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Theodor Adorno define como objetivo primeiro da educação evitar que Auschwitz se
repita. Auschwitz é o nome que carrega em si o peso do genocídio programado, da morte
como política oficial do Estado nazista, do horror em sua forma mais assustadora e, ao
mesmo tempo, banalizada, como se se tratasse de uma linha de produção qualquer. É a marca
indelével de uma civilização que caminha a pari passu com o perigo da barbárie.
Seria insensato, e até mesmo inútil, querer comparar o horror dos campos de
concentração nazistas com outros eventos históricos. Sua particularidade histórica, sua
intensidade em termos de números e morbidez, assim como as particularidades de outros
eventos genocidas de outras épocas e lugares, tornam impossível tal comparação. Se, porém,
como o próprio Adorno coloca no texto Educação após Auschwitz, “no próprio princípio da
civilização está inscrita a barbárie” (1986, p. 34), estamos todas e todos, enquanto inscritos
no processo histórico de avanço do ocidente sobre outras culturas, à mercê de condições que
podem se intensificar e se realizar em episódios de terror1. Dessa forma, o chamado de
Adorno para educarmos contra a barbárie continua atual; e se levarmos em conta o cenário
político que se apresenta, cada vez mais urgente.
Tomando como ideia central essa necessidade de uma educação contra a barbárie,
proponho encaminhar uma pesquisa que vá no sentido de investigar o que significaria tal
educação para o contexto brasileiro. Que a nossa sociedade tenha sido formada a partir de um
processo extremamente violento, que deliberadamente matou, escravizou e apagou a
possibilidade de existência de populações inteiras, parece ser indiscutível. A mitologia de um
país pacífico e cordial cai facilmente por terra, seja perante os aprofundamentos históricos a
respeito da constituição de nossa sociedade, seja pelas notícias que confirmam que este
processo de violência e barbárie continua em curso. E uma sociedade não é violenta sem que
existam pessoas capazes de cometer tais atos, sem uma estrutura que permite que eles sejam
cometidos, e sem a banalização que faz com que tais violências sejam aceitas e normalizadas.
Neste ponto de encontro entre sociedade e indivíduo, Adorno parece não ter dúvidas de que a
possibilidade da barbárie está inscrita na própria organização da sociedade, nos seus
“pressupostos objetivos”, como ele mesmo coloca no texto sobre a educação que é nosso
ponto de referência neste trabalho (1986, p. 34). Porém, como em termos práticos uma
1
Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, mostra que, para os colonizados, a civilização é a própria
barbárie: “a civilização europeia e seus representantes mais qualificados são responsáveis pelo racismo colonial”
(2020, p. 105). Seguindo essa ideia, o terror nazista pode ser considerado como resultante da mesma civilização
que colocou em prática o terror da escravização colonial.
mudança nesses pressupostos é praticamente impossível, ele diz que devemos nos concentrar
no “lado subjetivo”; ou seja, devemos focar em mostrar às pessoas os mecanismos que
podem levá-las a se tornarem violentas ou passíveis perante a violência, a fim de que,
conscientes desse processo, possam evitar que ele se realize.
Seguindo essa indicação, pretendo aqui desenvolver o raciocínio para uma educação
contra a barbárie no contexto brasileiro em três etapas: 1. traçar um breve panorama a
respeito da formação da sociedade brasileira e das estruturas que a fazem uma sociedade
violenta; 2. relacionar os elementos estruturadores das subjetividades propensas ao nazismo
levantadas por Adorno com os mecanismos de “pressão civilizatória” sobre as
individualidades observados na sociedade brasileira; 3. levantar indicações e possibilidades
do que pode vir a ser uma educação contra a barbárie dentro do contexto brasileiro, pensando
especificamente em qual seria o papel do ensino de Filosofia dentro desse processo.
É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos
dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como
tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a
terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade
de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. (...) Nossa
derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a
nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes
nativos. Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transforma em sucata e os
alimentos se convertem em veneno. (destaque no original)
E o sangue que corre dessas veias é real, sangue de homens, mulheres e crianças que
foi derramado sem dó nem piedade pelo sistema colonial, que não tinha outro objetivo que
não fosse o de enriquecer os donos desse “empreendimento”. Dentro da ideologia do sistema
colonial, talvez essa questão seja a mais evidente: pessoas são mercadorias; e como elas, são
descartáveis. Dito de outra forma, o desprezo pela vida, essencialmente das vidas que não são
a do homem branco europeu, é uma das marcas mais evidentes do colonialismo em nossas
terras. Seguirei assim a indicação de Boaventura de Souza Santos, quando afirma que: “o
efeito mais característico desse conjunto tríplice de formas de dominação [capitalismo,
colonialismo e patriarcado] consiste em criar uma linha abissal que separa radicalmente seres
considerados plenamente humanos de seres considerados sub-humanos - corpos racializados
e sexualizados” (SANTOS, 2021, p. 48). É sobre essas bases que vai operar a barbárie
brasileira.
O genocídio indígena
Se a legislação oficial ainda pode nos colocar em dúvida quanto à existência de uma
política de extermínio organizada dos povos indígenas (o que não influencia em nada a
realidade do genocídio), em relação aos africanos trazidos para cá a força e escravizados não
resta dúvida: foi planejada uma política de extermínio. Na obra O Genocídio do Povo Negro,
Abdias do Nascimento escreve o seguinte:
A imediata exploração da nova terra se iniciou com o simultâneo aparecimento da
raça negra fertilizando o solo brasileiro com suas lágrimas, seu sangue, seu suor e seu
martírio na escravidão. Por volta de 1530, os africanos, trazidos sob correntes, já
aparecem exercendo seu papel de “força de trabalho”; em 1535 o comércio escravo
para o Brasil estava regularmente constituído e organizado, e rapidamente aumentaria
em proporções enormes.
NASCIMENTO, 1978, p. 48
Hoje sequer sabemos os números desse comércio de seres humanos. Darcy Ribeiro
(1995), citando as estimativas elaboradas por Mircea Buescu, apresenta um total de 6.352.000
africanos aprisionados e trazidos para o Brasil para serem escravizados entre os anos de 1540
e 18602.
Se havia alguma espécie de discussão a respeito da humanidade dos povos indígenas,
a dos africanos sequer foi colocada em pauta pela empresa colonial escravagista. Nos
engenhos, fazendas e campos de mineração, a população africana trazida para o Brasil sofreu
as mais humilhantes e terríveis torturas imagináveis. Os açoites, o trabalho extenuante, os
estupros sistemáticos, a fome, a sede e os grilhões foram a rotina dessa população por
absurdos três séculos. Darcy Ribeiro narra dessa forma aquilo que Abdias do Nascimento
chama de “o tratamento mais cruel que se possa imaginar”:
Apresado aos 15 anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa
armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro - mercador africano de escravos - para a
praia , onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali
partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda
puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros
para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço de seu tamanho, mal comendo, mal
cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia,
caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro.
Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado.
Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou
dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar 18
horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar
faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de
trabalhar no dia seguinte até a exaustão. (...) [sua rotina] era sofrer todo o dia o
castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente
2
Talvez seja importante colocar aqui que números não definem a barbárie. Se apenas uma pessoa fosse
escravizada sob a chancela do Estado, e tal atitude vista com normalidade pela cultura da sociedade, bastaria
para afirmar que está instituída a barbárie.
vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando
chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de
dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados
criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez,
para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado,
podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com
uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de
uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.
RIBEIRO, 1995, p.120
Mais de três séculos de genocídio com requintes de crueldade. Mas a violência segue,
porque o racismo que justificou tais atrocidades continua vivo na sociedade brasileira. Cito
mais uma vez Abdias do Nascimento em sua constatação de que a Lei Áurea, que aboliu
oficialmente a escravidão em 1888, “não passou de um assassinato em massa, ou seja, a
multiplicação do crime, em menor escala, dos ‘africanos livres’” (1978, p. 65). Jogados à
própria sorte dentro de uma sociedade estruturalmente racista, o povo africano e seus
descendentes estava, como continua, fadado a ocupar a base da pirâmide social brasileira,
além de ser a vítima preferencial da violência. Recorro mais uma vez ao Atlas da Violência
2021 para mostrar que “a desigualdade racial se perpetua nos indicadores sociais da violência
ao longo do tempo e parece não dar sinais de melhora. (...) Em 2019, os negros (soma dos
pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios,
com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2” (CERQUEIRA, 2021, p. 49). As
vítimas da violência no Brasil continuam tendo cor; e não é branca.
Além do genocídio racista praticado contra indígenas e africanos, nosso país foi
contruído sob o peso do patriarcado, devidamente abençoado pela Igreja Católica e pelos
governantes, sejam eles coloniais, imperiais ou republicanos, constituindo uma verdadeira
cultura misógina. Em 1832, Nísia Floresta abria sua obra Direitos das Mulheres e Injustiça
dos Homens com a seguinte afirmação:
Trata-se do retrato de uma ideologia que serviu como pilar de sustentação do poder do
homem branco ao longo da história colonial, que é também a história da exploração e
controle dos corpos femininos. Essa situação é agravada pela interseccionalidade em relação
a raça e classe, o que torna a situação das mulheres progressivamente mais difícil de acordo
com sua origem étnica e sua posição na sociedade.
A própria formação da população brasileira tem a exploração do corpo da mulher
como seu fundamento. Seja através da exploração do “cunhadismo” nas comunidades
indígenas (RIBEIRO, 1995, p. 81), seja através dos “casamentos inter-raciais” com as
africanas trazidas para cá, temos o desenvolvimento de uma população baseado na
exploração sexual do corpo feminino. Como afirma Lélia Gonzalez, “os ‘casamentos
inter-raciais’ nada mais foram do que o resultado da violentação de mulheres negras por parte
da minoria branca dominante (senhores de engenho, traficantes de escravos etc.)”
(GONZALEZ, 2020, p. 43). Assim, além de sofrerem os mesmos suplícios dos homens
durante o processo de escravização, as mulheres africanas e suas descendentes foram vítimas
do estupro sistemático, numa prática que transcende o período da escravidão. Não à toa, está
entranhada na nossa sociedade a cultura do estupro que, apesar de difusa em todos os estratos
sociais, recai prefencialmente as mulheres inferiorizadas por sua classe social, cor de pele e
etnia (SOUSA, 2017, p. 14).
Enquanto umas têm seus corpos explorados, outras os têm controlados e confinados à
esfera doméstica. É sobre este segundo grupo que a ideologia da Igreja Católica vai recair
com todo seu peso e misoginia. Na obra História das Mulheres no Brasil, Emanuel Araújo
escreve o seguinte em seu capítulo sobre a sexualidade nos tempos coloniais:
o que se observa é um racismo cultural que leva, tanto algozes como vítimas, a
considerarem natural o fato de a mulher em geral e a negra em particular
desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população
economicamente ativa. No que se refere à discriminação da mulher, que se observem,
por exemplo, as diferenças salariais no exercício de uma função com relação ao
homem, e a aceitação de que “está tudo bem”. Quanto à mulher negra, sua falta de
perspectiva quanto à possibilidade de novas alternativas faz com que ela se volte para
a prestação de serviços domésticos, o que a coloca numa situação de sujeição, de
dependência das famílias de classe média branca. A empregada doméstica tem
sofrido um processo de reforço quanto à internalização da diferença, da
“inferioridade”, da subordinação.
GONZALEZ, 2020, p. 35
Este disciplinamento dos corpos vai incidir sobre toda a sociedade de então,
principalmente por conta da legislação inquisitorial vigente na época. Segundo Luiz Mott,
“durante os três primeiros séculos de nossa história, a homossexualidade era conhecida como
‘abominável e nefando pecado de sodomia’ – crime equiparado ao regicídio e à traição
nacional e castigado com igual rigor” (MOTT, 2006, p. 511). Com a vinda da família real ao
Brasil, a legislação inquisitorial abranda, mas isso não significa o fim da perseguição. Com as
definições de “atentado ao pudor”, ou “atentado aos bons costumes”, a perseguição às
pessoas LGBTQIA+ passa a ser caso de polícia, quando não casos de internação
médico-psiquiátrica. Basta lembrarmos que foi apenas em 1999 que o Conselho Federal de
Psicologia emitiu uma resolução que proíbe qualquer prática de patologização de
comportamentos ou práticas homoeróticas.
Assim como para as outras formas de violência culturalmente estabelecidas na
sociedade brasileira, encerramos esta parte com um trecho do Atlas da Violência 2021, que
diz o seguinte:
Imagino que, para nós, seria o caso de vencer a pressão exercida pelos três pilares que
apontei como constituintes da sociedade brasileira: o descaso pela vida, o racismo estrutural e
o preconceito decorrente do patriarcado. Vencer a pressão, no sentido que quero propor aqui,
significa tanto dizer NÃO, quando levado pela inconsciência cega a exercer a violência,
quanto REAGIR, individual e coletivamente, à violência que cotidianamente se apresenta.
Adorno trata, no texto Educação Após Auschwitz exclusivamente da primeira, mas acho que
podemos pensar para além da possibilidade de dizer não.
Vamos ver então quais são os mecanismos que tornam os homens suscetíveis a tal
pressão apontados por Adorno e como eles podem ser pensados em relação às características
da barbárie brasileira3.
3
Talvez aqui caiba uma ressalva importante: sistematizar o texto de Adorno é tarefa hercúlea que transcende
minha capacidade. Trabalho mais no sentido de buscar indicações do que apresentar uma organização
sistemática de suas ideias.
O primeiro a ser analisado aqui é assim colocado por Adorno: “é precisamente a
disposição de aderir ao poder e, externamente, submeter-se como norma àquilo que é mais
forte, à mentalidade dos algozes, que jamais deverá ressurgir” (1986, p. 37). É fácil perceber
em nossa sociedade o quanto o opressor ganha destaque e facilmente junta seu rebanho. Na
sociedade fragmentada, onde o indivíduo fragilizado busca a qualquer preço uma
identificação, a adesão ao poder, tenha ele a dimensão que tiver, é uma realidade. No nosso
caso, está colocada a adesão irrefletida ao racismo, ao machismo e ao desprezo pela vida.
Quando o presidente, por exemplo, fala, em meio a uma pandemia, que “não é coveiro” para
ficar contando mortos e que “todos nós vamos morrer um dia”4, e milhares de pessoas se
identificam e compartilham essas falas, temos verificada essa adesão à mentalidade dos
algozes. O mesmo se dá quando pessoas defendem a violência policial contra negros e
pobres, quando alguém justifica o estupro culpabilizando a mulher… enfim, os exemplos
estão por toda parte.
Esse mecanismo da adesão ao poder remete à ideia colocada por Adorno de que é
preciso “contrapor-se a qualquer supremacia coletiva cega e aumentar a resistência contra ela,
focalizando o problema da coletivização” (1986, p. 39). Ele faz referência aqui aos grupos
que realizam determinadas “tradições” para que se possa entrar neles, na sua maioria
violentas. Talvez esse tipo de associação não seja tão parte da nossa realidade quanto na
Europa e América do Norte, mas é um fato que pessoas acabam seguindo o comportamento
de determinado grupo com a intenção de se inserir, de fazer parte de alguma forma. Nas
escolas, a prática do bullying é realizada normalmente por indivíduos que se escondem no
grupo. Cabe aqui pensarmos se não é o mesmo caso de comportamentos racistas e machistas
perpetrados por grupos, onde os indivíduos desaparecem em meio ao coletivo. Como coloca
Adorno, “pessoas que se enquadram cegamente em coletividades transformam-se em algo
análogo à matéria bruta e omitem-se como seres autodeterminados. Isso combina com a
disposição de tratar os demais como massa amorfa” (1986, p. 39). Esse seria, segundo o
filósofo, um caminho para a inumanidade, para a equiparação de si e dos outros a coisas, a
peças de uma engrenagem que podem ser substituídas, descartadas ou aniquiladas. No Brasil,
temos vários casos de pessoas queimadas na rua, simplesmente por serem quem são; não por
acaso são negros, índios, mulheres e mulheres trans as vítimas recorrentes dessa barbárie.
4
Ambas as falas foram proferidas no famoso “cercadinho” onde o presidente faz seus discursos, conforme
matéria publicada pelo G1 e disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-diz-bolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-p
or-coronavirus.ghtml
Além deste ato hediondo, temos os espancamentos, estupros coletivos e torturas, sempre
realizadas por grupos que atentam contra os mesmos tipos de pessoas5.
A questão do “tipo coisificado”, que adere irrefletidamente à coletividade e perde o
valor e sentido da vida, nos remete àquilo que Adorno chama de frieza em relação ao outro.
Pode parecer contraditório que a adesão ao coletivo provoque a frieza em relação ao outro,
mas é que essa adesão não é feita por conta de interesses coletivos ou no intuito de construir
algo coletivamente em abertura para a diversidade, de encontrar em contato com o
não-idêntico. Seria algo como um coletivo de “mônadas sociais”, prontas para esmagar quem
quer que se atravesse no caminho por aquilo que julga ser seu interesse individual. Essa
frieza, essa indiferença em relação ao destino dos outros, é o que faz com que o silêncio seja
a norma perante a violência em nosso país.
Adorno também fala em omissão da confrontação com o horror. Negar que a barbárie
e o genocídio aconteceram e aconteçam é uma das formas de perpetuar sua existência. Talvez
aqui o melhor exemplo para nossa sociedade seja o famoso mito da “democracia racial”
brasileira. Como bem coloca Lélia Gonzalez:
Na medida em que somos todos iguais “perante a lei” e que o negro é “um cidadão
igual aos outros”, graças à Lei Áurea nosso país é o grande complexo da harmonia
inter-racial a ser seguido por aqueles em que a discriminação racial é declarada. Com
isso, o grupo racial dominante justifica sua indiferença e sua ignorância em relação
ao grupo negro.
GONZALEZ, 2021, p. 31
E assim, como num passe de mágica, três séculos de brutalidade e genocídio são apagados,
assim como os casos que se repetem todos os dias são “apenas excessões”. O mesmo serve
em relação aos povos indígenas. Temos um “dia do índio” onde se mostram suas
contribuições para a cultura nacional e…. só. Nem uma palavra sobre as perdas de território,
sobre os assassinatos, sobre as centenas de línguas desaparecidas num epistemicídio que
sequer temos noção do tamanho. Para a sociedade submetida à ideologia do homem branco,
5
As notícias abundam, basta uma pesquisa rápida na internet para comprovar. Cito aqui apenas três casos
recentes e locais:
“Mulher é queimada viva em tentativa de feminicídio na Grande Florianópolis”.
https://ocp.news/seguranca/mulher-e-queimada-viva-em-tentativa-de-feminicidio-na-grande-florianopolis
“Turista tem o corpo incendiado na Avenida Beira Mar em Florianópolis”.
https://ricmais.com.br/seguranca/turista-tem-o-corpo-incendiado-em-avenida-beira-mar-de-florianopolis-sc/
“Homossexual é vítima de estupro coletivo e tortura em Florianópolis”
https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2021/06/homossexual-e-vitima-de-estupro-coletivo-e-tortu
ra-em-florianopolis.html
nada disso é importante ou, no máximo, “são coisas de um passado que não vale a pena ficar
remoendo”. Em outro texto, O que Significa Elaborar o Passado, Adorno coloca a questão da
seguinte forma:
Como o próprio Adorno coloca, sua intenção não é apresentar um projeto educacional
completo, mas apontar alguns caminhos de como a educação pode vir a contribuir para evitar
que as pessoas se tornem capazes de realizar atos violentos, de ceder irrefletidamente à
barbárie. Nesse sentido, gostaria de propor aqui a reflexão a respeito de três etapas que
considero fundamentais na construção deste percurso: 1. o diálogo como ferramenta para a
auto-reflexão e tomada de consciência dos mecanismos que levam à barbárie; 2. a experiência
coletiva enquanto exercício para a práxis e contato com o não-idêntico; 3. o conhecimento de
outras histórias que não do colonizador ocidental como forma de propiciar o encontro com a
identidade e a coragem para reagir à barbárie.
Voltemos então à ideia apresentada por Adorno que podemos usar como guia para
pensar a respeito da educação contra a barbárie: “deve-se conhecer os mecanismos que
tornam os homens assim, que os tornam capazes de tais atos. Deve-se mostrar esses
mecanismos a eles mesmos e buscar evitar que eles se tornem assim novamente, enquanto se
promove uma conscientização geral desses mecanismos”. Ele completa dizendo que “a
educação só teria pleno sentido como educação para a auto-reflexão crítica” (1986, p. 35).
Considero que Márcia Tiburi nos dá um bom indicativo do encaminhamento que podemos
tomar a partir dessa ideia. Diz ela: “pensar a educação desde a perspectiva aberta por Adorno
é pensar precipuamente a cultura e a violência, as forças que atuam na construção do sujeito”
(TIBURI, 2003, p. 128).
A pergunta que me faço é essa: que tipo de procedimento pedagógico podemos usar
para tornar possível a auto-reflexão crítica e a tomada de consciência a respeito das estruturas
e mecanismos que levam à barbárie?
Me parece fundamental que estejamos dispostas e dispostos a criar uma escola que
esteja em contato com a realidade, que de alguma forma busque sua conexão com as questões
que alunas e alunos enfrentam na vida, dentro e fora dos portões da escola. Como diz Paulo
Freire, “nenhuma ação educativa pode prescindir de uma reflexão sobre o homem e de uma
análise sobre suas condições culturais. Não há educação fora das sociedades humanas e não
há homens isolados” (FREIRE, 2019, p. 82)6. Como, então, proceder para que as
individualidades e as condições culturais das alunas e alunos se tornem parte do processo de
educação? Me parece que um procedimento fundamental é o estabelecimento do diálogo, o
que significa, principalmente para nós professoras e professores, estarmos abertos para a
escuta. Seguimos mais um pouco com Paulo Freire:
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode
nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens
transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo.
O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos
pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.
FREIRE, 1987, p. 78
6
Uma prova do exercício de reflexão sobre a enunciação seria a própria análise do discurso de Paulo Freire e
sua constante colocação do HOMEM como universal para a HUMANIDADE.
Essa experiência dialógica também comporta outra questão fundamental, que é o
contato com o não-idêntico. Márcia Tiburi coloca a questão da seguinte forma:
Se Adorno pode sugerir o diálogo como meio de esclarecimento - o que se diz aqui
para fidelidade de suas próprias ideias -, ele não pode estar sugerindo que as pessoas
busquem ou alcancem qualquer forma de consenso, mas que a cada sujeito preso em
sua própria visão de mundo sejam apresentadas alternativas, que a cada um seja
possibilitado o encontro com o não-identico.
TIBURI, 2003, p. 126
Acredito que aqui não basta a simples comunicação em forma de debate e troca de ideias (o
que, perto da imposição unilateral do conteúdo de uma “disciplina” já seria excelente), mas se
torna fundamental a criação de experiências pedagógicas que envolvam a tomada de decisões
coletivas. Ouvir o não-idêntico deve ser o primeiro passo para trabalhar e conviver com o
não-idêntico. Experiências pedagógicas constituídas como trabalhos práticos coletivos podem
vir a ser a ferramenta a partir da qual podemos engendrar reflexões a respeito da participação
ou não na atividade, o que levou a exclusões ou valorizações de uns sobre outros, sobre a
capacidade de enxergar e valorizar diferentes habilidades, sobre a organização ser baseada na
autoridade ou na cooperação, sobre os processos de decisões que tiveram que ser tomadas
para atingir o objetivo. Se a frieza nas relações com o não-idêntico deve ser combatida, a
escola deve ser o local onde essas relações são incentivadas, não destruídas pelo ensino
individualista, alienado e competitivo que muitas vezes observamos na realidade escolar. Isso
não significa apagar o indivíduo na coletividade, que vimos ser um dos mecanismos pelos
quais as pessoas se tornam vulneráveis à barbárie; muito pelo contrário. A experiência
pedagógica deve ser pensada como possibilidade de emergência e afirmação do sujeito
perante a coletividade. Para que isso acontece, devemos estar cientes de que contato com o
não-idêntico só é possível em um local onde seja aceita e incentivada a diversidade, onde o
ser sujeito implique necessariamente a diferença em relação ao outro e o respeito radical pela
diferença, pela ideia de que a humanidade que compartilhamos é criada pela diferença de
quem somos. Esse respeito pela diferença só será apreendido na medida que nos
confrontamos com a possibilidade de emergência do preconceito. Isso faz da experiência
pedagógica um caminho para sua superação7.
7
Um exemplo rico de experiências pedagógicas no sentido que proponho aqui pode ser encontrado na obra
Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03,
organizada por Nilma Lino Gomes.
A partir do contato com o não-idêntico, da percepção de que nos constituímos como
sujeitos a partir de diferentes caminhos, passamos a perceber que existem outras histórias que
não são aquela do homem branco europeu, que é a violenta história da nossa colonização.
Colocar essas outras histórias em evidência na escola não apenas reforça a identidade dos
sujeitos até hoje menosprezados pela história colonial, como lhes dá a força e a coragem para
reagir e construir o futuro numa perspectiva diferente daquela que vivemos. Aqui está, talvez,
uma perspectiva utópica mais positiva, ausente na percepção de Adorno, que se vê preso
dentro dos limites da cultura ocidental. Seria o processo de construção subsequente ao
processo de negação da barbárie. A ideia que proponho aqui é que abracemos a possibilidade
de construir uma cultura pós-barbárie; e para isso é fundamental vencermos a ideia de uma
história única imposta pelo colonialismo.
Em paralelo a essa história, precisamos reconhecer e conhecer a existência de uma
história africana e afro-brasileira que possa fazer emergir a ancestralidade e a consciência de
que o povo africano e seus descendentes não são apenas vítimas, mas detentores e
construtores de uma história (ou de várias histórias próprias, se pensarmos que as dinâmicas
se desdobram numa série de possibilidades). Como coloca Abdias do Nascimento,
8
Aqui levo em consideração as ideias apontadas por Naomi Scheman, no texto Epistemologia Feminsta (2020).
considerar que a primeira missão para qualquer possibilidade de ensino de Filosofia na
educação básica seja criar as condições para que todos os envolvidos no processo possam
pensar a respeito de si e sua relação com o mundo.
Porém, quando nos defrontamos com essas que são as questões fundamentais da
Filosofia (Quem sou eu? Que mundo é esse? Como me relaciono com esse mundo?) temos
que resistir à tentação de voltar ao cânone e sua tendência de universalizar o ponto de vista de
um tipo humano. Para que esta auto-reflexão possa realmente ser crítica, precisamos entender
que este “eu” que pergunta sobre si mesmo ocupa diversos lugares, com diferentes
perspectivas do que significa sua construção enquanto sujeito. Isso significa entender e
mostrar como a Filosofia, na sua concepção canônica foi um veículo da opressão, além de
pensar nos caminhos para sua superação. Dito de outra forma, a Filosofia pode se reconhecer
como parte dos mecanismos que levaram à barbárie ao impor uma visão de mundo que
emana de um centro de poder e apaga toda manifestação desviante.
Isso nos leva à seguinte reflexão: para enfrentarmos de maneira satisfatória as
questões levantadas pelas alunas e alunos, precisamos buscar para nós, professoras e
professores, uma formação filosófica mais ampla, que inclua outras formas de pensar e fazer
Filosofia. Hoje já temos vários movimentos que buscam recuperar e construir uma história da
Filosofia Feminista, uma Filosofia Africana, uma Filosofia Ameríndia e Latino-Americana,
além das várias tradições e desenvolvimentos da Filosofia Oriental, que nos permitem não só
mostrar como a Filosofia Ocidental muitas vezes serviu de justificativa intelectual para a
barbárie, mas também construir alternativas para seu superamento. Se o contato com o
não-idêntico é condição para superar a barbárie, talvez seja hora da Filosofia dar esse passo.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor W. Educação Após Auschwitz. In: COHN, Gabriel (org). Coleção
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CERQUEIRA, Daniel. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021.
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