outras �ais gerais que resultam_ diretamente da administração acontecimentos, desabrochando em choques e conflitos vários, são
metropolitana, de seus atos e processos. São os que, no assunto, multiformes e complexos, e é s6 por abstração e para facilitar a
mais se estudaram: a ação do fisco, os processos empregados exposição que podemos reduzi-los aos esquemas simples que
no recrutamento, a mesquinha política econômica da metrópole, apresentei, e que são uma sombr:a da realidade integral. As contra­
o despotismo dos capitães-generais, etc. Mas o papel deste fator, dições do sistema colonial têm de comum unicamente isto: o
embora mais aparente, é relativamente pequeno no conjunto do de refletirem a desagregação deste sistema e de brotarem dele.
processo revolucionário que agitava a colônia. No mais das vezes, No seu conteúdo, bem como nos aspectos cambiantes a cada
momento e em cada lugar cómo que se apresentam, divergem
?S �t?s e_ abusos _da administração serviram antes de pretexto e consideravelmente. Não é possível alinhá-los num dualismo rígido,
1ustificaçao de atitudes extremadas e revolucionárias, ou contri­
buíram apenas como fatores imediatos, a gota dágua no copo em dois campos opostos e rutidamente definidos. Se os seus
trans�o�d�nte (_42). termos respectivos se opõem num caso, penetram-se e se confun­
_ A ação da política metropolitana com relação dem noutro. Para exemplificar com os mesmos casos que empre­
à coloma e mais mteressante, no caso vertente, não nestas medidas
pa;Íiculares, mas no seu aspecto geral e de conjunto que lembrei guei acima, temos os proprietários e indivíduos das classes infe­
acim �, � que a�e como força co�servadora principal do "sistema riores livres unindo-se contra os pegociantes; mas juntando-se
colomal , e freio às transformaçoes em elaboração. também com estes últimos contra os escravos; e vemos ainda
Não haveria vantagem em continuar aqui nesta dissecação aquelas classes inferiores congregando-se contra proprietários e
das contradições e fontes de atrito que laboram no seio da comerciantes que estão por cima, e que para este efeito, como
possuidores, se aliam contra as não-possuidoras. . . Veremos
brancos lutar com pretos e mulatos contra o preconceito de cor
( 40) Note-se que a par de reivindicações materfrtis, ou envolvendo-as ( Inconfidência baiana); mulatos e pretos, com os brancos, a favor
e com elas se confundindo, aparecem outras de natureza relio'"'iosa ' como
ficou bem claro na revolta de 1835 na Bahia. dele; portugueses contra a metr6pole, e brasileiros a favor ...
( 41) � t�mor perfeitamente 1ustificável em que se vivia revela-se no Isto num momento para mudarem de posição respectiva logo em
alarma co_ns!deravel que causavam quaisquer opiniões contra a legitimidade seguida, e de novo mais tarde . . . É este aliás o espetáculo em
da escrav1da�, como neste caso ocorrido em 1794, e de que nos dá conta todas as situações análogas, em qualquer época ou lugar; e cuja
a correspondencia do Governador D. Fernando José de Portugal. Tratava-se aparente ilogicidade se procura explicar ingenuamente, generali­
de um _ca1;u_chi�h?? Frei José de Bolonha, que andava propagando, até pelo
confess10na_no, ideias pouco _ ortodoxas a respeito. Logo que o fato chegou zando casos muito particulares e no conjunto insignificantes, em
ao co_nhec1mento das autondades, o frade foi severamente punido pelo termos individuais e morais: incoerência, idealismo ... conforme
Arc�b1spo, su_spenso de confess:1r e embarcado incontinenti no primeiro o gosto e as preferências pessoais do julgador. Quando os homens,
nav10 de partida. Carta do governador de 18 de junho de 1794. O trnbalho joguetes dos acontecimentos, são por efes levados e dispostos no
servil deu origem a muitas outras contradições imanentes no sistema colo­ tabuleiro da H�st6ria, sem que no mais das vezes sequer se dêem
n;�l, e que só se r�solveram intef;amente muito mais tarde, pela abolição.
Nao me_ ocupo aqm do assunto, Jª tratado noutro lugar ( Evolução política conta do que estão fazendo e do que se passa.
do Brasil), 1;orque emb?ra presen_tes na fase que nos interessa, pertencem Precisamos acrescentar que aquela aparência il6gica e incon­
mais_ ao eno?º posterior. Refen-me no texto unicamente à contradição
gruente dos fatos não s6 torna difícil sua interpretação, como
mais geraf e imediata que resulta da escravidão, e que é a oposição de constitui a razão da dubiedade e incerteza que apresentam toçlas
escravos e s�nh?res, porque _é a qu�. r_ �presenta em nosso r;nomento o principal
papel, contnbumdo i:ara a mtranqmhdade geral que sera o terreno propício as situações semelhantes a esta que analisamos. Duhiedade e
para as transformaçoes que se elaboravam no seio do sistema colonial. incerteza que estão nos pr6prios fatos, e que nenhum ru:tifício•
( 42) O caso. da "d_errama", em Minas Gerais, para o pagamento do de explicação pode desfazer. Os fatos claros em seu conjunto,
qumto, e que devia servlf de pretexto aos conspiradores da Inconfidência e definidos, s6 vêm em seguida, quando tais situações. amadurecem.
para desencadearem o movimento, é um exemplo no assunto.
Formação do Brasil Contempol'd9Co :169
368 Caio Prado Júnior
lnút.il procurá-los antes, to rcendo os acontecim entos ao gqsto
particufa r do obse rvador. E mesmo depois daqueles primei ros
tudo, é orgtmico, ar ti�ub.do ?entro e �o� ?ª .
colôni a, sist�m�ti�
e consciente. Não se n a por sunples comcidencia que os pnnciJ?alS
fatos �eci�ivos, qu anto não de co rr erá até que o p rocesso se com­ fautores da Independência, até o p róprio futu ro Imperador, ;-ei� m
pl ete m�eiram ente com a solução de todas as contr adições para maçons, que to das as palav ras de o r dem, que saem a publico
se repetir e renovar noutras que se vão formando e su rgem inces­ e p rocu r am orientar ?s aconte: im entos, apareça:° an_tes e se ela­
santemente? É o movimento eterno da História, do Homem e . .
bor em nas lojas maçonicas. Nao se t rata de comcidencia. O que
de t odas a� coisas, qu e não p'ára e não cessa, e de que nós, com há é uma ação subterrânea e sistemática que trabalha em certo
os pobres 2nstrumentos de compreensão e de expr essão que pog.. sentido. Noutras palav ras, além dos indivíduos que atu am em
,
smmos, nao apanhamos e sobretudo não pod emos ·reproduzir todos os grandes fatos da n ossa história de�� e os último� an_?S
senão numa parcela ínfima, cortes desaj eitaaos numa realidade do . séc. XVIII, há uma organização em atividade, organ! zaç ao
que não se define estática, e sim dinamic amente. de que m uitas vezes aqueles indivídu os nada mais são qu� simples
No momento que nos ocupa, não ent r amos ainda na fase dos instrumentos, e digamos a palavra, nem semp re pe rfeitamente
�c?i:itecimentos decisi�os e de grande enve rgadu ra, cujo marco conscientes de seus atos.
imcial pod emos grosseiramente f aze r coincidir com a t ransferência Através da maçonaria, a política br asileira, ou antes os p ri-
da cort� po�g�esa para o Rio de Janeiro. Mas vimos que as me iros vagidos do que seria a nossa política, articulam-se com um
_
C?ntradiçoes ai Já estao latentes, e começam a se manifestar em movimento internacional de p rop orções muito mais v�stas. Com?
sintomas alarmantes que põem em xeque toda a estrutu ra colonial. se sabe, a maçonaria se organiza no B rasil, ou por açao de brasi­
Para onde levará aquele processo confuso, complicado, oposto leiros, bem como de portugueses, chegados da Europa e que agem
mesmo nos seus próprios termos, como o mar encapelado em que por impulsos vindos de lá, como é o caso, entre outros, da
as vagas se !azem e desfazem, convergem e divergem, rolam na primeira loja de Pernambuco, fundada em 1796 po� Ai:ruda
. ,
r;nesma direçao ou se entrecruzam, para dar afinal numa resultante Câmara, o naturalista, sob o nome de Areopago; ou entao direta­
.
umca e comum que é o embate violento contra o penhasco ou mente por agentes est rangeiros, espe cial e? te destacados p�ra
1? _
a on�a que se al �str� e espr eguiça pela areia? Não nos ocupemos este fim, ou que pare cem com toda a evidenci a tal, na medida
com isto que � adiante d� nosso assunto. No limite de tempo em que se pode penetrar � véu �e mistério 9ue cer ca a vida
. - . ' ,
dele, a imprecisao amda e completa; a ação dos indivíduos maçônic a. É o caso de ste cavaleiro Lau rent que aportou no
como s�as idéias e opiniões, divergem la rgamente; mais qu e isto'. Rio de Janeir o em 1801, e fundou aí a p rim eir a loj� r eg-µh:r _ sob
contradize m-se dentro das mesm as correntes de pensam ento e de o nome de Reunião ( 44). De qualqu er form a, as lo1as maçomcas
ação, quando não no p róprio íntimo dos atores do dr ama que se do B rasil são evidentemente o rganizadas sob encomenda de suas
repr�senta;1a . E este é o <_:aso da própria e única organização que matrizes eu ropéias.
.
na mcoerencia e confusao geral do mom ento se orienta e se Em princípios do séc. XIX havia lojas e�palhadas pelos pi:m­
conduz com mais p recisão e segur ança: refiro-me às sociedades cipais centr os da colônia, e não só se articulavam entre s1 e
sec retas, em particular à maçonaria. com as da Europa, suas inspirador as, mas com as dos Estados
Já não pode haver mais dúvidas acerca do papel que a maço­ Un idos e das demais colônias am ericanas. A interv enção de uma
. poder osa o rg anização de�ta natureza na vid� brasileira P?r si
nana r epresentou na história brasileira desde fins do séc. XVIII, _ ,
quando aqui penetra e se o rganiza. Papel que não é somente já mostra que acima dos mdividuos que se agi�am no cenáno d_a
aquele que em regra se lhe concede, o mais insignificante deles política da colônia, há uma vontade e ação gerais, certamente mais
e que é o de uma àe suas lojas, o Grande Oriente do Rio de Janeiro'. fortes que as daqueles. Aliás a maior parte dos personagens que
e s. �u rebento: º. Apostolado <!,os Andradas( 43), que saem a público têm algum papel saliente naquele período é for mada de maçons .
. Da presunção se po de passar à ce rteza quando se compulsam
drngmdo os ultrmos acontecimentos que precedem imediatamente
a !?dependência e a determinam. O papel da ·maçonaria é muito os fatos que numa out ra nout ra ocasião rompe ram o �istério
, .
mais amplo e profundo, como também mais antigo; e mais que maçônico, trazendo a luz o que se d�s en rolava no i�teno� . das
lojas. A ação da maçonaria aparece entao em toda su� m� e�dade
.
( 43) ? Apostolado não era propriamente maçônico, mas inspirou-se
e extensão, e sente-se que é ela, mais que qualquer individuo ou
na m�ç�nar1a, e tem o mesmo caráter, embora represente tendência política
antagomca.
( 44) Manifesto maçónico de José Bonifácio.
370 Caio Prado Júnior Formação do Brasil Contempordneo :r71
gru�o de indivíduos, quem estava controlando, por detrás dos ou aqueles, a maçonaria não poderia torner os fatos da nossa
bashdores, os acontecimentos da nossa história. história. Limitou-se a tirar partido deles para os seus fins, como
Não é poss�vel esmiuçar aqui um assunto que se prende aos os primeiros tirariam dela para os próprios.
. É assim que, em síntese, se deve interpretar a intervenção da
maiores acontecimentos !nternacionais do séc. XVIII e do seguinte,
e 9ue ultrapassam sensivelmente a história particular do Brasil. maçonaria na política brasileira de fins do séc. XVIII e princípios
Ha um ponto contudo que toca de perto o nosso assunto e não do seguinte. Ela não traz modificação alguma aos fatos que nos
pode por isso deixar de ser elucidado. E ele é o do sentido e interessam. Procurando controlar e orientar os acontecimentos
da medida em que aquela intervenção estranha participa dos brasileiros, a maçonaria não lhes acrescentará nem tirará nada
fatos que ora. n?s ?cupam. Está claro que a situação colonial, de substancial, corno aliás seria absurdo imaginar. O que a inte­
tal qual a anahse1 acima, com suas contradições e conflitos internos ressa é somente o grande objetivo que é seu, e que assinalei
n_a�a ,�em a ver com a maçonaria ou com qualquer outra açã� acima; quanto à melhor forma de contribuir para isto ?.t!.''"'"�
ou ideia desta ou daquela natureza vindas de fora. É uma situacão da situação particular do Brasil, havia grande margem de alter­
fruto d_e condi9�es pró�rias da colô iª: e que se liga unicame�te nativas, e nunca houve mesmo entre os próprios maçons unani­
!1
ao regime .P?hhco e sistema econom1co e social aqui vigentes. midade de opinião ou de ação a respeito. Qualquer reforma,
Neles se ongma e a eles deve exclusivamente sua razão de ser( 45). fosse em que direção fosse, iria atingir o absolutismo português,
o grande alvo visado aqui pela maçonaria. A simples agitação,
O papel da maçonaria foi neste, como em tantos casos aná­ mesmo que nada de concretb se realizasse, já seria um resultado
log?s,_ tentar ��icular �1:1ª situação própria e interna de uma apreciável. Qualquer caminho, portanto, poderia servir, e só lhe
coloma europeia, _à pohtica �eral da Europa, cujo objetivo era interessava que fosse perturbada a estabilidade do trono português.
a reforma que ve10 a dar afmal neste novo equilíbrio do conti­ Explicam-se assim as lutas no seio das lojas ou entre elas, e que
n;nte; e de cad� um dos seus países em particular, que é O do trazem muitas vezes para o interior da orianização os conflitos
sec. XIX. Tudo isto não toca senão remotamente o nosso assunto que vão por fora e que ela procura conduzir( 46).
porque a intervenção_ d� maçonaria numa insignificante colôni�
com? nós, só lhe podia mteressar, e de fato só lhe interessou, na Numa palavra, a diretiva e ação geral e efetiva da maçonaria
medida em que contribui para atingir um dos redutos do abso­ como entidade internacional, não desce às minúcias da política
lutismo europeu, contra que, de �ma forma geral, ela se dirigia. particular da colônia. Neste setor, agirá como estimulante apenas.
E por isso, em tal qualidade internacional e de conjunto, só
!ra_tava-se no caso da monarqma portuguesa. Era uma ação
indireta e remotamente pode interessar ao Brasil. Os nossos maçons,
md_lfeta, em que o Brasil não servia senão como instrumento.
agindo neste ou naquefe sentido, e dentro dos objetivos especiais
C01sa semelhante se passa aliás com as demais colônias ameri­
e particulares da colônia que tinham em vista, estão na realidade
canas, em que o �im almejado era o trono espanhol. Daí o inte­
agindo não como "maçons", mas como "brasileiros." O que o
resse da rnaçonana em apoderar-se e manejar uma situação que
fato de pertencerem à maçonaria lhes acrescenta é a organização,
se desenhav� nas �lônias da An;iérica, e que de uma forma ou a possibilidade de uma maior unidade de vistas e de ação conjunta,
outra podena serv!f a seus propositos. que sem ela, e na falta de outra organização semelhante, teria sido
. De seu_ lado, os �rasileiros e todos que tinham um interesse ainda mais dispersiva e incoerente que foi. O mínimo de conti­
direto . na vida da colonia, e sentiam, mais que compreendiam a nuidade na linha de ação que se insinua e serpenteia através dos
necessi�ade de reformas, encontraram na maçonaria um instru­ confusos acontecimentos políticos da colônia desde fins do séc.
mento ideal, tanto pelo seu prestígio e ligações internacionais XVIII, e que iriam dar afinal na Independência, é sem dúvida
como pela força que s� acumulava atrás dela, paià. â. realizaçã� atribuível à circunstância de terem pertencido a maioria e os
d�que�as reformas. Mmtos, naturalmente, não agiram senão por principais atores deles a um organismo bem articulado e já com
mimetismo, � foram ser�ir depois d� simples joguetes mais ou larga .:xp�riência políti:ª· A maçonaria emprestou assim alguma
menos conscientes nas maos da orgamzação. Mas seja com estes consc1enc1a a uma açao que, sem ela, embora continuasse a
existir, teria sido certamente cega e desorientada. Ou teria, o que
( 45) Observação necessária, embora evidente, para responder às fanta-
.
sias � certos_ tra?a�os ap_ressados pseudo-históricos, tipo panfleto, que com ( 46) O i\fanifesto maçônico citado revela alguns aspectos daqueles
ob1et1"'.os e msp1raçao un�camente de propaganda política de momento, se
atrito,; e lutas intestinas.
vulganzaram nao faz muito no Brasil 1942).
Formação do Brasil Contempordneo 373
372 Caio Prado Júnior
é mais provável, recorrido a outra or�anização semelhante, frita Também não é de desprezar a intervenção inglesa, esta menos
sob encomenda e que a teria substitmdo. Se se preferiu- a ma�o­ sentida nos seus efeitos diretos porque, aliada de Portugal e
naria para a tarefa, foi por motivos óbvios. sua protetora, a Grã-Bretanha manejava mais seus negócios e
Há, portanto - empreguemos a palavra um pouco arriscada, interesses na própria corte do Reino. Mas embora toda esta
mas exata se nos colocamos no ponto de vista de uma história matéria de intervenção secreta de governos estrangeiros ainda
local como a que fazemos aqui - há uma "coincidência" entre um esteja pouco devassada, não se pode pôr em dúvida a grande
fato de nossa história, e outro de natureza muito mais ampla: de atividade subterrânea que vai em conseqüência dela pela nossa
um lado, a situação brasileira, tal como resulta d& suas circuns­ p olítica dos primeiros anos do século passado, e que é pelo menos
tâncias peculiares; doutro, uma internacional, estranha em prin- · de iguais conseqüências às interve:nções espetaculares que a
cípio, mas que indiretamente se liga a nós· a maçonaria e seus História oficial registra.
objetivos na política européia. Ainda há finalmente mais um setor em que a política brasi­
Não seria esta aliás a ocorrência única de uma tal "coinci­ leira se liga ao momento internacional. f: o da ideologia que se
dência". Encontramo-la em outros setores, ligados todos mais ou adota aqui, e que servirá para explicar, justificar e emprestar aos
menos intimamente ao primeiro assinalado. A intervenção nos nossos fatos o calor das emoções humanas; tal é sempre o papel
fatos de que orci. nos ocupamos, já não de uma organização privada das ideologias, que os homens raramente dispensam, e que em
como a maçonaria, mas dos próprios poderes públicos das nações nosso caso, não sabendo ou não podendo forjá-las nós mesmos,
estrangeiras, é bem sensível. � o caso em particular da França fomos buscar no grande e prestigioso arsenal do pensamento
revolucionária e bonapartista, adversária de Portugal que se aliara europeu. Em especial, na filosofia aa Enciclopédia e dos pensa­
com seus inimigos se_culares, e agora mais que nunca: os �gleses. dores franceses do séc. XVIII.
A ação do governo francês, indiretamente através de suas liga­ O porque desta escolha deve ser procurado, em primeiro
ções na Europa, e em particular com a maçonaria - que volta lugar, em razões semelhantes às que fizeram adotar aqui, para
aqui à baila, e que é, no exterior, uma das grandes armas da organismo político dirigente, a maçonaria internacional. Aliás a
Revolução -, mas também diretamente por agentes seus que afinidade entre esta organização e aquela filosofia é notória, e
trabalhavam no Brasil, se faz sentir a cada passo. Em 1809, o isto já explica muita coisa. Mas além disto, é de considerar que
governo português, então recém-chegado ao Rio de Janeiro, nenhum pensamento, nenhuma idéia, e sobretudo nenhum con­
chama a atenção da Junta interina que então governava a Bahia, junto teórico deu aos fatos universais do séc. XVIII - "universal"
para vários franceses aí domiciliados, inclusive e sobretudo um aqui é o da civilização ocidental a que nos filiamos -, uma
"certo Abade", cujo nome não é citado e que se ignora, franceses interpretação mais ajustada, tão harmoniosa, tão esteticamente
esses que tinham ficado desde o temyo em que tocara naquele perfeita, um corpo de doutrina tão completa e geral como aquela
porto a esquadra que transportava Jerônimo Bonaparte, irmão filosofia. E particularmente tão a calhar com as necessidades do
do Imperador( 47). � também possível que a conspiração desco­ momento, e de acordo com os impulsos mais íntimos dos contem­
berta em Pernambuco em 1801, e de que participavam o natura­ p orâneos. Comparável a ela, só se encontrará, para a situação
lista Arruda Câmara, fundador, anos antes, do já citado Areópago, do século seguinte, o socialismo. Não é pois sem motivo plena­
e os irmãos Cavalcânti de Albuquerque, senhores do engenho mente justificável que empolgasse todo mundo pensante, e servisse
de Suaçuna, conspiração que tinha por obietivo tomar Pernam­ "oficialmente" para vestir das roupagens do pensamento os fatos
buco independente sob a proteção de Napoleão Bonaparte, então que se desenrolavam no mundo. Os brasileiros não poderiam
Primeiro Cônsul, tivesse agido por inspiração direta de agentes ficar imunes ao contágio. Alás vários representantes da intelli­
franceses( 48). Este assunto ainda não está bem esclarecido; mas gentsia da colônia estiveram em contacto direto e íntimo com ela,
traz sem dúvida muita luz sobre a confusa história dos aconteci­ sejam os que estudaram na França, sejam os que procuravam
mentos que nos ocupam. por outro motivo qualquer o que já era então a Meca do pensa­
mento ocidental. Em Portugal, colônia comercial da Inglaterra,
( 47) Carta de 17 de nooembro de 1809. Bras do Amaral nos seu� mas intelectual da França, a filosofia deste país se difundira
Esclarecimentos sobre o modo pelo qual se preparou a Independ8ncia, largamente; e até no rançoso casarão de Coimbra, as reformas
publicou este e outros documentos sobre o assunto.
(48) Vejam-se as anotações de Oliveira Lima à Hist6ria da Revofoção de Pombal tinham-lhe aberto algumas frestas que foram avida­
ele 1817 de Muniz Tavares, pág. 73. mente aproveitadas.
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Será assim, na medida em que idéias gerais, se não idéias dades e a "gente boa" da época. A correspondência oficial deixou
tout courl puderam penetrar a espessa crosta de ignorância estampado o terror que prnvocam tais idéias( 52). O simples
colonial, será a filosofia francesa do séc. XVIII que dominará os conhecimento da língua francesa chegava a ser mal visto: um
espíritos capazes deste domínio ( 49). O fato é tão notório que tio de Fernandes Pinheiro, futuro Visconde de São Leopoldo,
não se precisa mais insistir nele. Tudo que se escreveu no Brasil cônego da catedral de São Paulo, sabendo que ensinavam francês
desde o último quartel do séc. XVIII, que é quando realmente ao sobrinho, reclamou revoltado, na sua qualidade de chefe da
se começa a escrever alguma coisa entre nós, traz o cunho do família, a suspensão formal deste estudo que ia pôr a inocente
pensamento francês: idéias, o estilo, o modo de encarar as coisas criança em contacto com os "libertinos, ímpios e ateus princípios
e abordar os assuntos. Aliás a leitura dos nossos avós, a parca daquela nação"( 53).
leitura que se fazia nesta colônia de analfabetos em que só um Mas a ideologia revolucionária francesa venceria estas resis­
punhado de pessoas saberia ler, e destas, muito poucas se ocupa­ tências, e se adotará "oficialmente" para as circunstâncias brasi­
riam com coisas do espírito, é quase toda de origem ou inspiração leiras. Nos seus traços gerais, ela parecia perfeitamente aplicável
francesa. As devassas da justiça colonial, que os acontecimentos às necessidades políticas da colônia. A "liberdade, igualdade e
políticos tomam freqüentes desde fins do séc. XVIII, desvendam­ fraternidade", que como norma política a sumaria, ia prestar-se
-nos os segredos das principais bibliotecas particulares que então bastante bem às várias situações que aqui se apresentam. Casti­
havia na colônia, e que, seqüestradas e arroladas, chegaram até gada embora, e deformada não raro ( que castigo aliás, e que
nós nas páginas amarelecidas e roídas de traça dos autos. A aeformação não cabem no vago da fórmula francesa?), ela servirá
literatura francesa, e só ela no que diz respeito a filósofos, mora­ de lema a todos que pretendiam alguma coisa: senhores de
listas, políticos, está aí abundantemente representada ( 50). Os via­ engenho e fazendeiros contra negociantes; mulatos contra brancos;
jantes estrangeiros que nos visitaram em princípios do século pés-descalços contra calçados; brasileiros contra portugueses ...
passado notarão a influência decisiva da cultura francesa; e o Faltou apenas "escravos contra senhores", justamente aqueles a
favor das idéias racionalistas e revolucionárias daquela .cultura, quem mais se aplicaria como lema reivindicador; é que os escravos
no momento em questão, é lamentado por Saint-Hilaire, que embo­ falavam - quando falavam, porque no mais das vezes agiram
ra francês, formava politicamente em campo oposto a elas. E Mar­ apenas e não precisaram de roupa�ens ideológicas -, falavam
tius observará o que ainda hoje, à primeira vista, nos parece um na linguagem mais familiar e acess1vel que lhes vinha das flo­
paradoxo: apesar do completo domínio comercial exercido pela restas, das estepes e dos desertos africanos ... ( 54).
Inglaterra, e do número muito maior de ingleses aqui domiciliados,
a cultura francesa não sofre concorrência( 51). Aliás a cultura
inglesa ainda se ignora inteiramente. Os ingleses não eram com
suas idéias tão fefizes como com seus tecidos, sua ferramenta e
sua louça.
Uma tal difusão do pensamento francês, "idéias jacobinas"
ou "abomináveis princípios franceses", como se dizia aqui em
certas rodas, não deixava de alarmar muito seriamente as autori- (52) Veja-se, entre outros casos, o de um comerciante da Bahia,
acusado de ter, em sexta-feira santa, dado um "banquete de carne", o que
provocou até uma devassa; o bode expiatório foram os "abomináveis prin­
( 49) Notemos aqui, mais uma vez, a contribuição que para este cípios franceses", como lhes chama a correspondência oficial. Vigilância
terreno particular trouxe a maçonaria, incumbindo-se de propagar no Brasil do governo português..• Veja-se também: Brás do Amaral, Esclarecimen­
o que· era, pode-se dizer, sua ideologia oficial. Acresce o fato de ser a tos... , 380.
maior parte das lojas brasileiras filiadas ao Oriente da Ilha de França ( Isle (53) Con. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, Apontamentos bio­
de France), com sede em Paris. Não se esqueça finalmente o prestígio da gráficos.
França na América depois que prestou seu concurso à libertação das (54) A identificação com a ideologia francesa foi em certos meios
colônias inglesas do continente. São outros tantos fatos que explicam, revolucionários tamanha, que "francês" se tornou sinônimo de reformador,
naquela época, a vassalagem intelectual do Brasil aquele país. revolucionário. :E: o que se lê nos depoimentos prestados na devassa da
( 50) Vejam-se os Autos da Devassa da Inconfidência Mineira e In­ conspiração de 1798 na Bahia, em que ocorrem expressões como "fulano
confidência da Bahia de 1798, Devassas e Seqiiestros. tem cara de francês", "convinha que todos se fizessem franceses para
( 51) Viagem, II, 293, viverem em abundúncia", etc.
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