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CAMINHOS PARA PENSAR UMA EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE NO BRASIL

Theodor Adorno define como objetivo primeiro da educação evitar que Auschwitz se
repita. Auschwitz é o nome que carrega em si o peso do genocídio programado, da morte
como política oficial do Estado nazista, do horror em sua forma mais assustadora e, ao
mesmo tempo, banalizada, como se se tratasse de uma linha de produção qualquer. É a marca
indelével de uma civilização que caminha a pari passu com o perigo da barbárie.
Seria insensato, e até mesmo inútil, querer comparar o horror dos campos de
concentração nazistas com outros eventos históricos. Sua particularidade histórica, sua
intensidade em termos de números e morbidez, assim como as particularidades de outros
eventos genocidas de outras épocas e lugares, tornam impossível tal comparação. Se, porém,
como o próprio Adorno coloca no texto Educação após Auschwitz, “no próprio princípio da
civilização está inscrita a barbárie” (1986, p. 34), estamos todas e todos, enquanto inscritos
no processo histórico de avanço do ocidente sobre outras culturas, à mercê de condições que
podem se intensificar e se realizar em episódios de terror1. Dessa forma, o chamado de
Adorno para educarmos contra a barbárie continua atual; e se levarmos em conta o cenário
político que se apresenta, cada vez mais urgente.
Tomando como ideia central essa necessidade de uma educação contra a barbárie,
proponho encaminhar uma pesquisa que vá no sentido de investigar o que significaria tal
educação para o contexto brasileiro. Que a nossa sociedade tenha sido formada a partir de um
processo extremamente violento, que deliberadamente matou, escravizou e apagou a
possibilidade de existência de populações inteiras, parece ser indiscutível. A mitologia de um
país pacífico e cordial cai facilmente por terra, seja perante os aprofundamentos históricos a
respeito da constituição de nossa sociedade, seja pelas notícias que confirmam que este
processo de violência e barbárie continua em curso. E uma sociedade não é violenta sem que
existam pessoas capazes de cometer tais atos, sem uma estrutura que permite que eles sejam
cometidos, e sem a banalização que faz com que tais violências sejam aceitas e normalizadas.
Neste ponto de encontro entre sociedade e indivíduo, Adorno parece não ter dúvidas de que a
possibilidade da barbárie está inscrita na própria organização da sociedade, nos seus
“pressupostos objetivos”, como ele mesmo coloca no texto sobre a educação que é nosso
ponto de referência neste trabalho (1986, p. 34). Porém, como em termos práticos uma

1
Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, mostra que, para os colonizados, a civilização é a própria
barbárie: “a civilização europeia e seus representantes mais qualificados são responsáveis pelo racismo colonial”
(2020, p. 105). Seguindo essa ideia, o terror nazista pode ser considerado como resultante da mesma civilização
que colocou em prática o terror da escravização colonial.
mudança nesses pressupostos é praticamente impossível, ele diz que devemos nos concentrar
no “lado subjetivo”; ou seja, devemos focar em mostrar às pessoas os mecanismos que
podem levá-las a se tornarem violentas ou passíveis perante a violência, a fim de que,
conscientes desse processo, possam evitar que ele se realize.
Seguindo essa indicação, pretendo aqui desenvolver o raciocínio para uma educação
contra a barbárie no contexto brasileiro em três etapas: 1. traçar um breve panorama a
respeito da formação da sociedade brasileira e das estruturas que a fazem uma sociedade
violenta; 2. relacionar os elementos estruturadores das subjetividades propensas ao nazismo
levantadas por Adorno com os mecanismos de “pressão civilizatória” sobre as
individualidades observados na sociedade brasileira; 3. levantar indicações e possibilidades
do que pode vir a ser uma educação contra a barbárie dentro do contexto brasileiro, pensando
especificamente em qual seria o papel do ensino de Filosofia dentro desse processo.

Um país erguido sobre sangue

O objetivo aqui não é investigar pormenores da formação da sociedade brasileira, nem


apresentar um panorama detalhado de tal história. Porém, acredito que para pensarmos uma
educação contra a barbárie no contexto brasileiro, precisamos saber que contexto é esse,
principalmente a partir dos elementos que fazem com que a nossa seja uma sociedade
violenta e que banaliza sua própria violência.
Talvez a condição mais ampla que define nossa realidade é o fato de sermos, junto
com toda a América Latina (e África e grande parte da Ásia, mas com características
diferentes), vítimas do colonialismo europeu. Sobre isso, existe um parágrafo de Eduardo
Galeano (1978, p. 14) que diz o seguinte:

É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos
dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como
tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a
terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade
de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. (...) Nossa
derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a
nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes
nativos. Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transforma em sucata e os
alimentos se convertem em veneno. (destaque no original)
E o sangue que corre dessas veias é real, sangue de homens, mulheres e crianças que
foi derramado sem dó nem piedade pelo sistema colonial, que não tinha outro objetivo que
não fosse o de enriquecer os donos desse “empreendimento”. Dentro da ideologia do sistema
colonial, talvez essa questão seja a mais evidente: pessoas são mercadorias; e como elas, são
descartáveis. Dito de outra forma, o desprezo pela vida, essencialmente das vidas que não são
a do homem branco europeu, é uma das marcas mais evidentes do colonialismo em nossas
terras. Seguirei assim a indicação de Boaventura de Souza Santos, quando afirma que: “o
efeito mais característico desse conjunto tríplice de formas de dominação [capitalismo,
colonialismo e patriarcado] consiste em criar uma linha abissal que separa radicalmente seres
considerados plenamente humanos de seres considerados sub-humanos - corpos racializados
e sexualizados” (SANTOS, 2021, p. 48). É sobre essas bases que vai operar a barbárie
brasileira.

O genocídio indígena

Essa política de exploração e extermínio acompanhou o processo colonial desde sua


origem, tendo como primeiras (e constantes) vítimas os povos que aqui habitavam antes da
invasão. Talvez “política de extermínio” não seja o melhor termo para essa situação
específica, já que em relação aos indígenas a legislação colonial sempre foi ambígua
(MOISÉS, in CUNHA, 1992). Pelo que os dados históricos e presentes nos mostram, o que
vivemos se aproxima mais de uma “cultura de extermínio” dos povos que aqui viviam e
vivem. Em sua Introdução a uma História Indígena, Manuela Carneiro da Cunha (1992, p.
12) descreve dessa forma a situação:

Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como consequência do que


hoje se chama, num eufemismo envergonhado, “o encontro” de sociedades do Antigo
e do Novo Mundo. Esse morticínio nunca visto foi fruto de um processo complexo
cujos agentes foram homens e microrganismos mas cujos motores últimos poderiam
ser reduzidos a dois: ganância e ambição, formas culturais da expansão do que se
convencionou chamar o capitalismo mercantil. Motivos mesquinhos e não uma
deliberada política de extermínio conseguiram esse resultado espantoso de reduzir
uma população que estava na casa dos milhões em 1500 aos parcos 200 mil índios
que hoje habitam o Brasil.
Falando sobre os bandeirantes e a expansão do domínio português em direção ao
interior do Brasil, Darcy Ribeiro (1995, p. 106) também coloca em evidência o caráter de
mercadoria que as pessoas assumiram perante o olhar do colonizador: “o que buscavam no
fundo dos matos a distâncias abismais era a única mercadoria que estava ao seu alcance:
índios para uso próprio e para a venda”. O processo de captura para esse verdadeiro “moinho
de gastar gente” também levou às populações indígenas a morte por doenças, notadamente a
varíola, tifo, gripe, coqueluche, sarampo, entre outras.
Além da captura e exploração até o exaurimento dessa população, também tivemos o
extermínio planejado. Um exemplo próximo e vergonhoso dessa cultura genocida é a ação
dos “bugreiros”, milícias de extermínio dos povos indígenas, que atuaram principalmente em
Santa Catarina e Paraná. Sua principal função era manter os indígenas “afastados” das novas
colônias de europeus que se instalavam neste território. Nesse contexto também foram usadas
“armas biológicas”, ou seja, a contaminação proposital por doenças, especialmente a varíola.
Boaventura de Souza Santos (2021, pp, 61-63) traz, em sua obra recente sobre a pandemia,
relatos de várias situações em que essa estratégia foi usada, seja na expansão das fronteiras
agropecuárias do nordeste, seja pelos bugreiros do sul.
O pior é que esse processo continua em curso. A ganância e a ambição, além do
racismo, seguem derramando sangue indígena em nossa terra, ou melhor, na sua própria terra.
Segundo o Atlas da Violência 2021, “pode-se afirmar que a violência letal contra os povos
indígenas recrudesceu nessa última década; nos 11 anos de 2009 a 2019, em números
absolutos, houve 2.074 homicídios de pessoas indígenas, segundo os dados do SIM”
(CERQUEIRA, 2021, p. 83). Levando em conta a real possibilidade de subnotificação, além
das mortes por doenças e causas relacionadas à penúria econômica e às políticas francamente
anti-indigenistas do atual governo, podemos afirmar que o extermínio dos povos indígenas é
uma realidade no Brasil.

Escravização e morte dos africanos e seus descendentes

Se a legislação oficial ainda pode nos colocar em dúvida quanto à existência de uma
política de extermínio organizada dos povos indígenas (o que não influencia em nada a
realidade do genocídio), em relação aos africanos trazidos para cá a força e escravizados não
resta dúvida: foi planejada uma política de extermínio. Na obra O Genocídio do Povo Negro,
Abdias do Nascimento escreve o seguinte:
A imediata exploração da nova terra se iniciou com o simultâneo aparecimento da
raça negra fertilizando o solo brasileiro com suas lágrimas, seu sangue, seu suor e seu
martírio na escravidão. Por volta de 1530, os africanos, trazidos sob correntes, já
aparecem exercendo seu papel de “força de trabalho”; em 1535 o comércio escravo
para o Brasil estava regularmente constituído e organizado, e rapidamente aumentaria
em proporções enormes.
NASCIMENTO, 1978, p. 48

Hoje sequer sabemos os números desse comércio de seres humanos. Darcy Ribeiro
(1995), citando as estimativas elaboradas por Mircea Buescu, apresenta um total de 6.352.000
africanos aprisionados e trazidos para o Brasil para serem escravizados entre os anos de 1540
e 18602.
Se havia alguma espécie de discussão a respeito da humanidade dos povos indígenas,
a dos africanos sequer foi colocada em pauta pela empresa colonial escravagista. Nos
engenhos, fazendas e campos de mineração, a população africana trazida para o Brasil sofreu
as mais humilhantes e terríveis torturas imagináveis. Os açoites, o trabalho extenuante, os
estupros sistemáticos, a fome, a sede e os grilhões foram a rotina dessa população por
absurdos três séculos. Darcy Ribeiro narra dessa forma aquilo que Abdias do Nascimento
chama de “o tratamento mais cruel que se possa imaginar”:

Apresado aos 15 anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa
armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro - mercador africano de escravos - para a
praia , onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali
partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda
puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros
para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço de seu tamanho, mal comendo, mal
cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia,
caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro.
Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado.
Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou
dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar 18
horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar
faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de
trabalhar no dia seguinte até a exaustão. (...) [sua rotina] era sofrer todo o dia o
castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente

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Talvez seja importante colocar aqui que números não definem a barbárie. Se apenas uma pessoa fosse
escravizada sob a chancela do Estado, e tal atitude vista com normalidade pela cultura da sociedade, bastaria
para afirmar que está instituída a barbárie.
vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando
chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de
dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados
criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez,
para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado,
podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com
uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de
uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.
RIBEIRO, 1995, p.120

Mais de três séculos de genocídio com requintes de crueldade. Mas a violência segue,
porque o racismo que justificou tais atrocidades continua vivo na sociedade brasileira. Cito
mais uma vez Abdias do Nascimento em sua constatação de que a Lei Áurea, que aboliu
oficialmente a escravidão em 1888, “não passou de um assassinato em massa, ou seja, a
multiplicação do crime, em menor escala, dos ‘africanos livres’” (1978, p. 65). Jogados à
própria sorte dentro de uma sociedade estruturalmente racista, o povo africano e seus
descendentes estava, como continua, fadado a ocupar a base da pirâmide social brasileira,
além de ser a vítima preferencial da violência. Recorro mais uma vez ao Atlas da Violência
2021 para mostrar que “a desigualdade racial se perpetua nos indicadores sociais da violência
ao longo do tempo e parece não dar sinais de melhora. (...) Em 2019, os negros (soma dos
pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios,
com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2” (CERQUEIRA, 2021, p. 49). As
vítimas da violência no Brasil continuam tendo cor; e não é branca.

As vítimas do patriarcado I: violência contra mulheres

Além do genocídio racista praticado contra indígenas e africanos, nosso país foi
contruído sob o peso do patriarcado, devidamente abençoado pela Igreja Católica e pelos
governantes, sejam eles coloniais, imperiais ou republicanos, constituindo uma verdadeira
cultura misógina. Em 1832, Nísia Floresta abria sua obra Direitos das Mulheres e Injustiça
dos Homens com a seguinte afirmação:

Se cada homem, em particular, fosse obrigado a declarar o que sente a respeito de


nosso sexo, encontraríamos todos de acordo em dizer que nós nascemos para seu uso,
que não somos próprias senão para procriar e nutrir nossos filhos na infância, reger
uma casa, servir, obedecer, e aprazer a nossos amos, isto é, a eles homens.
FLORESTA, apud DUARTE, 2010, p. 81

Trata-se do retrato de uma ideologia que serviu como pilar de sustentação do poder do
homem branco ao longo da história colonial, que é também a história da exploração e
controle dos corpos femininos. Essa situação é agravada pela interseccionalidade em relação
a raça e classe, o que torna a situação das mulheres progressivamente mais difícil de acordo
com sua origem étnica e sua posição na sociedade.
A própria formação da população brasileira tem a exploração do corpo da mulher
como seu fundamento. Seja através da exploração do “cunhadismo” nas comunidades
indígenas (RIBEIRO, 1995, p. 81), seja através dos “casamentos inter-raciais” com as
africanas trazidas para cá, temos o desenvolvimento de uma população baseado na
exploração sexual do corpo feminino. Como afirma Lélia Gonzalez, “os ‘casamentos
inter-raciais’ nada mais foram do que o resultado da violentação de mulheres negras por parte
da minoria branca dominante (senhores de engenho, traficantes de escravos etc.)”
(GONZALEZ, 2020, p. 43). Assim, além de sofrerem os mesmos suplícios dos homens
durante o processo de escravização, as mulheres africanas e suas descendentes foram vítimas
do estupro sistemático, numa prática que transcende o período da escravidão. Não à toa, está
entranhada na nossa sociedade a cultura do estupro que, apesar de difusa em todos os estratos
sociais, recai prefencialmente as mulheres inferiorizadas por sua classe social, cor de pele e
etnia (SOUSA, 2017, p. 14).
Enquanto umas têm seus corpos explorados, outras os têm controlados e confinados à
esfera doméstica. É sobre este segundo grupo que a ideologia da Igreja Católica vai recair
com todo seu peso e misoginia. Na obra História das Mulheres no Brasil, Emanuel Araújo
escreve o seguinte em seu capítulo sobre a sexualidade nos tempos coloniais:

A todo-poderosa Igreja exercia forte pressão sobre o adestramento da sexualidade


feminina. O fundamento escolhido para justificar a repressão da mulher era simples:
o homem era superior, e portanto cabia a ele exercer a autoridade. São Paulo, na
Epístola aos Efésios, não deixa dúvidas quanto a isso: “As mulheres estejam sujeitas
aos seus maridos como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da mulher, como
Cristo é a cabeça da Igreja… Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres
em tudo sujeitas aos seus maridos”. De modo que o macho (marido, pai, irmão etc.)
representava Cristo no lar. A mulher estava condenada, por definição, a pagar
eternamente pelo erro de Eva, a primeira fêmea, que levou Adão ao pecado e tirou da
humanidade futura a possibilidade de gozar da inocência paradisíaca. Já que a mulher
partilhava da essência de Eva, tinha de ser permanentemente controlada.
ARAÚJO, 2004, p. 37

Em ambas as situações, fato é que as mulheres foram, durante séculos, excluídas da


esfera pública na sociedade brasileira. Exemplo disso é sua exclusão do sistema de ensino. Na
obra Opúsculo Humanitário, Nísia Floresta conta que “no ano de 1852, vê-se que a estatística
dos alunos que frequentam todas as aulas públicas monta a 55500, número tão limitado para a
nossa população, apenas 8443 alunas se compreendem” (FLORESTA, 2010, p. 118). Ainda
assim, estas que tinham acesso a algum tipo de educação seguiam currículos diferenciados,
voltados a uma rasa cultura geral e foco nos afazeres domésticos, a fim de se tornarem uma
companhia agradável para seus maridos.
Reflexos dessa formação social se fazem sentir ainda hoje. Segundo Lélia Gonzalez:

o que se observa é um racismo cultural que leva, tanto algozes como vítimas, a
considerarem natural o fato de a mulher em geral e a negra em particular
desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população
economicamente ativa. No que se refere à discriminação da mulher, que se observem,
por exemplo, as diferenças salariais no exercício de uma função com relação ao
homem, e a aceitação de que “está tudo bem”. Quanto à mulher negra, sua falta de
perspectiva quanto à possibilidade de novas alternativas faz com que ela se volte para
a prestação de serviços domésticos, o que a coloca numa situação de sujeição, de
dependência das famílias de classe média branca. A empregada doméstica tem
sofrido um processo de reforço quanto à internalização da diferença, da
“inferioridade”, da subordinação.
GONZALEZ, 2020, p. 35

Se a situação econômica e social das mulheres continua sendo marcada pela


inferioridade em relação aos homens, em relação à violência, a situação também não
apresenta uma melhora significativa. Os dados do Atlas da Violência 2021 são assustadores:

Especificamente para o caso de homicídios femininos, enquanto o SIM/Datasus


indica que 3.737 mulheres foram assassinadas no país em 2019, outras 3.756 foram
mortas de forma violenta no mesmo ano, mas sem indicação da causa – se homicídio,
acidente ou suicídio –, um aumento de 21,6% em relação a 2018.
CERQUEIRA, 2021, p. 36
Quando separados por raça, os números confirmam a tendência histórica. Conforme o mesmo
relatório, “em 2009, a taxa de mortalidade de mulheres negras era 48,5% superior à de
mulheres não negras, e onze anos depois a taxa de mortalidade de mulheres negras é 65,8%
superior à de não negras” (CERQUEIRA, 2021, p. 38). Se a morte anda sempre a espreita, o
estupro é uma realidade constante. Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública
(2015), “em 2014, foram registrados 47.643 casos de estupro em todo o país, contra 51.090
em 2013, uma queda de 6,7%. Ainda assim, o dado representa um estupro a cada 11
minutos”. Isso significa que, no Brasil, ser mulher significa ser um alvo constante da
violência.

As vítimas do patriarcado II: violência contra LGBTQIA+

A cultura machista resultante do patriarcado colonial representa um risco também


para a comunidade LGBTQIA+. A perseguição à homoafetividade, ou qualquer prática
sexual que fugisse à heteronormatividade, também começa com a chegada dos europeus ao
solo brasileiro. Como demonstra Estevão Rafael Fernandes (2016), ao chegar a estas terras o
colonizador encontra um sistema de práticas sexuais, ou melhor, uma forma de encarar a
sexualidade, completamente diferente da família hetero monogâmica defendida com unhas e
dentes pela Igreja Católica. Nesse sentido, ele coloca que

as descrições sobre “homossexualidade indígena” devem ser encaradas aqui muito


mais como uma expressão da obsessão colonizadora com a sexualidade indígena e
seu controle: seu disciplinamento – e este é um ponto que buscarei demonstrar aqui –
é parte do projeto colonial desde o início, nos esforços por incluir as coletividades
indígenas ora no conjunto de súditos da Coroa de Portugal, ora à “comunhão
nacional”.
FERNANDES, 2016, p. 16

Este disciplinamento dos corpos vai incidir sobre toda a sociedade de então,
principalmente por conta da legislação inquisitorial vigente na época. Segundo Luiz Mott,
“durante os três primeiros séculos de nossa história, a homossexualidade era conhecida como
‘abominável e nefando pecado de sodomia’ – crime equiparado ao regicídio e à traição
nacional e castigado com igual rigor” (MOTT, 2006, p. 511). Com a vinda da família real ao
Brasil, a legislação inquisitorial abranda, mas isso não significa o fim da perseguição. Com as
definições de “atentado ao pudor”, ou “atentado aos bons costumes”, a perseguição às
pessoas LGBTQIA+ passa a ser caso de polícia, quando não casos de internação
médico-psiquiátrica. Basta lembrarmos que foi apenas em 1999 que o Conselho Federal de
Psicologia emitiu uma resolução que proíbe qualquer prática de patologização de
comportamentos ou práticas homoeróticas.
Assim como para as outras formas de violência culturalmente estabelecidas na
sociedade brasileira, encerramos esta parte com um trecho do Atlas da Violência 2021, que
diz o seguinte:

A violência contra pessoas LGBTQI+ no Brasil é um fenômeno histórico. Na


dimensão simbólica, a violência opera ora pelo recurso ao holofote lançado sobre a
ideia de um modelo único e compulsório de família nuclear, cis, heterossexual e
biparental, que apaga as diversidades sexuais e de gênero (MELLO, 2006), ora pelo
recurso aos estereótipos e estigmas que marcam LGBTQI+ como agentes desviantes,
de contaminação e degeneração, recorrendo a discursos morais, sociais, biológicos,
religiosos e médicos. Na dimensão corporal, a violência se materializa na forma de
abandono, estupros “corretivos”, assassinatos e espancamentos. Ainda que diferentes,
as violências corporais e simbólicas se sobrepõem, visando aniquilação, apagamento
e silenciamento de sexualidades e expressões de gênero dissidentes do modelo único
cis hétero historicamente imposto no Brasil, que ganhou força recentemente com a
ascensão de movimentos moralistas anti-LGBTQI+ operados pela narrativa de
suposta priorização da infância e da família.
CERQUEIRA, 2021, p. 58

Violência esta que se traduz em números aterrorizantes. Segundo dados do


Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+, de 2000 a 2020 foram registradas 5047 mortes
violentas (2021, p. 23), o que coloca o Brasil na triste posição de líder no ranking mundial de
assassinatos motivados por preconceito sexual.

Reflexões sobre a cultura de violência brasileira a partir do texto de Adorno

O breve levantamento do tópico anterior, apesar de incompleto e insuficiente, pode


nos mostrar que a história do Brasil, a partir da invasão portuguesa, é marcada por uma
cultura de violência. Trabalho aqui com a hipótese de que essa cultura se sustenta a partir de
três pilares: o desprezo pela vida causado pela transformação do ser humano em mercadoria
operada pelo capitalismo colonial e neocolonial, o racismo estrutural e o patriarcado. Estas
são as características que fazem com que cheguemos aos dias de hoje convivendo com a
barbárie. Assim, para nós, imagino que não se trate de agir para que o terror não volte a
acontecer, como no caso do nazi-fascismo europeu, mas para que ele de alguma forma pare
de acontecer. Feita essa ressalva, podemos buscar no texto de Adorno algumas ideias que
acredito serem importantes para a construção de um projeto educacional contra a barbárie
dentro do contexto brasileiro atual.
Partimos, então, da ideia de que a violência é praticada por pessoas que vivem dentro
de uma determinada estrutura social. Segundo Adorno, dada a impossibilidade de mudar tais
estruturas num curto prazo, devemos nos concentrar nas subjetividades, nos mecanismos que
fazem com que as pessoas se tornem capazes de cometer tais atos violentos. A ideia é que,
tornando esses mecanismos conscientes, os indivíduos possam responder criticamente a eles,
desenvolvendo uma espécie de freio psicológico que o faça recusar o chamado ao ato
violento. Isso significa vencer aquilo que Adorno, na esteira de Freud, chama de “pressão
civilizatória''. Nas suas palavras:

A pressão do geral predominante sobre toda a particularidade, os indivíduos e as


instituições individuais tende a desintegrar o particular e o individual juntamente com
sua capacidade de resistência. Com sua identidade e sua capacidade de resistência, os
homens perdem também as qualidades graças às quais ser-lhes-ia possível opor-se
àquilo que, a qualquer momento, possa novamente atraí-los para o crime.
ADORNO, 1986, p. 35

Imagino que, para nós, seria o caso de vencer a pressão exercida pelos três pilares que
apontei como constituintes da sociedade brasileira: o descaso pela vida, o racismo estrutural e
o preconceito decorrente do patriarcado. Vencer a pressão, no sentido que quero propor aqui,
significa tanto dizer NÃO, quando levado pela inconsciência cega a exercer a violência,
quanto REAGIR, individual e coletivamente, à violência que cotidianamente se apresenta.
Adorno trata, no texto Educação Após Auschwitz exclusivamente da primeira, mas acho que
podemos pensar para além da possibilidade de dizer não.
Vamos ver então quais são os mecanismos que tornam os homens suscetíveis a tal
pressão apontados por Adorno e como eles podem ser pensados em relação às características
da barbárie brasileira3.

3
Talvez aqui caiba uma ressalva importante: sistematizar o texto de Adorno é tarefa hercúlea que transcende
minha capacidade. Trabalho mais no sentido de buscar indicações do que apresentar uma organização
sistemática de suas ideias.
O primeiro a ser analisado aqui é assim colocado por Adorno: “é precisamente a
disposição de aderir ao poder e, externamente, submeter-se como norma àquilo que é mais
forte, à mentalidade dos algozes, que jamais deverá ressurgir” (1986, p. 37). É fácil perceber
em nossa sociedade o quanto o opressor ganha destaque e facilmente junta seu rebanho. Na
sociedade fragmentada, onde o indivíduo fragilizado busca a qualquer preço uma
identificação, a adesão ao poder, tenha ele a dimensão que tiver, é uma realidade. No nosso
caso, está colocada a adesão irrefletida ao racismo, ao machismo e ao desprezo pela vida.
Quando o presidente, por exemplo, fala, em meio a uma pandemia, que “não é coveiro” para
ficar contando mortos e que “todos nós vamos morrer um dia”4, e milhares de pessoas se
identificam e compartilham essas falas, temos verificada essa adesão à mentalidade dos
algozes. O mesmo se dá quando pessoas defendem a violência policial contra negros e
pobres, quando alguém justifica o estupro culpabilizando a mulher… enfim, os exemplos
estão por toda parte.
Esse mecanismo da adesão ao poder remete à ideia colocada por Adorno de que é
preciso “contrapor-se a qualquer supremacia coletiva cega e aumentar a resistência contra ela,
focalizando o problema da coletivização” (1986, p. 39). Ele faz referência aqui aos grupos
que realizam determinadas “tradições” para que se possa entrar neles, na sua maioria
violentas. Talvez esse tipo de associação não seja tão parte da nossa realidade quanto na
Europa e América do Norte, mas é um fato que pessoas acabam seguindo o comportamento
de determinado grupo com a intenção de se inserir, de fazer parte de alguma forma. Nas
escolas, a prática do bullying é realizada normalmente por indivíduos que se escondem no
grupo. Cabe aqui pensarmos se não é o mesmo caso de comportamentos racistas e machistas
perpetrados por grupos, onde os indivíduos desaparecem em meio ao coletivo. Como coloca
Adorno, “pessoas que se enquadram cegamente em coletividades transformam-se em algo
análogo à matéria bruta e omitem-se como seres autodeterminados. Isso combina com a
disposição de tratar os demais como massa amorfa” (1986, p. 39). Esse seria, segundo o
filósofo, um caminho para a inumanidade, para a equiparação de si e dos outros a coisas, a
peças de uma engrenagem que podem ser substituídas, descartadas ou aniquiladas. No Brasil,
temos vários casos de pessoas queimadas na rua, simplesmente por serem quem são; não por
acaso são negros, índios, mulheres e mulheres trans as vítimas recorrentes dessa barbárie.

4
Ambas as falas foram proferidas no famoso “cercadinho” onde o presidente faz seus discursos, conforme
matéria publicada pelo G1 e disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-diz-bolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-p
or-coronavirus.ghtml
Além deste ato hediondo, temos os espancamentos, estupros coletivos e torturas, sempre
realizadas por grupos que atentam contra os mesmos tipos de pessoas5.
A questão do “tipo coisificado”, que adere irrefletidamente à coletividade e perde o
valor e sentido da vida, nos remete àquilo que Adorno chama de frieza em relação ao outro.
Pode parecer contraditório que a adesão ao coletivo provoque a frieza em relação ao outro,
mas é que essa adesão não é feita por conta de interesses coletivos ou no intuito de construir
algo coletivamente em abertura para a diversidade, de encontrar em contato com o
não-idêntico. Seria algo como um coletivo de “mônadas sociais”, prontas para esmagar quem
quer que se atravesse no caminho por aquilo que julga ser seu interesse individual. Essa
frieza, essa indiferença em relação ao destino dos outros, é o que faz com que o silêncio seja
a norma perante a violência em nosso país.
Adorno também fala em omissão da confrontação com o horror. Negar que a barbárie
e o genocídio aconteceram e aconteçam é uma das formas de perpetuar sua existência. Talvez
aqui o melhor exemplo para nossa sociedade seja o famoso mito da “democracia racial”
brasileira. Como bem coloca Lélia Gonzalez:

Na medida em que somos todos iguais “perante a lei” e que o negro é “um cidadão
igual aos outros”, graças à Lei Áurea nosso país é o grande complexo da harmonia
inter-racial a ser seguido por aqueles em que a discriminação racial é declarada. Com
isso, o grupo racial dominante justifica sua indiferença e sua ignorância em relação
ao grupo negro.
GONZALEZ, 2021, p. 31

E assim, como num passe de mágica, três séculos de brutalidade e genocídio são apagados,
assim como os casos que se repetem todos os dias são “apenas excessões”. O mesmo serve
em relação aos povos indígenas. Temos um “dia do índio” onde se mostram suas
contribuições para a cultura nacional e…. só. Nem uma palavra sobre as perdas de território,
sobre os assassinatos, sobre as centenas de línguas desaparecidas num epistemicídio que
sequer temos noção do tamanho. Para a sociedade submetida à ideologia do homem branco,

5
As notícias abundam, basta uma pesquisa rápida na internet para comprovar. Cito aqui apenas três casos
recentes e locais:
“Mulher é queimada viva em tentativa de feminicídio na Grande Florianópolis”.
https://ocp.news/seguranca/mulher-e-queimada-viva-em-tentativa-de-feminicidio-na-grande-florianopolis
“Turista tem o corpo incendiado na Avenida Beira Mar em Florianópolis”.
https://ricmais.com.br/seguranca/turista-tem-o-corpo-incendiado-em-avenida-beira-mar-de-florianopolis-sc/
“Homossexual é vítima de estupro coletivo e tortura em Florianópolis”
https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2021/06/homossexual-e-vitima-de-estupro-coletivo-e-tortu
ra-em-florianopolis.html
nada disso é importante ou, no máximo, “são coisas de um passado que não vale a pena ficar
remoendo”. Em outro texto, O que Significa Elaborar o Passado, Adorno coloca a questão da
seguinte forma:

Nesta formulação, a elaboração do passado não significa elaborá-lo a sério,


rompendo seu encanto por meio de uma consciência clara. Mas o que se pretende, ao
contrário, é encerrar a questão do passado, se possível inclusive riscando-o da
memória. O gesto de tudo esquecer e perdoar, privativo de quem sofreu a injustiça,
acaba advindo dos partidários daqueles que praticaram a injustiça.
ADORNO, 1995, p. 29.

Me pergunto se este não seria exatamente o mesmo caso de nosso esquecimento


programado sobre o período da escravização e genocídio dos indígenas e africanos, da
invisível violência que corre solta nos lares, da espetacularização e rápido esquecimento da
mídia a respeito das violências cotidianas, da impunidade em relação aos poderes repressivos
do Estado, da recusa em se cobrar uma prestação de contas dos torturadores e assassinos da
ditadura militar…. a lista de “esquecimentos” é longa.
Por fim, gostaria de trazer a questão da fetichização da tecnologia levantada por
Adorno. Trata-se de um tema extremamente complexo, principalmente nessa era de universos
paralelos e algoritmos que, de certa forma, duplicam nossa vida num espaço irreal onde
exploramos uma identidade que não condiz com quem somos, seja por uma necessidade de
fuga ou de afirmação que não se realiza no mundo real. Não me aprofundarei mais no assunto
por pura falta de informação, mas lanço aqui a hipótese de que essa fetichização da
tecnologia, essa tomada do virtual pelo real como vemos acontecer hoje, pode vir a ser um
elemento que reforça os mecanismos apontados anteriormente. Já mencionei a reprodução
irrefletida de mensagens dos centros de poder. A ela podemos acrescentar a adesão a grupos
que reforçam todos os preconceitos e estruturas de poder da sociedade racista e patriarcal; o
distanciamento e, quem sabe, ódio a tudo que é real e às pessoas de carne e osso; além da
criação de um mundo a-histórico, onde a confrontação com o terror do mundo real não se faz
necessária.
Levantamos aqui os mecanismos que, aliados às estruturas que colocamos na primeira
parte do texto, geram o caldo onde pessoas se tornam capazes de realizar atos de violência
que perpetuam a barbárie e o genocídio em nosso país, onde outras preferem ignorar o que se
passa, e muitas não encontram forças para reagir perante a violência. A seguir, passo a
averiguar algumas possibilidades do que poderia ser uma educação contra a barbárie no
Brasil, além de pensar qual seria o papel do ensino de Filosofia em tal contexto educacional.

Ideias para uma educação contra a barbárie no contexto brasileiro

Como o próprio Adorno coloca, sua intenção não é apresentar um projeto educacional
completo, mas apontar alguns caminhos de como a educação pode vir a contribuir para evitar
que as pessoas se tornem capazes de realizar atos violentos, de ceder irrefletidamente à
barbárie. Nesse sentido, gostaria de propor aqui a reflexão a respeito de três etapas que
considero fundamentais na construção deste percurso: 1. o diálogo como ferramenta para a
auto-reflexão e tomada de consciência dos mecanismos que levam à barbárie; 2. a experiência
coletiva enquanto exercício para a práxis e contato com o não-idêntico; 3. o conhecimento de
outras histórias que não do colonizador ocidental como forma de propiciar o encontro com a
identidade e a coragem para reagir à barbárie.
Voltemos então à ideia apresentada por Adorno que podemos usar como guia para
pensar a respeito da educação contra a barbárie: “deve-se conhecer os mecanismos que
tornam os homens assim, que os tornam capazes de tais atos. Deve-se mostrar esses
mecanismos a eles mesmos e buscar evitar que eles se tornem assim novamente, enquanto se
promove uma conscientização geral desses mecanismos”. Ele completa dizendo que “a
educação só teria pleno sentido como educação para a auto-reflexão crítica” (1986, p. 35).
Considero que Márcia Tiburi nos dá um bom indicativo do encaminhamento que podemos
tomar a partir dessa ideia. Diz ela: “pensar a educação desde a perspectiva aberta por Adorno
é pensar precipuamente a cultura e a violência, as forças que atuam na construção do sujeito”
(TIBURI, 2003, p. 128).
A pergunta que me faço é essa: que tipo de procedimento pedagógico podemos usar
para tornar possível a auto-reflexão crítica e a tomada de consciência a respeito das estruturas
e mecanismos que levam à barbárie?
Me parece fundamental que estejamos dispostas e dispostos a criar uma escola que
esteja em contato com a realidade, que de alguma forma busque sua conexão com as questões
que alunas e alunos enfrentam na vida, dentro e fora dos portões da escola. Como diz Paulo
Freire, “nenhuma ação educativa pode prescindir de uma reflexão sobre o homem e de uma
análise sobre suas condições culturais. Não há educação fora das sociedades humanas e não
há homens isolados” (FREIRE, 2019, p. 82)6. Como, então, proceder para que as
individualidades e as condições culturais das alunas e alunos se tornem parte do processo de
educação? Me parece que um procedimento fundamental é o estabelecimento do diálogo, o
que significa, principalmente para nós professoras e professores, estarmos abertos para a
escuta. Seguimos mais um pouco com Paulo Freire:

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode
nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens
transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo.
O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos
pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.
FREIRE, 1987, p. 78

Neste exercício de enunciação da vida, está implícito o processo de pensar a respeito


de si e da forma como cada uma e cada um se coloca no mundo. Dito de outra forma, a
auto-reflexão é necessária à expressão. A ideia é que, conforme venha aflorando essa
realidade trazida pelas alunas e alunos, que vimos ser a realidade da violência física e
simbólica à qual estamos todas e todos submetidos, possamos aprofundar o entendimento
dessa realidade. Talvez seja justamente essa a abertura que tenhamos para refletir em
conjunto a respeito das estruturas e mecanismos que levam à barbárie de uma forma
significativa para as pessoas com quem trabalhamos. Através da enunciação e do diálogo,
criamos a possibilidade da reflexão crítica a respeito de nossos atos no mundo, das violências
praticadas e sofridas, e das possibilidades de reação que temos frente a elas. Educar para a
autonomia, “única verdadeira força contra o princípio de Auschwitz”, como diz Adorno,
comporta esse ato de reflexão sobre si e nossa práxis no mundo. Mais uma vez faço recurso a
Paulo Freire, quando diz que: “críticos seremos, verdadeiros, se vivermos a plenitude da
práxis. Isto é, se nossa ação involucra uma crítica reflexão que, organizando cada vez o
pensar, nos leva a superar um conhecimento estritamente ingênuo da realidade” (1987, p.
128). Ora, essa reflexão se torna cada vez mais profunda à medida que, em meio a esse
processo de troca de experiências, começamos a identificar as estruturas e mecanismos que
nos levam a agir da maneira que agimos; o que nos abre a possibilidade de reagir a essa
determinação.

6
Uma prova do exercício de reflexão sobre a enunciação seria a própria análise do discurso de Paulo Freire e
sua constante colocação do HOMEM como universal para a HUMANIDADE.
Essa experiência dialógica também comporta outra questão fundamental, que é o
contato com o não-idêntico. Márcia Tiburi coloca a questão da seguinte forma:

Se Adorno pode sugerir o diálogo como meio de esclarecimento - o que se diz aqui
para fidelidade de suas próprias ideias -, ele não pode estar sugerindo que as pessoas
busquem ou alcancem qualquer forma de consenso, mas que a cada sujeito preso em
sua própria visão de mundo sejam apresentadas alternativas, que a cada um seja
possibilitado o encontro com o não-identico.
TIBURI, 2003, p. 126

Acredito que aqui não basta a simples comunicação em forma de debate e troca de ideias (o
que, perto da imposição unilateral do conteúdo de uma “disciplina” já seria excelente), mas se
torna fundamental a criação de experiências pedagógicas que envolvam a tomada de decisões
coletivas. Ouvir o não-idêntico deve ser o primeiro passo para trabalhar e conviver com o
não-idêntico. Experiências pedagógicas constituídas como trabalhos práticos coletivos podem
vir a ser a ferramenta a partir da qual podemos engendrar reflexões a respeito da participação
ou não na atividade, o que levou a exclusões ou valorizações de uns sobre outros, sobre a
capacidade de enxergar e valorizar diferentes habilidades, sobre a organização ser baseada na
autoridade ou na cooperação, sobre os processos de decisões que tiveram que ser tomadas
para atingir o objetivo. Se a frieza nas relações com o não-idêntico deve ser combatida, a
escola deve ser o local onde essas relações são incentivadas, não destruídas pelo ensino
individualista, alienado e competitivo que muitas vezes observamos na realidade escolar. Isso
não significa apagar o indivíduo na coletividade, que vimos ser um dos mecanismos pelos
quais as pessoas se tornam vulneráveis à barbárie; muito pelo contrário. A experiência
pedagógica deve ser pensada como possibilidade de emergência e afirmação do sujeito
perante a coletividade. Para que isso acontece, devemos estar cientes de que contato com o
não-idêntico só é possível em um local onde seja aceita e incentivada a diversidade, onde o
ser sujeito implique necessariamente a diferença em relação ao outro e o respeito radical pela
diferença, pela ideia de que a humanidade que compartilhamos é criada pela diferença de
quem somos. Esse respeito pela diferença só será apreendido na medida que nos
confrontamos com a possibilidade de emergência do preconceito. Isso faz da experiência
pedagógica um caminho para sua superação7.

7
Um exemplo rico de experiências pedagógicas no sentido que proponho aqui pode ser encontrado na obra
Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03,
organizada por Nilma Lino Gomes.
A partir do contato com o não-idêntico, da percepção de que nos constituímos como
sujeitos a partir de diferentes caminhos, passamos a perceber que existem outras histórias que
não são aquela do homem branco europeu, que é a violenta história da nossa colonização.
Colocar essas outras histórias em evidência na escola não apenas reforça a identidade dos
sujeitos até hoje menosprezados pela história colonial, como lhes dá a força e a coragem para
reagir e construir o futuro numa perspectiva diferente daquela que vivemos. Aqui está, talvez,
uma perspectiva utópica mais positiva, ausente na percepção de Adorno, que se vê preso
dentro dos limites da cultura ocidental. Seria o processo de construção subsequente ao
processo de negação da barbárie. A ideia que proponho aqui é que abracemos a possibilidade
de construir uma cultura pós-barbárie; e para isso é fundamental vencermos a ideia de uma
história única imposta pelo colonialismo.
Em paralelo a essa história, precisamos reconhecer e conhecer a existência de uma
história africana e afro-brasileira que possa fazer emergir a ancestralidade e a consciência de
que o povo africano e seus descendentes não são apenas vítimas, mas detentores e
construtores de uma história (ou de várias histórias próprias, se pensarmos que as dinâmicas
se desdobram numa série de possibilidades). Como coloca Abdias do Nascimento,

Se consciência é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte


inalienável da consciência brasileira? Onde e quando a história da África, o
desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características do seu povo foram
ou são ensinados nas escolas brasileiras? Quando há alguma referência ao africano ou
ao negro, é no sentido do afastamento e da alienação da identidade negra.
NASCIMENTO, 1978, p. 95

É também pensarmos na história dos povos indígenas para além do processo de


colonização. Uma história que já existia, que resiste e que, assim como a história da África e
seus descendentes, pode apontar caminhos para o futuro. Ailton Krenak, Davi Kopenawa.
Eliane Potiguara e muitos outros e outras estão aí para nos mostrar que, muito provavelmente,
nossa salvação enquanto espécie depende muito da assimilação pelos ocidentais de ideias
oriundas da cosmopercepção ameríndia. Como coloca Manuela Carneiro da Cunha: “durante
quase cinco séculos, os índios foram pensados como seres efêmeros, em transição: transição
para a cristandade, a civilização, a assimilação, o desaparecimento. Hoje se sabe que as
sociedades indígenas são parte de nosso futuro e não só de nosso passado” (1992, p. 22).
É também pensarmos na história das mulheres, que insistentemente resistem ao
patriarcado ocidental, mostrando que em todos os tempos e culturas foram capazes de
realizações tão importantes quanto aquelas levadas a cabo pelos homens. Mostrar, por
exemplo, que uma história da medicina deve passar necessariamente pelos conhecimentos de
Hildegarda de Bingen e Trotula de Ruggiero, que no século XI pensavam na relação com o
corpo de forma diferente daquela vista pelos homens e foram sistematicamente apagadas
dessa história. Mostrar que a história do Brasil será sempre incompleta se não incluir as
mulheres como Carolina Maria de Jesus, que abandonadas à própria sorte fazem de tudo para
prover o sustento das famílias das quais são as responsáveis. Mostrar, com Oyèrónké
Oyewùmí, que em outras cosmopercepções as relações de gênero como organizadas,
pensadas e até mesmo desconstruídas pela sociedade ocidental sequer existiam. Ou mostrar,
com as epistemólogas feministas que não existe um conhecimento neutro, que se impõe como
universal, independente de quem o enuncia e do contexto cultural em que é enunciado8.
É, por fim, mostrar que existe uma história da sexualidade, que suas dinâmicas e
manifestações fazem parte da própria natureza humana. Que sua criminalização e o
preconceito decorrente disso se dá justamente pela imposição de uma cosmopercepção sobre
as outras, de uma cultura, de uma ideologia sobre as outras.

O papel da Filosofia na educação contra a barbárie

Para encerrar, proponho um breve pensamento a respeito do papel que o ensino de


Filosofia tem no contexto de uma educação contra a barbárie. Do que vimos até agora, parece
bastante evidente que devemos repensar urgentemente a forma tradicional de ensinar, baseada
na apresentação e exegese dos textos que formam o cânone da história da Filosofia ocidental;
na apresentação unilateral de um conteúdo a ser assimilado de forma acrítica pelo educando.
Mas o que significa repensar esse ensino? Qual será nosso ponto de partida?
Ora, nosso ponto de partida é a escola. E se antes pensamos que a escola deve estar
conectada com a realidade e a vida das alunas e alunos, é dessa mesma condição que
devemos partir para repensar o ensino de Filosofia. Podemos começar, então, considerando
que o processo de auto-reflexão crítica é em si um ato filosófico. Quando a aluna ou o aluno
enuncia algo da sua vida, da sua realidade, ele está necessariamente pensando sobre ela. É
neste momento que a professora ou o professor de Filosofia deve estar preparado para
apresentar os elementos que possam levar ao aprofundamento dessa reflexão, a incitar a
dúvida enquanto motor do pensamento e da pesquisa. Dessa forma, talvez possamos

8
Aqui levo em consideração as ideias apontadas por Naomi Scheman, no texto Epistemologia Feminsta (2020).
considerar que a primeira missão para qualquer possibilidade de ensino de Filosofia na
educação básica seja criar as condições para que todos os envolvidos no processo possam
pensar a respeito de si e sua relação com o mundo.
Porém, quando nos defrontamos com essas que são as questões fundamentais da
Filosofia (Quem sou eu? Que mundo é esse? Como me relaciono com esse mundo?) temos
que resistir à tentação de voltar ao cânone e sua tendência de universalizar o ponto de vista de
um tipo humano. Para que esta auto-reflexão possa realmente ser crítica, precisamos entender
que este “eu” que pergunta sobre si mesmo ocupa diversos lugares, com diferentes
perspectivas do que significa sua construção enquanto sujeito. Isso significa entender e
mostrar como a Filosofia, na sua concepção canônica foi um veículo da opressão, além de
pensar nos caminhos para sua superação. Dito de outra forma, a Filosofia pode se reconhecer
como parte dos mecanismos que levaram à barbárie ao impor uma visão de mundo que
emana de um centro de poder e apaga toda manifestação desviante.
Isso nos leva à seguinte reflexão: para enfrentarmos de maneira satisfatória as
questões levantadas pelas alunas e alunos, precisamos buscar para nós, professoras e
professores, uma formação filosófica mais ampla, que inclua outras formas de pensar e fazer
Filosofia. Hoje já temos vários movimentos que buscam recuperar e construir uma história da
Filosofia Feminista, uma Filosofia Africana, uma Filosofia Ameríndia e Latino-Americana,
além das várias tradições e desenvolvimentos da Filosofia Oriental, que nos permitem não só
mostrar como a Filosofia Ocidental muitas vezes serviu de justificativa intelectual para a
barbárie, mas também construir alternativas para seu superamento. Se o contato com o
não-idêntico é condição para superar a barbárie, talvez seja hora da Filosofia dar esse passo.

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