Você está na página 1de 5

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR


MILTON SANTOS

CLARA PEREIRA DA CRUZ PINTO

O SILENCIAMENTO DA MISCIGENAÇÃO

Salvador, 2019
O silenciamento da miscigenação

Conhecido pela sua diversidade cultural, o Brasil foi palco de grandes eventos que
geraram essa face de país miscigenado. A construção identitária do brasileiro consta na
mistura de 3 principais raças: o branco, o indígena e o negro. No entanto, é preciso atentar-se
a forma que esse país misturou essas raças, as hierarquias estabelecidas a partir delas e se
realmente cumpre com o dever de nação democrática.

Embora minúsculo, o grupelho recém-chegado de além-mar era


superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas.
Principalmente como uma infecção mortal sobre a população
preexistente, debilitando-a até a morte (...) Era o brasileiro que surgia,
construindo tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo
desfeitas (DARCY RIBEIRO, 1968)
O processo de colonização do Brasil ocorreu de forma agressiva e brutal. Os quase
300 anos em que o país viveu esse sistema colonial, foram marcados por genocídio, barbárie e
extermínio. Os povos indígenas que aqui habitavam, viveram uma série de conflitos gerados
pelo branco colonizador: disputa pelos territórios, escravidão, catequização, mortes. Os
interesses pelos frutos da terra também fizeram parte. O filme Como era gostoso o meu
francês (NELSON PEREIRA DOS SANTOS, 1971), mostra esse processo de captação de
produtos brasileiros, como pimenta e pau-brasil. O filme conta que franceses levavam mais de
mil quintais de pau-brasil por ano.

A outra face que constitui a população brasileira e que também sofreu a opressão da
colonização e, assim como os povos indígenas seguem sofrendo, é a do povo negro. Estima-se
que 2 milhões de africanos vieram para o Brasil entre 1550 e 1850 para serem escravizados
(GUERRAS DE PALMARES, Guerras do Brasil, 2018). O sistema escravocrata brasileiro foi
extremamente brutal e calculista. A escravidão que ocorreu com propósitos mercantilistas,
enriqueceu senhores de engenho durante séculos, estabelecendo hierarquias, onde o branco
era o patrão rico, e o negro o criado pobre. Essa visão estendeu-se até os dias atuais, visto que
mesmo que o Brasil tenha abolido a escravidão em 1888, não se deu apoio a essas pessoas
“libertas”, gerando uma população pobre que vive em sua maioria, à margem da sociedade.
Além disso, a miscigenação entre brancos e indígenas, e brancos e negros, muitas
vezes ocorreu por meio do estupro. O patriarcado branco estabelecendo poder sobre essas
mulheres.
“Vocês acha que nós não lembrava do estupro da escrava, que cês ainda comemora a
ação, porque o resultado? A linda miscigenação.” (GABRIELLY NUNES). A poesia da
jovem negra carioca expressa a revolta de ter nascido em um sistema que oprime sua raça
durante toda a história do país, mas que faz questão de pontuar que é um país diversificado,
que aceita as diferenças e que os direitos são igualitários. No entanto de que forma se pode
analisar essa mistura de povos, priorizando que se ouça as versões de todas as raças
envolvidas se não há registros passados a população sobre a história e protagonização de
outras raças que não a branca?

Só temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor. É


ele quem fala se suas façanhas. É ele, também, quem relata o que se
sucedeu aos índios e aos negros, raramente lhes dando a palavra de
registro de suas falas. O que a documentação copiosíssima nos conta é
a versão do dominador (DARCY RIBEIRO, 1968).
Na formação escolar, o que se ensina aos alunos a respeito da história do Brasil é o
ponto de vista do colonizador, pois era quem detinha o poder e, consequentemente, a
educação. A possibilidade da escrita era um dos privilégios dos brancos aqui chegados. Isso
favoreceu para que fossem repassados apenas os seus discursos, enquanto a massa
escravizada, que possuía diversas etnias, tinha não só a privação de escrever, mas a
impossibilidade de comunicação, visto que haviam muitas línguas distintas vindas de África.

Esse silenciamento por meio de documentos escritos favoreceu que a sociedade não
conheça a história do negro pela sua própria boca. Seus costumes, crenças, diálogos. Tudo foi
silenciado a fim de não ser passado para as gerações futuras. Não é à toa que a religião de
matrizes africanas é a que mais sofre contra preconceito no Brasil. De acordo com a
organização Gênero e Número (2018), cerca de 59% dos registros referentes à intolerância
religiosa, eram sobre religiões como a umbanda e o candomblé. Esse dado não se refere
apenas a intolerância quanto religião, mas também de raça. Essas são consequências de um
racismo estrutural o qual escolhe quem discriminar, maltratar, marginalizar. Fatos que
impactam até os dias atuais.

Nada se ouve falar sobre as revoltas e revoluções feitas pelos negros escravizados. A
série Guerras do Brasil (2018), traz um episódio, “Guerras de Palmares”, que relata como
funcionava os quilombos, locais em que os africanos fugidos se refugiaram e viviam. Estes
abrigavam muitas pessoas e haviam suas próprias regras sistematizadas. A guerra travada
entre a coroa portuguesa e esses negros refugiados gerou mortes de ambos os lados, sobretudo
dos negros.

"Todo aquele que tentasse organizar uma resistência contra o sistema escravocrata
colonial português teria aquele fim" (ZEZITO DOS PALMARES, 2018). As palavras do
historiador Zezito dos Palmares, relatam a violência a qual era aplicada nessa época a esses
negros. Apesar das muitas mortes, os quilombos cresceram e resistiram durante muitos anos,
fazendo parte da luta dos negros pela liberdade no Brasil.

No entanto, histórias como essas pouco são passadas nas escolas, o que reforça a ideia
de que não houve resistência do povo negro mediante ao sistema escravocrata o qual foram
inseridos. Dessa forma, com o discurso do dominador legitimado, estereótipos criados pelo
mesmo legitimam violência e discriminação ao povo negro desde a colonização até os dias
atuais.

As telenovelas, por exemplo, demoraram de exibir atores negros, e quando assim


fazia, os colocavam em posições ridicularizadas. A negação do Brasil (2000) é um
documentário que fala exatamente sobre isso. De empregadas fofoqueiras à jagunços
analfabetos, as novelas brasileiras reforçaram diversos estereótipos referentes ao negro.
Mamãe Dolores, interpretada por Isaura Bruno, foi sucesso na televisão brasileira. A
personagem representa a empregada negra de patrões brancos, que cuidava da família como
se fizesse parte dela.

Esse fato assemelha-se às histórias das amas de leite, negras, que cuidavam e
amamentavam os filhos dos senhores de engenho, ocupando o lugar de “mãe-preta” na vida
destes. No entanto, a romantização desse cenário anula a possibilidade de problematizar uma
mãe que deixa de amamentar e cuidar do seu filho para dedicar-se a uma criança branca. O
cenário torna-se comum diante dos olhos da sociedade, tanto que é presente nos tempos
atuais, onde a maioria das empregas domésticas e babás são negras.

Ainda no documentário, Milton Gonçalves expõe: “Houve um tempo em que eu dizia


pra mim; eu tenho que fazer um personagem de gravata e que seja bem educado, que fale bom
português e seja bem relacionado. E fui a Janete Clair e pedi a ela.” (MILTON
GONÇALVES, 2000). O ator conta a necessidade que sentiu após anos interpretando
personagens analfabetos e pobres, de ocupar um espaço diferente. No entanto, ele relata que
no decorrer da novela, enquanto era o psiquiatra Dr. Persival, a produção recebera cartas de
repúdio quanto o envolvimento do importante doutor com a personagem branca que era
casada na trama. No entanto, Milton questiona se além de preocupação com o relacionamento
do casal de brancos, não havia algo a mais nessas denúncias. Um negro em ascensão
incomodaria mais que um adultério? Ou a junção dos dois?

Posições de poder custaram a ser conquistadas por negros, e em comparação aos


brancos ainda há muito o que se caminhar. Principalmente inseridos em uma sociedade que
segrega de forma subtendida, ou não, as raças. A perseguição ao negro no Brasil reverbera em
outros âmbitos. Os bailes funks das favelas do Rio de Janeiro, os ditos "paredões" de bairros
periféricos de Salvador, vivem pressão constante da polícia. São os negros que ocupam maior
parte dos presídios, o número maior de analfabetos e desabrigados. Mesmo após 130 anos de
abolição, as posições mais marginalizadas têm cor.

Como romantizar uma realidade que exclui, marginaliza e mata pessoas? A cada 23
minutos um negro é morto no Brasil. Enquanto isso a miscigenação é aplaudida.

REFERÊNCIAS

DARCY RIBEIRO, O processo civilizatório, (1968).

GUERRAS DO BRASIL, Guerras de Palmares, (2018).

COMO ERA gostoso o meu francês. Direção: Nelson Pereira dos Santos. [S. l.: s. n.], 1971.
Disponível em: https://youtu.be/pSwWn--HkEw. Acesso em: 6 nov. 2019

REDE BRASIL ATUAL, Por que os cultos de matriz africana são alvo da intolerância
religiosa, (2019).

A NEGAÇÃO do Brasil. Direção: Joel Zito Araújo. Brasil: [s. n.], 2000. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=PrrR2jgSf9M. Acesso em: 6 nov. 2019.

Você também pode gostar